Dilemas do trabalho no capitalismo contemporâneo

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  • Navarro, V.L.; Padilha, V. Dilemas do Trabalho no Capitalismo Contemporneo

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    DILEMAS DO TRABALHO NOCAPITALISMO CONTEMPORNEO

    Vera Lucia NavarroValquria Padilha

    Universidade de So Paulo, Ribeiro Preto, Brasil

    RESUMO: Partindo da concepo marxiana de trabalho que compreende a atividade laboral como uma atividade vital,autodeterminada, dotada de sentido o que no ocorre sob a lgica do capital , buscamos neste artigo apontar algumasdas principais mudanas ocorridas no universo do trabalho no sculo XX e suas conseqncias para a classe trabalhadora.O que pretendemos destacar que ao longo do desenvolvimento do processo de trabalho do taylorismo ao toyotismo as transformaes no significaram ruptura com o carter capitalista do modo de produo e com seu complexoplano ideolgico de controle da subjetividade do trabalhador. Exemplos disso so a apologia do individualismo, oaumento do desemprego, da intensificao e da precarizao do trabalho, que marcam o mundo do trabalho na sociedadecontempornea.PALAVRAS-CHAVE: trabalho, reestruturao produtiva, subjetividade do trabalhador.

    DILEMMAS OF WORK IN CONTEMPORARY CAPITALISM

    ABSTRACT: Starting from the Marxist conception of work, which considers labor as a vital, self-determined andmeaningful activity which is not the case in the logic of capital -, in this article, we attempt to indicate some of themain changes that occurred in the universe of work in the XXth-century and their consequences for the working class.What we aim to highlight is that, throughout the development of the work process from Taylorism to Toyotism transformations did not mean rupture with the capitalist character of the production mode, nor with its complex ideo-logical plan to control the subjectivity of workers. Examples include the apology of individualism and the increase inunemployment, intensification and precariousness of work, which mark the world of work in contemporary society.KEYWORDS: work, production restructuring, subjectivity of workers.

    No se deve tirar e concluso de que minhas opiniesinspiram-se em nostalgia de uma poca que no podemais voltar. Pelo contrrio, minhas opinies sobre o

    trabalho esto dominadas pela nostalgia de uma pocaque ainda no existe (Braverman, 1987, p. 18).

    Foram marcantes as transformaes ocorridas no mundodo trabalho na virada do sculo XX para o XXI e o cresci-mento em escala mundial do desemprego , certamente,a face mais perversa deste quadro. Constatamos que, apesarde todo o desenvolvimento cientfico e tecnolgico, detodas as importantes inovaes operadas na base tcnicados processos produtivos, houve pouco alvio na labutahumana. Em realidade, tais mudanas no conjunto da eco-nomia e da sociedade resultantes da reestruturao pro-dutiva, que ganhou maior visibilidade a partir dos anos1990, acabaram por intensificar a explorao da fora detrabalho e precarizar o emprego.

    Neste cenrio, podemos observar uma contradio mar-cante: enquanto parte significativa da classe trabalhadora penalizada com a falta de trabalho, outros sofrem comseu excesso. Alm da precarizao das condies de tra-balho, da informalizao do emprego, do recuo da aosindical crescem, em variadas atividades, os problemasde sade, tanto fsicos quanto psquicos, relacionados aotrabalho. A busca da compreenso desta questo nos re-

    mete discusso acerca das mudanas do processo detrabalho no capitalismo que expressam a necessidade cons-tante de reproduo ampliada do capital ao longo de suahistria. Para tentarmos entender como isto se processase faz necessria retomada de alguns conceitos que nospossibilitam acompanhar o movimento e as transforma-es operadas no trabalho sob o capitalismo.

    Revendo os significados do trabalhoEntendemos que o trabalho tem carter plural e polis-

    smico e que exige conhecimento multidisciplinar; tam-bm a atividade laboral fonte de experincia psicossocial,sobretudo dada a sua centralidade na vida das pessoas: indubitvel que o trabalho ocupa parte importante do es-pao e do tempo em que se desenvolve a vida humana con-tempornea. Assim, ele no apenas meio de satisfaodas necessidades bsicas, tambm fonte de identificaoe de auto-estima, de desenvolvimento das potencialidadeshumanas, de alcanar sentimento de participao nos obje-tivos da sociedade. Trabalho e profisso (ainda) so senhasde identidade.

    Compreendemos que as pessoas, apesar de as trans-formaes que testemunhamos hoje, continuam ancorandosua existncia na atividade laboral, mesmo aquelas quese encontram em situao de desemprego.

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    A centralidade do trabalho d-se no s na esfera eco-nmica (o trabalho a fonte de renda da maioria da popu-lao mundial) como tambm na esfera psquica o que,certamente, representa um paradoxo, uma vez que a ati-vidade laboral ainda parece ser uma importante fonte desade psquica (tanto que sua ausncia, pelo desempregoou pela aposentadoria, causa de abalos psquicos) aomesmo tempo em que se registram cada vez mais pesqui-sas que evidenciam o trabalho como causa de doenasfsicas, mentais e de mortes1. preciso perguntar: que tipode trabalho adoece corpo e mente e at mata? Certamente,no o trabalho criativo, produtivo, prazeroso, que de-veria ser central na vida das pessoas.

    Quando afirmamos ser o trabalho central na vida daspessoas, partimos do princpio marxiano2 de que pormeio do trabalho que o homem torna-se um ser social.Assim, o trabalho compreendido como momento deci-sivo na relao do homem com a natureza, pois ele modi-fica a sua prpria natureza ao atuar sobre a natureza ex-terna quando executa o ato de produo e de reproduo.Nesse sentido, o trabalho um ato que pressupe a cons-cincia e o conhecimento dos meios e dos fins aos quaisse pretende chegar. Pode-se afirmar que no h trabalhohumano sem conscincia (enquanto finalidade), na me-dida em que todo trabalho busca a satisfao de uma neces-sidade.

    Nas palavras de Marx (1989a, p. 208):O processo de trabalho, que descrevemos em seus ele-mentos simples e abstratos, atividade dirigida como fim de criar valores-de-uso, de apropriar os elemen-tos naturais s necessidades humanas; condionecessria do intercmbio material entre o homem ea natureza; condio natural eterna da vida humana[grifos nossos], sem depender, portanto, de qualquerforma dessa vida, sendo antes comum a todas as suasformas sociais.

    Vale lembrar que quando se fala da dimenso do tra-balho como categoria primeira est se pensando em ati-vidade que cria valor-de-uso e que trava relaes entre ohomem e a natureza, ou seja, referimo-nos ao trabalhoconcreto que divergente do trabalho abstrato, uma ati-vidade estranhada e fetichizada, que cria valor-de-troca.Com o desenvolvimento do capitalismo, a dimenso dotrabalho concreto que produz objetos teis perde es-pao para a dimenso do trabalho abstrato.

    Nas sociedades contemporneas, o uso perde valor paraa troca; os produtos no so mais produzidos prioritaria-mente para serem usados at o seu fim. Esta uma ten-dncia que se acentua nas sociedades capitalistas nas quaisa descartabilidade das mercadorias cada vez mais pre-matura. O descarte, independentemente da qualidade damercadoria, induzido para que novos produtos sejamcomprados, o que leva os produtos para o lixo muito antes

    de esgotada a sua vida til. Para Mszros (1989) o modocapitalista de produo inimigo da durabilidade, por-tanto deve solapar as prticas produtivas orientadas paraa durabilidade, inclusive comprometendo deliberadamentea qualidade.

    O capitalismo traz consigo uma srie de contradies,muitas delas relacionadas ao mundo do trabalho. Ao mes-mo tempo em que o trabalho a fonte de humanizao e o fundador do ser social, sob a lgica do capital se tornadegradado, alienado, estranhado. O trabalho perde a di-menso original e indispensvel ao homem de produzircoisas teis (que visariam satisfazer as necessidades hu-manas) para atender as necessidades do capital. Sob o capi-talismo, explicou Marx, o trabalhador decai condiode mercadoria e a sua misria est na razo inversa damagnitude de sua produo. Nas suas palavras:

    O trabalhador se torna to mais pobre quanto maisriqueza produz, quanto mais a sua produo au-menta em poder e extenso. O trabalhador se tornauma mercadoria to mais barata quanto mais mer-cadorias cria. Com a valorizao do mundo das coi-sas aumenta em proporo direta a desvalorizaodo mundo dos homens. O trabalho no produz smercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhadorcomo uma mercadoria [grifos do autor], e isto na pro-poro em que produz mercadorias em geral (Marx,1989b, p. 148).

    O produto do trabalho aparece, no final, como algoalheio ou estranho ao trabalhador, como um objeto queno lhe pertence. O trabalhador coloca a sua vida noobjeto; mas agora ela no pertence mais a ele, mas sim aoobjeto (Marx, 1989b, p. 150).

    Quando se faz a crtica sociedade capitalista deve-se,ento, passar pela crtica do trabalho abstrato, pois eleque contm a dimenso de estranhamento. Quanto maisesta dimenso do trabalho predomina numa sociedade,mais esta sociedade estranhada. O estranhamento oafastamento do homem de sua essncia humana, a suaconverso em coisa, sua reificao. Uma sociedade estra-nhada uma sociedade que cria, por sua lgica estrutural,barreiras sociais para o livre desenvolvimento das poten-cialidades humanas. O fenmeno do estranhamento seapia na histrica apropriao desigual dos produtos dotrabalho humano (Ranieri, 2001, p. 61). Sobre essa ques-to, o autor explica que na medida em que o trabalhoestranhado rebaixa a atividade humana a mero meio desubsistncia, a prpria vida humana transforma-se nummeio [itlicos do autor] de efetivao da atividade estra-nhada (Ranieri, 2001, p. 62).

    Em contrapartida, uma sociedade emancipada aquelaque conseguiu abortar todas as formas de estranhamentodo ser, inclusive e principalmente o trabalho assalariadoabstrato e todas as formas de propriedade privada. Assim,

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    o que defendemos que o homem no pode abdicar dadimenso concreta do trabalho, sob pena de perder a prin-cipal referncia do seu carter de humano e de ser social.Os riscos desta perda acontecer so constantes, sobretudoquando entendemos e levamos em considerao o carterdo fetichismo presente na produo das sociedades capi-talistas.

    O fetiche da mercadoria a aparncia que se sobrepe essncia, o mundo das coisas como objetivo final, pro-vocando o comprometimento e/ou supresso da subjeti-vidade: a coisa sufoca o humano. O fetichismo estecarter misterioso das mercadorias provm do fato deque elas ocultam a relao social entre os trabalhos indi-viduais dos produtores e o trabalho total. Nas palavras deMarx (1989a, p. 80-81): Uma relao social definida,estabelecida entre os homens, assume a forma fantasma-grica de uma relao entre coisas.

    O estranhamento e o fetichismo fazem parte do mes-mo processo de coisificao dos sujeitos. Nas palavras deSilveira (1989, p. 50):

    ... na atividade alienada, em que o homem, a classe,o indivduo no se apropriam do resultado de suaatividade vital, a energia vital dispendida se tornaprpria do objeto, que rigorosamente se torna coisano sentido de ter adquirido vida prpria, um poderautnomo: o estranhamento, o alheamento... nestesentido tambm... que esse sujeito determinado, limitado, , radicalmente falando, coisificado, postopela coisa que se apropriou do que era prprio aosujeito da atividade vital. A coisa, o capital, a mer-cadoria, o dinheiro pondo sujeitos fsicos [grifos doautor], isto , sujeitos de que dependem elas, ascoisas para se reproduzirem como tais.

    O fetichismo da mercadoria e o controle que o capitalexerce sobre o trabalho humano, no capitalismo, so causasdiretas da alienao ou estranhamento dos trabalhadores.Cada vez mais o trabalhador que, como ser genrico,representa toda a humanidade encontra-se estranhado.Este estranhamento intensifica-se com o desenvolvimentodo capitalismo.

    O desenvolvimento do trabalho no sculo XXA principal abordagem desenvolvida aqui a de que

    o trabalho o elemento fundante do ser social, o pontode partida da humanizao. Diante disso, podemos per-guntar: quais so as implicaes das transformaes domundo do trabalho para a vida dos trabalhadores?

    O avano das foras produtivas (a cincia e a tcnica)intensifica o estranhamento. O desenvolvimento das for-as produtivas um processo contraditrio na medida emque capacita o capital ao mesmo tempo em que suprimeo trabalho. A lgica deste avano tecnolgico a lgicado capital, assim, no so a cincia e a tcnica perversasem si. Isso fica claro quando conhecemos a histria do

    surgimento das fbricas, conforme nos sugere Decca (1988,p. 7). Ele afirma que dentre todas as utopias criadas apartir do sculo XVI, nenhuma se realizou to desgraa-damente como a da sociedade do trabalho. A dimensocrucial da glorificao do trabalho deu-se com o surgi-mento da fbrica mecanizada, que aparecia aos olhos domundo ocidental como a nova iluso de que no haverialimites para a produtividade humana.

    Decca (1988) afirma que preciso encontrar a fbricaem todos os lugares em que se teve a inteno de discipli-nar e assujeitar o trabalhador. Isso quer dizer que o su-cesso da fbrica no foi, como se pode pensar, a mecani-zao e o desenvolvimento tecnolgico, mas sim o fatode ela ter sido um locus privilegiado da disciplinarizaodos trabalhadores que acabaram por introjetar dentro decada um o relgio moral do desenvolvimento capitalista.

    O que o autor assevera que a diviso do trabalhocriada para o funcionamento da fbrica significou a apro-priao dos saberes (anteriormente pertencentes aos arte-sos) por meio de sutis mecanismos de controle social. Atecnologia vista, ento, como mais uma forma de con-trole social. A imposio da noo de tempo til pareceser um bom exemplo disso, na medida em que prevalece,cada vez mais, a idia moralizante de que no se podeperder tempo, de que tempo dinheiro. Esta introjeodefinitiva da imagem e do valor do tempo como moedade mercado3 uma ilustrao de que so dominantes asidias da classe dominante.

    Marglin (1989, p. 41) afirma:... a origem e o sucesso da fbrica no se explicampor uma superioridade tecnolgica, mas pelo fatodela despojar o operrio de qualquer controle e dedar ao capitalista o poder de prescrever a naturezado trabalho e a quantidade a produzir. A partirdisso, o operrio no livre para decidir como equanto quer trabalhar para produzir o que lhe neces-srio; mas preciso que ele escolha trabalhar nascondies do patro ou no trabalhar, o que no lhedeixa nenhuma escolha.

    Os capitalistas reuniram os trabalhadores em fbricasmuito mais por uma questo organizacional que tecnolgica.No entanto, a tcnica no deve ser entendida como neutra:ela serviu e continua servindo aos interesses de controle ehierarquia do capital. O capital conseguiu que a cinciase colocasse a seu servio, o que se deu num processo dedocilizao da mo-de-obra (Decca, 1988). A apropria-o do saber inicialmente do arteso e posteriormentedo operrio pelos capitalistas nas fbricas uma dasformas deste estranhamento que continua se manifestandoat os dias atuais.

    Os relatos de Simone Weil, professora de filosofia naFrana que optou por trabalhar como operria na fbricapara sentir na pele o sofrimento do trabalhador, descreve

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    sensaes interessantes e explica o que a vida na fbricafez com ela:

    ... E no creio que tenham nascido em mim senti-mentos de revolta. No, muito ao contrrio. Veio oque era a ltima coisa do mundo que eu esperavade mim: a docilidade. Uma docilidade de besta decarga resignada. Parecia que eu tinha nascido paraesperar, para receber, para executar ordens quenunca tinha feito seno isso , que nunca mais fariaoutra coisa. No tenho orgulho em confessar isso. a espcie de sofrimento de que nenhum operriofala; di demais, s de pensar (Weil apud Bosi, 1996,p. 79).

    A histria da organizao do trabalho a histria dodesenvolvimento tecnolgico em favor da acumulaocapitalista ao mesmo tempo em que a histria do sofri-mento dos trabalhadores. Os avanos cientficos ocorri-dos em nome do progresso no conseguiram eliminar asformas de explorao fsica e psquica dos trabalhadores,nas fbricas ou fora delas. As tcnicas de organizao daproduo e do trabalho, baseadas nos princpios taylorista,fordista e toyotista s fizeram aumentar estas formas deexplorao.

    Taylorismo, Fordismo e Toyotismo: formasde intensificao e controle do trabalho

    Ao longo de todo o desenvolvimento do processo detrabalho no capitalismo, o que podemos observar a perdaprogressiva do controle do trabalhador sobre o processoprodutivo e, em conseqncia, a perda de controle sobreseu prprio trabalho. O que varia, em diferentes momen-tos, so as formas disto se objetivar.

    O taylorismo no promoveu mudanas importantesna base tcnica do processo de trabalho, sua preocupaofoi com o desenvolvimento dos mtodos e organizao dotrabalho. Ele aprofundou a diviso do trabalho introduzidapelo sistema de fbrica, assegurando definitivamente ocontrole do tempo do trabalhador pela gerncia, o que sig-nificou uma separao extrema entre concepo e execu-o do trabalho.

    De acordo com Braverman (1987), o que Taylor bus-cava no era a melhor maneira de trabalhar em geral masuma resposta ao problema especfico de como controlarmelhor o trabalho alienado, ou seja, a fora de trabalhocomprada e vendida.

    Para Braverman (1987), o controle do trabalho aolongo da histria da gerncia sempre foi o aspecto essen-cial, entretanto, a partir de Taylor esta questo adquiriudimenses sem precedentes. Em geral, antes de Taylor,admitia-se que a gerncia tinha o direito de controlar otrabalho, o que usualmente significava apenas a fixaode tarefas, com pouca interferncia direta na maneira dotrabalhador execut-las. Com Taylor essa prtica foi inver-tida, foi substituda pelo seu oposto: ele alegava que a gern-

    cia se tornaria um empreendimento limitado e frustradose deixasse ao trabalhador qualquer tipo de deciso sobreo trabalho.

    Seu sistema era to-somente um meio para que agerncia efetuasse o controle do modo concreto deexecuo de toda a atividade no trabalho, desde amais simples mais complicada. Nesse sentido, ele foipioneiro de uma revoluo muito maior na divisodo trabalho que qualquer outra havida (Braverman,1987, p. 86).

    O fordismo continuou requerendo este tipo de traba-lhador estranhado que o taylorismo havia evidenciado.4Ford mantm o essencial do taylorismo e aperfeioa omtodo introduzindo a linha de montagem e um novomodo de gerir a fora de trabalho, com destaque aos in-centivos dados aos trabalhadores atravs de aumento dosnveis salariais.

    A histria registra, no entanto, uma significativa resis-tncia operria ao fordismo, uma vez que os trabalhadoressentiram a perda de seu savoir-faire e sentiram o peso deum trabalho puramente mecanizado, rotinizado, gerandoum alto ndice de absentesmo, aumento de paralisaese sabotagens. Em contraposio, houve considervel au-mento de salrio para amenizar temporariamente os pro-blemas com a fora de trabalho.

    Crise do padro Taylorista-Fordistae a propagao do Toyotismo

    Nos anos 1970 o padro de regulao taylorista-fordistacomea a dar sinais de esgotamento em meio crise estru-tural vivida pelo capitalismo nesse perodo. O taylorismoe o fordismo passam a conviver ou mesmo a ser substitu-dos por outros modelos considerados mais enxutos eflexveis, melhor adequados s novas exigncias capita-listas de um mercado cada vez mais globalizado. a partirdos anos 1980 que se observa o acirramento da chamadareestruturao produtiva. Em um cenrio de maior com-petitividade as empresas, visando a reduo dos custos deproduo, a maior variabilidade de suas mercadorias, amelhoria da qualidade de seus produtos e servios e desua produtividade, investiram em mudanas de ordemtecnolgica e organizacionais, que repercutiram negati-vamente nas relaes e condies de trabalho.

    Novas formas de organizao do trabalho mais flex-veis, alternativas ao taylorismo-fordismo consideradomuito rgido, emergiram em vrias partes do mundo,mesclando, fundindo-se ou mesmo superando a(s) ante-riormente predominante(s) (Antunes, 1995). Alguns es-tudos chegam mesmo a afirmar a existncia de um novoparadigma de produo industrial alternativo ao fordismo.So exemplos destas novas experincias o modelo sueco,o modelo italiano e o modelo japons5. No entanto, foi esteltimo que conseguiu maior capacidade de propagao.

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    Os mtodos produtivos japoneses aparecem semprecomo

    ... a materializao de um novo sistema de organiza-o, desenvolvimento e competitividade industrial,como exemplo de modernidade capitalista a ser repro-duzido pelas empresas que pretendam chegar con-dio de world class company (empresa de categoriamundial). O toyotismo a marca de um modelo deexplorao vendido mundialmente e adaptado a qual-quer situao nacional. Na viso dos capitalistas eda maior parte dos pesquisadores, as relaes deproduo deste modelo japons so tambm a pr-pria realizao da harmonia entre capital e traba-lhador (Martins, 1994, p. 124).

    O sistema Toyota, ou como prefere Coriat (1994, p.24) o Ohnismo,6 constitui um conjunto de inovaesorganizacionais cuja importncia comparvel ao queforam em suas pocas as inovaes organizacionais trazidaspelo taylorismo e pelo fordismo. O objetivo maior deseu mtodo produzir a baixos custos pequenas sries deprodutos variados. Um dos primeiros problemas de Ohno,no incio de seu empreendimento, foi a questo dos esto-ques, visto que o Japo no um pas que dispe de vastosespaos como os Estados Unidos. Segundo Coriat, duasdescobertas nascem a partir desse problema: a fbricamnima e a administrao pelos olhos. A primeira estrelacionada com o fato de que atrs do estoque h umexcesso de pessoal, o que leva concluso de que se oestoque permanente, h por detrs dele um excesso deequipamento. nas entrelinhas deste princpio que, se-gundo Coriat (1994, p. 33):

    ... se desenha aquilo que seramos tentados a desig-nar como a fbrica mnima, a fbrica reduzida ssuas funes, equipamentos e efetivos estritamentenecessrios para satisfazer a demanda diria ou se-manal. Observe-se tambm que, no esprito de Ohno,a fbrica mnima primeiro e antes de tudo a fbricade pessoal mnimo.

    Na Toyota de Ohno, o conceito de economia indis-socivel da busca da reduo de efetivos e da reduode custos. Obviamente, no se pensa nos altos custos psi-cossociais dessa poltica.

    A segunda descoberta de Ohno o mtodo de gestopelos olhos. A meta a alcanar a eliminao de tudoque for considerado suprfluo, dos excessos gorduro-sos, tudo aquilo que uma fbrica pode dispensar. Nasce,ento, segundo Coriat (1994, p. 36), a fbrica magra,transparente e flexvel que se ope fbrica fordista qua-lificada como gorda. O ponto forte dessa fbrica m-nima o just in time que organiza a produo de modo afabricar os produtos apenas na quantidade e no momentode serem escoados, o que pressupe estoque mnimo enmero reduzido de operrios.

    Outra caracterstica do modelo japons bastante difun-dida no meio empresarial e, em parte do meio acadmico,diz respeito qualificao do trabalhador. Contrariamenteao operrio do taylorismo/fordismo que desempenhavatarefas altamente simplificadas, repetitivas, montonas eembrutecedoras, o trabalhador no toyotismo, estaria trans-formando em um trabalhador altamente qualificado,polivalente multiprofissional. Na prtica, vrias pes-quisas demonstram que estas mudanas, de forma geral,ao invs de qualificar o trabalhador o sobrecarrega commais trabalho.

    O que se observa que o toyotismo mantm as formasobjetivas de explorao do trabalho e amplia as formassubjetivas desta explorao.

    ... o taylorismo e o fordismo tinham uma concepomuito linear, onde a Gerncia Cientfica elaboravae o trabalhador manual executava. O toyotismo per-cebeu, entretanto, que o saber intelectual do trabalho muito maior do que o fordismo e taylorismo imagi-navam, e que era preciso deixar que o saber inte-lectual do trabalho florescesse e fosse tambm eleapropriado pelo capital (Antunes, 1999, p. 206).

    Para Harvey (1993) esse novo quadro (acumulaoflexvel) onde o mercado de trabalho passa por uma rees-truturao radical possibilita maior controle do trabalhopelos empregadores, na medida em que o conjunto da forade trabalho sai muito mais enfraquecido desse processo.

    Diante da forte volatilidade do mercado, do aumentoda competio e do estreitamento das margens delucro, os patres tiraram proveito do enfraquecimentodo poder sindical e da grande quantidade de mo-de-obra excedente (desempregados e sub-empregados)para impor regimes e contratos de trabalho mais fle-xveis (Harvey, 1993, p. 143).

    Apesar de a luta de classes estar presente nas relaesantagnicas entre capital e trabalho no sculo XX e agorano sculo XXI, a organizao coletiva de trabalhadores,no mundo e no Brasil em particular, vem enfrentando im-passes importantes. O enfraquecimento dos sindicatos dasltimas dcadas no tem conseguido impedir o processode precarizao do trabalho, conforme analisamos nesseartigo. Segundo Ramalho (1997, p. 86):

    O movimento sindical passa pelas dificuldades delidar com uma situao fabril qual polticas e es-tratgias de ao sindical parecem impotentes paradeter a destruio de direitos e se relacionar comuma fora de trabalho de caractersticas diversas da-quelas encontradas no ptio das grandes empresas.

    As metamorfoses do trabalho ferem no s os direitose a subjetividade do trabalhador, com tambm suas formasde organizao na luta contra o capital. Conforme afirmaAntunes (1997, p. 72), desde os anos 1980, o sindicalismovem-se configurando como um sindicalismo de negocia-

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    o que aceita a ordem do capital e do mercado, que aban-dona a luta pelo socialismo e pela emancipao e quedebate no universo da agenda e do iderio neoliberal.

    Consideraes Finais

    Considerando o conjunto das transformaes operadasno mundo do trabalho no ltimo sculo do taylorismoao toyotismo podemos pensar que, conforme sugereTomaney (citado por Antunes, 1999, p. 49):

    as mudanas no processo capitalista de trabalho noso to profundas, mas exprimem uma contnua trans-formao dentro do mesmo processo de trabalho,atingindo sobretudo as formas de gesto e o fluxode controle, mas levando freqentemente intensifi-cao do trabalho.

    O que pretendemos destacar que ao longo do desen-volvimento do processo de trabalho nos sculos XIX eXX, apesar de algumas transformaes e crises, no houveuma verdadeira ruptura com o carter capitalista do modode produo e com seu complexo plano ideolgico defragmentao da subjetividade para facilitar a manutenode seu projeto hegemnico. Exemplos disso so a apolo-gia do individualismo, o aumento do desemprego, daintensificao e da precarizao do trabalho nos diferentessetores da economia.

    Podemos pensar que, nos ltimos anos, as perdas paraa classe trabalhadora foram importantes no apenas doponto de vista financeiro mas tambm de sua sade fsicae psquica. No por acaso que Sennet (1999) denominoude corroso do carter uma das principais conseqnciaspessoais do modelo atual de organizao do trabalho nocapitalismo. A flexibilizao trazida pela reestruturaoprodutiva que exige trabalhadores geis, abertos a mu-danas a curto prazo, que assumam riscos continuamentee que dependam cada vez menos de leis e procedimentosformais no causa apenas sobrecarga de trabalho para osque sobreviveram ao enxugamento dos cargos, mas acar-reta grande impacto para a vida pessoal e familiar detodos os trabalhadores; sejam eles empregados ou desem-pregados.

    Os direitos sociais duramente conquistados pelos tra-balhadores esto sendo substitudos ou subtrados nosquatro cantos do mundo. O desemprego fora as pessoas,desesperadas pela falta de dinheiro e de reconhecimentosocial, a enfrentarem filas aviltantes para tentar uma vagano mercado do emprego formal, mesmo que este seja alie-nado e estranhado. Tragicamente, at mesmo o trabalhoque pode comprometer a sade fsica e psquica passa aser objeto de desejo.

    Concordamos com Silveira (1989, p. 63) quando dizque se ridculo sentir nostalgia das relaes de depen-dncia das formas pr-capitalistas, tambm ridculo crer

    que preciso deter-se neste esvaziamento completotpico da universalizao do estranhamento que se esta-belece sob a lgica do capital.

    Notas1 Cf. Seligmann-Silva (1994).2 Marx definiu o trabalho como ... um processo de que participam

    o homem e a natureza, processo em que o ser humano com suaprpria ao impulsiona, regula e controla seu intercmbio mate-rial com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma desuas foras. Pe em movimento as foras naturais de seu corpo,braos e pernas, cabea e mos, a fim de apropriar-se dos recur-sos da natureza, imprimindo-lhes forma til vida humana.Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mes-mo tempo modifica sua prpria natureza. (Marx,1989a, p. 202).

    3 Cf. Thompson (2002).4 Vale lembrar que muito difcil entender o fordismo (que pressu-

    pe tambm a produo e o consumo em massa) fora do contextodo americanismo: a propagao do fordismo exigiu uma novaforma de organizao social do processo de produo que estintimamente ligada com o modo de viver e de ser do conjuntodos trabalhadores. Americanismo pode ser entendido como umconjunto de caracterizaes prprias, originadas nos EstadosUnidos que visam construo de um Novo Homem para umnovo tipo de trabalho. O modo de viver deve ser adaptado aomodo de produzir. O objetivo criar um novo tipo de trabalhador(Gramsci, 1989).

    5 Segundo Hirata (1994, p. 40) os modelos sueco e italiano...podem ser caracterizados, conjuntamente, em oposio ao mo-delo japons, como sendo modelos produtivos de envolvimentonegociado dos trabalhadores nos novos processos de produode qualidade e produtividade e s se realiza com sindicatos fortese independentes. Tanto o modelo italiano quanto o sueco se apoiamnuma formao profissional importante dos trabalhadores e napolivalncia do trabalho em grupo. Embora tenham por objetivo,como todos os modelos industriais, alcanar a produtividadepor meio de um mximo de eficincia, no se baseiam na produ-o enxuta.

    6 Em referncia direta ao nome do engenheiro Taiichi Ohno (1912-1990), a quem se atribui o mrito principal pela criao da novaescola japonesa, que teria sido originada na fbrica Toyota.

    RefernciasAntunes, R. (1995). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamofoses

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    Vera Lucia Navarro graduada em Cincias Sociaispela Universidade Estadual de Londrina (UEL).Doutora em Cincias Sociais pela Universidade

    Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho. Docente

    da Universidade de So Paulo (USP) na Faculdadede Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto,

    Departamento de Psicologia e Educao. Credenciadanos Programas de Ps-Graduao em Sade na

    Comunidade, da Faculdade de Medicina de RibeiroPreto/USP e Programa de Ps-Graduao em Psicologia

    da FFCLRP/USP. Sua produo cientfica focada naSociologia do Trabalho, com nfase no estudo das

    relaes entre trabalho e sade. Autora do livroTrabalho e trabalhadores do calado: a indstriacaladista de Franca (SP): das origens artesanais

    reestruturao produtiva (Editora Expresso Popular,2006). Endereo para correspondncia: Universidade

    de So Paulo, Faculdade de Filosofia, Cincias eLetras de Ribeiro Preto, Departamento de Psicologiae Educao. Av. Bandeirantes, 3900, Ribeiro Preto,

    SP, CEP [email protected]

    Valquria Padilha Doutora em Cincias Sociaispela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

    Doutorado Sanduche realizado na Universit deBourgogne, Frana. Ps-Doutorado em CinciasSociais pela Universidade Federal de So Carlos

    (UFSCar). Professora Doutora no Departamento deAdministrao da Faculdade de Economia,

    Administrao e Contabilidade de Ribeiro Preto(FEA-RP) na Universidade de So Paulo (USP).

    Autora do livro Shopping center: a catedral dasmercadorias (Editora Boitempo, 2006) e organizadorade Dialtica do lazer (Editora Cortez, 2006). Endereo

    para correspondncia: Universidade de So Paulo,FEA-RP, Departamento de Administrao. Av.

    Bandeirantes, 3900, Monte Alegre, Ribeiro Preto,SP, 14040-900. Telefone: (16) 3602 4468.

    [email protected]

    Dilemas do Trabalhono Capitalismo ContemporneoVera Lucia Navarro e Valquria PadilhaRecebido: 29/06/20061 reviso: 03/08/20062 reviso: 07/12/2006Aceite final: 26/12/2006