DIFERENÇAS DO FANTÁSTICO DO SÉCULO XIX PARA O … · Monografia apresentada à Disciplina...
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LUIZ GUILHERME DELENSKI GIUBLIN
DIFERENÇAS DO FANTÁSTICO DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
CURITIBA 2008
LUIZ GUILHERME DELENSKI GIUBLIN
DIFERENÇAS DO FANTÁSTICO DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
Monografia apresentada à Disciplina Iniciação Monográfica II, do Curso de Letras, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Sandra M. Stroparo
CURITIBA 2008
SUMÁRIO
1 OS PRIMÓRDIOS DO FANTÁSTICO E O SÉCULO XIX................................. 1 2 DO FINAL DO SÉCULO XIX AOS KAFKIANOS ............................................. 12 3 O FANTÁSTICO ............................................................................................... 38 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 42
i
1
1 OS PRIMÓRDIOS DO FANTÁSTICO E O SÉCULO XIX
Os autores que consideram o fantástico como um gênero fechado gostam de
situá-lo historicamente, com um começo, um meio e um fim.
Assim, para Todorov1: (...) o fantástico teve uma vida relativamente breve. Ele apareceu de maneira sistemática por volta do fim do século XVIII, com Cazotte, e um século mais tarde encontraram-se nas novelas de Maupassant os últimos exemplos esteticamente satisfatórios do gênero.
Ítalo Calvino2 vai um pouco mais além e reconhece uma influência para esse
estilo de literatura: É com o romantismo alemão que o conto fantástico nasce, no início do século XIX; mas já na segunda metade do século XVIII o romance ‘gótico’ inglês havia explorado um repertório de temas, ambientes e efeitos (sobretudo macabros, cruéis, apavorantes) do qual os escritores do romantismo beberiam abundantemente.
Porém, se recuarmos na história da literatura ocidental, veremos que muitos
textos já usaram esse recurso, seja para ironizar, seja para passar uma lição de
moral no leitor. Assim, como exemplo do primeiro, temos Rabelais, que na Idade
Média escrevia o seu Gargantua, obra em que o recurso do fantástico é empregado
para produzir a ironia no texto. De época muito mais afastada, temos um texto latino
do século II d.C., de Apuleio, intitulado O Asno de Ouro. Nesse texto, um homem,
por curiosidade e lascívia para com a escrava que o está ajudando a aprender dotes
de magia, é transformado em um asno por engano. Antes da malfadada magia
poder ser desfeita, o asno é roubado e passa por diversas provações até que recusa
a lascividade – em um circo, onde faria sexo com uma mulher e foge antes de
consumar o ato – redimindo-se espiritualmente no culto a deusa Ísis, recusando os
dotes da magia, sendo perdoado por ela e conseguindo novamente a forma
humana.
Nesses dois textos, percebemos a presença de elementos de fora do mundo
que conhecemos, elementos que poderíamos chamar de fantástico, em épocas bem
distintas e longe das datas estabelecidas pelos dois críticos acima.
1 TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 174-175. 2 CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX (org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 10.
2
Isso ocorre porque tanto Calvino quanto Todorov vêem o fantástico do século
XIX como um gênero fechado. Para não incorrermos nesse problema, antes de mais
nada, vamos determinar que o fantástico aqui será um modo literário, que foi
empregado desde os primórdios do romance, e que durante quase todo o século XIX
ganhou força por ser empregado por diversos autores de peso da literatura pelos
mesmos motivos e para os mesmos fins.
A definição desse modo será dada posteriormente, já que ainda não temos o
suporte histórico e teórico para fazê-lo agora.
Trabalhemos, por hora, em uma definição dessa literatura fantástica do
século XIX feita por seus teóricos. Não pretendemos aqui fazer uma extensa lista
histórica de crítica, pois a variação entre autores não é muito grande, apenas
obedeceremos à distinção de duas correntes: a dos “generalistas”, iniciada com
Todorov no seu livro já citado, e a dos “modalistas”, que tem seu representante mais
importante em Eric Rabkin.
Tzvetan Todorov foi criticado muito tempo pelo modo como leu a literatura
fantástica. Sua teoria básica é a de que o fantástico se dá na hesitação do leitor,
entre uma visão de mundo natural e uma sobrenatural. Porém, em sua definição, ele
coloca mais dois fatores de exigência para o fantástico: Este (o fantástico) exige que três condições sejam preenchidas. Primeiro é preciso que o texto obrigue o leitor a considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma explicação natural e outra sobrenatural do texto. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por uma personagem [...] Enfim, é importante que o leitor adote uma certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica quanto a interpretação poética. 3
A primeira condição é, na segunda parte, a base de sua teoria. Para ele, o
fantástico é a hesitação entre a explicação de mundo natural e uma outra não
natural. A primeira parte da primeira exigência está lá apenas para evitar que o
conto de fadas entre na definição. A segunda exigência é facultativa (o que é uma
incoerência), como o “pode” do texto mostra, o autor mesmo comenta que só a
coloca tendo em vista que a maioria dos textos satisfaz essa condição, entretanto,
não todos, como Véra, de Villiers de L`Isle-Adam. A terceira exigência está lá porque
textos alegóricos e/ou poéticos nos impedem de ter a reação que ele deseja:
hesitação.
3 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 38.
3
Já que o fantástico é a hesitação, “ele parece localizar-se no limite de dois
gêneros, o maravilhoso e o estranho”.4 O estranho seria quando a explicação dada é
natural, e o maravilhoso é o não-natural.
Apesar de ser um texto muito importante por reavivar as definições do
fantástico e fazer uma análise até certo ponto equilibrada dos fatos – já que antes
dele as definições eram meras cartilhas para escritores de como se escrever esse
tipo de literatura –, ele falha claramente em dois aspectos: em primeiro lugar, trata o
fantástico como um gênero fechado, com começo, apogeu e fim. Assim, no último
capítulo de seu ensaio, o crítico francês comenta a obra de Kafka, e mostra uma
série de diferenças entre os seus escritos e os do século XIX: Se abordarmos esta narrativa (A Metamorfose, de Franz Kafka) com as categorias anteriormente elaboradas, vemos que ela se distingue fortemente das histórias fantásticas tradicionais. Em primeiro lugar, o acontecimento estranho não aparece depois de uma série de indicações indiretas, como o ponto alto de uma gradação: ele está contido em toda a primeira frase. A narrativa fantástica partia de uma narrativa perfeitamente natural para alcançar o sobrenatural, A Metamorfose nasce de um acontecimento sobrenatural para dar-lhe, no curso da narrativa, uma aparência cada vez mais natural; e o fim da história é o mais distante possível do sobrenatural.5
E assim por diante. O que Todorov não percebe é que há uma proximidade
muito grande entre eles. O fato de o ethos vir de uma revolta contra alguns valores
da época e contra também a própria sociedade em que esses autores estão
inseridos, como veremos posteriormente, é algo presente tanto no fantástico do
século XIX quanto no kafkiano. Outro problema que acarreta essa visão é esquecer
autores que do mesmo modo escreveram literatura fantástica entre Maupassant e
Kafka. Autores esses que não tinham os mesmos motivos para o uso do fantástico
dos seus colegas da época do romantismo, nem dos autores kafkianos, como O.
Henry e Harvey.
O segundo problema na teoria de Todorov é a definição. O fantástico, assim
descrito, pouco difere do estranho e do maravilhoso, pois nem sempre o texto
espera que o leitor tome partido entre uma explicação sobrenatural ou natural
(notemos aqui que Todorov pensa em autor e leitor modelo). Por isso ele cria sub-
classes entre as três classes, o estranho-fantástico e o fantástico-maravilhoso, e
afirma que a maior parte dos textos está num desses dois campos. Essa é apenas
uma forma de amenizar o seu maior problema: sua definição de fantástico excluir a
4 Ibid., p. 47-48. 5 Ibid., p. 179.
4
maioria dos textos que realmente o são. O que dá a um texto essa natureza é mais
intrínseco ao texto, e não é calcado somente na relação emissor/receptor.
Um crítico que percebe isso é Eric Rabkin. Ele vê problema em reduzir o
fantástico a uma época e a um lugar. Para ele, o fantástico se dá: The fantastic is quality of astonishment that feels when the ground rules narrative world are suddenly made to turn about 180۫º. We recognize this reversal in the relations of characters, the statements of narrators, and the implications of structure, all playing on and against our whole experience as people readers.6
Assim, o fantástico é um modo literário, que é usado para essa quebra
diametralmente oposta de perspectiva do universo narrativo.
Essa idéia de quebra é muito boa para a definição do fantástico e devemos
tê-la em mente, já que sempre, quando se percebe a entrada desse modo na
literatura, acontece uma quebra nas leis que regem o mundo narrativo, como
veremos posteriormente na definição do fantástico. Porém, essa mudança não pode
ser apenas de perspectiva dentro da narrativa, já que abre demais o que é o uso
desse modo.
Para Rabkin, um texto que tiver uma dessas quebras de 180º já será
considerado fantástico. Logo, existem textos que usam um alto grau do fantástico,
como nas fantasias, Alice no País das Maravilhas e Alice Através do Espelho, e
outros menos, mas mesmo os que menos o usam têm o fantástico em si.
Uma boa piada (apesar de o autor inglês achar que não, sem explicar
satisfatoriamente) pode ser contada com uma quebra de expectativa do universo
narrado de 180º. Até numa apresentação de mágica ocorre essa quebra em duas
ocasiões, por exemplo, no sumiço do coelho e em sua reaparição em outro lugar.
Esse problema de ampliar demais o horizonte do fantástico fica evidente
quando ele trata da escape literature, mais precisamente pornografia e literatura
policial, e consegue encaixar alguns dos exemplos mais bem construídos como
fantástico: “When escape literature is not random but is rather the establishment of a
narrative world that offers a diametric reversal of ground rules of the extra-textual
world, then escape literature is to an important degree fantastic.”7
6 RABKIN, Eric S.. The fantastic in literature. New Jersey: Princeton University Press, 1976. p. 41. (Tradução minha.) 7 Ibid., p. 73.
5
Além do problema do “vale tudo” sobre o que é fantástico, temos também
outro: como distinguir uma quebra de 180º de uma de 175º? Para Rabkin, a quebra
tem que ser a reversal, a perspectiva tem que ser totalmente mudada na narrativa: The true fantastic occurs when the ground rules of a narrative are forced to make a 180º reversal (...). Less complete reversals, say 90º turnabout (like the dis-expected punch line of a joke) or 120º turnabout (like the highly dis-expected survival of Lemuel Pitki), participate in the complex feelings of surprise, shock, delight, fear, and so on that marks of the fantastic, but not themselves truly fantastic…).8
E aí novamente caímos no problema da recepção da leitura e da forma como
o texto pode ser lido, e não como ele pede para ser lido.
Outros dois autores que tratam do fantástico preferem não entrar no mérito de
uma definição propriamente dita, mas são importantes para entendermos o
surgimento dessa literatura: Remo Cesarini9 e Ítalo Calvino.
Para Calvino, o tema da literatura fantástica é: “a relação entre a realidade do
mundo em que habitamos e vivemos e conhecemos por meio da percepção e a
realidade do mundo do pensamento que mora em nós e aqui comanda”10. Nessa
época, essa idéia filosófica era parecida com a dos idealistas alemães. Calvino
percebe isso: “o ‘conto fantástico’ nasceu na Alemanha como sonho de olhos
abertos do idealismo alemão”. 11
Primeiramente devemos discordar um pouco de Calvino. Realmente a filosofia
dos idealistas alemães teve influências decisivas não só na literatura fantástica, mas
no romantismo de modo geral em todo o mundo.
Porém, a idéia filosófica que Calvino refere-se na citação anterior é a de
Schelling. Aqui utilizaremos uma concepção de Fitche para embasar filosoficamente
o fantástico.
Juan G. Fitche começa a escrever sua filosofia em 1794 e logo influencia
poetas alemães como Schlegel e Novalis, que, juntamente com outros escritores, e
baseados na obra de Fichte, criam a idéia do romantismo como movimento artístico.
O idealista alemão baseia os seus pensamentos a partir de um paradoxo
kantiano: o homem é infinitamente livre em suas ações, e o meio em que vive é
determinista.
8 Ibid., p. 12. 9 CESARINI, Remo. O fantástico. Curitiba: Editora UFPR, 2006. 10 CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 9. 11 Ibid., p. 11.
6
Para resolver esse problema, Fitche prefere abolir um deles: apenas existe o
Eu, sendo ele o mundo das consciências, do pensar e do refletir. O não-Eu, que é
tudo que é externo ao Eu, não existe empiricamente, é uma criação do Eu.
Esse Eu é infinito e tem por objetivo a liberdade plena. O problema é que,
uma vez que essa liberdade plena seja atingida, o Eu chegaria ao seu objetivo e
deixaria de ser infinito. Para isso não ocorrer, o Eu cria o não-Eu com o objetivo de
barrar essa liberdade por meio de uma moralidade. Portanto, o Eu cria uma forma de
manter-se infinito.
O Eu não é a consciência de uma pessoa, mas sim uma espécie de
“inconsciência coletiva” (sem nenhuma relação com Jung), o Absoluto tão caro aos
românticos, onde todas as consciências se comunicam num plano superior, já que
não há empiricamente o plano em que vivemos.
Schelling é outro filósofo idealista, discípulo de Fitche. Porém, ele rompe com
seu mestre e admite a Natureza como um organismo vivente, uma entidade. O não-
Eu existe assim como o Eu, entretanto o não-Eu só toma consciência de si mesmo
através do Eu, e a arte, especialmente a poesia, é a melhor forma do não-Eu tomar
consciência de si. Mais tarde ele trata do Absoluto, que é onde o homem e a
Natureza estão. Essa idéia de visão da Natureza e de arte é onde os românticos
acharam campo fértil para suas idéias, e é uma mistura da visão de Fitche – que é o
seu ponto de partida – com a idéia de mundo de Goethe, e não há dúvidas de que
ela irá influenciar os irmãos Schlegel, Novalis e os românticos em geral, de forma
mais intensa do que Fitche havia influenciado antes.
Entretanto, se olharmos mais de perto o fantástico do século XIX, nós
perceberemos que sempre há uma mudança de mundos. A narrativa começa no
mundo real e possível e ocorre uma quebra nesse mundo, onde aparece o
fantástico, mas essa quebra é “consertada”, e o mundo volta a ser o real e possível
no final da narrativa, sempre deixando em aberto se realmente ocorreu ou não essa
mudança de mundo.
Devemos ter em mente que o fantástico dessa época é uma luta sublimada
contra a moralidade e tabus da época, como veremos mais adiante.
Analisando o fantástico do século XIX, percebemos muitos pontos em comum
com a filosofia de Fitche muito mais do que com a de Schelling. Se o Eu cria o não-
Eu para manter sua infinitude, cerceando sua liberdade pela moralidade, e o
fantástico vai contra essa moralidade, o Eu pode, de vez em quando, modificar o
7
não-Eu, para que, apenas por um tempo, essa liberdade aumente quebrando assim
a moralidade. Porém, seria o fim do Eu se ele não restituísse ao não-Eu a sua forma
original, logo, no final da narrativa, o mundo volta a ser o “real”.
Essa mudança, que ocorre apenas em partes, só é notada por uma ou um
grupo de consciências que se comunicam nesse Absoluto. Aliás, há aqui um
afastamento decisivo de Schelling. Para Fitche, o Absoluto é o mundo onde as
consciências se comunicam, no que ele chama de Mundo dos Espíritos.
Já para Schelling, o Absoluto é onde se unem a Natureza e o homem, e é
muito mais importante do que para seu antigo mestre. O Absoluto é buscado por ele
tanto na Natureza quanto na Religião e mesmo na História. Os românticos vão se
apropriar dessa idéia schellingiana. Os autores que praticam o fantástico se afastam
dela, pois o Absoluto em um Mundo dos Espíritos não é questionado por eles,
entretanto a Natureza como Absoluto é.
Aqui é importante colocar que muitos autores escreveram no estilo do
romantismo e do fantástico do século XIX, o que era comum pois as produções de
uma mesma época influenciam uma às outras. Entretanto, na primeira metade do
século XIX, os bons autores de fantástico eram aqueles que escreviam
predominantemente esse modo de literatura, os que tentavam se dividir entre estes
dois estilos produziam obras apenas razoáveis, como Joseph von Eichendorff, por
exemplo.
Essa forma de leitura de Fitche parece ser o pensamento de E.T.A Hoffman12,
primeiro autor desse estilo de literatura13, que com seus contos fantásticos influencia
não só seus conterrâneos como toda a Europa.
Na França o romantismo chega depois, influenciado tanto por Rousseau
quanto pelos românticos alemães. Na Inglaterra também é mais tardio o
aparecimento do fantástico, influenciado pelos alemães e também pelas narrativas
góticas que lá floresceram. Essa mudança de influências que ocorreu na Europa é
percebida por Burgess: “os românticos ingleses aprenderam mais com a Alemanha
12 Ernest Theodor Amadeus Wilhem Hoffman (1776-1822), no começo de sua vida dedicou-se à música, deixando uma sinfonia, nove óperas, entre outras. Só começou a escrever com afinco nos dez últimos anos de vida, fase em que já se encontrava enfermo. Apesar do pouco tempo produtivo nas letras, é considerado um dos maiores escritores alemães da história. 13 Geralmente os marcos inciais da literatura fantástica do século XIX são considerados as novelas de dois franceses: Le Diable Amoureux (1792), de Jacques Cazzote, e Manuscrit Trouvé à Saragosse (1805), de Jan Potocki. Entretanto, aqui colocamos Hoffman como marco inicial pelo motivo de essas duas novelas terem ainda muito em comum com a literatura gótica, e por um dos fatores necessários para esse estilo de fantástico, a mudança de mundos, não ocorrer.
8
do que com seu vizinho mais próximo, e a Alemanha ajudou a sustentar o
romantismo inglês por muito tempo” 14
Segundo o autor, isso se deve ao fato de a França ter se tornado “a pátria da
tirania” depois da Revolução Francesa, o que gerou um certo “atraso” literário por lá.
Já a literatura gótica, que influencia não só o fantástico inglês, mas também
Hoffman, em uma medida menor, não chega a ser propriamente fantástica, por
motivos que veremos depois, mas o sobrenatural está presente em toda a narrativa.
Devemos considerar que a Europa foi por muito tempo mística, no período da
Idade Média, num mundo teocentrista. Na Renascença houve uma recusa do
pensamento místico e apenas o pensamento empírico e racionalista foi valorizado,
passando assim para um antropocentrismo, que foi a base do pensamento europeu
desde a Renascença até meados do século XVIII, época em que esse racionalismo
pode ser observado em maior ou menor grau em grandes filósofos, como
Montaigne, Descartes e Voltaire.
Em meados do século XVIII, esse racionalismo começa a mudar, num
processo lento, com a ajuda da filosofia de Rousseau e dos idealistas alemães.
O que ocorreu é que apenas a elite intelectual pensava racionalmente; o povo
continuava com uma visão mística obscurantista e ligada à religião, e foi essa a
grande contribuição da literatura gótica: numa época racionalista pré-romântica eles
criaram uma literatura com o sobrenatural que permeava o imaginário das pessoas
comuns da sociedade. Sobrenatural este ainda presente no fantástico do século XIX.
Visto seu embasamento filosófico, passemos agora para dois fatores que a
literatura fantástica dessa época discute e que poderíamos chamar de temas e
causas dessa literatura, e são apontados por outro teórico importante, que não entra
no mérito da questão na hora de definir essa forma de literatura, Remo Cesarini: a
sublimação de temas (que Todorov também percebe) e a recusa ao amor romântico.
O autor diz que esta última é uma hipótese dele, e que deve ser melhor estudada
posteriormente. Para ele: “A hipótese é que exista uma relação não casual entre a
formação e a difusão da concepção do amor romântico e alguns dos maiores
gêneros literários da primeira metade do século XIX: a narração-histórica, a
naturalista-regionalista e a fantástica.” 15
14 BURGESS, Anthony. A literatura inglesa. São Paulo: Ática, 1996. p. 197. 15 CESARINI, Remo. Op. cit., p. 100.
9
O fato é que a formação dessa idéia e a sua difusão no senso comum da
época não ocorreram ao mesmo tempo.
O amor romântico é uma invenção da poesia ocidental, um dos raros – se não
único – casos em que a vida – por questões de interesse social de uma nova classe
que aflorava para dominar cultural e economicamente a época – mimetizou a
literatura e não o contrário.
Os primeiros textos que tratam dessa forma do amor, como um sofrimento
exagerado de um homem para com uma mulher, um amor em geral platônico, pelo
qual se pode e se deve morrer tranqüilamente, que o sofrer que ele representa é
visto como uma virtude do amante, que vê o amor não como o desejo do Eros no
sentido hesiodoniano, e sim como uma união mágica espiritual de dois corpos e
almas para toda a eternidade, vêm do final do século XI e começo do XII, da Galícia
portuguesa, parte do que conhecemos como Espanha e o que seria hoje o oeste da
França. Esses textos eram poemas que ficaram conhecidos posteriormente como
Cantigas de Amor. A visão de amor cortês (de fazer a corte) dessas cantigas passou
também, posteriormente, para as Novelas de Cavalaria, tanto as escritas em versos
quanto as em prosa.
Naquela época as mulheres de classes mais baixas perdiam a virgindade
com o senhor feudal – sendo assim vistas mais como objeto do que pessoas – e as
de classe alta tinham casamentos arranjados muitas vezes com parentes próximos,
apenas para o poder ser mantido num círculo restrito das famílias. O amor cortês,
que viria a se tornar o amor romântico, era feito nos castelos entre os nobres,
apenas como modelo de “boas maneiras”; saber cortejar uma mulher era tão bem
visto quanto escrever poemas, usar roupa e peruca impecáveis e saber comportar-
se à mesa.
Pela região onde foi criada a poesia que relata esse tipo de amor, podemos
pensar em uma forte influência moura nessa idealização do sentimento, se nos
lembrarmos das invasões mulçumanas na Península Ibérica. Essa hipótese faz
sentido se percebermos que essa é a visão dos mouros desde épocas remotas, e
que como exemplo máximo literário temos As Mil e Uma Noites.
Logo, a literatura não foi, nesse caso, uma modificação da representação
sócio-cultural da época, mas ocorreu o contrário: com o surgimento da burguesia,
esse modo de ver o amor foi louvado por questões de interesses para a referida
classe. A mudança da população dos feudos para as cidades, onde os homens não
10
eram mais servos, mas sim livres, criou novas classes sociais, os burgueses e os
pobres urbanos. Como as diferenças sociais geram violência, a burguesia se
protegeu na noção de família – e também na de trabalho – para ter direitos “morais”
de se proteger das classes menos inseridas nesse novo mundo urbano. Assim o
interesse pelo amor romântico é uma forma de dominação e proteção burguesa, vide
o que pensava sobre isso Marx e os epígonos comunistas e socialistas.
O fantástico surge também como contestação desse fato.
Realmente a burguesia foi importante para a disseminação de uma literatura
fantástica já que ajudou em outro aspecto, o da sublimação. Essa classe reforçou a
idéia da Igreja Católica, que já há séculos era pregada, dos tabus sobre certos
assuntos considerados imorais, basicamente assuntos relativos ao sexo e à
sexualidade.
Essa contestação de um mundo repressor também encontra elos no amor
romântico, já que este, pregando a união espiritual – muito mais que carnal – de um
homem e uma mulher, ambos de idade parecida, união essa voltada para constituir
família, quebra outras formas de sexualidade possíveis e as impede de ser descritas
explicitamente na literatura, sob pena de morrer em uma masmorra, castrado e tido
como louco, como ocorreu ao Marquês de Sade.
Assim, segundo Todorov, que chama esses temas sublimados da
sexualidade de “temas do tu”: “se quisermos interpretar os temas do tu (...)
deveremos dizer que se trata preferentemente da relação do homem com o seu
desejo e, por isso mesmo, com seu inconsciente.”16
Esses temas do desejo referem-se ao desejo reprimido de toda a sociedade
de uma época. Desejos todos têm, uns fogem deles e se conformam com a
moralidade social em que vivem, e outros procuram transgredir essa regra. Assim,
mais do que somente um tema, é aparentemente um dos motivos que faz o
fantástico nascer: a impossibilidade de dar vazão aos desejos e mesmo de falar
deles abertamente.
Os temas de desejos que mais aparecem sublimados nessa literatura,
segundo Todorov, são: o diabo como a mulher proibida, seja por questões sobre a
maternidade, seja por votos de castidade, seja por classes sociais; o incesto; o
homossexualismo; o amor a três, que contraria o princípio do amor platônico e da
16 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 148.
11
moral cristã; a crueldade pura, principalmente no sadismo, mas também no
masoquismo; necrofilia, que geralmente é mostrada como amor a fantasmas,
vampiros e outras formas de mortos vivos.
Assim, mesmo que não pretendamos esgotar esse assunto, vimos aqui que
as causas da origem do boom do fantástico no início do século XIX e mesmo no final
do século XVIII, principalmente com os góticos, podem ser vistas como uma
possibilidade de contestação.
Logo, ela serve para contestar uma visão de amor mais imposta do que
naturalmente criada, que é a do amor romântico, assim como uma moral mais ampla
que simplesmente o amor, na forma de sublimação de desejos sexuais que eram
tabus e não podiam ser comentados, e ainda de uma interpretação da visão de
mundo filosófica de Fitche.
Essa forma de fantástico não teve nenhum representante esteticamente
satisfatório no Brasil romântico, fato válido já que a preocupação dos românticos
brasileiros era de criar uma identidade nacional forte e/ou apenas demonstrar os
costumes da época, e não criticá-los. Apenas mais tarde, na virada do século XIX
para o XX, começaram a surgir contos dessa natureza, de autores diversos e
esporádicos, com apenas um representante de certa relevância estética: Aluísio de
Azevedo.
12
2 DO FINAL DO XIX AOS KAFKIANOS
Como já dito, a literatura fantástica passou por uma mudança tanto de temas
como de valores no final do século XIX, até ressurgir com força na figura de Franz
Kafka.
Aqui, como teremos que tratar de duas épocas distintas do fantástico (na
verdade três) é melhor escolhermos uma nomenclatura clara para definir cada uma
delas.
O período que vai de Hoffman – que Todorov defende ser de Cazzote – à
Maupassant, é recorrentemente chamado pelos críticos de fantástico do século XIX
ou fantástico romântico. Usaremos a primeira nomenclatura pois, como já dito, essa
literatura recusava o não-Eu de Schelling como Absoluto, noção essa cara aos
demais românticos europeus, e também por esse tipo de literatura continuar a ser
feito no período posterior ao romantismo, por autores comumente chamados de
realistas/naturalistas.
Para o período que engloba escritores entre Maupassant e Kafka, criaremos
uma nomenclatura para defini-lo, já que esses autores ainda não receberam o
tratamento cuidadoso que mereciam da crítica literária nesse sentido. Então,
usaremos a nomenclatura fantástico de transição, por falta de termo melhor.
Ainda, temos que levar em consideração outros estilos fantásticos e de
narrativas próximas a ele, geralmente confundidas com o fantástico, que serão mais
detalhados na hora que definirmos o modo: o gótico e o terror puro (ambos não
fantásticos), a ficção científica e o realismo mágico.
Já para o fantástico que compreende de Kafka até limites ainda não bem
conhecidos por nós pela proximidade temporal, usaremos a nomenclatura de
fantástico kafkiano, termo também adotado por diversos críticos, que define bem
esse estilo literário.
Agora, passemos para as mudanças que ocorreram – primeiro nos textos e
depois no mundo – que levaram ao fantástico kafkiano.
Maupassant, em um texto impressionista, mas útil, intitulado O Fantástico,
decreta a morte desse tipo de literatura.
13
Dentro de vinte anos, o medo do irreal não existirá mais mesmo entre o povo dos campos. Parece que a Criação tomou um outro aspecto, uma outra figura, um outro significado, diferente de antes. Daí vai certamente resultar o fim da literatura fantástica.17.
O autor fez seu prognóstico tendo em vista apenas um lado da literatura
fantástica, percebeu apenas uma de suas camadas, a mais evidente. Talvez por
isso, na hora de escrever seus contos fantásticos, Maupassant parecesse mais
ingênuo do que os melhores de seus contemporâneos.
Mas o que vale aqui é enaltecer a percepção de alguém que, imerso na
época em que essas mudanças ocorriam, já as sentia.
Apesar de notar as raízes do fantástico e de perceber que não tinha
começado com Hoffman, “ela teve, essa literatura, períodos e modos muito diversos,
desde o romance de cavalaria, as Mil e uma noites, os poemas heróicos, até os
contos de fada e as desconcertantes histórias de Hoffmann e Edgar Poe”18.
O autor francês não percebe que o que estava mudando era a humanidade, e
que como o fantástico sempre existiu e, conseqüentemente, é intrínseco à literatura,
que nasce da contestação do homem para com as regras do mundo em que vive,
ele mudaria junto para se adaptar aos problemas dessa nova época e criticá-la.
Isso ocorreu já no final do século XIX, quando escritores consagrados,
passam a usar formas literárias muito parecidas com o fantástico para fazer críticas
tanto às classes dominantes, seja politicamente, culturalmente ou economicamente,
como ao modo de vida de outras sociedades. Oscar Wilde faz uma crítica feroz à
sociedade americana, sem história, sem cultura e sem imaginação, em seu O
Fantasma de Canterville, de 1887. Aqui no Brasil, Machado de Assis critica a
academia e os acadêmicos em As Academias do Sião, mostra a condição humana
(em suas mesquinharias) em Entre Santos e em mais algumas dezenas de outros
contos.
Chamamos esses contos de “muito parecidos com o fantástico”, pois na
verdade, uma das condições do fantástico não se realiza. Essa condição já foi
apontada por Todorov no seu ensaio, mas nós a usaremos para outros fins, que
ficarão mais claros quando definirmos o fantástico. Por hora, basta saber que esses
contos são alegóricos, entendendo alegoria como a retórica antiga a entendia e que
17 MAUPASSANT, Guy. Le fantastic(trad. Sandra M. Stroparo). Disponível em http://maupassant.free.fr/cadre.php?page=oeuvre. Acesso em 14 mar. 2008, às 15h. 18 Ibid., loc. cit.
14
Hansen19 esclarece em seu estudo, ou seja, “quando se usa um sema A para dizer
um sema B”, ou melhor, quando o texto está dizendo uma coisa para na verdade se
referir a outra.
Essa definição serve para mostrar o que é usado por Wilde, Machado e
tantos outros, recurso que se aproxima do fantástico, mas que na verdade é alegoria
pura, pois não satisfaz todas as condições daquele modo literário. Mais tarde
veremos que, para o fantástico funcionar, ele precisa ocorrer de forma simbólica.
Machado, aliás, será importante posteriormente para entendermos a visão de
mundo de Kafka e dos autores que ele influenciou, e também por que escreve pelo
menos um conto com o melhor do fantástico de transição – Memórias de um Canário
– junto com escritores como O. Henry, Harvey, Bierce, Bloy, entre outros.
O que caracteriza esses autores será, por um lado, um começo de
consciência do isolamento do homem do século XX e, por outro, uma quebra social
de tabus, que faz com que temas não necessitem mais ser sublimados. Uma inicial
consciência de temas psicanalíticos e pré-psicanalíticos também está presente
neles. Porém, o que os afasta do fantástico kafkiano é que, apesar de começarem a
fazer as mudanças citadas acima, não as radicalizam como farão Kafka, Cortazar,
Rubião, Ramón Ribeyro, entre outros, posteriormente.
Comecemos agora analisando o conto August Heat20, de William Fryer
Harvey, escrito em 1910. Faremos uma análise de conto aqui, pela primeira vez
neste tralbaho, por Cortazar citá-lo como exemplo em seu ensaio Do Sentimento do
Fantástico21, e essa análise será importante posteriormente para verificarmos como
pensa um dos autores mais importantes do fantástico kafkiano, assim como para
encaixarmos o que ele pensa com o ethos daquele tipo de literatura.
Nesse conto temos um narrador – que é desenhista – que, num dia de
extremo calor, começa a desenhar a esmo, sem pensar no que fazia; no final vê que
concluiu o melhor desenho que já fez: um julgamento na hora em que o juiz está
pronto para proferir a sentença ao réu, que olha para fora do papel com uma
expressão de desalento.
19 HANSEN, João Adolfo. Alegoria: Construção e interpretação da metáfora. Campinas: Editora UNICAMP, 2006. 20 HARVEY, William Fryer. The beast of five fingers. Londres: Dent, 1962. 21 CORTAZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2004.
15
Com felicidade, põe o desenho no bolso e sai para caminhar a esmo. Acaba
chegando à porta de um lapidário e, não sabendo bem o porquê, entra na loja; o
lapidário é o réu de seu desenho. Este lhe mostra a melhor lápide que já fez, e que
irá colocar num concurso: o nome gravado é o mesmo do narrador, a data de
nascimento também, a data da morte é o dia da narração.
O lapidário diz ao narrador que escolheu esse nome ao acaso e convida-o
para esperar na sua casa até a meia-noite, para que nada aconteça a ele, e assim
ocorre. O calor continua insuportável e o conto acaba assim: São quase onze agora. Eu estarei em casa em menos de uma hora. Mas o calor é sufocante. É o suficiente para levar um homem à loucura22.
Em Do Sentimento do Fantástico, Cortazar não pretende definir essa forma
de literatura, mas sim mostrar o que o título diz ao pé da letra.
O argentino fala que nesse conto estão presentes três fatores importantes
para a ocorrência do fantástico: o sistema aberto, a fatalidade (destinado a ser) e o
ponto vélico.
O primeiro fator é, para Cortazar, necessário, pois pensa que, se
conhecermos todos os acontecimentos do universo narrado, o fantástico some.
Assim, em August Heat, temos um narrador em primeira pessoa, que mostra apenas
o que ele e o lapidário – que parece ser uma personagem confiável – sabem. O
sistema tem que deixar fatos em aberto, não pode ter um narrador onisciente que
saiba tudo e amarre todos os pontos, para não aparecer uma explicação possível
para os acontecimentos que acabe com o fantástico.
O segundo fator é importante, pois parece – aos leitores e personagens – que
existe uma força maior que guia tudo: o desenho do narrador, o seu caminho até a
loja de lápides e a lápide da personagem. Entretanto, esse fado não é algo que
realmente exista na narrativa, mas nós o percebemos pelo fato de o sistema ser
aberto e só conhecermos uma parte do que ocorre nele.
O terceiro fator é ainda mais próximo ao título. O ponto vélico é o ponto
misterioso do navio em que todas as forças deste convergem e assim o mantém
flutuando – explicação emprestada de Vitor Hugo, em Trabalhadores do Mar. Para
Cortazar, o fantástico deve tocar-nos no ombro e nos tirar do ponto vélico,
22 Tradução minha.
16
colocando-nos fora de eixo. É isso que o final abrupto do conto provoca, por ser
enigmático e não contar o fim do fantástico dia do narrador.
Para nosso estudo, por enquanto, interessa mais saber no que esse conto se
aproxima do fantástico do século XIX e do fantástico kafkiano e o que o separa
deles.
Primeiramente não há uma mudança de mundos como ocorria no primeiro
fantástico, não são dados extraordinários que acontecem com uma pessoa e depois
acabam voltando para o “mundo normal” no fim da narrativa ou mesmo antes do
término dela. O mundo retratado é o mesmo em que vivemos, com acontecimentos
estranhos apenas sentidos pelas personagens que estão no meio dos
acontecimentos. O mundo ser mantido o mesmo – “o real” – durante toda a narrativa
faz com que o estranhamento e a hesitação não ocorram da mesma forma que no
fantástico anterior. No entanto, ainda há um estranhamento durante toda a obra, o
acontecimento extraordinário ainda não se encaixa de forma plena no mundo
natural, o que podemos perceber pelas reações das personagens, que reagem aos
fatos estranhos, mas já sem o dilema do “ocorreu/não ocorreu” da personagem do
fantástico do século XIX.
O mundo representado aqui também é opressor, como nos dois outros
fantásticos, porém não vem de uma sublimação sexual como no do século XIX, nem
a opressão mostra-se de forma tão enraizada no mundo natural quanto no fantástico
kafkiano. O que ocorre aqui é uma exacerbação da noção do ser humano isolado da
sociedade – o narrador nada fez de especial em sua vida, tem um trabalho que não
o satisfaz nem o desagrada de todo – e da opressão do mundo, ainda não
demonstrada claramente, mas numa simbologia do calor sufocante que impede até
o narrador de pensar claramente e o leva a desenhar.
Como já dito, não pretendemos aqui esgotar essa forma fantástica, o
fantástico de transição, apenas mostrar sua existência e algumas diferenças para os
outros fantásticos, que o colocam em uma posição separada. Essas diferenças
mostram uma proximidade tanto com um como com o outro, porém na direção do
primeiro para o segundo.
Já na época do lançamento do conto de Harvey, aparece outra forma que, até
hoje, é comumente confundida com o fantástico: o terror puro.
O efeito do terror puro em narrações vem desde os narradores orais, mais a
forma literária que aqui estudamos e que perdura até hoje, em livros e mesmo no
17
cinema, começou em revistas editadas na época (começo do século XX),
especialmente em língua inglesa, que batizaram esses contos de Wierd Tales
(Contos Estranhos).
O que caracteriza essa forma de literatura, julgo eu, é um vazio estético e de
ethos. Não existe, acredito, preocupação com a forma, apenas se narra uma história
tentando provocar medo no leitor, não pelo mesmo motivo do gótico, que tinha um
ideal por trás disso, mas apenas para que esse sentimento faça o leitor se interessar
pela obra e a consumir. É o que chamamos hoje de literatura de massa, que usa
fórmulas prontas para fins mercadológicos.
No Brasil ficam claros esses fins, já que esse tipo de literatura era, em geral,
tradução de autores americanos, ou melhor, os brasileiros se apropriavam do texto
em inglês transposto para o português, sem dar créditos ao autor original. Alguns
desses autores ficaram famosos em suas épocas por aqui como Amândio Sobral –
com títulos como A Podridão Viva –, Adelpho Monjardim e Humberto de Campos
Esses contos não são fantásticos por motivos que veremos depois, mas
também por serem apenas literatura de entretenimento. Apesar disso, alguns críticos
ignoram esses fatores e colocam “tudo no mesmo balaio”, como Bráulio Tavares, em
seu desapontador prefácio de Páginas de Sombra23.
Não podemos nos esquecer que no início dessa literatura, as teorias de Freud
já estavam se disseminando pelo mundo. O que a psicanálise fez com a literatura foi
mostrar o interior humano, e esta se aproveitou daquela para criar personagens
mais consistentes. Não que isso não ocorresse antes, mas ainda era um campo que
engatinhava.
Por um lado, essa consciência do inconsciente permitiu personagens
marcantes no início do século passado, como Stephen Dedalus, Leopold Bloom e
Hans Castorp. Por outro lado, ela dividiu a literatura em duas: alta literatura – em
geral, mas não só isso, aquela em que o personagem é bem delineada no sentido
psicológico – e a baixa literatura, de massa ou de entretenimento, preocupada
apenas com a vendagem e com o ato de entreter o público, tendo para isso “tipos”
como personagens.
23 TAVARES, Bráulio (org. e prefácio). Páginas de sombra, contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
18
Com o inconsciente já demonstrado, o autor toma consciência da sua
existência e acaba retratando-o na obra de forma diferente, não mais em
sublimações principalmente sexuais, como no fantástico do século XIX, que
sublimava de forma inconsciente, já que não tinha consciência do inconsciente.
Logo, o fantástico kafkiano não precisa sublimar temas, pois saber que o está
fazendo acaba com o ato de sublimar, ninguém sublima de forma consciente.
Outra mudança nesse sentido é a da própria necessidade da sublimação,
uma vez que, aos poucos, esses tabus sexuais passam a ser desmistificados,
principalmente depois do final da Segunda Guerra Mundial, época em que o mundo
parece ter visto tanto horror que passou a acreditar que seus antigos pudores eram
risíveis perto do que aconteceu.
Mas não foi apenas Freud o responsável pela divisão de literatura. É óbvio
que o mercado e a indústria cultural também ajudaram a criar a literatura de puro
entretenimento.
O mercado é um fenômeno mais recente, do início desse século. O mercado
é aquilo que tudo cria e tudo determina, que, por meio da mídia, bota seus produtos
goela abaixo da população, que cria modos “certos” de pensar, ser, vestir-se, comer,
agir, e que dentro da mídia cria ídolos rapidamente esquecidos, mas que fazem
grandes sucessos comerciais e, nos casos mais extremos, ganham pechas de
gênios em suas épocas (tudo isso será explicado de forma filosófica
posteriormente).
Além da mídia, a modernidade do século XX criou – ou maximizou processos
que já vinham ocorrendo – o supercrescimento das cidades que faz com que o
homem se sinta cada vez menor; o tempo sendo engolido pelas tarefas que têm de
ser cumpridas; é engraçado notar que, num mundo sem fronteiras e de velocidade, o
tempo tornou-se mais escasso, ou seja, a tecnologia ajudou o sistema e não o
homem; a violência que assusta as pessoas da maioria das grandes e médias
cidades e que faz com que o homem busque refúgio isolando-se do mundo em sua
casa, violência essa cada vez mais absurda e sem sentido; as discrepâncias sociais
explodindo pelo capitalismo, o pobre cada vez mais pobre gastando todo o seu
tempo em sobreviver, e o rico cada vez mais rico gastando todo o seu tempo em
enriquecer; a diminuição da leitura pelo advento da televisão, o que causa um
emburrecimento e uma padronização, não só das massas, mas também de pessoas
de formação mais privilegiada; a impossibilidade de amizades mais fortes tanto pela
19
correria como pela eterna mudança de cidades e locais dentro da mesma cidade das
pessoas, o que impede também uma relação que combine com a do amor cortês
burguês; entre outros.
Sobre a modernidade descrita acima, analisemos o livro de Marshall Berman,
Tudo que é Sólido se Desmancha no Ar.24
Para o autor, a modernidade seria um turbilhão de desintegração e mudança,
descobertas físicas, industrialização, imprensa, explosão demográfica, estados
poderosos, etc.
O autor está mais preocupado com a forma com que a modernidade é
pensada por intelectuais de diversas áreas e nas imagens que estes usam para
retratá-las do que propriamente em definir o que é a modernidade, porém pelo
alcance que obteve e continua obtendo o estudo, vale a pena se deter um pouco
mais nele. Outro motivo de focarmos neste ensaio é que o filósofo analisado
posteriormente no estudo do fantástico kafkiano tem uma visão um pouco diferente
desses autores citados por Berman.
Berman divide a modernidade em três fases.
A primeira vai do século XVI, das grandes navegações, até o final do século
XVIII, com a Revolução Francesa, e afirma que nessa fase as pessoas estão apenas
tateando na novidade que é a modernidade; um livro que mostra isso é a Nova
Heloísa, do já citado Rousseau, que é sobre um homem que sai do interior e vive as
experiências da cidade grande. Seria o começo da visão de ambigüidade sobre a
modernidade, ambigüidade no sentido de percebê-la como algo inevitável e que traz
progresso ao mesmo tempo em que destrói velhos valores fundamentais da
sociedade e afasta o ser humano do convívio social. Seria a mesma época em que
surgiram os textos góticos.
A segunda fase vai da Revolução Francesa até o final do século XIX, é o
período em que “o indivíduo ousa individualizar-se”25. É nessa fase que a
ambigüidade sobre a modernidade chega ao seu auge, principalmente nos filósofos
Karl Marx e Friedrich Nietzsche. É uma fase em que as cidades se modernizam
brutalmente por causa da Revolução Industrial. Seria a mesma época do fantástico
do século XIX.
24 MARSHALL, Berman. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura do modernismo. São Paulo: Scharwz Ltda., 1987. 25 Ibid., p. 21.
20
A terceira fase, para Berman, começa no início do século XX e vai até os dias
em que o texto foi escrito (1982). Nessa fase, para o autor, os intelectuais
desaprenderam a lidar com a modernidade, pois perderem a ambigüidade para com
ela. Ele cita casos de adoração total a ela, como os futuristas italianos, e casos de
negação extrema. Berman acha que devemos rever o passado para saber como
lidar com o presente. Essa seria a mesma fase do fantástico de transição e do
fantástico kafkiano.
Apesar de a ambigüidade – criticar e elogiar ao mesmo tempo – não ser uma
grande virtude quando se trate de analisar uma época, o que nos interessa aqui são
as divisões que o autor faz da modernidade, que coincide na base, com a nossa do
fantástico, e a leitura que ele faz de importantes pensadores do século XX sobre as
conseqüências do moderno, pensadores que vão ter visões parecidas com os
autores do fantástico.
Quando critica a Ética Protestante e o Espírito Capitalista, de Max Weber,
escrito ainda em 1904, Berman comenta sobre a obra: “Portanto, não só a
sociedade moderna é um cárcere, como as pessoas que aí vivem foram moldadas
por suas barras; somos seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual ou
pessoal – quase podíamos dizer: sem ser”.26
É interessante perceber como já em 1904 um crítico vindo do então mesmo
país de Kafka tinha uma perspectiva que lembre um autor que só publicará pela
primeira vez dez anos depois. A noção da sociedade como um “cárcere”, ou uma
“camisa de força” – termo mais próximo do original – que impede o homem de agir e,
por isso, acaba impedindo o homem de ser homem em sua essência, acaba por
desumanizá-lo. O que os kafkianos fazem é intensificar essa noção.
Como é uma noção de isolamento mais branda que a dos kafkianos, talvez a
visão de Webber possa ser comparada com a do fantástico de transição, num
estudo mais aprofundado sobre este estilo literário.
Em 1960, Herbert Marcuse escreve seu ensaio O homem unidimensional, que
Berman assim comenta: De acordo com esse paradigma (do pensamento-crítico) [...] As massas não têm ego, nem id, suas almas são carentes de tensão interior e dinamismo, suas idéias, suas necessidades, até seus dramas ‘não são deles mesmos’; suas vidas interiores são ‘inteiramente administradas’,
26 Ibid., p. 27.
21
programadas para produzir exatamente aqueles desejos que o sistema social pode satisfazer, nada além disso.27
Tirando a visão marxista de Marcuse, pensador da Escola de Frankfurt,
vemos aí uma padronização do indivíduo que os kafkianos já haviam desdobrado
em seres humanos sem nomes, apenas com sua função sistêmica – a função
profissional que desempenham no sistema –, personagens que mudam de nomes e
personalidades no meio da narrativa sem se incomodarem com isso por saberem
que nenhum nome e personalidade realmente existem.
Ainda para mostrar essa comparação de pensadores da modernidade sobre
ela, temos o prefácio do manifesto escrito pelo arquiteto Le Corbusier, intitulado A
Cidade do Amanhã, em 1924, época em que Kafka ainda escrevia.
Para o autor, a velocidade do tráfego e a quantidade de carros eram
sufocantes e o atormentavam de uma maneira que só restava voltar para casa e se
trancar. Isso vai ao encontro do pensamento dos kafkianos de que a sociedade
“maquinizada” é assustadora e opressora, e tudo que resta ao ser humano é a
solidão.
Sobre a parte em que o autor foge desse tráfego e lembra que antes “a
estrada nos pertencia”, aos homens que andavam e conversavam, Berman – com
ironia, pois o seu ponto de vista já foi aqui mencionado –, escreve: A relação dos jovens estudantes com a rua representava a sua relação com o mundo: o mundo era – ou parecia ser – aberto a eles, era deles para que aí se movessem à vontade, em ritmo que podia acolher tanto as discussões quanto as músicas; homens animais e veículos coexistiam pacificamente em uma espécie de Éden urbano [...] Agora o idílio terminou, as ruas pertencem ao tráfego, e a visão precisa desaparece, pois assim é a vida”.28 Outra característica do fantástico kafkiano que o diferencia do fantástico do
século XIX é que não há a mudança de mundo que vimos antes. O acontecimento
fantástico ocorre no mundo natural das personagens, apesar de ainda haver a
quebra.
Isso se deve ao fato de que o mundo real é tão absurdo que tudo que
acontece nele usando do recurso fantástico é uma mostra dos problemas que estão
acontecendo em volta, no dia-a-dia do ser humano.
27 Ibid., p. 28. 28 Ibid., p. 160.
22
Ser humano esse retratado como o-solitário-acostumado-às-mazelas-do-
mundo-que-não-se-surpreende-mais-com-os-acontecimentos-absurdos-que-o-
fantástico-produz-pois-já-se-acostumou-com-o-mundo-absurdo-em-que-vive.
O afastamento e a noção de como anda o mundo torna essa personagem
especial, e apenas ela vê e sente (sentir em alguns poucos casos os outros
personagens sentem, como em A Metamorfose, de Kafka, porém sentem não o
efeito de todos virarem baratas, como seria de se esperar, mas sim o fardo que traz
uma pessoa que antes sustentava a família agora ser motivo de vergonha para ela,
sentem por motivos sociais) os acontecimentos estranhos que ocorrem por ser
especial e já ter notado – mesmo que não entendido ou não compreendido por
inteiro – tudo o que ocorre no mundo.
Assim, vemos que enquanto o fantástico do século XIX é uma sublimação de
fatos proibidos e uma recusa ao amor romântico permeados pela filosofia idealista
de Fitche, o fantástico kafkiano é uma revolta do homem contra o meio opressor em
que ele vive. Podemos nos ocupar agora da filosofia desse fantástico.
A visão filosófica dos Kafkianos é muito parecida com a de Heidgger. É claro
que o filósofo escreveu depois de Kafka e nunca falou de influências deste – até
porque não era um leitor assíduo de literatura, pelo menos em sua primeira fase –,
porém a forma de ver o mundo é a mesma. Não houve uma influência de um para o
outro, mas sim um co-sentir e co-pensar, uma similaridade de ethos, por ser este o
ethos de uma época. Na obra de Kafka, segundo Faye, já estaria esboçado esse romance do lá, do ‘estar lá’, tema que tem uma expressão abstrata em Heidgger, apesar de não podermos afirmar que Heidgger tenha se interessado por Kafka para elaborar seu Sein und Zeit [Ser e o Tempo].29
Essa é a opinião do escritor e crítico literário francês Jean Pierre Faye, que
nos parece muito plausível e aqui discorreremos mais sobre ela.
Para começar, essa idéia de divisão entre homem e sociedade já está
presente em um autor brasileiro muito anterior a Kafka, Machado de Assis. Assim
podemos perceber como era uma idéia que vinha crescendo desde épocas
anteriores e foi percebida pelos maiores intelectos do seu tempo, diferentemente do
29 CARVALHO FRANCO, Tânia. Franz Kafka e a Literatura Francesa. In: A realidade em Kafka (org. Rudolfo M. Stock). Porto Alegre: Movimento, 1973. p. 26.
23
Idealismo Alemão, idéia bem mais abstrata que ganhou forças pelo uso de
intelectuais desse país em sua arte.
Vale lembrar que a única influência literária declarada do autor de fantástico
kafkiano Murilo Rubião – além do Velho Testamento – é Machado de Assis. Isso se
dá pelo ethos de ambos.
O que ocorre é que a visão de Machado era menos pessimista que a dos
kafkianos: Machado ainda não é um cético como eles, o que pode ser explicado em
uma crônica sua, a última de a Semana, citada por Miguel Reale em seu A Filosofia
na Obra de Machado de Assis & Antologia Filosófica de Machado de Assis.30 Não tires da última frase a conclusão de ceticismo. Não achareis linhas céticas nestas minhas conversações dominicais. Se destes com algum que se possa dizer pessimista, adverte que nada a mais oposto ao ceticismo. Achar uma coisa ruim não é duvidar dela, mas afirmá-la31.
Essa diferença de ceticismo e pessimismo vem da época em que cada um
escrevia; vinte e cinco anos separam Machado do primeiro Kafka, o mundo daquele
ainda era mais lento, o automóvel ainda não existia nem uma aceleração tão
exacerbada da vida, o homem ainda tinha tempo para falar com seus amigos e
fumar um cachimbo depois do almoço. Machado ainda acredita no homem enquanto
indivíduo, acredita que o indivíduo pode salvar o coletivo numa espécie de revolução
de diversos “eus” separados. Isso só ocorre porque O Bruxo do Cosme Velho pensa
que no homem podem conviver, de forma mais ou menos pacífica, dois indivíduos: o
social e o individual. Como veremos posteriormente, nos kafkianos sempre haverá
esse embate, pois o ser humano é indivisível. É isso que leva Machado a usar a
ironia apenas pessimista, enquanto Rubião e Kafka, o fantástico ceticista.
Apesar das diferenças temporais, o ethos de Machado lembra muito o de
Heidegger. O próprio Reale reconhece isso e diz claramente. “De certa forma
Machado de Assis foi um ‘heideggeriano’ avant la lettre”32.
O crítico fala isso na hora em que mostra que Machado de Assis percebe o
mundo como sendo um social e o outro individual. Suas personagens usam
máscaras na frente do coletivo, mas sozinhas são outras pessoas. É o que Miguel
Reale chama de “ser per si” – o indivíduo – e “ser per outrem” – a sociedade –
usando terminologias de Heidegger (essas terminologias variam de tradução para 30 REALE, Miguel. A filosofia na obra de Machado de Assis & Antologia filosófica de Machado de Assis. São Paulo: Pioneira, 1982. 31 Ibid., p. 10. 32 Ibid., p. 15.
24
tradução, a que usaremos neste trabalho se referirá a primeira como pessoal e a
segunda como impessoal, também com variantes decisão e indecisão).
O exemplo mais claro disso é o conto O Espelho em que a personagem se vê
diferente no espelho do que é com sua máscara social.
Mas tomemos outros exemplos, para não parecer um caso isolado.
Outro conto, Os Braços, mostra como a sociedade pode acabar impedindo o
indivíduo de conseguir ser como tal: “[...]retidos pelo liames sociais e por um
sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo”.
Nos romances, essa visão também aparece, como em Memórias Póstumas
de Brás Cubas. No capítulo XLIX, o defunto explana sobre a platéia da sociedade e
o nariz: “A conclusão portanto é que há duas forças capitais: o amor, que multiplica a
espécie, e o nariz, que a subordina ao indivíduo. Procriação e equilíbrio”.
Após essa rápida explanação sobre o ethos machadiano, parecido com o dos
autores que estudaremos mais adiante, entremos agora na filosofia do Ser e Tempo,
de Martin Heidegger33.
Esse livro é a ontologia do autor alemão, fundada na noção de Dasein (esse
será o único termo que usaremos em alemão, apesar de muitos outros também
serem intraduzíveis. O motivo da escolha desse termo em especial é que todo o
conceito de mundo e de ser gira em torno dele, além do fato de ele ser
correntemente traduzido por “ser-aí”, entretanto na edição usada neste trabalho, o
termo é traduzido para um estranho “pre-sença”).
O Dasein é “o ser que desde o início e sempre eu sou”, basicamente é o ser
humano no sentido ontológico-existencial.
Aqui necessitaremos fazer diferenciar os termos ontológico e ôntico. Tratados
muitas vezes como sinônimos, Ser e Tempo os diferencia. Ôntico refere-se aos
seres não dotados do ser do Dasein, que são os seres simplesmente dados e os
seres intramundanos. Em muitas partes do livro ambos os termos se confundem,
porém em algumas partes o primeiro termo é usado para representar os objetos do
mundo, objetos manuais e funcionais, como o martelo, a mesa, o livro, etc. O
segundo termo representa aqueles entes que fazem parte da natureza, como as
árvores, o vento, o clima. Ambos são seres que, apesar de também serem temporais
– uma forma diferente de temporalidade das dos seres dotados do ser do Dasein –
33 HEIDEGGER, Martim. Ser e tempo. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
25
são basicamente substâncias. Para se referir a esses seres, Ser e Tempo vale-se do
termo existenciário.
Já o ontológico é tudo aquilo que remete a um plano existencial, tendo em
vista que existência para Heidegger ocorre no tempo. Assim, é tudo aquilo que é ou
se relaciona com o Dasein. Não que o existencial não tenha forma, Heidegger fala
também da espacialidade (substância) do Dasein, mas esses pormenores não
interessam ao nosso estudo.
O ser do Dasein é uma totalidade denominada cura. Um dos constituintes da
cura é o ser-no-mundo que é o Desein no mundo convivendo com os entes
simplesmente dados, os entes intramundanos e os outros seres dotados do ser do
Dasein (nesse último caso, o ser-no-mundo tem a propriedade do ser-com, ou seja,
ser com os outros).
Como o Dasein está desde sempre lançado no ser-no-mundo, ele acaba
existindo em sociedade – apesar de Heidegger não usar esse termo –, essa
sociedade forma o impessoal, que, por ser todos, acaba sendo ninguém.
Nesse impessoal o Dasein perde-se, esquecendo seu motivo de ser. Esse
motivo será explicado posteriormente, por hora vamos nos ater ao que é esse
impessoal.
Além do ser-no-mundo, outra propriedade do ser da cura, ou seja, do ser do
Dasein, é o ser-em, que é constituído pela disposição, compreensão e discurso.
Esses três constituintes do Dasein também se formam a partir do ser-no-mundo,
pois se dão na convivência do Dasein com outros Desein.
A disposição é o humor, ou seja, os sentimentos que o Dasein tem em
relação aos seres intramundanos e aos outros Dasein. É por meio dele que
compreendemos o mundo. O humor mais próprio é a angústia.
A compreensão é o olhar para o objeto ou a situação e entendê-los de forma
própria. É assim que um objeto se abre no mundo para o Dasein, pois ele
compreende-o e o utiliza a partir de sua compreensão. É por meio da compreensão
do mundo que o Dasein pode entender o seu poder-ser, ou seja, as possibilidades
que ele tem no mundo e assim, como logo veremos, o seu ser próprio.
O discurso é a articulação do que foi compreendido.
O que ocorre no impessoal é que essas propriedades do Dasein são
modificadas.
26
Impessoal é um neutro, é uma massa de “eus” em que eu (Dasein) estou
incluído. Essa massa forma um Mitdasein, ou seja, uma reunião de Dasein. Como o
Dasein tem como uma de suas propriedades o ser-no-mundo, ele desde o início se
encontra na convivência do impessoal, o que o torna impessoal.
Esse impessoal provoca uma medianidade entre todos os Dasein e um certo
nivelamento acontece, pois o que um sabe todos sabem (mas o que se sabe é
apenas o superficial, como veremos logo mais), é como se ele tirasse a
individualidade dos indivíduos e os jogasse num mundo de padronização.
A modificação que o impessoal faz nos três constituintes do ser-em leva o
Dasein para a decadência, que é sinônimo de indecisão.
Aqui, antes de continuar, vale uma pausa para explicar duas coisas: primeiro,
para Ser e Tempo, quase todos os constituintes ontológicos do Dasein tem dois
lados, um contrário ao outro; segundo, que essa oposição não é valorada, aliás,
nada é valorado nesse livro, assim, apesar dos termos que o definem, o impessoal
não é algo ruim, e sim “o estado em que nos encontramos desde o início e na
maioria das vezes”.
Em primeiro lugar, no impessoal não há discurso, apenas um falatório, que é
um repetir e passar adiante o que já foi dito na medianidade do impessoal. Esse
falatório acaba facilitando (que é outra característica do impessoal: sempre buscar o
mais fácil), pois assim o eu não precisa compreender nada no mundo, o que limita a
capacidade do Dasein. Quando esse mesmo processo ocorre na escrita, o nome
que se dá é escritório.
Como a capacidade de compreender foi afetada, é lógico que a do humor
também já foi, isso em função da medianidade do impessoal que leva à
padronização que, por sua vez, acaba levando o Dasein a ser morno, sem
sentimentos próprios.
Outra propriedade do impróprio (sinônimo de impessoal) é a curiosidade, que
vem a ser a busca incessante pelo o que é novo, porém não com intuito de
compreendê-lo, mas somente para mudar seu objeto de apreciação o mais
rapidamente possível, para que o olhar não se detenha em nada e assim não
precise realmente compreender objeto ou fato algum. Como não pretende
compreender nada, essa visão sobre um objeto não pode ser chamada de
contemplação (que é o termo usado por Heidegger para a forma de visão que leva à
27
compreensão), mas sim de impermanência, que é o termo para essa dispersão do
Dasein da propriedade de compreensão.
Essa impermanência causada pela dispersão acaba gerando um desamparo,
já que o Dasein está em todos os lugares, fala sobre tudo e tudo sabe, mas na
verdade, está em lugar nenhum, fala sobre nada e nada sabe, por estar negando
uma possibilidade que é intrínseca ao seu ser, a compreensão. Isso faz com que o
Dasein sinta-se desenraizado.
Pelo que foi dito nos três últimos parágrafos, não se pode ter certeza do que
se sabe e do que não se sabe, isso gera a ambigüidade.
Esse mundo de massa, mas que desampara o ser humano, que está sempre
em velocidade para ver os objetos e nele não se deter para compreendê-lo (vide a
Internet nas duas situações acima) e de repetir o que os outros falam sem
propriedade e sem idéias próprias (a alienação que começa desde o colégio), enfim,
o mundo decadente, esse é o mundo em que nós vivemos hoje, só que descrito há
mais de oito décadas atrás.
Isso se dá porque, na teoria de Heidegger, o Dasein, desde os primórdios do
tempo, já esteve no impessoal, e essa necessidade de velocidade foi aumentando
cada vez mais até chegar aos níveis dos dias atuais, e as características do
impessoal tornaram-se mais exacerbadas ainda no futuro.
Agora que rapidamente explanamos sobre o impessoal, passemos para o
pessoal e para o que o Dasein tem que fazer para alcançá-lo.
Foi dito antes que a angústia é o humor mais próprio do Dasein. Isso ocorre
pois o Dasein começa a angustiar-se no impessoal (em virtude do desamparo, do
desenraizamento e de toda a decadência, embora Heidegger não explicite isso).
Isso acontece com todo o Dasein. Essa angústia vem do clamor da consciência do
eu. O que ocorre é que existem Dasein – a maioria – que não ouvem esse clamor e
permanecem, quase todos por toda a existência, no impessoal. Aquele Dasein que
ouve (ouvir é no sentido figurado, pois o clamor é silencioso, Ser e Tempo trata de
uma fala silenciosa, que poderia ser interpretada por um sentir, embora o caráter de
ciência que Heidegger queira empregar em sua ontologia o impeça de usar esse
termo) o clamor da consciência, consciência essa que está no ser do Dasein, ou
seja, na cura, tem que enfrentar a possibilidade mais própria e a única certa de cada
Dasein. Assim, o passo para sair do impessoal e entrar no pessoal é compreender e
tomar consciência da morte.
28
Isso ocorre pois a morte é realizada sempre na solidão e não no Mitdasein
que gera o impessoal, além do mais ela é, como já foi dito, a única possibilidade que
certamente ocorrerá com o Dasein.
A importância que se dá para a possibilidade inescapável acontece em
virtude da visão do ser de Heidegger (que já foi explicada anteriormente), a do
Dasein ser um ser temporal. Por isso, precisaremos explicar rapidamente o que é a
temporalidade para o filósofo alemão.
Heidegger geralmente não usa presente, passado e futuro, apenas usa-os
entre aspas para poder explicar sua teoria. Para ele, a temporalidade no impessoal e
no pessoal também são diferentes, assim como suas denominações. Veremos aqui,
resumidamente e simplificadamente, essas ekstases da temporalidade (esse termo
designa a unidade da temporalidade, logo as três denominações de tempo fazem
parte das ekstases), para não soar estranho o fato de a morte ser tão importante
para esse filósofo.
O eu ocorre no tempo, se inicia no seu nascimento e se encerra na sua
morte. Os três tempos – que ocorrem de forma conjunta – são assim denominados:
atualidade (o que acontece agora), ter sido (o que já ocorreu) e porvir (o que
ocorrerá). No pessoal, a atualidade é denominada instante; o ter sido, repetição; e o
porvir, antecipação.
O que ocorre é que, estando no instante, o Dasein antevê possibilidades.
Quando está decidido no pessoal, ele compreende essas possibilidades e acaba
assim por antecipá-las, escolhendo a mais própria para si. Entretanto, por estar
decidido (no modo de decisão), ele carrega consigo todas as possibilidades que
escolheu anteriormente na repetição, e esta influencia qual possibilidade o Dasein
escolherá. Assim, o pessoal vive a sua atualidade com base no ter sido, o que
representaria dizer que ele vive seu agora baseado nas experiências da história sua
e de uma história distante no tempo (a carga do que outros Dasein fizeram está
presente hoje por causa da historicidade, mas não entremos nesse mérito).
Aqui vale um parêntese para dizer de outra aproximação do ethos de
Machado com a filosofia de Heidegger: o romancista brasileiro descrevia o presente,
mas usava o passado para tanto, através de suas influências, como Stern e Xavier
de Maistre. Mesmo tendo começado a escrever em uma época romântica, que
pregava a atualidade e que todos os escritores do passado tinham de ter o mesmo
ethos que ele, como suas histórias da literatura provam, Machado elogia os que já
29
foram e mostra a importância de aprender com os clássicos, como mostra o seu
ensaio Instinto de Nacionalidade, de 1873. 34
Agora voltemos a Heidegger. Se a base do eu são as possibilidades do porvir
(escolhidas num instante e influenciadas pela repetição), nada mais sensato do que
entender a única possibilidade certa do porvir para entrar no pessoal, onde o Dasein
pode compreender o mundo, falar a partir de suas próprias compreensões e ter a
disposição característica a si próprio.
Compreendendo a existência, sendo um indivíduo no sentido pleno da
palavra, bem como seu porvir e seu ter sido: assim é o Dasein em seu sentido
próprio e, com isso, acaba por compreender-se a si mesmo.
O que Heidegger não faz, embora diga que o fará (talvez por Ser e Tempo
tratar-se de um livro inacabado), é explicar como pode um Dasein decidido viver e
se relacionar no meio do Mitdasein indecisos.
A temporalidade no impessoal tem a seguinte denominação: a atualidade é
nomeada de atualização; o ter sido de esquecimento; e o porvir de atender. A
atualização não se detém a nada, lança o olhar para algo e, antes de compreendê-
lo, muda para outro; funda-se na curiosidade. O atender constitui as possibilidades
sempre iguais e limitadas do impessoal, pelo fato de Dasein não as compreender
realmente. O esquecimento é quando não se entra nas possibilidades com a carga
da repetição. Isso ocorre pois compreender o ter sido quando se entra no pessoal é
uma aceitação do estar-lançado no mundo em sua existência temporal; o impessoal
não aceita esse estar-lançado, que é o fato de estar no mundo desde sempre
existindo, ou seja, nas possibilidades (sempre tendo em vista o nascimento).
Antes de entrarmos nos méritos do fantástico kafkiano, vamos relembrar as
três condições de Cortazar, e ver se são satisfatoriamente explicadas a partir de um
pensamento heideggeriano.
A idéia do sistema aberto, que para Cortazar ocorria porque se tudo fosse
explicado o fantástico acabaria, agora fica mais claro se pensarmos no Dasein e no
Mitdasein. O ponto de vista que temos é apenas da personagem que nota o
impessoal, logo o sistema tem de ser aberto, pois os outros personagens da obra
não são seus semelhantes, mas seus estranhos. O único ponto de vista que conta é
34 ASSIS, Machado de. Obras Completas vol 3. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.
30
a da personagem que está fora do impessoal, tentando sair do impessoal ou
notando a estranheza do impessoal.
A teoria sobre o ponto vélico seria o clamor no pensamento de Heidegger. A
angústia é sempre presente nesse tipo de fantástico, seja na personagem principal
ou no ambiente que a cerca. Logo, essa angústia provoca o clamor, e é este a “mão
que toca no ombro” para tirar-nos do lugar. Tanto pode tirar do lugar que a razão de
ela existir é mudar para sempre a vida de quem o ouve.
Já o que Cortazar fala sobre a fatalidade é mais complexo. Heidegger tem um
termo destino, mas não é o mesmo. Destino para Heidegger são as possibilidades
escolhidas e herdadas pelo Dasein no ter sido, que as transmite a si próprio no
pessoal. Isso quer dizer que as possibilidades que o Dasein escolheu e viraram
repetição no pessoal abrem novas possibilidades na antecipação e a escolha dessas
possibilidades é influenciada por essa própria repetição que as criou. O Dasein
carrega em si a carga do passado, mas isso apenas no próprio. Como sempre, há
um embate com o impróprio, e é nele que Cortazar funda sua teoria, e, assim, a
fatalidade vem do atender e de suas possibilidades sempre iguais, pois o impessoal
não presta a atenção no seu esquecimento; por isso e pela padronização, o Dasein
não encontra possibilidades reais.
Verificamos algumas visões da modernidade através de Marshall Berman e
depois a visão além do bem e do mal desse fenômeno que Heidegger tem, agora
pensemos na visão do fantástico kafkiano.
O mundo está cada vez mais acelerado em função da curiosidade do
impessoal, isso provoca uma velocidade no modo de viver das pessoas. Precisando
correr mais para poder fazer tudo o que o dia exige – sem concentrar-se realmente
em nada) sobra menos tempo ainda para a pessoa pensar – mais um ponto para o
impessoal – e mesmo para se relacionar com as outras pessoas. Assim, as relações
ficam mais frágeis, a pessoa não tem com quem contar e acaba se isolando no
mundo, não por querer, mas porque precisa disso.
Essa é a base de qualquer personagem do fantástico kafkiano. Mesmo que
inconscientemente o impessoal oprime essa pessoa que acaba por se isolar de
forma mais ou menos intensa. A angústia aparece nessa personagem ou ambiente
espacial da obra e, de súbito, irrompe o fantástico no texto. Porém, não existe
mudança de mundo como no século XIX. O que o fantástico mostra nas obras
31
kafkianas é o absurdo do mundo notado, em geral, apenas pela personagem central,
pois é ela que está sentindo a angústia e que está ouvindo o clamor.
Esse esquema é basicamente o mesmo nas obras desse estilo de fantástico,
o que muda é a forma que a personagem reage a ele. Existem três formas
diferentes, e para tratá-las usaremos três autores diferentes: Franz Kafka, Julio
Cortazar e Murilo Rubião.
Tomar contos deles para explicar as três diferenças não quer dizer que esses
autores sempre usem essa forma. Kafka tem por base em sua produção a forma de
fantástico que será analisada por meio dele, mas varia em algumas obras; Cortazar
varia bastante na utilização dessas três formas; Rubião basicamente usa, na maioria
dos casos, a que com seu conto analisaremos. Também não podemos dizer que só
utilizam essas formas, eles estão tomados aqui apenas para exemplificação, pois
são autores que produziriam muito do fantástico kafkiano e todos têm satisfatória
realização estética.
Na maioria das obras de Kafka, o que ocorre é que a personagem principal
(ou personagem fantástica) ainda permanece imersa no impessoal, porém o clamor
pulsa dentro dela e a angústia é cada vez mais latente, mas não há saídas da
sociedade opressora. A personagem desamparada e desenraizada segue nesse
mundo que a fere, no meio da multidão a qual não pertence (sem saber que a ela
não pertence), tentando desesperadamente sobreviver e se manter como um igual
aos outros.
Isso ocorre em O Castelo35,em que K. chega a um vilarejo no meio da noite,
dizendo que foi chamado para ser agrimensor. Ninguém na vila sabe nada sobre a
sua chamada e ele passa a tentar desesperadamente adentrar ao Castelo,
misterioso lugar, de grandes dimensões, que administra aquela pequena vila e que
fica ao lado dela. Nessa busca por ser alguém por meio de sua profissão, K. acaba
sendo cada vez mais oprimido pelo impessoal: na chegada, ganha dois ajudantes e
consegue uma mulher que o ama; depois vira uma espécie de zelador em uma
escola e perde seus ajudantes e a mulher; por fim, acaba por não ter para onde ir e
é chamado por uma camareira (figura mais insignificante daquela sociedade) para
morar no porão da hospedaria com ela e mais três amigas, local de onde não
poderia sair. Não sabemos o que vem a seguir, já que o livro é inacabado (por
35 KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
32
motivo de força maior ou desejo do autor, pois o livro acaba no meio de uma frase).
Porém, vemos aí a decadência de alguém que se agarra ao impessoal, mas que
nota seus absurdos, o que não ocorre para os outros, que, sem o clamor, acham
tudo normal. Entretanto, K. nunca pode alcançar uma esfera pessoal.
Já em Cortazar, é possível notar, em alguns contos, algo diferente. O que
ocorre é que a personagem fantástica nota que o mundo em volta dela é opressor e
que o lugar dela não é ali, e nota também que algo tem que mudar em sua vida, algo
que o afaste daquele mundo opressor em que vive. Isso pode acontecer por uma
fuga por vontade própria da personagem ou por motivos alheios a ela. Entretanto, o
fantástico irrompe no mundo pessoal em que a personagem vai se alojando, pois,
para o impessoal, o que foge da padronização é algo que quebra com suas regras,
algo estranho a ele. Assim, o fantástico não vem da personagem angustiar-se com o
estranho e o absurdo do mundo pessoal, mas sim do surgimento do mundo pessoal
no impessoal ou vice-versa. Assim, a personagem até consegue experimentar a
fuga do impróprio por um momento, mas algo ocorre levando embora o próprio,
deixando-o novamente na padronização.
Um exemplo disso é Auto-Estrada do Sul36, em que um homem anda de carro
na referida auto-estrada do título. Ele é o engenheiro. As pessoas em volta são
referidas pelos carros que têm, não apenas pelas marcas, mas pelas montadoras e
potências deles. De repente ocorre um engarrafamento, todos param. Voltam a
andar devagar, o engenheiro nota que a velocidade de todas as pistas é a mesma e
que pode ficar perto das pessoas que observa. O engarrafamento vai se arrastando
e, com o passar do tempo, todos vão formando pequenos grupos com os carros que
estão próximos para ajudarem-se. As pessoas ganham nomes, as afetividades
aparecem, saiu o gigantesco mundo do impessoal, e as pessoas se voltam para
pequenas comunidades onde cada um ajuda como pode, ou melhor, como é. O
pessoal vai espalhando-se. Até sentimentos perdidos como os de companheirismo,
compaixão e afeto voltam a ser sentidos. A personagem fantástica até consegue
apaixonar-se, o que era impossível na cidade. Dias e dias se passam (quem sabe
semanas), mas, de repente, os carros começam a andar, não mais alguns metros
como antes, mas andar normalmente, a velocidade vai aumentando e o engenheiro
36 CORTAZAR, Júlio. Auto Estrada Sul. In: Todos os Fogos o Fogo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.
33
(novamente inominado) se desespera, pois vai voltar para o mundo da cidade, da
correria, da falta de sentimentos, enfim, do impessoal.
Assim, nesse modo de lidar com o impessoal, o fantástico não é opressor
(apenas em alguns poucos casos), o que é opressor é o antes e o depois dele
irromper na obra.
Já em muitos dos contos de Rubião, a personagem saiu do impessoal, mas
agora vive isolada e solitária num mundo próprio e pessoal, notando parcialmente o
comportamento estranho da massa, mas não ligando para ela e desejando apenas o
isolamento, metamorfoseando-se e mudando de nome sem se importar, pois ambos
são fatores externos, que servem apenas para permitirem o contato do Dasein com
o Mitdasein. Mudanças de nomes é o que ocorre no conto Os Três Nomes de
Godofredo37. Nele, a personagem fantástica é um homem que passa quinze anos
comendo sozinho em um restaurante, de repente uma mulher aparece e começa a
sentar-se com ele, porém os dois não conversam. No dia em que o diálogo
acontece, ele descobre ter um nome que desconhecia e que essa é a sua segunda
esposa, e que a primeira ele matou em um acesso de ciúmes devido à sua
fidelidade. Sobre os dois casamentos, a personagem fantástica nada lembrava e sua
segunda esposa também não parecia ter lembranças muito concretas sobre o fato.
O que o surpreende é ela lhe dizer que ele nunca ficou em silêncio com ela. Nesse
ponto, ele começa a apaixonar-se por ela, mas de uma forma de posse, como se ela
fosse um objeto, e ambos vão para a casa deles (em que ele percebe um certo mau
gosto, o mau gosto dela). Ambos extravasam o amor e passam meses sem sair de
casa. Entretanto, com o tempo, ele passa a incomodar-se com a constante presença
dela e sua ignorância, um dia a enforca, por não poder dizer a ela o que se passava.
Sai sentindo-se liberto e volta para o restaurante, mas uma mulher muito parecida
com a segunda esposa senta-se a sua frente. Esta explica ser a sua primeira esposa
e não a segunda, que ele acabou de matar, acrescenta que o esquecimento não virá
para ele e o porquê de ninguém ir aquele restaurante: o dono é a personagem
fantástica. Foge e vai para sua casa, mas a primeira esposa está lá. Mata-a, mas
descobre na cozinha uma noiva sua e que, quando se casarem, voltarão para a
cidade da personagem, da qual ele não lembra.
37 RUBIÃO, Murilo. Os Três Nomes de Godofredo. In: A casa do girassol vermelho e outros contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
34
Nesse complexo conto, vemos que a personagem está no pessoal e
descobriu um mundo para si, onde sem saber como conviver com o mundo do
impessoal, refugia-se na solidão de um restaurante só dele (sua mente) e no
silêncio. No entanto, essa solidão libertária é impossível, pois suas mulheres (que se
confundem na caracterização para mostrar que na verdade são a mesma pessoa),
que representam o amor, que, por sua vez, representa a ligação do pessoal (ele),
para com o impessoal (mundo), sempre vêm incomodá-lo. Esse amor até o liga por
algum tempo com o mundo, mas ele o vê como uma vergonha que deve ser evitada
e eliminada sumariamente, porém o esquecimento, como sua “primeira” esposa diz,
é impossível, e ele tem que conviver nessa constante fuga e volta de uma sociedade
a qual não pertence.
Esse é o fantástico kafkiano, que começa em 1913 com a publicação de
Consideração, primeiro livro de Kafka e seu término é aqui colocado no chamado
pós-modernismo da década de oitenta, porém já agoniza no final dos anos sessenta.
Os textos que usam o fantástico das três últimas décadas do século passado e na
primeira deste têm um estilo mais variado e certamente merecem um estudo mais
aprofundado. Entretanto, esse não é o objetivo do presente trabalho, que pretende
apenas mostrar o que foi o fantástico do início do século XIX até o segundo terço do
século XX. Abriremos um espaço para, rapidamente, tratar de autores sul-
americanos que certamente escreveram literatura fantástica, mas não da mesma
forma como os dos três estilos aqui representados (do século XIX, de transição e
kafkiano).
Comecemos com Jorge Luís Borges, que, apesar de ter se aventurado na
prosa de ficção ainda na década de 40, têm um estilo muito diferente dos kafkianos.
Para começar, quando lemos Borges, temos a sensação de estar num jogo literário,
mas também matemático, físico, histórico, biológico... Ele não mostra um ser
humano oprimido pela sociedade, aliás, o ser humano nem é o foco central de sua
obra, como ocorre com todos os escritores que usaram essa literatura. Para Borges,
o que importa é o enredo, que pode girar num espelho, num livro, numa tradução,
numa mensagem, etc. A sensação que temos com esse autor é de ludicidade
intelectual.
Apesar de ter sido influenciado por diversos escritores fantásticos como
Stevenson e Bloy, e alguns que se aproximaram desse modo de literatura, como
Edgar Alan Poe, Borges usou o fantástico com outra finalidade, não de um
35
engajamento ideológico, mas sim de simples instrumento intelectual (o uso de
simples não é para valorar), apesar de também conseguir causar reflexões.
Talvez o que o autor perceba é o absurdo do mundo, e a sua forma de
superá-lo é evitando-o.
Uma frase que exprime bem o que foi Borges é a que ele proferiu quando
concedeu uma entrevista ao poeta brasileiro Álvareo Alves Faria em 1976: “Meus
olhos fechados para o mundo me acostumam ainda mais com a solidão”; uma
solidão pessoal e literária.
Outro ponto que gostaria de tocar sobre o fantástico é o realismo mágico. Em
seu ensaio sobre o assunto, Irlemar Chiampi38 coloca no “mesmo saco” Murilo
Rubião e Borges, Garcia Márquez e Cortazar, causando uma confusão, muito por
uma aparente falta de leitura das obras, pois se aplicarmos a sua teoria semiótica
nos contos, Rubião, Cortazar e Borges não entrariam nessa classificação. Parece
que a autora pensa que ser latino-americano e escrever algo meio diferente da
realidade são características suficientes para o autor ser classificado como realismo
maravilhoso (ela acha que esse termo é mais adequado pelo fato de o maravilhoso
ser literariamente mais aceito que mágico, pela conotação que a “magia” tem para a
sociedade, e pelo termo maravilhoso já ser usado nos contos de fadas. Mesmo que
Carpentier tenha usado o mesmo termo que a autora em seu prefácio, que em breve
será analisado, ele acaba causando uma confusão justamente por ser usado nos
contos de fadas, já que existem pessoas, atualmente, classificando de realismo
maravilhoso livros como “As Crônicas de Nárnia” e “O Senhor dos Anéis”).
Entretanto, o livro vale a pena ser folheado na parte final, das referências
bibliográficas.
O realismo mágico é um ethos local que fez surgir uma determinada forma
estética, como ocorreu em outros fantásticos e como ocorre em quase toda a
literatura. O marco inicial dessa literatura é 1948, quando Alejo Carpentier escreve o
romance O Reino deste Mundo,39 principalmente pelo prefácio desse livro, espécie
de manifesto mágico-realista.
Ali, Carpentier mostra o ethos e a estética de seu trabalho, que conquistou
muitos adeptos como Austrias e Garcia Márquez. Carpentier começa falando do que
para ele é um fantástico extremado, presente no Cantos de Maldoror, de
38 CHIAMPO, Irlemar. O Realismo Maravilhoso. São Paulo: Perspectiva, 1980. 39 CARPENTIER, Adejo. O Reino deste Mundo. Rio de Janeiro: Record-Atalaya, 1985.
36
Lautréamont, e nos surrealistas: “E hoje existem códigos para o fantástico baseados
no princípio do burro devorado por um figo, proposto nos Cantos de Maldoror como
suprema inversão da realidade...”40
Claramente Carpentier não pensava em Kafka ou Blanchot, mas num
surrealismo que aqui não consideramos fantástico. O que ele diz é que na Europa a
realidade em que eles vivem não tem nada de mágico, por isso eles têm que
inventar as quebras de realidade na literatura, entretanto na América é diferente: Tudo isso ficou evidente durante minha permanência no Haiti [local onde a trama se passa], quando vivi um contato diário com aquilo que poderíamos chamar de Realidade Maravilhoso. Pisava eu numa terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditavam nos podres licantrópicos de Mackandal, a tal ponto, que esta fé produziu um milagre no dia de sua execução.41 Assim, segundo esses padrões, existe uma magia na própria realidade sul-
americana que deve ser retratada nessa forma de romance. Isso decorre da
mestiçagem, dos costumes negros e indígenas ainda presentes na nossa cultura
americana e das crenças que esses povos trouxeram para juntar-se com a nossa
cultura cristã. É isso que deve ser retratado, pois: “... a América está ainda muito
longe de esgotar de ter esgotado seu caudal de mitologias.”42
Essa cor local acentuada fez o realismo mágico estar perto da população,
retratando seus problemas e frustrações e, por isso – somado ao fato de que os
autores dessa literatura têm tendências de esquerda –, nas ditaduras de direita que
se espalharam pelo continente a partir da metade do século passado, o realismo
mágico, que já tinha por estética dar valor não a um personagem, mas a vários de
uma determinada região e contar não somente a história da pessoa, mas da
sociedade, acabou por retratar as mazelas do poder centrado em suas obras.
A base do pensamento deles, portanto, vinha dos sociólogos e pensadores da
esquerda latino-americanos, como Otávio Paz.
O que se nota é que o realismo mágico e o fantástico kafkiano têm uma raiz
em comum, o mundo real. No primeiro, é mostrada a sociedade mestiça e seus
costumes próprios, oprimida pelo poder centralizador e o absurdo de ditaduras e
colonizações; o fantástico kafkiano é mais intimista, com a sociedade oprimindo o
indivíduo. O que os converge é que em ambos não ocorrem mudanças de mundo,
40 CORTAZAR, Júlio. Auto Estrada Sul... 41 Ibid. 42 Ibid.
37
retratam o absurdo da sociedade e do mundo em que vivem; o segundo através das
mitologias dos oprimidos, o primeiro através da solidão do oprimido.
Assim, o único representante brasileiro do realismo mágico fica sendo José J.
Veiga.
38
3 O FANTÁSTICO
Agora que já vimos os diferentes estágios (sem valoração) que a literatura
fantástica teve através dos tempos, está na hora de uma definição precisa do que é
esta literatura.
O fantástico ocorre quando, em um universo narrativo com leis que sejam as
mesmas do mundo “real”, ocorre uma quebra nas leis desse universo narrativo, o
que faz com que fatos não possíveis pelas leis do mundo natural ocorram. Os
motivos dessas quebras foram os objetos de estudo do presente trabalho.
Mas não é apenas isso. Para o fantástico ocorrer não pode haver alegoria.
Entendida nos termos já colocados anteriormente, alegoria é quando textualmente
se diz A, mas na interpretação temos B. Ou seja, a obra tem um significado “oculto”
(B), por trás do significado “aparente” (A).
A seria uma relação lógica entre o significante e o significado comumente
associado a este, enquanto em B, os significantes não corresponderiam somente ao
sentido comumente associados a eles, mas teriam significados múltiplos, o que
ocorreria pela sua disposição e o jogo entre eles mesmos.
O que ocorre na alegoria é que esse significado “oculto” (B) é facilmente
decifrável na análise da disposição dos significantes, do ethos do autor e do
contexto histórico da obra. Um bom exemplo desse recurso literário é o já citado O
Fantasma de Canterville, de Oscar Wilde. Essas obras (apesar de todas as obras
literárias serem multiinterpretativas) são de mais fácil interpretação por serem mais
restritivas.
Caso ocorra a alegoria no texto, a multiplicidade de sentidos da obra acaba e
deixamos de ler o sentido “aparente” (A) para lermos apenas o sentido “oculto” B.
Como a quebra nas leis do mundo ficcional ocorre no A, ela acaba por não se
realizar, impedindo assim o fantástico.
Ao invés da alegoria, o fantástico deve ser entendido como símbolo. Na
alegoria lê-se apenas o B, o significado “oculto”, pois sua interpretação é clara. Já no
símbolo acontece algo mais complexo: a disposição dos significantes causa
significados “ocultos” (B) múltiplos, o que dá margem para interpretações variadas
da obra, todas estas possíveis e, por vezes, complementares. Um exemplo desse
recurso em textos literários é a também já citada A Metamorfose, de Franz Kafka.
39
Dela são feitas leituras marxistas, sexual-psicanalistas, sócio-hermenêutica,
religiosa, denunciatória (a condição dos judeus e uma espécie de antecipação do
holocausto), e até como um homem que acordou metamorfoseado em inseto (que
seria o A, de Hansen). Algumas dessas leituras são contraditórias, mas a maioria
poderia ser combinada e em nada empobreceria a análise (outros exemplos são as
rápidas leituras que fizemos aqui do romance de Kafka e dos contos Cortazar e
Rubião que podiam ser acrescidas de várias outras interpretações e nada
perderiam).
A parte da definição que diz que o universo textual deve ter as mesmas leis
que a do mundo “real”, faz com que tenhamos de excluir os contos de fadas (ou
seja, o maravilhoso) do fantástico, e o símbolo exclui as literaturas de massa, como
o terror puro.
Outro fator importante no fantástico e que geralmente ocorre, com exceção
apenas de Borges e dos autores anteriores ao século XVIII, é que ele é um ethos
coletivo e sua estética fantástica ocorre por uma revolta contra algo sentido na
época. Por isso Blanchot escrevia como Kafka sem o ter lido, assim como Rubião.
Por isso Heidegger escreve depois de Kafka e com o pensamento parecido com o
do literato. É isso que críticos e pensadores de renome ignoram ao cuidar do
fantástico, como Jean-Paul Sartre43, no ensaio intitulado Aminadab, ou o fantástico
considerado como uma linguagem, onde o filósofo examina o romance Aminadab de
Blanchot e O Castelo de Kafka.
A análise do corpo textual de ambas as obras aborda a relação das
personagens com os objetos e dos objetos com o mundo, e daí surge o fantástico.
Aqui não foi usada essa análise porque ela não se refere à maioria dos autores
kafkianos, mas a Kafka particularmente. A forma como é colocada a questão parece
muito o que Heidegger fala sobre ocupação, e Sartre percebe isso.
O problema no ensaio é que, já no final, Sartre afirma que a falta de qualidade
de Blanchot vem de ter imitado (sendo que ele dizia que não tinha lido), Kafka: “Por
culpa de Blanchot, agora há um estereótipo do fantástico ‘a la Kafka’ (...) o fantástico
dá a impressão de estar chapado”.44 “Ele [Blanchot] é engenhoso e sutil, às vezes
profundo, ama as palavras; só lhe falta encontrar seu estilo”.45
43 SARTE, Jean-Paul. Situações I. São Paulo: Cosac Naify, 2005. 44 CARPENTIER, Adejo. Op. cit., p. 148. 45 Ibid., p. 149.
40
Depois de um discurso relevante, Sartre acaba por perder-se completamente
em virtude da sua visão de literatura. Pensando assim, não é possível explicar por
que surgem autores que escrevem de forma parecida em determinadas épocas.
Dessa maneira, o francês recusa a importância do ethos coletivo na estética, e as
influências que o estar no mundo provoca na forma de pensar do ser humano.
Voltando à definição, o fantástico é uma forma estética simbólica que ocorre
quando num universo narrativo em que as leis são as mesmas leis naturais do
mundo “real”, ocorre uma quebra nesse universo narrativo que vai de encontro a
essas leis. Esse símbolo vem de um ethos geralmente coletivo. Esse ethos
subordina toda a estética.
Agora podemos topicalizar os tipos de fantástico que existiram em diferentes
tempos, sem a pretensão de uma definição mais apurada de cada um, apenas com
o intuito de mostrar o que já foi escrito com esse modo literário e o que é
comumente confundido com ele.
Antes do século XVIII temos aparições esporádicas do fantástico na literatura,
com a intenção de provocar o efeito de ironia ou passar uma moral ao leitor, como já
colocado anteriormente.
Em meados do século XVIII surge a literatura gótica, que não chegou a ser
fantástica, pois todo o clima da narrativa já é sobrenatural desde o início, o que
impede o universo narrativo ser regido por leis naturais do mundo “real”. Logo, o
gótico é excluído pela mesma razão dos contos de fadas, embora os dois estilos
literários não tenham em comum nem a forma nem o ethos.
O primeiro autor gótico foi Horace Walpole, que escreveu em 1764 a novela O
Castelo de Otranto, mais de três décadas antes do romantismo alemão. O nome
vem da arquitetura gótica da época medieval, que tinha formas arredondadas, o que
contrastava com as formas sóbrias e retas da arquitetura neoclássica vigente
naquela época. Então, o nome já é um dos indícios da negação do racionalismo
neoclássico por esses autores.
Depois veio o fantástico do século XIX, já discutido neste trabalho.
No final desse mesmo século iniciou-se, com H.G. Wells e Ray Bradbury, um
novo tipo de fantástico que dura até hoje: a ficção científica. Esse tipo de literatura
tem duas vertentes: uma que mostra os problemas que ocorrem no mundo na época
em que o livro foi escrito jogando seu cronotopo para o futuro, e outra que se utiliza
de objetos e máquinas futuristas. A segunda sempre é fantástica, já a primeira
41
vertente pode não ser como também pode ser. Por exemplo, se a narrativa começa
em um mundo com robôs falantes as leis naturais do mundo “real” não foram
respeitadas, logo ela não se encaixará pelos mesmos motivos dos textos góticos e
dos contos de fadas. Porém, quando começa em um mundo com leis naturais do
mundo “real”, mesmo que em uma nave espacial, que só depois saberemos que
pousará em uma galáxia distante, podemos considerar fantástico, pois ocorre uma
quebra das leis naturais do mundo real dentro da narrativa textual que, a priori, as
seguiam.
Um problema que isso causa é o da recepção. Um texto do início do século
XX que tiver um comunicador de mão e um tubo que passe imagens de pessoas,
pode parecer normal para nós hoje em dia. Porém, devemos considerá-lo fantástico,
pois, na época em que foi escrito, isso era uma quebra das leis naturais do mundo
“real” dentro da estrutura narrativa, ou seja, o ethos do autor estava utilizando do
fantástico em sua estética.
No início do século XX tivemos o já analisado fantástico de transição e nessa
mesma época apareceu o terror puro, que não pode ser considerado fantástico por
não ser simbólico pela sua própria impossibilidade estética. O significado do texto é
o mais superficial e aparente, e sua intenção é apenas assustar-nos.
Logo depois, surge o fantástico kafkiano já mencionado, e após o também já
citado realismo mágico.
Como já dito, o fantástico continua existindo, mas não está na alçada deste
trabalho analisá-lo. Ele existe assim como sempre existirá, como fala Sartre, numa
das boas partes do ensaio já citado: “... Kafka foi apenas uma etapa; por meio dele,
assim como de Hoffman, de Poe, de Lewis Carroll e dos surrealistas, o fantástico
prossegue no processo contínuo que deve, no limite, confluir com aquilo que sempre
foi”46.
Excluindo o fato de ele citar autores que, nas nossas considerações sobre o
tema, não se encaixam no nosso pensamento de fantástico, a idéia deve ser
considerada: o fantástico é inerente ao ser humano, sempre existiu de uma forma ou
de outra, e sempre existirá.
46 Ibid., loc. cit.
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