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5 Revista Outsider N.4 | Abril - 2017 Sobre um jantar e uma fotografia A popularização do pensa- mento do professor e autor Leandro Karnal revelou logo de cara um aspecto interes- sante quanto à recepção. Grande parte das pessoas que adora seus vídeos e contribuições ao debate público des- conhece sua formação acadêmica nomeando-o sumariamente como filósofo. Aparentemente, para grande parte do brasileiro, uma pessoa culta, bem articulada, dotada de títulos aca- dêmicos e que exponha publicamente o que pensa, seria um filósofo. De fato Leandro Karnal tem vasto conheci- mento sobre diversas linhas filosófi- cas e é excelente em articula-las de modo coloquial. Considerando-se que o grande jogador de futebol Sócrates tornou-se conhecido para além do seu jogo de bola como “filósofo” por bem elaborar e difundir suas concepções sociais e políticas é muito justo que Karnal também tenha sido reconhe- cido como tal. No entanto é também bastante revelador que muitos sigam desconhecendo a formação acadê- mica do professor-pop. Isto porque as informações acerca de Leandro Karnal além de estarem facilmente acessíveis via google também estão disponíveis em sua página do face- book. Mas quem quer saber um pouco além do que as aparências remetem? Luciana Barreiro Bastos Arnaud é escritora. Mestre em Estudos Culturais e Literatura pela PUC Rio e Pós-graduada em Fundamentos da psicanálise de Freud a Lacan pela UNESA. diga-me com quem andas e decido se te lincho karnal - da adulação ao ódio #CAPA

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Sobre um jantar e uma fotografia

A popularização do pensa-mento do professor e autor Leandro Karnal revelou logo de cara um aspecto interes-

sante quanto à recepção. Grande parte das pessoas que adora seus vídeos e contribuições ao debate público des-conhece sua formação acadêmica nomeando-o sumariamente como filósofo. Aparentemente, para grande parte do brasileiro, uma pessoa culta, bem articulada, dotada de títulos aca-dêmicos e que exponha publicamente o que pensa, seria um filósofo. De fato Leandro Karnal tem vasto conheci-mento sobre diversas linhas filosófi-cas e é excelente em articula-las de modo coloquial. Considerando-se que o grande jogador de futebol Sócrates tornou-se conhecido para além do seu jogo de bola como “filósofo” por bem elaborar e difundir suas concepções sociais e políticas é muito justo que Karnal também tenha sido reconhe-cido como tal. No entanto é também bastante revelador que muitos sigam desconhecendo a formação acadê-mica do professor-pop. Isto porque as informações acerca de Leandro Karnal além de estarem facilmente acessíveis via google também estão disponíveis em sua página do face-book. Mas quem quer saber um pouco além do que as aparências remetem?

Luciana Barreiro Bastos Arnaud é escritora. Mestre

em Estudos Culturais e Literatura pela PUC Rio e Pós-graduada em Fundamentos da

psicanálise de Freud a Lacan pela UNESA.

diga-me com quem andas e decido se te linchokarnal - da adulação ao ódio

#CAPA

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D i g a - m e c o m q u e m a n d a s e d e c i d o s e t e l i n c h o

Leandro Karnal é doutor em história pela USP e professor da Universidade Estadual de Campinas na área de História da América. Foi curador de exposições, colaborou na curadoria de museus e é autor de livros que tratam de temas relativos a sua formação acadêmica: História da América e História das Religiões. Tornou-se conhecido de grande parte dos brasileiros como o intelec-tual que viralizou vídeos de palestras nos quais aborda temas complexos relativos à história do pensamento de forma acessível ao público não tão letrado. Em função disso tem parti-cipado com frequência em variados programas de debates ou entrevistas nas mídias tradicionais.

As redes sociais tornaram-se importante ferramenta não apenas para construção de imagens, mas também para disseminação de ideias e políticas. Neste contexto, Leandro Karnal tem sido uma voz coloquial, ponderada e fundamentalmente inter-rogativa e chistosa. Alcançou proemi-nência pública dizendo coisas que os encastelados da academia chamam de platitudes, mas que neste país carente de educação são informa-ções importantes, pois desconheci-das de grande parte das pessoas. Através de uma linguagem acessível conversa com pessoas que a princípio não teriam interesse em história e filo-sofia instigando o pensamento alheio e que este pensamento seja livre.

De modo geral a narrativa do pro-fessor tem remetido a um sujeito que deseja compartir seus conhecimen-tos e pensamento acerca de diver-sas linhas antagônicas da Cultura. Ele não tem se furtado em fazer algumas ilações políticas, mas não se posi-ciona a partir deste ou daquele viés ideológico. No entanto, apesar do conteúdo de suas falas comportar o estímulo ao pensamento livre e apar-tidário, grande parte da esquerda de Facebook sequestrou as ideias do professor como se fossem a perfeita

disseminação do ideário da esquerda nacional e determinantes da proemi-nência e popularidade dele.

O panorama de discussão polí-tica no Brasil de hoje, está dividido entre uma esquerda que “luta contra o golpe” e o resto da população que discute sobre impeachment e cor-rupção. Quando o professor Leandro Karnal postou em sua página do Facebook uma foto na qual jantava com o juiz Moro, artífice e símbolo da Operação Lava Jato, militantes ali-nhados à esquerda reagiram horrori-zados. Reagiram desta forma porque são críticos ferrenhos da Operação por julga-la judicialização da política. Esta militância se esquece de obser-var o entendimento nietzscheano de que o Direito é filho da política e que se o sistema de leis é válido para as “pessoas comuns” também deve valer para “gente graúda” que comete crimes contra o patrimônio público.

Um jantar e uma fotografia do até então ídolo pop-intelectual de um seg-mento da população com o inimigo número um da mesma geraram mais uma grande batalha nas redes sociais. Batalha que teve como desdobra-mento a retirada da foto por parte de Karnal e a crítica também acirrada e desrespeitosa dos igualmente iden-titários que adoram o juiz Moro tal como a um ídolo.

Em um primeiro momento, o professor respondeu ao imbróglio com altivez: “Tenho imensa curio-sidade em conversar com pessoas que fazem parte da história”, obser-vando que o encontro social com o juiz Moro também se referia ao inte-resse mútuo de conhecerem-se visto que farão parte do corpo docente de uma mesma Pós-graduação. A seguir, vendo-se como alvo do escracho de todo tipo, ainda ponderou: “Lamento a polarização no Brasil. O momento bra-sileiro é estranho e há uma vontade nacional de crucificar.” Até que, decli-nando sob a pressão da sanha lin-chatória, observou que havia bebido

durante o jantar e por isso postara a tal foto. Por fim, retirou a fotografia de sua página do Facebook para depois alegar diante dos que passaram a critica-lo por isso: “eu atendi aos que gostam de mim”.

Se a princípio a querela se ins-taurou por que um segmento da esquerda de Facebook está nor-teada pela patrulha ideológica e pela censura aos que ousem conversar com os que, segundo sua perspec-tiva, estejam no “outro lado”, em um segundo momento, a questão seguiu para outo âmbito. Neste instante foi a vez da parcela radical da militância de direita partir para o linchamento do professor, crucificando-o por ele ter retirado da sua página no Facebook a foto do jantar com o juiz. A princi-pal crítica do segmento linchador da direita foi que o professor teria con-cedido à adulação desde sempre e ao ódio no momento de retirada da fotografia. O curioso, entretanto, é que esta crítica foi feita com a mesma sanha linchatória de quem adula e odeia.

Houve vozes que criticaram Karnal observando que a retirada da fotografia teria sido um erro por que além de condescender às persegui-ções e ao cyberbullying nas redes, teria sido ofensiva ao juiz, já que o ato de suprimi-la do seu Facebook cor-responderia ao fundamento subjetivo de quem estaria insinuando que uma foto com Moro não mereceria que bri-gasse com a patrulha e a censura dos que “gostam” dele. E que, ao agir de modo adulador, o professor-pop teria sido incongruente com sua narrativa acerca da liberdade.

Logo que a foto foi retirada do ar, me pronunciei de modo irônico sobre o assunto na minha página pessoal da rede social de Mark Zuckerberg: quem nunca rasgou ou escondeu foto de ex-namorado(a), mesmo tendo sido bom enquanto durou, atire a primeira pedra. Minha intenção foi introduzir a dimensão do humano procurando

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desencadear a interrogação que nos leva a avaliarmos nossas premissas subjetivas e atitudes correlatas de modo a que possamos fazer o mesmo em relação aos outros. Não espero que este tipo de interrogação venha surtir grande efeito nos que estão blindados por um identitarismo faná-tico que tem como uma de suas mais nefastas consequências a demanda por “formadores de opinião” e “salva-dores da pátria”. No entanto, penso que insistirmos na interrogação em torno da linha tênue entre amor e ódio convocando a escuta ao invés do pré--conceito é fundamental em meio à predominância explosiva de afetos em detrimento da investigação da lógica que os regem. Interrogação que visa nos implicarmos nos eventos sociais e políticos ao invés de sermos apenas arrastados e arrestados por eles.

A partir deste imbróglio envol-vendo o jantar e a fotografia, me importa ressaltar o aspecto funda-mental que devemos preservar em uma sociedade democrática: todo cidadão deve ser livre para dialogar com quem quiser e se recusar a ser massacrado por aparentar defender posicionamento de quem quer que seja. Também me importa sublinhar que toda esta querela ilustra o quanto a política nacional vem sendo discu-tida sob a égide do desejo que visa dominar o outro. Questão que abor-darei a seguir e o próprio Karnal sus-citou no programa Saia Justa do canal GNT logo após o episódio no qual se envolveu nas redes sociais (Vide Transcrição no quadro ao lado).

Sobre linguagem, política e redes sociais

As interações nas redes sociais têm ocorrido, em sua maioria, como embates, não como diálogos. As prin-cipais armas tem sido o humor que zomba do interlocutor, o sarcasmo, ou a acusação direta também como enfrentamento ad hominem. Qual o limite aceitável para que se lance mão

Transcrição do vídeo no qual Leandro Karnal tece considerações sobre o contexto relativo ao episódio de seu linchamento.

“Falar se existe um jornalismo superficial, falar se existe um jornalismo que é menos profundo do que outro é uma questão im-portante. Mas o que muda hoje é muito mais a existência de um leitor cada vez mais dinâmico, cada vez menos inclinado a frases complexas, análises de dados. A diferença não está mais entre um tabloide sensacionalista de uma imprensa marrom ou de um jornal sério, mas que todos são lidos por leitores que tem poucos minu-tos, pouquíssimo tempo pra aprofundar, que tem fixação nas ima-gens, dificuldade com orações adverbiais e subordinadas, e, acima de tudo, muita pressa em julgar e pouca necessidade de aprender. Hoje temos um problema de notícias falsas, temos uma era de pós--verdade e uma necessidade de checagem de notícias. Eu posso lhe vender, lhe oferecer, um serviço de checagem, mas sempre, sem exceção, a grande checagem de notícias é dada pelo leitor. Descon-fie. Faça a pergunta que os latinos faziam, cui bono (?) para quem interessa? Quem é o interessado nessa notícia? Quem ganha com essa notícia? Cheque a fonte, cheque a data, compare mais de uma fonte, aprenda a decidir por você, não aceite a primeira notícia, não passe adiante porque você achou interessante. Você pode comprar um serviço de checagem de notícia, mas aqui fica a pergunta: quem checa o serviço de checagem de notícia.

Notícia falsa não tem matriz ideológica. Ela pode ser uma no-tícia falsa de esquerda, de direita, religiosa, ateia, ela não tem uma matriz. Mentira, consciente ou inconsciente, tem objetivo político e pessoal. Pós-verdade é diferente de mentira. Quando o presiden-te Trump inventa que o presidente Obama teria nascido fora dos EUA, isso não é pós-verdade isso é uma mentira, um boato político como nós sempre usamos no Brasil também para atingir um candi-dato. A pós-verdade é um pouco mais complexa, pressupõe que eu tenha perdido a capacidade de distinguir o certo do errado, o falso do verdadeiro. Mentira plantada, pessoas encarregadas de divulgar dados falsos na internet, isso não é pós-verdade é só falta de caráter e a velha e tradicional mentira.

O discurso pronto, o discurso linear, o discurso que explica tudo, aquele que diz que todos são assim, que ninguém é desse jei-to, é o discurso mais fácil, é o discurso que substitui o pensamento contraditório, dialético pelo pensamento linear. Sempre funcionou em história. Sempre houve na Grécia clássica, demagogos. Sempre

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de atos ou comportamentos relativos ao privado para interrogar acerca do comportamento público?

O mundo está exausto! Existe um empuxo polarizado entre a bestializa-ção e a melancolização. E a sanha lin-chatória nas redes sociais têm sido enorme insulto à esperança. Insulto à esperança de que a realidade nas redes fosse diversa do que vivencia-mos no dia-a-dia. A questão é que o ódio destilado nas redes não se refere à emergência de algo que estaria apenas destinado a ocorrer por meio deste tipo de interação. Esta via faci-lita e agiliza o desvelamento do real em jogo nas interações presenciais.

O prazer “de chutar” do lincha-mento nas redes sociais tem um esta-tuto que pode ser sintetizado como o desejo de matar com o pensamento. Não é raro encontrarmos na praça pública de narrativas das redes sociais sentenciadores da vida ou morte sim-bólica alheia bradando: “RIP fulano de tal”, por pensar ou agir assim ou “que morte horrível!” a de sicrano, por pensar ou agir assim. Nas interações via redes sociais há uma tendência perversa de agir driblando simbolica-mente o recalque. Nestes casos que citei, mata-se reputações como um drible ao recalque que impede de dar vazão à sanha de matar de fato. Nem tudo das pulsões pode ser reduzido a uma satisfação direta, uma saturação, pois nem tudo pode receber a apro-vação coletiva. A civilização tal como a conhecemos se formou através da incidência de algumas leis, inclusive o “não matarás”. Este é o ponto que se constitui como o que Freud desen-volveu como sendo o de Mal-estar na civilização.

Na medida em que os embates nas redes estão colocados a partir da patrulha fundamentada basicamente por “quem está do nosso lado não pode conversar e muito menos elogiar o outro”, o ataque censor ganhou força o suficiente para virar dogma e disseminar o medo de que qualquer

houve na Roma antiga, nas Repúblicas italianas do renascimento, o demagogo. Aquele que vende uma ideia que as pessoas querem ouvir: nós somos maravilhosos como povo, o problema é fulano de tal. Nós somos uma pátria perfeita, uma República perfeita se não houvesse tal partido. Isso é bom, primeiro porque tira o meu do ângulo ortogo-nal, segundo porque introduz a ideia de que a culpa não é minha, é do outro, é fácil, é linear e ela é plana. É sempre mais complicado falar de Sistema orgânico, geral, de causas e efeitos estruturais de médio e lon-go prazo. É sempre melhor dizer: se você fizer isso, tudo vai melhorar. O pensamento plano e superficial tem um sucesso enorme nas redes.

Rótulos são as coisas mais fáceis que existem no planeta. Se eu digo que você é comunista, petralha, coxinha, se eu digo que você é feminista, machista e etc., isso pode conter parte da verdade, mas isso coloca alguém em uma gaveta e tira a dificuldade de pensar, analisar aquilo que foge a esse rótulo. O rótulo é uma das coisas mais tran-quilizadoras do mundo. As pessoas precisam enquadrar todo mundo, todas as ideias, dentro de sistemas facilmente identificáveis e perdem a noção do todo. Sim, eu me sinto rotulado a todo instante, todo mun-do que trabalha com o grande público se sente rotulado, isso é quase inerente ao ato de se expor ao público, porém, eu tenho presente que a maioria das pessoas que estabelece o rótulo está mais falando dela, do que do outro. Mais do que ela sente do que de mim. Ou usando uma velha ideia psicanalítica, quando Pedro fala de Paulo, fala muito mais de Pedro do que de Paulo. Na impossibilidade de me analisar eu julgo o outro porque isso vai servir como um espelho para que eu não precise olhar a mim mesmo. Na impossibilidade de eu julgar a mim mesmo ou na dificuldade de pensar as minhas contradições é melhor supor que o problema esteja no outro. É melhor supor que eu perten-ço ao lado bom. Então no momento que eu quero estar com alguém ou não quero estar com alguém, eu julgo que a pessoa que esteve com alguém contém todo o mal.

Então as pessoas me dizem, por exemplo: eu jamais jantaria com o Moro. Sem problema, assim que o juiz Moro lhe convidar para um jantar recuse. Toda vez que o Juiz Moro ligar para a sua casa e pedir pelo o amor de Deus venha jantar comigo, diga não, faça estabelecer sua vontade, ou diga sim, se você deseja. Eu gostaria de jantar com todas as pessoas de todos os matizes políticos pra poder pensar um pouco mais. Mas, sempre estamos rotulando e dizendo o que eu faria. Essa obsessão narcísica mostra uma das gerações mais autocentradas e obcecadas com seu próprio eu. O narcisismo hoje é o mal do século XXI.”

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um pode se tornar alvo de apedreja-mento verbal público. Nesta esfera, tudo ganha contornos embotados pelo empobrecimento que rótulos como coxinha, petralha, direitão, esquer-dista, podem imprimir à amplitude de qualquer sujeito. Rótulos são balaios significantes, etiquetas que preten-dem capturar um sentido inequívoco. Que não definem propriamente nem um ideário estrito que dirá o sujeito tal como o “apresentado” por Lacan em seu retorno à descoberta do incons-ciente por Freud.

O lugar da voz e fundamental-mente de qual voz a linguagem está colocando em cena é o cerne de todo o recente problema em torno do jantar e a fotografia de Leandro Karnal com o juiz Moro. Qual o desejo que está por trás de quem fala? O que querem e sentem estas pessoas que des-pendem tanta energia em situações como esta? As demandas dos fãs de Leandro Karnal contêm um pedido de satisfação impossível de ser saciado, na medida em que almejam que seu ídolo lhes satisfaça plenamente. Que pense como o demandante, fale por ele, aja por ele. Além disso, refere--se também à pretensão de discernir e separar o bem e o mal em lados polí-ticos opostos denegando que bem e mal são inerentes a todo sujeito.

As Graphic novels erigiram signos importantes da Cultura e vem avan-çando de forma bem mais inteligente e sensível do que os idólatras e lin-chadores que se revelam nas redes sociais. Se há pouco tempo um ícone como o Super-homem era retratado como a supra-humana encarnação do bem para representar o herói ideal, hoje este mesmo herói ganhou con-tornos bem mais humanos. A Liga da justiça, da qual o super-homem faz parte, já não discute e enfrenta apenas o bem ou mal que estaria lá fora, mas, inclusive o bem e o mal pelo qual eles próprios estão atravessados.

Quando a demanda não é por diálogo, mas por embate – ou por

heróis tal como o antigo super-homem encarnado em mestres, salvadores da pátria, formadores de opinião – os demandantes seguem aprisionados à repetição de uma história escravi-zadora. Ilustram a função do supereu como a instância que funda o recal-que e tende a despojar o homem de sua aptidão ao espanto, premindo-o a decair no já conhecido.

No Brasil, a população sempre foi massacrada pela ideia de um “pai” tutelador encarnado pelo poder polí-tico Fomos instituídos pela espolia-ção e tratados como incapazes desde sempre. Tornamo-nos uma nação debilitada frente à poderosa força do tudo-saber, tudo-prever, tudo-po-der. Se por um lado, a força criativa imprimiu uma imagem lúdica ao país, mascarando o conservadorismo, o egocentrismo infantil e o sebastia-nismo brasileiro; por outro tem sido uma escorregadia válvula de escape frente ao recalque diante das vio-lências cometidas nos mais de qui-nhentos anos de invenção deste país. Trata-se agora de responsabilizar-mo-nos por nossa libertação. De não almejarmos ocupar o lugar do algoz ou seguir lamentando-nos por sermos vítimas.

A contingência brasileira é voraz no afã retroalimentador que devora, consome e apaga o sujeito do qual se alimenta. O acesso à educação, à cultura e às artes é para poucos! E o saber, aquele proclamado por Sócrates no Banquete de Platão, deve ser banido, pois é subversivo e causa transtornos. A manutenção da “massa de manobra” da mão de obra barata e faminta, crente que os sím-bolos capitalistas são o único meio de salvação e sobrevivência, fazem

parte do encarceramento tanto quanto a crença em um grande pai benfeitor ou ainda malfeitor, mas, um pai que viesse guiar.

A grande batalha hoje é desafiar a farsesca guerra de narrativas sem que permita enlamear-se por ela. Em um país com endêmica tendência à desmemoria e apologista da mentira como método do fazer política, a nar-rativa ganhou contornos inusitados, embora relativos ao mesmo e antigo desejo de poder escravizador. Quem grita mais alto e insistentemente tem conseguido sustentar farsas homéri-cas. O fracasso de quase uma década e meia da esquerda no poder e a insistência narrativa de que a reces-são econômica e a crise política atuais não seriam de sua responsabilidade ilustra muito bem o aspecto farsesco da narrativa que visa se impor em detrimento dos fatos. E, neste caso, este aspecto deriva em outra narrativa farsesca: a insistência em sustentar a narrativa ameaçadora de que a Direita viria governar o país para usurpar ou derrubar conquistas políticas, sociais e econômicas.

O ódio aflorado e babante na maioria dos brasileiros é o mesmo, ainda que advindo de ideários diver-sos. Refere-se a sermos explora-dos, roubados e enganados desde o começo dessa invenção chamada Brasil. É preciso canaliza-lo com calma, afinal, são mais de quinhen-tos anos de suplício nas costas. Faz bem quem não entra em querela de dogmático idólatra e não age como se partido político fosse igreja. Eu, que nem gosto da dualidade esquerda e direita, não entro em embate que rotule pessoas como coxinhas ou petralhas, que vise degradar o outro ou veicular mentiras. Importa-me con-tinuar trabalhando in loco ou veicu-lando o que penso das pautas que considero básicas. Importa-me o reforço do sentido de sociedade civil e democracia. Importa-me continuar sob a égide humanitária e libertária. •

No Brasil, a população sempre foi massacrada pela ideia de um “pai” tutelador encarnado pelo poder político