Diario Contemporaneo

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Diário Contemporâneo 2015

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  • V Prmio Diriocontemporneode Fotografia

    Dirio do ParBelm2014

  • FICHA TCNICA DO PROJETO

    Jornal Dirio do Par Rede Brasil Amaznia de ComunicaoJader Barbalho Filho (Diretor Presidente do Dirio do Par)

    Camilo Centeno (Diretor Geral da RBA) Francisco Melo (Diretor Financeiro)

    RBA MarketingDaniella Barion (Gerente de Marketing) Natasha Guerreiro (Coordenadora de Marketing) Marcelle Maruska (Analista de Marketing)

    RBA DesenvolvimentoLuis Folha (Gerente de Desenvolvimento) Oscar Alencar (Supervisor de Desenvolvimento) Paola Wilm (Web Design)

    Projeto Prmio Dirio Contemporneo de FotografiaMariano Klautau Filho (Curador e coordenador geral) Lana Machado (Coordenadora de produo) Irene Almeida

    (Curadora assistente) Luis Laguna (Produtor) Joyce Nabia (Assistente de produo) Andrea Kellermann (Designer grfico) Adriele Silva (Coordenadora da ao educativa) Deborah Cabral (Assessora de imprensa)

    Espao Cultural Casa das Onze JanelasSimo Robison Oliveira Jatene (Governador do Estado do Par) Alex Fiuza de Mello (Secretrio Especial de Estado de Promoo Social) Paulo Chaves ( Secretrio de Cultura do Estado) Carmen Cal (Diretora do Sistema Integrado de

    Museu e Memoriais) Armando de Queiroz Santos Junior (Diretor) Zenaide de Paiva (Coordenadora de Ao Educativa)

    Museu da Universidade Federal do ParJussara da Silveira Derenji (Diretora) Sthefane Sagica (Coordenadora da Ao Educativa)

    ColaboraoSol Informtica

    Apoio CulturalInstituto de Artes do Par

    Comisso de seleoAlexandre Santos, Rubens Fernandes Junior e Mariano Klautau Filho

    Montagem das ExposiesManoel Pacheco (Kiko)

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    P925 V Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia / [textos Alexandre Santos, Rubens Fernandes Junior, Mariano Klautau Filho, Marisa Mokarzel]. Belm: Dirio do Par, 2014.

    164 p. : il.

    ISBN 978-85-64094-12-3

    1. Fotografia - Brasil. I. Santos, Alexandre. II. Fernandes Jnior, Rubens. III. Klautau Filho, Mariano. IV. Mokarzel, Marisa. CDD - 770.981

  • Dirio Contemporneo de Fotografia e sua quinta edioDepois de quatro anos com a definio de temas, pela primeira vez o Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia prope tema aberto para a mostra dos selecionados e premiados. A ideia foi dar total liberdade de criao e expresso aos fotgrafos para que a beleza, a emoo, o sentimento, a energia, a viso da realidade, entre outros aspectos da vida, fossem apresentados com a sensibilidade daqueles que trabalham a arte e a tcnica da fotografia.

    O resultado dessa liberdade foi espetacular. Alm de um aumento expressivo do nmero de inscries de trabalhos neste ano, houve tambm uma diversificao nunca vista, o que, sem dvida alguma, exigiu muito mais dos responsveis pela seleo das obras que participaram da Mostra de Fotografia do Prmio. A variao dos olhares dos artistas que tiveram os seus trabalhos selecionados foi grande. Surgiram ideias e flagrantes que impressionam pelo inusitado, pela capacidade do fotgrafo de enxergar a realidade de forma nica e pelo uso competente de luzes e cores. Ampliando o programa das mostras, foram organizadas a exposio individual de Janduari Simes, artista convidado, e a mostra com jovens artistas, todos atuantes no Par. O resultado das trs exposies demonstra mais uma vez que a fotografia brasileira e, em especial os fotgrafos paraenses, tm enorme talento e uma capacidade incrvel de se superar a cada novo trabalho.

    Jader Fontenelle Barbalho FilhoDiretor Presidente do Dirio do Par

  • Valorizando a fotografiaPara ns da Vale, a cultura tem um potencial transformador. Por isso, em todo o pas, investimos em diversas iniciativas que contribuem para a difuso e valorizao das manifestaes populares, da msica e das artes.

    O Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia um destes projetos apoiado por ns. A parceria com a Rede Brasil Amaznia de Comunicao (RBA) tem permitido que, desde 2010, possamos acompanhar nossos talentos da fotografia serem reconhecidos e ganharem visibilidade nacional.

    Estamos presentes no Par desde 1970 e aqui, ao longo dos anos, temos realizado aes que contribuem para o seu desenvolvimento e para a valorizao dos costumes e da cultura de nosso povo, respeitando-o. Atuamos em negcios de minerao, logstica e energia, sempre com o propsito de deixar um legado para a sociedade.

    Desejamos que todos aproveitem e se deliciem com as fotografias de nossos artistas, reunidas nas pginas deste catlogo.

    Paulo Ivan CamposGerente de Relacionamento e Comunicao da Vale, no Par.

  • (Des)memriasO Museu da UFPA recebeu, no ano de 2014, a exposio Cidade Invisvel, do artista convidado Janduari Simes, e a Mostra Especial Pequenas Cartografias (e Duas Performances), que compuseram a programao do V Premio Dirio Contemporneo de Fotografia. Nesta edio, sem tema especfico, a curadoria props que a fotografia fosse vista como uma espcie de no lugar. A experincia fotogrfica do artista convidado conduziu a uma passagem quase potica sobre perodo e lugares desta cidade, levando-nos a repensar o olhar cotidiano que lanamos, ou deixamos de lanar, sobre ela.

    A desmemria, disse Simone de Beauvoir, nos permite conviver com as perdas. Assim conseguimos conviver com as mudanas no meio urbano por mais indesejveis que nos paream ser. A srie apresentada por Janduari Simes tem estreita relao com a memria e as perdas de Belm, ao mostrar o que poucos viram: a destruio da grande estrutura da Fbrica Palmeira e o que vimos sem ver, o vazio que ela trouxe.

    Na outra srie do mesmo autor, a arquitetura da cidade continua a ser mostrada, convidando-nos a ver suas faces modernas e perifricas. Seu olhar pousa nas estruturas que um dia foram modernas e que hoje decaem junto com os centros histricos tradicionais, destinadas a compor a desmemria da periferia e suas inventivas construes suburbanas, cheias de cor e movimento, que esto sendo velozmente substitudas pela mono-tonia da padronizao.

    A mostra Pequenas Cartografias (e Duas Performances) rene a produo mais recente dos artistas atuantes em Belm. Os trabalhos tambm dialogam com a memria, s que no sentido estrito de histrias pessoais, ampliando, por outro lado, tais experincias particulares com o ambiente do prdio em que as imagens so mostradas.

    O perodo da borracha que nosso prdio ilustra hoje memria mantida. As mostras nele vistas falam do que ainda se dilui e desfaz. A desmemria pode nos ajudar a encarar as perdas e a seguir em frente, mas a memria nos nutre e permanece.

    Jussara DerenjiDiretora do Museu da Universidade Federal do Par MUFPA

  • Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia: a quinta edioO Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia chega ao seu quinto ano, consolidando um espao de produ-o e circulao da arte brasileira contempornea por meio da fotografia. O territrio da imagem fotogrfica significa para o projeto um campo de convergncias poticas, experimentaes materiais e investigaes filosficas.

    Desde 2010, o Dirio Contemporneo realizou, em Belm, diversas mostras de artistas selecionados, pre-miados e convidados, palestras, encontros, cursos e oficinas, e publicou quatro livros, reunindo imagens dos trabalhos, entrevistas, ensaios crticos e artigos de pesquisadores de todo o pas.

    Em quatro anos de existncia, e tendo o fotogrfico como norteador, o projeto tambm selecionou e exibiu pintura, desenho, vdeo, trabalhos instalativos e sonoros, objetos e narrativas literrias.

    Alm das exposies, a participao de curadores, artistas e professores nas comisses de seleo e nas pales-tras promoveu o dilogo entre pesquisadores do Par e de outros estados contribuindo para uma observao mais ampla sobre a produo emergente no Brasil.

    Para cada edio, ao longo desses anos, o projeto props questes aos artistas, evitando a tradio ilustrativa da fotografia; explorando o tema enquanto conceito, mote para o artista experimentar sua liberdade potica ou ainda torn-la uma traduo possvel para as questes propostas nos editais.

    Tivemos, ento, Brasil Brasis, em 2010, Crnicas Urbanas, em 2011, Memrias da Imagem, em 2012, e Cultura Natureza, em 2013. Para o ano cinco do projeto, no propusemos nenhum tema, e a resposta dos artistas reafirmou a fotografia como uma espcie de no-lugar, em dilogo constante com diversas linguagem e com as pretenses do projeto. Apenas reiteramos a livre experimentao que a fotografia, desde suas origens, exerce no campo da arte. Esta publicao no s representa a quinta edio como tambm a inteno de fechar um primeiro ciclo do Projeto Dirio Contemporneo de Fotografia e iniciar outros que consolidem, em Belm do Par, a pesquisa, reflexo e a produo de arte e fotografia no Brasil.

    Mariano Klautau FilhoCurador Geral do Projeto

  • Sumrio

    Poticas, converses e territrios da fotografia 13Mariano Klautau Filho e Marisa Mokarzel

    Artistas Premiados 21

    Artistas Selecionados 39

    Fotografia: campos de expanso 105Rubens Fernandes Junior

    Janduari Simes Artista Convidado 109

    Imagem, registro, potica 126Uma conversa com Janduari Simes

    Pequenas cartografias (e 2 performances) Mostra Especial 138

    Para que serve uma imagem fotogrfica? 147Alexandre Santos

    Biografias 156

  • Poticas, converses e territrios da fotografiaMariano Klautau Filho e Marisa Mokarzel

    O mundo contemporneo alterou cdigos, criou novos vocabulrios, estabelecendo diferentes formas de leitura. Cada vez mais nos deparamos com uma rede de aes que tanto pode ocorrer em situaes privadas e ntimas, como existir em espaos pblicos citadinos e digitais. As conflu-ncias de ideias, informaes, assim como os compartilha-mentos efmeros e mutveis de pensamentos e imagens, so responsveis por novas propostas e configuraes da arte produzidas no caos de um universo que se perde entre tantos significados e mltiplos direcionamentos. So nesses campos de tenses, de ordem e natureza diversas, que podemos situar muitas obras que compem a mostra do V Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia.Sem questes temticas ou especficas propostas pela curadoria, o conjunto de trabalhos acabou por refletir uma variedade rtmica e uma ampliao das dissonncias pro-vocadas pela fotografia no campo artstico. Os trabalhos premiados podem funcionar como eixos norteadores para uma compreenso panormica das experincias diversas apresentadas na mostra.Bank Blocs, de Alberto Bitar, adere objetividade docu-mental quando mostra, direta e frontalmente, como uma pea publicitria, as fachadas das instituies financeiras feridas e protegidas por tapumes em uma situao de pa-radoxo: uma antipublicidade reveladora da falncia da economia global descompromissada e distanciada da reali-dade social. As fachadas foram tapadas depois dos ataques do movimento Black Blocs. Os tapumes marcam a fronteira da segregao histrica entre desenvolvimento econmico e qualidade social. Nessa perspectiva, o trabalho nos faz pensar sobre o revide, a reao, o movimento em direo queles que, de fato, atiraram as primeiras pedras.

    Ao Lado, de Diego Bresani, incorpora a encenao como mecanismo potico num lance de olhos e de memria. Com apuro, beleza e tcnica, o artista refaz uma imagem fugidia, um instantneo do cotidiano; cenas banais agora reprogra-madas com elegncia teatral. Tudo construdo, organizado e, no entanto, movido por um fenmeno da percepo como ponto de origem. Extradas de uma observao sobre o cotidiano, sobre acontecimentos ordinrios vistos de re-lance de dentro do carro, as cenas so reorganizadas graas memria fotogrfica do artista. Dessa forma, Bresani pe as cenas novamente em funcionamento, ressaltando suas lacunas e silncios no contato com espectador.Dedicatrias Cinco Crnicas, de Yukie Hori, desdobra a imagem em universos que vo do cinema literatura, da pintura fotografia. Ao dialogar com artistas japoneses de geraes e sculos diferentes, Hori tece uma trama firme de referncias e materiais em que o meio fotogrfico se mostra to gestual quanto o desenho, a gravura ou a pintura. E por meio da fotografia, quase tudo se transfor-ma em experincia literria, em um sentido hipertextual. As cinco crnicas de Yukie Hori so dedicadas a Shinzo Maeda, Takuma Nakahira, Junichiro Tanizaki, Tohaku Hasegawa e Yazujiro Ozu. Cada crnica um ato de rees-crever o universo de um artista, e seus materiais de reescri-ta acontecem na medida em que cada potica a provoca: pintura, literatura, fotografia e cinema. Todas as poticas absorvidas colaboram para as paisagens particulares que s Hori soube inventar e converter em escrita.Na mesma perspectiva de construo de um discurso e com semelhante grau de refinamento no uso de materiais, Ionaldo Rodrigues desenvolve um trabalho de verve ben-jaminiana na observao da cidade, e tem na arqueologia

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    seu mote. Valendo-se de um olhar refinado, escava o solo urbano e faz emergir algumas peas poticas para montar sua narrativa, ao passo que a utiliza como meio de experi-mentao de processos artesanais e histricos da fotografia.Em Drenagem, o artista percorre os processos de captao e impresso fotogrficos para refletir sobre um mecanismo civilizatrio da cidade. Constitudo por pedaos, assim como os vestgios urbanos, o trabalho parte da imagem de uma tampa de bueiro cuja palavra drenagem est gra-vada no metal. O artista segue desdobrando imagem (e a palavra) e suporte (processos de captao e impresso) em uma srie montada, na qual cada bloco de imagens executado por processos diversos como daguerretipo, pinhole, processo van dyke e imagem digital.H um percurso que investiga tanto as mudanas e inter-ferncias no solo urbano, na captao e controle da gua na cidade civilizada, quanto as operaes de captao e impresso da imagem na cultura civilizada. O polptico Inciso, em papel salgado, mostra, por exemplo, o macada-me da via pblica aberto, deixando exposta a tubulao de gua da cidade em um bairro central de Belm. O dptico final da srie a apropriao de uma fotografia de Charles Merville, da Paris de 1866, imagem-chave da construo conceitual do trabalho: Entre os estudos de nuvens densas sobre Paris e as vistas urbanas com a presena da gua impura das cidades correndo pelo calamento estreito de macadame, encontro a drenagem nas fotografias de Charles Marville... Sntese das incises que alargaram vias e disciplinaram um novo regime do seco, do mido e do charco nas cidades da civilizao, descreve o artista. 1

    A apropriao das imagens de Paris a identificao imediata com o bairro do Reduto, em Belm, onde Ionaldo sempre viveu. Antigo bairro operrio, o Reduto fica no limite com a rea central de Belm e cujas vias de macadame esto constantemente sendo abertas para

    1 Ionaldo Rodrigues em seu dossi.

    mudana de tubos e para conter o solo alagado da cidade. O charco parisiense tomou uma identificao pessoal no trabalho do artista, que encerra a srie com um dptico chamado Drenagem Marville, inventado pela extrao de duas partes da fotografia de 1866. A srie de Ionaldo, alm da sofisticao conceitual, um trabalho de expe-rimentao plstica com o meio fotogrfico, no qual a tcnica e a tecnologia permitem desencadear poticas que anulam os limites entre gesto, mquina e programas de representao. da capacidade varivel de significaes e da converso ilimitada entre as linguagens que se alimenta a fotografia na produo contempornea. Alguns trabalhos realizam essas converses de modo sutil e preciso. A perspectiva cinemtica em O Menino, de Pedro Clash, e a dimenso objetual em Campo Cego, de Ivan Padovani, so exemplos de tal conversibilidade do meio fotogrfico.Em O Menino, Pedro Clash parte da experincia cotidiana de buscar seu sobrinho na sada da escola. O caminho de volta para a casa cumpria um mesmo roteiro e que, no entanto, foi quebrado com a presena da cmera fotogrfica, que passou a registrar o menino em sua andana cotidiana pe-los lugares e paisagens ao longo do caminho. De repente, o que parecia to banal e sem importncia se transforma em um acontecimento visual. O garoto, tal qual um per-former, encena sua caminhada num jogo entre retratista e retratado, paisagista e paisagem. O rigor visual da srie emerge na relao entre o olhar cinematogrfico de Clash e a surpreendente conciso de gestos e autoconscincia corporal do menino no espao fotografado.O resultado uma breve e discreta narrativa, como uma espcie de curta-metragem sobre o fragmento de uma histria pessoal, num breve momento da vida infantil de um e madura de outro. Certamente, O Menino pode-ria funcionar como um autorretrato duplo, que alcana a experincia de um filme ficcional sem deixar de ser um registro memorial de um lbum familiar.

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    Campo Cego, de Ivan Padovani, constitui-se de imagens de empenas face inexpressiva dos edifcios apresentadas como um conjunto de blocos de espessuras diversas, se-guindo o ritmo de um skyline. Soma-se ao conjunto um livro de folhas translcidas, que joga com a superposio dos brancos e cinzas da fotografia. Das abstraes do concreto s experincias conceituais de uma fotografia de herana alem, a srie parece delimitar sua rea sobre o alicerce de tais tradies recentes. E de fato o faz, com apuro na observao e senso construtivo no intuito de inventariar um componente da paisagem que no vemos no horizonte. No entanto, o trabalho escapa da tradio por um processo experimental sutil, mas no menos inquieto. As oposies se dinamizam no modo como o artista compreende e ma-terializa suas imagens.Padovani retira os edifcios do anonimato da paisagem urbana, mas os individualiza de modo uniforme e sem identidade. Ao que recoloca o sentido do objeto em seu aspecto artificial: a eliminao da perspectiva, a centrali-zao do assunto, a anulao da cor, a captao frontal. As dualidades se apresentam nas prprias imagens que, de um lado, no mostram nada a no ser planos lisos e opacos, mas cujos traos discretos e individuais de cada prdio podem revelar linhas que demarcam compar-timentos, escadas, andares, vestgios de pichao ou manchas do tempo; ndices de uma vida real e de uma cidade palpvel.A solidez cede lugar tanto aos enigmas do objeto plstico voltado para sua materialidade fotogrfica quanto s de-cifraes de sua condio de signo social: objetos vazios, tmulos gigantes, prdios sem rosto, obeliscos sem his-tria ou um campo minado de imploses.Brinquedografia, de Tom Lisboa, voltado para o pensamen-to conceito que est presente nas imagens que vemos e produzimos. Ao invs de estruturar teorizaes complexas, vale-se de frases de pensadores da imagem e da fotogra-fia para criar pequenos brinquedos, cmeras de plstico

    que, atravs de seus visores, fazem-nos observar como imagem as frases girando em crculos.Tomando Flusser como guia, Lisboa prope pensar em conceitos antes da imagem. Suas cmeras coloridas cha-mam para o ldico, remetem a brinquedos inocentes, desprovidos de uma ordem racional, porm ao inserir no objeto manipulvel frases de Flusser, Barthes, Sontag, Cortzar entre outros faz a ponte entre palavra, imagem mental e conceito. Lisboa exercita essa mobilidade por meio do objeto (cmeras de brinquedo) e do video (telas em que as frases tambm aparecem em movimento cir-cular), ampliando ainda mais as possibilidades de leitura da imagem como conceito.Outro trabalho que remete ao objeto, num curioso jogo com o tempo e as origens da fotografia, Das 6 s 18, de Juliana Kase. Kase brinca com as inverses entre o negati-vo e o positivo no processo de contato direto do fotograma. A artista surpreende quando escolhe um aparelho celular como objeto a ser gravado diretamente na folha do papel fotogrfico. A tela luminosa do objeto celular grava no resultado final de impresso um constante retngulo negro enquanto que a moldura ou fundo alterna variaes do branco ao cinza, correspondendo ao tempo de exposio experimentado pela artista.So 13 imagens que compem o polptico fotogrfico. Treze imagens iguais em sua estrutura de desenho ge-omtrico, sadas de um processo analgico tradicional. Por outro lado, diferenciam-se na alternncia de tons e tempos evocados pela experincia da luz. E ainda resulta em um dilogo no qual parecia haver somente oposio: O trabalho confronta dois momentos da tecnologia a analgica e a digital na tentativa de repensar quais so as possibilidades poticas da linguagem analgica em meio a animosidade em torno das novidades da linguagem di-gital.. 2 O trabalho de Juliana Kase evoca uma fisicalidade

    2 Juliana Kase em seu dossi de artista.

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    prpria dos processos embrionrios do fotograma e a re-coloca na experincia da produo da imagem digital.Em Autmatos, Pricles Mendes combina materiais, per-cepes e procedimentos distintos para inventar uma ordem e suavidade aos elementos funcionais e caticos que ocupam o espao da cidade. Mendes capta o emara-nhado de fios eltricos, postes de iluminao e a presena flutuante dos pssaros em voo, e os transforma em um trabalho de desenho, embora sua linguagem esteja na mistura entre vdeo, fotografia objeto e som. O que est imperceptvel no cotidiano ou perceptvel, como objetos sem forma nem equilbrio, transforma-se em narrativa videogrfica, na qual o sentido de flutuao, muito bem extrado das imagens dos pssaros, parece reordenar o caos. O que est implcito para alm da materialidade hbrida de Autmatos o trabalho silencioso da observao, que age numa reconfigurao esttica do mundo concreto, antes mesmo de sua matria palpvel.Em certos aspectos, o vdeo Com que Sonham os Peixes, de Marlos Bakker, entra numa frequncia aproximada ao tra-balho de Autmatos quanto a construo de uma atmosfera de flutuao no caos urbano. Dessa vez, o artista sugere a inveno de um mundo submarino no qual se movem motoristas, passageiros e automveis.Bakker v as ruas congestionadas pelo trnsito intenso como um grande aqurio e localiza seus personagens dentro dos carros dentro em um tempo suspenso que a sua imaginao constri. Divisados pelos para-brisas, tendo seus rostos e expresses misturadas aos espelhamentos e fuses limite entre a realidade externa e o mundo particular no interior de seus carros , as pessoas ressurgem quando poucos segundos do tempo captado so ampliados para alcanar um possvel ritmo interior dos personagens. O som am-biente dos engarrafamentos incorporado ao vdeo, e sua igual distoro pela cmera lenta marca o tempo paralelo que Bakker soube to bem extrair do tempo real da cidade.Felipe Bertarelli tambm soube inventar um outro tempo

    urbano a partir do envolvimento que tem com a mesma cidade, na srie as paisagens. A srie constituda de pai-sagens noturnas onde diversas vias traam o caminho de transeuntes e automveis: ruas, passagens, tneis, esca-das, portes, curvas. No lugar de movimento e trnsito, vemos ruas escuras e vazias, pontualmente iluminadas em uma pequena parte do trajeto. O artista busca o sentido de perda da direo na medida em que sua luz que remete iluminao de cenas de natureza morta 3 insuficiente para apontar caminhos. As fotografias de Felipe Bertarelli solicitam uma observao mais detida do espectador, pois as zonas escuras requerem a mesma sofisticao percep-tiva dedicada aos espaos da luz pontual.Os trabalhos de Francilins Castilho e Rafael D'Al distan-ciam-se da relao estritamente sensorial com o ambiente fotografado, como nos exemplos anteriores de Bakker e Bertarelli, na medida em que utilizam a fotografia em uma operao simblica do assunto escolhido, para construir imagens cuja plasticidade mais eloquente.Limbo um livro objeto constitudo de imagens escuras, monocromticas e de gros acentuados. Jogando com a abstrao e a percepo sensorial, a srie de grande carga ertica vai se revelando de modo explcito, numa obser-vao mais alongada na manipulao do livro. Partes de corpos, genitlias, pelos e peles fazem parte do universo com o qual Francilins trabalha h tempos, sendo que, por meio do livro, leva o espectador a ficar mais prximo do corpo sexual. As pginas se abrem em diversas direes como um quebra-cabeas que pode inclusive ser comple-tamente desmontado.A materialidade do livro e a plasticidade das imagens so construdas sob a metfora do limbo, um lugar que, a des-peito de sua carga sombria, seria o lugar do prazer carnal. O livro objeto ocupa um espao imersivo, pouco iluminado por luzes baixas, de velas ou lmpadas amarelas, criando

    3 Felipe Bertarelli em seu dossi de artista.

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    um ambiente de penumbra que permite experincia da identificao imediata do assunto fotografado perder sua importncia primeira, valorizando o contato mais instintivo com a matria das imagens. Nesse sentido, o trabalho de Francilins imprime uma atmosfera religiosa ao prazer sexual, transformando o ambiente numa espcie de altar.Em Arranjos Tropicais para um Rei Morto, Rafael D'Al procura um dilogo possvel entre arquitetura europeia e nature-za nativa, tendo como referncia a histria da conquista portuguesa sobre o territrio brasileiro. D'Al justape fotografias em preto branco do Mosteiro dos Jernimos, em Lisboa, e naturezas-mortas coloridas fotografadas com sofisticao publicitria. O que parece ser a unio inusitada de duas belas imagens que no se combinam, ou que se unem apenas pela beleza e o rigor compositivos, traz uma boa dose de ironia e reflexo poltica sobre o imperialismo portugus.A arquitetura do mosteiro erigida no reino de Dom Manuel I, o chamado perodo manuelino, um smbolo cultural que marca o perodo da expanso territorial de Portugal. As natureza-mortas foram fotografadas por D'Al inspiradas nos quadros de Albert Eckout, o holands conhecido pelas primeiras pinturas do gnero representando exuberncia brasileira. Seus arranjos tropicais reuniram frutas e plan-tas encontradas ao redor de sua casa, portanto espcimes consideradas brasileiras, mas que, na verdade, funcionam como uma metfora das extraes e extravios ocorridos entre imprio e colnia: Vale ressaltar que muitas dessas plantas, flores e frutas que hoje consideramos nativas e brasileiras, foram na verdade trazidas pelos navegadores portugueses e introduzidas aqui ao longo do perodo de colonizao. 4

    O trabalho conceitual de Rafael D'Al se constri a partir da mesma sofisticao formal com que apresentado e traz uma inflexo poltica quando ironiza o trfico de culturas. por isso que ele oferece agora seus arranjos tropicais a um

    4 Rafael D'Al em seu dossi de artista.

    rei morto, fazendo aluso direta ao corpo de D. Manuel I enterrado no Mosteiro dos Jernimos.Alex Oliveira e Paula Huven tomam partido da fotografia antes como um dispositivo de aes propositivas que exer-citam, por um lado, a relao da mquina com o tempo, e, por outro, desembocam em experincias performticas coletivas. O resultado se d pelo conjunto de imagens que, alm da preciso formal e o apuro esttico, incorpora no processo um envolvimento com o corpo e o trnsito entre as linguagens.Em Revelador H202, o fotgrafo performer Alex Oliveira convoca os participantes a descolorir cabelos e pelos do corpo com gua oxigenada, em situaes e contextos dis-tintos. De uma proposta inicial lanada em rede social, o artista continua as performances e processos da ao em Salvador, Sucia e Berlim. Cria-se uma rede de interaes em que o aspecto revelador do H202 (gua oxigenada) serve de elemento condutor das identidades pessoais e dos lugares onde a ao ocorre. Alex prope um jogo di-vertido entre o registro e a construo ficcional no qual atua igualmente como personagem. A srie composta por 11 imagens possui o encadeamento espontneo dos acontecimentos em ao e uma sensibilidade particular para a imagem fotogrfica.Paula Huven faz de sua Apneia tambm um lugar de expe-rincia e encontros mediados pelo aparelho. O tempo de velocidade da cmera marcado pela respirao inter-rompida dos fotografados, mergulhados em uma piscina a convite da artista. O tempo de submerso dos corpos registrados em baixa velocidade produz retratos de outra natureza sob o efeito da gua e dos rastros deixados pelo movimento dos corpos. O formato quadrado e em preto e branco, modo clssico de criao do antigo retrato agora utilizado para suscitar acontecimentos, e a imagem torna-se o prprio lugar da experincia. 5 Paula Huven

    5 Paula Huven em seu dossi de artista.

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    aposta na diluio das formas e na ausncia de controle sobre o tempo do registro, tomando o ato fotogrfico a favor da sofisticao.A srie Balaclava, de Rodolpho Lamonier, iniciada durante a Copa das Confederaes, em 2013, insere-se na comple-xidade do mundo atual. O artista recria uma situao de-lineada no movimento poltico e social que arregimentou multides, sem ter exatamente uma ideia centralizadora que se concentrasse em um ideal mobilizador. Nascidos de vrias reivindicaes, sem levantar uma bandeira partidria especfica, esses atos polticos proliferaram-se pelo Brasil e, sem arma em punho, munido de uma mquina fotogr-fica, Lamonier viajou por Belo Horizonte, Rio de Janeiro e So Paulo para fotografar os Black Blocs, grupos mascara-dos, que se destacavam nas passeatas. Na contracorrente, interessava-lhe menos o que ocorria nas ruas e mais a intimidade daqueles que escondiam seus rostos em meio massa humana. Apesar de mantida a identidade oculta, a inteno era reverter sentidos, substituir (ou esvaziar) o ato violento pelo aconchego do ambiente familiar. Com humor custico, questionava a ambiguidade dos papis identitrios, diminua a distncia entre o vandalismo e o ato ldico, quase inocente, de posar para fotografia.Vapor Ferro Cho, de Victor Galvo, proveniente de uma pesquisa que desenvolve desde 2012 pelos subrbios industriais de vrias cidades. Galvo desloca-se em mo-vimentos contraditrios, que ele explica serem repletos de situaes de atrao e repulsa. Deixa-se ir por luga-res que se transformam em paisagens quase irreais, em que os vazios se perdem no indefinido espao, s vezes ameaados pelas nuvens, s vezes intermediados pela lente que desfoca e embaa a imagem. Trata-se de uma quase arqueologia de uma cidade fantasma, anunciando a provvel catstrofe, que talvez nunca acontea, mas se encontra assinalada no humano ausente e se potencializa nas torres das f bricas, nas garras dos guindastes que descansam no hangar.

    O inspito, o pouco habitado, a outra face ou a mesma que se configura no fluxo incessante da cartografia con-tempornea, sempre sujeita a novos mapeamentos, cartas e relevos, que no mais do conta da mobilidade frontei-ria, incapaz de demarcar territrios. A Viagem pela Linha Invisvel, de Marco A. F. e Eduardo Veras, prope caminhar por essa questo demarcadora, que traz em sua memria os vestgios das negociaes diplomticas advindas das grandes disputas territoriais ou das pequenas infraes, dos passaportes falsificados, do trnsito proibido, no qual as trocas culturais, responsveis pelas inmeras narrativas, no nos do mais conta da histria da fronteira. Prevalecem os matizes que subvertem a linha do horizonte para em-brenhar-se nas curvas, na linha imaginria e simblica que, liquefeita, desprende-se da forma para livre navegar o Brasil, a Argentina, o Uruguai, sem que se saiba onde comea a terra, onde nasce o rio.Avistar a Paisagem Ambulante 381 no tarefa destinada somente a Daniel Moreira, mas a qualquer viajante mais atento que se permita transitar entre rodovias, percebendo paisagens e personagens que se locomovem pelas arre-dores das estradas e nelas se encontram em um caminhar migrante, no contraste do sedentrio e do nmade, mui-tas vezes identificado por seus objetos e indumentrias incomuns. H uma esttica prpria, na qual o horizonte pode perder-se no barro, no asfalto, na placa e dizeres que quebram a monotonia da reta quase infinda, surpreendida por curvas e desvios, por detritos e sinais de abandono. Andarilhos e paisagens, em preto e branco, rearrumam as narrativas tecels, memrias perdidas e encontradas no olhar afetivo e sensvel de Moreira.O que se desfaz com o tempo fica perdido e se acumula na imagem, que no d conta de si e se desbota presa ao dispositivo que desvirtua os dados e no reconstri o que de fato foi. A Runa-lbum, 2012-2013, de Juliano Ventura, organiza as imagens do processo de demolio de uma casa localizada na cidade de Santa Maria, no Rio Grande

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    do Sul. Ali ningum mais habita, restam os destroos, as histrias perdidas que se desfizeram antes da arquitetura romper sua estrutura e desabar. As madeiras de susten-tao do lugar s linhas; a cor um importante dado esttico que perdeu o significado passado para ganhar outro ao se tornar imagem e enquadrar-se no limite do olho, no limite do lbum. As runas no mais ocupam as ruas da cidade, abrigam-se no relicrio destinado coleo de lembranas dos destroos arquitetnicos, da anacrnica saudade do que ali existiu.Nesse vaivm de habitaes, rodovias e fronteiras pode-se deparar com as Referncias Mveis para Cidades em Trnsito, de Nelson Pellenz. Da janela do aprtamento ele registra as imagens da cidade, prefere os dias nublados, quando de-tem-se no deslocamento das nuvens e espera a incidncia da luz, o momento exato em que determina a luminosidade desejada. Neste instante a cidade adquire a forma e a cor planejada, transformando-se no marco referencial que se transforma em imagem, os dados citadinos transpor-tam-se para o cenrio fotogrfico, sem mais ser o objeto despede-se da condio de paisagem urbana para ser a paisagem criada por Pellenz, idealizada no trnsito da luz, at desviar as intempries para atingir a luminosidade e a cor por ele determinada.Em Cu Encoberto Dia Chuvoso em Curitiba, de Marilsa Urban, pode-se encontrar outra inteno, outra paisagem. A janela desta vez no abre-se para a observao esttica do lugar, mas para a realidade, o caos urbano da imagem cotidiana, da movimentao dos trabalhadores que consertam fia-es, locomovem-se em gruas, sobem em postes, escadas, transitam por buracos na busca de solues de problemas. Como afirma Urban, so oito horas de trabalho, sem con-dies de reprise. Depois que o espetculo acaba, fica o registro, o olhar plong de quem, do alto, presenciou tudo num dia chuvoso, de cu encoberto, em Curitiba. A calmaria de quem se encontra protegido no limite da porta, no conforto do terceiro andar, contrasta com os

    fios de tenso simbolicamente representativos daquilo que pode se romper a qualquer momento, distender-se e causar danos.Claustrofobia, de Letcia Lampert, traduz parte desse uni-verso esgarado e tensionado que, prximo ao corpo, faz--se presente na ponte entre a privacidade da casa e o lado que deveria ser a rua, a paisagem urbana. Mas aquilo que se apresenta intermediado pela janela no a amplido possvel do desenho da cidade; o confronto de arquite-turas, as oposies de moradias, o muro que impede a viso de descortinar o plano a plano da perspectiva. Sem a profundidade de campo, v-se obrigado a conviver com as frestas, com a parede que impede o ar e conduz claus-trofobia. O grafismo exibe-se nas lacunas, resta ao olho a composio do confinamento, a esttica recortada de outras janelas. A luz deixa visveis as superposies de linhas, os vestgios de vidas ausentes.O dilogo entre o dentro e o fora permanece em Narrativa do Real Imaginrio, de Amanda Copstein. Desta vez, a sequ-ncia constri a trama possvel, reconstruda com o outro olhar: o daquele que v as imagens dispostas na parede, cuja formatao ele dribla e realinha de acordo com seu prprio enredo. Imagens em preto e branco sucedem-se na histria contada entre persianas e cercanias, de onde se percebe a gua, sem que se molhem os ps. Natureza e religio habitam o mesmo conjunto de imagens man-tendo, no entanto, uma distncia relativa. Entre Cristo e a Madona interpe-se o crucifixo. Qual dor acompanha a famlia? Qual dor percorre os lenis? Isolado em suas camas, disperso em sonos e viglias, o casal abriga-se no enigma. Copstein vale-se de Didi-Huberman para dizer que Todo olho traz consigo a nvoa e nela que o imaginrio infiltra-se e tece as narrativas.Contar histrias tambm a opo de Carolina Ges. Nesse universo contemporneo to atravessado por suces-sivos enredos, muitas vezes incompletos, por prosseguirem infinitamente numa tessitura em constante processo,

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    comum sermos interceptados por diferentes personagens. Ges parte da premissa de que O Mundo Pequeno, e assim constitui seus cenrios miniaturizados, composto por nove quadros onde habitam personagens, envolvidos em cotidianas narrativas de um mundo rizomtico que se revela cada vez mais impessoal. Cada quadro, uma frase, uma ironia, uma apropriao, um ready-made sob inter-veno, no qual so testemunhados os deslocamentos dos microcosmos que se inter-relacionam, mantendo a independncia de suas histrias.Na contemporaneidade, as narrativas universais deram lugar s pequenas narrativas, advindas de um universo particular, individual, perpassadas por subjetividades, sem receio de conviver com referncias ou de olhar para o passado e dele retirar o motivo que gera o desdobra-mento do processo criativo. Sem personagens ou enredos, Fbio Del Re detm-se nas pinturas de Giorgio Morandi e permite que invadam o seu imaginrio e se espalhem por seu estdio, ocupando prateleiras, pisos e mesas. A fictcia invaso permitiu ao fotgrafo transportar a pintura para a linguagem fotogrfica, afinal o que lhe interessava era a luz sobre os objetos, a composio, para que pudes-se transformar o preto e branco em um campo pictrico, constitudo por negro, brancos e cinzas.A composio, o jogo de formas e a sutileza da cor reafir-mam-se no universo de Marcelo Figueiredo pelo vis da arquitetura que, por meio dos fragmentos, dos Poliedros Arquitetnicos, valoriza os planos, inclinaes, linhas e lu-zes. O dentro e o fora, assim como os cheios e vazios, esta-belecem um dilogo no quase abstrato do enquadramento, nas estruturas transformadas em slidos, em esculturas aludidas nos azulejos fotogrficos, na cor que se insinua entre cinzas. A volumetria deixa vago o lugar exclusivo da pintura, associa-se ao fotogrfico para dispor o jogo esttico e de linguagem.Seguindo a formatao dos retngulos conjugados para dispor suas imagens, partindo do conceito de aquecimento

    global, Isabel Santana Terron cria a Viagem ao Redor do Meu Chuveiro. O que prevalece no o sentido crtico que possa ter o desperdcio de gua, mas o cenrio ntimo no qual o escorrer da gua e o som mido motivam o devaneio, a viagem dentro de si. O bvio na obra de Terron inexiste, distancia-se do descritivo, d lugar frao da imagem que no se deixa revelar na completude da cena. A viagem furtiva, contruda na quimera da inconstncia da prpria imagem que, volvel, logo se desfaz para que outra surja.A inconstncia da imagem, a intimidade visitada tambm se apresenta em Flash, de Keyla Sobral. O que se evidencia, no entanto, o efmero instante, o segundo que marca o tempo do piscar de olhos, a memria fugidia, incapaz de reter o momento vivido. Trata-se do verbo que no se sustenta no presente, dada a rapidez com que se torna futuro. Mas o flash tambm a luz artificial que auxilia o ato fotogrfico, ou se revela no neon que torna mais visvel o que, ou quem, quer brilhar. A ambiguidade devolve a inconstncia da luz que pisca e, no piscar dos olhos, se apaga. Trata-se do estar contemporneo que no se fixa, mas se constri na alternncia dos cdigos, na infinita mudana dos vocabulrios, na palavra que no se man-tm acesa, ao contrrio, vive no repetido ato de surgir e desaparecer. Aqui mora a tenso, o instvel que se atualiza sendo o que sempre foi, contudo sem jamais ter o mesmo significado. Flash funciona como um signo, vetor que se expande para alm de um campo estritamente fotogrfico e que, no entanto, retorna a ele para apontar suas muta-es e converses operadas no trabalho artstico.

  • Artistas Premiados

  • Prmio Dirio do Par

    Alberto Bitar

    Bank Blocs

  • Prmio Dirio de Fotografia

    Diego Bresani

    Srie Ao lado

    Homem de cala vermelha

  • Boneca

  • Religiosas se preparando para uma fotografia

  • Mulher com animal de estimaoMulher catando

    Homem de terno com pedraCerca com buraco

  • Prmio Dirio Contemporneo

    Yukie Hori

    Dedicatrias: Cinco Crnicas

  • Pillow Shots para Ozu

  • [Para Takuma Nakahira] Noturnas Tsukuba

  • - Ume onna no uragiri (Traio da mulher ameixa) [ou Ikebana para

    Shinzo Maeda]

  • Srie Negra [ou Sombras para Junichiro Tanizaki]

  • Yukie Hori [Para Tohaku Hasegawa] Cultivando Pinheiros

  • Artistas Selecionados

  • as paisagens

    Felipe Bertarelli

  • Ionaldo Rodrigues

    Drenagem

  • Carol de Ges

    O mundo pequeno

    Robson e Lus se conheceram no karat

    Edith sente que seu marido a espiona aonde quer que v

    Amadeu se aproveita do status de bobo da vila para fazer o que quiser

  • Rosa verdadeiramente felizRegina acha todo o mundo burro, menos elaMarieta e Clo no se viam h mais de 16 anos

    Lila se arrependeu da cera quenteArnaldo se recusa a comprar um celularAmlia era ignorada

  • Srie Viagem ao redor de meu chuveiro

    Isabel Santana Terron

  • Ivan Padovani

    Campo cego

  • Letcia Lampert

    Claustrofobia

  • Nelton Pellenz

    Referenciais mveis para cidades em trnsito

    Marqus do PombalVoluntrios da Ptria

  • Ernesto da Fontoura

    Moinhos de vento

    Marqus do Pombal

  • Marilsa Urban

  • Dia chuvoso cu encoberto em Curitiba

  • Marlos Bakker

    Com que sonham os peixes?

  • Pedro Clash

    O Menino

  • Marco A.F. & Eduardo Veras

    Viagem pela linha invisvel

  • Travessia

    A linha imaginria e simblica, mas tambm real e concreta. Ou nem exatamente isso. Antes de tudo, ela lquida.A linha que separa o Brasil da Argentina acompanha o curso de um rio. O Uruguai nasce na Serra Geral e, na medida em que desce, trata de contornar e conformar a feio norte e noroeste do Rio Grande. A linha que o rio desenha o prprio rio em seu contnuo movimento serve de fronteira.A balsa que atravessa o rio, da aduana de Porto Soberbo, no Brasil, para a de El Soberbio, na Argentina, exibe, de um lado, a bandeira verde-e-amarela; do outro, a bandeira celeste-e-branca. Em que ponto da balsa (ou do rio) fica exa-tamente a linha que separa? Ou esse ponto comum no pertence a ningum?A situao seria mais ou menos como aquela dos dois irmos no cinema, disputando o brao comum das duas poltronas. Os meninos decidem dividir o brao ao meio, longitudinalmente: at aqui meu; daqui para l, etc. Mas a linha essa faixa que desune, seja real e concreta, ou imaginria e simblica, essa linha mesma , ser que ela tem dono? Pertence aos dois ou de ningum? Ou ainda, a linha que separa a mesma que aproxima?O rio estende uma ponte, d passagem, oferece a travessia.

  • Daniel Moreira

    Paisagens ambulantes 381

  • Victor Galvo

    Vapor Ferro Cho

  • Runa-album, 2012-2013

    Juliano Ventura

  • Pericles Mendes

    Autmatos

  • Tom Lisboa

    Brinquedografia

  • Keyla Sobral

  • Juliana Kase

    Das 6 s 18

  • Fbio del Re

    Morandi

  • Rafael DAl

    Arranjos Tropicais para um Rei Morto

  • Marcelo M. Figueiredo

    Poliedros arquitetnicos

  • Amanda Copstein

    Narrativa do Real Imaginrio

  • Randolpho Lamonier

  • Balaclava

  • Paula Huven

    Apneia

  • Francilins

    Limbo

  • Alex Oliveira

    Revelador h202

  • Fotografia: campos de expansoRubens Fernandes Junior

    Esta reflexo se prope a ser uma pequena contribuio desenvolvida a partir da provocao feita pela curadoria do Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia. A ideia discutir e refletir sobre o que pode ser entendido como a livre experimentao no amplo territrio da fotografia contempornea.O que se v? O que se olha? O que se fotografa? O que no se v? So estas as principais questes que, inevitavelmen-te, so formuladas em debates sobre a imagem tcnica contempornea, pois, diante das constantes crticas excessiva produo de fotografias, estamos no apenas imersos nela como tambm sem parmetros que possam determinar alguns critrios de avaliao.Sabemos que se fotografa muito e se olha pouco. Buscaremos discutir aqui essa questo quase sempre presente nos encontros onde se discute a produo, dis-tribuio e circulao de fotografias. No mundo das ima-gens tcnicas em que nos encontramos inseridos, h uma espcie de cegueira coletiva resultado de uma velatura espessa provocada por uma fria predominante de que qualquer pessoa hoje tem capacidade para fotografar.Permeados por imagens de toda ordem, imersos num turbilho de telas que nos excita intermitentemente, es-tamos, sim, em total conexo, acionados que somos, a todo instante, por impulsos visuais que estimulam nossa retina e massageiam os nossos olhos. Inicialmente eram os feixes de eltrons da televiso e os gros da fotogra-fia, e at mesmo do cinema, que, tal qual um mosaico bizantino, exigia plenamente que o nosso sistema nervoso central configurasse a imagem (no sentido de juntar os pontos quase invisveis que formam a imagem). Hoje, so pixels que estimulam nossos perceptos nas mltiplas telas

    disponibilizadas em quaisquer dos territrios pelos quais circulamos, nos diferentes momentos do nosso intenso dia de apenas 24 horas.A imagem, particularmente a fotogrfica, deve ser en-tendida como um espao significativo construdo no apenas pela mediao homem-mquina, mas pela in-terao entre diversas linguagens e tambm pela ar-ticulao de uma sintaxe especfica que ir torn-la singular. Uma espcie de corpo nico, fruto das in-meras possibilidades de utilizao do dispositivo, que permite caminhos incertos e outros imprevistos nunca totalmente percorridos.Diante de uma fotografia, mas no de qualquer fotografia, surge o dilema, ou melhor, um enigma, que exige esforo para concretizar a compreenso dos desvios cada vez mais inventivos de criao e circulao das imagens contempo-rneas. Elas se exibem, com incrvel fascnio e exuberncia, atravs de novas sintaxes, que permitem traar o labirntico roteiro dos indcios imagticos.Mas o que realmente vemos? Essa a questo central nessa perspectiva multidisciplinar, que possibilita apontar pos-sveis direes para repensar a questo. Curiosamente, neste mesmo momento, fevereiro de 2014, no International Center of Photography, em Nova York, realiza-se uma expo-sio, com a curadoria de Carol Squiers, na qual tema pro-posto tambm uma grande questo contempornea, to importante quanto esta provocada pelo convite da curado-ria do Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia: What is a photograph? O que uma foto? Nela, a curadoria optou por exibir obras nas quais muito difcil identificar fotografias, ou aquilo que tradicionalmente entendemos como fotografia. Alm disso, no h na mostra um tema

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    f cil de identificar, nem formas representativas claras. A justificativa curatorial que a pergunta levantada no ttulo da exposio deve ser to aberta e to instigante quanto o perodo atual da fotografia. Por outro lado, em So Paulo, o Sesc Belenzinho promove, neste momento, uma ampla discusso a partir da indagao: E agora, fotografia? 1

    Na verdade, vive-se um perodo de incertezas, no qual temos muito mais perguntas a fazer do que respostas a oferecer. O simples fato de no haver uma proposta tem-tica para esta edio do V Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia significa no apenas uma sincronia com as iniciativas citadas, mas a proposta de uma abertura que d evidncias s dvidas que todos temos nesse cenrio de crise da avaliao da fotografia como objeto esttico da maior relevncia nesse incio do sculo XXI. Muito difcil? Simples? Complexo?Como o tema aberto e suficientemente amplo para refle-tirmos sobre ele, optamos por relacion-lo com a dificul-dade encontrada para entender o fenmeno em conexo com as reflexes sobre a questo da imagem tcnica. Tanto do ponto de vista de criao e produo, quanto do ponto de vista de edio, ps-produo e distribuio desse pro-duto cultural a imagem tcnica , que determina certas particularidades em diferentes campos da experincia visual na sociedade contempornea.Diante disso, devemos entender a questo proposta como um desafio e uma ampla possibilidade de expresso por imagem, mas tambm como uma dificuldade de criao em termos de linguagem. Se assim for, estamos diante de um prmio que especificamente privilegia a fotografia contempornea e caminha em direo oposta quela qual estamos duramente submetidos cotidianamente em termos imagticos.

    1 E agora Fotografia? uma parceria do Sesc com Eder Chiodetto, Livia Aquino, Pio Figueroa e Ronaldo Entler, para refletir sobre questes fundamentais acerca da prtica foto-grfica contempornea.

    Ou seja, nossa ateno est mais voltada para a fotogra-fia que circula em escala global nas redes sociais, por exemplo, ou mesmo nas principais pginas da mdia in-ternacional, seja ela impressa ou eletrnica. O fenmeno visual das redes sociais, conhecemos muito bem, pois somos usurios dos mesmos aplicativos que tornam todos artistas, trabalhando a partir dos mesmos programas (softwares). Ou seja, vivemos intensamente a era da ima-gem padro, quando compartilhar mais importante que pensar e criar alguma singularidade a partir desses aplicativos disponveis que esto ao nosso alcance. Por favor, no uma viso totalmente pessimista, pois acre-ditamos, e muito, na potncia das mquinas semiticas, aquelas que, paradoxalmente, tambm carregam em seus programas as fendas do acaso, expresso criada pelo poeta russo Maiakowski, para viabilizar novos processos criativos.A fotografia que vemos fruto de uma intermediao tc-nica que, se antes era de natureza fsico-qumica, agora tem uma mediao eletrnica diferenciada. As prticas mudaram e muito, mas o resultado, seja na tela, seja im-pressa no papel ou em qualquer outro suporte, suges-tivamente prximo. Mas, sem dvida, convivemos com imagens produzidas e mediadas por novas prticas, bem distantes daquelas especulares, sobre as quais aparen-temente tnhamos domnio completo e quase absoluto.Ao vermos uma fotografia, normalmente imaginamos que aquilo que vemos difere daquilo que foi visto pelo fotgrafo. O que viu o fotgrafo? O que determinante numa fotografia que a torna uma imagem? Estamos em xtase diante da imagem ou diante de um mundo visvel, ou de um acontecimento que teve seu fluxo temporal in-terrompido pela fotografia? E a imagem que nos olha? Como devemos entend-la? Essas questes podem ressoar por alguns segundos a cada fotografia que surge diante de ns. Nunca vislumbramos de imediato as respostas, mas interessante perceber como a civilizao, de modo

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    geral, ainda est distante em termos de conhecimento da potncia comunicacional da imagem tcnica.As inspiraes norteadoras dessa produo fotogrfica contempornea esto sintonizadas com a ideia de contes-tao, ruptura e experimentao dos modelos consagrados pela modernidade. Os artistas que desenvolveram esses modelos estavam em busca de novos olhares, ngulos e enquadramentos. O resultado foi o efeito do estranhamen-to provocado muito mais pela apreenso da linguagem como fim, e no como meio.Schiller defendia que a atividade artstica a atividade no-alienante por natureza, por excelncia... Diante do entendimento da atividade artstica como prazer e funo individual, como desafiar aqueles que ainda acreditam que a potncia da fotografia est circunscrita na sua capacida-de objetiva de reproduo? Ora, essa decantada objetivi-dade da fotografia no passa de iluso, pois sabemos que sob aquela prosaica superfcie imagtica se oculta todo um universo sgnico profundamente ambguo e polissmico, carregado de subjetividade.Portanto, como podemos compreender melhor a natureza da imagem tcnica, particularmente a fotografia? Antes de tudo, necessrio entender que existe uma sintaxe fotogrfica, uma gramtica especfica da linguagem foto-grfica, que nos ajuda a perceber melhor as articulaes visuais propostas pelo artista. Se dominarmos essa gram-tica, mesmo que parcialmente, teremos mais capacidade para estabelecer nexos entre o que vemos, o que olhamos, o que fotografamos, o que nos olha e o que imaginamos.Para reforar essa ideia, vale lembrar Didi-Huberman em seu livro O que Vemos, o que nos Olha: O ato de ver no o ato de uma mquina de perceber o real enquanto composto de evidncias tautolgicas. O ato de dar a ver no o ato de dar evidncias visveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do dom visual para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver sempre

    uma operao de sujeito, portanto uma operao fendi-da, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua nvoa, alm das informaes de que poderia num certo momento julgar-se o detentor. 2

    Ento devemos pensar que a fotografia contempornea manifesta-se como uma inquietao. Enquanto criado-res, os fotgrafos tm quase que a obrigao de utilizar o dispositivo para perturbar, para gerar incertezas, dvidas. Nesse sentido, a fotografia contempornea se desenvol-ve criando cada vez mais procedimentos que coloquem em tenso a tradio do fazer tradicional baseado nos manuais. Ou ns nos submetemos ao programa, lembra Vilm Flusser, 3 ou articulamos processos centrados nos imprevistos do programa nunca totalmente conhecidos. A linha que separa a submisso e a subverso tnue. Por isso mesmo, o verdadeiro artista aquele que evita as armadilhas disponibilizadas pelo sistema e se aventura cegamente no acaso dos processos criativos. Para isso, preciso adquirir conhecimento tcnico e esttico.Pensar a fotografia contempornea sempre um desafio. Mas no podemos refletir sobre ela, se no olharmos re-trospectivamente e percebermos que tambm a produo fotogrfica do sculo XX, apesar de incomensurvel, tem alguns momentos especiais em que ficam expostas suas nervuras poticas. Ainda no podemos avaliar, em termos quantitativos, o que efetivamente foi determinante nessa produo, mas certamente podemos arriscar e apostar em alguns artistas que abandonaram a tradio e criaram imagens que carregam uma atmosfera de desorientao. O observador tenta instaurar alguma legibilidade imagem, mas, diante de tanta instabilidade, nem sempre encontra as evidncias que esto embaralhadas de forma diversa do imediatamente reconhecvel.

    2 Georges Didi-Huberman. O que vemos, o que nos olha. So Paulo: editora 34, So Paulo, 1998, p. 77.

    3 Vilem Flusser. Filosofia da Caixa Preta por uma filosofia da foto-grafia. Rio de Janeiro: editora Relume-Dumara, 2002.

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    O galerista norte-americano Christofer McCall, da galeria Pier 24, localizada em So Francisco, EUA, disse recen-temente que no existe um consenso em relao foto-grafia contempornea ou mesmo em relao ao futuro da fotografia. Para ele, preciso haver algum processo fotogrfico envolvido, algum pedao de tecnologia que reconheamos como sendo fotogrfico, mas no creio que isso signifique que preciso estar baseado em lentes. Para a curadora Carol Squiers, da mostra What is a Photograph?, a sensao que o cordo que nos liga nave-me foi cortado e que agora flutuamos no espao.Essa sugesto, a de que estamos flutuantes no espao da criao, livres e soltos, nos parece acertada, j que no aponta para uma s direo. Vivemos, sim, um outro tem-po, muito mais perturbador, porque incerto, mas sabemos: um tempo de transio para um novo conjunto de valores para a arte e, em particular, para a fotografia.Em 1921, o poeta T. S. Elliot escreveu: Parece que os po-etas, na civilizao atual, devem ser difceis. Nossa civili-zao compreende uma grande variedade e uma grande complexidade e isto, refletido em uma sensibilidade agu-ada, deve produzir resultados variados e complexos. O poeta deve ficar mais e mais inclusivo, mais alusivo, mais indireto, para forar a linguagem, desloc-la se necessrio, at faz-la significar o que ele queira.Podemos parecer cegos, mas estamos confiantes nessa trajetria de vagueza e impreciso. Isso muito mais esti-mulante, pois no s expressa a busca de novos horizontes, mas acima de tudo, apresenta ideias desafiadoras diante de nossos olhos. A fotografia contempornea com a ace-lerao dos tempos de hoje, se abre para a construo de novos espaos, atravs de novas associaes, a fim de criar em seu suporte permanente um tnue equilbrio das foras que se organizam entre as referncias espaciais. Uma caracterstica, bastante acentuada nesta tendncia de expanso de fronteiras a ilimitada possibilidade de se produzir imagens sem referncias e identificao. A prtica

    da fotografia tem sido renovada com o desenvolvimento de uma outra conscincia artstica, e nos interessa aprofundar uma investigao sobre os mtodos dessa nova experin-cia esttica. A fotografia, nos parece, insere-se agora no projeto visual de novas buscas sensoriais, perceptuais e conceituais.A produo imagtica contempornea deixa de ter relaes com o mundo visvel imediato, pois no pertence mais ordem das aparncias, mas sugere diferentes possibilida-des de suscitar incertezas em nossos sentidos. Trata-se de compreender a fotografia contempornea a partir de uma reflexo mais geral sobre as relaes entre o inteligvel e o sensvel, encontradas nas suas dimenses estticas.

  • Artista Convidado

    Janduari Simes

  • Cidade invisvel

    Fbrica Palmeira. Novembro, 1975

  • Cidade invisvel

    Fotgrafo de formao documental, trabalhando para jornais e instituies desde meados dos anos de 1970, Janduari Simes construiu sua trajetria em Belm, aps o perodo inicial de sua carreira na Bahia, sua terra natal. Nos anos 1990 comeou um trabalho voltado ao Mercado do Ver-o-Peso e revelou, em sua abordagem antropolgica, um olhar plstico apurado para as formas e cores presentes no mercado.Alm das pautas convencionais que conduzem o seu dia a dia, Simes flerta com o espao urbano, atento s transformaes, aos costumes e hbitos cotidia-nos inseridos na geografia arquitetnica. Em Cidade iInvisvel, rene duas sries de imagens que unem as extremidades cronolgicas de sua trajetria: 1975 a 2012-2013. A srie de 2012 centra a ateno na estrutura formal das moradias, seja no Palcio do Rdio, prdio de aparta-mentos e escritrios na rea central, ou nas habitaes em bairros perifricos. Ao compor uma srie contnua de fachadas com enquadramento frontal e aplicar a mesma lgica na composio dos apartamentos, o fo-tgrafo pe em evidncia as semelhanas que anulam o limite entre centro e periferia. As casas populares assumem uma conformao construtivista, apontando volumes e formas geomtricas impensadas, ao passo que os apartamentos projetados na era moderna da ar-quitetura revelam, em sua ocupao contempornea, assimetrias, linhas irregulares e certo caos distantes do projeto inicial para o qual foram pensados.

    A outra srie, realizada em 1975, capta, em preto e branco, a quadra que abrigava a Fbrica Palmeira sendo demolida, perodo desastroso no contexto ditatorial em que o Brasil teve grande parte de seu patrimnio arquitetnico destrudo pelo regime mi-litar. Esse tempo captado por Janduari Simes o nascimento de uma das maiores cicatrizes urbanas ocorridas em Belm e que hoje atende pelo nome de Buraco da Palmeira. As imagens dos restos da edi-ficao da Fbrica Palmeira so melanclicas, e, ao mesmo tempo, registros documentais de uma paisa-gem que ningum (ou quase ningum) fotografou. As imagens da Palmeira, sofisticada f brica de doces, massas e amanteigados, revisitam, em sentido mais global, a esttica clssica da fotografia urbana que atestou o fim de uma era e o incio de uma moderni-dade. Em certa medida, evoca Eugne Atget em uma Paris desolada e silenciosa na passagem do sculo XIX para o XX. A Paris de Atget carrega, apesar da melancolia, a esperana moderna da evoluo das cidades, e a Belm de Janduari Simes flagra, com semelhante melancolia, o fracasso da mesma mo-dernidade. O artista recoloca em nosso contexto a invisibilidade de uma cidade; uma cidade que a gente no quer ver ou no consegue mais ver.

    Mariano Klautau Filho

  • Palcio do Rdio.

    Agosto de 2013/2014

  • Belm, 2012

  • Imagem, registro, poticaUma conversa com Janduari Simes

    Janduari Simes, artista convidado da quinta edio do Prmio Dirio Contemporneo de Fotografia, tem dedicado sua produo fotogrfica documentao dos aspectos da cultura popular no Brasil, especialmente da Regio Norte, somada a projetos pessoais importantes, como as sries sobre o mercado Ver-o-Peso, captado em diversos perodos histricos, e o trabalho sobre a Marujada na cidade de Bragana, interior do Par.Para o Prmio Dirio, foram reunidas duas fases cujo objeto cen-tral a cidade e a memria de suas edificaes: a srie, at ento indita, sobre as runas da Fbrica Palmeira, fotografada em 1975, e um conjunto de imagens sobre fachadas residenciais na periferia em dilogo com as sacadas de um prdio moderno no centro de Belm, realizadas entre 2012 e 2013. As idas e vindas entre Salvador, Roma e Belm, no seu perodo de formao, e as fuses entre as prticas de documentarista, reprter fotogrfico e artista revelam uma produo significativa e a busca permanente pela fotografia como expresso.O Museu da Universidade Federal do Par recebeu Janduari Simes para uma conversa com o pblico por ocasio de sua ex-posio Cidade Invisvel, realizada especialmente para o Dirio Contemporneo. A conversa ocorreu em 27 de maio de 2014 e teve como mediadora Marisa Mokarzel, colaboradora especial da quinta edio do projeto.

    Marisa Mokarzel: Boa noite. Para mim, um prazer fa-zer a mediao da conversa com o Janduari porque eu j o conheo desde o Museu Goeldi, onde a gente teve a oportunidade de fazer alguns trabalhos juntos. O Janduari Simes, artista convidado desta quinta edio do [Prmio] Dirio Contemporneo, baiano de Itabuna e veio para Belm em 1975. Ele tem um arquivo fotogrfico imenso,

    que abrange desde o fotojornalismo at as experincias de documentao da cultura popular, incluindo os ensaios sobre o Ver-o-Peso. Alm disso, trabalha tambm com questes da memria e do patrimnio voltado para o es-pao urbano. O Janduari vai iniciar mostrando um pouco da sua produo e, se vocs quiserem, podemos intervir durante a sua fala. Depois farei algumas perguntas para dar continuidade a nossa conversa.Janduari Simes: Boa noite. Eu vou comear mostrando al-gumas coisas que fiz. Tentei fazer uma cronologia e chamei esse ensaio de Primeiros Passos, porque um ensaio sobre msicos, um trabalho que comecei a fazer muito aqui em Belm. Essa inclusive a minha primeira fotografia, que eu fiz l em Salvador, em 197374. Foi um filme inteiro, e a melhor era essa. As outras seguintes, tambm com msi-cos, so coisas que eu fiz aqui em Belm. Essa, por exem-plo, foi quando eu cheguei aqui em Belm: era um show da Gal Costa. Fotografar msico, para mim, foi sem-pre uma busca. Naquela poca, eu s pensava em fotografar msico; fazia ou-tras coisas, mas minha histria era com msica. Eu vivia muito a

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    msica. Tenho muito disco. Eu era fissurado nessa coi-sa. Ento calhou tambm que, nessa poca, aconteceu o Projeto Pixinguinha, e eu ia para o Teatro da Paz com uma cmera na mo e entrava numa boa, e ningum pedia ingresso na porta. Batiam nas costas e deixavam entrar. Foi quando eu senti que fotgrafo tinha um prestgio; a mquina fazia voc entrar e ficar no palco com o pessoal e tal. Foi uma poca legal. Hoje bem diferente.

    Essa a foto do primeiro show da Faf de Belm. Foi em 76. A j o pessoal do Projeto Pixinguinha. Tem o Cartola que na poca estava no auge. Todo mundo s falava do Cartola. No Pixinguinha tinha Cartola, Joo do Vale. Era um pessoal que estava no ostracismo e o Projeto Pixinguinha, a partir do Hermnio Bello de Carvalho, comeou a resgatar

    esse pessoal. Moreira da Silva, o Nelson Cavaquinho, tem o Paulo Moura. Esse material inclui uns dois ou trs pro-jetos Pixinguinha que fotografei em Belm. Aqui j na Itlia, uma foto do Ron Carter em um festival de jazz que tinha l. E eu sempre atrs dos caras. Aqui a Sun Ra Arkestra. Uma coisa que eu queria ver muito era uma orques-tra de jazz. E essa orquestra foi um presente porque os caras eram muito loucos; danavam pra caramba em cima do palco, todo mundo vestido de egpcio. Era uma coisa estranhssima. Esse o saxofonista Archie Shepp, tambm l na Itlia. Aqui j uma parte da minha vida l em Salvador. Quando eu sa de Belm em 80, o Miguel [Chikaoka] estava chegando aqui, ento a gente se encon-trou s vezes. Eu me lembro vagamente de ter encontrando o Miguel na rua, mas eu j estava com a cabea em outro lugar; indo embora pra Itlia.Quando eu voltei da Itlia, fiquei morando em Salvador e depois voltei para Belm. Essas so imagens de coisas que fiz quando voltei para Belm, so umas publicaes de que participei, fotos do Museu Emlio Goeldi, alguns cartes postais. Esse da caveira era do Museu Britnico; foi de uma exposio sobre a Amaznia que fizeram l. Os outros (o da montanha) uma obra do [Francisco] Klinger [Carvalho], uma exposio dele na Galeria Theodoro Braga. Ele me pediu que fizesse a fotografia e virou um carto postal.

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    As outras so minhas, cartes postais que eu tentei editar aqui uma poca. Esses so uns livros de que participei. Alm desses livros sobre a iconografia da pesca ribeirinha, tenho uns livros somente com fotos minhas. Os outros livros so participaes, como esse, Vivas da Terra, por exemplo. Com ele, a gente ganhou um Prmio Jabuti na poca. Era a histria das senhoras, esposas dos caras que foram mortos no sul do Par. Bom, aqui j uma matria sobre o livro que saiu na poca. Ento, essa produo toda so colaboraes; imagens tambm de matrias sobre esses projetos alm de matrias em que eu participei para outras revistas, como por exemplo, Caminhos da Terra, da Editora Abril. Aqui uma delas, sobre Altamira, que o maior municpio do mundo.Em Salvador, eu participava da Veja Bahia, e aqui em Belm tinha tambm a Veja Belm. Isso foi legal porque deu pra gente fazer bastante coisa, como matrias para a Veja nacio-nal. Essa a capa da Veja com a foto do Brizola. Isso foi l em Salvador, no debate na televiso. As outras so matrias que a gente fez aqui ao longo de dois anos ou alguma coisa...Aqui tem uma srie de fotos de Roma. Foi l que eu comecei a fotografar mais na rua. O meu curso era de fotografia de estdio. E sempre naquele perrengue, quer dizer, es-tudante nunca tem dinheiro e o pouco que tem ele tem que aproveitar. Ento, minha fotografia de estdio era geralmente com comida. O professor enchia meu saco: Voc sempre fotografa comida. Eu disse: porque eu compro e depois eu como. Frutas... Ento eu levava para casa as frutas para comer. Com a economia, eu comprava os filmes 35 mm para fotografar na rua. Ficava passeando. Eu morava perto do Vaticano. Gostava muito. Era o en-torno, essas imagens do Frum Olmpico, de um campo de futebol... E, no Vaticano, todos querendo ver o papa [Joo Paulo Segundo]. Em Belm, quando o papa esteve aqui, eu quase fui morto aqui na [antiga] Av. Primeiro de Dezembro de tanta gente que tinha l. Em Roma, eu fiquei um ano, mais ou menos, e no me interessei em fotografar

    o papa. O papa estava sempre por l, todo domingo que ele saa para visitar. O povo ento fazia um caminho para ele passar em carro aberto. Isso antes de ele ser atingido.Eu adorava sair para a rua para fotografar. Meu professor sempre achava que eu tinha essa coisa do Cartier-Bresson, porque, engraado, mas nessa poca no tinha muito essa histria de voc ouvir falar do fotgrafo; no se falava do fotgrafo (...) Isso 1980. Eu lembro que os primeiros fotgrafos de quem ouvia falar, independente dos brasi-leiros (porque a referncia da revista Realidade, na poca, que deu mais visibilidade para os fotgrafos), era Richard Avedon. Era esse pessoal que trabalhava mais com publi-cidade. Eram matrias s com fotos, fotos imensas. Eu me lembro que a primeira vez em que eu vi umas fotos da Amaznia que me impressionaram foi nessa revista. Eram do George Love. Eram umas coisas bem abstratas, eram pedaos, detalhes dos rios, muito invocado... E eram um pouco parecidas com Peter Turner, um fotgrafo americano que puxa bem para as cores, bem colorido.Bom, voltando s imagens das ruas romanas que eram os passeios que eu adorava fazer. Como essa escultura que encontrei na rea de um hospital, que fica no meio do rio da cidade. Aqui so uns amigos. Eu tinha que fazer uns retratos tambm para o curso, e esse era um colega meu de pensionato, um nigeriano.Marisa Mokarzel: Qual foi o curso realizado na Itlia?Janduari Simes: O curso era Comunicao Visual, vol-tado mais para fotografia de estdio. Tnhamos que foto-grafar coisas. Quando eu cheguei l, j estava atrasado. Geralmente se trabalhava em dupla porque, como eram cmeras grandes, voc ficava atrs da cmera, fazendo foco, olhando a composio e o outro ajudava a sistema-tizar a luz, arrumar os objetos e coisas assim. Eu no tinha essa ajuda; s vezes o professor vinha para me dar uma dica. s vezes tnhamos duas horas para realizar o trabalho. Outras vezes eu passava um tempo arrumando as coisas e, quando eu ia fotografar, tinha que fazer tudo rpido. No

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    tinha direito nem de mudar, porque j tinha outra pessoa para ocupar o estdio o estdio da prpria escola. A no fiz muita coisa, no produzi muita coisa. Produzi mais fora e usava o laboratrio da escola para fazer as cpias.Marisa Mokarzel: Quer dizer, tu no fazes trabalho de estdio e acabou que a viagem e todo o processo do curso foram feitos mais por tuas andanas?Janduari Simes: isso. Eu usei a cidade para desenvolver mais a prtica de fotografar na rua, que eu no tinha muito. Aqui em Belm eu ia para a rua, mas era pouco. E l no, l s era fotografia, eu pensava fotografia 24 horas por dia. Ento foi uma beleza! A gente pensa fotografia duas horas ou ento quando t fazendo. O resto para ganhar dinheiro para pagar a dvida, buscar menino na escola etc. Voc no tem muito tempo para pensar. Eu sinto falta disso, quando o cara te larga na ribanceira, e a voc s faz aquilo. Essa aqui uma fotografia do escritor Julio Cortzar.

    Na poca, ele estava no auge, dcadas de 70, 80. Fui fazer matria para um jornal que tinha dentro do pensionato de estudantes estrangeiros. Eu lia o Cortzar l em Salvador. Quando o cara me chamou, eu disse: Rapaz, eu vou at de graa! Foi bacana, uma foto na rua. Ele estava fazendo a palestra e, quando saiu, a gente ficou conversando. E tinha outras fotos dele com outro escritor, que eu no sei quem .Eu via muita fotografia e sempre li muito, revistas, prin-cipalmente. Ento, sempre prestava ateno nas fotos. Quando eu comecei a fotografar, no Brasil no tinha escola de fotografia. Voc aprendia olhando, e algum me disse uma vez: voc quer fotografar, voc tem que ver muita foto. Quando eu cheguei Itlia, o cara falou para mim a mesma coisa. Ento, eu olhava muita fotografia. Nunca tive referncia de fotgrafo, mesmo porque eu no conhecia esses caras.Plateia: Na poca, era a dificuldade de acesso aos li-vros no Brasil. Em Belm havia os encontros chamados Autografias, que tentavam dar um repertrio. Imagino que, na Europa, certamente a possibilidade de ver livro de fotografia se ampliava consideravelmente.Janduari Simes: Sim, sem dvida.Plateia: Estou dizendo isso porque realmente concordo que as tuas fotos tm uma coisa bressoniana. Tem um olhar muito elegante. D a impresso mesmo de que uma pessoa que j est bebendo h muito tempo [na fonte] de bons autores.Janduari Simes: , mas eu no tinha muito essas refern-cias. Depois, quando eu voltei da Itlia que a gente come-ou a ter umas reunies em Salvador, que eram parecidas com essas que estavam acontecendo aqui na Fotoativa com o Miguel [Chikaoka]. A gente teve um grupo l que reuniu Maria Sampaio, Isabel Gouva, Aristides Alves, Adenor Gondim, estavam todos criando ainda esse grupo. Eu cheguei no jornal para trabalhar um dia e perguntei para o cara que era chefe de reportagem, que tambm era crtico de arte, se tinha um grupo em Salvador que

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    estava fazendo isso. Ento, ele me mostrou um anncio que estava l e, por coincidncia, o cara estava recrutando essas pessoas, o Rino Marconi. E ns comeamos a nos reunir numa casa e tal, e a foi que comeou e eu comecei a tomar conhecimento de outros caras. E o Arlindo Machado foi o primeiro crtico de fotografia que eu li na vida. Aquele livro que ningum entende nada... Eu aprendi a fotografar aqui em Belm porque l em Salvador eu era estudante, vivia s custas do meu pai e fiz um curso no Sesc/Senac. Era um curso que comeou com dez pessoas e, no fim, sobrei eu porque a preocupao das pessoas era com o equipamento fotogrfico. Ningum tinha dinheiro para comprar equipamento fotogrfico. Ou voc comprava de segunda ou ento tinha que ter grana para viajar para fora, ou mandar buscar. Era a coisa mais difcil, tudo era difcil. E eu aprendi a fotografar, mas no tinha cmera. Aprendi a estudar fotografia porque eu tinha um amigo que frequentava meu apartamento e que era fotgrafo de publicidade.Marisa Mokarzel: E o que que te leva fotografia, a esse interesse pela fotografia?Janduari Simes: Olha, quando eu sa de Salvador, eu buscava uma opo de trabalho. Eu sa com a inteno de ir para So Paulo, porque a meca era So Paulo. Ento, para trabalhar em jornal, eu precisava saber fotografar. Eu sabia mais ou menos. Podia arranjar um emprego com fotgrafo. Mas eu vim para Belm, eu fiz o caminho inverso do nordestino, eu vim para o Norte. Nordestino geral-mente vai para o Sul e eu vim para o Norte. Eu vim porque tinha um amigo aqui. A gente morou junto em Salvador e ele disse: Olha, vai l para Belm. Fica l um tempo comigo e depois vai embora, se quiser. S que, quando eu cheguei aqui, no tinha dinheiro para nada. Estava num mato sem cachorro. Tinha um lugar para morar, sabia fotografar mais ou menos, mas no tinha emprego. No tinha como trabalhar, no tinha jornal para me contratar, no tinha experincia nenhuma, profissional. E a, ele me

    arranjou um trabalho para fazer na Embrapa. Para ganhar uma grana com laboratrio... Uma coisa assim. E depois surgiu a chance no museu [Emlio Goeldi]. O museu estava mudando de regime, de estatutrio para CLT, e a, eu fui l. Me disseram: faa um currculo. Mas currculo de qu? Eu no sei fazer nada. Nunca fiz nada na vida. Como vou fazer currculo? J fez curso de ingls?, J, Ento bota aqui: curso de ingls. Eu fiz at o terceiro ano cientfico, Ento, bota aqui, terceiro ano cientfico. Eu fui fazen-do, n, mas no tinha feito nada. Fui l, apresentei meu currculo, chorei minhas mgoas. A d. Clara Galvo disse que tudo bem, e eu fui embora. Quinze dias depois, ela me chamou e disse: Gostei de voc, da sua sinceridade. Voc vai ficar aqui, eu vou lhe contratar [por] trs meses no museu. E, nesses trs meses, eu quero que voc faa o projeto para o laboratrio fotogrfico. Porque eu quero mudar tudo isso, dinamizar o trabalho.Eu no sabia nem o que era projeto na minha vida. Fiquei um tempo sentado no parque. O parque, nessa poca, no era pago, ento entrava todo mundo. E eu ficava l sentado no parque, olhando as pessoas, porque eu no sabia o que fazer. At que algum, um cara que trabalha-va l, o Ricardo, disse: No fique sentado a que o cara vai te botar pra fora. Voc tem que fazer alguma coisa. Tem um projeto para fazer, e eu vou lhe ensinar. A, d. Clara me chamou e disse: Tem um livro. A atrs tem umas revistas, voc vai lendo e vai fazendo. Por sorte, tinha uma publicao da Kodak que ensinava como fazer laboratrio, e a eu comecei a fazer um projeto baseado naquilo ali. O tamanho das pias e as medidas das coisas e os materiais. Eu tinha um certo conhecimento das coisas. E passei a fazer o projeto. Eu podia comprar material; eu pedia material e eles compravam, e era muito... Eram 50 filmes de slides, eram 50 filmes em preto e branco. E no tinha volume de trabalho dentro do museu para absorver esses filmes, ento eu fazia o qu? Eu ficava fotografando os bichinhos dentro da lagoa. Eu sentava na beira do lago,

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    ficava fotografando liblula, e ento eu fui aprendendo isso. No laboratrio, eu revelava, errava. Fazia o revela-dor, mas sempre com o sentido de um dia sair para poder fazer um curso. Porque aqui no tinha nada. No existia essa possibilidade. O curso que existia de fotografia era na cadeira de Arquitetura. L na Bahia, uma vez me falaram: Olha, s tem curso de fotografia em arquitetura. E a eu fui aprendendo. O Projeto Pixinguinha, no Teatro da Paz, eu fiz todo com o material que era do museu. E ento, eu ia l e copiava fotos 30x40... E fui aprendendo na porrada.Quando eu cheguei Itlia para fazer o curso, tive que reaprender tudo. O que eu fazia aqui, o professor dizia [que] no era assim. Tinha que fazer bem devagarzinho. Era uma delicadeza que eu no tinha aqui, inclusive para revelar os filmes. Eu sabia que tinha que ser devagar, isso pouco importava para mim. Porque o que importava era eu ter a imagem, e a aprendi todo um detalhamento no laboratrio. Hoje no interessa mais coisa nenhuma por-que voc pega uma cmera digital e ela faz tudo para voc. No precisa saber curva caracterstica, curva no sei... esses detalhes todos que tnhamos que saber do filme para voc pegar todas as nuances do preto e do branco. Um pro-cesso de fsica e qumica sem fim. Ento, quando eu voltei para Salvador, eu tive que reaprender a fotografar porque, quando eu cheguei ao jornal, foi um trauma. Porque o cara, quando foi revelar meu primeiro filme, parecia que ele estava fazendo um coquetel. Ele balanava assim... Eu sa do laboratrio traumatizado... Na hora de revelar, era de qualquer jeito. E a, eu tive que me reeducar e saber que aquilo que ele estava fazendo que dava resultado. O resultado era para o jornal. Eu pensava numa outra fo-tografia, uma coisa mais delicada. O jornal uma coisa de porrada. Na poca no havia cuidado nenhum com nada. Voc fazia as fotos 10x15 para botar no jornal e era uma briga porque no tinha aquele cuidado de diminuir a imagem para colocar no lugar. Eles pegavam a foto, iam diminuindo a imagem at caber no lugar certo. Fotografia

    em jornal era um tapa-buraco. A no ser foto da primeira pgina, o resto era isso. Hoje se tem mais cuidado; se pode diminuir no computador. Na poca, era uma briga com o pessoal dos diagramadores. Eu ficava s vezes do lado do rapaz dizendo: No faa isso..., Ah, aqui assim mesmo, faz assim.Esse trabalho aqui, acho que vocs conhecem mais. sobre o Ver-o-Peso. Na verdade, a histria do Ver-o-Peso um negcio incrvel. Quando eu morei aqui a primeira vez, no ia ao Ver-o-Peso de manh. No gostava desse furduno da feira, entendeu? Eu ia tarde, e era outro pblico, outra gente, um bocado de bandido, ladrozinho, submundo, mas eu gostava daquilo l, sabe? E tinha muita gente pes-cando... Era uma outra histria. Outro dia eu fui l e tinha muito drogado, um fedor de crack, um negcio horroroso, muito deprimente... E tem esses becos, e a polcia est l, mas no faz nada. Mas naquela poca o Ver-o-Peso era mais aberto, as barracas. Eu t falando de 75. Ento no sei o que acontecia de manh na feira. Eu ia mais tarde, e eu ainda tenho umas coisas dessa poca em que as barracas eram coisas totalmente diferentes. Eram uns caminhos assim, entendeu? Ento, voc ia ao Ver-o-Peso, ficava tudo aberto, se via tudo. A interferncia da feira era muito pouca na paisagem. Voc tinha a feira toda aber-ta, as barracas eram todas abertas. Essas imagens j so parte de uma poca depois de 89, quando eu voltei pra c na dcada de 90. Antes da reforma, n? Nessa outra poca, eu j ia mais de manh. Esse material foi mostrado em 2004, no MABE. E foi a Rosely [Nakagawa] que fez a curadoria dessas imagens. Mas eu tinha feito uma outra exposio que at o Patrick [Pardini] fez a curadoria com a Lcia (Hussak). Foram s retratos. Existem trabalhos de diferentes fases do mercado, desde os anos 70, negativos em preto e branco, em cor, cromo, e at recentemente, um trabalho digital.Saindo do mercado, tem outras coisas diferentes. Como, por exemplo, essas que fiz de carro. No foi de propsito,

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    foi por acaso que descobri e gostei da brincadeira, e a pas-sei a fazer isso sempre agora. Eu fiz esse pequeno ensaio, completamente aleatrio, no tem controle. s vezes eu gosto dessas coisas, me lembram Manabu Mabe. Eu fico, s vezes, querendo fazer uma fotografia nesse estilo. s vezes, eu fico achando que [com] a pintura, d para voc viajar mais.Marisa Mokarzel: Olhando essa imagem, quase abstra-ta, prxima pintura. Isso tem a ver como o teu ingresso recentemente no curso de Artes Visuais? E por que esse ingresso?Janduari Simes: No, no tem a ver. Isso tudo foi fei-to antes do curso. Eu estava querendo fazer um curso na Universidade, aprender algumas coisas e acho que a Universidade pode me ajudar a organizar mais as minhas ideias. E a eu fui fazer jornalismo porque eu j estava no meio, pelo menos sabia o que eu estava fazendo. Mas a um amigo meu disse: Por que voc no vai fazer Artes Visuais? Acho que est mais dentro do que voc est fazendo. E como arte foi uma coisa que sempre me interessou, a fotografia tambm como arte, no s como documento. A eu achei uma boa e troquei. Fui l, dei uma chorada, me aceitaram e eu t fazendo Artes Visuais.Plateia: Acho que a Universidade, mesmo no querendo s vezes demonstrar, precisa muito das coisas que vm do mundo, se nutre delas para a reflexo. Ento, esse teu olhar l dentro certamente um presente para a academia.Marisa Mokarzel: Como tu recebeste o convite do Mariano e como foi o processo de curadoria para essa exposio que est aqui no Museu da UFPA? Como que vocs chegaram escolha dessas fotografias?Janduari Simes: Fiquei muito surpreso com o convite, na verdade. No esperava que fosse ser convidado to cedo. A gente nunca sabe o que esto pensando da gente. Quando ele comeou a olhar o material, eu tentei mostrar uma coisa completamente diferente do que est aqui. Eu tinha a ideia desse material das casas. Eu tinha uma ideia

    de fazer outra coisa. E a, eu tinha umas cpias ampliadas e a mostrei para ele umas coisas abstratas e tal... At que cheguei nessas fotos da Fbrica Palmeira. Ele comeou a ver no meu computador e se encantou com isso. Porque um material que nunca foi mostrado. Nunca mostrei para ningum, em poca nenhuma. O material estava super de-tonado e eu achei que poderia um dia servir. Eu o guardei e o escaneei de modo horrvel. Quando o Mariano comeou a olhar, eu disse que precisava de uma pessoa que fizesse um escaneamento, uma limpeza nesse material porque eu no estava conseguindo fazer. Estava achando muito ruim. Ele falou com o Alberto [Bitar]. O Alberto detonou logo. Disse que tinha que lavar, que estava muito ruim. E a eu passei para o Albany, que deu uma lavada; limpou com lcool etlico... Alguma coisa assim, e sei que ficou legal. As cpias ficaram muito boas. Quando o Mariano viu isso aqui, fez uma ligao com outra coisa, vendo o meu interesse pela cidade e a imagem do Edifcio Palcio do Rdio. uma foto que fiz no meio de uma matria. Cheguei janela e topei com essa viso do edifcio e fiz a foto. Ele se entusiasmou pelo material e a gente fez essa edio, focando nos apartamentos como casinhas. A minha ideia era fazer uma exposio s com essas coisas mais arquitetnicas dessas fotos do Palcio. A gente comeou a conversar sobre o desdobramento do trabalho dentro do Palcio do Rdio.Plateia: O que que tu mais gostas de fazer: o preto e branco ou a cor?Janduari Simes: Eu gosto mais da cor. Ento, eu nunca penso em preto e branco. J fotografei muito e gostava de fotografar em preto e branco. Em geral, eu vejo tudo colorido. No vejo mais nada em preto e branco. Nem show de msica, nem nada. A cor uma coisa que me domina atualmente at mesmo pela histria da facilidade digital e aspecto comercial, sem esquecer o trabalho pes-soal. Quando eu saio, eu fao as duas coisas... Eu tenho o meu olhar que aquilo que eu gosto. Alm disso, tenho

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    a preocupao de fazer uma coisa mais documental que pode servir para alguma outra coisa. Ento, tem que ser colorido, porque ningum compra foto preto e branco. A no ser para colocar na parede. Mas para produo de revista, difcil. Agora mesmo, t fazendo um material para um livro sobre o Par, que um livro didtico. Ento, j me pediram coisas que eu tinha e coisas que eu no tenho. Quando eu no tenho, eu tenho que sair para fotografar. Ento, s aquilo que eu vejo. outra histria. No tem nada a ver. s vezes eu acho chato. No meio do trabalho, comeo a desviar um pouco, porque se voc muito cria-tivo numa foto jornalstica, os caras no querem. Tem que ser o feijo com arroz. A melhor maneira possvel, mas tem que ser o feijo com arroz. No d para voc cortar o objeto na metade ou s botar um pedacinho porque voc gosta pessoalmente daquilo. Mas o cara l no quer saber disso, ele quer a informao inteira.Plateia: Quando eu vim ver a exposio uns dias atrs, eu fiquei perguntando o que ele escolheu para colocar? E eu fiquei to feliz quando eu vi. Eu sou superf dos fo-tgrafos que permitem uma coisa da transversalidade da imagem. Quando eu vejo um pouquinho o trabalho da Elza (Lima), da bolsa do IAP, por exemplo. J acompanhei vrias vezes alguns processos da Elza, e encantador, uma coisa instigante. Ela tambm j t usando mdias bastante contemporneas, nos chamando para ver as ima-gens com outros olhares e, quando eu entrei aqui, fiquei superencantada em ver a fotografia tradicional, na pare-de, achei muito bacana. Na verdade, eu sou apaixonada pelo trabalho dos dois. Me encantou muito ver o fotgrafo mostrando a cidade, ver cenas absolutamente cotidianas, na Avenida Presidente Vargas.... E olhando tambm as casinhas na periferia, os desenhos no Palcio do Rdio. Eu adoro fazer colees, meu arquivo cheio de peque-nas colees. Eu dou o nome colees, n? Ento eu vou fazendo pequenas colees e fiquei me perguntando. Mas eu fiquei me perguntando como que isso acontece na tua

    cabea. Voc vai criando determinadas reas, mapeando a cidade? Como tu arrumas isso? Seja no teu arquivo, seja no computador, enfim...Janduari Simes: Sobre essas fachadas, foi o seguinte: eu estava trabalhando na campanha do [Arnaldo] Jordy e andava pela periferia da cidade. Entrava nesses becos. Comecei a fotografar primeiro as casas que tinham grades, que me impressionaram bastante. Era um lugar pobre, mas tinha grades. E grade se v aqui em tudo quanto casa. No existe mais casa sem grade, um negcio opressor. Depois eu comecei a diversificar, a comear olhar o dese-nho das casas, as cores, a esttica da casa, a luz. Teve um dia que ele (Arnaldo Jordy) ficou olhando para mim, porque eu larguei ele de lado e fiquei fotografando as casinhas. Eram muitas casas, eu ficava louco. Tinha lugar que era cada uma de um desenho diferente. Ento eu fiz muita coisa; tem mais de mil casas fotografadas. Ento, isso a tambm cria, digamos assim, colees. Mas s vezes eu saio com a cmera e fotografo uma coisa que vai ficar per-dida e que no d para fazer uma coleo a partir dela. Se eu fizer outras coisas, tem horas que aquilo me chama ateno. s vezes eu fao uma imagem que pode resultar em uma coisa diferente. Como por exemplo, essa da quase paisagem, quase miragem. E com isso vou experimentan-do. s vezes a luz que me chama ateno para uma coisa. Eu tenho coleo de batedor de porta. Sabe aqueles puxadores de porta antigos? Tem poca em que eu saio fotografando aquilo, eu tenho uma coleo daquilo. Desde 75 eu j fazia isso. E a, outro dia eu estava fotografando s azulejos, ento eu tenho uma porrada de azulejos. E esse batedor de porta me chamou ateno, que uma coisa que est acabando em Belm. Os caras tiram aqueles batedores antigos para botar qualquer puxador. Tem uns lindos ali na Cidade Velha.Alexandre Sequeira: Eu conheo muito e acompanho muito o teu trabalho. At mesmo o trabalho com o olhar sobre a cultura local, o mercado do Ver-o-Peso. Eu te acho

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    um colorista impressionante. lindo teu trabalho com a cor. E eu fiquei muito surpreso e emocionado em ver a [Fbrica] Palmeira, pois tive a oportunidade, muito mo-lequinho, de entrar na Palmeira com a minha v, quando ela ia ao Comrcio, l embaixo, como se dizia na poca. E sempre que ela ia l embaixo, o passeio tinha que acabar comendo um pastel de santa clara na Palmeira. A minha memria da Palmeira muito apagada, eu lembro muito mais do sabor do que do local. Mas eu fiquei muito emocionado de ver a Palmeira e, ao mesmo tempo, achei muito feliz do Mariano o encontro, por exemplo, com o Palcio do Rdio, e da gente se deparar com o quanto em Belm existe um culto da falncia; no que a gente cultua a degradao tanto duma perda da Palmeira quanto de uma arquitetura moderna. Eu moro numa casa dos anos 30, 1930. E incrvel o quanto a arquitetura modernista do Par est na mais completa falncia. Parece que o paraense mais se orgulha de cultuar uma memria, e no um bem presente [...] emociona muito mais ter uma memria do que ter o bem. Ento achei muito feliz a gente se deparar com esses dados. E ali eu j vi um recorte da cidade se aproximando do colorista. Porque parece um patchwork, parece uma colagem e que tambm , de certa forma, um riqueza arquitetnica e que tambm a gente desconsidera, a arquitetura raio que o parta, por exemplo. Algumas pre-ciosidades em Belm que a gente insiste em no valorizar. Nesse ponto eu achei um conjunto muito feliz, tanto no que a gente perdeu e quanto no que a gente ainda tem e est perdendo bem na nossa frente, sem se dar conta.Marisa Mokarzel: o extremo de 1975, 2013 e 2014. Algo da perda, da ausncia e do que existe. E esse aspecto tambm tem a ver com o documental, de certa forma muito ligado a uma coisa f