Didáctica da Leitura no 1º ciclo: evidências de renovação...

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2 Didáctica da Leitura no 1º ciclo: evidências de renovação de práticas pedagógicas Iris Susana Pires Pereira Instituto de Estudos da Criança – Universidade do Minho [email protected] 1. Introdução No curso de Licenciatura em Ensino Básico – 1º Ciclo, leccionado no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, tem vindo a ser feito um esforço de renovação das práticas pedagógicas em torno da leitura e da escrita, que, com este texto, procuro meramente ilustrar. Para tal, e em vez de fazer a exposição dos conteúdos programáticos que dão corpo à formação teórica relevante na disciplina de Didáctica da Leitura e da Escrita, proponho a análise de produtos resultantes dessa formação (secção 2), seguida de uma breve reflexão final (secção 3). 2. Didáctica da Leitura e da Escrita: alguns exemplos de renovação de práticas pedagógicas. Nesta secção, apresento alguns trabalhos realizados por alunos em momentos de prática pedagógica. O primeiro dos trabalhos foi desenvolvido por um grupo de estágio (Ana Conceição, Adriana Moreira, Eva Santos) num contexto de iniciação à leitura e à escrita (1º ano, 1º período). Trata-se da construção de uma narrativa oral e escrita para uma sequência de ilustrações i do conto Ninguém Dá Prendas ao Pai Natal (Ana Saldanha, Campo das Letras). O título (que o professor não necessitou de ler porque um dos alunos - o único já leitor - se prontificou para o fazer) serviu como motivo para que os alunos elaborassem hipóteses sobre a história. Com base nessas elaborações e nas ilustrações, os alunos criaram a narrativa que julgaram adequada. O professor orientou a discussão que se gerou com o fim de chegar às sequências de texto para cada imagem, que escreveu perante os alunos. A realização desta tarefa envolveu os alunos na utilização de estratégias de leitura diversas: mobilização de vivências próprias; mobilização de conhecimentos sobre outros textos, já que a todo o momento entram em cena personagens de outros contos infantis (cf. Figuras 2, 3 e 4); mobilização de estratégias visuais e fónicas na escrita das palavras, na medida em que os alunos co-construiram o texto com o professor, contribuindo com o conhecimento que detinham de como escrever letras, sílabas e/ou palavras. O «livrinho» que daqui resultou passou a estar sempre presente nos períodos de aprendizagem seguintes. Os alunos recorreram a esse suporte escrito para identificar as letras que o professor ia ensinando e rapidamente o assumiram como um instrumento efectivo de leitura, com o qual facilmente se envolviam em “jogos de adivinhas”, bem no espírito de Goodman (1967): os alunos “liam” a narrativa, identificando globalmente as palavras que se lhes tinham tornado conhecidas e antecipando os sentidos das frases. Quase todas as estratégias de leitura referidas são centrais na aplicação do método global e estes alunos, habituados à aplicação do método fónico (letra a letra, pouco a pouco, num

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Didáctica da Leitura no 1º ciclo: evidências de renovação de práticas pedagógicas

Iris Susana Pires Pereira Instituto de Estudos da Criança – Universidade do Minho [email protected]

1. Introdução

No curso de Licenciatura em Ensino Básico – 1º Ciclo, leccionado no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, tem vindo a ser feito um esforço de renovação das práticas pedagógicas em torno da leitura e da escrita, que, com este texto, procuro meramente ilustrar.

Para tal, e em vez de fazer a exposição dos conteúdos programáticos que dão corpo à formação teórica relevante na disciplina de Didáctica da Leitura e da Escrita, proponho a análise de produtos resultantes dessa formação (secção 2), seguida de uma breve reflexão final (secção 3). 2. Didáctica da Leitura e da Escrita: alguns exemplos de renovação de práticas pedagógicas.

Nesta secção, apresento alguns trabalhos realizados por alunos em momentos de prática pedagógica. O primeiro dos trabalhos foi desenvolvido por um grupo de estágio (Ana Conceição, Adriana Moreira, Eva Santos) num contexto de iniciação à leitura e à escrita (1º ano, 1º período). Trata-se da construção de uma narrativa oral e escrita para uma sequência de ilustraçõesi do conto Ninguém Dá Prendas ao Pai Natal (Ana Saldanha, Campo das Letras).

O título (que o professor não necessitou de ler porque um dos alunos - o único já leitor - se prontificou para o fazer) serviu como motivo para que os alunos elaborassem hipóteses sobre a história. Com base nessas elaborações e nas ilustrações, os alunos criaram a narrativa que julgaram adequada. O professor orientou a discussão que se gerou com o fim de chegar às sequências de texto para cada imagem, que escreveu perante os alunos.

A realização desta tarefa envolveu os alunos na utilização de estratégias de leitura diversas: mobilização de vivências próprias; mobilização de conhecimentos sobre outros textos, já que a todo o momento entram em cena personagens de outros contos infantis (cf. Figuras 2, 3 e 4); mobilização de estratégias visuais e fónicas na escrita das palavras, na medida em que os alunos co-construiram o texto com o professor, contribuindo com o conhecimento que detinham de como escrever letras, sílabas e/ou palavras.

O «livrinho» que daqui resultou passou a estar sempre presente nos períodos de aprendizagem seguintes. Os alunos recorreram a esse suporte escrito para identificar as letras que o professor ia ensinando e rapidamente o assumiram como um instrumento efectivo de leitura, com o qual facilmente se envolviam em “jogos de adivinhas”, bem no espírito de Goodman (1967): os alunos “liam” a narrativa, identificando globalmente as palavras que se lhes tinham tornado conhecidas e antecipando os sentidos das frases.

Quase todas as estratégias de leitura referidas são centrais na aplicação do método global e estes alunos, habituados à aplicação do método fónico (letra a letra, pouco a pouco, num

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contexto que estava marcado pela ausência de trabalho de compreensão leitora), mostraram grande satisfação na realização do livro e na sua utilização posterior.

O esforço de operacionalização de premissas didácticas subjacentes ao método global num contexto de aplicação de método fónico ilustra um dos tópicos centrais da disciplina de Didáctica da Leitura e da Escrita: que método de iniciação à leitura e à escrita usar? A caracterização de cada um destes procedimentos didácticos (fónico/sintético e global/analítico), confrontada com posições teóricas que sublinham a necessidade de as crianças aprenderem a usar as estratégias de leitura características dos dois métodos, permite que se chegue à conclusão de que, na prática pedagógica, uma postura ecléctica será a única adequada. As seguintes imagens reproduzem algumas das páginas do trabalho resultante.

Figuras 1 e 2: Páginas do livro

O segundo trabalho foi realizado por um grupo de estágio (Cândida Carvalho, Carla Oliveira, Engrácia Vilaça), em contexto de iniciação à compreensão de texto (2º ano de escolaridade), com alunos que mostravam fraca capacidade leitora e pouca empatia para com as actividades de compreensão clássicas e rotineiras (cf. Figura 3). Em alternativa às actividades sugeridas no manual, os professores prepararam uma ficha de compreensão oral (cf. Figuras 4 e 5), distribuída e brevemente analisada antes de os mesmos professores dramatizarem a história utilizando fantoches.

Para além da estratégia escolhida para a apresentação do texto, que envolveu os alunos em actividades de compreensão igualmente válidas às proporcionadas pela leitura mas muito mais atractivas para este grupo de pequenos leitores, a maior riqueza desta actividade residiu na ficha de trabalho. Foi considerada, na sua preparação, a teoria de Irwin (1986) sobre processos de leitura, processos esses em que os leitores que frequentam o 1º ciclo de escolaridade devem ser introduzidos. Assim, e de acordo com a tipologia de processos elaborada por aquela autora, estes alunos, ao resolver as actividades de compreensão, utilizaram estratégias macroprocessuais (quando explicitam a estrutura da narrativa); estratégias microprocessuais (ao identificarem palavras); estratégias integrativas e elaborativas (na caracterização da personagem e na exposição das suas opiniões sobre a narrativa); e estratégias metacognitivas (quando se lhes pede que identifiquem e reparem eventuais faltas de compreensão). A estrutura textual explicitada durante as actividades de compreensão foi a base para a elaboração da narrativa escrita (veja-se novamente as Figuras 4 e 5).

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Figuras 3: A proposta de trabalho do manual

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Figura 4 : A ficha de trabalho

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Figura 5 : A ficha de trabalho (conclusão)

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Um dos assuntos mais debatidos na disciplina de Didáctica da Leitura e da Escrita diz respeito, como não poderia deixar de ser, às actividades de compreensão na leitura e de escrita de texto: O que é compreender quando se lê? O que é escrever um texto? Que mecanismos se activam quando se lê? Que mecanismos se activam quando se escreve?... Procura-se pois que estes futuros professores tomem conhecimento das bases teóricas que viabilizem uma Prática Pedagógica fundamentada. A actividade anterior e a que a seguir se descreve podem ser consideradas ilustrativas da formação que é levada a cabo neste âmbito.

Este último exemplo consiste num conjunto de actividades pensadas para a leitura de uma notícia. A proposta de actividades foi concebida e levada a cabo no âmbito da disciplina de PPIII (disciplina do 3º ano da licenciatura) pelo grupo constituído pelas alunas Sandra Ferraz, Sara Aguiar e Teresa Silva, depois da frequência da disciplina curricular de Didáctica da Leitura e da Escrita. Na planificação desta proposta de trabalho para alunos do 4º ano de escolaridade (com os quais este grupo desenvolvia a sua Prática Pedagógica), foi igualmente crucial a formação teórica em tipologia de processos de compreensão leitora acima referida.

Tratava-se de uma notícia sobre o processo de remoção do crude armazenado no Prestige, especificando datas previstas, métodos utilizados e opiniões políticas. Antes da leitura do texto, foi criado um quadro de referências relevante para a compreensão do texto. A discussão partiu do título (Prestige: Fuelóleo é recolhido até ao próximo verão): os alunos estabeleceram previsões acerca do assunto da notícia; especificaram os seus conhecimentos sobre o facto central que motivou a notícia, localizando-o no espaço (neste momento, recorreu-se à visualização de um mapa); falaram das consequências e expressaram as suas opiniões. Foi também feito um trabalhado vocabular sobre a palavra fuelóleo: significado, sinónimos, composição.

Após a leitura do texto, os alunos reconheceram o assunto e os objectivos informativos da notícia, explicitaram a estrutura do texto, trabalharam o vocabulário e expressões, avaliaram a concretização das expectativas inicialmente estabelecidas a partir do título, avaliaram o grau de compreensão do texto (cf. Figuras 6, 7, 8, e 9 abaixo)

Depois destas actividades, foi solicitada a realização de uma pesquisa relacionada com o assunto e a redacção de uma notícia, com base na estrutura trabalhada e explicitada durante a interpretação textual e seguindo um conjunto de tópicos/factos dados pelos professores. Depois de o texto ter sido escrito em grupo, os alunos receberam a cópia da notícia original sobre esses mesmos factos para assim levarem a cabo uma análise comparativa entre a notícia do jornal e os textos por eles construídos, podendo identificar as principais semelhanças e diferenças.

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Figura 6: Excerto da ficha de trabalho de compreensão leitora

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Figura 7: Excerto da ficha de trabalho de compreensão leitora

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Figura 8: Continuação da ficha de trabaho de compreensão leitora

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Figura 9: Excerto final da ficha de trabalho de compreensão leitora

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2. Porquê e como renovar?

Em 1996, a International Reading Association publicou um importante documento, intitulado Standards for the English Language Arts, cujos conteúdos indicam níveis de proficiência em leitura e em escrita a atingir pelos alunos:

“Processes and strategies In addition to knowledge of texts and text features, students need to learn an array of processes and strategies for comprehending and producing texts. These include, for example, the use of background knowledge to construct meaning, effective strategies for fluently identifying words, study strategies to enhance learning and recall, and systematic processes for approaching writing”. Standards for the English Language Arts. 1996, Newark & Illinois: IRA & NCTE, p.16

Em 2000, a mesma organização publicou um desdobrável intitulado Excellent Reading

Teacher. A Positon of the International Reading Association, cuja mensagem-chave está resumida no seguinte parágrafo de abertura. Atente-se na ênfase colocada na proficiência docente:

“Every Child deserves excelent reading teachers because teachers make a difference in children’s reading achievement and motivation to read”.

Na mesma brochura e na mesma páginaii, surgem listadas 6 qualidades que

destinguem os professores de leitura “excelentes”. Passo a transcrevê-los:

“1. They understand reading and writing development, and believe all children can learn to read and write. 2. They continually assess children’s individual progress and relate reading instruction to children’s previous experiences. 3. They know a variety of ways to teach reading, when to use each method, and how to combine the methods into an effective instructional program. 4. They offer a variety of materials and texts for children to read. 5. They use flexible group strategies to tailor instruction to individual students. 6. They are good reading “coaches” (that is, they provide help strategically)”.

Há múltiplas e conhecidas razões para se afirmar que, em Portugal, é necessário mudar

o ensino da capacidade de ler e de escrever aos pequeninos assim como o ensino da capacidade de ensinar a ler e a escrever aos futuros professores.

As notícias que nos chegam de outros países mostram que tal empreitada não nos é exclusiva. As reflexões, as conclusões, as atitudes e as acções que alguns desses países têm já levado a cabo, acima apenas muito brevemente ilustradas e de cuja qualidade, julgo poder dizer, não poderemos duvidar, podem ter um papel muito significativo a desempenhar na efectiva renovação das práticas pedagógicas que se vão iniciando em Portugal. No Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, esta é uma das áreas de trabalho na actualidade.

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Referências: (1996). Standards for the English Language Art. Newark & Illinois: IRA & NCTE. Goodman, K (1967) “Reading: A Psycholinguistic guessing game”. In Journal of the Reading Specialist, 6, 126-135. Irwin, Judith (1986) Teaching Reading Comprehension Processes. Prentice Hall.

i A maior parte das imagens usadas é original. Algumas foram, no entanto, manipuladas. ii Se é que se pode falar de páginas quando se refere o conteúdo de um desdobrável