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DIÁLOGOS TEMÁTICOS 2
HISTORIOGRAFIA, METODOLOGIA DA PESQUISA, SOCIOLOGIA E MATEMÁTICA
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A DINÂMICA HISTÓRICO-CULTURAL NA PRODUÇÃO DA MATEMÁTICA: IMPLICAÇÕES NA RELAÇÃO PARA COM A SISTEMATIZAÇÃO DA MATEMÁTICA PRESENTE NA VERSÃO ESCOLAR
Prof. Doutor José Roberto Boettger Giardinetto
Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Faculdade de Ciências – Departamento de Educação
Campus de Bauru - Estado de São Paulo –Brasil
Resumo: Através de exemplos na História da Matemática, este trabalho evidencia existir uma similaridade
na diversidade da produção da matemática. A partir desta constatação, promove-se uma reflexão sobre
algumas implicações pedagógicas daí decorrentes para garantia da apropriação da matemática escolar.
Palavras chaves: Escola; História da Matemática; Educação Matemática; Produção e Sistematização da
Matemática.
Introdução: Dentre muitos aspectos apontados visando melhorar do ensino da matemática, uma tem sido
exaustivamente considerada: a necessidade da contextualização da matemática em contextos sociais
diversos.
Buscando viabilizar essa contextualização entendemos haver aí uma dinâmica bastante
interessante. Trata-se do seguinte: a manifestação cotidiana de determinado conceito matemático,
desenvolvida nas relações entre os homens e para com a natureza em contextos sociais diversos, revela a
forma pragmática desse mesmo conceito em sua expressão escolar. Esse conhecimento produzido de
forma a-sistemática passa a ser sistematizado gerando o corpo de conhecimentos hoje presente, não em
sua totalidade, na escola. Nesse processo, que é histórico, as diferentes produções da matemática em
contextos sociais diversos não são “diferentes matemáticas”, como se pode considerar num primeiro
momento, mas sim, diferentes manifestações “da” matemática historicamente acumulada e possível de ser
apropriada pela atividade escolar.
Nesse sentido, competiria à escola realizar uma decodificação, via sistematização, da produção do
saber em contextos sociais diversos através da análise das distintas produções da matemática pela
caracterização do “cerne fundamental”, da “estrutura básica da matemática já elaborada histórica e
socialmente” (Giardinetto, 1999, p. 07). É a caracterização dessa “estrutura básica” que pode, e deve,
quando possível, ser elemento motivador para a apropriação da matemática escolar.
No interior desse processo histórico, evidencia-se haver uma similaridade entre a diversidade da
produção da matemática em contexto históricos diversos. Neste sentido, a seguir, alguns exemplos na
História da Matemática são evidenciados de sorte a revelar essa similaridade na diversidade. Em função
desta constatação, aponta-se a necessidade de estudos mais específicos quanto às especificidades dessa
dinâmica na História da Matemática e como entendê-la na relação possível para com a matemática escolar.
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A dinâmica do processo histórico da relação entre a produção e elaboração da matemática: primeiras reflexões
A similaridade existente nas diferentes produções da matemática em povos diversos chega a ser
apontada em alguns autores que promovem estudos sobre o processo histórico de desenvolvimento da
matemática. Por exemplo, Ifrah(1989), ao abordar a história dos números, acaba manifestando, surpreso, o
fato de existir uma similaridade nas distintas produções relativas a gênese histórica dos números ao afirmar:
É impressionante observar como, em suas buscas e tentativas, homens muito
distantes no tempo e no espaço tomaram às vezes os mesmos caminhos e
desembocaram em resultados inteiramente similares. Mas seria absurdo pensar
que estes povos se copiaram uns aos outros: como vimos, eles simplesmente
foram colocados diante de condições iniciais rigorosamente idênticas. O que
explica por que sociedades sem nenhum contato entre si tenham chegado,
simultaneamente ou em épocas diferentes, a resultados semelhantes: domínio do
fogo, descoberta dos números, progresso do urbanismo e da tecnologia,
desenvolvimento da agricultura, tratamento e liga dos metais, invenção da roda ou
do arado... (Ifrah,1989,p.180)
Um outro exemplo dessa similaridade é a gênese do ábaco. A lógica implícita à contagem no
ábaco se manifesta em povos distintos em épocas distintas. Interessante, dentre esses diferentes ábacos é
o quipu inca (Ifrah,1989,p.99).
Mais um exemplo: o trangram desenvolvido na China e o tangram de Arquimedes.
O tangram na China surgiu há mais de 1000 anos. Trata-se de um jogo composto por sete peças
formadas a partir de um quadrado (figura 1).
Com as sete peças (sem deixar nenhuma delas) é possível realizar mais de 2000 composições
que formam figuras geométricas, humanas, de animais e de objetos diversos.
figura 1
Similar tangram é o de Arquimedes (287 (?) a 212 a.C). Com mais peças, esse particular tangram
também realiza composições de formas como a de animais (na figura 2, o tangram de Arquimedes e a
figura de um elefante daí composto).
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Figura 2
A similaridade implícita à dinamicidade nas diferentes produções da matemática se faz presente
também na “trigonometria chinesa” com relação à “trigonometria ocidental”. Esse fato é possível de ser
percebido no trabalho de Lorenzoni(2003, pp.54-57). Essa autora, ao procurar resgatar a “trigonometria
chinesa”, não percebe as riquíssimas semelhanças “dessa” trigonometria com relação à “trigonometria
ocidental”, cada qual com especificidades próprias mais com um cerne em comum, cerne este presente no
currículo escolar.
Como evidencia o trabalho de Lorenzoni, a trigonometria chinesa se diferencia da ocidental em
aspectos que não modificam a essência desse campo da matemática. Segundo a autora, a trigonometria
esférica chinesa foi estudada pelo astrônomo Guo Shoujing(1231-1316). O círculo possuía 365,25 graus.
Verifica-se a semelhança para com a “matemática ocidental”, pois, o círculo possui 360 graus. No livro
“Gougu Yi” verifica-se uma técnica em que “um triângulo retângulo é descrito não por uma noção de ângulo,
mas por dois termos indicando o lado menor (gou) e o lado maior (gu) do triângulo.”(ibidem,p.56). Na obra
chinesa intitulada “Dace” de 1631, encontra-se
definições de seno, coseno, tangente, cotangente, secante, cosecante, seno
versor (1-cosθ) e coseno versor (1- senθ), além de tabelas trigonométricas
construídas segundo um método similar àquele usado por Ptolomeu (c.85 – c.165)
para construir suas tabelas de cordas. (ibidem,p.56)
A autora chega, inclusive, a constatar haver similaridade do método empregado pelos chineses na
construção de tabelas trigonométricas com relação ao método empregado por Ptolomeu (ibidem, p.56).
Entretanto, a autora não percebe a dinâmica da relação entre produção e elaboração do saber
considerando a “trigonometria chinesa” diferente da “trigonometria ocidental”. Mas que mostrar diferenças, o
trabalho em questão mostra riquíssimas semelhanças entre essas “trigonometrias”.
Uma outra situação como essa é verificar o surgimento de problemas semelhantes em épocas
históricas completamente distintas como os apresentados a seguir1:
1 Esses quatro primeiros problemas foram extraídos do trabalho científico apresentado por Frank Joseph SWETZ no Encontro “História
e Educação Matemática”, International Study Group on the Relations Between History and Pedagogy of Mathematics, ICME-8 satellite meeting, realizado na Universidade do Minho, cidade de Braga, em Portugal, em junho de 1996 (in Anais do Encontro, vol. I, pp.201-208). A tradução para o português é do próprio autor, Frank Joseph Swetz.
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- Uma cana está encostada a um muro. Se descer 9 pés (no topo), o extremo (inferior) desliza 27
pés. Qual o comprimento da cana ?. Qual o comprimento da parede ? (Babilônia, 1600-1800
a.C.)
- A base de um poste (vertical) de 30 pés é deslocada de 18 pés. Determine a nova altura e quanto
baixou a extremidade do topo do poste. (Egito, 300 a.C.)
- Uma lança com 20 pés de comprimento está encostada a uma torre. Se o seu extremo é
deslocado 12 pés, que altura atinge a lança na torre ? (Itália, 1300 d.C.)
- Uma cana de bambu com 10 pés de altura tem uma quebra perto da extremidade. A configuração
da cana principal e da porção partida forma um triângulo. A extremidade toca o chão a 3 pés
de distância do caule. Qual o comprimento do caule que se mantém erecto ? (China, 300
a.C.)
- Numa escada de 100 degraus, no 1º degrau está pousada 1 pomba; no 2º degrau, 2 pombas; no
3º degrau, 3 pombas; no 4º degrau, 4 pombas; no 5º degrau, 5 pombas; e assim em todos
os degraus até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total ? (um dos
"Problemas para aguçar a inteligência dos jovens" de Pseudo-Beda, o Venerável - século X
in Laund, 1986:p.97)
- Somar os 100 primeiros números (problema resolvido por Carl Friedrich Gauss em1785,
quando este tinha apenas 8 anos de idade in Kalson, 1961, p.100)
Assim como problemas similares aparecem em épocas distintas, o mesmo ocorre com conceitos
atribuídos a apenas um matemático ou escola.
O denominado Teorema de Pitágoras não é algo exclusivo do povo grego. Como evidencia
Bastian & Almouloud(2003:p.45), “o Teorema, ao qual o nome de Pitágoras está tradicionalmente ligado, já
era conhecido dos babilônios, havia mais de um milênio antes”.
Da mesma forma, o conhecido Triângulo de Pascal (século XVII) não é de exclusividade de Blaise
Pascal (1632-1662), pois, era de conhecimento dos chineses no século XIV (Boyer,1974,p.151) e dos
árabes desde o século XI (Ifrah,1989,p.301)
Um outro exemplo é a constatação pela análise da obra chinesa "A arte matemática em nove capítulos"
datada do século III a.C. de que os chineses também resolviam sistemas de equações lineares, extração
de raízes quadradas e cúbicas muito tempo antes à época que surgiram no mundo ocidental.
Esses exemplos evidenciam, portanto, como as diferentes produções da matemática em povos
diversos, apresentam similaridades. As civilizações ocidentais e orientais produziram, cada qual com suas
especificidades lógico-estruturais, oriundos de modelos próprios de realizar o processo de objetivação e
apropriação da realidade (Duarte,1993), "a" matemática hoje presente na versão escolar. Trata-se de se
entender “a direção seguida pelo processo cultural” (Saviani,1985, p.123) em cada uma dessas civilizações.
Essa dinamicidade do processo histórico da matemática está presente não apenas no seu
intrínseco devir histórico, mas também, na constatação das hodiernas formas de manifestação em contextos
sociais diversos como se revela uma análise mais criteriosa de determinadas pesquisas etnográficas.
Por exemplo, em Damasceno&Gomes(2003, p.15), esses autores preocupados em evidenciar “a
matemática” na produção artesanal da farinha de mandioca nos municípios da Serra do Navio e Calçoene,
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no Estado do Amapá, constatam entre outras coisas, “a utilização do aspecto de comparação e de
padronização do próprio corpo como medida padrão – palmo, chave e os passos”. Ora, a utilização do
corpo humano como referência para as noções matemáticas de contagem e medida forma utilizadas por
muitos povos ao longo da história da humanidade como evidencia Giardinetto(2000).
Já na pesquisa de Chieus,Jr(2002), esse autor, ao buscar evidenciar “a matemática” dos caiçaras,
aborda aspectos empíricos que sistematizados, nada mais são que o ponto de equilíbrio e eixo de simetria
utilizados na geometria.
O que se verifica é que a crítica à forma de se apresentar o conteúdo matemático confundiu-se
com o conteúdo, passando a questionar esse último. Se o ensino tradicional de matemática não tem
promovido a relação com as distintas produções do conhecimento matemático, evidenciar a existência
dessas produções significa propiciar elementos mais ricos de se trabalhar pedagogicamente a apropriação
da matemática, de forma a garantir o acesso à apropriação da matemática sistematizada, não a sua
substituição ou sua desautorização.
Através dos exemplos aqui retratados, verificamos que as diferentes produções da matemática em
contextos sociais diversos revelam, através das suas semelhanças para com a matemática na forma
escolar, a universalidade e objetividade da matemática, pois, a história do desenvolvimento da matemática
evidencia isso e reitera a análise apresentada por Saviani(1991) quando este afirma que a historicização
“em lugar de negar a objetividade e universalidade do saber, é a forma de resgatá-la” (Saviani, 1991, p. 63).
O ensino da matemática tradicional promoveu a divulgação de uma concepção a-histórica de
matemática sem concebê-la na dinâmica da historicidade de sua produção e sistematização. Denunciar
essa pretensa neutralidade do saber matemático escolar presente na perspectiva tradicional não significa
romper com a objetividade e universalidade intrínseca ao conhecimento escolar. Como esclarece o mesmo
Saviani(1991,p.62), a objetividade do saber não denota neutralidade do saber porque a neutralidade do
saber é uma questão ideológica e a objetividade do saber é uma questão gnosiológica.
A universalidade do saber é o fio condutor que está implícito ao processo de sistematização do
conhecimento, processo síntese das várias formas de produção desse conhecimento. Esta universalidade
não é destronada já que a revisão histórica não descarta a apropriação de conceitos que se tornaram
universais. A universalidade denota o fato de ter resistido “aos embates do tempo” (Saviani,1991,p.25)
permanecendo-se como conhecimento que “ultrapassa os interesses particulares de pessoas, classes,
época e lugar” (ibidem,p.63) recuperando de seu condicionamento histórico, aquilo que tem “caráter
permanente” (ibidem,p.25). O que se descarta, é a interpretação de uma produção única desses conceitos
substituindo-os pela diversidade de produções. Nesse sentido, se torna necessário questionar o teorema de
Pitágoras como sendo uma apropriação indébita de resultados já desenvolvidos por outros povos, mas não
se pode negar a necessidade de sua apropriação no âmbito escolar. O mesmo para o que é hoje conhecido
por “Triângulo de Pascal”. Pode-se apontar para o fato de que a geometria euclidiana não é propriamente
obra de Euclides, mas não se pode abrir mão de sua apropriação.
Através desses exemplos e tantos outros, evidencia-se o equívoco de, ao se fazer a necessária
crítica ao processo histórico da matemática (já que não é neutro, isento de embates de natureza ideológica),
está-se desqualificando a apropriação desses conceitos. Trata-se de captar, nas diferentes manifestações
da produção da matemática, em contextos sociais diversos, os elementos hoje presentes na versão
universalmente constituída, a saber, a forma sistematizada do conhecimento que abarca os elementos
dessa produção. Dessa forma, ao professor de matemática compete identificar nas diferentes
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manifestações da matemática em contextos sociais diversos, o(s) "núcleo(s) válido(s)", que é possível
auxiliar na apropriação da versão sistemática já constituída, passível de ser socializada via escola. Trata-se,
portanto, em não evidenciar o que há de “diferente” em contextos sociais diversos quanto à matemática
constituída na versão escolar, mas sim, buscar evidenciar as similaridades entre as “diferenças” de sorte a
descortinar na universalidade implícita à matemática escolar, a riqueza dessa similaridade.
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1996.
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DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DO PROGRAMA ETNOMATEMÁTICA
Milton Rosa
Encina High School, San Juan Unified School District
Sacramento, California, USA
Daniel C. Orey
Pesquisador Visitante - CNP
Departamento de Matemática
Instituto de Ciências Exatas e Biológicas
Universidade Federal de Ouro Preto-Brasil
Resumo: Este artigo tem como objetivo providenciar uma introdução aos aspectos históricos do programa
Etnomatemática. Os autores deste artigo procuram mostrar que a etnomatemática inclui idéias,
perspectivas e práticas matemáticas, de indivíduos em diferentes culturas e que estas idéias são
manisfestadas e transmitidas em diversos modos. O estudo da história da Etnomatemática e de seus
proponentes ajuda-nos a identificar a importância desta perspectiva para a educação matemática. O
desenvolvimento da etnomatemática, aqui é documentado como parte do estudo do desenvolvimento
científico das idéias e práticas matemáticas efetuadas por grupos culturais distintos.
Desenvolvimento Histórico do Programa Etnomatemática É impossível a tentativa de localizar no tempo e no espaço a primeira vez em que foram expressos
os interesses e as preocupações em relação ao fazer matemático de outras culturas. Entretanto, este
interesse se manifesta desde os tempos mais remotos através de situações isoladas e pouco
sistematizadas. Estas situações começaram a ser observadas e relatadas desde que os indivíduos
começaram a viajar para diferentes lugares e regiões. Nestas viagens, houve a necessidade de que esses
indivíduos entrassem em contato com a cultura local. Neste processo de interação cultural, estes indivíduos
observaram os costumes e a cultura desses povos e registraram as suas observações. Nestes registros,
reconheceram que existem diferentes práticas culturais e começaram a escrever sobre as práticas
matemáticas de outros povos.
Muitas vezes, a ausência de registros impede o entendimento e a total compreensão dos
acontecimentos que levaram os cientistas, os filósofos, e os matemáticos a aplicarem determinados
conceitos matemáticos, que estão relacionados com a cultura matemática e que ainda são constatamente
utilizados na contemporaneidade. Assim, algumas realizações matemáticas significativas somente puderam
ser transmitidas às gerações futuras com o aparecimento da escrita, o que permitiu aos historiadores a
difusão do conhecimento que foi acumulado pelas civilizações.
Heródoto de Halicarnasso (484-425 a.C.), historiador grego, foi um dos primeiros estudiosos que fêz
observações antropólogicas durante as suas viagens. Em 440 a.C., ele escreveu o livro História, no qual
abordou os conceitos de igualdade, de valorização e apreço por culturas diferentes, descrevendo, sem
preconceitos, os costumes e os hábitos dos povos da época. Heródoto também registrou determinados
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conceitos geométricos que ele aprendeu com os egípcios. Nestes estudos, ele percebeu que a geometria
egípcia estava relacionada com o sistema de avaliação de áreas de terras produtivas. Este aspecto do
conhecimento matemático egípcio evidencia um sistema de produção que está relacionado com as
estruturas desta cultura. Neste aspecto, a interação da cultura egípcia com o meio-ambiente acontece
através da necessidade de desenvolver técnicas aritméticas e geométricas para a medição das terras ao
longo do Rio Nilo.
De acordo com D’Ambrosio (2001), ao mesmo tempo em que um sistema de conhecimento
matemático sistematizado estava se desenvolvendo nas civilizações ao redor do Mar Mediterrâneo, os
povos indígenas da Amazônia também estavam desenvolvendo maneiras específicas de conhecer,
entender, compreender e lidar com o próprio meio-ambiente. Neste mesmo período, outras civilizações
presentes na China, nos Andes, nas áreas sub-saarianas do continente Africano, estavam igualmente
desenvolvendo modos diversos e únicos para conhecer e compreender o ambiente no qual estavam
inseridos.
Para alguns filósofos, matemáticos e historiadores tradicionais; a época da Idade das Trevas, na
Europa, foi conhecido como um período de inatividade matemática, científica e teconológica (Joseph, 1993).
Durante a Idade das Trevas, a Europa perdeu a habilidade de continuar desenvolvendo os conhecimentos
artísticos, matemáticos, filosóficos e científicos que foram produzidos, desenvolvidos e acumulados, pelas
antigas civilizações. Teresi (2002) afirma que “os nossos modernos numerais, de 0 a 9, foram
desenvolvidos na Índia..., durante a chamada Idade das Trevas” (p. 32).
Durante a Idade Média, entre os séculos V e XV, os estudiosos da Bíblia dominaram o pensamento
europeu através de questionamentos sobre a origem humana. Os estudiosos europeus também
questionavam sobre o surgimento, o desenvolvimento e o desparecimento das civilizações. Estes assuntos
foram tratados como questões de fundamentação religiosa e serviram para promover os ideais de que a
existência e a diversidade humana eram somente criações divinas.
No século XI, a internacionalização do conhecimento matemático não foi somente influenciado pelas
culturas ocidentais. Os agentes de criação do conhecimento também estavam localizados em outras partes
do mundo, conhecido e desconhecido, pelos europeus (Sen, 2002). A evolução da difusão do
conhecimento matemático trouxe a acelaração do progresso tecnológico a várias partes do mundo. Por
exemplo, a invenção do zero e a noção de valor posicional têm sido, equivocada mente, atribuída aos
hindus, por volta do século IX. Este saber matemático foi transmito ao povo árabe através das atividades
comerciais, das guerras e conquistas.
No século XIV, o historiador árabe Ibn Khaldun (1332-1406) examinou os fatores sociais,
psicológicos, econômicos e ambientais que afetavam o desenvolvimento, a ascenção e a queda de
diferentes civilizações. Em seus estudos, Khaldun analisou várias políticas econômicas e demonstrou as
consequências das mesmas para as comunidades locais (Oweiss, 1988). Estes fatos contribuíram, de
forma decisiva, para a defesa de comunidades contra a injustiça e a opressão da classe dominante.
No século XV, os árabes invadiram a Europa e trouxeram as próprias tradições culturais e os
conhecimentos matemáticos que eles adquiriram anteriormente com os hindus. Eles também influenciaram
a Europa Medieval através do intercâmbio dos costumes, da cultura, da culinária, das ciências e de novas
formas de tecnologia. Quando os europeus conquistaram e colonizaram os povos que viviam do outro lado
do mundo, eles introduziram esse sistema de conhecimento ao Novo Mundo.
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A utilização do sistema numérico utilizado pelos romanos e gregos era muito trabalhoso e
inconveniente. Este sistema numérico não era prático e não satisfazia as exigências e as necessidades
impostas pelas novas sociedades que se formavam no continetne europeu. O sistema numérico decimal,
desenvolvido e utilizado pelos hindus, e que foi levado à Europa pelos árabes, foi adotado para atender as
novas demandas provocados pelo emergente espírito capitalista que se se desenvolvia nos reinados
situados às costas do Mediterrâneo. Este contexo contribuiu para uma sensível evolução das ciências.
Em contrapartida, os hindus também se aproveitaram deste intercâmbio cultural. Eles aprenderam
importantes conceitos da matemática grega e assimilaram hábitos e costumes da cultura árabe. Apesar
desta “Orientalização” da transmissão e difusão do conhecimento matemático, uma das primeiras
utilizações do zero num sistema de valor posicional foi realizado pelos Maias, muitos séculos antes dos
hindus começarem a utilizar um símbolo para o zero (Cajori, 1993; Diaz, 1995; Jr. Merick, 1969). Teresi
(2002) afirma que:
As realizações dos povos Pre-Colombianas do Novo Mundo têm iludido os
tradicionalistas por muito tempo. Os Maias inventaram o zero quase ao mesmo tempo que
os hindus. Eles praticavam uma matemática e uma astronomia muito além daquela
praticada pela Europa Medieval. Os americanos nativos construíram pirâmides e outras
estruturas, no meio-oeste americano, muito maiores do que qualquer estrutura construída
na Europa (p. 13).
Entre o final do século XV e começo do século XVI, os exploradores europeus, à procura de
riquezas nas novas terras, providenciaram descrições incríveis sobre as culturas exóticas que eles
encontraram em suas jornadas pela Ásia, África e Américas. Porém, como estes conquistadores
não respeitaram as culturas que contataram e nem conheciam os idiomas por elas falados, eles
somente narraram observações folcloristas e não sistematizadas para descrever estes grupos
culturais. No Mundo Novo, os primeiros cronistas das Américas também relataram as suas
observações e registraram os dados que foram colhidos sobre os grupos culturais encontrados nas
novas terras. Num processo que pode ser considerado etnomatemático em natura, Juan Diez
Freyle, um frade franciscano mexicano, publica em 1556, na cidade do México, o primeiro livro de
aritmética do Novo Mundo, entitulado Sumario compendioso de las quentas de plata y oro que en
los reinos del Pirú son necessarias a los mercaderes y todo genero de tratantes: Con algunas reglas
tocantes al arithmética. Neste livro, Freyle aborda a aritmética praticada pelos povos nativos
indígenas (D’Ambrosio, 1999). É importante observar que neste livro percebe-se o processo da
assimilação do conhecimento do conquistador pelas populações indígenas transformando o sistema
nativo através da perspectiva da dinâmica cultural.
De acordo com Grattan-Guiness (1997) quando os Europeus invadiram e conquistaram as Américas
no início do século XVI “...eles começaram a aplicar a aritmética comercial para as transações de compras
efetuadas entre cidadãos norte-americanos e os os chefes e reis locais...” (p.112). No ponto de vista de
Grattan-Guiness (1997) os europeus “pouco se esforçaram para conservar a cultura de seus escravos e das
tribos indígenas” (p. 113).
D’Ambrosio (2000) afirma que é de suma importância o livro entitulado História do Brasil, concluído
em 1627, por Frei Vicente do Salvador, e publicado em 1888 por Capistrano de Abreu. Nesta obra, Frei
Vicente relata aspectos da história brasileira, desde o “descobrimento” até a expulsão dos holandeses. Em
suas narrativas, Frei Vicente também observa que os indígenas brasileiros não possuem um sistema de
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numeração para a contagem de números maiores que cinco e que eles utilizavam os dedos dos pés e das
mãos para contar quantidades maiores. Ele também faz referências à matemática indígena, ao narrar o
sistema de troca, no qual os índios trocavam um produto por outro, num processo de correspondência
biunívoca, sem a utilização de um sistema padrão de pesos e medidas.
Com a ascenção do imperialismo de Portugal, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, e Bélgica, nos
séculos XVIII e XIX e com o controle político e econômico sobre os territórios conquistados na Ásia, nas
Américas, na África e em determinadas regiões do Pacífico, os europeus estiveram em contato crescente
com as culturas por eles conquistadas. O crescente desenvolvimento do comércio global, das economias
capitalistas, e da industrialização da Europa no final do século XVIII, conduziu o mundo a uma vasta
transformação sócio-cultural nas sociedades da época. Os países industriais europeus e a classes elitistas
olhavam para as novas terras como fonte de fornecimento de mão-de-obra barata e de produtos brutos para
serem manufaturados a baixos custos. Em contrapartida, milhares de europeus das classes menos
favorecidas, imigraram para as novas terras em busca da melhoria do nível de vida. Como conseqüência,
os europeus acumularam dados e informações sobre os diferentes grupos culturais que eram encontrados
nas colônias conquistadas.
As nações colonizadoras européias também buscavam explicações científicas para justificar a
posse do domínio global. Assim, no século XIX, surge a antropologia moderna, para obter as respostas
para estas indagações e também para estudar as diferentes culturas que foram submitidas ao processo de
assimilação durante o período de colonização. Neste contexto, o estudos dos costumes e das práticas
matemáticas destes grupos culturais foram objetos de estudo de muitas sociedades antropológicas
européias.
Nas primeiras décadas do século XX, Oswald Spengler (1880-1936), filósofo alemão, relata no livro
escrito entre 1918-1922, The Decline of the West, que a história de duas culturas podem ser demonstradas
através de padrões similares e que todos os aspectos culturais, como por exemplo, a arte, a política, a
matemática e as ciências, possuem princípios que diferem de uma cultura para outra. Nesse livro, Spengler
tenta entender a natureza do pensamento matemático. Ele também busca entender a matemática com uma
manifestação cultural vívida (D’Ambrosio, 2001).
Neste período, que pode ser considerado como pré-etnomatemático, o continente africano também
colaborou para o desenvolvimento dos ideais do programa etnomatemática. De acordo com Gerdes (2001),
Otto Raum, com a publicação do livro Arithmetic in Africa, em 1938, acreditava que os problemas
aritméticos deviam ser retirados das práticas e das experiências matemáticas vivenciadas pelos alunos no
próprio contexto cultural.
Os ideais filosóficos de que existe uma interação entre a matemática e a cultura alastraram-se pela
década de 40. Este fato foi resultado do crescimento explosivo das sciências cognitivas durante a Segunda
Guerra mundial. Em 1947, Leslie White (1900-1975), um antropologista americano, publica o artigo
entitulado The Locus of Mathematical Reality: an Anthropological Footnote, no qual explica que entender a
matemática como um produto cultural significa reconhecer a influência humana sobre a matemática. Para
ele, as fórmulas matemáticas, bem como outros aspectos relacionados ao currículo matemático, dependem
da interação da matemática com os indivíduos, com os grupos culturais, com os povos e com as nações.
Os algorítmos e outras formas de cálculo mental também possuem fortes conexões culturais (Orey, 2000,
2004).
13
Em 1948, o historiador e matemático holandês, Dirk Jan Struik (1894-2000) publicou o livro A
Concise History of Mathematics, Volumes I & II, no qual procurava entender como as forças sociais e
institucionais influenciavam a pesquisa em matemática. Em seus estudos, Struik também procurou
demonstrar como o contexto social se interage com a produção do conhecimento matemático. Neste
mesmo período, “Alguns outros matemáticos e filósofos ... também perceberam que a matemática tem
contexto cultural, mas pararam prematuramente de pesquisar outras culturas” (Ascher & Ascher, 1997, p.
44). Neste contexto, indivíduos que possuíam um certo conhecimento matemático estavam procurando
meios para entender, compreender e adquirir conhecimentos sobre a significância da matemática na
natureza humana.
Cassius Jackson Keyser escreveu diversos livros sobre o inter-relacionamento da matemática e
filosofia. Nesses livros, ele examinou as fundações e as estruturas da matemática e das ciências e tentou
aplicá-las nas interações humanas. Em 1922, ele escreveu Mathematical Philosophy: A Study of Fate and
Freedom, no qual ele descreveu a matemática como uma ciência de pensamento exato ou uma ciência de
pensamento rigoroso. Keyser afirmou que algumas das características distintas da matemática são
precisão, exatidão e integralidade das definições. No entanto, a filosofia matemática é mais abrangente do
que o cálculo numérico ou a manipulação de formulas. Para a filosofia matemática, o pensamento
preciso,exato e rigoroso é essencial. Na perspectiva de Keyser, aqueles que, deliberadamente, recusam-se
a pensar matematicamente, deliberadamente, transgridem a suprema lei da retitude intelectual. Por muitos
anos, Keyser meditou sobre a natureza da Matemática e as suas conexões com diferentes esferas da vida
humana.
Os vários aspectos da matemática, como por exemplo, a utilidade e a aplicação da matemática na
resolução de problemas em outros campos do conhecimento humano, foi uma das preocupações de Morris
Kline. No livro, Mathematics in the Western Culture (1953), Kline fornece uma notável avaliação sobre a
influência da matemática no desenvolvimento da filosofia, das ciências físicas, da religião e das artes; na
vida ocidental. Para ele, “a afirmativa de que a matemática tem sido uma força fundamental para modelar a
cultura moderna, bem como, um elemento vital desta cultura, parece ser demasiado incrível ou, na melhor
das hipóteses, tem um certo grau de exagero (Kline, 1953, p.3). Em nossa opinião, este descrédito parece
estar presente, atualmente, entre muitos acadêmicos, matemáticos e historiadores. De acordo com Teresi
(2002), no trabalho clássico de Kline Mathematics: A Cultural Approach, ele “reconhece que os babilônios e
os egípcios foram os pioneiros em muitas descobertas matemáticas, muito tempo antes que os gregos,
porém, ele os considera pragmáticos” (p.29). A paixão de Kline pela matemática ocidental não o permitiu
apreciar as contribuições matemáticas das culturas não-ocidentais para o desenvolvimento desse
conhecimento. Em nossa opinião, este fato ofuscou a relevância do trabalho de Kline para a educação
matemática.
Alguns matemáticos e filósofos tentaram considerar, sem muito sucesso, a matemática como parte
integrante de uma determinada cultura. Nesta perspectiva, em 1931, Ludwig Wittgenstein, filósofo
australiano, escreveu Culture and Value, no qual ele forneceu introspecções nas relações entre o mundo e
a matemática através da religião, da linguagem, da cultura e da filosofia.
O interesse dos estudiosos e pesquisadores pelo vínculo da matemática com a cultura começa a
despontar com muito vigor entre os matemáticos, os educadores e os antropólogos durante a década de 50.
Assim, o destacado topólogo americano Raymond Louis Wilder, talvez, tenha sido, o primeiro educador, a
relacionar claramente, a matemática com a cultura, numa conferência entitulada The Cultural Basis of
14
Mathematics, no Congresso Internacional de Matemáticos, realizado em 1950, nos Estados Unidos. Em
1981, ele escreveu Mathematics as a Cultural System, onde ele descreve a a natureza da matemática e a
sua relação com a sociedade, a partir do ponto de vista da antropologia cultural. No ponto de vista dele, a
matemática é considerada como uma subcultura de uma cultura geral, no qual o desenvolvimento e o
estado atual desta área de estudo possui inlfuências culturais. De acordo com Ascher & Ascher (1997),
“…Raymond L. Wilder, foi o primeiro matemático a relatar a importância da relação existente entre a
matemática e a cultura. Ele utilizou os seus conhecimentos para descrever os processos do
desenvolvmento matemático no oeste” (p. 44). Para Wilder, a matemática se desenvolve entre dois tipos de
influência cultural. O primeiro tipo de influência cultural está relacionado com a matemática que surge do
meio cultural no qual um determinado grupo está inserido. Neste caso, a influência do meio cultural é uma
resposta às necessidades surgidas através das interações sociais entre os elementos do grupo. O segundo
tipo de influência cultural está relacionado com a herança cultural que é transmitida pelos elementos do
grupo. A influência da herança cultural é utilizada para resolver os problemas matemáticos que são
específicos a cada cultura.
Da mesma forma, na década de 60, o conceituado algebrista japonês Yasuo Akizuki propõe que
seja enfatizado o lado reflexivo da matemática. Akizuki também propõe que a história das ciências e da
matemática sejam ensinados em todos os níveis de ensino escolar. Porém, o ponto mais interessante da
argumentação de Akizuki é o reconhecimento de que matemática é um produto cultural e que existem
diferentes maneiras para a resolução dos problemas matemáticos (D’Ambrosio, 2003; Orey 2004). No
ponto de vista de Akizuki, as filosofias e as religiões orientais são muito diferentes daquelas que são
praticadas no oeste. Esta perspectiva permitiu-o acreditar que também existem diferentes maneiras de se
pensar matematicamente (D’Ambrosio, 2003).
Apesar dos antropologistas, dos estudiosos e dos pesquisadores terem demonstrado interesse em
diferentes modos de matematização, a proposta de Akizuki somente foi considerada pela comunidade
matemática no início da década de 70. Este fato foi marcado pela crescente tomada de consciência por
parte de um grupo de educadores matemáticos e de pesquisadores que estavam instigados em relação aos
aspectos sócio-culturais da matemática.
Ao mesmo tempo, seis fatos importantes foram fundamentais para o desenvolvimento do programa
etnomatemática:
1) Em 1973, Zaslavsky publicou o livro Africa Counts: Number and Patterns in African Culture, que
explora a história e a prática das atividades matemáticas dos povos da África saariana,
demonstrando que a matemática foi proeminente na vida cotidiana africana e que também auxiliou
no desenvolvimento de conceitos matemáticos atuais. Pode-se identificar no livro de Zaslavsky, um
trabalho pioneiro para organizar coerentemente o conhecimento do povo africano numa perspectiva
didático-pedagógica.
2) Em 1976, D’Ambrosio, matemático e filósofo brasileiro, organizou e presidiu a seção Why Teach
Mathematics? com o Topic Group: Objectives and Goals of Mathematics Education durante o Third
International Congress of Mathematics Education 3 (ICM-3), in Karlsruhe, na Alemanha. Nesta
seção, D’Ambrosio colocou em pauta a discussão sobre as raízes culturais da matemática no
contexto da educação matemática (Ferreira, 2004).
15
3) Em 1977, o termo etnomatemática, foi primeiramente utilizado por D’Ambrosio numa palestra
proferida no Annual Meeting of the American Association for the Advancement of Science, em
Denver, nos Estados Unidos.
4) A consolidação do termo etnomatemática culminou com a palestra de abertura “Socio-cultural
Bases of Mathematics Education” proferida por D’Ambrosio no ICME 5, na Austrália, em 1984, que,
dessa forma, instituiu oficialmente, o programa etnomatemática como campo de pesquisa
(D’Ambrosio, 2002).
5) Em 1985, Ubiratan D’Ambrosio escreve a sua obra-prima Ethnomathematics and its Place in the
History and Pedagogy of Mathematics. Este artigo é de fundamental importância pois “representa o
primeiro tratado compreensivo e teórico, em língua inglesa, do Programa Etnomatemática. Estas
idéias têm estimulado o desenvolvimento deste campo de pesquisa” (Powell & Frankenstein, 1997,
p. 13). Em 2003, este artigo foi selecionado para compor o livro do NCTM, Classics in Mathematics
Education Research, por que o mesmo influenciou positivamente e profundamente as investigações
e pesquisas em Educação Matemática.
6) Em 1985, também foi criado o International Study Group on Ethnomathematics (ISGEm), que lançou
o programa etnomatemática internacionalmente.
É muito importante salientar a importância de Ubiratan D’Ambrosio para o desenvolvimento do
programa etnomatemática, pois ele é o mais importante teórico e filósofo neste campo de estudo. Ele
também é o líder internacional e o disseminador mundial das idéias envolvendo a etnomatemática e suas
aplicações em Educação Matemática. Powell & Frankenstein (1997) afirmaram que:
A visão ampla de D’Ambrosio em relação a etnomatemática originou uma
transformação dialética dentre e entre as sociedades. Além disso, a
epistemologia de D’Ambrosio é consistente com a epistemologia de Freire (1970,
1973), pois para ele, o conhecimento matemático é dinâmico e resultante da
atividade humana. Este conhecimento não é estático e nem ordenado (p.8).
Neste contexto, os estudos de D’Ambrosio na área de estudos sócio-políticos estabeleceu um forte
relacionamento entre a matemática, a antropologia e a sociedade.
Num acordo firmado entre Gerdes (1997) e Powel & Frankenstein (1997), eles consideram
D’Ambrosio como “o pai intelectual do Programa Etnomatemática” (p.13). De acordo com Shirley (2000),
D’Ambrosio também foi também como um dos mais imporantes matemáticos do século XX, nos assuntos de
cunho sócio-político e etnomatemática.
Nos anos posteriores, o termo etnomatemática tem sido empregado numa sucessão de encontros,
conferências e em congressos, de dimensões: locais (Making Math Meaningful em Sacramento, California ),
regionais (First Northern California Conference on Ethnomathematics em San Francisco, California, Asilomar
Conference on Mathematics – CMC, em Asilomar e Pacific Grove, California), nacionais (National Council of
Teachers of Mathematics, nos Estados Unidos, Primeiro Congresso Boliviano de Etnomatemática, Primeiro e
Segundo Congressos Brasileiro de Etnomatemática) e internacionais (International Congress of History of
Sciences e International Congress of Mathematics Education).
Neste contexto, o International Study Group on Ethnomathematics organizou, em Setembro de
1998, o Primeiro Congresso Intenacional de Etnomatemática, em Granada, na Espanha. O Segundo
Congresso Internacional de Etnomatemática foi realizado em Ouro Preto, no Brasil, em Agosto de 2002. O
16
Terceiro Congresso Internacional de Matemática será realizado em Auckland, na Nova Zelândia, em
fevereiro de 2006. Estes eventos colaboraram e colaborarão para a evolução da pesquisa, da investigação
e do estudo em etnomatemática. O crescente número de livros e artigos publicados em revistas e jornais
de diferentes idiomas e a diversidade de teses e dissertações submetidas em universidades nacionais e
internacionais são indicadores da vitalidade desta nova área de pesquisa (D’Ambrosio, 2004).
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18
HISTÓRIA ORAL E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: UM VIÉS HISTÓRICO
Luzia Aparecida de Souza2
Antonio Vicente Marafioti Garnica3 (orientador)
Resumo: A pesquisa, aqui referenciada, procura constituir um primeiro cenário do trabalho na interface
história oral e Educação Matemática e, a partir deste, olhar para as questões que têm fundamentado este
trabalho. Para tanto, optou-se pela realização de entrevistas com pesquisadores em Educação Matemática
que se dedicam ao trabalho/estudo da história oral e por uma revisão das produções (publicações em
revistas, periódicos, teses e dissertações) destes pesquisadores. Emergem desse estudo discussões
acerca de como a história oral vem sendo pensada na/para a Educação Matemática, noções de documento,
História, memória, entre outras. Este texto ressalta, particularmente, o viés histórico sobre o qual o Grupo
História Oral e Educação Matemática tem se apoiado para a produção de conhecimento nessa região de
inquérito.
Introdução Esta pesquisa encontra-se em andamento e coloca-se como um estudo dos interesses e crenças que
influenciaram na opção pela história oral na Educação Matemática e, para além disso, pela continuidade
desses trabalhos e pela regulação dessa opção.
Para refletir sobre essa questão foi realizada uma busca na plataforma Lattes do CNPq 4 que
apontava, sob as palavras-chave “história oral; Educação Matemática”, o Grupo História Oral e Educação
Matemática- GHOEM como o único a se dedicar efetivamente a essa ligação. Dessa forma, foram
selecionados dez entre os dezenove pesquisadores que compõem atualmente o GHOEM e estes nos
concederam entrevistas e tiveram suas publicações, ligadas a esta temática, estudadas.
O cenário que tem sido caracterizado nesta investigação abrange temáticas como formação de
professores, História, Sociologia, metodologia, história oral, História da Educação Matemática, ética na
pesquisa, entre outras.
A história oral, de forma geral, tem sido utilizada nesses trabalhos enquanto uma metodologia de
pesquisa qualitativa que reserva especial atenção para a constituição e disponibilidade integral de
documentos a partir da oralidade. Os pesquisadores, membros do GHOEM e entrevistados neste estudo,
desenvolvem trabalhos com professores e pessoas ligadas a instituições e grupos em Educação
Matemática, contribuindo para com a produção de conhecimentos nas áreas da Educação Matemática e da
História da Educação Matemática.
Com relação à primeira, são debatidas questões como concepções de professores de Matemática,
a relação escola-família-matemática, profissionalismo docente e relações de preconceito e resistência em
Departamentos de Matemática.
2 Mestranda em Educação Matemática no Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da UNESP, campus de Rio Claro.
Endereço eletrônico: [email protected] 3 Prof. ligado ao Departamento de Matemática da Unesp, campus de Bauru, e à Pós Graduação em Educação Matemática da Unesp,
campus Rio Claro. Endereço eletrônico: [email protected] 4 Em junho de 2004.
19
Em relação à História da Educação Matemática, várias pesquisas delineiam um esforço no sentido
de reconstituir faces dessa história no país a partir de depoimentos de professores de Matemática. Esses
estudos envolvem também um trabalho junto à CENP- Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e investigações acerca da formação e da produção de
núcleos específicos como o NEDEM -Núcleo de Estudo e Difusão do Ensino de Matemática, vinculado ao
processo de implantação da Matemática Moderna no estado do Paraná, o CEM- Centro de Educação
Matemática, de São Paulo e, com esta pesquisa, o próprio GHOEM (Cf. GARNICA, 2005).
A constituição de documentos se dá no momento da entrevista e, também, no processo de
textualização desta. Após a transcrição literal da entrevista, esse processo é direcionado pela negociação
entre pesquisador e entrevistado de forma a constituir uma versão última, a ser divulgada, com
complementações e vetos julgados necessários pelo depoente. Dessa forma, são gerados vários
documentos, divididos em escrito e oral, a serem disponibilizados para pesquisas futuras.
A utilização da oralidade como base para elaboração desses documentos é vista como uma
possibilidade de trazer à tona versões de atores do movimento da Educação Matemática (que não estariam
disponíveis em registros escritos, em geral burocráticos, ou que vêm trazer uma outra perspectiva acerca
desse movimento). O reconhecimento e valorização dessa possibilidade traz consigo uma aproximação
desses pesquisadores com relação à vertente histórica originada pela École de Annales (criada em 1929
por um grupo de pesquisadores, dentre os quais Marc Bloch e Lucien Febvre) e desenvolvida pela História
Nova nas quais não se falava de história oral, mas defendia-se algo essencial para que esta pudesse vir a
se desenvolver: a ampliação de fontes e um novo olhar acerca de sua abordagem. Mais recentemente o
discurso de alguns dos entrevistados tem ressaltado a importância da sociologia neste movimento, mas
aqui, assim como nas publicações dos entrevistados, será dada maior atenção aos vínculos estabelecidos
com a História.
É interessante ressaltar que uma “nova” perspectiva começa a emergir de um cenário que colocava,
como área da História, o passado desvinculado do presente e, como oficio do historiador, um exercício
infindável de imparcialidade e isenção quanto às próprias emoções. As “coisas” deveriam ser estudadas tais
como elas eram.
Nessa “nova” perspectiva, entretanto, o pesquisador não se apresenta “desarmado” perante suas
fontes. Para Bloch,
Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado, ficamos [portanto] pelo
menos livres no sentido de que, condenados sempre a conhecê-lo exclusivamente
por meio de [seus] vestígios, conseguimos todavia saber sobre ele muito mais do
que ele julgara sensato nos dar a conhecer. [É, pensando bem, uma grande
revanche da inteligência sobre o dado.]5. (BLOCH, 2001, p.78).
Dessa forma o autor reforça a idéia de que um documento só fala se se sabe interrogá-lo e de que a
sua compreensão se dá, também, no delineamento do terreno sobre o qual ele se constituiu.
Quanto à ampliação de fontes, Queiroz (1994) afirma que teriam sido preocupações com a
excessiva utilização de elementos exteriores à memória, com a falta de continuidade das séries
5 As notas que se apresentam entre colchetes nesta citação são originais do autor, acrescentadas na última versão do Apologia da
História por seu filho Étienne Bloch.
20
documentais, entre outras, que levaram o historiador francês Marc Bloch (1886-1944), sob influência do
sociólogo Émile Durkheim, a buscar uma aproximação com as Ciências Sociais, atentando para a
pluralidade de dados (sociais, econômicos, políticos) e para a “importância de fontes não escritas como a
Arqueologia e a Etnografia”(p.107).
Dessa forma, o movimento do Annales constitui-se como uma proposta de rompimento com a
concepção de história vigente até o início do século XX.
Reis (2004) comenta a posição de alguns historiadores de que a continuidade e unidade dos
Annales dar-se-ia em torno de sua proposição central: “retirar a história de seu isolamento e aproximá-la
das outras ciências sociais”(p.72). Essa posição estaria ligada à idéia de que os Annales teriam se valido de
paradigmas vários, tendo em vista a multiplicidade das ciências sociais.
Uma outra posição que, segundo este autor, tem sido defendida é a de que o próprio grupo dos
Annales teria se constituído como um paradigma. A esta posição Braudel se colocaria contrariamente
afirmando que:
[...] apesar de combaterem a história tradicional, Febvre e Bloch não tiveram a
impressão de estar criando um paradigma, entende-se esse termo como um
sistema de pensamento rigorosamente articulado e concluído. Eles não teriam [...]
nenhum prazer em usar esse termo e menos ainda termos como ‘escola’ e ‘modelo’.
O que propuseram foi somente uma ‘troca de serviços’ da história com as ciências
sociais. (Apud REIS, 2004, p.70).
Dessa forma, Braudel apresenta esta troca como o “motor” dos Annales que se constituiu como uma
novidade radical em 1929.
Segundo Le Goff (2001), as motivações de Lucien Febvre e Marc Bloch para o lançamento da
revista Annales em Estrasburgo eram de várias ordens e envolviam, num primeiro momento, a retirada da
história de um confinamento em barreiras disciplinares e do seu conseqüente marasmo. Além disso, foram
incluídos aspectos econômicos e sociais num panorama até então dominado por uma história política e do
acontecimento. Por história política, o autor entende uma história narrativa, “fatual, teatro de aparências que
mascara o verdadeiro jogo da história, que se desenrola nos bastidores e nas estruturas ocultas em que é
preciso ir detectá-lo, analisá-lo, explicá-lo”. (p.31)
Se na perspectiva positivista não havia História sem documentos, agora, para que esta existisse
deveria haver um problema.
Bloch define história como o estudo dos homens no tempo e rompe com as idéias de seu tempo,
passando a reconhecer a subjetividade no trabalho do historiador, o conhecimento histórico não é mais
neutro e exato, “é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa” (p.75). Sendo
assim, os fatos históricos não falam por si só e o trabalho do historiador deixaria de ser o de,
imparcialmente, ouvir e narrar o que estes dizem:
Mas, a partir do momento em que não nos resignamos mais a registrar [pura e]
simplesmente as palavras de nossas testemunhas, a partir do momento em que
tencionamos fazê-las falar [mesmo a contragosto] mais do que nunca impõe-se um
21
questionário. Esta é, com efeito, a primeira necessidade de qualquer pesquisa
histórica bem conduzida. [...]
Pois os textos ou os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais
claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los.(
BLOCH, 2001, p.79).
Reis afirma que:
De 1929 a 1990, os Annales passaram por várias fases, renovaram o questionário
proposto pelos fundadores, mudaram as condições da pesquisa e estabeleceram
novas alianças com as ciências sociais, mas mantiveram-se fiéis ao ‘programa’ dos
fundadores. Essa fidelidade não se traduziu em uma repetição, mas na renovação
constante da pesquisa e na abertura da história às necessidades do presente.
(REIS, 2004, p.77).
Para Garnica (2003) há um consenso entre os pesquisadores acerca de uma caracterização dessas
fases, ainda que datas tão pontuais sejam questionáveis.
A primeira delas (que, segundo os autores, vai de 1929 a 1946) teria Marc Bloch e Lucien Febvre
como pioneiros e coloca-se como uma renovação historiográfica. A segunda (de 1946 a 1968), sob direção
de Braudel, consolida o programa teórico da escola, radicalizando, de certa forma, o pensamento dos
fundadores. A terceira seria chamada de Nova Nova História e reduziria a importância dada por Braudel à
economia (de 1968 a 1988) (Cf. GARNICA, 2003).
A história nova, por sua vez e segundo Le Goff, possui uma tradição própria que é a dos fundadores
da revista Annales d’histoire économique et sociale, e revive duas das preocupações de Bloch:
De um lado, recusar o “ídolo das origens”, porque, de acordo com um provérbio
árabe, “os homens se parecem mais com o seu tempo do que com seus pais”. De
outro, estar atento às relações entre presente e passado, isto é, “compreender o
passado pelo presente” – donde a necessidade de um método “prudentemente
regressivo”. (LE GOFF, 2001, p.34).
Em acordo com Le Goff, a história nova ampliou o campo documental histórico, acrescentando às
fontes, até então compostas puramente de textos escritos, documentos orais, de escavações arqueológicas,
fotografias, curvas de preço, ferramentas... Entretanto, ressalta o autor, “os métodos de crítica desses
documentos novos calcaram-se mais ou menos nos métodos aperfeiçoados pela erudição dos séculos XVII,
XVIII e XIX.”(p.29)
Ainda segundo Le Goff (2001), a nova história buscava outros tipos de história (como a econômica,
a demográfica...), ampliando uma visão até então restrita ao estudo da história política e militar. Ampliando
o foco que até então iluminava apenas os grandes homens e a narrativa dos acontecimentos, a história se
voltava, agora, no rastro de suas conquistas recentes, para todos os homens e para a estrutura que os
cercava, dando origem a uma história em movimento, capaz de perceber as mudanças e transformações
que ocorriam ao longo do tempo.
22
Dessa forma, é evidenciada a idéia de Le Goff de que,
Destronar a história política foi o objeto número um dos “Annales” e continua sendo
uma preocupação de primeira ordem da história nova, ainda que, [...] uma nova
história política, ou antes uma história de uma nova concepção do fato político, deva
tomar seu lugar no domínio da história nova.
Desembaraçar-se da história dos grandes homens – essa empresa está bem
encaminhada, ainda que, de um lado, essa história das aparências ilusórias
continue a grassar na produção para a pseudo-história e que, de outro, a história
nova deva reexaminar a questão dos grandes homens e dar um novo estatuto
científico à biografia. (LE GOFF, 2001, p.42).
Ao aproximar-se dessa vertente interna ao movimento historiográfico, os membros do GHOEM
parecem buscar um posicionamento na História coerente com aquele defendido em sua área de pesquisa
(Educação Matemática). A busca por decentrar a História da Educação Matemática no país coloca em baila
vários atores que vivenciaram distintos regimentos, currículos, etc., permitindo a formação de novos
cenários e trajetórias e a re-leitura daquilo e daqueles que estiveram em foco durante muitos anos nas
pesquisas em Educação Matemática.
Miguel e Miorim (2002), preocupados com questões dessa natureza, afirmam que
a produção de histórias no campo da educação matemática está, é claro,
condicionada às diferentes formas de se conceber a história, cada uma delas
respondendo diferentemente a questões específicas desse campo de investigação.
(p.189).
Neste estudo, a exploração da oralidade no levantamento de novas perspectivas traz à tona uma
história enquanto versão que retira de cena qualquer possibilidade de estudo imparcial acerca de um objeto
“tal como ele é”, valorizando o sujeito, enquanto ator social, e suas trajetórias, por espaços e tempos
distintos, como elementos essenciais à constituição da História e, de forma mais específica, à constituição
do que temos chamado de Educação Matemática e de História da Educação Matemática.
Referência Bibliográfica BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2001.
GARNICA, A. V. M. História Oral e Educação Matemática: do inventário à regulação. Zetetiké, Campinas:
FE/CEMPEM, v.11, n.19, p. 9-55, jan/jul. 2003.
GARNICA, A.V.M. A História Oral como recurso para a pesquisa em Educação Matemática: um estudo do
caso brasileiro. Não publicado. 2005.
LE GOFF, J. A história nova. In: LE GOFF, J. (Org). BRANDÃO, E. (Tradução). A História Nova. São
Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 25-67.
MIGUEL, A.; MIORIM, M. A. História da Matemática: uma prática social de investigação em construção.
Educação em Revista, Belo Horizonte, n.36, p.177-203, 2002.
23
QUEIROZ, M. I. P. de. História, História Oral e arquivos na visão de uma socióloga. In: Ferreira, M. de M.
(Org) História Oral. Rio de Janeiro: Diadorim Editora Ltda, 1994. p.101-116.
REIS, J.C. A HISTÓRIA ENTRE A FILOSOFIA E A CIÊNCIA. 3 ED. BELO HORIZONTE: AUTÊNTICA,
2004.
24
HISTÓRIA ORAL E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA: METODOLOGIA EM TRAJETÓRIA
Emerson Rolkouski
Universidade Federal do Paraná
Resumo: Este trabalho tem como objetivo delinear a trajetória de um grupo de pesquisa que se dedica à
interface entre história oral e educação matemática, o ghoem – grupo de pesquisa em educação
matemática e história oral. a partir da apresentação de trabalhos acadêmicos em nível de iniciação
científica, mestrado e doutorado e artigos publicados em livros e periódicos de educação matemática, são
tecidas considerações sobre o que o grupo denomina de metodologia em trajetória.
História Oral e Educação Matemática: metodologia em trajetória Este trabalho tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre os trabalhos de um
grupo de pesquisa que se dedica à interface entre História Oral e Educação Matemática – o GHOEM, Grupo
de Pesquisa em Educação Matemática e História Oral. Para tanto irei percorrer uma cronologia das
publicações de seus integrantes para que o leitor possa perceber a construção das perspectivas teóricas
em trajetória.
Iniciarei a cronologia pela dissertação de mestrado de Gilda Lúcia Delgado de Souza6, defendida
em 1998.
A dissertação de mestrado intitulada Três décadas de Educação Matemática: um estudo de caso
da Baixada Santista no Período de 1953 – 1980, segundo Garnica (2003), é o primeiro trabalho de pesquisa
em Educação Matemática que explicitamente utiliza a História Oral como metodologia de pesquisa de um
modo mais rigoroso se comparado com o trabalho de Oliveira (1997), publicado anteriormente. O período
estudado respeita a trajetória pessoal da autora e impõe-se como significativa, num contexto mais amplo, à
luz das legislações que, à época, entravam em vigor. A autora, então, opta por estudar um grupo de
professores da Baixada Santista que se coloca em evidência nesse contexto geo-político. Assim, a proposta
da pesquisa é “realizar um levantamento histórico, ‘disparado’ a partir das perspectivas de quatro
depoentes, da Educação Matemática no Estado de São Paulo nas três décadas citadas” (p.14).
A autora explicita que se utiliza de entrevistas com quatro professores, que foram textualizadas
e, posteriormente, conferidas e legitimadas pelos depoentes, conforme indicam os parâmetros
metodológicos nos trabalhos que optam pela História Oral, destacando como a vida cotidiana articula-se
com a memória e a história.
Para fundamentar esta articulação, Souza percorre um referencial teórico que a permite
compreender a história do tempo presente como história. Alguns dos autores consultados, Philippe Ariès,
Jacques Le Goff e Carlo Ginzburg, são historiadores ligados ao grupo da Nova História, presentes nas
discussões sobre História Oral. A utilização deste referencial e as intenções da autora permitem legitimar
seu trabalho como um trabalho de História da Educação Matemática.
De acordo com Souza (1998) uma primeira tentativa de análise foi feita sobre as perguntas de
6 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
25
corte, presente em todas as entrevistas. Posteriormente a autora foca suas análises na formação dos
professores que entrevistou, considerando os materiais que eles desenvolviam e aplicavam em suas salas
de aulas, o envolvimento desses professores em projetos educacionais junto à Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo e a estrutura da legislação vigente à época estudada.
Tais análises são desenvolvidas no último capítulo, intitulado Educando o Olhar, à luz dos
estudos do historiador Phillipe Ariès. A partir dos depoimentos e de documentos oficiais, Souza explicita sua
leitura esmiuçando, especificamente, quatro temas: a formação acadêmica, a docência, projetos e ações e
a legislação vigente, destacando o que mudou e o que permaneceu nas práticas sociais ligadas à
Educação, em particular, à Educação Matemática.
Envolvido com a orientação da dissertação acima apresentada, Garnica publica, em 1998, o
artigo O escrito e o oral: uma discussão inicial sobre os métodos da História. Primeiro texto do autor sobre o
tema, o artigo aborda os procedimentos historiográficos clássicos e alternativos, apresentando a oralidade
como fonte histórica legítima e genuína.
Esta discussão sobre a legitimidade e o alcance das fontes orais permeia grande parte dos
trabalhos dos integrantes do GHOEM. Em suas justificativas estes autores remetem-se aos historiadores da
escola dos Annales.
Em 20017, Antônio Carlos Carrera de Souza e Gilda Lúcia Delgado de Souza alinhavam
algumas compreensões no artigo Cotidiano e Memória. Neste texto destaca-se como o cotidiano articula-se
com a memória e com as práticas educativas da Educação Matemática.
No ano de 2000 é finalizada a tese de doutorado de Carlos Roberto Vianna, intitulada Vidas e
Circunstâncias na Educação Matemática8, cujo enfoque volta-se para professores que, atuando dentro de
departamentos de Matemática, optam por exercer atividades predominantemente no campo da Educação
Matemática, tematizando as resistências que estes professores sofrem por parte de seus colegas, uma
resistência que acarreta dificuldades para o desempenho profissional, embora não decorram da natureza do
objeto acadêmico de estudo, mas sim, da transformação do preconceito em ações discriminatórias.
Com vistas a obter elementos de apoio para a defesa dessa tese o autor explicita sua opção em
utilizar a metodologia da História Oral em duas vertentes: história de vida e história temática.
São realizadas duas entrevistas com cada um dos quinze professores-depoentes, a maior parte
deles pesquisadores em Educação Matemática vinculados a departamentos de Matemática. No primeiro
encontro o entrevistador os deixa falar livremente sobre suas vidas, retomando, na segunda entrevista,
pontos que julgou necessários, ao fim do que algumas perguntas diretas são formuladas: “Qual a sua
utopia?” “O que seria uma definição de Educação Matemática?” “Enfrentou resistências?”.
Embora em seu resumo Vianna tenha deixado claro sua opção em utilizar-se da metodologia da
História Oral, na apresentação da pesquisa aos depoentes, há menção em ser, a História Oral, uma
disciplina. No decorrer do trabalho aqui apresentado o leitor poderá perceber que a classificação da História
Oral como uma disciplina, uma metodologia ou procedimento de pesquisa é um ponto de divergência nos
trabalhos dos membros do GHOEM9.
Na tese de Vianna encontram-se diferentes estágios de tratamento dos depoimentos: há
7 Este texto, embora tenha sido publicado posteriormente ao texto de Vianna (2000), alinhava compreensões anteriores, motivo pelo
qual o inseri neste local. 8 Apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob orientação do professor Doutor Antônio Miguel. 9 Estas divergências são reflexos claros das discussões que ainda hoje ocupam os historiadores orais. Em Ferreira e Amado (1996) o
leitor encontrará um debate aprofundado sobre esta discussão. Ainda que os membros do GHOEM não sejam historiadores, é interessante notar que mesmo em outras interfaces tais questões adquirem contornos similares.
26
depoimentos em que as perguntas do entrevistador são mantidas, há outros em que as perguntas são
incorporadas no texto e ainda outros exercícios. Essa opção do autor está em sincronia com suas
pretensões e fundamentos cuja concretização resulta num texto criativo também do ponto de vista do estilo
de suas composições.
No que diz respeito à análise dos dados, o autor deixa explícita sua opção em não fazê-la, no
entanto recorta as respostas ao que poderíamos chamar de suas perguntas de corte: “Qual a sua utopia?”
“O que seria uma definição de Educação Matemática?” “Enfrentou resistências?”, apresentando-as
separadas de seu contexto para permitir ao leitor relacionar cada resposta ao seu autor.
Já no ano de 2003, Garnica publica o artigo História Oral e Educação Matemática: de um
inventário a uma regulação. Neste trabalho, tendo como base dois trabalhos anteriores, datados de 1998 e
2002, o autor elabora uma “regulação” metodológica.
Dentre os pontos que considerei relevantes no artigo está a análise do trabalho de Oliveira
(1997). Garnica observa que se trata de “um ‘exemplo exemplar’ do momento de transição, quando as
perspectivas da História Oral começam a ser utilizadas em Educação Matemática ainda sob a égide das
pesquisas qualitativas e não como uma tendência metodológica específica” (2002, p. 20), caracterizando,
ainda, as pesquisas de Vianna (2000) e Guérios (2002) como investidas mais plenas em História Oral e
cujos focos estão em traçar esboços de paisagem e não na reconstituição histórica; o que também ocorre
no trabalho de Souza (1998), cuja intenção é realçar “o levantamento histórico como pano-de-fundo para
compreender a Educação Matemática espaço-temporalmente contextualizada” (p. 20).
Desta maneira, vem à tona um debate que tem acompanhado o grupo sobre as vantagens e as
desvantagens da História Oral utilizada como metodologia e sua relação com as demais formas de conduzir
pesquisas qualitativas. Além disso, há uma preocupação em marcar a diferenciação entre a História da
Matemática, tomada em uma acepção clássica, e a História da Educação Matemática. Naquele momento,
Garnica afirma:
[...] parece-nos, à primeira vista, que a História Oral utilizada como metodologia para o esboço
de cenários, para a compreensão mais aprofundada do contexto, executa, sem vantagens
nítidas, o mesmo papel que as pesquisas chamadas qualitativas, em suas várias vertentes,
sempre desempenhou nas pesquisas em Educação Matemática. Esse não é, obviamente, o
caso da História Oral como método para levantamentos históricos estrito senso. Não que as
pesquisas qualitativas até então em vigência não pudessem realizá-lo mas, historicamente,
essas abordagens qualitativas em Educação Matemática nunca foram plena e explicitamente
utilizadas com esse fim e, sem dúvida, um movimento tão criativo e propriamente enraizado nos
estudos sociais como é a História Oral, suprirá lacunas sensíveis e servirá, ainda, para
estabelecer um lugar (e as concepções fundantes) para o assentamento de uma História da
Educação Matemática que se fará desvinculada dos parâmetros vistos como rigorosos e válidos
(fundamentalmente a arqueologia documental) que vêm com os estudos em História da
Matemática, tomada em sua acepção ‘clássica’. (2002, p.21)
Garnica continua seu texto tratando de questões especificamente metodológicas como a seleção
de depoentes, os parâmetros para condução de entrevistas, os tratamentos possíveis aos depoimentos e,
finalmente, a análise, tida como a etapa de mais difícil apreensão.
Com este artigo parecem consolidados, na esteira dos trabalhos aqui já apresentados, termos e
parâmetros que se tornam freqüentes nas pesquisas dos integrantes do GHOEM: os depoimentos em
27
História Oral permitem perceber múltiplas perspectivas, (re) traçar cenários, dialogar com dados, perceber
tendências no que se altera e no que permanece.
Ainda em 2003, conclui-se o projeto de iniciação científica de Maria Ednéia Martins, intitulado
Resgate histórico da formação e atuação de professores da escola rural: um estudo no oeste paulista10. O
trabalho “buscou investigar como ocorria a formação dos professores e alunos de núcleos de ensino rural
na região oeste do estado de São Paulo, visando a constituir, especificamente, uma das faces da Educação
Matemática no sistema educacional brasileiro” (MARTINS, 2003, s/p).
A autora coletou depoimentos de onze professores, cinco alunos e um inspetor de ensino
utilizando recursos da metodologia da História Oral, numa abordagem temática.
Desses depoimentos foram detectadas dez tendências: zona rural como “terra de passagem”;
estrutura física e administrativa das escolas; tipos de escolas rurais; dificuldades; caracterização do
professor e do aluno; participação da família e da comunidade; currículo, inspeção e avaliação; sistema de
ensino; ensino de matemática e contexto da zona rural.
Ivete Maria Baraldi, defende, em 2003, a sua tese de doutorado intitulada Retraços da Educação
Matemática na Região de Bauru (SP): uma história em construção11. Nas palavras da autora:
[...] neste trabalho, pretendemos vislumbrar possíveis respostas para nossas indagações e
esboçar um perfil de nossa região, através dos ‘retraços’ da vida de alguns professores e
professoras de Matemática, base para nossa questão principal: ‘Como evidenciou-se,
delineou-se, caracterizou-se a formação do professor de Matemática, nas décadas de 1960 e 1970, em seus variados aspectos, na região de Bauru?’.
Baraldi entrevista oito professores da região de Bauru que atuavam como professores de
Matemática à época em foco, estruturando seu trabalho em três volumes não ordenados, mas inter-
relacionados através de links, como um hipertexto. No volume A, a autora apresenta o depoimento temático
dos professores da região de Bauru; no volume α são apresentados quatro “pontos de fuga”, tendências
que se mostraram nos depoimentos; finalmente, no volume Aleph, a autora apresenta suas considerações
sobre a História Oral como metodologia de pesquisa em Educação Matemática.
Também em 2003, Marisa Rezende Bernardes, defende sua dissertação de mestrado intitulada
As várias vozes e seus regimes de verdade: um estudo sobre profissionalização (docente?)12.
Neste trabalho Bernardes procura, em constante diálogo com as idéias de Michel Foucault,
entender as regras e os mecanismos de poder na produção de regimes de verdade. Para tanto, entrevista
quatro professores “cujas experiências são reconhecidas como diferenciadas e/ou são professores
comprometidos com embates relativos à carreira docente em suas várias dimensões” ( 2003, p. 8).
Exposta às constantes discussões do GHOEM com respeito à “análise”, Bernardes explicita seu
conflito quando se vê na eminência de empreendê-la. Desta maneira, opta por realizar uma análise
genérica, tomando sua própria vida como base.
Em 2004, Silvia Regina Vieira da Silva, defende sua tese de doutorado intitulada Identidade
Cultural do Professor de Matemática a partir de Depoimentos (1950 – 2000)13.
10 Sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica, apresentado no XV Congresso de Iniciação Científica, da
Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista, campus de Bauru. 11 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica. 12 Apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista de Bauru, sob orientação do professor doutor Antonio
Vicente Marafioti Garnica. 13 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Carlos Carrera de Souza.
28
Neste trabalho são entrevistados dez professores da rede de ensino público de Rio Claro, que
exerceram suas atividades de docência no período de 1950 a 2000, sendo dois professores de cada
década. Afirma utilizar-se da História Oral como “procedimento de pesquisa”, embora não deixe claro o que
entende por isto. O objetivo de sua investigação é promover uma discussão a respeito da identidade cultural
do professor de Matemática – aquela que surge da “pertença” à cultura escolar.
A partir da textualização das entrevistas, são detectadas quatro tendências: Sociedade, Prática x
Teoria, Fragmentação do sujeito e Identidade Magistério14. Tais tendências são plasmadas nos trabalhos de
Ariès (1990) de maneira análoga ao desenvolvido por Souza (1998), e diferentemente daquele movimento
de detectar e explicitar tendências como em Baraldi e Martins (2003). Silva apresenta as quatro tendências
que seu estudo permitiu detectar, procurando se são de conservação ou de mudança; ou seja, se “o
discurso” conserva-se ou não nos depoimentos coletados.
Também a dissertação de mestrado de Michela Tuchapesk, defendida em 2004, intitulada O
Movimento das Tendências na Relação Escola-Família-Matemática15, vale-se de tendências, segundo
mesmo referencial para a análise de seus dados.
Neste trabalho, a autora procura compreender a interação entre escola, família e Matemática.
Para tanto, utiliza-se da História Oral como “método de investigação” (TUCHAPESK, 2004).
Tuchapesk utiliza-se do que denomina de “autobiografias temáticas” para selecionar seus
depoentes. A leitura atenta destas “autobiografias temáticas”, obtidas de alunos de uma escola pública de
Rio Claro, levou a autora a selecionar seis alunos para serem seus depoentes.
Apoiada nessas seis autobiografias temáticas foram elaboradas entrevistas semi-estruturadas
que serviram de guia para a coleta do depoimento desses alunos, de suas famílias, de professores e
coordenadores. No total foram entrevistados seis alunos, seis pais e mães desses alunos, três professores
e dois coordenadores.
Apoiando-se em autores que tematizam problemas escolares e comparando-os com os
depoimentos que obteve, Tuchapesk aponta como tendências de conservação: a utilização do uniforme, a
valorização do estudo, a interação entre escola e família, as práticas em sala de aula e a valorização da
escola particular em detrimento da escola pública. Classifica a relação professor-aluno como uma tendência
de mudança e, como uma tendência em movimento, a percepção das causas do fracasso na aprendizagem
em Matemática.
Em 2004 é defendido o trabalho de doutorado de Rosinéte Gaertner intitulado A Matemática
Escolar em Blumenau (SC) no Período de 1889 a 1968: da Neue Deutsche Schule à Fundação
Universidade Regional de Blumenau16, cujo objetivo é resgatar aspectos históricos da educação e da
Matemática escolar da região de Blumenau, de colonização alemã, no período de 1889 a 1968. Para isto a
autora utilizou-se da História Oral Temática como metodologia de investigação, acompanhada de pesquisa
a registros escritos.
Dez depoimentos de professores e ex-alunos que participaram do sistema escolar estudado são
os disparadores de considerações sobre a chegada dos alemães em Blumenau, a estrutura curricular das
escolas alemãs daquela região, o sistema escolar alemão, a Matemática escolar nas escolas alemãs, o fim
14 Os conceitos de “fragmentação do sujeito” e “identidade” são fundamentados em Hall (2002). 15 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Carlos Carrera de Souza. 16 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
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das escolas alemãs e, finalmente, a criação da Faculdade na cidade de Blumenau. São também feitas
considerações metodológicas sobre História Oral e, de modo específico, muito pertinentemente, abordam-
se os temas “memória” e “ressentimentos”.
É importante ressaltar que Gaertner apresenta seus textos (“capítulos”) como retalhos de uma
colcha, ressaltando uma preocupação de alguns pesquisadores do GHOEM: a utilização de metáforas para
a estruturação dos trabalhos.
Apoiando-se em documentos escritos e nos depoimentos coletados, a autora faz uma leitura
com o objetivo de conhecer a estrutura escolar e o funcionamento das escolas “alemãs” criadas a partir de
1850 e extintas em 1938, com as leis de nacionalização.
Também em 2004, Ivani Pereira Galetti defende a dissertação de mestrado Educação
Matemática e Nova Alta Paulista: orientação para tecer paisagens17 .
O caráter inédito deste trabalho fica por conta de se apresentar como uma sessão de orientação
que ocorreu entre a autora e seu orientador meses antes da defesa. Desta maneira o leitor encontrará duas
vozes (a da autora e a do seu orientador) em meio às vozes de depoentes especialmente ligados a seu
tema de pesquisa.
Perguntada durante a sessão de orientação ali registrada sobre o que é seu trabalho Galetti
responde:
Meu trabalho aborda a formação dos professores de Matemática que atuaram na Região da
Nova Alta Paulista no período de 1950 a 1970, no que diz respeito a sua formação e suas
práticas cotidianas ao ensinar Matemática. Para compreender essa paisagem uso a História Oral
como metodologia de Pesquisa. Penso, portanto, que é um esforço que se inscreve na tendência
‘História da Educação Matemática brasileira’.(2004, p. 8)
Galetti entrevista cinco professores de Matemática da Nova Alta Paulista, região extrema do
Estado de São Paulo, que atuaram em diferentes cidades no período de 1950 a 1970.
O desfecho do trabalho traz uma reconceituação da noção de colonização. Pois conforme afirma
a autora seus depoentes
ao mesmo tempo em que se constituem como professores de Matemática da Nova Alta Paulista
são, também, ‘atores’ de um processo histórico mais amplo – o da colonização da região – sua
narrativa foca outros aspectos de sua vida. Isto faz com que seus depoimentos não sejam meros
relatos técnicos [...] Assim, o sujeito narrando suas experiências como professor de Matemática
da Nova Alta Paulista narra-se em processo. (2004, p. 54)
Finalmente em 2005, é defendido a última, até o final da escrita deste meu trabalho, das
pesquisas da interface História Oral e Educação Matemática. Trata-se da dissertação de mestrado de
Helenice Fernandes Seara, intitulada Núcleo de Estudo e Difusão do Ensino da Matemática – NEDEM –
“Não é Difícil Ensinar Matemática” 18.
Este trabalho tem como objetivo traçar o perfil de um grupo de professores que, na década de
1960, se reunia na cidade de Curitiba – PR, nas dependências do Colégio Estadual do Paraná para estudar
o Ensino Moderno da Matemática, ou seja, um ensino de Matemática pautado no que ficou conhecido como
Movimento da Matemática Moderna.
17 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista de Rio Claro –
PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica. 18 Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Federal do Paraná, sob orientação do professor doutor
Carlos Roberto Vianna.
30
O movimento da pesquisa é disparado pelos depoimentos de quatro membros do grupo, que
acabam por levantar as atividades realizadas, as publicações e o nome dos demais integrantes do NEDEM.
Esses depoimentos são
[...] transcritos, textualizados e, finalmente, transcriados, conforme literatura pertinente. Neles,
selecionou-se assuntos que são transformados no depoimento de um único personagem, que
assume a ação dos depoentes ou as cita, num procedimento narrativo que visa privilegiar essa
fase do processo narrativo comum à História Oral - a transcriação. (p. viii)
Desta maneira a pesquisa inicia-se efetivamente com este único personagem criado pela autora,
que representa as vozes e ações do grupo estudado.
Embora o termo transcriação já tenha aparecido em Vianna (2000) e em diversas discussões e
publicações de integrantes do GHOEM é a primeira vez que a transcriação de depoimentos assume este
papel central na pesquisa. O que, de acordo com a autora “não consiste ‘apenas’ em uma estratégia, mas
uma forma de conceber o próprio conhecimento e, dentro desse, a História Oral” (p. 76).
A autora finaliza seu trabalho apresentando seu envolvimento com o tema pesquisado, suas
impressões, buscas, achados, frustrações e sucessos alcançados por meio de um texto “Esboçando o
Passado” e o que denominou de “Um blog off-line”.
Embora datados de 2004, e, portanto, publicados em data anterior à do último trabalho citado, os
artigos de Garnica, (Re)traçando trajetórias, (re)coletando influências e perspectivas: uma proposta em
História Oral e Educação Matemática (2004a) e História Oral e Educação Matemática (2004b), são boas
opções para finalizar esta incursão pela produção do GHOEM.
Ressalto que pouco sentido terá o caminho que percorri até o momento, qual seja, o de
apresentar os trabalhos do GHOEM, se o leitor não atentar que só foi possível empreender estes arremates
“finais”, ainda que provisórios, a partir da discussão dos trabalhos até então produzidos em Educação
Matemática e História Oral. Esta ressalva encontra eco em Garnica (2004a).
O leitor deve ter observado que todas as pesquisas citadas até o momento utilizam-se de
depoimentos orais. Além disso, para uma parte significativa dessa produção, a preocupação maior era a de
constituir uma história a partir dos depoimentos coletados (por vezes em sincronia com documentos escritos
disponíveis). De acordo com a concepção de metodologia defendida por Garnica (2004b), a esses trabalhos
subjaz uma noção de História:
Assim, segundo essas minhas concepções sobre Metodologia e sobre Pesquisa Qualitativa,
creio que posso afirmar ser a História Oral uma metodologia qualitativa de pesquisa significativa
para a Educação Matemática. Optar pela História Oral, portanto, é optar por uma concepção de
História e reconhecer os pressupostos que a tornaram possível. É inscrever-se num paradigma
específico, é perceber suas limitações e suas vantagens e, a partir disso, (re)configurar os
modos de agir de maneira a vencer as resistências e ampliar as vantagens. Portanto, não se
trata simplesmente de optar pela coleta de depoimentos e, muito menos, de colocar como rivais
a escrita e a oralidade. Trata-se de entender a História Oral na perspectiva de, face à
impossibilidade de constituir ‘A’ história, (re)constituir algumas de suas várias versões, aos olhos
de atores sociais que vivenciaram certos contextos e situações, considerando como elementos
essenciais, nesse processo, a memória desses atores – via de regra negligenciados -, sem
desprestigiar, no entanto, os dados ‘oficiais’, sem negar a importância de fontes primárias, de
arquivos, de monumentos, de tantos registros possíveis. Não havendo uma história ‘verdadeira’,
31
trata-se de procurar pela verdade das histórias, (re)constituindo-as como versões, analisando
como se impõem os regimes de verdade que cada uma dessas versões cria e faz valer. (2004b,
p. 87)
Segundo creio, nesta citação, Garnica reflete as preocupações daqueles que, atuando no grupo,
se dedicaram a (re)constituir versões históricas de temas vinculados à Educação Matemática, bem como
representa, pelos termos utilizados, como um grupo constitui uma metodologia em trajetória.
Referências Bibliográficas ARIÈS, P. Uma Nova Educação do Olhar. Trad. Carlos da Veiga Ferreira. In: História e Nova História. 3ª
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_______. Uma Nova Educação do Olhar. Trad. Carlos da Veiga Ferreira. In: ARIÈS, P.; DUBY, G.; LE
GOFF, J. Lisboa: Editorial Teorema, 1990. p. 24-35.
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33
A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA JESUÍTICA NO CONTEXTO INDÍGENA: UMA PERSPECTIVA GENEALÓGICA E ARQUEOLÓGICA
Wanderleya Nara Gonçalves Costa
Professora da Universidade Federal de Mato Grosso - ICLMA/UFMT
Doutoranda pela Universidade de São Paulo- FEUSP
Resumo: No período colonial os jesuítas debateram acerca da possibilidade do índio ser ou não dotado de
alma. A idéia mais aceita era a de que, inicialmente, eles não a possuíam, ela só se faria presente pós o
seu batismo e a substituição de seus hábitos por outros civilizados. Os jesuítas acreditavam, então, que era
seu dever ajudar o índio a obter uma alma, faze-lo evoluir de uma condição próxima à de um animal, à
condição humana. Procuravam faze-lo a partir de seus próprios sacrifícios, acreditam estar sendo piedosos,
não conseguiam perceber a violência psicológica que praticavam. Hoje, momento em que se problematiza a
especificidade da educação matemática para as populações indígenas, é essencial imergir num contexto
histórico capaz de nos revelar uma imagem desestabilizadora do conflito entre dois diferentes modos de
viver, educar e matematizar. Uso, então, as abordagens que Foucault (1995, p.7) chamou de genealógica e
arqueológica, que buscam narrar uma história crítica adotando o ponto de vista daqueles que sofrem os
efeitos de poderes e saberes específicos e articula os discursos de outras épocas com os discursos atuais,
levando-nos a observar diferentes subjetividades e discursos de verdade, e a refletir acerca do que nós
pensamos, dizemos e fazemos.
Aos pesquisadores não basta interpretar os significados dos fatos sem dar a devida importância às relações
de poder existentes nas relações humanas, análises desse tipo reduzem a realidade de forma
apaziguadora, deixando de expor o fato de que a realidade por nós vivenciada - a realidade que nos domina
e nos determina - é belicosa, diz Foucault (1995). Assim, em suas pesquisas, Foucault procurava olhar o
passado de modo a fazer uma reconstrução arqueológica e genealógica. A abordagem que ele chamou de
genealógica compreende "uma forma de história que dê conta da constituição dos saberes, dos discursos,
dos domínios de objeto, etc." (FOUCAULT, 1995, p.7). Nessa perspectiva existe a busca por se narrar uma
história crítica, uma visão perspectiva, interessada e, definitivamente, não-neutra mas que privilegia um
olhar que adota o ponto de vista daqueles que sofrem os efeitos de poderes e saberes específicos
mostrando as questões de poder que tornam alguns discursos verdadeiros e outros não. Por sua vez, a
reconstrução arqueológica no sentido dado por esse pesquisador articula os saberes e discursos de outras
épocas com os discursos atuais, levando-nos a refletir acerca de nossas práticas e concepções. Nesse
trabalho, ao estudar a forma como se deu a educação indígena por parte dos jesuítas, procurei adotar a
visão de Foucault focalizando de modo especial alguns fatos que envolvem conceitos matemáticos. A
intenção é a de que a partir da atuação pedagógica dos jesuítas junto aos indígenas nós, professores de
matemática, possamos refletir acerca da nossa própria atuação enquanto educadores de algumas 'minorias'
da população brasileira, notadamente os povos indígenas.
34
O embate entre duas diferentes formas de educar A história do Brasil, tal como grande parte dos brasileiros a aprenderam na escola, inicia-se com a
chegada de navegadores portugueses após vencer calmarias letais. Tais navegadores haviam descoberto –
não invadido- uma terra sem dono, com promessas de muitas riquezas. Os índios, habitantes “dessa terra
sem nome, sem dono e sem passado estavam ali como peças do cenário, desprovidos de qualquer direito,
até mesmo o de poderem continuar sendo o que sempre haviam sido” (GAMBINI, 2000: 21). Entre eles,
viam-se mulheres que logo se uniriam aos seus senhores, dando início à concepção do povo brasileiro.
Algum tempo depois, os negros(as) africanos(as) também poderiam contribuir para com a formação desse
povo miscigenado.
Essa história, observa Gambini, é, na verdade, um conto mítico. Um mito de origem, na qual a
substituição do termo ‘invasão’ por ‘descobrimento’ dá uma aura mágica e poética. Não fica realmente claro
que a chegada dos invasores foi marcada pela derrubada do pau-brasil, pelo ataque à natureza, pela posse
violenta da mulher índia e que tal chegada implicou “o começo do fim da alma ancestral da terra” (GAMBINI:
2000, p.23).
Nossa alma ancestral era muito antiga. Pesquisas arqueológicas têm revelado que a presença
humana nas Américas data de muitos milhares de anos. Isso nos leva a constatar que os índios criaram
regras de convívio, produção e distribuição de bens, saberes para curar doenças, explicações de seu
surgimento por meio de histórias e imagens, entre outros. Criaram, enfim, centenas de culturas,
diversificadas em termos da organização social, da língua, da arte, da produção material, da mitologia...
Entretanto, essas culturas não foram valorizadas pelos invasores e a miscigenação entre índios e
portugueses não se deu no nível psicológico, mas apenas na dimensão biológica e cultural, no que esta tem
de mais periférico ( GAMBINI: 2000, p.139).
Assim, o povo brasileiro se funda negando e desprezando suas origens, silenciando os saberes
indígenas, recusando o estilo tradicional de educação desses povos, e logo adotando um outro, aquele
oferecido pelos padres da Companhia de Jesus, os jesuítas, seguidores de Inácio de Loiola. A doutrina de
Loiola dava ênfase à obediência, reforçando o princípio da autoridade e da hierarquia e introduzindo um
voto especial de obediência ao papa, numa disciplina semelhante à militar. Mais tarde, As constituciones de
la compania determinaram, no mesmo espírito, a organização das escolas da Companhia de Jesus. Em sua
atuação educacional no Brasil os jesuítas criaram algumas escolas voltadas prioritariamente para pequenos
índios que depois lhes serviriam como ‘mensageiros’ capazes de converter os índios adultos à doutrina
cristã.
Nas proximidades dos aldeiamentos indígenas os jesuítas agrupavam meninos
“apartados dos pais, aos quais se aplicava a pedagogia do esquecimento da origem e da emulação
da identidade do mestre. (...) A pedagogia missionária adotada dizia à criança índia: ‘Esqueça quem
você é, quem são seus pais e de onde você veio. Isso tudo não vale nada. Abandone sua
identidade, desvencilhe-se de sua alma, olhe para mim, espelhe-se em mim, queira e fique igual a
mim.’” (GAMBINI, 2000: 174).
Esse tipo de educação foi bastante eficaz, a estratégia utilizada, de separar as crianças dos pais era
importante visto que “a família vem a ser a primeira instituição a imprimir usos e posturas aspirando
consolidar seus valores e suas atitudes em relação a questões sociais, econômicas e morais
‘vigentes’”(BELLO, 2000:9). É junto à família que, geralmente, a criança passa a ter consciência das várias
35
funções que deverá assumir (FOUCAULT, 1996:14). Compreende-se, pois, que as escolas jesuítas
procuravam ‘matar o saber e o modo de ser indígena’ a partir dos membros mais novos da sua sociedade e
que a escola freqüentada pelos pequenos índios era o cenário para um embate psicológico.
Padre Anchieta, o pedagogo, numa de suas cartas, relatou que os meninos "vêm com gosto à Escola,
sofrem os açoites e têm emulação entre si".(citado em GAMBINI, 2000, P. 154). Entretanto, a educação
tradicional indígena se dá a partir de laços familiares, repudia castigos físicos e a obediência não é uma
imposição, mas uma conquista. Entretanto, se ocorriam embates com relação a valores e posturas, o
mesmo ocorria com relação a conceitos. Entre os acontecimentos do século XVI narrados por Gambini e
protagonizados pelos jesuítas em ambiente educacional e que envolvem conceitos matemáticos, escolhi
dois para discutir nesse trabalho.
O embate entre duas diferentes maneiras de matematizar Os jesuítas que estavam no Brasil, rotineiramente, mandavam cartas para os seus superiores. Foi
de uma dessas cartas, escrita pelo padre Anchieta, que Gambini extraiu o seguinte fragmento: “Um dia,
repreendendo-o eu por estar a fazer um cesto no domingo, trouxe-o no dia seguinte à escola e queimou-o
diante de todos por o ter começado no Domingo” (Gambini, 2000, p. 148).
Esse episódio diz respeito à substituição de uma concepção circular do tempo, mais próxima da
natureza, por uma outra concepção, linear e arbitrária. A concepção de tempo do indígena é marcada pelos
ciclos da natureza, tempo de pescar, de caçar, de produzir enfeites ou de simplesmente não fazer nada. Por
outro lado, "O calendário cristão foi (...) uma tentativa de converter o tempo pagão, desde a remota
Antigüidade regido pelos ciclos naturais. Domingo, o dia do Sol, tornou-se no cristianismo o dia do Senhor,
Dominicus dies." (GAMBINI, 2000:148).
Na catequese os jesuítas condicionavam os índios a contarem os dias da semana e a modificarem a
forma como utilizavam o tempo para que em todas as sextas-feiras participassem de uma procissão e no
Domingo se comportassem conforme o modelo católico. Assim, o episódio acima narrado nos mostra como
a concepção de tempo dos invasores foi tomada como verdadeira e aceitável, enquanto o saber ancestral
indígena deveria ser considerado, a partir de então, repudiável. O fato ilustra a colocação de Foucault
(1996:10) de que “a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nós queremos
apoderar”. De fato, Anchieta não queimou apenas um cesto, mas também um saber que foi historicamente
construído pelos indígenas por todo o período anterior à invasão, saber este que a partir de então teria que
ser esquecido, substituído. O indígena, a partir da educação jesuítica, não poderia mais viver de acordo
com os ciclos da natureza e com suas mitologias, foram queimados também um modo de pensar e de agir,
impôs-se a troca de uma concepção circular de tempo por outra linear, entre outras coisas. Não ouve
qualquer discussão ou tentativa de negociação entre diferentes concepções ou discursos de verdade.
Para Foucault (1996:14), no interior de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso deve-se a um
sistema de exclusão histórico e institucionalmente constrangedor. Por meio dessa fala, Foucault externa sua
crença que não existe um primado da verdade, que as verdades são múltiplas, mas que existe um discurso
de produção de verdade proferido por grupos considerados legítimos para fazer afirmações verdadeiras.
Esses discursos de verdade, muitas vezes, foram a origem de "um processo de marginalização, supressão
e subversão de epistemologias, tradições culturais e opções sociais e políticas alternativas em relação às
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outras que foram nele incluídas” (SANTOS, 2000, p.18). Foram responsáveis, enfim, pela desvalorização
ou morte de saberes ou epistemocídios, como diz Santos.
O sistema de exclusão de que fala Foucault fica mais claro no exemplo relativo à moradias indígenas,
tanto na sua versão ocorrida no período colonial quanto na atualidade. Segundo Gambini (2000:148/149),
numa outra carta jesuítica, “Blázquez não esconde seu regozijo ao relatar que os índios de certa localidade
foram convencidos a construir casas nucleares no estilo colonial, de taipa, e vender seus adornos de penas,
prova incontestável de que estavam a caminho da civilização.”. Entretanto, salienta, as casas em círculo, o
“espaço circular é onde se expressa a identidade do grupo, é uma manifestação do arquétipo do self (...). As
habitações indígenas são obras-primas de adaptação ambiental e criatividade, refletindo sem mediações a
cultura, a organização social e a psicologia do morador. Grupos familiares extensos coabitam, sem paredes
materiais ou psicológicas.” (GAMBINI, 2000, 149).
Hoje, afirma Gambini, é comum observarmos nas reservas indígenas casinhas enfileiradas de maneira
artificial, “obrigando os moradores a um insensato ir-e-vir ao longo de uma impositiva linha reta que nada
tem a ver com sociabilidade, uma rua descabida no meio do mato” (idem, ibidem). Geralmente, temos a
substituição de casas de base circular por outras de base retangulares. Para falar sobre esta troca vale à
pena lembrar a colação de Jung de que:
Mesmo o conceito filosófico ou matemático mais rigorosamente definido, que sabemos só
conter aquilo que nele colocamos, ainda é mais do que pressupomos. É um acontecimento
psíquico e, como tal, parcialmente desconhecido. Os próprios algarismos usados para
contar são mais do que julgamos ser: são, ao mesmo tempo, elementos mitológicos (para
os adeptos de Pitágoras chegavam a ser divinos). Mas certamente não tomamos
conhecimento disto quando empregamos os números com objetivos práticos.
(JUNG, 1964, p.40)
Com relação ao formato da base das casas indígenas, Gambini - que é um o psicólogo jungiano -
faz uma análise semelhante. Ele, tal como outros autores, afirma a importância das formas redondas para
os povos indígenas, o que se observa a partir dos mitos cosmogônicos, ritos, danças, organização social,
configuração espacial das aldeias, etc. Por outro lado, a reta, pode ser tomada como um símbolo do modo
de ser e pensar dos jesuítas, que viviam segundo ‘uma retidão de caráter’, obedecendo a uma
‘hierarquização retilínea’ , buscando ‘cumprir retamente sua missão’. Assim, o círculo e a reta, no contexto
das relações entre os padres jesuítas e os índios brasileiros, representam diferentes maneiras de ser, viver
e pensar. Também nesse caso, a pedagogia empregada foi a da substituição, sem que se buscasse
compreender o pensamento indígena.
Esses dois episódios aqui narrados, como foi dito anteriormente, ocorreram na época do Brasil-
Colônia, momento em que Ferreira (1992:164), identifica como sendo o primeiro da educação escolar
indígena:
“a história da educação escolar entre os povos indígenas no Brasil pode ser dividida em quatro fases
distintas: A primeira situa-se à época do Brasil-Colônia em que a escolarização dos índios esteve a
cargo exclusivo de missionários católicos, notadamente jesuítas. Um segundo momento é marcado
pela criação do SPI, em 1910 e se estende à política de ensino da FUNAI e sua articulação com o
Summer Institute of Linguistics (SIL) e outras missões religiosa. O surgimento de organizações
37
indigenistas não governamentais e a formação do movimento indígena organizado em fins da década
de 60 e nos anos 70, época da ditadura militar, marcam o início da terceira fase. A última delas,
iniciativa dos próprios indígenas, a partir da década de 80, visa definir e autogerir seus processos de
educação formal”.
De forma geral, há que se reconhecer que a segunda e terceira fase da educação escolar indígena
tinham como finalidade ‘integrar’ o índio, tirando-o do seu estado ‘selvagem’ para ‘civilizá-lo, transformando-
o em mão-de-obra para a produção mineradora, madeireira, agrícola ou pecuária e, principalmente, para
liberar suas terras.
Ainda hoje se observa que muitos dos princípios básicos dessa educação se mantém; embora haja
um novo discurso, de respeito às diferenças, muitas vezes a educação indígena está voltada para a
incorporação do índio à economia de mercado e à sociedade de consumo. Ainda continuamos a cometer
violências psicológicas, impondo nosso modo de ser, viver e matematizar. Nesse sentido, é importante
lembrar a advertência de Gambini de que
...até mesmo os mais bem-intencionados atos de intervenção – como foi, sob certo ângulo, a obra
jesuítica – trazem em si um potencial destrutivo. (...) O processo ainda corre o continente de ponta
a ponta, com essa massa de sobreviventes de si mesmos contemplando o vazio como pastores de
sua alma perdida, herdeiros talvez nem eles próprios saibam mais do quê. “Aculturados” nas
franjas da urbanização, nos caminhões de bóias-frias, nos postos indígenas, nos botequins de
estradas ou pontos turísticos, óculos de plástico e crucifixo no pescoço, sem eira nem beira,
vendendo flechas enfeitadas com penas de galinha, tutelados incapazes, apátridas na terra que
era só sua. (GAMBINI, 2000, p.147)
É realmente triste observar que expropriados de seu passado, saberes e fazeres, muitos índios
vivem como na situação acima narrada. Pior ainda é perceber que em muitos casos, o tipo de educação
que recebem hoje pode ajudar a aumentar esse contingente. Como no passado, a imposição de um tipo de
matemática, sem qualquer tentativa de compreender como são suas próprias idéias matemáticas pode ser
extremamente nociva às culturas indígenas.
Debater se os índios possuem ou não matemática é comparável ao debate acerca do fato de eles
possuírem ou não uma alma. No período colonial, ao perceberem que os indígenas mantinham modos de
pensar, hábitos e valores completamente dos seus, os jesuítas concluíram que os índios não possuíam
alma, mas que poderiam vir a ter. Hoje, muitas vezes esquecemos que os índios sempre contaram,
mediram, planejaram, fizeram estimativas, etc. e dizemos que sua matemática não existe ou não têm valor.
Ao fazer esse tipo de julgamento e pautar nossa atuação junto às populações indígenas com uma postura
que não busca a compreensão de suas idéias matemáticas e do diálogo entre elas e as nossas, podemos
estar auxiliando na destruição da alma ancestral indígena.
Sebastiani Ferreira (2005, p.93) assinala a necessidade de amplas pesquisas para que possamos
compreender, por exemplo, a forma como os indígenas constróem silogismos. Os erros do colonialismo não
podem ser repetidos e assim como a biodiversidade é essencial para a continuidade da vida, a diversidade
cultural é essencial para a evolução do potencial criativo de toda a humanidade, diz D’Ambrosio (1996, p.
47). É realmente importante percebermos que no fundo nossa alma brasileira é indígena, não européia, e
então buscarmos compreender e respeitar nossos saberes ancestrais.
38
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39
PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES DA HISTÓRIA DO MATHEMATICS EDUCATION AND SOCIETY (MES)
Valéria de Carvalho19
Resumo: Esta comunicação pretende apresentar e discutir as primeiras reflexões e análises do meu projeto
de doutorado, que se encontra em andamento, junto ao grupo de História, Filosofia e Educação Matemática
(HIFEM) na Faculdade Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). O propósito da
pesquisa é construir uma história da trajetória das conferencias do MES, produzida a partir de integrantes
do grupo de pesquisadores que realizam e participam desses congressos, apoiada em documentos como
seus anais, entrevistas com alguns de seus participantes mais ativos e registros de participação pessoal em
alguns desses encontros.
“O melhor a fazer talvez seja o autor partilhar as dificuldades com o leitor no decorrer da
narrativa. (...) tentarei contar uma história e ao mesmo tempo refletir sobre ela e mesmo, as
vezes solapá-la”. (BURKE, 2000 p.15)
"Sempre que se começa uma história, pode-se dizer que teria sido melhor começar antes" (op.
cit. p.15).
Narrativa: o narrador que possui vínculo com o objeto investigado é um construtor de história ou um historiador?
A tarefa que recai sobre o historiador, a maior parte das vezes, é a de conferir legitimidade a
um acontecimento de outro tempo20 e lugar, constituindo-o em seu tempo e lugar. Nesse sentido, o recurso
metodológico se sobrepõe ao historiador enquanto um narrador do vivido. O recorte do objeto, as fontes
documentais utilizadas, o processo de resgate a partir de uma certa perspectiva são importantes recursos
de construção de um discurso que oculta, mas ao mesmo tempo, expõe a subjetividade do historiador.
O que é escolhido como foco de atenção, o ato de “dar vida” a um certo acontecimento,
aponta as preocupações e perspectivas que podem revelar a intencionalidade do historiador também como
um sujeito social, inserido em um contexto de identidades e interesses, muitas vezes divergentes. Constituir
a ainda breve historia do MES21 é, portanto, um empreendimento ao mesmo tempo intelectual, político e
afetivo. As dimensões do político e do intelectual estão materializadas em toda uma produção acadêmica
que pode ser observada desde a concretização de seu primeiro congresso, em 1998 na cidade de
Nottingham, Inglaterra. Afetivo, pois o MES oferece visibilidade para uma série de questões sociais, que
estão alinhadas com anseios pessoais que há muito me acompanham, e que apontam para caminhos
similares aos que tenho tentado trilhar ao longo de minha trajetória profissional e pessoal. Portanto, o MES
é uma espécie de espelho, no qual parte de minhas preocupações se encontram refletidas, dando a
19 Doutoranda da FE – UNICAMP – [email protected]. A pesquisa, em andamento, que ofereceu subsídios a este texto conta
com a orientação do professor doutor Antonio Miguel. 20 Podemos produzir uma história da educação matemática do século XIX, ou então, como argumenta HOBSBAWM (2000: 243),
podemos tomar o presente como história e escrever a história de nosso próprio tempo. 21 O MES (traduzindo, “Educação, Matemática e Sociedade”) é um congresso que tem como objetivo congregar e divulgar trabalhos
de pesquisadores do campo da educação matemática que se preocupam e/ou investigam explicitamente temáticas sociais relativas a esse campo.
40
sensação de não ser um ponto isolado, de que existe uma comunidade que partilha de sentimentos e de
investimentos com os quais me identifico.
As epígrafes deste texto nos remetem a muitos questionamentos, dos quais destacamos, em
primeiro lugar, a legitimidade em já reivindicar um lugar na história para um fenômeno como o MES, cuja
existência institucional não ultrapassa os dez anos.
Uma narrativa que produza uma versão da trajetória do grupo de pesquisadores que realizam
e participam dos congressos do MES, apoiada em documentos como os anais22 desses congressos,
entrevistas com alguns de seus participantes mais ativos e registros de participação pessoal em alguns
desses encontros poderia ser considerada uma pesquisa histórica? Se a resposta a essa indagação for
afirmativa, seria legítimo que um membro da comunidade do MES escrevesse essa história?
Sendo ao mesmo tempo narradora e membro dessa comunidade, partilho com meus leitores
as angústias e dúvidas quanto à classificação do trabalho que estou desenvolvendo. Por muitas vezes, me
questionei se minhas explorações sobre o MES deveriam ser qualificadas como história, sociologia ou
antropologia. Minha pergunta mais freqüente é: “estou fazendo uma história social do MES ou uma
sociologia histórica do MES?” Isso me leva a refletir sobre concepções de sociologia e de história. Para
efeito de localização do leitor, vou traçar, de forma extremamente simplificada, a trajetória de meu olhar
quando faço referências à sociologia e à história.
A sociologia pode ser definida como o estudo objetivo das relações entre indivíduos que
formam um grupo social, considerando-as em seus vários elementos condicionadores, tais como os
institucionais, os políticos, os normativos, os legais, os axiológicos, etc. Com base em fontes textuais, orais,
iconográficas e de outra natureza, a história nos permite constituir metodicamente eventos ocorridos.
Embora, em muitos livros, essas concepções não apareçam relacionadas, temos uma visão bastante
complexa desses campos que nos apontam muito mais relações e aproximações entre eles do que
fronteiras delimitantes. Em nossos estudos, concordamos com BURKE (2000) que o historiador, ao
constituir fatos, precisa recorrer em suas análises a conceitos que são originários de outras aéreas do
conhecimento, tais como a sociologia e a antropologia, Concordamos também com HUNT (2001: 01),
quando afirma que “a sociologia histórica tornou-se um dos subcampos mais importantes da sociologia”.
De acordo com essas e outras tantas leituras pertinentes, tenho percebido que as fronteiras
entre essas várias áreas de conhecimento sempre foram muito tênues, permitindo confluências que não se
caracterizam como uma interdisciplinaridade. Antes, revelam um campo emergente em que as
liminaridades23 têm sido mais profícuas do que propriamente os campos autonomamente definidos.
Portanto, poderíamos afirmar que minha pesquisa está nessa liminaridade, uma vez que a história, em
nosso trabalho, se constitui em um instrumento importante para iluminar questões pertinentes à produção,
circulação, apropriação e re-significação dos objetos matemáticos no âmbito de quaisquer práticas sociais
em que esse conhecimento circule (MIGUEL; MIORIM, 2002:186). Assim, ao mesmo tempo em que, ao
realizar esta pesquisa, estou me constituindo “historiadora”, também constituo o MES como comunidade de
prática, participando da produção e constituição da mesma.
Segundo MIGUEL & MIORIM, o estudo da História da Educação Matemática é um campo
mais complexo do que um mero estudo no tempo das idéias educacionais ou doutrinas pedagógicas 22 Virtuais (disponíveis na web) e impressos. 23 Usamos aqui o conceito de liminaridade conforme aponta VAN GENNEP em seus estudos sobre os rituais, nos quais o processo de
transformação dos iniciados passa, necessariamente, por um momento de suspensão de qualquer condição estabelecida; é o momento de transição no qual ainda não se estabeleceu algo novo; porém, o que existia anteriormente já não determina a condição do sujeito. Assim, o termo liminaridade passou, na literatura social, a significar lugar de transição.
41
relativas à Matemática (MIGUEL; MIORIM, 2002:187). Dentro dessa complexidade, pode-se apontar desde
a constituição de uma comunidade científica – como na nossa investigação – como também todo e qualquer
contexto de práticas sociais que envolvam produção, as diferentes formas de apropriação e a circulação da
cultura matemática.
Primeiras aproximações à história do MES A semente é lançada: um artigo no 20° Psychology of Mathematics Education
Tomando a educação matemática como um campo de produção acadêmica, dentro do qual
encontramos a produção intelectual propriamente dita, a troca de experiências e as reflexões sobre a
relação ensino-aprendizagem da matemática, é possível apontar uma construção histórica, a partir do
momento em que encontramos conjuntos de diferentes tendências de pesquisa, como por exemplo, a dos
grupos que optaram por subsidiar teoricamente as suas investigações em educação matemática em
referenciais fortemente vinculados à psicologia e a de outros que se apóiam em conceitos e métodos
desenvolvidos em campos tais como os da historia, antropologia, sociologia, pedagogia, ciência política, a
filosofia, dentre outros.
Essa diversidade pode ser evidenciada pela categorização dos grupos de trabalho e grupos
temáticos que sempre constituíram historicamente o ICME (International Congress on Mathematics
Education). Essa categorização teve como base a documentação a que tive acesso, que são os Anais do 8ª
ICME, ocorrido no ano de 1996 na cidade de Sevilha, Espanha.
Foi nesse mesmo ano que, em um outro congresso internacional, a vigésima edição do PME
(Psychology of Mathematics Education) foi lançada, em Valencia, a primeira semente do MES, plantada em
um artigo de Tony Cotton e Peter Gates, intitulado Why the Psychological must Consider the Social in
Promoting Equity and Social Justice in Mathematics Education (“Por quê o psicológico deve levar em conta
o social na promoção de equidade e justiça social na Educação Matemática”).
O resumo desse artigo revela uma preocupação com a hegemonia “psicologizante” nos trabalhos de
educação matemática, e pontua um viés sociológico emergente:
“Este artigo sugere que a recente concentração de estudos psicológicos na educação matemática, sobre o
indivíduo em detrimento do social, não poderá sustentar o desenvolvimento da eqüidade e da justiça social
dentro e fora das aulas de matemática. Argumentamos que se faz necessária uma agenda alternativa de
pesquisa, uma agenda que veja o social como sumamente importante. Essa tal agenda construiria a base
teórica para aquilo que tem sido chamado de socioconstrutivismo. Propomo-nos a começar o processo de
construção de uma tal agenda alternativa” (COTTON; GATES, 1996: 2-259).
Além disso, esses autores apontam a necessidade de um desenvolvimento mais sistemático da
pesquisa em educação matemática que privilegie a perspectiva social, permitindo desdobramentos e
ampliação de referenciais teóricos, quando se referem à criação de uma agenda alternativa.
Nesse artigo do PME, os autores realizam uma leitura crítica de pesquisas com base na psicologia e
na formação de professores reflexivos, com maior ênfase na primeira corrente de pesquisa. O referido artigo
caracteriza-se claramente como um texto de educação matemática crítica, e conseqüentemente, além de
refletir criticamente as teorias que estão sendo desenvolvidas, também apontam a ausência da dimensão
social na pesquisa em educação matemática. As críticas mais fortes são para a ideologia individualista ou
individualizante e para a abordagem despolitizada da educação matemática que permeiam essas correntes.
Vejamos alguns momentos em que isso ocorre.
42
Na primeira página, eles criticam a visão de educação matemática que a distancia do seu domínio
social e que tem como foco a melhor maneira de cumprir/abordar o currículo para que os alunos
apresentem melhor desempenho. Os autores apóiam essa crítica em APPLEBAUM (1995), que defende
uma abordagem à educação matemática conectando-a a “questões políticas de valores, de ética
profissional e de democracia”; citam o alerta feito ainda por APPLEBAUM (1995) de que “as pesquisas em
educação matemática têm se concentrado nas atividades em classe, na seqüência ótima de tópicos e no
desenvolvimento cognitivo de indivíduos”. Para os autores do artigo, olhar a educação matemática tendo em
primeiro plano essa ótica é ocultar o fato de que a educação matemática é um ato social, cultural e político.
Ao longo do texto, os autores apontam a existência de um autoritarismo que envolve o currículo de
matemática nos diversos níveis de ensino. Esse autoritarismo se baseia em um terrorismo pelo medo do
fracasso e acaba por se constituir em uma cultura aceita por aprendizes e professores em sala de aula, que
não é apenas consumida, mas também reproduzida e atualizada.
Em contraposição ao poder exercido por grupos privilegiados, ou seja, aqueles que são reconhecidos
como “vencedores”, os autores afirmam que deveria se dar mais atenção à forma como a educação
matemática poderia tornar mais poderosas as minorias e os grupos excluídos desse processo. A tomada de
uma consciência crítica do papel exercido pelos educadores nesse caso, funcionaria como uma forma de
emancipação, uma força libertadora que produziria efeitos universalizantes. Essa postura revela uma
interpretação nitidamente política – no sentido da negociação entre o lugar de poder do educador e aqueles
dos aprendizes – em relação à produção acadêmica dominante até então.
Recusando uma visão de educação centrada no indivíduo, e incentivando a pensar a educação e
seus efeitos na comunidade, eles fortalecem trabalhos e pesquisas que procuram esclarecer as dimensões
ideológicas, políticas, étnicas, éticas, de gênero, que estão subjacentes e freqüentemente silenciadas na
educação matemática. Criticam a constante cisão entre o psicológico e o social presente na produção
acadêmica dessa área, destacando que “a luta por uma sociedade mais justa e igualitária requer que
exploremos as dimensões políticas do ensino e da aprendizagem da matemática e, através dessas
dimensões sociais, cheguemos ao coração das teorias sobre ensino e aprendizado” (COTTON; GATES,
1996: 2-255).
A semente germina: O primeiro MES acontece O grupo MES nasceu por inciativa de Peter Gates e Tony Cotton que, no PME20 de Sevilha (1996),
apresentaram o artigo discutido acima. Sua abreviatura inicial era MEAS, segundo depoimento24 de Paola
Valero:
Ellos invitaron en ese momento a la realización del MEAS (Mathematics Education and Society) junto con
un grupo de colegas ingleses lograron hacer la primera conferencia. El nombre del grupo se “modifico” a
MES porque Nuria Gorgorio y yo les hicimos caer en cuenta a los colegas ingleses que “meas” en español
quiere decir “orinas” y por eso no era un nombre muy afortunado. Así que para el segundo congreso el
grupo se llamo MES (VALERO 21/04/04, grifos meus).
Tomando como fonte documental a introdução dos anais do primeiro congresso do MEAS1,
encontramos um registro explícito de uma narrativa que evidencia algumas tensões vividas na organização
do encontro:
24 Esse dado foi obtido em correspondência informal, via e-mail, no dia 21 de abril de 2004, 10h:03min.
43
(...) houve momentos em que parecia que estávamos apenas tentando fazer mais uma conferência
de Educação Matemática, o que está se tornando, rapidamente, uma atividade acadêmica de verão muito
concorrida. Então, POR QUÊ precisaríamos de mais uma conferência? Esse é um ponto bastante sério. Em
conferências e simpósios, os educadores matemáticos debatem os méritos de posições epistemológicas e
discutem sobre sua semântica. Ao mesmo tempo, as pessoas, em todo o mundo, estão morrendo de fome,
de pobreza e de doenças, enquanto outras, se refestelam em uma ocorrência obscena. A educação
matemática tem seu papel em manter os não poderosos no seu lugar e os mais fortes em posições de
poder. Ela faz isso, não apenas através do papel cultural que uma qualificação em Educação Matemática
confere a um indivíduo, mas também, através da natureza autoritária e divisiva de muito daquilo que passa
como Educação Matemática; então como chegamos a esse ponto? A história do presente na educação
matemática precisa examinar as raízes da disciplina e seus caminhos até o presente (GATES; COTTON,
1998: 1, grifos meus).
Como também foi evidenciado acima, o discurso revelado neste trecho da introdução dos anais da
primeira conferência do MES, está coerente com o projeto intelectual proposto no artigo do PME20. Outro
dado significativo foi a descrição do logotipo25 da capa, o qual é um tributo a dois importantes personagens
e/ou aspectos de Nottingham, a saber, o moinho em homenagem a George Green26 e o arco e flecha em
homenagem a Robin Hood27.
,Logo presente nos anais 2a ed. (1999) Logo presente na rede28 no site do MEAS1
Uma das finalidades do MEAS1, segundo seus organizadores, era de oferecer uma contribuição no
sentido de reorientar o olhar e dar atenção à Educação Matemática. Esse não foi o primeiro evento em
separado do ICME que apresentou essa intenção; outras organizações e/ou grupos se constituíram nesse
sentido e eventos similares foram, e continuam sendo, realizados ao redor do mundo como, por exemplo: a
conferência das Dimensões Políticas da Educação Matemática (PDME), o Grupo de Estudos Internacional
em Etnomatemática (TSGEM), o Grupo de Educação Matemática Crítica (CMEG) e o Grupo Britânico, que
se denomina como Pesquisas sobre as Perspectivas Sociais na Educação Matemática (RSPME).
25 O logotipo foi produzido por Tony Fisher. Em nossa coleta de dados encontramos duas versões distintas do logo, exibidas no texto. 26 Homem humilde que trabalhou em moinhos e um dos matemáticos ingleses mais famosos. 27 Reconhecidamente, um fora da lei que roubava dos ricos para dar aos pobres, com importante papel na redistribuição da riqueza na
Inglaterra. 28 www.nottingham.ac.uk/csme/meas/conf.html acesso em 21/08/05. CSME (Centre for the Study of Mathematics Education)
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Outra finalidade do MEAS1 era reunir esforços e trabalhos até então dispersos, uma vez que, aos
olhos dos organizadores, a existência de tantos grupos poderia implicar em riscos a uma proposta
alternativa ao enfoque “psicologizante” da educação matemática. Em seus próprios termos, (...) nenhum
desses agrupamentos, no momento, consegue levantar o apoio e a audiência das conferências do PME e
estão, portanto, correndo risco de fragmentar qualquer sentido de alternativa pela própria existência de
tantos grupos diversos (op. cit p.1).
Para finalizar: Olhando para o espelho e me expondo um pouco mais A minha intenção, em minha pesquisa de doutorado que está em andamento, é tentar constituir uma
história do MES, e a responsabilidade do papel de atriz política que estou assumindo, me envolve de
preocupação e conforto ao mesmo tempo. Preocupa-me por ter consciência de que a história que irei
escrever, como a de qualquer outra escrita, trará marcas de minha própria história, de minhas experiências
de vida, de minhas convicções, intenções e meus saberes e de meus não saberes29. Conforta-me por que
também faz parte da minha história e das minhas experiências a busca pela distinção, ainda que não rígida,
“entre fato comprovável e ficção, entre declarações históricas baseadas em evidências e sujeitas a
evidenciação e aquelas que não o são” (HOBSBAWN 1998, P.8). Tenho envolvido todo o meu empenho,
apesar de minhas limitações, na construção de um projeto de história como uma produção intelectual
coerente.
Sobre minhas intenções e convicções, gostaria de explicitar alguns aspectos de como venho
pensando a educação matemática. Na minha opinião, devemos desvelar as dimensões políticas e sociais
da educação matemática e da matemática. Isso significa pensar que a educação matemática tem a oferecer
a nossos alunos, alunas e à sociedade como um todo, algo mais do que um conjunto de ferramentas
(conceitos, conteúdos, modelos, etc) para operar, atuar, manipular, construir (sobre) outros conteúdos
(matemáticos ou não). Quando ensinamos matemática estamos também ensinando um conjunto de valores
e definindo posturas, modos de agir e pensar "corretos" ou "adequados"; além disso, estamos valorizando
ou desvalorizando, reforçando ou negando, modos culturais de agir, pensar, viver e ser, isto é, estamos
continuamente induzindo e produzindo identidades.
Referências Bibliográficas BURKE, P.Variedades de história cultural.Trad. Alda Porto, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, (1997)
2000.
BURKE, P. (org.) A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Universidade
Estadual Paulista - UNESP, 1992.
BURKE, P. (org.) História e teoria social. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Universidade Estadual Paulista -
UNESP, (1992) 2002.
COTTON, T.; GATES, P. Proceedings of 20th Conference of the International Group for the Psychology of
Mathematics Education, University of Valencia, Valencia, Spain VOL.2 pp.249-256 (1996).
GATES, P.; COTTON, T. Proceedings of the First International Mathematics Education and Society
Conference, CSME, Nottingham University, England, 1998.
HOBSBAWN, E.J. Sobre a história. Trad.Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2000
(1997).
29 Frase com inspiração em Hobsbawn 1998, p.8.
45
MIGUEL, A.; MIORIM M.A. História da matemática: Uma prática social de investigação em construção.
Educação em Revista, n. 36, dez 2002, p. 177-203.
46
HISTÓRIA ORAL, MEMÓRIA E NARRATIVAS NA ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Heloisa da Silva
UNESP – Rio Claro
Resumo: A intenção deste texto é discutir o uso de memórias e narrativas, no âmbito da História Oral (HO),
como procedimentos metodológicos para uma pesquisa que tem como objetivo principal analisar o processo
de constituição da identidade de um grupo de formadores em Educação Matemática: o Centro de Educação
Matemática (CEM).
História Oral: procedências e finalidades
Utilizada mais comumente na História e nas Ciências Sociais, a HO traz consigo uma intenção
comum a qualquer área que dela se utiliza: a valorização de memórias e narrativas como procedimentos de
coleta e análise de dados na abordagem das pesquisas.
Sendo criticados pelos historiadores tradicionais, na História os recursos da HO se estabeleceram,
em princípio, como importantes para o delineamento da história de sociedades sem registros escritos; como
foi o caso do continente africano, considerado sem História no século XIX. Preocupados com precisão e
cronologia, para os tradicionalistas “as culturas orais não podem inovar e devem esquecer” (Prins, 1992).
Nesse caso, como advertiu Vansina, as fontes orais tornam-se substitutas das escritas, estas encaradas
como prima-dona para o alcance da “verdade” histórica.
No entanto, se para os seguidores da linha alemã proposta, principalmente, pelo historiadores
Niebuhr e Von Ranke, a fonte oral serve apenas como estratégia secundária, para alguns historiadores
modernos ela vai significar um novo enfoque para a História. Segundo Thompson (1998), é grande o
número de historiadores que se preocupam muito pouco ou quase nada em discutir problemas sociais do
passado com algum espírito de contestação ao sistema social e/ou político que possa fazer compreender
problemas contemporâneos e, de alguma forma, provocar mudanças de posturas. A finalidade social da
história, nesse sentido, é apenas a busca do conhecimento pelo próprio conhecimento ou, o que parece ser
mais grave: a finalidade social da história pode estar atrelada a justificativas para guerras, dominações,
revoluções, domínio de uma classe ou raça sobre a outra.
O trabalho recente de historiadores que utilizam a história oral consiste, pois, “na gravação de
entrevistas de caráter histórico e documental com atores e/ou testemunhas de acontecimentos, conjunturas,
movimentos, instituições e modos de vida da história contemporânea” (Alberti, V., 2004, p. 71). Dentro
desse contexto, um dos principais alicerces da história oral configura-se na narrativa, já que um
“acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode ser transmitido a outrem sem que seja
narrado. Isso significa que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista”
(Ibid, p. 71).
Assim, segundo Alberti (2004), mais do que conhecer “versões” do passado, a utilização das fontes
orais colabora com o historiador na compreensão da realidade, quando o próprio trabalho da linguagem é
visto como produtor dessa realidade.
47
A concepção das fontes orais pelas ciências sociais não se distancia em muito das da História, a
não ser pelo próprio caminho que essas ciências percorreram para utilizarem tais recursos. Podemos dizer
que nas ciências sociais, não houve resistências à HO como aconteceu na história.
Acreditamos que, por não possuir princípios contraditórios aos adotados pelas ciências sociais, a
HO, dentro desse âmbito, é vista como um método de compreensão para os acontecimentos sociais
contemporâneos, bem como de colaboração para instituições e comunidades pesquisadas. Von Simson
(2004) traz exemplos da “eficácia do método da história oral”, como orientação básica no direcionamento de
atividades de experiências de pesquisa-ação, cujos benefícios remontam:
a reconstrução compartilhada da memória para os adolescentes e para a
comunidade do bairro e /.../ a riqueza dessa metodologia para a obtenção de
informações sobre o passado recente de uma região muito pobre da cidade
[Campinas-SP]. Esses detalhes da memória do bairro ficarão preservados nos
arquivos orais da instituição-memória sediada na Universidade [UNICAMP] e,
portanto, de livre acesso para todos os públicos interessados.(Von Simson, 2004,
p.06).
No que tange a história da Educação, as narrativas de experiências de professores ou ex-
professores, suas descrições sobre a forma como vivenciaram certas reformas educacionais, bem como as
relações estabelecidas com a instituição escolar, desarticulam a abordagem, comumente centrada nas
políticas públicas e nas filosofias pedagógicas (Gusmão, 2004).
A história oral aplicada à educação pode iluminar e sublinhar os efeitos de
currículos, normas e diretrizes /.../ O professor ganha relevo, o que permite
resgatar impasses e aspirações da categoria/.../. (Gusmão, p. 31, 2004)
Muito próxima desse cenário está a história da Educação Matemática, uma tendência ainda em
configuração dentro desta área, cujo enfoque da história oral é, portanto, ainda restrito. De acordo com
Garnica (2002), os objetivos que caracterizam as pesquisas situadas nessa tendência encontram
possibilidades na HO quando se configuram em organizar a busca de traços dos cenários históricos
relacionados à formação e às práticas dos docentes, bem como a compreensão de fatores e de significados
das tramas constitutivas das práticas atuais.
Segundo Baraldi (2003),
Ao utilizarmos a História Oral para constituir um dos muitos cenários da História da
Educação Matemática torna-se possível tecer as tramas que nos fornecerão uma
referência histórica e cultural, que até então estava inscrita apenas nas memórias
dos professores ou de pequenos grupos. (Baraldi, p.24, vol. Aleph, 2003
Segundo Garnica (2000) pesquisas realizadas em HO apresentam subsídios que fazem entender
aspectos da legislação educacional, enfoque metodológico, situações e contextos históricos fundamentais à
reconstrução de um histórico da formação de professores no Brasil.
A partir do estudo situado nessa pequena sinopse, notas-se que o que o há de comum às áreas que
pesquisam sob o viés da HO é o princípio de que a história de um acontecimento é multifacetada e,
48
portanto, qualquer pesquisa que procura abarcar perspectivas e relações de poder sobre determinado
acontecimento, deve buscá-las, também, nos discursos de quem o vivenciou. Nesse sentido, a concepção
de pesquisa que sustenta a HO é a de se mostrar perspectivas com vistas a enfoques mais abrangentes e
questionadores, que não ocorre quando apenas um ponto de vista é considerado.
Identidades na Educação Matemática a partir de memórias e narrativas Apesar de ser uma expressão usada muito recentemente30, o estudo sobre a questão da identidade
mostra que este é um termo usado sob distintas acepções, inclusive – e mais freqüentemente – a do senso
comum: um nome; um número de seu RG (identificação); uma imagem (aspecto marcante) de determinada
pessoa, comunidade, ou lugar; um conjunto de características; e assim por diante. Ao analisar a perspectiva
da Psicologia, da Filosofia e dos Estudos Culturais31, nota-se que as abordagens tornam-se ainda mais
diversas. Foi considerando esse contexto que, na pesquisa que estamos realizando, concebemos a
identidade como algo atribuído, que varia de acordo com os fundamentos teóricos de quem a atribui.
Pensamos que essa concepção sobre o aspecto da identidade na pesquisa que desenvolvemos
aproxima-se dos princípios da história oral relatados anteriormente, quando o que pretendemos é alcançar
uma compreensão sobre processos de produção e relações existentes no âmbito de um grupo de
educadores matemáticos. Para nós, isso significa estudar o processo de constituição da identidade desse
grupo.
Além disso, pensamos como Hall (2000) que defende que:
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do
discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais
históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas
discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas (Hall, 2000,
p.109).
Assim, emprestando a caracterização dada por Garnica (1999) à Educação Matemática como o
“movimento” em detrimento da unicidade “prática científica”, entendemos que os formadores dessa área
venham ser atores desse movimento que age em favor da reflexão teórico-prática defendida pelo autor.
Esclarecer quais são os propósitos defendidos por esse movimento, por esses atores, constitui tarefa
importante, porém, não simples, para o próprio movimento que luta por seu espaço.
Discutir sobre o processo de constituição da identidade de um grupo de formadores em educação
matemática acarreta, conseqüentemente, a discussão sobre a identidade do próprio movimento em que
este trabalho é desenvolvido – o da Educação Matemática. Falar de identidades de um grupo de
formadores em educação matemática é falar de identidades da Educação Matemática, sobre os propósitos
desse movimento. O registro da investigação sobre a identidade do Centro de Educação Matemática – um grupo de
formadores em educação matemática que atuou durante dez anos (1984-1994) em secretarias da educação
30 De acordo com Niethammer (1997), que trata de estabelecer a história semântica da palavra “identidade”, essa palavra insere-se na
mídia e nos estudos culturais, de forma enfática, somente a partir dos anos 50. 31 Os Estudos Culturais estão preocupados com questões que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade e poder.
Exercem influência especial sobre a Sociologia, os Estudos Literários, Estudos de Mídia e Comunicação, Lingüística e História (Tadeu da Silva, 2004).
49
e escolas do estado de São Paulo – traz discussões de interesse a um projeto de amplo espectro e longa
duração, proposto no GHOEM (Grupo de História Oral e Educação Matemática – GHOEM)32, que tem como
objetivos: “constituir um referencial metodológico próprio para a utilização da HO como metodologia de
pesquisa qualitativa para os trabalhos em Educação Matemática; delinear um ‘mapa de movimentação’
sobre a formação de professores de Matemática no Brasil; e elaborar – em trajetória – uma abordagem
teórico-filosófica ampla para a configuração da tendência que, ao menos no Brasil, tem sido chamada de
‘História da Educação Matemática’” (Garnica, 2002).
Nosso interesse neste trabalho é abordar o primeiro objetivo dentre os citados acima, salientando a
utilização de memórias e narrativas como instrumentos da História Oral, o método de pesquisa qualitativo
para a pesquisa que desenvolvemos.
Como afirma Hall (2000),
Elas [as identidades] surgem da narrativização do eu, mas a natureza
necessariamente ficcional desse processo não diminui, de forma alguma, sua
eficácia discursiva, material ou política, mesmo que a sensação de pertencimento,
ou seja, a “suturação à história” por meio da qual as identidades surgem, esteja,
em parte, no imaginário (assim como no simbólico) e, portanto, sempre, em parte,
construída na fantasia ou, ao menos, no interior de um campo fantasmático (Hall,
2000, p.109).
Porque tal sensação de pertencimento ocorre na elaboração de qualquer documento histórico
(escrita ou oral), ao considerar os dados a serem levantados para a pesquisa sobre o CEM, analisamos não
somente documentos escritos como memórias do grupo, mas, principalmente, narrativas de seus
integrantes sobre a sua história – ambos os dados (registros escritos e orais), como dissemos, são
considerados legítimos pela HO na análise da história de grupos sociais.
Como memória estamos entendendo “a manifestação de identidades – não unívocas, mas plurais,
múltiplas e sempre atualizadas” (Delgado, 2003). Concordamos com Halbwachs (1990)33 que diz que a
identidade do grupo é mantida através da memória, onde mudança, desintegração, conservação e
mediação são realidades concretas e, no entanto, ritualizadas pela preservação de uma consciência de
lembranças comuns.
É porque a memória coletiva (em Halbwachs) se manifesta como “uma corrente do pensamento
contínuo/.../, já que retém do passado somente aquilo que ainda está vivo ou capaz de viver na consciência
do grupo que a mantém [e porque] Por definição, ela não ultrapassa os limites deste grupo” (Tedesco, 2001,
p.22) que entendemos ser ela elemento imprescindível para a análise da constituição da identidade no
nosso trabalho.
De acordo com tais noções, diferentemente da história, a memória coletiva é o grupo visto de
dentro:
A história examina os grupos de fora e abrange uma duração bastante longa. A
memória coletiva apresenta ao grupo um quadro de si mesmo que, sem dúvida, se 32 http://www.ghoem.com 33 Maurice Halbwachs é seguidor da linha sociológica de Durkheim e a primeira edição de sua obra La mémoire collective é de PUF,
Paris, 1950.
50
desenrola no tempo, já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele
se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas./.../ Ao acabar a
memória começa a história (fixação por escrito), o registro histórico não é afetivo;
é uma operação intelectual, exige distância, crítica, reflexão sobre a memória./.../A
história estuda e capta memórias, mas não se confunde. (Tedesco, 2001, p.23).
No entanto, como lembram esses autores, a história tem o poder de “enquadramento” da memória
através de sua coerência discursiva, interpretações, ordenações, construções de figuras e referências
culturais centrais. Além disso, a memória recebe influência contínua do tempo presente de quem lembra: “O
simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e
propõe a sua diferença em termos do ponto de vista” (Bosi, 1987, p. 17).
Por considerar tais motivos, Halbwachs não estuda a memória em si, mas os “quadros sociais da
memória”. Como analisa Bosi (1983), na linha de pesquisa de Halbwachs, “as relações a serem
determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa (relações entre corpo e o espírito, por
exemplo34), mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais” (p.17).
Assim, estudar a memória significa compreender o lugar onde o sujeito é produzido, já que lembrar
é viver, construir e pensar o presente com elementos do passado. Foi considerando essas noções dentro da
HO que decidimos realizar a análise do processo de constituição da identidade do CEM a partir de suas
memórias. Desse modo, buscamos, apoiados em fundamentações teóricas acerca da noção de sujeito,
identificar as imagens que os depoentes mantiveram a cerca de si e do grupo do qual foram (são) membros
para, com isso, estabelecer tal processo.
Os significados que atribuímos para essas memórias nos momentos de análise partiram de suas
narrativizações. Assim como os lugares da memória, compreendemos as narrativas como instrumentos
importantes de preservação e transmissão das heranças identitárias e das tradições (Delgado, 2003).
Por incorporar dimensões materiais, sociais, simbólicas e imaginárias, a narrativa trata de uma
forma de construir a realidade, não expressando apenas dimensões da experiência vivida, mas,
principalmente, mediando a própria experiência e configurando a construção social da realidade (Bolívar,
2002). Parafraseando Gadamer (1992, apud Bolívar, 2002), não existe realidade social, com todas as suas
precisões reais, que não se expresse em uma consciência lingüisticamente articulada; não existem
estruturas de significado independentemente de sua interpretação.
O tratamento, sob o viés da HO, dado às entrevistas das quais surgem as narrativas foi
decididamente importante para o trabalho que nos propusemos desenvolver. De acordo com Garnica
(2003), que elaborou um inventário acerca das pesquisas em Educação Matemática que se utilizam da HO,
pode-se falar que os procedimentos dentro dessa área consistem em: uma pré-seleção dos depoentes,
entrevistas gravadas que constituirão o documento-base da pesquisa, instâncias de transformação do
documento oral em escrito – conjunto de processos: a transcrição literal, a textualização e a transcriação -,
um momento por ele chamado de “legitimação” – quando o documento textualizado retorna aos depoentes
para conferência e posterior cessão de direitos de uso pelo pesquisador - e, por fim, um momento de
análise, cujo caráter tem sido o de destacar as tendências observadas dentre os depoimentos.
Diferentemente de algumas pesquisas qualitativas que utilizam entrevistas em suas abordagens, a
HO possui um tratamento especial desde o momento de elaboração do roteiro da entrevista por se
34 Aqui a autora se refere às relações consideradas por Bergson, na psicologia.
51
preocupar com o aspecto individual e sócio-histórico do depoente. Entendemos que esta preocupação
esteja relacionada ao cuidado do historiador (ou cientista social) ao elaborar um documento histórico.
Esse não deixou de ser um motivo legítimo na abordagem de nossas entrevistas, já que, como
dissemos, também temos a intenção de registrar aspectos da história da Educação Matemática. No entanto,
a eficácia dos procedimentos da HO para a nossa pesquisa esteve em elementos que nos permitiram uma
análise abrangente do processo a partir de narrativas individuais. Podemos dizer que essa análise começa
no momento da entrevista, passa por sua transcrição, e é realçada no momento da textualização e em
posterior discussão teórica. Como afirma Porteli (1997), “apesar de o trabalho de campo ser importante para
todas as ciências sociais, a História Oral é, por definição, impossível sem ele” (p. 15).
O processo de textualização se faz precioso, não apenas por deixar fluir para o leitor a narrativa
escondida pelos vícios da oralidade. Praticar a textualização em HO constitui assumir a ficção que o outro é
à ficção que somos nós, ou seja, textualizar é assumir a interferência no texto (transcrição) por meio da
produção de significados para aquele texto.
Consideramos, com isso, termos alcançado o que enfatizou Portelli (1997) sobre a HO: aprofundar
os padrões culturais, a estrutura social e processos históricos do grupo por meio de conversas com pessoas
sobre a experiência e a memória individuais e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida das
outras no grupo.
Bibliografia ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro, FGV: 2004.
BARALDI, I.M. Retraços da Educação Matemática na Região de Bauru (SP): uma história em
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53
A INFLUÊNCIA DOS CONTEXTOS SOCIAIS NO CONCEITO MATEMÁTICO
Anna Regina Lanner de Moura
Profa Doutora FE-UNICAMP
Esther Pacheco de Almeida Prado
Doutoranda FE-UNICAMP
Resumo: Este texto tem por objetivo refletir sobre os contextos sociais que influenciam a formação dos
conceitos matemáticos e buscar as fronteiras difusas formadoras do conceito número inteiro nas diversas
áreas do conhecimento, em particular, na história e na história da matemática que podem constituir-se como
fonte de pesquisa e de fundamentação para a prática docente na educação básica. Procuramos na história
da matemática os elementos formadores do conceito do número inteiro, em especial, do número negativo,
no seu aspecto não formal, procurando as indeterminações que possibilitem momentos de pensar sobre o
conceito e momentos de fazer o conceito na educação básica.
Introdução Ao discutir sobre o método psicogenético, de Piaget, Miguel (1999: 24) indica que a questão central reside
em:
se perguntar sobre que fatores surgidos em que contextos acabaram tornando possível o
surgimento dessas lógicas diferenciadas, fazendo com que as mesmas assumissem
características e poderes diferenciados, e por que razões a natureza da lógica subjacente à
atividade matemática, por si só, a despeito de outros fatores possíveis, teria tido o poder de
levá-la à esterilidade e à decadência.
Pôr-se essa questão teria obrigado Piaget, é claro, a suspeitar da possibilidade de influência de outros contextos sociais mais abrangentes sobre a atividade matemática. Mas o método psicogenético-embriológico não se interessa por fatores explicativos dessa
natureza. Para atestar essa possibilidade, entretanto, basta, por exemplo, recordarmo-nos aqui
da explicação alternativa proposta por Bento de Jesus Caraça. (grifos nossos)
E indica, em Caraça (1978/1984: 181 e 197), o que considera uma explicação alternativa:
determinada situação e evolução social levaram a Grécia ao julgo do imperialismo militar macedônico e,
posteriormente, romano, que do século V para cá, impuseram, na sua superestrutura intelectual uma
corrente de idéias que, no domínio da Matemática, teve várias conseqüências.
Para ser possível explicações de outra natureza, isto é, diferente das justificativas formais dos
conceitos matemáticos, consideraremos neste texto, alguns elementos da questão central indicada por
Miguel (1999: 24): suspeitar da possibilidade de influência de outros contextos sociais mais abrangentes
sobre a atividade matemática.
Nos basearemos em Ruiz (2005) e Moreira&David (2003), quando indicam duas visões distintas de
olhar a matemática: uma para a matemática científica ou acadêmica e outra, muito diferente, para a
matemática escolar.
54
Ruiz (2005) considera que a visão contemporânea da matemática científica é a da complexidade e
da incerteza, ocupando-se cada vez mais de modelos não determinísticos. E a visão da matemática escolar
é a da unicidade de caminhos e da exatidão, cultiva-se no interior da escola, da família e dos textos
matemáticos escolares atuais, a crença de que os resultados matemáticos são sempre únicos e definitivos.
Entendemos que essa maneira de pensar a matemática escolar não possibilita refletir sobre as influências
de outros contextos sociais na atividade matemática indicadas por Miguel (1999).
Moreira&David, (2003: 59) consideram que o matemático tem sua produção voltada para resultados
originais, “de fronteira”, com ênfase nas estruturas abstratas, o processo rigorosamente lógico-dedutivo e a
extrema precisão de linguagem sejam, entre outros, valores essenciais associados à visão que o
matemático constrói do conhecimento matemático. Diferente da matemática escolar onde a prática do
professor de matemática da escola básica, desenvolve-se num contexto “educativo”, o que leva a uma visão
fundamentalmente diferente. (Moreira&David, 2003: 65).
Consideram que para o matemático no estudo do conjunto dos números reais é sua estrutura que
importa ser considerada. Nesse caso não importa se os elementos desse conjunto são galinhas ou
computadores, não faz a menor diferença. É a estrutura que o caracteriza como o conjunto dos números
reais. (Ibidem)
Indicam outra visão, do mesmo objeto, para o professor da educação básica: 1º) concebê-lo como
“número”, porque números são coisas que já estão concebidas como tal: 1, 2, 3, 2/5, etc., são números,
enquanto galinhas ou computadores não são números; 2º) são números tais que os racionais são uma parte
deles e 3º) são objetos criados com alguma finalidade, ou seja, devem responder, de certa forma, a alguma
necessidade humana. MOREIRA&DAVID, (2003: 65).
A estrutura de corpo ordenado completo é reconhecida a posteriori. (...) O que se quer
enfatizar é que, para o matemático, lidando com a teoria na fronteira do conhecimento, não
importa pensar os reais como um professor precisa pensá-los, lidando com seus alunos no
processo de escolarização básica. A idéia que precisa ficar clara é a de que o conjunto dos
números reais é um objeto para a matemática escolar e “outro objeto” para a matemática
científica. (...) essa concepção formal dos números reais é uma construção histórica
relativamente recente dentro da matemática científica (Moreira&David, 2003: 66)
Lanner de Moura et al (2003) considera que a matemática escolar tem excluído da relação
professor-aluno-conceito as hesitações, retrocessos, dúvidas e incertezas que permearam o processo de
formação dos conceitos matemáticos quando não são discutidos neste nível de ensino. Mas espera-se que
os alunos tenham o seu produto final devidamente compreendido, assimilado e o demonstrem prontamente
através da utilização da sua linguagem formal, operatória, em outras áreas do conhecimento.
O rigor e exatidão de resultados são esperados na matemática escolar mas parece-nos que a
criação de idéias no campo da incerteza (Ruiz, 2005), da fronteira do conhecimento (Moreira&David, 2003)
tem sido privilégio apenas da matemática científica. Temos presenciado, na educação básica, o
desenvolvimento da matemática sem as características de um processo de formação geral dos conceitos
matemáticos, e sim um processo de aplicação e utilização de sua linguagem simbólica, formal com ausência
da influência de outros contextos sociais (Miguel: 1999).
Com essa visão equivocada da matemática escolar, privilegiando o pensamento operatório,
professor e aluno têm-se dedicado ao relacionamento com as outras áreas do conhecimento de modo
55
fragmentado, restrita à aplicação das sínteses dos processos de formação do conceito matemático, nas
várias áreas presentes no currículo escolar da educação básica.
Portanto, assumiremos neste texto, que o conceito número negativo é um objeto para a matemática
escolar e outro, diferente, para a matemática científica. Portanto, para a matemática escolar tem construção
histórica, foi uma necessidade humana que sofreu influência de outros contextos sociais mais abrangentes
sobre a atividade matemática.
As questões aqui discutidas têm como eixo central entender o processo de formação do conceito
número negativo, a partir dos vários contextos sociais que influenciaram o homem prático e o teórico quanto
a observação, reflexão e análise dos movimentos do mundo real contemporâneo, sob o ponto de vista das
percepções qualitativas e quantitativas determinadas por esse contexto social.
Assim, pretendemos, para o conceito número inteiro, que alunos e professores reflitam sobre as fronteiras
difusas, isto é, as fronteiras do conhecimento que contribuíram para o homem prático e o homem teórico,
nos contextos sociais indicados por Caraça (1984), Hogben (1958) 35, e
Aleksandrov&Kolmogrov&Laurentiev (1994)36, Crosby (1999) e Lima&Moisés (1998) a partir da leitura e
reflexão das ações e criação de idéias formadoras desse conceito para evidenciar os elementos das
fronteiras difusas do conceito número inteiro.
LIMA (1998) considera o movimento do pensamento do homem prático e do teórico como duas
formas de pensamento que caminham juntas, mas de maneira desigual e combinada. Nos Números
Inteiros a combinação e a desigualdade marcaram fortemente a compreensão do processo geral de sua
formação.
Talvez a dificuldade para entendermos essas duas formas de pensamento, desiguais e
combinadas, para o conceito Número Inteiro, se encontre no fato de entendermos muito bem o
pensamento do homem teórico: a impossibilidade do conjunto dos números naturais quanto à subtração
de alguns de seus elementos É muito claro para Courant&Robbins (2000) o que deve ser considerado:
Um grande passo foi dado no sentido de remover esta restrição quando se introduziu o símbolo
0, definindo-se a – a = 0. Mais importante ainda foi quando, graças à introdução dos símbolos –
1, - 2, - 3, ..., juntamente com a definição b – a = - (a – b) para o caso de b < a, assegurou-se
que a subtração poderia ser realizada no domínio dos inteiros positivos e negativos.
(Courant&Robbins, 2000: 65)
Naturalmente não podemos supor, que para o professor da educação básica, esta visão do
conceito de número negativo seja necessária e suficiente para a matemática escolar. Acreditamos que
para Courant&Robbins (2000) a preocupação é com o objeto da matemática científica. Não importam os
contextos sociais que influenciaram determinado conceito matemático, para os autores a preocupação
está em
Ampliar o domínio com a introdução de novos símbolos, de tal forma que as leis válidas para o
domínio original prevaleçam no domínio maior, é um aspecto do processo matemático
característico da generalização.
35 HOGBEN, Lancelot. 1958. Maravilhas da Matemática, trad. Paulo M. da Silva, Roberto Bins e Henrique C. Pfeifer, RJ, Editora Globo. 36.ALEKSANDROV. A. D., KOLMOGOROV, A. N., Laurentiev, M. A. y otros. 1994. La matemática: su contenido, métodos y significado.
10ª ed. Versíon española de Manuel L Rodríguez, Madrid: Alianza Editorial.
56
Para os autores o verdadeiro significado está nas estruturas abstratas, o processo rigorosamente lógico-
dedutivo e a extrema precisão de linguagem, indicados por Moreira&David (2003).
Kline (1992: 537) ao discutir sobre a natureza e os valores das matemáticas considera que tanto a
natureza das matemáticas como o conteúdo mudaram de forma radical com o passar dos séculos. E propõe
examinar esta matéria como os matemáticos a vêem hoje em dia, para compreender alguns aspectos aos
quais não podíamos chegar diretamente.
Ao refletir sobre a estrutura das matemáticas considera-a como uma coleção de ramos, cujo maior deles é o
dos números inteiros ordinários, as frações e os números irracionais, ou o que se chama, coletivamente,
sistema dos números reais. E indica que
Cada ramo tem a mesma estrutura lógica. Iniciam com certos conceitos, tais como o de número
inteiro nas matemáticas dos números e como o ponto, reta e triângulo na geometria euclidiana.
(...) Dos conceitos e dos axiomas se deduzem teoremas. Por conseguinte, desde o ponto de
vista da estrutura, os conceitos, axiomas e teoremas são os componentes essenciais.
KLINE (1992: 537) (grifos nossos)
Kline (1992: 538) considera a noção de número negativo, ainda que sugerida pela necessidade
de distinguir os débitos dos créditos, não provem por completo da experiência, pois a mente teve que
conceber a idéia de um tipo de número, completamente novo, ao qual se aplicaram operações como a de
soma, multiplicação, etc.
Consideramos que Kline (1992) não descarta a experiência e a necessidade, elas existem e são
progressivamente abandonadas à medida que o pensamento matemático avança, ou cresce. Então nos
perguntamos, quais experiências e necessidades poderiam ser refletidas na prática docente do conceito
número negativo, na matemática escolar?
Concordamos também que as idéias mais avançadas são criações puramente mentais e não abstrações da
experiência imediata. (Kline, 1992: 538). Mas acreditamos que a experiência e a necessidade imediata têm
dimensão diferente para a matemática escolar no conceito número inteiro,como indicam Moreira&David,
(2003).
Para D. E. Smith (1958)37, Boyer (1974)38, Aleksandrov&Komolgrov&Laurentiev (1994), Hogben
(1958) Glaeser (1985)39 e Schubring (2000 e 2001)40 existe profunda diferença entre o uso e a
compreensão dos números negativos. Não há indícios de reconhecimento dos números negativos, distinto
de uma simples subtração, ainda que a idéia apareça nos antigos documentos egípcios, babilônicos,
hindus, chineses e gregos. Não podemos dizer que as quantidades negativas eram compreendidas
isoladamente. Todavia as regras, ou leis, dos sinais foram sendo estabelecidas e utilizadas antes de se
conceber o número negativo como uma quantidade isolada.
Crosby (1999) indica alguns elementos que permitiram a mudança de mentalidade, no contexto
social da Europa, do final da Idade Média e durante o Renascimento. Discute sobre a passagem da
percepção qualitativa para a percepção quantitativa, como aquilo que possibilitou o surgimento da ciência
moderna, da tecnologia, da prática comercial e da burocracia. Indica que essa mudança de percepção
alterou não apenas as medições do tempo e do espaço e a técnica matemática, como também a música e a 37 SMITH, David Eugene, 1958. History Of Mathematics, Dover Publications, Inc., New York.. Vol. II. 38 BOYER, Carl. 1974. História da matemática, TRAD. ELZA S. GOMIDE. SP: ED Edgard Blucher Ltda. 39 GLAESER, Georges. 1981. Epistemologia Dos Números Relativos, Trad. Lauro Tinoco, Rj: Revista GEPEM, Nº 17, Pág.127-124. 40 SCHUBRING, Gert. 2001 e 2002. Rupturas no estatuto matemático dos números negativos. Trad. Rosa M. M. Reis. Boletim GEPEM,
nº 37 e 38. Agosto/2000/51-64 e Fevereiro/2001/73-93.
57
pintura, ela foi mais profunda do que se supunha. (Crosby, 1999: 10). Os europeus desse período foram os
iniciadores e também herdeiros de mudanças de mentalidade que vinham sendo acumuladas já havia
séculos. (Crosby, 1999: 12).
Um novo modelo quantitativo começa a substituir o antigo. Copérnico e Galileu, assim como os
artesões, cartógrafos, burocratas, empresários e banqueiros estavam refletindo sobre a realidade em
termos quantitativos, em caráter mais sistemático do que outras sociedades. (Crosby, 1999: 12).
Mas qual foi a natureza da mudança ocorrida naquilo que, em francês, viria a ser chamado de sua
mentalité? (Crosby, 1999: 12). O autor responde a essa questão indicando que
o peso, a dureza e outros que tais não nos parecem ser quantidades de entidades
descontínuas. São estados, e não coleções; e, o que é pior, muitas vezes são mudanças
fluídas. Não podemos contá-los tal como são; temos de vê-los com os olhos da mente, quantificá-los de modo arbitrário, e depois contar as quantidades. Isso é fácil de fazer com
a medida da extensão – por exemplo, esta lança tem tantos pés de comprimento, e podemos
medi-la colocando-a no chão e subdividindo seu comprimento em partes diminutas. Mas,
quanto à dureza, ao calor, à velocidade, à aceleração – de que jeito havemos de quantificá-
los? (Crosby, 1999: 24) (grifos nossos)
O aumento da população, as migrações para novas terras, o surgimento e ampliação de cidades e
do comércio, novas indústrias, novos tipos de pessoas (campesino, nobreza e clero), de máquinas, etc,
foram experiências que modificaram as percepções dos europeus desse período. (Crosby, 1999: 24).
Esse contexto social da Europa influenciou a atividade matemática, e particularmente, a percepção
das grandezas contrárias para o movimento do comércio, expressa pelo método das partidas dobradas.
Conseguiram perceber a diferença entre 30 sacos, ou 30 tonéis ou 30 dinares que saíam ou entravam no
estabelecimento. Para o comércio ficou claro que essa contradição, esses movimentos contrários eram
grandezas que necessitavam ser quantificáveis de modo diferente daquele utilizado para contar as ovelhas
do pastor.
Caraça (1984: 95) coloca a questão inicial para o conceito números inteiros: Certas grandezas, e
daquelas que com maior freqüência aparecem na vida corrente, são susceptíveis de ser tomadas em dois
sentidos opostos. Consideramos que toda grandeza tem dois sentidos, mas essa percepção não é imediata,
só a experiência em determinada atividade é que a torna perceptível.
Lima&Moisés (1998:3) indicam que o número inteiro é um desenvolvimento que ocorre no interior do
campo da idéia de contagem, geradora do número natural. Ao mesmo tempo em que é uma continuidade
deste rompe com a idéia da contagem natural trazendo o pensamento novo: a contagem de quantidades
contrárias.
Para os autores o Universo é uma totalidade essencialmente contraditória e o conjunto Z traz a idéia
numérica dos contrários, adequada para se pensar este universo. Sem sua apreensão permanecemos fora,
cientificamente, deste universo apesar de fisicamente nele vivermos. Consideram como objetivo da
aprendizagem do conceito Número Inteiro a inserção racional no universo contraditório. E como núcleo
fundamental para o trabalho didático para sua apreensão pelos alunos: A idéia numérica para a contagem
dos contrários que compõem o movimento quantitativo. (Ibidem).
Assim, para a apreensão do conceito Número Inteiro são necessários os desenvolvimentos do
pensamento da contradição e de movimento. Sendo necessário identificar e romper com a maneira de
58
pensar característica dos números naturais, a contagem, geradora do pensamento linear. Para essa
contagem é suficiente pensar apenas em um sentido, o das quantidades de unidades. Não há oposição, as
contagens são realizadas apenas num sentido, o da quantidade de unidades. Como pensar essa oposição?
É necessário vê-los com os olhos da mente, quantificá-los de modo arbitrário, e depois contar as
quantidades.
Conclusão
Para o desenvolvimento do conceito número negativo a percepção qualitativa dos sentidos das
grandezas é essencial na matemática escolar. O aspecto dessa percepção qualitativa, os sentidos opostos
indicados por Caraça (1984), possibilita a leitura do mundo constituído por movimentos que são expressões
e manifestações de diferentes necessidades humanas surgidas em diferentes contextos sociais.
Conseqüentemente a criação da linguagem numérica que numeralize estes contrários e expresse sua
operacionalidade podem ser caracterizados como as fronteiras difusas do conceito número inteiro. O núcleo
central deste conceito é o desenvolvimento da leitura de mundo qualitativamente nova que se dá através da
interação com todas as áreas do conhecimento e da cultura.
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59
UMA REFLEXÃO METODOLÓGICA A RESPEITO DA UTILIZAÇÃO DE FONTES IMPRESSAS EM PESQUISAS EM HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
Andréia Dalcin41
Resumo: Várias são as fontes documentais impressas que podem ser utilizadas em pesquisas no campo
da Educação Matemática e particularmente da História da Educação Matemática. Também diversificadas
são as possibilidades de análise de tais fontes tendo em vista a quantidade de referenciais teóricos
existentes mesmo que não tenham sido desenvolvidos especificamente para tais campos de investigação.
O presente artigo tem por propósito discutir as revistas pedagógicas, os livros didáticos e paradidáticos e os
cadernos escolares como documentos que possam vir a constituir-se em fontes que possibilitem novos
olhares sobre a Historiografia da Educação Matemática no Brasil, ampliando as discussões já existentes e
trazendo contribuições novas em termos metodológicos, pois cada objeto gera novas possibilidades de
olhar o passado.
Palavras – Chave: Educação – Matemática – Fontes - Historiografia
Introdução
O reconhecimento da Educação Matemática como um campo de investigação deu-se no início de
século XIX, embora as raízes da Educação Matemática como campo de atividade, se estendam até a
antiguidade. Somente com as mudanças provenientes da problemática relativa ao ensino-aprendizagem
aberta pelos trabalhos de Rousseau, no final do século XVIII em função da nova concepção de infância que
se configurava, que a matemática passa a ser vista como uma disciplina formadora e constituinte do
sistema escolar e a Educação Matemática, por tanto, reconhecida como um campo profissional. A
publicação da revista francesa “ L´enseignement Mathématique” , criada em 1899 pelos matemáticos Henri
Fehr, da Universidade de Genebra e Charles Laisant, da Escola Politécnica de Paris ( Kilpatrick, 1992),
como primeiro periódico específico no campo da Educação Matemática vem auxiliar no processo de
legitimação do novo campo e abre caminho para produção de uma série de textos em vários países ao
longo do século XX. No Brasil, as publicações específicas em Educação Matemática começam a surgir e
ganhar força durante o período do Movimento da Matemática Moderna que gerou, tanto fora quanto em
nosso país, discussões, formações de grupos de estudo, edições de projetos, livros didáticos e revistas.
Segundo LOPES (1989, p.16)
“Tornou-se necessário o estudo e a pesquisa para procurar resolver os graves
problemas do ensino da matemática [...], fazendo surgir, por toda parte, grupos com
tal objetivo e dando origem a um novo ramo do conhecimento: a educação
matemática”.
Nesse sentido, a constituição de um campo de conhecimento autônomo começa a se configurar
quando os seguintes indicadores apontados por MIORIM e MIGUEL (2001, p. 36) podem ser identificados:
41 Doutoranda do curso de Doutorado em Educação, área de Educação Matemática, da Faculdade de Educação da UNICAMP, sob
orientação da profa. Dra. Maria Ângela Miorim. Participante do grupo HIFEM – História e Filosofia da Educação Matemática.
60
• surgimento dos primeiros textos e/ou comentários esparsos específicos acerca de questões
relativas ao campo considerado;
• existência de discussões coletivas, em várias instâncias, acerca de questões relativas ao novo
campo de conhecimento e investigação, que se refletem ou não no surgimento de publicações –
livros, anais de congressos, periódicos , etc. – o que revela não apenas uma preocupação
isolada e individual em relação a essas questões, mas também uma certa difusão, penetração e
preocupação coletiva de um segmento social em relação a elas.;
• aparecimento de sociedades, comissões, comunidades científicas e cursos específicos, tendo
como preocupação o desenvolvimento de investigações e a delimitação desse novo campo do
conhecimento.
É importante frisar que a configuração epistemológica de um campo se altera ao longo do tempo, uma
vez que existe um diálogo entre os diversos campos do saber, e que tais campos são constantemente
ampliados e modificados. Neste sentido a Educação Matemática relaciona-se com outros campos
particularmente o da Psicologia, Pedagogia, História da Matemática e História da Educação.
Nos últimos anos é possível perceber, por meio das produções acadêmicas e anais de congressos
e seminários em Educação Matemática, uma aproximação cada vez maior entre a Educação Matemática, a
História da Matemática entendida como “todo estudo de natureza histórica que investiga, diacrônica ou
sincronicamente, todas as dimensões da atividade matemática na história em todas as práticas sociais que
participam e / ou participaram do processo de produção do conhecimento matemático. [...] A História da
Matemática é mais do que uma história das idéias matemáticas” (MIORIM; MIGUEL, 2002, p. 186) e a
História da Educação.
A produção da História da Educação no Brasil vem mantendo forte interlocução com a historiografia
francesa, particularmente nas formas de conceber a história, a função do historiador e os objetos de
investigação.
“A ênfase nos usos diferenciados que são feitos de objetos ou de modelos culturais
desloca o olhar do historiador da educação dos modelos pedagógicos (tenham eles
o caráter de leis, regulamentos, preceitos, doutrinas ou sistemas pedagógicos) para
as práticas diferenciadas de apropriação deles. È esse deslocamento que faz com
que o historiador da educação deixe de se interrogar sobre a inteligibilidade interna
dos sistemas pedagógicos, deslocando o olhar para a multiplicidade dos
dispositivos materiais em que se inscrevem, como produtos culturais determinados,
e para o uso dos mesmos. È esse novo olhar que sela a morte da velha história da
pedagogia, transferindo o interesse do historiador dos grandes sistemas
pedagógicos para os processos materiais de circulação e apropriação. È assim que
a antiga história das idéias pedagógicas – uma das zonas mais freqüentes pela
produção historiográfica anterior- é reconfigurada, pois perde terreno o interesse
pelos estudo de idéias desencarnadas de materialidade dos dispositivos que as
põem em circulação e das práticas dos agentes que as produzem ou que se
apropriam delas. É assim também que começa a se configurar o campo de uma
história cultural dos saberes pedagógicos, interessada na materialidade dos
processos de produção, circulação , imposição e apropriação desses saberes.
(WARDE & CARVALHO, 2000, p.10 – grifo meu).
61
È bom lembrar que tanto a História da Matemática como História da Educação acabaram por
constituir-se ao longo do século XX como disciplinas escolares e campos autônomos de investigação
acadêmica, ambas tendo sido geradas e desenvolvidas no Brasil no campo da Educação e não da História.
Tendo presente este contexto, das relações entre os campos da História da Matemática, Educação
Matemática e mais recentemente da História da Educação, desenvolve-se o campo da História da
Educação Matemática, o qual nos deteremos neste artigo.
Para MIGUEL & MIORIM ( 2002 )
“A história da Educação Matemática é também aqui concebida como processo ou
atividade, isto é, como um campo de investigação, e não unicamente como produto,
isto é, como um conjunto cumulativo de idéias ou resultados ou ainda como
historiografia. Desse modo, incluímos nesse campo de investigação todo estudo de
natureza histórica que investiga, diacrônica ou sincronicamente, a atividade
matemática na história, exclusivamente em suas manifestações em práticas
pedagógicas de circulação, apropriação e re-significação do conhecimento
matemático e em práticas sociais de investigação em educação matemática.
Poderíamos citar, a título de exemplos, aqueles estudos que investigam: os modos
de constituição e transformação dessa atividade em qualquer época, contexto e
práticas; a constituição de suas comunidades de adeptos e/ou de suas sociedades
científicas; os métodos de produção e validação dos conhecimentos gerados por
essa atividade; os processos de abandono e incorporação de objetos de
investigação por essa atividade; a natureza e os usos sociais dos conhecimentos
produzidos nessa atividade; os produtores de conhecimentos que se envolveram
com essa atividade; as obras nas quais esses conhecimentos foram expostos; as
instituições sociais que promoveram e/ou financiaram essa produção, etc. Desse
modo, a história da Educação Matemática é algo muito mais complexo do que um
mero estudo, no tempo, das idéias educacionais ou doutrinas pedagógicas relativas
à matemática ( 2002, pp. 186-188) .
1. As fontes impressas em pesquisas em História da Educação Matemática
As pesquisas nos diferentes campos mencionados muitas vezes acabam por utilizar fontes
documentais impressas como objetos de investigação. Existe uma grande diversidade de objetos impressos
que podem se constituir em fontes documentais a exemplo dos livros didáticos, revistas pedagógicas,
cadernos escolares, diários de classe, programas de ensino, legislações educacionais, provas, revistas
pedagógicas, livros paradidáticos, jornais, almanaques, ilustrações e fotografias entre outros. Tais objetos
tomados em sua materialidade permitem não apenas a percepção dos conteúdos ensinados em
determinado local e tempo histórico mas, trazem também, possibilidades de conhecimentos das práticas
culturais e escolares que organizavam o cotidiano da vida. A ênfase na materialidade das práticas, dos
objetos e de seus usos produz um novo modo de olhar e interrogar as fontes disponíveis.
Entretanto, a busca e identificação de documentos impressos bem como a transformação destes
objetos em fontes de pesquisa se constitui num grande desafio para o investigador da História da Educação
Matemática. Em partes, devido à dificuldade de acesso aos documentos pela ausência de arquivos
especializados ou mesmo pela não valorização por parte da sociedade em geral e da própria academia por
62
preservar a produção impressa independente da natureza dessa produção; por outro lado em função das
poucas discussões metodológicas realizadas dentro da própria História da Educação Matemática e
Educação Matemática com relação à análise destas fontes. Se o acesso às fontes se torna muitas vezes
difícil ou mesmo inviável por outro lado tão difícil são as formas de restauração, organização e conservação
de acervos que acabam tomando a forma de arquivos pessoais dos pesquisadores não estando portanto,
disponíveis a outros pesquisadores que possam vir a necessitar destes materiais. O sonho de uma
“biblioteca universal” impressa ou virtual ainda permeia o sono dos pesquisadores. Mas, como bem lembra
CHARTIER (1999), é necessário assegurar a indestrutibilidade do texto pelo maior tempo possível tanto por
meio eletrônico como impresso, uma vez que cada um garante a sobrevivência de elementos distintos. O
texto impresso está imerso numa materialidade que origina diferentes práticas de leitura historicamente
construídas e o texto eletrônico abre perspectivas para novas práticas de leitura, no entanto, corre-se o
risco de perder-se a trajetória da produção textual e se destruir os suportes que garantem de certa forma a
preservação das formas sucessivas da cultura escrita.
Apesar das dificuldades no processo de acesso, constituição e análise das fontes impressas, grupos
de pesquisa a exemplo do HIFEM – História Filosofia e Educação Matemática – vinculado ao CEMEPEM _
Centro de Memória, Ensino e Pesquisa filiado a Faculdade de Educação da UNICAMP e o GHEMAT –
Grupo de Pesquisa de História da Educação Matemática, alocado no Programa de Estudos Pós-Graduados
em Educação Matemática da PUC-SP, vêem desenvolvendo projetos que visam entre, outras coisas, a
localização, conservação, organização de fontes documentais.
Dentre a diversidade de fontes impressas que podem ser utilizadas em pesquisas no campo de
História da Educação Matemática, optei por trazer a discussão neste momento as revistas pedagógicas, o
livro didático e o paradidático e os cadernos escolares, tomando-os como objetos na sua materialidade e
enquanto suportes que carregam e legitimam discursos que refletem concepções de matemática, educação
e escola, além de fornecerem indícios sobre as práticas que se formalizam nos seus usos .
1.1. As revistas pedagógicas como fontes As revistas pedagógicas são impressos destinados a professores e ou pesquisadores em
Educação ou uma área específica da Educação, no nosso caso professores de matemática e
pesquisadores em Educação Matemática. Tais revistas são importantes objetos de investigação na medida
em que expressam as diferentes concepções pedagógicas que permeiam uma época ou período; auxiliam
na compreensão dos processos de divulgação e apropriação das idéias pedagógicas; resgatam iniciativas
locais, institucionais e socioprofissionais e “auxiliam na compreensão da distância que fica entre os textos e
as práticas escolares, entre os discursos que propõem a formação ideal e as realidades existentes às
injunções instituições” (CATANI & SOUZA, 2001) e, de certa forma, orientam as práticas pedagógicas dos
professores.
Numa primeira análise é possível identificar alguns tipos de produção de revistas pedagógicas:
• aquelas que estão vinculadas a algum órgão governamental produzidas dentro de uma
perspectiva política definida como caso da revista Informe-Sé uma publicação da
Coordenadoria de Educação da Subprefeitura Sé Secretaria Municipal de Educação da
Prefeitura de São Paulo
• aquelas produzidas por instituições de ensino públicas ou privadas que visam a divulgação de
métodos e sistemas a exemplo da revista Dois Pontos do sistema Pitágoras de ensino.
63
• aquelas que são produto de sociedades científicas e que são voltadas para professores
pesquisadores ou apenas pesquisadores a exemplo da Educação Matemática em Revista
mantida pela SBEM – Sociedade Brasileira de Educação Matemática.
• .encontramos também algumas editoras que dentro de uma perspectiva mercadológica investem
na produção e distribuição de revistas. Como exemplo a Nova Escola e Presença Pedagógica.
Neste sentido, considerando-se a intencionalidade, ciclo de vida e discurso pedagógico de uma
revista, algumas possíveis categorias de análise em relação ao objeto “revista pedagógica“ seriam: origem
da publicação; público alvo; autores dos artigos; predominância de temáticas; colaboradores; concepções
pedagógicas; periodicidade, anos de duração.Outro pressuposto metodológico seria a análise a partir da
materialidade da revista considerando que:
“Tomar o impresso em sua materialidade implica tratá-lo como objeto cultural que,
constitutivamente, guarda as marcas de sua produção e de seus usos. No caso dos
impressos de destinação pedagógico-escolar, trata-se , em primeiro lugar, de
analisá-lo da perspectiva de sua produção e distribuição, como produto de
estratégias pedagógicas e editoriais determinadas “ ( BICCAS; CARVALHO, 2000,
p. 63).
Nesta perspectivas algumas categorias que poderiam ser consideradas seriam: formato da revista;
tipo de papel; número de páginas; se possui e tipo de ilustrações; análise da contracapa, diagramação,
quantidade de edições; tipo de divulgação e mecanismos de circulação.
Mais especificamente no campo da Educação Matemática no Brasil identificamos a existência das
seguintes revistas pedagógicas destinadas a professores e ou pesquisadores da área.
Ainda no século XX surgem as revistas Método da Atual Editora (1977); Educação & Realidade
(1978), Revista do Professor de Matemática (1982); Cadernos CEM (1987-1992); Bolema (1986);
Zetètike(1993) e mais recentemente Temas e Debates ( SBEM -Nacional); Educação Matemática em
Revista (SBEM- Nacional) e Revista de Educação Matemática ( SBEM – SP). Tais publicações são
importantes, pois, juntamente com a criação de sociedades, organização de encontros regulares,
congressos e seminários legitimam a constituição de um novo campo. Neste sentido,
“A vantagem de uma publicação regular é que ela proporciona uma divulgação
rápida e garantida dos resultados de um grande número de pesquisas que, se
tomadas separadamente, não teriam grande significação, mas que ao se
concatenarem umas com as outras minuciosas observações sobre as quase se
alicerçam os grandes avanços científicos. Ao mesmo tempo, a própria existência de
uma revista implica um certo grau de sociabilidade entre os que a assinam. O
carimbo de aprovação de uma nova disciplina é o aparecimento de uma revista
especialmente dedicada aos interesses dos seus expoentes. Ela representa uma to
de solidariedade e confraternidade e polariza o assunto (ZIMAN, 1979, p.122 apud
MIORIM ; MIGUEL, 2001, p.36)
No que diz respeito a História da Educação Matemática e História da Matemática, em 2001, a
Sociedade Brasileira de Matemática iniciou a publicação das revistas: Revista Brasileira de História da
Matemática e História & Educação Matemática que continuam sendo produzidas com uma certa
regularidade.
64
Recentemente temos acompanhado a criação de revistas eletrônicas tais como a produzida na
UFRGS e as produções da UFSC:
*EDUMATEC – Educação Matemática e Tecnologia Informática - www.edumatec.mat.ufrgs.br ;
*REPPEMAT - Revista Eletrônica de Pequenas Publicações em Educação Matemática
www.redemat.mtm.ufsc.br/reppemed.htm ;
* REREMAT - Revista Eletrônica de Republicação em Educação Matemática
http://www.redemat.mtm.ufsc.br/reppemat.htm;
*REVEMAT - Revista Eletrônica de Educação Matemática http://www.redemat.mtm.ufsc.br/revemat.htm ;
Tais revistas abrem novas possibilidades de relação entre o texto, agora virtual, o leitor, as práticas
de leitura e a questão da autoria isto porque “com a tela , substituta do códex, a transformação é mais
radical, pois são os modos de organização, de estruturação,de consulta ao suporte do escrito que se
modificaram. Uma tal revolução exige, pois, outros termos de comparação” ( CHARTIER, 1999, p. 98)
Considerando-se os elementos aqui apontados, evidencia-se a importância de estudos que
considerem como fontes as revistas pedagógicas tão pouco utilizadas até o momento. Na verdade, temos
uma gama considerável de documentos, alguns catalogados, outros tantos extraviados ou esquecidos nas
estantes particulares, praticamente desconhecidos por boa parcela dos pesquisadores em História da
Educação Matemática. Além disso, quantas outras revistas poderão ter sido produzidas ou que ainda
circulam seja por meio impresso ou eletrônico elaboradas por professores e ou instituições no interior do
Brasil das quais não tomamos conhecimento?
1.2. O livro didático e o paradidático como fonte O livro didático, por motivos vários e muitos deles conhecidos e que não pretendemos enfocar no
momento, ainda se constitue para muitos professores espalhados pelo Brasil como o único recurso
pedagógico a que têm acesso. Este fato já justificaria um olhar mais atento sobre este tipo de produção do
ponto de vista pedagógico e não apenas temático. Existe um número razoável de pesquisas em Educação
Matemática e mais recentemente vem se ampliando na História da Educação Matemática, que utilizam os
livros didáticos como objeto. No entanto, boa parte destas pesquisas acabam por enfocar suas
investigações ou na análise nos discursos presentes ou na busca pelo modo como os conteúdos
matemáticos estão sendo apresentados. Poucas pesquisas, no processo de análise do livro didático
consideram de forma significativa sua materialidade, como já foi apontado anteriormente com relação às
revistas pedagógicas. Acredito que a consideração destes novos elementos frutos de uma análise mais
específica dos modos de produções, circulação e apropriação do livro didático ampliariam as discussões
auxiliariam no processo de compreensão dos fatos históricos, das idéias e das diferentes práticas de
cálculos, ensino e legitimação destas práticas que foram sendo construídas ao longo do tempo pelas
diferentes culturas.
No entanto, MACIEL & FRADE ( 2003 ) alertam que:
“Esses elementos também indicam que, metodologicamente, o estudo específico
desse material deve ser relacionado a outros documentos e práticas, sob pena de
se realizarem análises superficiais ou ingênuas. Assim é preciso também verificar
programas de ensino, instruções, debates publicados, cadernos, outros materiais
destinados ao público no período, mesmo aqueles de circulação externa à escola,
65
para compreender outras motivações políticas, econômicas, pedagógicas,
religiosas, entre outras, que determinaram a sua produção” (MACIEL; FRADE,
2003, p. 29).
Os livros didáticos num contexto global são depositários de um conteúdo, entretanto, são também
indissociáveis do seu emprego pelos usuários, professor e aluno. Nesta perspectiva torna-se interessante o
estudo de como professor e alunos se apropriam de tal objeto e dos conteúdos por ele veiculados.
CHOPPIN (2004) destaca que os livros didáticos assumem múltiplas funções e aponta quatro que
considera como essenciais; função referencial; instrumental; ideológica e cultural e documental. Função referencial no sentido de divulgar e “ser fiel a tradução do programa”, orientando a prática do professor e
dos alunos a partir de determinadas regras, técnicas, habilidades e conhecimentos que um grupo social
acredita que seja necessário transmitir “as novas gerações. Função instrumental uma vez que põe em
prática métodos de aprendizagem, propõem exercícios e atividades que visam facilitar a memorização dos
conteúdos, favorecer a aquisição de competências e métodos de análise e resolução de problemas.
Função ideológica ou cultural na medida em que o livro didático se “ configurou como um dos vetores
essenciais da língua, da cultura e dos valores das classes dirigentes” ( p. 553). Influência que pode ser
exercida de forma explícita ou dissimulada mas igualmente sistemática e ostensiva. Por fim, a função instrumental, que surgiu muito recentemente na literatura escolar e configura-se na crença de que o livro
didático pode fornecer, sem que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos, textuais ou icônicos,
cujas observações ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno.
CHOPPIN (2004) alerta também para o problema de “definição” que atormenta o pesquisador em
história e apresenta três gêneros de literatura escolar que se situam no cruzamento do processo educativo.
“de início, a literatura religiosa de onde se origina a literatura escolar, da qual são
exemplos, no Ocidente Cristão, os livros escolares laicos por ‘perguntas e
respostas’, que retomam o método e a estrutura familiar aos catecismos; em
seguida, a literatura didática, técnica ou profissional que se apossou
progressivamente da instituição escolar, em épocas variadas – entre os anos 1760
e 1830, na Europa - , de acordo com o lugar e o tipo de ensino; enfim, a literatura de
‘lazer’, tanto a de caráter moral quanto a de recreação ou de vulgarização, que
inicialmente se manteve separada do universo escolar , mas à qual os livros
didáticos mais recentes e em vários países incorporam seu dinamismo e
características essenciais * CHPPIN, 2004, p. 552).
Da junção desta vertente de literatura escolar mais recente com interesses mercadológicos claros,
conforme investigado por DALCIN (2002), surgem os livros paradidáticos que embora com características
distintas dos livros didáticos de matemática também se constituem em fontes impressas interessantes de
análise tanto como um gênero de discurso secundário42 dentro da perspectiva baktiniana como na sua
materialidade, enquanto objeto físico, com todos os elementos já apontados.
Tanto os livros didáticos como os paradidáticos, dentre outras obras impressas, possuem
peculiaridades em sua produção, circulação e uso, entre elas a da autoria, por meio da qual “é possível ver
a distinção entre o trabalho de escrever um texto e o de fabricar um livro” (BITTENCOURT, 2004, p. 477) .
42 “Os gêneros de discurso, segundo Baktin, podem ser classificados em primários e secundários. São considerados primários (
simples) aqueles discursos que se caracterizam pela oralidade e por se constituírem em enunciados normalmente verbais e espontâneos. Os gêneros secundários, por outro lado, seriam os discursos produzidos em situações de comunicação cultural mais complexa, e expressos principalmente por meio da escrita” ( DALCIN, 2002, p. 55).
66
Existe um crescente interesse por parte das editoras nacionais e estrangeiras na produção de tais
obras, principalmente os didáticos, em função do retorno financeiro que, no Brasil principalmente, é
considerável devido ao grande número de alunos e um mercado assegurado pelo Estado, principal
comprador deste tipo de “mercadoria”, forma como os livros didáticos e paradidáticos vem sendo tratados.
O crescente mercado, investimentos tecnológicos e o empenho na agilidade de produções, que
acaba por criar padrões para os livros didáticos, acabam por favorecer um novo processo de autoria, onde a
figura do autor fica diluída uma vez que é comum a compra de textos de vários escritores que se integram
em um processo de adaptação nas mãos de um técnico em editoração e diagramação. Neste sentido, o
editor passa a ser também um co-autor da obra. Neste contexto, as relações entre autor e editor acabam
por tornar-se tensas e conflituosas o que acaba criando no pesquisador, que toma os livros didáticos e
paradidáticos como objeto ou fonte, a necessidade de realizar leituras atentas em catálogos de editoras,
contratos ou correspondências entre editores e autores; analisar prefácios, prólogos, advertências,
introduções dos livros de modo a perceber os possíveis diálogos travados entre autor, editor e leitores.
Apesar de todo o preconceito que acompanhou o livro didático e seus autores no Brasil ao longo
dos séculos XIX e XX muitos autores que assumiam cargos influentes e pessoas de prestigio escreveram
livros didáticos a exemplo de Omar Catunda (1906 - 1986) , professor, matemático, cientista e ativista
político; Júlio Cesar de Mello e Souza, mais conhecido como Malba Tahan, professor do colégio Pedro II e
autor de livros didáticos, de didática da Matemática e ficção ( 1895 - 1974 ) e Euclides Roxo (1890- 1950)
professor e diretor do colégio Pedro II e principal responsável pela proposta modernizadora de ensino de
matemática, assessor dos ministros Francisco Campos e Gustavo Capanema.
Tais autores possuíam estreita relação com o poder institucional e ocupavam espaços de influência
no cenário das políticas educacionais. Resgatar a trajetória destes e tantos outros autores de livros
didáticos e paradidáticos de matemática bem como de suas obras, constitui-se num desafio para os
historiadores da História da Educação Matemática. A trajetória de produção dos primeiros autores
brasileiros permite constatar as especificidades do livro didático e analisar a complexa teia de interferências
a que o livro foi e é submetido, bem como, possibilita a configuração de uma produção nacional que ainda
está sendo construída.
1.3. Cadernos escolares como fontes Os cadernos escolares ou fichários constituem-se entre outras coisas como em ricas fontes de
informações sobre a sala de aula, o conhecimento que o professor tem do conteúdo e as formas de
conduzir o ensino e a aprendizagem dos alunos.
Anne Marie Chartier (2002) apresenta os cadernos escolares como suportes onde dispositivos de
“recuperação” e “controle” se configuram por meio das práticas escolares nele expressas. Os dispositivos
seriam, nesta perspectiva as lições de leitura, os exercícios de cálculo... bem como as ações escondidas
por trás destas atividades escolares. De certa forma por meio dos cadernos escolares se busca
compreender como se dá as relações entre “ os atores ( professor e profissionais contratados), saberes ( as
disciplinas escolares), instituição ( primária e secundária), já que os alunos, escrevendo segundo os seus
“hábitus” da classe, isto é, sob a injunção dos professores, construíram empiricamente estas relações” (
CHARTIER, 2002, p. 26).
Os cadernos escolares, entretanto, não podem ser considerados um retrato fiel da realidade, mas
sim, um ponto de vista, na medida em que não são registrados os diálogos orais mantidos entre os
67
participantes do cenário escolar, além disso, dificilmente conseguem retratar a diversidade do cotidiano,
sendo apenas um extrato dele. Por sua vez, a observação e análise dos comentários pessoais dos alunos,
os desenhos que muitos têm por costume fazer, bem como, os modos como os cadernos e fichários são
manuseados e organizados pelos alunos, podem constituir-se em elementos esclarecedores que auxiliam
na compreensão dos meios pelos quais os alunos reagem, aceitam ou subvertem os dispositivos de
controle.
Segundo Anne Marie Chartier em aula ministrada no dia 16 de junho de 2005, na Disciplina “História
da Educação: arquivos e Fontes” de responsabilidade das professoras, Dra. Diana Gonçalves Vidal e Dra.
Maurilane de Souza Biccas, na sala 10 da Faculdade de Educação da USP, a partir das pesquisas
realizadas na França com cadernos de alunos de escolas primárias, o modo como os cadernos escolares
são organizados atualmente, a separação por disciplinas e das disciplinas em áreas43, foi uma “ invenção“
dos professores não imposta mas incorporada às práticas escolares não se sabe ao certo em que momento
específico da história ou por quem, mas o fato é que mudanças como esta acontecem e nem sempre tem-
se o registro ou olhar atento para elas. Existem algumas hipóteses sendo que a mais provável teria sido a
preocupação por parte dos professores primários para com o ensino secundário que começariam desde
cedo a prepará-los para esta concepção de conhecimento mais compartimentalizado. Anne Marie alerta
também para a associação que muitos professores fazem entre organização dos cadernos e organização
cognitiva dos alunos, embora não explore tal afirmação. Em suma, sua fala acena para a preocupação em
investir-se em pesquisas que não se detenham somente na análise dos conteúdos em si, mas no estudo
das práticas que se alteram ou permanecem ao longo do tempo e entre os diferentes países, bem como na
investigação dos modos de produção do suporte ‘caderno escolar’ uma vez que á sabido que a mudança do
suporte altera as relações de leitura e manuseio do objeto.
No texto Um dispositivo sem autor cadernos e fichários na escola primária, Anne-Marie Chartier,
contribui numa perspectiva metodológica de trabalho com cadernos escolares quando comenta a utilização
do “caderno rodízio” que fora utilizado em suas pesquisas na França.
“ foi proposto aos professores um procedimento posto em prática no fim do século
XIX por alguns inspetores. Em vez de escrever em seu próprio caderno, uma
criança a cada dia diferente registra todas as suas produções em num “caderno de
rodízio”, no qual elas serão normalmente corrigidas. Um só caderno permite, assim,
consultar todas as atividades que, ordenadas cronologicamente, deixariam um traço
escrito. Um observador exterior pode aí ler, num relance, os rituais diários de
escrita, o desenvolvimento semanal, as progressões e no decorrer do ano, as
correções do professor. Ele pode também ver no caderno os desempenhos gráficos
de cada criança e ter indícios acerca das suas diferenças” ( CHARTIER, 2002, p.
17)
Por fim, a utilização de cadernos escolares como objetos ou fontes em pesquisas em Educação
Matemática e História da educação Matemática ainda é pouca, mas as pesquisas já realizadas apontam
aspectos interessantes, principalmente enquanto meios para o exercício de reflexão sobre a prática
pedagógica, como relata TANCREDI (2001).
43 No caso o caderno de matemática separa-se geometria e aritmética sendo esta última subdividida em “operações” e “ problemas”.
68
“ Para formação permanente de professores, aprendemos que os cadernos podem
ser usados , para que elas reflitam sobre a própria prática pedagógica e para que
possam, observando e compreendendo o motivo dos erros dos alunos e os registros
encontrados, elaborar propostas de recuperação de aprendizagem de determinados
assuntos” ( TANCREDI, 2001, p. 32)
Considerações Finais Tanto as revistas pedagógicas, livros didáticos e paradidáticos como os cadernos escolares
constituem-se em fontes com potencial inesgotável e, de certa forma, ainda pouco explorado em Educação
Matemática e História da Educação Matemática. Nesse sentido, uma necessidade que se apresenta é a de
desenvolvermos uma cultura de arquivos seja na conservação como na organização de documentos
históricos particularmente os escolares no sentido de manter-se viva a memória e os registros dos fatos
narrados a partir de diferentes personagens, posições e percepções dos acontecimentos.
Acredito que tais documentos possam vir a constituir-se em fontes que possibilitem novos olhares
sobre a Historiografia da Educação Matemática no Brasil, ampliando as discussões já existentes e trazendo
contribuições novas em termos metodológicos, pois cada objeto gera novas possibilidades de olhar o
passado. O historiador nunca sai o mesmo após o embate com os arquivos.
Neste sentido é importante lembrar que o olhar do passado sempre se constrói a partir do presente
que cria condições de inteligibilidade do passado.
“ Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo
desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem,
desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente”
(CERTEAU, 2002, p .57).
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69
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70
História Escolar no Interior do Estado de São Paulo, (re)visitando o passado.
Ronaldo Marcos MARTINS ([email protected])
Pós-Graduação em Educação Matemática (PGEM) – UNESP – Rio Claro
Comunicação Oral
A presente comunicação oral é recorte de pesquisa de Doutorado – em andamento junto ao Programa de
Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP, campus de Rio Claro – desenvolvida sob orientação
do Prof. Dr. Antonio Vicente Marafioti Garnica ([email protected]) e inserida no Grupo de Pesquisa de
História Oral e Educação Matemática (www.ghoem.com). A referida pesquisa tem como objetivo traçar um
panorama das décadas de 1920, 1930 e 1940, na região centro-oeste do Estado de São Paulo, a partir da
cidade de Jaú, focando diferentes aspectos da sociedade, principalmente aqueles referentes à educação.
Para tanto, pretendemos a partir do método da história oral, recolhendo depoimentos configurar essa
paissagem. Segundo a literatura, essa é uma época rica em acontecimentos em todos os âmbitos (político,
social, econômico e educacional) e, pode, segundo julgamos, fornecer elementos importantes para
compreensão/análise/superação de nossas dificuldades atuais, estejam elas no campo específico da
Educação Matemática ou no da Educação. Defendemos a necessidade de tirar o foco das discussões sobre
a formação de professores daqueles estudos que expõem, ou se valem, de uma visão que parte do “centro”
– de pontos hegemonicamente constituídos. É preciso levar essa discussão a um outro pólo possível,
aquele em que a visão parta da “periferia” ou de centros não hegemônicos. Pretendemos, ainda, tematizar o
uso do Diário de Campo – muito utilizado, mas pouco discutido e parcamente fundamentado – como mais
um recurso de coleta de dados, inserido no campo da pesquisa qualitativa e intimamente ligado ao nosso
método, a História Oral. Palavras-Chave: Educação Matemática, História Oral, Método.
Palavras-Chave: Educação Matemática, História Oral, História.
As décadas de 1920, 1930 e 1940 representam, segundo pesquisas (cf. Romanelli, 1978; Silva,
2003; Schwartzman, Bomeny, Costa, 2000; Saviani, et al., 2004, entre outras)44, um período ímpar no que
se refere a nossa atual sociedade, não apenas no âmbito de uma micro estrutura, mas também, de uma
macro estrutura, isto é, não apenas nacionalmente, mas também mundialmente. Na década de 1920 Jean
Piaget surge para o mundo, nasce a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (U.R.S.S.), Mussolini
aparece no cenário italiano; nos anos 30 e 40, Piaget publica novas obras e as consolida, Freinet inaugura
sua escola – depois de tentar implantar seu sistema em toda França – e juntamente com outros
educadores, inclusive a italiana Maria Montessori, é preso após o início da II Guerra Mundial, que teve como
um dos estopins a expansão alemã iniciada por Hitler.
Em âmbito nacional, é fundada a primeira industria siderúrgica, surgem os partidos Comunista e
Fascista Brasileiros, realiza-se a Semana de Arte Moderna, o Movimento Tenentista, a Coluna Prestes,
Washington Luiz promulga a Lei Celerada – que permitia a repressão a atividades políticas e sindicais –, a
crise financeira internacional abala a economia cafeeira no Brasil, surge a Aliança Liberal em contraposição
à política do Café com Leite de mineiros e paulistas, acontece a Revolução de 30, que culmina com a posse
do gaúcho Getúlio Vargas. Getúlio assume o Governo Provisório e governa até 1934 sem seguir a 44 É relevante destacar que grande parte dos trabalhos sobre a história da educação no Brasil guiavam-se (guiam-se) pelos vieses ou econômico ou político, critérios que segundo Saviani (2004) são externos ao objeto focado. Atualmente há uma iniciativa de se focar os aspectos internos do processo educativo.
71
Constituição. Em 1932 tem início a Revolução Constitucionalista em contraposição ao governo provisório.
Nova Constituição é aprovada, entre suas mudanças instituí-se o salário mínimo, o Conselho Federal de
Educação etc.
Não obstante a aligeirada incursão histórica, fica evidente que essas décadas desempenham
fundamental papel em nosso modo de vida atual e diríamos mais, todo esse período foi determinante para
história do Mundo.
Assim, olhar para ele se mostra pertinente, uma vez que uma nova perspectiva se colocará em cena
para o debate. E, ainda, no que tange às pesquisas desenvolvidas no campo da Educação Matemática, o
estudo se mostra pertinente não apenas pelo fato de estar inserido dentro de um grupo de pesquisa, mas,
sobretudo, pela possibilidade de dar voz àquelas experiências do interior do Estado de São Paulo que,
segundo julgamos, não vem sendo o foco de estudos que versam sobre o mesmo tema e período45.
Assim, a proposta de realizar um estudo que tenha como foco constituir um panorama das décadas
de 1920, 1930 e 1940, na região centro-oeste do estado de São Paulo, a partir da cidade de Jaú46, nosso
cenário, focando diferentes aspectos, principalmente aqueles referentes à educação, mostra-se oportuno. É
necessário nos situarmos nesse momento histórico – em suas diferentes perspectivas – a fim de que
possamos vislumbrar aspectos sobre a formação de professores e, a partir disso, tecer considerações
relacionadas com nosso campo, a Educação Matemática.
Não obstante as diferentes possibilidades de apreensão desse contexto, as falas de alguns atores
que vivenciaram esse período foram nossa principal fonte de dados47, e foram coletadas através do método
da História Oral Temática, que, segundo julgamos, é mais um método imerso no universo da pesquisa
qualitativa.
“O método da História Oral possibilita o registro de reminiscências das memórias individuais; enfim, a reinterpretarão do passado, pois segundo Walter Benjamin, qualquer um de nós é uma personagem histórica. /…/ Nosso passado é nossa memória, diz Borges” (Prefácio do livro A Voz do Passado – História Oral, de Paul Thompson).
E Garnica (2004) ainda diria que ao invés de História Oral,
“Melhor seria dizermos: a História (re)constituída a partir da oralidade, numa clara complementação (alguns prefeririam, aqui, “oposição”) àquela concepção de História pautada somente em documentos escritos ou, mais radicalmente, em fontes primárias” (p. 1).
O método da História Oral Temática permite uma abordagem tendo em vista um tema específico.
Na presente investigação, por exemplo, os depoentes foram inquiridos sobre suas vivências em sala de
aula, como alunos ou como professores, tendo como pano de fundo as décadas de 1920, 1930 e 1940, seu
modo de vida, suas brincadeiras, seus costumes etc. Traz ainda a possibilidade de vinculação com
pressupostos já documentados – em arquivos, na literatura –, por isso, a constituição de uma nova versão
dos fatos é possível.
Paul Thompson envolveu-se com esse método na década de 1960, quando ao focar um período
então recente da história social inglesa, vislumbrou a importância das pessoas como testemunhas do
45 Podemos perceber em Baraldi (2003), quando da apresentação das entrevistas de seus depoentes, que a maioria dos professores que se formavam nas décadas de 1960 e 1970 – foco de sua investigação – e, portanto, cursaram a escola nas décadas anteriores, como alunos, tinham muita dificuldade para estudar. Muitos deles não estudavam na cidade onde residiam e/ou, tinham que se mudar para fazê-lo; os filhos das famílias com mais recursos, muitas vezes, cursavam o ginásio ou o colegial nos grandes centros, como Campinas ou São Paulo. Nessa época, grande parte das cidades da região oferecia o ensino primário, realizado nos Grupos Escolares. Para a continuidade dos estudos, muitos alunos procuravam as cidades de Bauru e Jaú. 46Por agora, podemos apenas afirmar qual será nosso ponto de partida, uma vez que nossa região de investigação só será constituída a partir das representações que possuem historicidade, portanto, é a partir de nossos depoimentos que a “região” se configurará. 47 Ratificamos: principal, não única.
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passado, uma vez que os documentos presentes em arquivos e mesmo na literatura não eram suficientes.
Percebeu que a entrevista – utilizada nos moldes da sociologia, sua área de formação – poderia trazer à luz
a memória das pessoas anônimas. “A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a
evidência dos fatos coletivos” (Thompson, 1998:18).
Assim, imersos nesse contexto, em situação de entrevista, recolhemos depoimentos – através de
equipamento adequado48 – de pessoas nascidas nos anos de 1913, 1915, 1916, 1917, 1918, 1919, 1920,
1922, 1924, 1925 e 1928 que residem na região de Jaú. Em geral, nosso método estabelece o critério de
rede para seleção dos depoentes, que consiste em solicitar a cada depoente indicação de novas pessoas. A
partir das indicações de pessoas que residem me Jaú há muito tempo, formou-se nossa rede, configurou-se
nosso grupo de investigação.
Configurado o grupo, iniciamos nossa pré-entrevista (1º Momento). Nessa situação, o pesquisador
explicita suas intenções e procura deixar o possível depoente à vontade para participar ou não da pesquisa.
Caso a resposta seja afirmativa, a entrevista é marcada. No momento da entrevista (2º Momento), com um
roteiro pré-determinado (elaborado a partir de leituras iniciais sobre o tema investigado e/ou percepções
iniciais sobre a época focada), passa-se ao registro dos depoimentos. Em um 3º Momento, a pós-entrevista,
negocia-se com o depoente as adequações que serão necessárias em seu depoimento oral, para que se
configure como um depoimento escrito. Essa última etapa, a mais longa, consiste em transcrever o
depoimento (tal como foi recolhido) e depois textualizá-lo (processo em que o pesquisador exclui os vícios
de linguagem e, muitas vezes, reorganiza o texto de modo cronológico). Após essas etapas, devolve o
relato ao depoente que o valida (com alterações ou não), fornecendo ao pesquisador uma carta de
autorização para uso, o que denominamos de Carta de Cessão.
Segundo Olga Von Sinsom49, em palestra realizada em novembro de 2004 ao Grupo de Pesquisa
de História Oral e Educação Matemática (Ghoem),
“o essencial é que envolvamos nossos depoentes com a pesquisa. A opção pela Carta de Cessão – registrada ou não em cartório – não é fundamental, mas sim o envolvimento e comprometimento do depoente e, mais ainda, do pesquisador em fazê-lo participar. Sem dúvida ao investir nessa relação entrevistador-entrevistado, as formalidades ficam em segundo plano, fato que não descaracteriza, a priori, um procedimento mais formal como o defendido por alguns pesquisadores”.
Não obstante às colocações de Sinsom, adotamos a Carta de Cessão como um recurso para validar
o uso de nossos depoimentos. Assim, a textualização apresentada – nossa versão final – será aquela
autorizada pelo depoente.
Depois dessas etapas, constitui-se uma versão sobre os acontecimentos da época focada – postos
a luz por meio da voz de múltiplos e diferentes
atores –, isto é, constitui-se um documento que, segundo alguns pesquisadores, caracteriza o término do
processo de investigação, haja vista conceberem que o método da História Oral consiste na constituição de
documentos. A perspectiva sobre a qual desenvolvemos a presente investigação, ao contrário, concebe a
constituição do documento como mais uma etapa de nosso processo de pesquisa que ainda trará à luz
tendências oriundas da análise desse documento – análise que se pauta em diferentes perspectivas (os
48 Foram utilizados os seguintes equipamentos: Gravador Microcassete, Gravador MD e Gravador Digital (em algumas entrevistas mais de um equipamento foi utilizado). Após o termino da entrevista, os depoimentos foram arquivados em MP3 usando de software adequado. 49 Professora da Faculdade de Educação da UNICAMP, Coordenadora do Centro de Memória da UNICAMP e membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de História Oral (ABHO).
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relatos orais, os documentos, a literatura etc.), inclusive de nossa concepção de pesquisa, de história oral,
de história50 e de mundo.
Baseado em alguns depoimentos recolhidos, algumas compreensões preliminares são
apresentadas. Percebemos que havia grande dificuldade para se estudar na região. Em geral terminavam o
“grupo” (Grupo Escolar – 1º ao 4º ano), mas apenas aqueles que tinham posses – ou que por meio de
algum acordo, conseguiam bolsa de estudos – continuavam os estudos. Retratam que havia muita rigidez
no cumprimento dos deveres, dos horários, das solenidades cívicas, no uso da vestimenta e, também, no
contato entre as moças e os rapazes. No início os meninos e as meninas não podiam estudar no mesmo
colégio. Havia aqueles só para as moças e aqueles só para os rapazes. Poucos eram os colégios nos quais
se podiam misturar as turmas, as chamadas classes ou escolas mistas – um exemplo recorrente nas falas
foi a Academia de Comércio Horácio Berlinck51 e a Escola Industrial52. Alguns disseram que certos
professores até exageravam nessa rigidez, mas afirmam, em seguida, que era melhor do que o que
acontece hoje em dia, quando não mais se respeita o professor.
Lembram-se de seus colegas de turma e, também, de seus professores. Como não havia
bibliotecas e, muitas vezes, os professores não adotavam livros, reclamam que copiavam muitos pontos
(matérias), que eram ditadas pelos professores. Encontravam-se após a aula para que um completasse a
lição do outro, por conta de não terem conseguido acompanhar o ditado. Segundo um dos depoimentos, a
exigência era tão grande que estudava com os pés dentro de bacias, com água gelada, para que não
pegasse no sono durante os estudos.
Esses depoentes estudaram na cidade de Jaú e não em Escolas isoladas, instituições usuais da
época. Alguns aprendiam as primeiras letras em casa, com os pais ou empregados.
A maioria iniciou os estudos perto dos nove anos – fato comum segundo retratam –, cursavam o
Grupo Escolar (primário) até o 4º ano, depois faziam um ano de preparatório – alguns com tutores
(professores particulares) outros em escolas nas quais este era oferecido – e, em seguida, ingressavam no
Ginásio (com duração de cinco anos), mediante um exame de admissão. Ao terminar o Ginásio, alguns
faziam mais uma complementação (de um a dois anos) e prestavam um exame para o ingresso no curso
Normal, que tinha duração de quatro anos e formava professores. Recordam que, anos mais tarde,
surgiram os cursos científico e clássico, mas não os vivenciaram como alunos. O curso Normal era
oferecido em colégios particulares, os mais citados são o Colégio São José, dirigido por freiras, e o Colégio
São Norberto, sob direção de padres.
Os depoentes se mostram um pouco reservados no que diz respeito às relações familiares, contudo
retratam sua origem e a condição financeira dos pais, sem constrangimentos. Alguns descendem de
imigrantes, sejam italianos, portugueses, espanhóis ou mesmo de outras regiões do país, como a Bahia.
Aqueles cujos pais não eram fazendeiros, tinham os pais trabalhando em profissões como comércio ou
servindo à ferrovia. Davam muito valor ao aprendizado de um ofício (profissão) e contam que quem
continuava os estudos depois do primário, especificamente as moças, era porque “não conseguiram se
casar”53.
50 A opção pelo método já explicita certas concepções de mundo. Adotar o método da História Oral explicita uma certa concepção de história, mas julgamos necessário que ela esteja explicita. Segundo Thompson, a prática da História Oral conduzirá às questões mais profundas a respeito da natureza da história. 51 Escola Técnica de Contabilidade em atuação até hoje, situada na cidade de Jaú. 52 Fundada em 1928, a Escola Industrial “Joaquim Ferreira do Amaral”, destinava-se a dar orientação profissional a alunos que não podiam freqüentar as escolas particulares da época. 53 Frases ou orações entre aspas são de autoria dos depoentes.
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Dos depoimentos de que até aqui fizemos uso, apenas um não concluiu o primário – fato atribuído
às constantes mudanças de seus pais de uma região para outra, o que impossibilitava a continuidade dos
estudos e, ainda, a falta de incentivo por parte da família, uma vez que “o pouco que sabiam já bastava”.
Dos restantes, alguns tornaram-se professores, um tornou-se músico e comerciante, outro sindicalista.
Tanto o músico quanto o sindicalista, retratam que havia muitas concessões àqueles que tinham
contato com pessoas influentes da cidade. Esse fato é referendado na fala dos que se formaram no curso
Normal, como professores, uma vez que conseguiam estar mais próximos de seus familiares por meio
desses acordos.
Ao terminar o curso Normal, aqueles professores que não tinham nenhum contato nas cidades,
iniciavam estágios nas escolas das fazendas, com o objetivo de acumular pontos. No final de cada ano,
entravam em concurso, realizado na capital – São Paulo – e iam dar aula em Escolas Isoladas (em geral
localizadas em fazendas ou pequenas vilas, distantes da cidade). Ficavam de dois a três anos nessas
escolas e, depois de novo concurso, buscavam escolas mais próximas à cidade de origem. Porém, como a
demanda era grande, nem sempre conseguiam. Depois de lecionar em várias cidades da região,
conseguiam cadeira nos Grupos Escolares. Os principais citados por nossos depoentes são os Grupos
Escolares de Jaú – Pádua Salles, Major Prado, Domingos de Magalhães – e, de Pederneiras, Eliazar Braga.
Muitos haviam estudado nesses estabelecimentos.
No presente momento estamos imersos na literatura sobre o tema e nos trabalhos elaborados por
nosso grupo de pesquisa (naqueles que versam sobre História Oral e História), e, ainda, na transcrição e
textualização de depoimentos.
Pretendemos com esse trabalho fomentar a discussão sobre história, história oral e educação
matemática, em todos os âmbitos e, principalmente em nossa comunidade de Educadores Matemáticos.
Afinal, como diria Husserl “no passado nossa vida ficou assegurada, porque ser-passado é também uma
forma de ser”.
Bibliografia Consultada BARALDI, I. M.. (2003) Retraços da Educação Matemática na Região de Bauru (SP): uma história em
construção. Tese (Doutorado em Educação Matemática). Rio Claro: UNESP.
GARNICA, A.V.M. História Oral e Educação Matemática. In BORBA, M.de C. e ARAÚJO, J. de L. Pesquisa
Qualitativa em Educação Matemática. Belo Horizonte: Autêntica, p. 77-98, 2004.
________________. Escolas, Professores e Caipiras: exercício para um descentramento histórico.
Educação e Pesquisa. São Paulo: USP, 2005 (no prelo)
________________. História Oral como recurso para a pesquisa em Educação Matemática: um estudo do
caso brasileiro. Texto submetido ao Congresso Ibero-Americano de Educação Matemática (Porto-Portugal),
2005. (versão draft).
JOUTARD, P.. Esas vocês que nos llegan del pasado. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1999.
ROMANELLI, O. O.. História da Educação no Brasil. Petrópolis: Vozes. 1978.
SCHWARTZMAN, S., BOMENY, H. M. B., COSTA, V. M. R.. Tempos de Capanema. São Paulo: Paz e
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SAVIANI, D., et al.. O Legado Educacional do Século XX no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004.
(Coleção Educação Contemporânea)
THOMPSON, P.. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
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VALENTE, V. R.. Uma história da matemática escolar no Brasil (1730-1930). São Paulo: Annablume:
FAPESP, 1999.
______________. (org.) O nascimento da matemática do ginásio. São Paulo: Annablume: FAPESP, 2004.