DIAS, M. C. Ensaios Sobre a Moralidade

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  • IntroduoAoleitor

    O objetivo desta coletnea fornecer ao pblico interessado emquestes relacionadas moralidade um instrumento que contribua paraesclarecer algumas das perspectivas elaboradas ao longo da tradioilosica.Aomesmotempo,pretendodefenderumaperspectivaprpria esuas consequncias para a nossa tomada de decises. Nesta trajetria,pretendo tambm trabalhar alguns conceitos fundamentaispara asdiscusses morais, bioticas e polticascomo o conceito de pessoa,deliberaoeracionalidade.

    Alguns artigos desta coletnea j foram publicados, outras foramapenas disponibilizados para meus alunos, no decorrer de algum curso.Hojeestoureunidotodosemumnicolivrocomoumaformadefacilitaroacesso aos mesmos, j que, a t mesmo os j publicados, no estototalmentedisponveisaopblicointeressado.

    Queropermitirolivreacesoaestestextoscomoumaformademaisumavezretribuiracredibilidadeamimconferidapor instituiescomooCNPq,daqualsoubolsistahmaisdevinteanos,CAPESquemepermitiuarealizao de dois estgios de ps-doutoramento e FAPERJ que meconferiuottulodeCientistadoNossoEstado. elas,UFRJ,aoProgramadePs-GraduaoemBiotica,ticaAplicadaeSadeColetiva,SociedadedeBioticadoEstadodoRiodeJaneiroe,sobretudo,aosmeusalunosdevoo esforo de publicao gratuita destes textos, resultado de todos estesanosdededicaopesquisaemtica.

    Oleitorvaiperceberquealgunstextosapresentamrepetieseatmesmoduplicaodepartescontidasemoutrosartigosdacoletnea.Eviteialteraros textos,empartepor j teremsidopublicados,emparte porquenoconseguirenoquererdizerdeoutramaneiraoquejhaviaditodeforma exata em outro lugar. Cometo assim, em alguns textos, o chamadoautoplgio, mas mantenho conscientemente este suposto delito porconsiderar que mesmo apresentando ideias e passagens j contidas emoutros artigos, cada artigo possui um objetivo e identidade prpria. Cadaartigo pode ser lido isoladamente e em cada um deles h algo que paramimfundamentalequegostariadepodercompartilhar.

    Oprimeiroartigointroduzoproblemadafundamentaodenossosjuzosmorais.Nele,meuobjetivo investigarumprincpioque forneaas

  • bases de uma conduta moral, ou seja, que fornea o critrio a partir doqualpossamosjulgarnossasaescomosendoounomorais.Comopontode partida desta investigao elejo a anlise da proposta kantiana e suatentativadefundamentaodoimperativocategrico.Emseguidaanalisoaproposta de Habermas de fundamentao do princpio moral kantianocomo princpio constitutivo do discurso racional.Aps uma anlise crticadomodelode fundamentaopropostopordeKanteHabermas,defendouma perspectiva decisionista diante da questo de fundamentao damoralidade e a adoodoprincpiomoral kantiano, comooprincpio quemelhor responde a nossas demandas morais. Com base na chamadaMoral do Respeito Universal defendida por E. Tugendhat,pretendomostrar como possvel, abandonando a perspectiva de fundamentaokantiana, justiicaroprincpiomoralapresentadoporKantcomoomelhorprincpioparaaquelesqueaceitamapropostadeumamoraluniversalista.

    O segundo artigo defende a adoo do princpio do respeitouniversal como uma consequncia da ausncia de elementos quejustiiquem uma discriminao primria, apriorstica, dos seres humanos.Em seguida, procuro mostrar que a adoo deste mesmo princpio temcomoconsequnciaa criaode regrasde condutadiferenciadasequeoestabelecimento de tais regras s pode se dar no mbito das relaeshumanasoudodiscursoefetivo,nestesentido,spodemserestabelecidaspragmaticamente.Aps a adoo de umaperspectiva decisionista dianteda questo de fundamentao da moral edo princpio moral kantianocomo o princpio que melhor responde a nossas demandas morais,procuro apontar para um mbito de indeterminao constitutivo daprpria moralidade que no pode ser submetido a regras de carterabsolutoouaumparadigmaunvocodeconduta.

    Oterceiroartigo,publicadooriginalmentenolivroOUtilitarismoemFoco: um encontro com seus proponentes e crticos [1], apresenta aperspectiva consequencialista, a partir da anlise do artigo TheConsequentialist Perspective[2] de Philip Pettit. A estratgiaargumentativa de Pettit consiste em: (1) apresentar as caractersticasbsicas da psicologia do dito agente moral; (2) investigar as formas deatribuio de predicados morais, a saber: o certo/correto e o justo; (3)apresentarasformasdejustiicaodaaplicaodetaispredicadosentreas diversas perspectivas morais; (4) defender a perspectivaconsequencialista entre as demais perspectivas baseadas em valores e,inalmente (5) responder s principais crticas endereadas ao

  • consequencialismo. Com isto, Pettit pretendemostrar no somente que aperspectiva consequencialista respeita os aspectosmais fundamentais dapsicologiamoraledenossasintuiesacercadamoralidade,comotambmforneceamelhorrespostaparaanossaatribuiocotidianadepredicadosmorais.Acompanhandoestaestratgia,oartigobuscaanalisarasdiversasetapasdaargumentaodePettit,deformaafornecerumavisoexemplardoconsequencialismo.

    Oquartoartigodefendea adoodeumaconcepoexpansivadamoralidade,umaconceponoreativaouantagnicasnossas intuiesou nossa sensibilidade. A moralidade , aqui, apresentada comoinvestigaoacercadomododevidacapazdemelhorrealizaranaturezahumanaeharmonizar,deformaprodutiva,suasrelaessociais.Emlinhasgerais,trata-sedeumaconcepodemoralidadevoltadaparaapromoodo lorescimento do ser humano e de suas formas de organizao social.Para defender tal perspectiva, procuro mostrar que uma concepomeramenteprescritivadamoralidadenonos forneceumacompreensosatisfatria dos diversos aspectos envolvidos no nosso processo dedeliberaomoral.Emseguida,procuroressaltaroaspectoessencialmenteimaginativo do exerccio da racionalidade prtica e, inalmente, apontarpara a relao entre a adoo de uma concepo mnima de naturezahumanaeajustificaoeimplementaodeprincpiosnormativos.

    O quinto artigo foi originalmente escrito para a abertura doEncontroNacionaldosEstudantesdeFilosoiae,seguindootemapropostopelos alunos, procura pensar a relao entre tica e esttica e, maisespeciicamente, a possibilidade de um ideal de vida esttico quecontemplenossademandaatualpelasatisfaodeprincpiosmorais.Paraintroduzir a questo, o artigo fornece, primeiramente, umbrevehistricodoempregodosconceitosdeticaemoraleanalisaaspeculiaridadesdeseu mbito de aplicao. Em seguida, busco resgatar uma concepo deticacomoadisciplinavoltadaparaasprescriescapazesdeconduzirarealizao de uma vida plena e apontar a capacidade de noscompreendermos enquanto participantes da comunidademoral comoumpossvel integrante da nossa concepo do que possa ser uma vidalograda ou feliz. Feita a opo pelo pertencimento a uma comunidademoral, defendo o emprego de nossa capacidade imaginativa como oprocedimento mais adequado a implementao do princpio moral dorespeitouniversal.

  • O sexto artigo, publicado originalmente na revistaManuscrito[3],introduzaquestodosdireitoshumanosoudireitosbsicosenquantoumaexpresso de nossas demandasmorais. Sua primeira parte dedicada anlise do conceito de direitos bsicos fornecida por Habermas. DireitosbsicoselucidamparaHabermasascondiesparaqueoindivduopossaparticipar de um discurso de fundamentao racional acerca de direitoslegais.Destemodoelediferenciadireitosbsicosedireitoslegais.Normasmorais e direitos legais so fundamentados atravs de um consensoracional.Umconsensoracionalsupeosprincpiosdaticadodiscurso.Atica do discurso elucida as condies para que o indivduo possaparticipardeumdiscursode fundamentao racional.Osdireitosbsicosso assimumaexpressoda tica dodiscurso.Osdireitos sociais bsicosexprimem,porsuavez,ascondiesparaqueumindivduopossaexercerseusdireitosbsicos. Eles serouma condiodo exerccioda autonomiado indivduo. Em seguida, procuro construir um argumentomoral para oreconhecimentodosdireitossociaisbsicos.Paraisso,introduzo,combaseem Tugendhat, um conceito de moral, a saber: a moral do respeitouniversal, e inalmente procuro apontar para o reconhecimento dosdireitos sociais bsicos como uma exigncia para todo aquele que queirasercompreendidocomointegrantedacomunidademoraletodasociedade,quereclameparasuasaeseleis,umapretensomoral.

    O stimo artigo, escrito originalmente para o livro DireitosHumanos na Educao Superior: subsdios para a educao em DireitosHumanos na Filosoia[4], busca analisar o papel do discurso acerca dosdireitos humanos ou dos direitos fundamentais nos dias de hoje. Para talprocuroresponderaduasquestes:(1)quemsoosconcernidosporestediscurso e (2) a quem sedirige suasdemandas.Nestepercursoprocuro,maisumavez, apontar odiscurso acercadosdireitos fundamentais comoumaexpressodenossasdemandasmorais,agoraenfrentandoosdesafiosdeummundoglobalizado.

    O oitavo artigo ter uma verso em ingls publicado no livroBiotechnologies and the Human Condition [5]. Nelereuni algumas teses japresentadas, a saber: (1) a tese de que a expanso do nossoconhecimento depende do aprimoramento de nossa sensibilidade e denossa capacidade imaginativa; (2) a defensa de uma concepo nomeramente prescritiva, mas expansiva da moralidade, ou seja, umaconcepo demoralidade voltada para a promoo do lorescimento dosagentes morais e de suas formas de organizao social e (3) destaca o

  • papel do uso da chamada razo imaginativa, ou seja, da capacidade decolocar-seno lugardooutroe vivenciar, soba formadeumexperimentointelectual/teatral, as fontes motivacionais alheias, no processo dedeliberao moral. Com base nestes elementos, o artigo defende umperfeccionismo moral e poltico. Em seguida, procuro apontar para umncleo de capacidades ou funcionamentos dos agentes como ponto departida de nossas valoraesmorais. Para concluir , o artigo aponta paraalgumasconsequnciasdaperspectivaaquidefendidaparaumaavaliaomoraldenossasatitudesparacomosdemaishabitantesdoplaneta.

    O nono artigo, possui duas verses j publicadas, a primeira narevista Discurso[6] e a segunda no livro Sujeito e Identidade Pessoal[7].Nelepretendoesclarecerumdosprincipaisconceitosdenossasdiscussesmorais, bioticas e polticas, o conceito de pessoa. Para isso recorroinicialmente a caracterizao desse conceito fornecida por Strawson, nombitodadiscussoilosicadarelaomente/corpo.Namedidaemquea caracterizao do conceito de pessoa fornecida por Strawson se revelapara nossos ins incompleta, passo a investigar a tese de Frankfurtsegundo a qual o conceito de vontade livre deve ser considerado comoocritrio decisivo para caracterizao de uma pessoa. Aceitando, comFrankfurt,queapenasentidadesasquaisatribumosliberdadepodemserconsideradas como pessoas, pretendo contra Frankfurt mostrar que oaspecto crucial para a distino entre pessoas e outras entidades, no fornecidopelo conceitodevontade livre,maspelonossa compreensodeliberdadecomoautodeterminao.

    O dcimo artigo foi escrito originalmente durantemeu perodo deps-doutoramento em Oxford e apresentado no Centro de tica Aplicadada Universidade de Oxford. Em seguida, teve uma verso em inglspublicada no livro Mente, Linguagem, e Ao[8] e uma verso emportuguspublicadanolivroFilosoiadaMente,ticaeMetatica:ensaiosem homenagem a Wilson Mendona[9]. Nele retomo a busca por umacaracterizaoadequadadepessoaoudoobjetodenossasconsideraesmorais e procuro conciliar a adoode umaperspectivamoral especicacom minhas/nossas convices naturalistas. Para isso, procuro, emprimeiro lugar apresentar um modelo do que seria uma conceponaturalista do ser humano e, em seguida, veriicar at que ponto talconcepo ou no capaz de resgatar de forma abrangente e coerentecom nossas diversas convices morais. Finalmente, rejeito o conceitotradicional de pessoa, vinculado a nossa autonomia e ao nosso poder de

  • autodeterminao, como aquele que melhor deina o objeto de nossaconsiderao moral e defendo uma perspectiva moral voltada para oaprimoramentodesistemasfuncionais.

    O dcimo primeiro artigo a transcrio de uma palestra sobrePeter Singer, posteriormente publicada na revistaEthica[10]. Com oobjetivode apresentar aperspectivamoral dePeter Singer, procurei, emprimeirolugar,analisarsuaconcepode justia,voltadaparaanoodeinteresses,emcontraposioaosdefensoresdeumaconcepode justia,voltada para a distribuio de bens, recursos ou liberdades. Em seguida,pretendomostrarcomo,apartirdaconcepodejustiadefendida,Singerresponde aos trs temas centrais do debate moral e poltico dos nossosdias, a saber: a questo da nossa relao/responsabilidade (1) para comosanimais, (2)paracomosdemais sereshumanosdoplanetae (3)paracomomeio-ambiente.Aoinaldoartigo,apresentarumapropostaprpriade reconstruo da nossa relao para com o meio-ambiente que tornepossvel inclu-lo, de forma no-instrumental, como objeto de nossasconsideraesmorais.

    O ltimo artigo apresenta inalmente minha tentativa de extensodo nosso discurso moral a todos os seres humanos, aos animais no-humanoseaomeio-ambiente.

  • 1Aquestodefundamentaodosjuzosmorais:trsformasdejustificaodo

    ImperativoCategricoO objetivo deste artigo encontrar um princpio que fornea as

    bases de uma conduta moral, ou seja, que fornea o critrio a partir doqualpossamosjulgarnossasaescomosendoounomorais.Comopontode partida desta investigao elejo a anlise da proposta kantiana e suatentativa de fundamentao do imperativo categrico. Em seguidapretendoanalisarapropostadeHabermasdefundamentaodoprincpiomoral kantiano como princpio constitutivo do discurso racional. Paraconcluir pretendo defender uma perspectiva decisionista diante daquesto de fundamentao damoralidade e a adoo do princpiomoralkantiano, como o princpio que melhor responde a nossas demandasmorais. Nesta etapa pretendo mostrar como possvel, abandonando aperspectiva de fundamentao kantiana, justiicar o princpio moralapresentadoporKantcomoomelhorprincpioparaaquelesqueaceitamaproposta de uma moral universalista. Para tal, pretendo basear-me nachamadaMoraldoRespeitoUniversaldefendidaporE.Tugendhat.

    Pretendo defender a tese de que a anlise kantiana da formainerenteaoprincpiomoralnosforneceoprincpioquenecessitamospararesponder demanda contempornea pela moralidade, ainda que suafundamentao no sejacogente. Neste sentido pretendo resgatar aherana kantiana em Habermas e Tugendhat. Habermas estabelece umadistino entre o princpio de universalizao (princpio U) e o princpiotico-discursivo (princpio D). O princpio U justiicado como umacondio para que possamos fazer parte de qualquer discurso defundamentao.OprincpioDforneceocritrioparaoreconhecimentodavalidade dos enunciados que buscamos fundamentar. Este seria paraHabermasoprincpiodoconsenso.ContraHabermaspretendodefenderatese de que o princpio de universalizao de que necessitamos paragarantir a imparcialidade dos juzosmorais, no pode ser fundamentadocomouma regra e umpressuposto da argumentao. Com isso, pretendoabandonaroprojetodoque sepoderiadenominaruma fundamentaoaprioridamoralidade,ouseja,umarefutaoaoceticismomoral.CombaseemTugendhat,retomooimperativocategricokantianocomoprincpiodorespeito universal. Pretendo defender o carter primitivo da aplicao

  • desteprincpio, comoumameradecorrnciadaausnciadecritriosquefundamentemumadiscriminaoprimria,ouseja,apriorstica,entreosseres humanos, refutando, assim, as diversas formas de particularismomoral.

    AfundamentaodamoralnaperspectivadeKant

    Nesta primeira parte forneo uma reconstruo da perspectivakantianabaseando-senaFundamentaodaMetafsicadosCostumes(GMS)[11]enaCrticadarazoprtica(KpV)[12].

    FundamentaodaMetasicadosCostumes:

    Primeiraseo:

    N aprimeira seo da GMS, Kantprope-nos uma anlise damoralidade, tomando como ponto de partida nossa compreenso pr-filosficadamoralidade,ouseja,danossaconscinciamoralcomum.Umavez que se toma aqui a moralidade como um fato e se regride a suaschamadascondiesdepossibilidade,omtododeexposioaseradotadoseromtodoanaltico-regressivo.

    ParaKantanossaaconscinciamoralcomumseexprime,antesdequalquer coisa, sob a forma da conscincia de um bem irrestrito. Nestesentido, os trs primeiros pargrafos so dedicados investigao daatribuio do predicado bom em sentido absoluto. Neste momento, Kantnosapresentaquetodasasoutrasqualidades,consideradaspela tradiocomoboasemsimesmas-como,porexemplo,asvirtudes-ssodignasdeste predicado quando a elas associamos uma boa vontade. A vontadetornaria, assim, as outras qualidades boas,mas aomesmo tempodeveriaser reconhecida como boa em si mesma, ou seja, independente de suautilidadeoudeservirtambmcomoummeioparaatingirumdeterminadofim.

    O quarto e quinto pargrafos investigam a relao entre razo einstintos, buscando mostrar que uma razo meramente instrumental, ouseja, uma razo orientada apenas para a relao meios-ins seria to ouainda menos eiciente que os instintos. No estaramos mais aptos parapreservar a vida, para garantir a felicidade ou o bem estar se nosdeixssemos guiar exclusivamente pelos instintos? No pensamosmuitasvezes que a razo nos distancia da busca da prpria felicidade? Se

  • estivermos corretos de pensar que os instintos nos garantem o quenecessitamos para preservar a existncia e alcanar satisfao, ento snos resta a suspeita de que a razo possa estar destinada a algo maisnobre que aquilo a que chamamos felicidade (6)[13]. No decurso de suailosoia prtica, Kant dever demonstrar, a tese, j aqui anunciada comoinerenteconscinciadohomemcomum,segundoaqualoquecaracterizaarazo,emseusentidomaispeculiar,asuacapacidadedeinluenciaravontade,ouseja,acapacidadedeproduzirumavontadeboaemsimesma.Tal vontade seria ento o bem supremo e a fonte de nossa aspirao felicidade(7).Comisso,ovalordeumaaodevepassaraserjulgado,notendo em vista sua eiccia para alcanar um determinado im,mas pelavontadequeadetermina.

    Tendodemonstradoqueapenasavontadepoderiaexprimiraideiainicial de um bem absoluto ou irrestrito, Kant passa a esclarecer-nos noque viria a consistir tal vontade. Ora, na medida em que tal vontade sedistingueessencialmentedetodaequalquervoliodeterminadaporinsparticulares,elaspoderiasercompreendidacombasenaideiadedever.Kantenunciataltesedizendoqueavontadecontm,emsi,odever(8).

    O pargrafo nove investiga em que sentido o conceito de boavontade implica o conceito de dever e elucida, assim, critrios que nospermitamavaliarovalormoraldeumaao.Seovalormoraldeumaaoest na vontade que a determina, e se o conceito de boa vontadepressupeo conceitodedever, somos levados crerque aes contrriasaodever jamaispoderose reconhecidascomomorais.Emseguida,Kantexclui tambm as aes apenasconforme o dever. Uma ao deste tipopode parecer moral, por estar conforme o dever, mas pode ter pormotivao uma inteno egosta. Neste caso, a consequncia da aopoderseramesmadeumaaomoral,pormnosuamotivao.Assim,Kant procura mostrar que as aes no dev em ser julgadas por suasconsequncias, como querem as concepes teleolgicas, mas porsuamotivao.Pelamesmarazo, devemos, por im, excluir tambmas aesrealizadas, ou melhor, motivadas, por inclinao natural. Conclumos,portanto,queumaaospodeserreconhecidacomomoralquandoelasedpordever,ouseja,quandotemsuaorigem,motivao,exclusivamentenavontadequeadetermina,vontadequecapazdedetermin-laatravsdaconscinciadodever,emdetrimentodetodasasinclinaesnaturaiseinteresses sensveis, capaz de determina-la de forma no-teleolgica. Nospargrafosqueseseguem(10-13),Kantprocura ilustrarcomexemplosa

  • distino aqui proposta, mostrando ento que tanto a conservao daprpria vida, quanto o amor ao prximo, a caridade e a promoo dafelicidade, s possuem valor moral quando procedem de uma vontadeoriundadaconscinciadodever,ouseja,quandomotivadospelodever.

    Masoquesigniicaumavontadeoriundadaconscinciadodever?Nos pargrafos subsequentes, Kant busca esclarecer no que consiste aconscincia do dever implicada pelo conceito inicial de uma vontadeabsolutamente boa. Ora, tendo em vista que a conscincia do deverindependetantodasinclinaesnaturais,quantodosinseconsequnciasparticularesdasaes, spoderemosatribuirvalormoral aumaao, seformoscapazesdeidentiicarseuprincpiodedeterminaocomoosendooprincpioformaldoprprioquerer.Oprincpioformaldoquererdeverser entendido comooprincpiodedeterminaodaprpria faculdadededesejar,quandodelaabstramosos seuspossveisobjetos,ouseja, todooseu contedo sensvel. Formal signiica, portanto, aqui desprovido detodoequalquercontedo.

    Umaaopraticadapordever spodeento serdeterminadaporum princpioapriori, ou seja,pelapura formadoprincpiodoquereremgeral (14). Devemos, assim, compreenderdever como a necessidade deuma ao por respeito ao princpio do querer em geral, ao qual Kantchamar lei moral. Enquanto os objetos da faculdade de desejardeterminam a vontade por inclinao, a lei moral desperta respeito, ouseja,aconscinciadeumdeverqueseimpeadespeitodetodasasnossasinclinaes naturais. O agir por dever deve excluir todos os objetos davontadeedeterminar-seporpurorespeitoleimoral(15).Destemodoovalordeumaaonopodejamaisserbuscadonoseuefeito,aposteriori,mas deve ser encontrado,a priori, na representao puramente racionaldalei(17).Estalei,umavezeliminadotodososobjetosdavontade,ouseja,todososseuspossveiscontedos,spodeexprimiraconformidadeaumaleiuniversaldasaes,ouseja,oprincpiodeuniversalizao.Oprincpiodeuniversalizao,portanto,emKant,oresultadodaabstraodetodosos possveis objetos da faculdade de desejar. Quando todos os contedosforamexcludos,resta-nos,tosomente,apuraformadoprincpio.

    Mas como poderemos saber que foram realmente excludos todososnossosmbiles sensveis?Quandoamximaquedeterminaasminhasaes puder ser aceita independentemente de minhas inclinaes einteresses particulares, ou seja, quando puder ser aceita por todo e

  • qualquer indivduo, isto signiica poder valercomo uma lei universal. Oprincpiodeuniversalizao fornece, assim, o critrio para quepossamosjulgarquandoamximadenossasaesestcondicionadaaosobjetosdafaculdade de desejar, mbiles sensveis, ou quando ela exprime nossoprpriopoderdedeterminaodavontade,opurorespeitolei.Todasasvezes que quisermos nos certiicar do valor moral de nossas mximas,deveremosentosubmeterseucontedoformadaleimoral,ouseja,aoprincpiodeuniversalizao.

    Os contedos que no puderem ser universalizados, sem incorrerem contradio, comprovam, assim, ter sua origem em nossa faculdadesensvel, ou seja, na busca de satisfao sensvel e na realizao deinteresses individuais.Umexemplodaaplicaodestecritrio fornecidoporKant nopargrafo 18.Amxima emquesto a da possibilidadedementir. Se mentirmos para alcanar com isso algum proveito, nossavantagem possivelmente desapareceria, se pretendssemos tornar opreceitodamentiraumaregrauniversal.

    Nossafaculdadedejulgardeveexcluirosmbilessensveis,ouseja,deveimpedirquenosdeixemoscorromperpelasinclinaesnaturais(20).Ohomemcomumchamadefelicidadeasatisfaodesuasinclinaes(21).A moralidade, por sua vez, eleva-nos ao controle das inclinaes (22). Amoralidadeno, emKant, a busca da felicidade,mas a possibilidade denostornarmosdignosdamesma.

    Com isso,Kantpretende termostradoque a conscinciadodever,reconhecida atravsda anliseda conscinciamoral comum, spode serelucidada pelo reconhecimento do princpio formal de determinao davontade,ouseja,peloprincpiodeuniversalizao.

    Segundaseo:

    Ao eleger como ponto de partida para investigao do princpiomoral a conscinciamoral comum,Kant adota, como j vimos, o chamadomtodoanaltico-regressivo.Nestesentido,aexistnciadeumaconscinciamoral no ela prpria problematizada. Na segunda seo, Kant, deverelucidar o princpio acima apresentado, no mais como expresso daconscincia moral comum, cuja existncia um interlocutor ctico poderiafacilmente questionar, mas como resultante da investigao da nossafaculdadeda razoprtica. Seumtodo ser assimdenominado sinttico-progressivo.

  • Kantiniciaasegundaseoprocurandomostrarqueainvestigaoempricanonos fornece instrumentospara avaliar quandoumaao serealiza por dever, ou quando ela apenas conforme o dever. Nuncapodemospenetrarcompletamentenosmbilessecretosdenossosatos(2).Empiricamente no h, portanto, como comprovar que uma ao se deupor dever. Resta, ento, saber se h em ns uma faculdade que, aocontrrio da sensibilidade, seja capaz de ordenar, por si mesma, o quedeveacontecer.Odeverdeve residirna ideiadeuma faculdadeque sejacapaz de determinar a vontade por motivosa priori. (3) Esta faculdadeseremKantafaculdadedarazo.Nestecaso,oprincpiododeverdevervaler para todos os seres que disponham de tal faculdade, ou seja, paratodos os seres racionais. Nos pargrafos que se seguem, Kant procurarecusar a possibilidade de um mtodo de investigao emprico doprincpiomoral, assim como tambm a possibilidade de extrair do nossosaberacercadomesmodecertosparadigmascomoaideiadeDeus,aideiadeperfeio e a felicidade. Eliminadas tais possibilidades, devemos entoadmitir que os conceitos morais devam ter sua sede e origemcompletamentea priori, por conseguinte, na razo. Tais conceitos devemser,portanto,deduzidosdoconceitodeumserracionalemgeral(10).Paratal,Kantpropeumadescrio sistemticadanossa faculdadeprticadarazo,atquepossamosdelaextrairoconceitodedever.(11)

    PorrazoprticaKantentende,aqui,acapacidadehumanadeagirsegundo a representao de uma lei, ou seja, um princpio geral. Porpertencer tambm ao mundo natural, ou seja, por possuir uma vontadeinluencivel pelos mbiles sensveis, o ser humano vivencia adeterminao da vontade pela razo como uma obrigao (12). Estaobrigaopossuio carterdeummandamento, em termoskantianos,umimperativo(13).Avontadequesedeixadeterminarpelarazoprtica,ouseja,porumprincpiogeral,porconseguinte,avontadeabstradadeseusmbiles sensveis ser aquela a qual chamaremos uma boa vontade, ouseja,onicobem incondicionado(14).Kantdistingueaquiaboavontade,da qual deriva o valor moral de nossas aes, e a vontade santa. Estaltima seria aquela determinada exclusivamente pela razo. Isenta, pornatureza, de qualquer interveno sensvel, sua determinao no seriavivenciadacomoumaobrigaooucomoaexpressodeumdever(15).Osentimento de dever diz respeito somente aos seres que vivenciam umconlito entre a determinao sensvel da vontade e sua capacidade deautodeterminao.

  • Osprincpiosgeraisimpostospelarazo,ouseja,osimperativosoumandamentos da razo sero divididos em dois grupos: imperativoshipotticos e imperativos categricos (16). Os primeiros prescrevem osmelhoresmeiosparaatingirdeterminadosins.Exprimemregrastcnicas(imperativos de destreza) ou pragmticas, quando o im em questo aprpria felicidade (imperativos de prudncia) (20). J os imperativos dosegundo grupo, imperativos categricos, exprimem uma obrigaoincondicional, ou seja, representam uma ao como absolutamentenecessria.Ordenamumadeterminada forma agir comoboa em si e nosimplesmentecomomeioparaatingirumdeterminadobem.Aessegrupopertencemosmandamentosmorais(21).

    Aaplicaode imperativoshipotticospode ser comprovada todasas vezes que fazemos uso da racionalidade para melhor atingir os inspropostos. Se pretendo, por exemplo, chegar o mais rpido possvel aoaeroporto, sei que devo eleger como meio de locomoo o taxi e no abicicletaouonibus.Seitambmqueassimofariaqualquerindivduoqueestivesse na mesma situao e que fosse igualmente dotado deracionalidade.Mas comopodemos justiicar a aplicaodeprincpios queindependem da relao meio-im e, por conseguinte, dos elementosfornecidos pela experincia sensvel? Em outras palavras, como sopossveisimperativoscategricos?

    Ao reconhecer que a experincia apenas nos fornece evidnciasparaoreconhecimentodeumarelaomeio-imeque,portanto,nopodefundamentar a aplicao dos princpios pertencentes ao segundo grupo,Kant concluiqueapossibilidadede taisprincpiosdever sergarantidaapriori (26). Os imperativos categricos no podem estar submetidos anenhuma condio domundo sensvel, neste sentido devero abstrair detodo contedo sensvel e, por conseguinte, conformar-se pura formadalei (29). J vimos que a lei da qual abstramos todo contedo nadamaisexpressa do que um princpio de determinao universal da vontade, ouseja, o princpio de universalizao das mximas do agir. O imperativocategrico no ser, ento, seno o prprio princpio de universalizao(30). A lei moral exige, assim, que faamos das mximas da nossa aoumaleiuniversaldanatureza(31).Parailustraraaplicaodoimperativocategrico, Kant introduz, nos pargrafos subsequentes, o exemplo daobrigaodepreservar a vida, de cumprir promessas, dedesenvolver ostalentosindividuaiseprestarauxlioaosdemais.

  • O dever expresso pelo imperativo categrico deve valerincondicionalmentepara todososseres racionais (37-38).Aexistnciadetalprincpiodeve,portanto,estarligadaaprioriaoconceitodavontadedeum ser racional (41). Aquilo que serve vontade como princpio dedeterminaooseuim(42).Umavontadequeelegecomoimoquelhe agradvel ou objetos do mundo sensvel estar condicionada aosmesmos, ou seja, far da busca de tais objetos seu princpio dedeterminao.Os seres quepossuemuma vontade capaz de abstrair dosobjetosdomundosensvel,capazdebuscaremsimesmaseuprincpiodedeterminao, ou seja, capaz de se autodeterminar, devem, portanto, serconsiderados ins em si mesmos. O ser humano, enquanto possuidor deuma vontade incondicionada, ou seja, uma vontade boa em sentidoabsoluto,existecomo imemsimesmo.Suaexistnciaadquire,assim,umvalor absoluto (43). Do reconhecimento do valor absoluto dos serescapazes de se autodeterminar, ou seja, dos seres capazes de fazer davontadeoprincpiodeterminantede suasaes,Kant extrai sua segundaformulao do imperativo categrico: age de tal maneira que uses ahumanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,sempre e simultaneamente como im e nunca simplesmente como meio(45).

    A vontade de todo ser racional deve poder ser reconhecida comolegisladora universal (47). Uma vontade legisladora uma vontadeautnoma, ou seja, uma vontade capaz de subjugar osmbiles sensveis,heternomos sua determinao racional. Os seres regidos por umavontade autnoma estariam ligados entre si por leis universais,medianteasquaiscadaqualestariasendoigualmenteconsideradocomoumimemsimesmo.AouniversodestesseresKantdenominarReinodosFins(53).

    Anecessidadedaaosegundoaleiumaobrigaoprtica,isto,umdever.Talnecessidadenoseassentaemsentimentos, inclinaesouimpulsos,masnarelaodosseresracionaisentresi(59).Todasascoisasexistentespossuemumpreo,ouseja,umvalorrelativo.Amoralidade,eahumanidade, enquanto capaz de moralidade, so as nicas coisas quepossuemumvalor ntimo,norelativo,aqueKantchamardignidade.Osseres humanos possuem dignidade enquanto seres racionais, capazes deuma vontade autnoma. A autonomia em Kant o fundamento dadignidadehumana(63).Todooserracionaldeve,portanto,agirdeacordocomasuadignidade,ouseja,comoqueodistinguedasdemaiscriaturas,emoutraspalavras,deveagircomoumlegisladornoreinodosfins(67).

  • Amoralidade a relao das aes com a autonomia da vontade.Somenteumavontadeautnomapodegarantirvalormoralaumaao.Oprincpiodaautonomiadavontadeonicoprincpiomoralenosobrigaaeleger somenteasmximasquepossamserviraomesmo tempocomo leiuniversal.Orespeitoleigarantevalormoralao(69).

    AtaquiKantnosmostraarelaoentreoconceitodemoralidadeesualigaocomaautonomiadavontade.Masparaquetudooquefoiditono seja uma iluso, necessrio que possamos possuir uma vontadeautnoma,ouseja,queavontadepossabuscaremoutra fonte,quenoasensibilidade, seu princpio de determinao. Em termos kantianos, necessrio,portanto,mostrarquearazopodepossuirumusoprtico,ouseja,possasercapazdedeterminaravontade(79).

    Antes de passarmos terceira seo, gostaria de colocar umaquesto relativa s duas formulaes do imperativo categricoapresentadasacima.PorqueKantintroduzasegundaformulaoequalasua relao com a primeira, ou seja, com o princpio de universalizao?Minha hiptese a de que somente com o acrscimo da segundaformulao o princpio de universalizao assumeo carter de umprincpio moral por excelncia. O princpio de universalizao fornece ocritrio para que possamos saber quando estamos agindo com base emnossasinclinaesimediatasouquandoestamosagindocombasenapuraracionalidade.Ora,possomuitobemaplicaroprincpiodeuniversalizaotodasasvezesquedesejarevitartomardecisescombaseeminclinaespassageiras, decises das quais possa me arrepender em momentosposteriores.Posso,portanto,teruminteresseegostaquememotivefazerusodetalprincpio.Aperspectivadosdemaisindivduosnoseriasenoaforma mais razovel de pensar a minha prpria situao em momentosposteriores.Ataquinadaprecisamosretirardacaracterizao fornecidapor Kant, mas tampouco precisamos compreender esse princpio comouma regra que determineminhas aes tendo em vista os demais sereshumanos. Ao acrescentar a segunda formulao, ou seja, o respeito porcada indivduocomoumimemsimesmo,orespeitodignidadedecadaqual, Kant exclui a possibilidade de que uma utilizao meramenteegostica do princpio de universalizao possa satisfazer ao imperativocategrico. Agir de tal maneira que a mxima do meu agir possa serconsiderada como uma lei universal signiica, agora, agir levando emconsiderao a perspectiva de todos os demais, no como uma forma deevitar prejuzos futuros minha prpria pessoa, mas por respeito

  • humanidade.Aomereferir,nasetapasseguintesdeste artigo,aoprincpiode universalizao como o princpio moral kantiano, terei sempre emmenteaversoconjugadadasduasformulaesacimaapresentadas.

    Terceiraseo:

    NaterceiraeltimaetapadaGMS,Kantdcontinuidadeaomtodosinttico-progressivo, tentando demonstrar a validade do imperativocategrico partindo, no mais da conscincia moral comum (primeiraseo),masdeumapremissaquenopossa ser recusada.Neste sentido,buscar no conceito de liberdade a chave explicativa da possibilidade daleimoral.

    Avontade,enquantovontadelivre,passaadeterminarasaesdosseresracionais,criando,assim,umacausalidadedistintadacausalidadedomundo natural (1). A liberdade da vontade nada mais do que suacapacidade de fazer de si mesma seu princpio de determinao,subjugando,portanto,todososelementossensveisesedeixandoorientarpela pura forma da leimoral. Neste sentido, a possibilidade da leimoraldeve estar contida na propriedade da vontade dos seres racionais de seautodeterminar,ouseja,emsualiberdade(4).Devemos,portanto,suporaliberdade da vontade como uma caracterstica da vontade de todos osseres racionais, conscientes da causalidade ou determinao de suasprpriasaes.

    Mas por que, enquanto seres racionais, devemos nos submeter aoimperativo moral? (6). Enquanto seres pertencentes ao mundo sensvel,estamos submetidos s leis da causalidade natural. A faculdade da razonos distingue das demais criaturas domundo sensvel e de nsmesmos,enquanto igualmente pertencentes a estemundo. Cada ser humano devecompreender-se a si mesmo (i) como pertencendo ao mundo sensvel,portanto regido pelas leis naturais e (ii) como pertencendo ao mundointeligvel, portanto determinado por leis fundadas somente naracionalidade (14). Como ser no mundo inteligvel, o homem no podepensar a sua causalidade seno sob a ideiada liberdade (15).De acordocom Kant, quando nos pensamos livres, nos transpomos ao mundointeligvel e reconhecemos a autonomia da vontade juntamente com suaconsequncia - amoralidade (16). A lei domundo inteligvel para cadaumdens, enquanto seres domundo sensvel, um imperativo, isto , umdever(17).DestemodoKantdemonstracomosopossveisosimperativos

  • categricos, a saber: enquanto um princpio do mundo inteligvel queimpe a ns, seres pertencentes ao mundo sensvel, o controle sobrenossasinclinaes,ouseja,oagirdeacordoumavontadeautnoma(18).

    A liberdade , contudo, uma ideia da razo cuja realidade objetivano pode ser demonstrada pela experincia (20). A pretenso queerguemos a esta liberdade baseia-se, segundo Kant, to somente naconscinciadaindependnciadarazofrentescausasdeterminantesdomundo sensvel (25). Na GMS, Kant airma, ento, que a tentativa deexplicarcomopossvelaliberdadeoucomopossvelumarazopuraprticaestparaalmdos limitesdanossaracionalidade(28).Tampoucopodemos explicar como e por que nos interessa a universalizao dasmximase,porconseguinte,amoralidade.Esteltimocasonoapresentamaiores problemas, posto que a validade da leimoral jamais poderia sergarantida por um interesse, do contrrio, estaramos sendo guiados porumainclinaonaturalenoporpurorespeitolei.

    Mas o que dizer quanto ao primeiro grupo de questes? Se noformos capazes de explicar como possvel a liberdade, ou seja, como avontadecapazdedeterminarnossasaesindependentementedetodosos mbiles sensveis, o argumento kantiano passa a ter um carterhipottico:Seossereshumanosforemcapazesdeagirdeformaautnoma,ento devero agir com base em mximas que possam seruniversalizveis. Neste sentido, Kant capaz de elucidar a forma doprincpio nico da moralidade, mas a prova de que realmente devemosagir de acordo com tal princpio permanece suspensa at que possamosprovar que somos capazes de agir de forma autnoma, ou que sejapossvel uma razo pura prtica. com o objetivo de responder a estaquestoeeliminarqualquersuspeitaquantoaocarternecessriodoagirmoral,queKantpassar,ento,KpV.

    AntesdepassarKpV,proponhoparaoargumentoapresentadonaGMSoseguintemodelo:(i)sepossumosumarazocapazdedeterminaravontade, independentemente de qualquer contedo da sensibilidade, ouseja, se nossos capazes de agir segundo a representao de uma leiincondicional, (ii) ento possumos uma vontade livre, no apenas nosentido negativo, ou seja, independente dos mbiles sensveis, mas emsentido positivo, ou seja, uma vontade legisladora ou autnoma. Porconseguinte, (iii) somos capazes de determinar nossas aes de acordocom o princpio formal do querer, ou seja, o princpio de universalizao

  • dasmximas,asaber:oimperativocategrico.

    Crticadarazoprtica

    No prefcio KpV, Kant descreve a relao entre a GMS e a KpVnos seguintes termos: coube GMS indicar e justiicar a frmula doprincpio do dever, caber KpV demonstrar a existncia de uma razopuraprtica,ouseja,provarocarternecessriodoprincpioemquesto.

    EnquantoaCrticadarazopura (KrV)seocupoudousotericodarazo,ouseja,dapurafaculdadedeconhecer,aKpVdeverocupar-sedeseu uso prtico, ou seja, dos princpios que determinam a vontade. Issoposto,caberentoinvestigarsearazopodebastar-seasimesmaparaadeterminaodavontade,ouseelapode funcionarcomoumprincpiodedeterminao apenas enquanto empiricamente condicionada. Podemosprovar que a liberdade uma propriedade que realmente convm vontadehumana?

    Anecessidadede investigar a possibilidadedeumprincpio capazde determinar a vontade independentemente de todos os mbilessensveis impor KpV um procedimento peculiar. Aqui Kant inicia suainvestigao no pelo nosso saber acerca da experincia sensvel (KrV),maspelosprincpiosdavontadeenquantoempiricamenteincondicionada.

    Princpiosprticos soproposiesque contmumadeterminaogeraldavontade.Taisproposiessedividememprincpiossubjetivos,ouseja,regrascircunscritasvontadedeumsujeito,squ aisKantdenominapor mximas, e princpios objetivos, ou seja, vlidos incondicionalmenteparaavontadedetodooserracional,leisprticas.Restasaber,ento,seanossafaculdadedarazocapazdeconterumprincpioobjetivo,ouseja,incondicional, absoluto, de determinao da vontade, pois do contrriotodos os princpios prticos tero que se reconhecidos apenas comoprincpiossubjetivos,ouseja,comomximas.

    No teorema I, Kant apresenta a tese de que todos os princpiosprticosquepressupemumobjeto(matria)dafaculdadededesejarso,no seu conjunto, empricos, no podendo, portanto, fornecer uma leiprtica.OteoremaIIacrescentaquetodososprincpiosprticosmateriais,ouseja,quepressupemumobjetosensvel,podemserclassiicadossoboprincpio geral do amor de si ou da felicidade pessoal, ou seja, soprincpios que se orientam para a busca de satisfao. A felicidadedepende do nosso sentimento de prazer e desprazer. , portanto, um

  • princpio prticocontingente, ou seja, relativo a cada indivduo e,mesmoem face de um mesmo indivduo, relativo s circunstncias em que seencontra. Posso considerar, por exemplo, que o atual objeto da minhavontade seja escrever um texto ilosico, mas de certo no suporei queessedevasertambmoelementodeterminantedavontadedeummdico,umengenheiroouumator.Naverdade,devoatmesmoadmitirqueesseobjetonofossemeudesejoemmomentospassadosequepossadeixardeser, no futuro. As prescries prticas fundadas nos possveis objetos dafaculdade de desejar, ou no princpio geral da felicidade, no podem,portanto, servir de base para prescries incondicionais. Neste caso,teremosoubemqueassumirqueanossafaculdadededesejar,avontade,est sempre condicionada por elementos sensveis, ou seja, pelarepresentaodeumobjetocomoagradveloudesagradvel,outeremosque provar que existe uma faculdade de desejar superior, uma vontadesuperior, capaz de determinar-se pela pura forma da lei prtica, ou seja,provaraexistnciadeumarazolegisladora.

    A matria de um princpio prtico o objeto da vontade. E essepoderserounooprincpiodeterminantedamesma.Todasasvezesquea vontade tomar seuobjeto comoprincpiodeterminante, estar sujeita acondies do mundo sensvel, ou seja, ser uma vontade empiricamentecondicionada. Mas se eliminarmos de um princpio prtico toda a suamatria,ouseja, todosospossveisobjetosdavontade,nadamaisrestardetalprincpiosenoasimplesformadeumaleiuniversal.

    Oterceiroteoremaconcluiqueumserracionaldeveconcebersuasmximascomoleisprticas,ouseja,comoprincpiosquecontmabasededeterminao da vontade, no na matria, mas exclusivamente na suaforma.Para reconhecermosquandoumamximapossui valordeuma leiprtica,bastaveriicarsepodemosounouniversaliz-la.Nesteprocessotodas as mximas, cujo poder de determinao for indissocivel de seucontedo sensvel, sero autodestrudas. Posso, por exemplo, tomar comomximadomeuagironopagamentodeimpostos,masnoseriaracionalquerer que estamxima seja universalizvel, pois, do contrrio, todas asvantagensobtidasatravsdopagamentodeimpostosseriamsuprimidas.

    Kant formula, em seguida, seu primeiro problema: supondo que asimplesformadasmximasporsimesmaoprincpiodedeterminaodeumavontade,devemos,ento,encontraranaturezadavontadequepodeserassimdeterminvel.Talvontade,naspalavrasdeKant:

  • (...)deveconceber-secomototalmenteindependentedaleinaturaldosfenmenosnassuasrelaesrecprocas,asaber,daleidacausalidade.Talindependncia,porm,chama-seliberdadenosentidomaisestrito,isto transcendental. Por conseguinte, uma vontade, qual s a pura formalegisladoradamximapodeservirdelei,umavontadelivre.[14]

    A vontade que buscamos, portanto, caracteriza-se como vontadelivre, onde liberdade, negativamente deinida, signiica independncia detodososmbilessensveis.

    Supondoagoraaexistnciadeumavontadelivre,Kantformulaseusegundoproblema: encontrar a lei queadetermina.Ora, j vimosque seextrairmosdeumprincpio todaasuamatria,nadamaisrestardoquesua pura forma. A lei capaz de determinar uma vontade livre no serseno o prprio princpio de uma legislao universal, j denominado naGMS como a lei moral. Desta forma, Kant apresenta o principio deuniversalizaocomoleifundamentaldarazopuraprtica(7).

    Mas como se fundamenta essa lei? No podemos demonstr-laanaliticamenteapartirdoconceitode liberdade,poisneste casoa recusado conceito de liberdade proposto faria com que a possibilidade da leimoralfosseautomaticamentesuprimida.Nopodemostampoucopartirdaliberdade como um fato no mundo, pois a ela no corresponde intuioalguma. Impossibilitado, portanto, de apoiar a leimoral na conscinciadaliberdade, Kant apresenta a conscincia da lei moral como um fato darazo.Talleideveserconsideradacomodada,nocomoumfatoemprico,mascomoo fatonicodarazopura(7).Porquetemosconscinciada leimoral,somosagoraobrigadosareconhecernossaprprialiberdade.Nomais da liberdade que derivamos a lei moral, mas, ao revs, do carter,inquestionveldaleimoralqueextramosaliberdade,ouseja,aliberdadeaquidemonstradacomoumacondiodepossibilidadedaconscinciadaleimoral.Senofssemoscapazesdesubjugarnossasinclinaes,ouseja,se no dispusssemos de uma vontade livre, jamais seramos capazessequer de reconhecer o carter imperativo da lei moral. O princpio damoralidade,assim,proclamadocomoumaleiparatodososserescapazesdedesfrutardeumavontadelivre.Seucarterincondicionalexpressatosomenteacoeroquearazoimpenossanaturezaenquantoseresdomundosensvel.

    No teorema IV a liberdade apresentada em seu duplo sentido:enquanto independncia dos mbiles sensveis, ela teria um sentido

  • meramentenegativo,masenquantolegisladora,ouseja,enquantocapazdedeterminar a prpria vontade, adquire tambm um sentido positivo. Aautonomiadavontadeexprimesuacapacidadedeautodeterminao,quepor sua vez devemos reconhecer como sendo uma condio da nossaprpria conscincia da lei moral. Com isso, Kant supe ter demonstradoquearazopurapodeserprtica,ouseja,podedeterminaravontadeporsi mesma, independentemente de todo o elemento emprico. A lei moral,enquanto fato da razo est indissociavelmente ligada liberdade davontadedosseresracionais.Essaliberdadeanunciaummundopuramenteinteligvel, onde a prpria liberdade se torna lei de causalidade,substituindo, assim,oprincpionaturalde causalidadeque regeomundosensvel. Enquanto seres racionais, participamos desta liberdade, porconseguinte, devemos ser igualmente capazes de abstrair do contedosensveldenossasmximaseelev-lasauma leiuniversal.Agirdeoutromodo seria sucumbir a nossas inclinaes sensveis e suprimir a prprialiberdade.

    Haveria em Kant alguma forma de reconhecermos a lei moral,seno como um fato da razo? Na dialtica da razo pura prtica, KantintroduzaideiadeDeuseprocurajustiic-lacomoumpostuladodarazopura prtica. A ideia de Deus, acerca da qual no pode possuirconhecimento algum, ento apresentada como uma necessidadesubjetiva inerente nossa compreenso do soberano bem. Tal ideia nopode,contudo,serpensadacomofundamentodaprpriamoralidade,pois,do contrrio, estaria no temor a Deus ou na expectativa de umarecompensa divina, e no mais no puro respeito lei, a fonte de nossamotivaomoral. (...) a leimoral em ns, sem nos prometer ou ameaaralgo com certeza, exige de ns um respeito desinteressado[15], reiteraKant. Como j vimos, apenas reconhecemos como moral uma aorealizada por dever e no aes praticadas simplesmente conforme odever. Uma ao realizada por dever s pode encontrar seu princpio dedeterminao na ideia de uma razo legisladora. O fundamento damoralidadenaKpVdepende,portanto,exclusivamentenoreconhecimentoda lei moral como um fato da razo. A partir deste fato, assumido comoincontestvel,Kantfundamentaseuconceitodevontadelivre,conceitoestequeaGMSapresentoucomoindissociveldaleimoral.

    O argumentodaKpVpode ser reconstrudonos seguintes termos:(1) temos conscincia da leimoral. (2) S podemos reconhecer o carterincontingente da lei moral se formos livres, mais especiicamente, se

  • dispusermos de uma vontade autnoma, ou seja, capaz no apenas deabstrair de todos os mbiles sensveis, mas tambm de se deixardeterminar pela pura racionalidade. (3) Ora, a razo, da qual extramostodarelaoaosobjetosdomundosensvel,nadamaisnosfornecesenooprincpio formal de determinao das mximas do agir, a saber: oimperativocategrico.

    Se no pudermos aceitar a lei moral como um fato da razo, noteremos mais como garantir a prpria liberdade da vontade e, porconseguinte, a necessidade do agir de acordo com a leimoral. Kant ter,assim, fracassado em seu propsito de demonstrar a existncia de umarazopuraprtica, ou seja, deprovaro carternecessrio, incondicional,do princpio do dever. [16] Mas o que restaria da perspectiva kantiananeste caso? Vimos que Kant nos apresenta, no prefcio KpV (A14), omrito da GMSd eindicar e justiicar a frmula da princpio do dever.Minhahipteseadeque,casoKanttenhafracassadonasuatentativadefundamentaopropostanaKpV,istonoabalaaGMS,ouseja,noimpedequeconsideremoscorretaaindicaoeajustiicativakantianadafrmulainerente a um princpio moral. Quer aceitemos ou no a lei moral, ou aconscinciadamesma,comoumfatodarazo,deve-seaceitaroimperativocategrico kantiano como sendo a melhor expresso do princpio damoralidade.

    Voc est querendo dizer que a moralidade pode ser umaquimera,masqueaindaassimfazalgumsentidoapresentara frmuladoprincpioquemelhorcapazdeexpressa-la?, indagarmeuinterlocutor.A resposta simples: em primeiro lugar ainda no podemos descartar apossibilidadede fornecerparaoprincpiopropostoporKantoutra formade fundamentao. Em segundo lugar, tampouco est descartada apossibilidadedequesimplesmentepossamosdecidirporsermosmorais,oqueclarotornariaaquestodafundamentaosemsentido,pormnoa necessidade de buscarmos um princpio que corresponda ao nossoanseiopelamoralidade.Estasduasalternativasseroanalisadasnaseoseguinte.

    II . Aheranakantiana

    Nesta seoanaliso, na ilosoia moral contempornea, duastentativas de retomada do princpio moral kantiano: Habermas eTugendhat.

  • Aticadodiscurso

    De forma semelhante GMS, "Diskursethik - Notizen zu einemBegrndungsprogramm"[17] tem incio com uma anlise de elementosinerentes nossa compreenso pr-ilosica da moral. Distintamente,contudo da anlise kantiana, a relexo de Habermas parte, no de umaanlise do emprego do predicado bom em sentido absoluto, mas doselementosextralingusticosdanossaconscinciamoralcomum,asaber,osafetos ou sentimentos tipicamente morais, tais como indignao,ressentimento, vergonha e culpa. Seguindo a anlise realizada porStrawson, Habermas esclarece tais afetos como parte de nossa reao aaes que infringem normas aceitas como universalmente vlidas. Nestesentido,osentimentode indignaosercompreendidocomoumareaoao desrespeito a normas nas quais acreditamos, o ressentimento como areaoafetivanegativaaodesrespeitoanossaprpriapessoa,aculpaeavergonha como expresso da conscincia de que somos ns queinfringimos normas universalmente aceitas. Na base dos mencionadossentimentosmorais estaria, assim, a pretenso de validade universal dosenunciadosnormativos.

    Partindo desta anlise dos elementos extralingusticos da nossaconscinciamoral,chegamos,ento,caractersticacentraldoschamadosenunciados morais, a saber: sua pretenso de correo normativa(Richtigkeitsanspruch). Tal pretenso estaria sendo negligenciada portodas as chamadas abordagens no-cognitivas da moral que, ao tentarjustiicaramoralidadeemsentimentosouescolhaspessoais,nofazemjusao carter impessoal ou universal de seus enunciados. A defesa de umaperspectiva no-cognitivista est, para Habermas, baseada em duasdiiculdades, com as quais se deparam as concepes cognitivistas: (i) aimpossibilidade de solucionar a controvrsia em questo de princpiosmorais e (ii) o fracasso de suas tentativas de fundamentao. Paradefender sua perspectiva, Habermas dever, portanto, atacar taisquestes. Para dissolver a primeira, dever indicar o princpio que tornapossvel o acordo entre argumentos morais concorrentes. Este princpioserentoapresentadocomosendoaexpressodoimperativocategricokantiano, ou seja, o prprio princpio de universalizao. A segundadiiculdade desaparece, segundo o autor, to logo abandonemos anecessidade de resgatar a pretenso de validade dos enunciadosnormativos, tomando como paradigma validade no sentido de verdade

  • proposicional. soluo de tais questes esto dedicadas a segunda eterceiraseodeseuartigo.

    Na segunda seo Habermas tentar mostrar que o princpio deuniversalizao deve assumir, no plano da moralidade, o papel de umprincpio ponte que, de forma anloga ao princpio de induo nodiscurso terico, nos permita justiicar a passagem do singular aouniversal, mais especiicamente, a passagem do reconhecimento deinteresses particulares ao reconhecimento ou aceitao de normasuniversais.Oprincpiopontenombitododiscursomoraldevergarantiro carter impessoal ou universal dos mandamentos morais. [18] Normasmoraissoaquelasqueexprimemumavontadeuniversal,talcomoKantoutroraasdeinira.Comisso,Habermasretomaoprincpiomoralkantiano.Deacordocomsuaspalavras,oimperativocategricopoderserentendidocomoumprincpioqueexigeapossibilidadedeuniversalizarasmaneirasde agir e as mximas, ou antes, os interesses que elas levam emconta.[19] Trata-se, agora, de elucidar como tal princpio deve sercompreendidoetergarantidasuapretensodevalidade.

    , portanto, neste contexto que Habermas introduz a anlise dasinterpretaesdoprincpiodeuniversalizaofornecidasporR.M.Hare;K.BaiereB.Gert;M.G.Singer;G.H.Mead;J.RawlseE.Tugendhat.Paratodosos autores mencionados, tratar-se-ia de elucidar o princpio deuniversalizaocomooprincpiode imparcialidadeconstitutivodenossosjuzos normativos. A peculiaridade da perspectiva habermasiana consisteem fornecer uma formulao dialgica do princpio kantiano e emfundament-lo como um pressuposto das regras que deinem aracionalidadedaargumentao.

    Emcontraposioaoagirestratgico,ondequalquerprocedimento avaliado tendo em vista apenas sua eiccia para o alcance dos insalmejados, o discurso racional caracterizado por Habermas como umaformade interaonaqualosparticipantessecomprometemdeantemocomcertasregras,sema squais aprpriacomunicaoestariaameaada.Ao elucidar tais regras, Habermas pretende mostrar que ao aceit-lasointerlocutor ctico acaba por comprometer-se com o princpio deuniversalizao. Em outras palavras, Habermas pretende provar que oprincpiodeuniversalizao,ouseja,oprincpiomoral,umaregrabsicaouumprincpioconstitutivodaprpriaargumentao.Assimsendo,todosaquelesqueaceitamtomarpartenodiscursojopressupem.

  • Tomarpartenadiscussoerecusaroprincpiomoralcaracterizariao que denominamos uma contradio performativa. Tal contradio,segundo Habermas, no pode ser entendida nem como uma contradiolgica-comoaairmaoconcomitantedeAeseuoposto-,nemcomoumacontradioperformativadireta - comoparece sero casoda extensodadvida cartesiana existncia do sujeito que, enquanto ser pensante, condio do prprio ato de duvidar. No caso do reconhecimento doprincpiomoral a contradio s se torna explcita quando analisamos aschamadas regras da argumentao. Com isso, devemos ser capazes deprovar que as regras aceitas por nosso interlocutor ctico para defendersuaprpriaperspectiva,jimplicamaaceitaodoprincpiomoral.

    Asregrasquetornampossvelodiscursoracionalemgeralpodemser caracterizadas com pressupostos de trs planos do discurso. Paraexempliic-losHabermasutilizaocatlogoderegrasorganizadoporAlexyemseuartigoEineTheoriedespraktischenDiskurses[20].Noprimeiroplanoestariamasregraslgico-semnticas:

    1.1.Anenhumfalantelcitocontradizer-se.

    1.2. Todo falante que aplicar um predicado F a um objeto a temqueestardispostoaaplicarFaqualqueroutroobjetoqueseassemelheaasobtodososaspectosrelevantes.

    1.3.Nolcitoaosdiferentesfalantesusaramesmaexpressoemsentidosdiferentes.[21]

    No segundo plano estariam os pressupostos pragmticos, ou seja,queconcernembuscacooperativadaverdade:

    2.1. A todo falante s lcito airmar aquilo em que ele prprioacredita.

    2.2. Quem atacar um enunciado ou norma que no for objeto dadiscussotemqueindicarumarazoparaisso.[22]

    E, inalmente, as regras que permitem neutralizar todo tipo decoeroexternaaodiscurso:

    3.1. lcito a todo sujeito capaz de falar e agir participar deDiscursos.

    3.2.(a)lcitoaqualquerumproblematizarqualquerassero.

    (b)lcitoaqualquerumintroduzirqualquerasseronoDiscurso.

  • (c) lcito a qualquer um manifestar suas atitudes, desejos enecessidades.

    3.3. No lcito impedir falante algum, por uma coero exercidadentroou foradoDiscurso,devaler-sedeseusdireitosestabelecidosem3.1e3.2.[23]

    Neste ltimo plano, Habermas apresenta uma nova verso doschamados princpios de uma situao de fala ideal, introduzidos em seuartigo Wahrheitstheorien [24]. Tais regras representam os princpiostranscendentais-pragmticos da tica do discurso. "Transcendentais" nosentido em que sua validade uma condio de possibilidade dacomunicao. "Pragmticos" porqueno sedeixamelucidarmeramente apartirdascaractersticassintticasesemnticasdalinguagem.Elassoasregras de uma prtica comunicacional, sem as quais no pode haver agarantia de um discurso racional, capaz de fundamentar asseres,normas ou direitos. Por exprimirem pressupostos de todo e qualquerdiscurso racional sero tambm chamadas regras da razo comunicativa.Osprincpiosdasituaodefalaidealfornecemagarantiadequeapenasoreconhecimento do poder coercitivo de bons argumentos sejaresponsvel pelo alcance de um acordo entre opinies dissonantes. Taisprincpiosdevero,portanto, impedirqueelementosexternosaodiscursopossaminterferirnocursodaargumentao.

    Comobasenosprincpiosacimamencionados,garantimosavitriados argumentos que, por im, tiveremalcanado o assentimento de todososparticipantesdodiscurso.Comisso,Habermasintroduzumcritrioparaoreconhecimentodavalidadedeenunciados,qualseja:oacordodetodosos concernidos. Tal regra ser chamada princpio tico-discursivo ouprincpioD.

    VimosqueparaHabermas,asregrasdaargumentaosotambma expresso do princpio moral, ou seja, do princpio de universalizao.Com base, portanto, no princpio que garante a continuidade do prpriodiscurso, princpio U, o princpio D nos fornece o critrio para oreconhecimento da pretenso de validade dos enunciados em questo. AaplicaodoprincpioD supe, assim, de antemo, quequestesprticasem geral possam ser julgadas imparcialmente, e decididas de modoracional. Condies estas que devem ser satisfeitas pelas regras daargumentao.

  • Podemos, ento, observar, em Habermas, dois nveis deargumentao: no primeiro nvel, tratar-se-ia de fundamentar o princpiomoral kantiano, ou seja, o princpio U como um princpio do discursoracional em geral, ou seja, como expresso das regras da argumentaoracional. Garantida a imparcialidade moral/argumentativa, o princpio Dforneceria o critrio para o reconhecimento, ou ainda, para afundamentao do valor normativo de um enunciado. Normas regulam asatisfao das necessidades e interesses dos indivduos. Umanorma, quetodos possam aceitar, dever, portanto, respeitar as necessidades einteressesdetodososconcernentes.Snestecaso,serentopossvelumconsensoracionalacercadamesma.

    O consenso, ou seja, o acordo entre os potenciais participantes dodiscurso racional constitui, no mbito da teoria do agir comunicativo, acondio para o resgate de pretenses de validade, tanto de asserescomodeenunciadosnormativos.Umconsensofundamentadoaqueleemqueaaceitaodeumenunciadoresulta tosomentedopodercoercitivodos argumentos em seu favor. Os argumentos sero ento o fundamentoquedevernosmotivarareconheceraspretensesdevalidadeerguidaspelasdiferentesformasdediscurso.

    Se a peculiaridade da proposta de Habermas repousa sobre suainterpretao dialgica, no-monolgica, do princpio kantiano, a primeiraetapadeumaapreciaocrticadamesmadeverconsistirnaveriicaodosupostocarteressencialmentecomunicativodetalprincpio.

    Umenunciadopossuiumusoessencialmentecomunicativoquandopodemos reconhecer uma distino essencial, portanto, uma assimetriaentre o papel do falante e o papel do ouvinte. Quando investigamos osdiversos usos da linguagem, podemos certamente constatar em algunscasos a existncia de tal assimetria, como, por exemplo, as ordens e ospedidos. Mas ser este o caso dos chamados enunciados normativos?Expressesnormativascontmumaexignciarecproca.Noentanto,distono se segue que essas s possam ser compreendidas a partir de umcontextocomunicacional,postoquesuacompreensonosupeareferidadistinoentreopapeldofalanteeodoouvinte.

    Para evitar a confuso entre as regras do agir comunicativo e asregras de emprego da linguagem, Tugendhat [25] sugere que chamemosaquelas regras da linguagem, para as quais indiferente se esto sendousadas comunicativamente ou no, regras semnticas, e reservemos o

  • ttulodepragmticassregras,quespodemsercompreendidasemumcontexto comunicacional. Regras semnticas determinam o sentido ou omodo de uso da linguagem. Tais regras podem ser compreendidas em simesmas; ou complementadas atravs de regras comunicativas oupragmticas. Porm, apenas quando o uso de uma expresso lingusticano puder ser pensado fora de um contexto comunicacional far entosentidocaracteriz-locomoessencialmentecomunicativo.

    Mas ser que ao nvel da justiicao dos enunciados normativosno podemos reconhecer algo de essencialmente comunicativo, ou maisespeciicamente, essencialmente dialgico? Podemos conceder que oprincpio de universalizao seja, em boa parte das vezes, aplicado comoumprincpiodialgicoemdiscursosreais.Isto,contudo,noexclui(1)que,em uma parte igualmente relevante de casos, possamos empreg-lomelhormonologicamente, e ainda (2) que em certas situaes o discursoreal seja mesmo impensvel. Para ilustrar o primeiro grupo de casospodemos imaginar a seguinte situao: sou mdico e pretendo chegar auma concluso acerca de dever ou no revelar aos meus pacientes seuverdadeiro estado. Em tal situao, expor-lhes meus argumentos jpressuporiaumatomadadeposio.Somentenocasodeterpreviamentedecidido pela verdade, faria sentido defenderminha perspectiva peranteosmesmos.No segundo grupo esto as situaes emque os concernidosno so capazes de tomar parte no discurso racional. Este seria, porexemplo, o caso da fundamentao dos direitos das crianas, ou ainda , ocaso de qualquer situao que envolva indivduos com qualiicaesargumentativas bastante diversas. Sempre possvel que os concernidosno sejam as pessoasmais aptas para defender seus prprio interesses.Nestes casos, quealternativanos restar senodecidirmonologicamente,ouseja,foradeumdiscursoreal?

    Massuponhamosquealgunscasosenvolvamumdiscursoreal.Serque aomenosnestes casos seria correto suporque, ao aceitarmos tomarpartenodiscurso,noscomprometemoscomoprincpiodeuniversalizaoentendido comumprincpiomoral?A razooua lgicada argumentaonosobrigaareconhecerumbomargumento.OprincpioU,casorealmentepodemos entend-lo como uma verso do princpio moral kantiano, nosobriga,porsuavez,arespeitartodosospossveisparticipantesdodiscursoracional, independentementedeseusargumentos.Talexigncianopodeser considerada uma exigncia da racionalidade. A chamada razocomunicacional apenas explicita as condies para que os bons

  • argumentos possam ser reconhecidos, independentementedo seuporta-voz.[26]

    ParaHabermasoprincpioUumacondionecessriaparaqueacomunicao racional seja possvel. Com base neste pressuposto, oprincpio D funcionaria como critrio para o reconhecimento de validadede nossos enunciados. Ora, se pudermos realmente mostrar que adiscussonoumpressuposto,ouseja,umacondionecessriaparaoresgatedetaispretenses,emquesentidooprincpioDpoderiaaindaserreconhecidocomotal?

    Senopudermosprovarqueoprincpiodeuniversalizaoumacondiodepossibilidadedodiscurso racional, nopoderemos, combasenaticadodiscurso, fornecerum fundamentoparasuaaceitao.Massenoprecisamosnoscomprometercomamoralidade,porquedeveramosaceitar o princpio D, ou outro princpio qualquer, como critrio dereconhecimentodovalornormativodeumdeterminadoenunciado?Senoh na nossa natureza enquanto seres racionais nada que nos induzanecessariamenteaagirdeacordocomamoralidade,porquedeveramosaceitar algum princpio moral e nos comprometer a agir conforme omesmo? Para buscar responder a tais questes e, por conseguinte,garantir a possibilidade de uma comunidade moral, ainda que j nopossamos fornecer qualquer tipo de fundamentaoa priori de umprincpio moral, proponho uma investigao da retomada do imperativocategricokantianopelaassimchamadamoraldorespeitouniversal.

    AMoraldorespeitouniversal

    Nesta etapa no pretendo apresentar uma teoria moralpropriamente dita, mas apenas, com base em Tugendhat, propor umasoluo para alguns dos problemas acima mencionados. Aqui, no serfornecida nenhuma prova da moralidade, ou seja, da necessidadeincondicional de agirmos moralmente. Com isso pretendo descartar deantemoapossibilidadederesponderaochamadoceticismomoral.Oqueproponho to somente uma justiicao do imperativo categricokantiano, como o princpio que melhor resgata aquilo que desejamos,quandodesejamosfazerpartedeumacomunidademoral.Paraosquesoindiferentes a qualquer demandamoral, ou seja, para a chamada lack ofmoral sense, no proporei aqui nenhuma resposta. Aceitar ou no umaperspectiva moral ser encarado como um ato de deciso do prprio

  • indivduo. Contra os demais poderei apenas ilustrar tudo aquilo de quedevemabdicarparaquesejamcoerentescomsuarecusadamoralidade.

    Fundamentar um conceito de moral signiica em Tugendhat[27]fornecerumconceitodemoralidadeplausveleaomesmotempomostrarque todas as outras possibilidades so menos plausveis ou inaceitveis.Talconceitoserparaeleexpressopeloimperativomoralkantiano:"ajadetalmaneiraqueahumanidadepossaserconsiderada,tantonasuaprpriapessoa quanto na pessoa de cada ser humano, nunca como um simplesmeio, mas como um im em si mesmo. Para evitar qualquer diiculdadeinerentepremissakantianadeque todosos sereshumanos soum imem si mesmo, prope apenas que digamos: "No utilize um ser humanocomo um meio" ou ainda "no instrumentalize seres humanos". Com aajuda deste princpio, Tugendhat deine a moral do respeito universal.Respeito signiica, aqui, o reconhecimento de cada indivduo enquantosujeitodedireitos.Ocontedodestaexigncianosenoaconsideraosnecessidadeseinteressesdecadaqual.Asnormasmoraissero,assim,aquelas que a partir da perspectiva de cada indivduo puderem seraceitas.

    A deciso de aceitar ou no uma concepo moral , em ultimainstncia, um ato da autonomia do indivduo. No h, portanto, nada quenosobrigueatal.Aconstituiodeumaconscinciamoraleossentimentosa ela associados, dependemde que o indivduoqueira ser compreendidocomo integrante da comunidade moral, ou seja, queira pertencer totalidadedosindivduoscujoagirestorientadoporregrasmorais.

    Resta, portanto, nos perguntarmos: (1) se queremos noscompreenderenquantointegrantesdeumacomunidademoralqualquere(2) se queremos nos compreender enquanto integrantes da comunidademoraldeinidapeloconceitode"bem"aquiapresentado.Talquestodeveser compreendida como parte integrante da questo que concerne constituiodaidentidadequalitativadecada indivduo, isto,aperguntapelo"oque"e"quem"queremosser.

    A identidade de cada indivduo compreende sempre algo que jestdeterminado,talcomo,porexemplo,elementosdesuahistriapessoalou talentos individuais, e tambm algo que depende de cada um. Aidentidadequalitativa,assim,umarespostadoindivduoaoseupassado,e aomesmo tempo a determinaode seu futuro.O indivduo elegeparaseu futuro aquilo que considera fundamental para sua vida e para sua

  • identidade.Elevivenciasuavidaenquantologradaoufeliz,quandoatingeumaidentidadelograda.

    , contudo, necessrio que a identidade moral desempenhe umpapelconstitutivonaidentidadedoindivduomoderno?Nsdissemosquecada indivduo elege para si aquilo que para sua identidade e para suavida considera fundamental. a identidade moral de um indivduoessencial para uma identidade ou para uma vida lograda? Tal questopermaneceemaberto.Tudooquepodemosfornecerumesclarecimentodoselementos implicadospelaaceitaoourecusadeumprincpiomoralqualquer.

    Senoelegemosparanossaidentidadequalitativaopertencimentoaumacomunidademoral,suprimimosapossibilidadedecensuramoralede qualquer referncia a sentimentos morais, tais como: vergonha,indignao ou culpa. Tais sentimentos so, como j vimos, uma reao dacomunidadeoudoprprio indivduo infraodeumprincpiomoral aoqual ambos estejam identiicados. Este tipo de reao ser o quedenominamoscomo"sanointerna".[28]

    Se no queremos nos referir ao conceito de bem kantiano, entonossa relao com outros seres humanos ser apenas instrumental. Emoutras palavras, trataremos outros indivduos no como sujeitos capazesde determinar suas prprias aes e ins, mas como meros objetos donossoprprioagir.

    A identiicao com uma comunidade signiica, em geral, fazer deseus princpios nossos prprios princpios. A identiicao com osprincpios da moral do respeito universal signiica considerar cadaindivduo como sujeito de direitos. Se quisermos que nossas prpriaspretenses sejam respeitadas, ento devemos eleger viver em umasociedadecujoprincpiosupremoorespeitoaos interessesdecadaum.Se identidade qualitativa do indivduo pertence identiicao com osprincpiosdamoraldorespeitouniversal,entoorespeitoatodosossereshumanos ser uma condio necessria para que o indivduo possa terconscinciadeumaidentidadeouumavidalograda.

    Quando elegemos como ponto de partida a moral do respeitouniversal,entonoscomprometemosaconsiderarcadaserhumanocomoigual objeto de respeito. O respeito a cada ser humano supe oreconhecimento de suas necessidades bsicas. Somente a atribuio de

  • direitos bsicos pode garantir a satisfao de tais necessidades e, porconseguinte, fornecer a todos os indivduos as condiesmnimas para arealizaodeumavidadigna.Pordireitosbsicosdevemoscompreendertanto os direitos relacionados educao, formao proissional, trabalhoetc., como o direito alimentao, moradia, assistncia mdica e a tudoaquilo, que no decorrer do tempo, puder ser reconhecido como parteintegrante da nossa concepo de vida digna. Este o caso, nos ltimosanos, dos direitos que concernem demanda por um meio ambientesaudvel.

    A satisfao das necessidades bsicas de um indivduo umacondio necessria para a autoestima do indivduo, para seu respeitopelos demais e pelo respeito aos princpios da sociedade. Enquanto suasprpriasnecessidadesbsicasnosorespeitadas,norazovelesperarque o indivduo se identiique s normas da sociedade. A atribuio dedireitosbsicos,assim,umacondiomnimaparaqueoindivduopossareconhecer nas normas da sociedade o respeito por sua prpria pessoa.Uma condio mnima, portanto, para que o indivduo queira secompreendercomointegrantedacomunidademoral.

    Pretendo defender, com Tugendhat, a tese de que a atribuio dedireitos bsicos a todos os indivduos, ou seja, o respeito universal, simplesmente uma decorrncia do fato de que, sem introduzirmospressupostos metasicos, no somos capazes de justiicar umadiscriminao primria entre os indivduos. No seria assim o carteruniversal e igualitarista das regras morais que exigiria uma justiicao,mas sim a introduo de critrios discriminatrios que restringissem suavalidadeaindivduosdedeterminadogrupo.

    Combasenadistribuioigualitriadedireitosbsicos,ouseja,combase no princpio universal do respeito, poderemos ento justiicar, aposteriori, uma distribuio no-igualitria. Para tal, basta que sejamoscapazes de mostrar que o respeito a cada indivduo supe oreconhecimentodesuasparticularidadese,porconseguinte,a introduode regrasqueas leveemconsiderao. Separtirmosdoprincpiodequetodos os indivduos tm direitos iguais sade, educao, alimentao emoradia, no podemos supor, por exemplo, que os mesmos recursosdestinadosmanutenodasadedeumindivduonosejamdestinados garantia domesmo direito no caso de indivduos enfermos. Damesmaforma,osgastoscomaeducaodeumindivduonormalnopoderoser

  • osmesmosdestinadoseducaodeumindivduodeficiente.

    Se de fato consideramos que, em um nvel mais bsico, nopodemos atribuir umvalordistinto aos indivduos, a umnvel secundriodeveremosgarantirestaigualdadecomaintroduoderegrasespecicas.Mas quais seriam tais regras? Como poderamos chegar a um acordoacercadaescolhadasregrasdeumadiferenciaosecundria?Noseriaexatamente este, ou seja, a capacidade de decidir entre regrasconcorrentes,overdadeirodilemadaquelesque jaceitamamoralidade?Noseria, agora, razovel suporqueapenasnombitodeumadiscussoreal possamos chegar a um acordo mais representativo dos anseios detoda a comunidade moral? Caso a resposta a esta ultima questo sejapositiva, ento talvez tenhamos que concluir que Habermas - apesar decometerumafalciaargumentativaaotentarderivaroprincpiomoraldasregrasdaargumentao-nosapresentaamelhorpossibilidadederesgatedapretensodevalidadedenossosenunciadosmorais,asaber,odiscursoreal. Estas so, contudo, questes que deixarei, aqui, em aberto, noporqueumarecusadesuaimportncia,mas,aocontrrio,porreconhecerquenelasestocontidasassementesdeinmerosprojetosdeinvestigaofilosficos.

  • 2EmdefesadeumPerfeccionismoMoralepoltico

    Quando somos indagados acerca da validade de nossas crenas,costumamos responder apelando para princpios que conferemlegitimidade s mesmas. Se acreditarmos que, ao nvel do mar, a guafervea100grauscentgrados,porque j realizamos inmerasvezes talexperimento e at hoje observamos uma regularidade entre oaquecimento da gua e seu processo de ebulio. Ao airmarmos que 2mais2iguala4ouqueasomados4ngulosdeumquadradoequivalea360 graus, estamos expressando um conhecimento que se baseia emconvenes ou princpios matemticos. Enquanto certos fenmenospuderem ser observados e/ou tais convenes ou princpios estiveremvalendo, teremosumabasesegurapararesgatarapretensodevalidadedetaiscrenas.

    H, contudo, enunciados que no expressam nossa crena acercadasleisqueregemomundosensvel,massimacrenanavalidadedeumdeterminadomodode agir, que parece ser at certo ponto independentede constataes empricas. Se chover, haver um aumento da umidaderelativa do ar. A chuva poder tambm favorecer a plantao,mas querchova, quer faa sol, i.e. independentemente do que quer que ocorra nomundo emprico,acredito quenodeva infringirdor inutilmenteaoutrosseres humanos,acredito que deva manter minhas promessas e que nodeva dispor do que nomepertence.Mas de onde provm tais crenas?Haver um fato distinto no mundo no qual esteja baseada minhacompreenso do que devo fazer? Haver no fundo de cada um de nsalgum sentimento que determine nosso modo de agir? Se no formoscapazes de determinar as regras que orientam a nossa conduta, jamaispoderemos supor que tal mbito do nosso discurso possua qualquerfundamento. Apenas poderamos descrever nossas aes, assim comodescrevemos fenmenos do mundo natural, mas no poderamos suporquealgoprescrevaumadeterminadaconduta,ouseja,poderamosapenasconstatar que agimos de tal e talmodo, pormno que devamos agir deumaformadeterminada.

    Esta distino entre omodocomoas coisas so e omodo comodevemser pode ser ilosoicamente redescrita atravsdadistino entreenunciados assertivos e enunciados normativos. Os primeiros pertencem

  • ao mbito do nosso discurso que concerne verdade. Os segundospertencemaochamadodiscursomoral.Seconsiderarquetudoaquiloque,nosenooquemeparece,eliminoqualquerpossveldistinoentrerealidade e fantasia, entre o universo demeus estados subjetivos e umacordo intersubjetivo acerca de nossas experincias. Se considerar quemeus desejos e interesses individuais devam ser a nica fonte dedeterminao da minha conduta, elimino qualquer possibilidade de umacordo comumacerca de regrasmorais, ou seja, amoral seria destitudade qualquer objetividade. Ser aqui investigada a possibilidade decompreenderamoralcomotendoumavalidadeobjetiva.

    Para que a moral no consista apenas de expresses subjetivasligadas a um indivduo ou a uma cultura, preciso que as vriasconcepesmoraispossamdiscutirentresi.Nestaexposiopretendo,emprimeiro lugar, indicar um princpio que fornea as diretrizes do agirmoralepossibiliteodilogoentreperspectivasmoraisconcorrentes.Paratal, pretendo defender a adoo do princpio do respeito universal comouma consequncia da ausncia de elementos que justiiquem umadiscriminao primria, apriorstica, dos seres humanos. Em seguidapretendo mostrar que a adoo deste mesmo princpio tem comoconsequncia a criao de regras de conduta diferenciadas e que oestabelecimento de tais regras s pode se dar no mbito das relaeshumanasoudodiscursoefetivo,nestesentido,spodemserestabelecidaspragmaticamente.Pretendo,combasenisso:(1)defenderumaperspectivadecisionista diante da questo de fundamentao da moralidade; (2)justiicar a adoo do princpio moral kantiano como o princpio quemelhor responde a nossas demandasmorais e, inalmente, (3) apontarparaummbitodeindeterminaoconstitutivodaprpriamoralidadequenopodesersubmetidoaregrasdecarterabsolutoouaumparadigmaunvocodeconduta.

    1.Sobreajustiicaodeaeseregrasmorais

    Enunciadosmoraissecaracterizamporpossuircarterprescritivo,ouseja,noselimitamdescrioouanlisedomodocomoascoisasso,mas ditam o modo como devem ser. Tal dever deve, contudo, poder serjustiicado, se de fato erguemos comnossos juzosmorais umapretensolegtima. Podemos, portanto, indagar porque devemos aceitar agir deacordocomumprincpiomoral.

  • Nahistriadailosoiateremosumextensoeigualmentefracassadorepertrio de respostas a esta questo. Porque faz parte de nossanatureza. Mas, de que natureza?, perguntaramos. Da nossa naturezaenquantoilhosdeDeus;enquantoseresquedesfrutamdosentimentodecompaixoparacomosdemaisouenquantosereslivres,dotadosderazo.No primeiro caso destacamos a crena em uma entidade transcendentecomo fundamento damoralidade: devemos aceitar tal e talmandamento,porque o mesmo relete a vontade divina. Este seria o procedimento damoral tradicional, ou seja, da moral que baseia seu fundamento naautoridade. No segundo caso seria necessrio provar que de fatopossumos tal natureza. Bem, ainda que possamos mostrar que umdeterminado grupo de indivduos apresenta o sentimento de compaixo,isto no seria uma prova de que todo e qualquer indivduo de fato opossua. Sentimentos podem ser apenas constatados e no exigidos. Se amoralidadedevesserepousarnapossedealgumtipodesentimento,entodeveramosdestituir-lheocarterprescritivo.

    Resta, assim, a terceira alternativa. Fundamentar o carterprescritivodamoralidadenoconceitodeserracional,nodeixadeserathojeamaisengenhosatentativadefundamentaodamoral.Somoslivresquandosomoscapazesdenosdeixarguiarunicamentepelarazo,ouseja,quando somos capazes de abstrair de todos os mobiles sensveis quedeterminamoagir,diriaKant[29]emsuaFundamentaometasicadoscostumes. Quando assim izermos, s nos restar eleger como norma oumxima do nosso agir aqueles princpios que possam ser igualmentereconhecidospor todos.Neste sentido, ser livredeve ser entendido comoser capaz de agir de acordo com o princpio formal de determinao davontade,a saber:oprincpiodeuniversalizao.Aprovadessa liberdade,ouseja,aprovadequedevemossercapazesdedeterminarnossasaescombasenoprincpio formaldedeterminaodavontadeseroobjetivocentral daCrtica da razo prtica [30]. Aqui Kant tentar provar aexistnciadeumarazopuraprtica,ouseja,aexistnciadeumprincpiopuramente racional de determinao da vontade. De modo bastantesucinto, poderamos reconstruir a argumentao kantiana nos seguintestermos:emprimeirolugardevemosreconhecerquesomosconscientesdonosso agir. Isto signiica: ser capaz de reletir sobre o mesmo. Ora, sesomos capazes de reletir sobre o nosso agir, devemos ser igualmentecapazesdejustific-lo.Umaaodeveserjustiicadacombaseemnormas.Normas,porsuavez,spodemserjustiicadascombaseemprincpios.S

  • podemos veriicar se as normas do nosso agir podem ser reconhecidascomoprincpios,ouseja,podemseraceitasportodos,quandosubmetemosseu contedo ao princpio de universalizao. Com isto, segue-se que aoaceitaracapacidadedeagirdeformareletidanoscomprometemosaagirdeacordocomumprincpiomoral,asaber:oprincpiodeuniversalizaoouoimperativocategricokantiano.

    Em quemedida, no entanto, podemos aceitar que o agir de formareletida ou racional envolva o comprometimento com uma justiicaoabsoluta, ou seja, que possa ser aceita como vlida por todo e qualquerindivduo em tal circunstncia? A fundamentao kantiana parece, nestesentido, estar comprometida com um conceito de razo nem um poucotrivial,oque,consequentemente,afetarsuaprpriavalidade.

    Uma tentativa de fundamentao anloga ser tambm propostapor Habermas. EmHabermas[31], o conceito de uma razo pura prticaser substitudopeloconceitode razocomunicacional.Nossacapacidadede reletir acerca de nossas aes ceder lugar capacidade de integrarum discurso de fundamentao racional. Os princpios subjacentes aomesmoserooschamadosprincpiosdaticadodiscurso.Nossaperguntapode ser ento recolocada: por que devemos aceitar que ser racional,agora no sentido de ser capaz de integrar um discurso racional, j noscomprometacomaaceitaodeprincpiosmorais?

    Ora, mas se todas as alternativas at ento fornecidas dejustiicaodocarterprescritivododiscursomoralforamdealgummodoabandonadas, no teremos que abandonar tambm tal pretenso?Minharesposta negativa, mas para esclarec-la devo antes distinguir duasquestes: (1) a primeira diz respeito tentativa de fundamentao damoralidade; (2) a segunda diz respeito especiicamente justiicao docarterprescritivodosjuzosmorais.Pretendomostrarqueoabandonodaprimeira questo no implica no abandono da segunda, ou seja, quepodemos abandonar a tentativa de provar a necessidade de agirmos deacordo com princpios morais, sem, contudo, abandonar a pretenso dejustiicar o carter prescritivo de enunciadosmorais. Com isso, pretendodefender uma perspectiva decisionista com relao chamadafundamentaodamorale,aomesmotempo,mostrarqueaadoodetalperspectiva no elimina a possibilidade de justiicarmos o carterprescritivodenossos juzosmorais,assimcomotambmaadoodeumaconcepodebemfrenteaperspectivasmoraisconcorrentes.

  • Abandonaraprimeiraquesto signiica admitirquenopossamosfornecer, atravs de argumentos ilosicos, elementos que conduzamnecessariamente ao agir de acordo com princpios morais, ou seja, aceitaodamoralidade.Aceitarounoumaconcepomoralemltimainstnciaumadecisode cada indivduo.Noh, portanto, nos limites dodiscursofilosfico,nadaqueosobrigueatal.

    Nsaceitamososprincpiosdacomunidademoralquandoelegemosfazer parte desta comunidade. Resta, portanto, nos perguntarmos sequeremos nos compreender enquanto integrantes de uma comunidademoral. Tal questo aqui compreendida como parte da questo queconcerneconstituiodaidentidadequalitativadecadaindivduo,isto,aperguntapelo"oque"e"quem"queremosser. [32]Oindivduoelegeparaseu futuro aquilo que considera fundamental para sua vida e para suaidentidade. Ele vivencia sua vida enquanto plena ou feliz, quando atingeumaidentidadeplena.

    Se no elegemos para nossa identidade qualitativa a identiicaocom os princpios de uma comunidade moral, eliminamos qualquerpossvelrefernciaasentimentosmorais,taiscomoculpa,ressentimentoeindignao.Taissentimentossoumareaodacomunidadeoudoprprioindivduo infrao de um princpio moral com o qual ambos estejamidentiicados. Se elegermos fazer parte da comunidade moral, ento noscomprometemos a fazer de seus princpios nossos prprios princpios, oqueemoutraspalavrassigniicaaceitarocarterprescritivodosmesmos.Comistosuponhopoderrespondersegundaquestoacimamencionada,qualseja,aquestoacercadofundamentodocarterprescritivodosjuzosmorais: agimos de acordo com princpios morais quando elegemos fazerpartedacomunidademoral.

    Como devemos deinir o que seja uma comunidade moral? Umacomunidade moral pode ser deinida (1) a partir dos indivduos que aconstituem ou (2) como um sistema de regras. No primeiro caso,deveramossercapazesde(i)explicitarascaractersticasquedistinguemtais indivduos daqueles que no participam de tal comunidade e (ii)justiicar por que tais caractersticas devem ser consideradas comomoralmente relevantes, ou seja, como capazes de determinar nossaconduta moral. Se no dispusermos de tais elementos, restar apenas asegunda alternativa. Comunidade moral seria, assim, (2) o sistema queabarca as normas que regem as relaes entre seres humanos. Nesse

  • artigo, pretendo defender a aceitao do princpio moral kantiano comoprincpio bsico de tal sistema. Mas antes que passemos a esta tarefa, necessrioaindareveralgunsaspectosdadiscussoaquiproposta.

    2.Justiicaoxfundamentaomoral

    Seria a identidade moral de um indivduo essencial para umaidentidade ouuma vida plena?At o presentemomentoprocurei apenasapontar algumas consequncias da aceitao ou recusa de um princpiomoral qualquer.No seria possvel, nos limites da ilosoia, tambmdizeralgoacercadarelaoentreaescolhapelamoralidadeeonossoconceitodoquesejaumavidaplena?Pretendomostrarquesim,ouseja,pretendodefender a relao entre (i) a adoo de uma perspectivamoral e (ii) arealizaodeumaconcepodebem,atentativadeagirdemodoatornaranossavidadignadeservivida,ouainda,abuscadeumavidaplena.Comisso, pretendo ainda apontar para uma nova forma de justiicao doprincpio que, segundo penso, melhor expressa a nossa demanda pelamoralidade,asaber:oimperativocategricokantiano.

    Mas, antes de prosseguir, gostaria de analisar duas possveisdiiculdadesdastesesataquidefendidas.Aprimeiradizrespeitoanossaprpriapretensoaestarmosjustiicandoalgo.Aoairmarpoderjustiicardestamaneiraaadoodeumprincpiomoralnoestaramosalterandoosigniicado do que tradicionalmente se consagrou com sendofundamentar ou justiicar algo? possvel que sim. Devo entoesclarecer o que devemos compreender por justiicar no sentido aquiempregado. No plano da justiicao estarei elegendo uma perspectivacoerentista, ou seja, aquela segundo a qual a justiicao de uma crenano repousa em sua autoevidncia, nem em sua relao com outrascrenas supostamente autoevidentes, mas em sua correlao com umarededecrenasnaqualseacredite.Quantomaisabrangenteforarede,ouseja,quantomaisluzpuderlanarsobreonossouniversodecrenas,maiscoerente ser, consequentemente, mais justiicada. Ser, portanto, combaseemtalperspectivaqueproponhoqueastesesaquidefendidassejamavaliadas.

    Umavezqueestamossemprerevendonossosistemadecrenasluz de novas informaes, a deciso acerca do que seja normativamentecorreto, tomadacombaseemumaperspectivacoerentista, jamaispoderreclamar um carter deinitivo. Assim, a validade de um princpio moral

  • dever ser sempreavaliadaapartirde sua correlao comumasriedeoutros elementos constitutivos das nossas relaes sociais e, maisespeciicamente,comascrenasque implementamanossademandapelamoralidade.

    Asegundadiiculdadesurgefrentetentativadeconciliaradefesado princpio moral kantiano com a pergunta pelo tipo de vida quedesejamos viver. No estaramos, assim, conciliando duas perspectivasmorais antagnicas: uma perspectiva deontolgica e uma perspectivateleolgica,respectivamente?Estareielegendoumaperspectivateleolgicae, com base nesta perspectiva, justiicando, de forma no-fundamentacionista, o princpio moral kantiano. H, portanto, claramenteuma proposta de conciliar dois elementos considerados pela tradioinconciliveis, mas que, caso minha exposio seja bem sucedida, tereimostradonoseremantagnicos.

    Paratal,pretendo,emprimeirolugar,mostrarqueaprpriaadoode um princpio de imparcialidade supe uma concepo de bem. Emseguida,tenhoquemostrarquepossvelresponderaperguntapeloqueconsideramosumaboavidadeformano-subjetivistaeno-dogmtica,emoutras palavras, tenho que distinguir o que defendo como sendo umaperspectivaperfeccionista e um subjetivismomoral. Para concluir, devoapontar entre asdiversas formasdeperfeccionismoaquela cuja fontedevalor,ouseja,cujaconcepodebem,maisseadequesnossas intuiesmorais, que, segundo defendo, parecem poder ser resgatadas peloimperativo kantiano. Este ltimo ponto ser aqui apenas sugerido, querodizer,serapresentadosobformaaindaprogramtica.

    3.Porumaperspectivaperfecionista

    Passemosentoanossaprxima tarefa.Pretendoagoraanalisararelao entre a adoo de uma perspectivamoral e a questo acerca dotipodevidaquedesejamosviverouquesupomosdignadeservivida,emoutras palavras, a questo acerca da boa vida ou do que chamei vidaplenaou "realizada".Pretendomostrarqueaadoodeumprincpiodeimparcialidadejpressupeumaescolhaporumtipodevidaespecico,e,nestesentido, jcontmumjuzodevaloracercadecomodevemosviver.Para tal, tomarei comomodelo o princpio da neutralidadedefendidoporautorescomoRawls,DworkineLarmoreentreoutros.

    Por neutralismo poltico entendo o princpio segundo o qual o

  • Estado deve permanecer neutro, isento, com relao a qualquer questorelativa boa vida dos indivduos. No deve, assim, direta ouindiretamente, sancionar ou promover qualquer concepo de bem. Adefesadoneutralismobaseia-seoubemnovalordaautonomiaindividual,oubemnumaatitudeprudencialfrenteaopoderdoEstado,oubemaindanum ceticismo diante da possibilidade de defendermos uma concepoespecicadebem.Aprimeiraalternativa j suporiaumaescolha,ouseja,j nos comprometeria com a viso de que a vida autnoma um tipo devidamais valorado do que uma vida em que a autonomia no possa serexercida. Quemdefende o neutralismo sob esta base no pode, portanto,recusar pelo menos um tipo de perfeccionismo, qual seja, aquele quereconhece a autonomia como um bem. A terceira alternativa, ou seja, oceticismo com relao possibilidade de justiicarmos uma concepo debem, no capaz de justiicar sequer a adoo de um princpio deneutralidade. J a segunda alternativa pode ser descrita como umceticismo diante do prprio poder do Estado. A busca de medidaspreventivas, no entanto, supe que haja algo que devemos preservar aqualquercusto.Noseriaestealgomaisumavezaautonomiaindividual?Comissopretendoresgatara tesedequeaadoodequalquerprincpiodedeterminaodoagir,queratuesobreEstado,quersobreosindivduos,supeumaconcepodeboavida,ouvidavalorada.

    Com base na anlise proposta por Sher[33], pretendo agoradistinguir (i) perfeccionismo e comunitarismo[34] e (ii) perfeccionismo esubjetivismo[35], antecipando, assim,asprincipais caractersticasdeumaperspectivaperfeccionista.

    Perfeccionismo e comunitarismo so perspectivas morais voltadaspara uma concepo de bem ou de boa vida. A peculiaridade daperspectivacomunitaristaconsisteemsustentaratesedequeaidentidadede um indivduo e, por conseguinte, sua prpria concepo de bem, estdeterminada pela cultura da sociedade a qual pertence. Neste sentido, aconcepodoquesejaaboavidanodependeriadoqueosujeitodeseja,escolheoucompreende,masdaculturaedastradiesapartirdasquaisseus desejos, escolhas e compreenses so moldados. A comunidadecultural,enoo indivduo,deveriaserentoreconhecidacomoaunidademnimadamoral.

    Nosso primeiro passo consiste, portanto, na anlise dos principaisargumentos comunitaristas em favor de sua tese principal, pois se seus

  • argumentos forem contundentes, ento deveremos reduzir a perspectivaperfeccionistacomunitarista.

    Aargumentaocomunitaristavisa,deumamaneirageral,apontarpara a determinao do sujeito pela comunidade. Para tal, soapresentados trs tipos de argumentos: argumento causal, argumentoconceitual e argumento ontolgico.[36] De acordo com o primeiro, asociedade causa as preferncias e opes de cada indivduo,determinando, assim, as oportunidades e alternativas entre as quaispodero escolher. A consequncia seria uma eliminao de qualquerpossvel linhadivisriaentreindivduoesociedade.Osegundoargumentoairmaserconceitualmenteimpossveltornarcompreensvelasescolhaseobjetivosdeum indivduosemrecursoaocontextoculturalehistriconoqual esta inserido. A sociedade penetra intimamente no contedo dasatitudes,habilidadeseopesdecadapessoa,pormaisautnomaqueestapossaparecer.Oargumentoontolgicorecusaaprpriaideiadeindivduocomoumaentidadeontolgica isolada.Entrea sociedadeeaquelesqueaconstituemnohaveriadistinoontolgicapossvel.

    Comorplicaaoprimeiroargumento,podemosdizerque,aindaquepossamosreconhecerumarelaocausalentresociedadeeindivduo,estarelaonoeliminaadiferenaentreambos,noimpedindo,portanto,queindivduos pertencentes a uma mesma sociedade