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Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas, ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina , 18 e 19 de agosto de 2011. GT5 Gênero e Violência Coordenadora Valéria Cristina Siqueira Ferreira 1 Diferenças nas tendências das taxas de homicídio entre mulheres brancas e negras no Brasil: o aumento das desigualdades entre 2003 e 2008. Bruna Cristina Jaquetto Pereira Ana Claudia Jaquetto Pereira Ao que indicam os escassos números oficiais existentes, a violência contra as mulheres é um fenômeno de amplitude considerável na sociedade brasileira: o Brasil ocupava, em 2010, a 12ª posição em um ranking mundial de homicídio de mulheres. A atuação dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil nas últimas décadas tem sido de inegável valor para dar visibilidade ao problema e propor mecanismos para sua superação. Sua influência na formulação da Constituição de 1988, a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) e, mais recentemente, a implantação da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) são exemplos de contribuições suas para a luta pela emancipação feminina e pelo direito das mulheres a uma vida livre de violência. Tais demandas do movimento feminista tiveram ainda como conseqüência a inserção do tema da violência contra as mulheres na agenda política do governo, na medida em que foram traduzidas em políticas públicas, como por exemplo, a já citada Lei Maria da Penha, os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, a Política e o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, as Diretrizes de Abrigamento das Mulheres em situação de Violência, as Diretrizes Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta, Norma Técnica do Centro de Atendimento à Mulher em situação de Violência, Norma Técnica das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, entre outros. Faz-se, neste ponto necessário analisar quantitativa e qualitativamente as transformações desencadeadas no período, de maneira a indicar práticas que obtiveram resultados positivos, a orientar revisões, e a identificar lacunas. Com tal propósito, este Mestranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) email para contato: [email protected] Doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Consultora do CFEMEA email para contato: [email protected]

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Diferenças nas tendências das taxas de homicídio entre mulheres brancas e negras no Brasil:

o aumento das desigualdades entre 2003 e 2008.

Bruna Cristina Jaquetto Pereira

Ana Claudia Jaquetto Pereira

Ao que indicam os escassos números oficiais existentes, a violência contra

as mulheres é um fenômeno de amplitude considerável na sociedade brasileira: o Brasil

ocupava, em 2010, a 12ª posição em um ranking mundial de homicídio de mulheres. A

atuação dos movimentos feministas e de mulheres no Brasil nas últimas décadas tem sido de

inegável valor para dar visibilidade ao problema e propor mecanismos para sua superação.

Sua influência na formulação da Constituição de 1988, a criação das Delegacias

Especializadas no Atendimento à Mulher (DEAMs) e, mais recentemente, a implantação da

Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) são exemplos de contribuições suas para a luta pela

emancipação feminina e pelo direito das mulheres a uma vida livre de violência.

Tais demandas do movimento feminista tiveram ainda como conseqüência a

inserção do tema da violência contra as mulheres na agenda política do governo, na medida

em que foram traduzidas em políticas públicas, como por exemplo, a já citada Lei Maria da

Penha, os Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres, a Política e o Pacto Nacional de

Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, as Diretrizes de Abrigamento das Mulheres

em situação de Violência, as Diretrizes Nacionais de Enfrentamento à Violência contra as

Mulheres do Campo e da Floresta, Norma Técnica do Centro de Atendimento à Mulher em

situação de Violência, Norma Técnica das Delegacias Especializadas de Atendimento à

Mulher, entre outros.

Faz-se, neste ponto necessário analisar quantitativa e qualitativamente as

transformações desencadeadas no período, de maneira a indicar práticas que obtiveram

resultados positivos, a orientar revisões, e a identificar lacunas. Com tal propósito, este

Mestranda em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) – email para contato: [email protected] Doutoranda em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ). Consultora do CFEMEA – email para contato: [email protected]

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trabalho busca identificar e mensurar possíveis assimetrias entre mulheres brancas e negras na

vitimização por homicídios, bem como o papel das políticas públicas neste cenário. Para

tanto, apresenta dados inéditos, desagregados por raça, sobre homicídios de mulheres entre

2003 e 2008, produzidos pelo autor do Mapa da Violência, Julio Jacobo Waiselfisz, a pedido

do CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria.

As autoras têm consciência de que a utilização dos dados referentes a

homicídios significa capturar uma fração reduzida das formas de violência contra as mulheres,

na medida em que muitas delas não redundam em morte. No entanto, a análise dos homicídios

de mulheres no período de 2003 a 2008 justifica-se por partilharem de pressupostos

enunciados pelo Mapa (WAISELFISZ, 2011, p.10). O primeiro deles é que o homicídio

revela “a violência levada a seu grau mais extremo”. Neste sentido, “homicídio” é

caracterizado pela “presença de uma agressão intencional de terceiros, que utilizam qualquer

meio para provocar lesões, danos ou a morte da vítima”. O segundo pressuposto é que a

quantificação de outras formas de violência tem abrangência extremamente limitada, uma vez

que nem todas as formas de violência são notificadas e os sistemas de registro são deficientes

ou carecem de integração. No caso dos homicídios, o Sistema de Informações sobre

Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde – a que recorre o Mapa e, portanto, o presente

trabalho – centraliza as informações de óbitos em todo o país e cobre um contingente, se não

universal, bastante abrangente das mortes acontecidas e de suas causas1.

As informações sobre raça e cor das vítimas pautam-se pelo esquema

classificatório do IBGE: branca, preta, amarela, parda e indígena. A categoria “negras” é

formada pela soma das classificações “pretas” e “pardas”, seguindo também a metodologia do

IBGE. As categorias “amarelas” e “indígenas”, não serão objeto de investigação neste

trabalho. Seguindo também orientação dos autores do MAPA, esclarecemos que o índice de

vitimização e as taxas de homicídios são mais aproximativos que assertivas. Isso porque, para

o PNAD, é utilizada a autodeclaração, pela qual o entrevistado escolhe entre as cinco

categorias de raça e etnia mencionadas. Para o SIM, a classificação é realizada por agente

externo. De forma que as classificações não são necessariamente coincidentes, mas, ainda

assim, permitem vislumbrar a dimensão do problema (WAISELFISZ, 2011).

1 Sobre os limites existentes quanto ao uso dos dados do SIM, consultar Mapa da Violência 2011 (p. 15) e

Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010 (p. 29).

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Sobre a totalidade das mulheres, o Caderno Complementar 2 do Mapa 2011

– que trata dos homicídios de mulheres no Brasil – indica que de 1998 a 2008 foram

assassinadas 42 mil mulheres, ritmo que acompanhou o crescimento da população feminina.

Assim, as taxas anuais ficaram em aproximadamente 4,25 homicídios para cada 100 mil

mulheres, não tendo havido grande variação no período. Em 2008, o principal meio utilizado

nos homicídios femininos foram as armas de fogo, que corresponderam a 50,9% das mulheres

assassinadas. A seguir, aparecem os meios que exigem contato direto: objetos cortantes ou

penetrantes (24,6%), contundentes (7,7%), estrangulamento/sufocação (6,1%), etc. Quanto ao

local do incidente que originou as lesões causadoras da morte da vítima, observa-se uma

diferença substancial quanto ao homicídio de homens: residência ou habitação corresponde ao

local de quase 40% dos homicídios de mulheres, enquanto que somente a 17% homens. No

entanto, é importante ressaltar que, quanto a este dado, existe um índice significativo de

subnotificação – 30% dos registros não têm essa informação (WAISELFISZ, 2011a, p. 2).

Estas informações vão ao encontro de outros estudos sobre o perfil da violência contra as

mulheres no Brasil, ratificando que ela ocorre principalmente em contexto doméstico e

familiar e é praticada, com maior freqüência, pelo companheiro ou ex-companheiro.

Para o período aqui considerado – 2003 a 2008 – observa-se, conforme

dados da Tabela 1, um aumento de 5,2% no número de mulheres assassinadas, que atingiu, no

período, a marca de 21.804 mortes.

Tabela 1 - Número de homicídios femininos por UF e região. Brasil. 2003/2008.

UF/REGIÃO 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Total Δ%

AC 13 10 13 14 16 10 76 -23,1

AP 15 15 15 13 11 13 82 -13,3

AM 35 45 46 44 47 62 279 77,1

PA 90 90 124 135 138 160 737 77,8

RO 51 30 44 50 27 36 238 -29,4

RR 6 5 10 7 11 9 48 50,0

TO 22 18 21 23 29 20 133 -9,1

NORTE 232 213 273 286 279 310 1.593 33,6

AL 46 52 55 72 77 74 376 60,9

BA 118 175 184 217 234 289 1.217 144,9

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CE 50 59 59 81 111 93 453 86,0

MA 66 53 56 63 61 77 376 16,7

PA 28 53 49 59 63 82 334 192,9

PE 237 261 264 300 273 290 1.625 22,4

PI 31 24 39 32 34 38 198 22,6

RN 30 17 37 36 37 56 213 86,7

SE 24 21 27 32 33 34 171 41,7

NORDESTE 630 715 770 892 923 1.033 4.963 64,0

ES 109 101 119 146 146 160 781 46,8

MG 345 340 351 377 379 351 2.143 1,7

RJ 503 482 481 490 403 355 2.714 -29,4

SP 1.010 848 770 760 576 642 4.606 -36,4

SUDESTE 1.967 1.771 1.721 1.773 1.504 1.508 10.244 -23,3

PR 222 241 237 241 236 297 1.474 33,8

RS 174 192 204 157 188 213 1.128 22,4

SC 59 71 61 86 67 82 426 39,0

SUL 455 504 502 484 491 592 3.028 30,1

DF 72 58 56 55 66 72 379 0,0

GO 108 124 120 131 120 153 756 41,7

MT 88 98 88 71 96 81 522 -8,0

MS 59 48 63 48 53 48 319 -18,6

CENTRO-OESTE 327 328 327 305 335 354 1.976 8,3

BRASIL 3.611 3.531 3.593 3.740 3.532 3.797 21.804 5,2

Fontes: SIM/SVS/MS

Tabulação: Julio Jacobo Waiselfisz

Numa leitura superficial, poder-se-ia acreditar que as políticas públicas não

obtiveram impacto significativo no número de homicídios de mulheres, considerando que a

Lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006. No entanto, a análise dos dados desagregados

por raça permite a formulação de uma hipótese diversa. Conforme a Tabela 2, houve uma

queda de 11,6% no número de homicídios de mulheres entre 2003 e 2008 – -11,6% – ao qual

correspondeu, no mesmo período, a um aumento no homicídio de mulheres negras da ordem

de 20,9%. O Gráfico 1 permite uma observação mais clara do fenômeno.

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Tabela 2 - Número de homicídios femininos segundo raça/cor e UF/região. Brasil.

2003/2008.

UF/REGIÃO Raça/cor

Brancas Negras

2003 2004 2005 2006 2007 2008 Δ% 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Δ%

AC 6 3 5 6 7 5 -16,7 7 7 8 8 9 5 -28,6

AP 2 1 2 3 4 0 -100,0 13 14 13 10 7 13 0,0

AM 5 11 6 11 4 6 20,0 30 34 40 33 43 56 86,7

PA 15 13 24 20 26 25 66,7 75 77 100 115 112 135 80,0

RO 22 17 14 20 8 16 -27,3 29 13 30 30 19 20 -31,0

RR 1 2 1 4 1 4 300,0 5 3 9 3 10 5 0,0

TO 5 3 6 4 3 4 -20,0 17 15 15 19 26 16 -5,9

NORTE 56 50 58 68 53 60 7,1 176 163 215 218 226 250 42,0

AL 5 9 8 6 10 3 -40,0 41 43 47 66 67 71 73,2

BA 18 21 22 21 27 34 88,9 100 154 162 196 207 255 155,0

CE 10 15 15 17 27 19 90,0 40 44 44 64 84 74 85,0

MA 9 9 8 7 12 9 0,0 57 44 48 56 49 68 19,3

PA 2 5 6 10 7 8 300,0 26 48 43 49 56 74 184,6

PE 53 56 38 35 35 45 -15,1 184 205 226 265 238 245 33,2

PI 7 10 9 4 9 6 -14,3 24 14 30 28 25 32 33,3

RN 14 4 9 9 12 7 -50,0 16 13 28 27 25 49 206,3

SE 8 6 4 9 11 10 25,0 16 15 23 23 22 24 50,0

NORDESTE 126 135 119 118 150 141 11,9 504 580 651 774 773 892 77,0

ES 41 33 31 43 30 30 -26,8 68 68 88 103 116 130 91,2

MG 145 112 139 140 129 133 -8,3 200 228 212 237 250 218 9,0

RJ 229 230 207 221 188 133 -41,9 274 252 274 269 215 222 -19,0

SP 631 564 509 520 390 442 -30,0 379 284 261 240 186 200 -47,2

SUDESTE 1.046 939 886 924 737 738 -29,4 921 832 835 849 767 770 -16,4

PR 190 200 187 194 195 242 27,4 32 41 50 47 41 55 71,9

RS 151 166 182 127 159 181 19,9 23 26 22 30 29 32 39,1

SC 51 65 55 71 60 74 45,1 8 6 6 15 7 8 0,0

SUL 392 431 424 392 414 497 26,8 63 73 78 92 77 95 50,8

DF 16 9 15 9 12 9 -43,8 56 49 41 46 54 63 12,5

GO 45 64 44 47 52 47 4,4 63 60 76 84 68 106 68,3

MT 34 38 37 28 42 26 -23,5 54 60 51 43 54 55 1,9

MS 32 18 32 24 26 26 -18,8 27 30 31 24 27 22 -18,5

CENTRO-OESTE 127 129 128 108 132 108 -15,0 200 199 199 197 203 246 23,0

BRASIL 1.747 1.684 1.615 1.610 1.486 1.544 -11,6 1.864 1.847 1.978 2.130 2.046 2.253 20,9

Fontes: SIM/SVS/MS

Tabulação: Julio Jacobo Waiselfisz

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Como conseqüência, a desigualdade entre brancas e negras foi acentuada.

Em 2008, a razão de mortalidade por 100 mil habitantes das mulheres negras (4,7) era 45,7%

superior à observada entre as mulheres brancas (3,2),conforme demonstrado na tabela 3.

Conforme observam Paixão et al. (2010, p. 254), embora a queda das declarações de óbito

sem registro de raça tenha contribuído para o crescimento dos números apontados para o

homicídio de pretos/as e pardos/as, ela não justifica, isoladamente, o incremento observado.

Tabela 3 - Taxa de homicídios femininos por raça/cor e Índices de Vitimização segundo

UF. Brasil. 2003/2008.

REGIÃO Taxas (em 100 mil)

Vitimização*(%) Brancas Negras

Norte 3,2 4,4 35,6

Nordeste 1,7 4,7 176,8

Sudeste 3,1 4,5 46,4

Sul 4,4 3,4 -23,9

Centro-Oeste 3,6 6,3 77,1

BRASIL 3,2 4,7 45,7

Fontes: SIM/SVS/MS

Tabulação: Julio Jacobo

Waiselfisz

* Indica em que proporção morreram mais mulheres negras do que brancas.

1.747 1.684 1.615 1.610 1.486 1.544

1.864 1.847 1.978

2.130 2.046

2.253

0

500

1.000

1.500

2.000

2.500

2003 2004 2005 2006 2007 2008

Gráfico 1 - Homicídio de mulheres por raça 2003 a 2008

Brancas

Negras

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Apesar da disparidade na proporção entre a proporção de mulheres brancas

e negras vítimas de homicídio não se constituir exatamente num fenômeno novo, observa-se

por parte do Estado e parte dos estudos acadêmicos um profundo silêncio a seu respeito,

permanecendo o fenômeno relegado à invisibilidade. Para tanto, contribuem alguns fatores

dignos de nota. Em primeiro lugar, a ênfase quantitativa – já que 92% das vítimas de

homicídio em 2008 foram homens (WAISELFISZ, 2011, p. 154) – tem levado os

pesquisadores a observarem com maior atenção a prevalência de homicídio contra indivíduos

negros do sexo masculino. Sem contestar a relevância de considerações cuidadosas sobre o

assunto, avaliamos ser necessário acompanhar com acuidade os homicídios de mulheres,

devido a suas particularidades, que incluem, entre outros aspectos, uma longa trajetória de

violência até o óbito da vítima – ainda que sua proporção seja reduzida em comparação aos

homicídios masculinos.

Por outro lado, é necessário que as pesquisas quantitativas sobre violência

incorporem com maior freqüência os dados sobre cor/raça e sexo de vítimas e agressores.

Estas informações permitem vislumbrar as assimetrias quanto aos dados encontrados para as

mulheres brancas, as mulheres negras, os homens brancos e os homens negros, de maneira a

permitir uma efetiva análise sobre a divergência de suas experiências. Além disso, estes dados

são fundamentais para a compreensão de que as políticas públicas de combate à violência

precisam incorporar cor/raça e gênero como eixo de intervenção e de análise. Ressalta-se que

estas pesquisas somente serão possíveis em um contexto em que haja uma confiável e efetiva

sistematização de dados. Segundo pesquisa do Observe – Observatório de Monitoramento da

Lei Maria da Penha (PASINATO, 2010, p. 111) tanto as DEAMs quanto os Juizados

apresentam enormes deficiências em seus sistemas de informação, o que torna a coleta dos

dados bastante precária.

Por fim, a teoria feminista mainstream contribui também para a

invisibilidade do fenômeno abordado por este trabalho ao postular que a violência deriva de

uma ordem simbólica que subordina aos homens todas as mulheres. A universalidade desta

concepção ignora as desigualdades entre as mulheres, que tornam algumas mais sujeitas à

violência que outras, conforme ressalta Mireya Suárez:

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(...) quando a análise leva em consideração as dificuldades diferenciadas que os

agressores devem enfrentar para realizar o ato violento, necessariamente se chega à

conclusão de que algumas mulheres correm maiores riscos do que outras. O fato de as mulheres brancas e negras serem consideradas inferiores ao homem branco, ou

sujeito paradigmático, não estabelece qualquer igualdade entre elas. Suas

desigualdades manifestam-se não somente quanto ao nível de exposição diferencial

ao risco – como, por exemplo, morar em bairros mais urbanizados e policiados ou

transitar no próprio automóvel – mas também quanto à quota de poder de que

dispõem para enfrentarem tais riscos. Assim, os agressores podem ser, com o

concurso da cultura, automotivados, mas certamente enfrentam melhores ou piores

oportunidades para praticarem seus atos, e essas oportunidades estão estreitamente

relacionadas aos lugares diferentes que as mulheres ocupam na hierarquia social (SUÁREZ, 2008, p. 110).

Em consonância com este entendimento, apresentamos algumas variáveis ou

contextos específicos que alicerçam esta crescente assimetria, ainda tão pouco investigada. A

primeira delas é que grande parte das mulheres negras está submetida a condições

socioeconômicas precarizadas, em proporção superior às mulheres brancas sujeitas à mesma

situação.

Conforme observam Paixão et al (2010, p. 22), o racismo operante na

sociedade brasileira (baseado na aparência física) atua tanto na formação de mecanismos de

prestígio social quanto no acesso às oportunidades de mobilidade social ascendente e de

direitos sociais (entre outros). Para o autor, “isso faz com que as linhas de classe e de cor, no

Brasil, se tornem tão coerentes, posto mesmo se reforçarem mutuamente a cada instante.”

(2010, p. 22). Somado à dominação de gênero, este fator contribui para formar um quadro no

qual as mulheres negras constituem o grupo que apresenta os piores indicadores sociais do

país. Em relação aos indicadores encontrados para homens brancos, mulheres brancas e

homens negros, elas apresentam menor renda, piores condições de emprego, habitação e

transporte, entre outros. Neste sentido, Suárez afirma que (op. cit., p. 109): “(...) aos

obstáculos que enfrentam por serem mulheres e negras somam-se as desvantagens,

compartilhadas pela maior parte dos negros, de se situarem nos segmentos mais desprovidos

de recursos básicos e de direitos de cidadãos.”

Neste cenário, a exposição das mulheres negras exposição à violência

obedece a complexas dinâmicas sociais e combina-se com a limitação de seus recursos para

opor-se a ela. Ou seja, as mulheres negras, em geral, tanto vivem em contextos sociais mais

violentos quanto têm menos informações sobre seus direitos e menos acessos a mecanismo de

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denúncia do agressor e a sua proteção. Em termos práticos, estas dificuldades se traduzem em

não dispor de dinheiro para ir a uma cidade próxima para denunciar a violência sofrida na

DEAM ou para fazer um exame de corpo de delito no IML, não dispor de recursos financeiros

para contratar um advogado, não ter a quem delegar o cuidado dos filhos enquanto se ocupa

da denúncia, entre muitos outros muitos fatores.

Entretanto, o contexto sócio-econômico não é a única variável a ser

considerada. Um segundo elemento explicativo é a possibilidade de que os mecanismos de

proteção dos direitos das mulheres situados nos ambientes policial e judiciário respondam

com menos eficiência às denúncias das mulheres negras, em comparação com as denúncias

das mulheres brancas. Trata-se do fenômeno chamado por ativistas e acadêmicos de “racismo

institucional”

Há que se apontar novamente uma importante lacuna quer nos estudos sobre

relações raciais e a justiça, quer nas investigações sobre o encaminhamento das denúncias das

mulheres. Embora existam estudos sobre o racismo institucional nas instituições jurídicas,

eles contemplam quase que exclusivamente a acentuada criminalização e o encarceramento de

homens e mulheres pretos/as e pardos/as e o julgamento de ações pelo crime de racismo e

injúria racial. Não se trata de subtrair a importância de temas sobremaneira relevantes, mas de

apontar que formas mais sutis de racismo institucional devem, também, pautar a agenda de

investigação acadêmica. Da mesma forma, os estudos sobre o encaminhamento e as respostas

do aparato policial e jurídico às denúncias de violência por parte das mulheres não pode

prescindir da dimensão racial. Uma vez admitidos o racismo e a dominação de gênero como

elementos estruturantes das relações sociais, não apenas é fundamental saber como as

denúncias de violência por parte das mulheres têm sido tratadas nos âmbitos policial e

jurídico, como também se faz necessário investigar se existem diferenças entre as respostas

dadas às mulheres brancas em relação àquelas obtidas pelas negras.

Até a existência de pesquisas mais sólidas, esta hipótese se respalda na

projeção de análises em que as investigações sobre racismo institucional estão mais

avançadas, como, por exemplo, aquelas provenientes da área da saúde e da educação. Se, por

um lado, apontam para uma maior dependência de pretos/as e pardos/os dos serviços e ações

públicos – em virtude de suas condições socioeconômicas – elas apontam ainda que o grupo

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por eles constituídos é aquele que mais observa barreiras para obter acesso a tais recursos.

Para Paixão et al. (2010, p. 121), este fato “tanto aponta para os temas de um grupo

específico, e suas particularidades no acesso aos recursos, como, ao mesmo tempo, para uma

questão que corresponde ao verdadeiro eixo da efetiva universalização das políticas públicas”.

O terceiro elemento explicativo para as assimetrias na proporção de

homicídios de mulheres negras e brancas se baseia no fato de que as representações atribuídas

às primeiras as colocam de forma inferior na hierarquia social. O modo como são retratadas as

mulheres negras pela literatura e pela teledramaturgia permite uma análise sobre a visão que a

sociedade em geral tem delas. Quase que invariavelmente, as mulheres negras são

representadas como criaturas sensuais, erotizadas, bestializadas e instintivas, ou então como

criaturas dóceis, resistentes e submissas. Estes atributos, diametralmente opostos aqueles que

caracterizam o sujeito paradigmático – masculino, branco, racional –, colocam as mulheres

negras como seres mais próximos da natureza. Fica assim objetivada a separação entre o

corpo e a alma indicada por Quijano (2005, p. 239). Uma vez cristalizada no imaginário

social, esta representação desassocia os direitos das mulheres negras dos direitos humanos,

naturalizando as violências cometidas contra elas.

As análises aqui empreendidas permitem vislumbrar que as políticas

públicas ao combate da violência contra as mulheres, quando não incluem o recorte de

cor/raça, incidem positivamente sobre as mulheres brancas, mas se revelam menos adequadas

para promover a igualdade e os direitos da população negra. Embora as falas oficiais apontem

a necessidade de adotar um enfoque de raça, as políticas públicas de combate à violência

contra as mulheres empreendidas nos últimos anos têm tratado do tema apenas

superficialmente, sem que, no entanto, incorporem esta dimensão na execução das políticas.

Como exemplo, pode-se citar o I PNPM e o II PNPM e a norma técnica para as DEAMs. Sua

contemplação permite concluir que, apesar de incorporada no marco teórico destas políticas,

eles não são, em nenhum momento, citados nas propostas, muito menos estruturam os planos

de ação delineados.

É necessário que as políticas públicas incorporem o desafio de adotar uma

concepção da realidade multidimensional, isto é, que tem como subestruturas o gênero, a

raça/etnia e a classe social. Longe de constituir-se pela soma da lógica de cada uma dessas

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categorias, a realidade opera pela sua síntese, por uma lógica própria conforme aponta

Heleieth Saffioti (2009, p. 25). Ignorar este pressuposto significa reforçar as desigualdades

que pautam nossa história, acentuando a marginalização de grupos historicamente

invisibilizados.

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Referências

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(orgs.). Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010. Rio de Janeiro:

Garamond, 2011.

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QUIJANO, Aníbal (2005). Colonialidade do saber, eurocentrismo e América Latina. In:

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WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2011: Os Jovens do Brasil. Brasília,

Ministério da Justiça, Instituto Sangari, 2011. Disponível em:

< http://www.sangari.com.br/midias/pdfs/MapaViolencia2011.pdf>. Acesso em 10 de julho

de 2011.