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susan sontag
Diários(1947-63)
Organização e prefácio
David Rieff
Tradução
Rubens Figueiredo
Diarios 4a prova 7/23/09 5:10 PM Page 3
Copyright © 2008 by Espólio de Susan SontagCopyright do prefácio © 2008 by David RieffTodos os direitos reservados.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Título originalReborn
Foto de capaFred W. McDarrah/ Getty Images
PreparaçãoLeny Cordeiro
RevisãoVeridiana MaenakaIsabel Jorge Cury
[2009]Todos os direitos desta edição reservados àEDITORA SCHWARCZ LTDA.Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 — São Paulo — SP
Telefone (11) 3707-3500
Fax (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Sontag, Susan, 1933-2004.
Diários : (1947-63) / Susan Sontag ; organização e prefácio
David Rieff ; tradução Rubens Figueiredo. — São Paulo : Com-
panhia das Letras, 2009.
Título original : Reborn
ISBN 978-85-359-1507-5
1. Escritores americanos - Século 20 - Diários 2. Mulheres e lite-
ratura - Estados Unidos - História - Século 20 3. Sontag, Susan,
1933-2004 - Anotações, rascunhos etc. 4. Sontag, Susan, 1933-
2004 - Diários I. Rieff, David. II. Título.
09-06427 CDD-818.5409
Índice para catálogo sistemático:
1. Escritoras norte-americanas : Diários 818.5409
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Sumário
Prefácio de David Rieff, 7
Diários, 15
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Prefácio
Sempre achei que uma das coisas mais tolas que os vivos
dizem a respeito dos mortos é a expressão “fulano teria desejado
que fosse assim”. No máximo é palpite; na maioria das vezes, é
húbris, por melhor que seja a intenção. A gente não tem como
saber. Assim, o que quer que se possa dizer sobre a publicação de
Diários (1947-63), o primeiro volume do que será um dia uma
coletânea dos diários de Susan Sontag em três volumes, não é este
o livro que ela teria feito — e isso supõe,em primeiro lugar,que ela
teria resolvido publicar estes diários. Em vez disso, a decisão de
publicar e a seleção foram apenas minhas. Mesmo quando não
existe a questão da censura, os perigos literários e os riscos morais
de tal empreitada são evidentes. Caveat lector.
Não é uma decisão que eu quis tomar. Mas minha mãe mor-
reu sem deixar instruções sobre o que fazer com seus papéis e seus
escritos inacabados ou não organizados. Isso pode parecer des-
toante para uma pessoa tão zelosa com a sua obra, que trabalhava
arduamente nas traduções, mesmo para idiomas que conhecia
apenas por alto, e que tinha opiniões abalizadas e firmes sobre edi-
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tores e revistas do mundo inteiro. Porém, a despeito da letalidade
da síndrome mielodisplásica, o câncer no sangue que a matou em
28 de dezembro de 2004, até poucas semanas antes da sua morte
ela continuava a acreditar que ia sobreviver. Assim, em vez de fa-
lar sobre como queria que os outros cuidassem da sua obra quando
já não estivesse mais presente para cuidar por si mesma — como
provavelmente teria feito alguém mais conformado com a mor-
te —, ela falava de modo enfático em voltar ao trabalho e de tudo
o que escreveria assim que saísse do hospital.
No que me diz respeito,minha mãe tinha um direito absoluto
de morrer como quisesse. Não devia nada à posteridade, muito
menos a mim,enquanto lutava para viver.Mas é óbvio que existem
consequências involuntárias da sua decisão — a mais importante
aqui é que coube a mim decidir como publicar os escritos que ela
deixou. No caso dos seus ensaios, publicados em Ao mesmo tempo
dois anos após sua morte, as escolhas foram relativamente fáceis.
A despeito do fato de que minha mãe por certo os teria revisado de
forma substancial antes de sua republicação, os ensaios já haviam
sido publicados, ou lidos em palestras, enquanto ela era viva. Suas
intenções estavam claras.
Estes diários são um caso em tudo distinto. Foram escritos só
para ela mesma continuamente desde o início da adolescência até
os seus últimos anos de vida,quando seu prazer com o computador
e com os e-mails parece ter posto um freio no interesse em manter
um diário. Ela nunca permitiu que nenhuma linha deles fosse
publicada, tampouco; ao contrário de alguns autores de diários, os
lia para os amigos, embora os mais íntimos soubessem da existên-
cia dos diários e do seu costume de, após completar um caderno,
colocá-lo com os precedentes no amplo closet do seu quarto, perto
dos outros pertences queridos, mas essencialmente particulares,
como fotos de família e recordações da infância.
Na época em que adoeceu pela última vez, na primavera de
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2004,havia cerca de cem cadernos desse tipo.E outros apareceram,
quando sua assistente,Anne Jump, e seu amigo mais íntimo, Paolo
Dilonardo,e eu começamos a separar seus objetos pessoais um ano
depois de sua morte. Eu não tinha a mais vaga ideia do que havia
neles.A única conversa que tive com minha mãe sobre esses cader-
nos foi quando ela adoeceu pela primeira vez e ainda não havia rea-
vivado sua crença de que sobreviveria à leucemia, como sobrevi-
vera aos dois cânceres anteriores de que tinha padecido. E foi
apenas uma frase dita num sussurro:“Você sabe onde estão os diá-
rios”. Nada disse sobre o que queria que eu fizesse com eles.
Não posso garantir, mas tendo a crer que, se ficasse a meu cri-
tério, eu teria esperado um bom tempo antes de publicar os diá-
rios, ou talvez nunca os publicasse. Houve até ocasiões em que
pensei em queimá-los. Mas foi pura fantasia.A realidade, em todo
caso, é que os diários concretos não pertencem a mim. Enquanto
ainda estava bem, minha mãe vendeu seus papéis para a Universi-
dade da Califórnia na biblioteca de Los Angeles, e o acordo rezava
que iriam para lá após sua morte, com seus papéis e seus livros,
como aconteceu. E como o contrato assinado por minha mãe não
restringia o acesso em nenhum sentido importante, logo tive a
impressão de que a decisão já havia sido tomada por mim. Se eu
não os organizasse e apresentasse, outra pessoa o faria. Pareceu
melhor ir em frente.
Meu receio permanece.Dizer que estes diários são autorreve-
ladores é uma atenuação drástica. Preferi incluir uma boa quanti-
dade de juízos muito severos de minha mãe. Ela era uma grande
“juíza”. Mas expor essa sua faculdade — e estes diários estão reple-
tos de revelações — é, inevitavelmente, convidar o leitor a julgá-la.
Um dos principais dilemas em tudo isso foi que, pelo menos nos
últimos anos de vida, minha mãe não foi de maneira alguma uma
pessoa que expusesse a si mesma. Em especial, evitava o mais pos-
sível, sem negá-la, qualquer discussão a respeito da sua homosse-
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xualidade ou qualquer admissão da sua ambição pessoal. Assim,
seguramente, minha decisão viola a privacidade dela. Não há
outra maneira de expressar isso com justiça.
Em contraste, estes diários se fundamentam na sua desco-
berta,quando adolescente,da sua própria natureza sexual,das pri-
meiras experiências quando era uma caloura de dezesseis anos na
Universidade da Califórnia,em Berkeley,e nos dois relacionamen-
tos importantes que teve no início da vida adulta — primeiro com
Harriet Sohmers Zwerling, que conheceu naquele mesmo ano na
Universidade da Califórnia e com quem,mais tarde, iria morar em
Paris,em 1957;e depois com a dramaturga Maria Irene Fornes,que
conhecera naquele mesmo ano em Paris (Fornes e Zwerling já
tinham sido amantes),em Nova York entre 1959 e 1963,depois que
minha mãe voltou para os Estados Unidos, divorciou-se do meu
pai e se mudou para Manhattan.
Depois que resolvi publicar seus diários, nem passou pela
minha cabeça excluir qualquer material, fosse com base na ideia de
que iluminaria certo ângulo de minha mãe, ou sua franqueza
sexual, ou sua descortesia com alguém que figure nos diários,
embora eu tenha preferido omitir os nomes verdadeiros ou alguns
indivíduos particulares. Ao contrário, meu critério de seleção foi
parcialmente determinado pela ideia de que o mais convincente
nos diários eram a crueza e o retrato sem verniz que estes docu-
mentos apresentam de Susan Sontag quando jovem, a qual cons-
cientemente e de forma decidida se empenhou em criar a pessoa
que ela queria ser. É por essa razão que escolhi Renascida como
título deste volume,* aproveitando uma expressão que aparece na
capa de um dos primeiros cadernos; parece resumir o que aconte-
ceu com minha mãe da infância em diante.
Nenhum escritor americano da sua geração foi mais ligado a
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* O título original em inglês é Reborn. (N. E.)
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gostos europeus do que minha mãe. É impossível imaginá-la
dizendo que tinha “Tucson inteira”ou “Sherman Oaks, Califórnia,
inteira” para contar, como John Updike, que, referindo-se ao seu
início de carreira como escritor, disse que tinha para contar toda a
sua cidade natal, Shilington, na Pensilvânia. Mais impossível ainda
é imaginar minha mãe voltando à infância ou a seu contexto social
e étnico em busca de inspiração, como muitos escritores judeus
americanos da sua geração fizeram.A sua história — de novo,a per-
tinência do título Renascida me parece reforçada — é exatamente o
contrário. De muitas formas, é o mesmo que acontece com Lucien
de Rubempré — o jovem ambicioso que vem das províncias remo-
tas e quer se tornar uma pessoa importante na capital.
Claro, minha mãe nada tinha de Rubempré em nenhum
outro aspecto de caráter, temperamento ou projeto. Não queria
garantir favores. Ao contrário, acreditava na sua estrela. Desde o
início da adolescência teve a sensação de possuir dons especiais e
de ter uma contribuição a dar. O desejo ferrenho e incansável de
expandir e aprofundar constantemente sua formação — um pro-
jeto que ocupa muito espaço nos diários e que tentei incluir na
mesma proporção nesta seleção — era de certo modo a materiali-
zação dessa ideia de si mesma. Ela queria ser digna dos escritores,
pintores e músicos que reverenciava. Era nesse sentido que a mot
d’ordre de Isaac Bábel, “Você tem de conhecer tudo”, podia muito
bem ser a de Susan Sontag.
Isso é exatamente o contrário da maneira como pensamos
hoje. Uma crença em si mesmo é uma constante na consciência
daqueles que venceram no mundo, mas a forma dessa autocon-
fiança é determinada culturalmente e varia muito de uma época
para outra. Minha mãe, eu acho, era uma consciência do século
XIX, e a concentração na sua própria pessoa, mostrada nestes diá-
rios, tem algo do tom daqueles grandes “realizadores” — Carlyle
me vem à mente.E isso está muito longe do registro em que a ambi-
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ção se exprime no início do século XXI. Um leitor em busca de iro-
nia não encontrará nada. Minha mãe estava profundamente cons-
ciente disso. No seu ensaio sobre Elias Canetti, que, com seu texto
sobre Walter Benjamin,sempre considerei o mais próximo de uma
investida no campo da autobiografia que minha mãe chegou a
escrever, ela citou com aprovação a meditação de Canetti: “Tento
imaginar alguém dizendo para Shakespeare: ‘Relaxe!’”.
Então mais uma vez, caveat lector. Este é um diário no qual a
arte é vista como uma questão de vida ou morte, no qual a ironia é
tida como um vício, não uma virtude, e no qual a seriedade é o
maior dos bens. Minha mãe já exibia tais traços desde cedo. E
nunca precisou de gente que tentasse fazê-la relaxar. Ela lembrava
que seu padrasto generoso e herói de guerra convencional havia
pedido que não lesse tanto, senão nunca ia arranjar um marido.
Uma variante mais culta e segura de si é o comentário do filósofo
Stuart Hampshire, seu orientador em Oxford, sobre quem ela me
contou certa vez que havia exclamado, com frustração, durante
uma aula particular:“Ah,vocês,americanos! São tão sérios... iguais
aos alemães”.Ele não falou isso como um elogio; mas minha mãe o
usava como uma condecoração honrosa.
Tudo isso pode fazer o leitor pensar que minha mãe era uma
“europeia natural”,no sentido de Isaiah Berlin,de que existiam eu-
ropeus que eram americanos “naturais” e americanos que eram
europeus “naturais”. Mas não creio que isso esteja correto no caso
da minha mãe. É verdade que, para ela, a literatura americana era
um subúrbio das grandes literaturas da Europa — sobretudo a lite-
ratura alemã — e contudo, provavelmente, seu pressuposto mais
profundo era de que ela poderia recriar-se,que todos nós podemos
nos recriar,e que a formação podia ser descartada ou transcendida
quase ao sabor de nossa vontade, ou melhor, se a pessoa tivesse a
vontade. E o que é isso senão a personificação da observação de
Fitzgerald de que “na vida dos americanos não existe segundo
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ato”? Como eu disse, em seu leito de morte, que ela jamais acredi-
tou inteiramente que seria seu leito de morte, ela planejava o pri-
meiro ato seguinte que iria viver depois que o tratamento lhe
tivesse trazido mais algum tempo de vida.
Nisso, minha mãe foi notavelmente coerente. Uma das coi-
sas que mais me impressionaram ao ler seus diários foi a sensa-
ção de que, da juventude até a velhice, minha mãe travava as
mesmas batalhas, contra o mundo e contra si mesma. Seu senti-
mento de dominar as artes, sua sufocante confiança na justeza
dos próprios julgamentos, sua extraordinária avidez — a noção
de que tinha de ouvir todas as obras musicais, ver todas as obras
de arte, ser uma entendida em todas as grandes obras da litera-
tura — estão presentes desde o início, quando ela faz listas de
livros que quer ler e depois vai riscando os títulos à medida que
lê os livros. Mas também sua sensação de fracasso, de inaptidão
para o amor e até para o erros. Sentia-se constrangida com o
próprio corpo, ao mesmo tempo que se sentia serena em relação
à própria mente.
Isso me deixa mais triste do que sou capaz de exprimir.
Quando minha mãe era muito jovem,fez uma viagem à Grécia.Lá,
viu uma apresentação de Medeia num anfiteatro no sul do Pelopo-
neso.A experiência a emocionou profundamente porque,quando
Medeia está prestes a matar seus filhos, várias pessoas na plateia
começaram a gritar: “Não, não faça isso, Medeia!”. “Aquelas pes-
soas não tinham a menor ideia de que estavam assistindo a uma
obra de arte”, ela me disse muitas vezes.“Tudo era real.”
Estes diários também são reais. E ao lê-los sinto, com força, a
aflição de reagir da mesma forma que aqueles espectadores gregos,
em meados da década de 1950. Quero gritar: “Não faça isso”, ou
então “Não seja tão severa consigo mesma”, ou “Não tenha uma
ideia tão elevada de si mesma”, ou “Cuidado com ela, ela não gosta
de você”. Mas é claro que cheguei tarde demais: a peça já foi ence-
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nada e o seu protagonista já partiu, assim como a maioria dos
outros personagens, se bem que nem todos.
O que permanece é dor e pretensão. Estes diários oscilam en-
tre as duas coisas. Será que minha mãe desejaria publicá-los? De
novo, há razões práticas por trás da minha decisão não só de per-
mitir sua publicação como de editá-los eu mesmo, embora haja
neles certas coisas que sejam uma fonte de dor para mim, e muitas
outras que eu preferia não saber, nem que os outros soubessem.
O que sei é que, como leitora e escritora, minha mãe adorava
diários e cartas — quanto mais íntimos melhor. Assim, talvez a
escritora Susan Sontag tivesse aprovado aquilo que fiz. De qual-
quer modo, espero que sim.
David Rieff
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diários
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eu acredito:
a) que não existe nenhum deus pessoal nem vida após a morte;
b) que a coisa mais desejável do mundo é a liberdade de ser verda-
deiro para si mesmo, ou seja, Honestidade;
c) que a única diferença entre os seres humanos é a inteligência;
d) que o único critério para uma ação é a felicidade ou a infelici-
dade individual que em última instância ela produz;
e) que é errado privar qualquer homem da vida [faltam as entradas
“f” e “g”];
h) acredito,além disso,que um Estado ideal (além do que está em “g”)
deveria ser um Estado forte e centralizado, com o controle
governamental dos serviços públicos, bancos, minas, + trans-
porte e subsídios às artes,um salário mínimo confortável,apoio
aos incapacitados e idosos.Atendimento público para mulheres
grávidas, sem distinção de filhos legítimos e ilegítimos.
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As ideias perturbam a regularidade da vida.
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...E o que é ser jovem durante anos e de repente despertar para
a angústia, a premência da vida?
É ser alcançado,um dia,pelas reverberações daqueles que não
acompanham,escapar da selva aos trambolhões e cair num abismo.
É, então, ser cego aos erros dos rebeldes, ter ânsias dolorosas,
completas, depois de todos os opostos da existência da infância. É
o ímpeto,o entusiasmo frenético, imediatamente submerso numa
enxurrada de autodepreciação. É a consciência cruel da própria
presunção...
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É a humilhação com cada lapso verbal, noites insones consu-
midas ensaiando a conversa do dia seguinte, e torturando a si
mesma por causa da conversa do dia anterior... uma cabeça abai-
xada entre as próprias mãos... é “meu deus, meu deus”... (em
minúscula, é claro, pois não existe deus nenhum).
É a retração do sentimento pela própria família e por todos os
ídolos da infância...É mentir... e o ressentimento,e depois o ódio...
É o surgimento do ceticismo, um exame profundo de cada
pensamento,palavra e ação.(“Ah,ser perfeita e completamente sin-
cera!”) É um questionamento amargo e implacável dos motivos...
É descobrir que o catalisador, o [A entrada se interrompe neste
ponto.]
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Aquilo que, um dia, parecia um peso esmagador mudou cla-
ramente de posição, numa tática surpreendente, deslizou em-
baixo do meu pé fugidio, transformou-se numa força de sucção
que me arrasta e me cansa. Como eu desejo me render! Como
seria fácil convencer-me de que a vida de meus pais é digna de
elogios! Se durante um ano eu só visse a eles e seus amigos, eu
renunciaria — me renderia? Será que a minha “inteligência”pre-
cisa de um rejuvenescimento frequente nas fontes da insatisfação
dos outros e sem isso morreria? Tomara que eu consiga cumprir
esses votos! Pois posso sentir que estou escorregando, oscilando
— em certos momentos, até aceito a ideia de ficar em casa para ir
à faculdade.
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A única coisa em que consigo pensar é na mamãe, como ela
é bonita, que pele lisa ela tem, como me ama. Como ficou aba-
lada quando chorou numa noite dessas — ela não queria que
papai, que estava no outro quarto, ouvisse, e o barulho de cada
onda de lágrimas sufocada era igual a um soluço gigantesco —,
como as pessoas são covardes para se envolver, ou melhor, para
se deixar passivamente envolver, por convenção, em relaciona-
mentos estéreis — que vida podre, sombria, infeliz levam elas...
Como posso magoá-la mais ainda, arrasada como ela já está,
por não resistir nunca?
Como posso me socorrer, me tornar cruel?
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O que significa a expressão “de pileque”?
Montanha de pedras atiradas.
Ler a tradução de [Stephen] Spender de As elegias de Duíno
[de Rilke] o mais breve possível.
Estou mergulhando em Gide outra vez — que clareza e pre-
cisão! Sem dúvida, isso vem do próprio homem, que é incompa-
rável — toda a sua ficção parece insignificante, ao passo que A
montanha mágica [de Thomas Mann] é um livro para toda a
vida.
Isto eu sei! A montanha mágica é o melhor romance que já li.
A doçura da renovada e incessante familiaridade com essa obra e o
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prazer sereno e meditativo que sinto são incomparáveis.Contudo,
pelo mero impacto emocional, por uma sensação de prazer físico,
uma consciência do instante rápido, das vidas rapidamente des-
perdiçadas — pressa,pressa —,pelo conhecimento da vida — não,
isso não — por um conhecimento da vitalidade — eu escolheria
Jean Christophe [de Romain Rolland]. — Mas tinha de ser lido
uma vez só.
...“Quando eu estiver morto,espero que digam:‘Os seus peca-
dos foram graves, mas seus livros foram lidos’.”— Hilaire Belloc
Mergulhei em Gide a tarde inteira e ouvi [o maestro Fritz]
Busch (festival Glyndebourne, numa gravação de Don Giovanni
[de Mozart]. Diversas árias (que doçura de partir o coração!), eu
repeti várias vezes (“Mi tradi quel’alma ingrata” e “Fuggi, crudele,
fuggi”).Se eu pudesse ouvi-las sempre,como eu seria determinada
e serena!
Desperdicei a noite toda com Nat [Nathan Sontag,padrasto de
SS]. Me deu uma aula de direção e depois saí com ele e fingi gostar
de um filme apelativo, em Technicolor.
Depois de escrever essa última frase, leio outra vez e penso em
apagá-la. Porém, seria melhor deixar assim mesmo. — É inútil
para mim registrar somente as partes agradáveis da minha existên-
cia — (Afinal, são tão poucas!) Vou anotar todo o estúpido desper-
dício de hoje, para que eu não seja complacente e transigente
comigo mesma amanhã.
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Discussão e lágrimas com Mildred [mãe de Sontag, Mildred
Sontag, cujo nome de solteira era Jacobson] (dane-se!). Ela disse:
“Você deveria estar bastante contente por eu ter casado com o Nat.
Você nunca iria para Chicago, pode ter certeza disso! Nem consigo
dizer como estou triste por causa disso, mas sinto que tenho de
compensar você por isso”.
Talvez eu devesse estar contente mesmo!!!
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[Escrito e datado na capa interna do exemplar de SS do segundo
volume dos Diários de André Gide]
Terminei de ler este livro às duas e meia da madrugada do
mesmo dia em que o comprei...
Devia ter lido muito mais devagar e tenho de reler muitas
vezes — Gide e eu alcançamos uma comunhão intelectual tão
perfeita que chego a sentir as dores de parto próprias de cada pen-
samento que ele dá à luz! Assim,eu não penso:“Como isto é mara-
vilhosamente lúcido!” — mas sim:“Pare! Não consigo pensar tão
depressa assim! Ou melhor, não consigo crescer tão depressa
assim!”.
Pois eu não estou apenas lendo este livro, mas o criando eu
mesma,e essa experiência única e enorme purgou minha mente de
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boa parte da confusão e da esterilidade que a entupiram durante
estes meses horríveis...
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Há tantos livros, peças e contos que tenho de ler — eis aqui
apenas alguns:
Os moedeiros falsos — Gide
O imoralista —
Os subterrâneos do Vaticano —
Corydon — Gide
Tar — Sherwood Anderson
The island within — Ludwig Lewisohn
Santuário — William Faulkner
Esther Waters — George Moore
Diário de um escritor — Dostoiévski
Às avessas — Huysmans
O discípulo — Paul Bourget
Sanin — Mikhail Artsibáchev
Johnny vai à guerra — Dalton Trumbo
A crônica dos Forsythe — Galsworthy
O egoísta — George Meredith
Diana of the crossways —
The ordeal of Richard Feverel —
poemas de Dante, Ariosto, Tasso, Tibulo, Heine, Púchkin,
Rimbaud,Verlaine, Apollinaire
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peças de Synge,O’Neill,Calderón,Shaw,Hellman... [A lista se
estende por mais cinco páginas, mais de cem títulos são citados.]
...Poesia tem de ser: exata, intensa, concreta, relevante, rít-
mica, formal, complexa
...A arte, portanto, está sempre lutando para ser indepen-
dente da mera inteligência...
...A língua não é só um instrumento, mas um fim em si
mesma...
...Por meio da lucidez imensa e precisamente direcionada de
sua mente, Gerard Hopkins lavrou em palavras um mundo de
imagens arrasadas e exultantes.
Graças a sua lucidez implacável, protegendo-se dos excessos
de gordura mediante a rigorosa espiritualização da sua vida e da
sua arte, ele ainda por cima criou uma obra, dentro do seu âmbito
limitado, de um frescor sem paralelo. Sob o problema angustiado
da sua alma...
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Estou completamente entretida, neste momento, com uma
das obras musicais mais belas que já ouvi — o concerto em si
menor para pianoforte de Vivaldi, da gravadora Cetra-Soria, com
Mario Salerno —
A música é, a uma só vez, a mais maravilhosa e a mais viva de
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todas as artes — é a mais abstrata, a mais perfeita, a mais pura — e
a mais sensual. Eu ouço com o meu corpo e é o meu corpo que dói
em resposta à paixão e ao páthos encarnados nessa música.É o “eu”
físico que sente uma dor insuportável — e depois uma irritação
enfadonha — quando todo o mundo da melodia de repente cintila
e desaba em cascata na segunda parte do primeiro movimento —
é a carne e o osso que morrem um pouco a cada vez que sou sugada
para dentro da nostalgia do segundo movimento —
Estou quase à beira da loucura.Às vezes — penso — (com que
cuidado escrevo estas palavras) — há momentos fugidios (ah, que
passam tão depressa) em que sei, tão bem como sei que hoje é o
Natal, que estou cambaleante à beira de um abismo ilimitado —
O que me leva a esta perturbação?,me pergunto.Como posso
fazer o diagnóstico de mim mesma? Tudo o que sinto, do modo
mais imediato, é a necessidade mais sofrida de amor físico e de
companhia mental — sou muito jovem e talvez o aspecto pertur-
bador das minhas ambições sexuais seja superado — francamente,
eu não me importo. [Na margem, e com data de 31 de maio de 1949,
SS acrescenta as palavras: “Nem devia”.] Minha necessidade é tão
avassaladora e o tempo, na minha obsessão, é tão curto —
É muito provável que ao lembrar-me disso, um dia, eu ache
muita graça.Assim como houve um tempo em que eu era religiosa
de um modo neurótico e aterrorizado e achava que um dia seria
católica, agora acho que tenho tendências lésbicas (com que relu-
tância escrevo isto) —
Não devo pensar no sistema solar — nas incontáveis galáxias
dispersas por incontáveis anos-luz — em espaços infinitos — não
devo olhar para o céu por mais do que um momento — não devo
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pensar na morte, na eternidade — não devo fazer todas essas coi-
sas, para que eu não conheça esses momentos horríveis em que
minha mente parece uma coisa tangível — mais do que a minha
mente — todo o meu espírito — tudo aquilo que me anima e que
é o desejo original e reativo que constitui o meu “eu” — tudo isso
toma uma forma e um tamanho definidos — grande demais para
ficar contido na estrutura que chamo de meu corpo — Tudo isso
puxa e empurra — anos e ansiedades (agora eu sinto) até que eu
consiga cerrar meus punhos — levanto-me — quem consegue
ficar parado — todos os músculos estão sob pressão — lutando
para se tornar uma imensidão — tenho vontade de gritar — minha
barriga se sente comprimida — minhas pernas, meus pés, meus
dedos dos pés se esticam até doer.
Chego cada vez mais perto de romper esta pobre casca —
agora eu sei — contemplação do infinito — a tensão da minha
mente me leva a diluir o horror por meio do oposto da simples sen-
sualidade da abstração. E sabendo que não possuo a saída, algum
demônio, entretanto,me atormenta — me enche de dor e de fúria — de
medo e tremor (sou agredida, destruída — sobretudo humilhada —)
minha mente dominada por espasmos de desejo incontrolável —
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Li de novo estes cadernos.Como são tristes e monótonos! Será
que nunca vou conseguir escapar dessa interminável lamentação
de mim mesma? Todo o meu ser parece tenso — na expectativa...
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Diarios 4a prova 7/23/09 5:10 PM Page 26