DILEMAS ÉTICOS E BIOÉTICOS, QUALIDADE DE VIDA … · 2020. 5. 14. · 1 FICHA CATALOGRÁFICA UFBA...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA F ACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM SAÚDE, AMBIENTE E TRABALHO DILEMAS ÉTICOS E BIOÉTICOS, QUALIDADE DE VIDA RELACIONADA À SAÚDE E CAPACIDADE PARA O TRABALHO DO ENFERMEIRO PAULA DO NASCIMENTO ALVES CARDOSO Dissertação de Mestrado Salvador (Bahia), 2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    F ACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

    PROGRAMA DE PÓS-

    GRADUAÇÃO EM

    SAÚDE, AMBIENTE E TRABALHO

    DILEMAS ÉTICOS E BIOÉTICOS, QUALIDADE DE VIDA

    RELACIONADA À SAÚDE E CAPACIDADE PARA O

    TRABALHO DO ENFERMEIRO

    PAULA DO NASCIMENTO ALVES CARDOSO

    Dissertação de Mestrado

    Salvador (Bahia), 2015

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    FICHA CATALOGRÁFICA

    UFBA / SIBI / Biblioteca Gonçalo Moniz: Memória da Saúde Brasileira

    Cardoso, Paula do Nascimento Alves

    C268 Dilemas éticos e bioéticos, qualidade de vida relacionada à saúde e capacidade para

    o trabalho do enfermeiro / Paula do Nascimento Alves Cardoso. Salvador: PNA Cardoso,

    2015.

    vi 122 fls. : il. [tab., quadros].

    Anexos.

    Orientadora: Profª. Drª. Liliane Elze Falcão Lins Kusterer.

    Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Medicina da Bahia,

    2015.

    1. Ética. 2. Bioética. 3. Enfermagem. 4. Ética em enfermagem. 4. Enfermagem obstétrica.

    5. Qualidade de vida. 6. Trabalho. I. Rêgo, Marco Antônio Vasconcelos. II. Universidade Federal

    da Bahia. Faculdade de Medicina da Bahia. III. Título.

    CDU – 614.257-051

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA

    PROGRAMA DE PÓS-

    GRADUAÇÃO EM

    SAÚDE, AMBIENTE E TRABALHO

    DILEMAS ÉTICOS E BIOÉTICOS, QUALIDADE DE VIDA

    RELACIONADA À SAÚDE E CAPACIDADE PARA O

    TRABALHO DO ENFERMEIRO

    Paula do Nascimento Alves Cardoso

    Orientadora: Liliane Elze Falcão Lins Kusterer

    Dissertação apresentada ao Colegiado do Curso de Pós-

    Graduação em Saúde, Ambiente e Trabalho da Faculdade

    de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia,

    como pré-requisito para obtenção do grau de Mestre em

    Saúde Ambiente e Trabalho.

    Salvador (Bahia), 2015

    ii

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    COMISSÃO EXAMINADORA

    Liliane Elze Falcão Lins Kusterer(professora orientadora), Professora Adjunta do

    Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal da Bahia.

    Fernando Martins Carvalho (examinador interno), Professor Titular do Departamento

    de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal da Bahia.

    Norma Carapiá Fagundes (examinadora externa), Professora Aposentada da Escola de

    Enfermagem da UFBA.

    iii

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    Ainda que eu tivesse o dom de profetizar e conheça todos os

    mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a

    ponto de transportar montes, se não tiver amor, nada serei.

    1º Coríntios 13:2

    Tudo posso naquele que me fortalece: JESUS

    Filipenses 4:13

    iv

  • 5

    Dedico este trabalho à minha mãe, Ester

    Evangelista do Nascimento, ao meu

    esposo, Ageu Ribeiro Cardoso, à minha

    filha, Rebeca, e aos meus irmãos, Kátia,

    Kássia, Permínio e Estela, em

    agradecimento pelo amor, carinho,

    cuidado e confiança.

    v

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, digno de toda minha honra, glória e louvor.

    A todos os participantes da pesquisa, pela confiança e cooperação.

    À minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Liliane Lins, pela oportunidade,orientação, apoio,

    dedicação, e por acreditar no meu desenvolvimento.

    Ao professor Fernando Martins Carvalho, pelo empenho e dedicação na realização deste

    trabalho.

    A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Saúde, Ambiente e

    Trabalho.

    Aos colegas do Mestrado

    À Solange Xavier e a Inha (Marivalda Pereira), pelo cuidado e apoio.

    À minha mãе, Ester, pelo amor, incentivo е apoio incondicional, principalmente nаs

    horas difíceis de desânimo е cansaço.

    Ao mеυ esposo, Ageu, que, apesar dе todas аs dificuldades, mе fortaleceu dе forma

    especial е carinhosa.

    À minha filha, Rebeca, que me encoraja a romper as barreiras da vida.

    Aos meus irmãos, Kátia, Kássia, Permínio e Estela; minhas sobrinhas, Jéssica e

    Vanessa; meus tios e primos, que nоs momentos dе minha ausência dedicados ао estudo

    superior, sеmprе entenderam qυео futuro é feito а partir dа constante dedicação nо

    presente.

    Meus agradecimentos аоs amigos, Eryka Rodrigues, Wendel, Rosângela Lessa,

    Manuela Maturino, Andréa, Sandra, Ana Caroline, Rita Rocha, Carla Lima, Elza

    Queiroz, Jamille Lira e companheiros dе trabalhos qυе fizeram parte dа minha formação

    е qυе vão continuar presentes еm minha vida, cоm certeza.

    A todos qυе direta оυ indiretamente fizeram parte dа minha formação, о mеυ muito

    obrigada.

    vi

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    SUMÁRIO LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ................................................................................ 8

    LISTA DE TABELAS ................................................................................................................. 9

    LISTA DE QUADROS ............................................................................................................. 10

    RESUMO ................................................................................................................................... 11

    1. APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 12

    2. REVISÃO DA LITERATURA ........................................................................................ 15

    2.1. DEONTOLOGIA NO EXERCÍCIO DA ENFERMAGEM .................................. 15

    2.2. TRABALHO DO ENFERMEIRO OBSTETRA .................................................... 17

    2.3. BIOÉTICA ................................................................................................................. 20

    2.3.1. BIOÉTICA PRINCIPIALISTA ....................................................................... 21

    2.3.2. BIOÉTICA PERSONALISTA ......................................................................... 25

    2.4. QUALIDADE DE VIDA EM SAÚDE ..................................................................... 26

    2.5. CAPACIDADE PARA O TRABALHO .................................................................. 32

    3. OBJETIVOS ...................................................................................................................... 36

    3.1. OBJETIVO GERAL ................................................................................................. 36

    3.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................. 36

    4. METODOLOGIA ............................................................................................................. 37

    5. RESULTADOS E DISCUSSÕES .................................................................................... 40

    6. LIMITAÇÕES DO ESTUDO .......................................................................................... 79

    7. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 80

    8. SUMMARY ......................................................................................................................... 81

    9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 82

    10. ARTIGO ......................................................................................................................... 87

    11. ANEXOS ...................................................................................................................... 108

    ANEXO 1 - QUESTIONÁRIO SF – 36 ............................................................................. 108

    ANEXO 2 - QUESTIONÁRIO ÍNDICE DE CAPACIDADE PARA O TRABALHO . 111

    ANEXO 3 - PARECER DO CEP ....................................................................................... 116

    ANEXO 4 - CARTA DE ANUÊNCIA ............................................................................... 119

    12. APÊNDICES ................................................................................................................ 120

    APÊNDICE 1 - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO .......... 120

    APÊNDICE 2 - QUESTIONÁRIO DE SÓCIODEMOGRÁFICO................................. 121

    APÊNDICE 3 - ROTEIRO PARA ENTREVISTA .......................................................... 122

  • 8

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CEP – Comitê de Ética em Pesquisa

    CDE - Código Deontológico de Enfermagem

    CEPE - Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem

    COFEN – Conselho Federal de Enfermagem

    COREN – Conselho Regional de Enfermagem

    CNS – Conselho Nacional de Saúde

    CREMEB – Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia

    DL – Decreto Lei

    EPI – Equipamento de Proteção Individual

    FMB – Faculdade de Medicina da Bahia

    I – Informante

    ICT – Índice de Capacidade para o Trabalho

    NHB – Necessidades Humanas Básicas

    PO – Pesquisa Orientada

    QV – Qualidade de Vida

    QVT – Qualidade de Vida no Trabalho

    REPE - Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro

    SAE – Sistematização da Assistência de Enfermagem

    SF-36 - Short Form 36 Health Survey

    TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    TJ – Testemunha de Jeová

    UCI – Unidade de Cuidados Intensivos

    UFBA – Universidade Federal da Bahia

    UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

  • 9

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Características do trabalho de dez enfermeiros de uma maternidade,

    Salvador, 2014 ...................................................................................

    43

    Tabela 2 Avaliação subjetiva da saúde geral há um ano, por dez enfermeiros

    de uma maternidade de Salvador, 2014 .............................................

    44

    Tabela 3 Escores brutos e normalizados dos domínios e componentes

    sumários do SF-36 em dez enfermeiros de uma maternidade de

    Salvador, 2014 ...................................................................................

    44

  • 10

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Taxonomia do SF-36 ...................................................................

    28

    Quadro 2 Resumo de conteúdo do SF-36 com a média, desvio padrão,

    confiabilidade e limite dos escores em cada domínio .................

    30

    Quadro 3 Número de questões e pontos dos escores de cada dimensão do

    ICT ...............................................................................................

    34

    Quadro 4 Classificação ICT segundo os seus escores. Pontos Capacidade

    para o trabalho. Objetivos das medidas .......................................

    35

    Quadro 5 Escores normalizados dos Componentes da Saúde Física e

    Mental do SF-36, Pontuação e Classificação do ICT,

    Comentários e Depoimentos de dez enfermeiros/as de uma

    maternidade de Salvador, 2014 ...................................................

    46

    Quadro 6 Dilemas e conflitos éticos e bioéticos no exercício profissional

    da enfermagem, na opinião de dez enfermeiros/as de uma

    Maternidade de Salvador, 2014 ...................................................

    61

  • 11

    RESUMO

    Objetivou-se identificar os dilemas éticos e bioéticos referidos pelos enfermeiros

    obstetras, e avaliar como os mesmos interferem na sua qualidade de vida relacionada à

    saúde e na sua capacidade para o trabalho. Foi realizado um estudo misto, com

    abordagem qualitativa e quantitativa, com dez enfermeiros de uma maternidade pública

    de Salvador-BA. Num questionário, coletaram-se informações sociodemográficas.

    Também foram aplicados os questionários Short Form Health Survey (SF-36) e Índice

    de Capacidade para o Trabalho (ICT). A coleta do material qualitativo foi realizada por

    meio de entrevistas gravadas e observações registradas no diário de campo. Foram

    identificados os principais dilemas éticos e bioéticos vivenciados no trabalho da

    Enfermagem, nas temáticas: representação das questões éticas e bioéticas no trabalho da

    Enfermagem; percepção da qualidade de vida relacionada à saúde; aspectos éticos e

    bioéticos para ter qualidade de vida; influência do trabalho na vida pessoal; capacidade

    para o trabalho; descrição do processo de trabalho; principais dilemas éticos e bioéticos

    na prática da Enfermagem. Conclui-se que os dilemas éticos e bioéticos vivenciados no

    exercício profissional interferem na qualidade de vida e na capacidade para o trabalho

    dos trabalhadores de Enfermagem e, consequentemente, poderão prejudicar a qualidade

    da assistência prestada aos seus pacientes.

    Descritores: Ética; Bioética; Enfermagem; Ética em Enfermagem; Enfermagem

    Obstétrica; Qualidade de vida; Trabalho.

  • 12

    1. APRESENTAÇÃO

    Através do trabalho o indivíduo melhora e promove a qualidade de vida para si e

    para os seus familiares. O trabalho tem se transformado em um local de risco de

    acidentes e doenças profissionais, que, consequentemente, comprometem a saúde e, às

    vezes, a vida do trabalhador (REIS, 2011).

    A desvalorização do trabalho pode substituir a satisfação intrínseca do exercício

    profissional e a expressão da criatividade humana durante seu exercício. Prevalece então

    no trabalho a sua razão instrumental utilitária, sua capacidade de prover as necessidades

    básicas e de viabilizar o consumo de bens. A valorização do trabalho possibilita a

    obtenção das necessidades básicas da pessoa humana, assim como garante condições

    dignas de vida (COLBARI, 1995).

    O trabalho da enfermagem exige condições físicas e mentais para o seu

    desenvolvimento. É necessário que o trabalhador tenha equilíbrio biopsicossocial e

    econômico, pois são fatores que interferem diretamente no desenvolvimento do trabalho

    (TUOMI, 2005).

    Na condição de enfermeira atuante, a pesquisadora pôde vivenciar na sua

    trajetória profissional os conflitos que se estabelecem na atenção à saúde da pessoa

    humana, que abrangem as temáticas da vida e da morte. Essa atuação requer extrema

    responsabilidade e pode adoecer o trabalhador nas decisões que envolvem os princípios

    bioéticos de autonomia, beneficência não maleficência, justiça e vulnerabilidade.

    A vivência constante de dilemas e conflitos éticos e bioéticos no exercício da

    profissão em vários setores da enfermagem, como unidade de internação, emergência,

    centro cirúrgico, gerência de unidade e, até mesmo a docência em enfermagem,

    estimularam a reflexão sobre o exercício da enfermagem, qualidade de vida e

    capacidade para o trabalho.

  • 13

    Durante o processo de elaboração do projeto, a ampla revisão de literatura foi

    fundamental para compreender as questões deontológicas envolvidas nas decisões

    profissionais e a compreensão dos dilemas relatados, que se somam às inquietações

    advindas da carreira profissional da pesquisadora. Dessa forma, foi possível pensar em

    um objeto de pesquisa centrado nos dilemas éticos e bioéticos vivenciados pelos

    enfermeiros e a relação desses com a qualidade de vida e a capacidade para o trabalho.

    O presente estudo teve como objetivo identificar os dilemas éticos e bioéticos

    referidos pelos enfermeiros obstetras e avaliar como os mesmos interferem na sua

    qualidade de vida relacionada à saúde e na sua capacidade para o trabalho.

    Foi realizado um estudo de método misto qualitativo e quantitativo. Os

    participantes foram entrevistados, utilizando-se um roteiro para entrevista

    semiestruturada. Foi utilizada, como método de avaliação qualitativa, a análise de

    Temática de Bardin (2011). Para a análise quantitativa foi desenvolvido um instrumento

    de coleta de dados sociodemográficos, aplicado o questionário Short Form Health

    Survey (SF-36), versão Brasileira (CICONELLI at al, 1999) e, o questionário de Índice

    de Capacidade para o Trabalho (TUOMI et al, 2005).

    A pesquisa foi realizada em uma maternidade pública da cidade de Salvador-

    BA. Participaram do estudo 10 profissionais que atuavam em diversos setores da

    maternidade. Com os resultados do estudo foi possível identificar as seguintes

    temáticas: representação das questões éticas e bioéticas no trabalho da enfermagem;

    percepção da qualidade de vida; aspectos éticos e bioéticos para ter qualidade de vida;

    influência do trabalho na vida pessoal; capacidade para o trabalho; descrição do

    processo de trabalho e os principais dilemas éticos e bioéticos identificados na vivência

    da enfermagem.

  • 14

    A discussão das temáticas identificadas segundo os aspectos éticos e bioéticos

    baseou-se na teoria principialista de Beauchamp e Childress, no manual de Bioética de

    Elio Sgreccia e na Carta Universal de Direitos Humanos da UNESCO.

  • 15

    2. REVISÃO DA LITERATURA

    2.1.DEONTOLOGIA NO EXERCÍCIO DA ENFERMAGEM

    A enfermagem é definida como a arte do cuidar (LIMA, 1993), exercida de maneira

    interativa, atuando nas dimensões física, psicológica, social, ambiental e cultural

    (WALDOW, 1998).

    O exercício do profissional enfermeiro é composto por aspectos pessoais e sociais,

    sensibilidade, respeito e solidariedade. (SILVA et al., 2009).

    Ferreira (2006) definiu a enfermagem como a arte do cuidar de enfermos e a ciência

    que cuida do ser humano, individualmente, na família ou em comunidade, de modo

    integral e holístico. Lima (1993) também descreveu a enfermagem como ciência e arte:

    “Fundamenta-se num corpo de conhecimentos e práticas, abrangendo do estado de

    saúde ao estado de doença, mediada por transações pessoais, profissionais, científicas,

    estéticas, éticas e políticas do cuidar de seres humanos".

    No exercício da profissão de enfermagem existe liberdade nas ações, porém essa

    liberdade implica em agir com responsabilidade. A preservação e o cuidado da vida

    humana exigem que o profissional atue com sabedoria e ética. Partindo desses

    princípios, surge a deontologia profissional com obrigações, proibições, direitos e

    deveres profissionais pelos quais os trabalhadores enfermeiros são determinados a

    cumprir, porém estão sujeitos a penalidades, caso venham a desconsiderar e/ou

    descumprir certas normas.

    De acordo com a classificação nacional das profissões, a Enfermagem é uma

    profissão liberal, na essência do serviço e do compromisso. Representa uma profissão

    classificada como intelectual e científica, seguindo o modelo de autorregulação. E para

    isso conta-se com o órgão regulador que estabelece o acesso à profissão, o controle do

  • 16

    exercício (designadamente pelas regras éticas e deontológicas, pela formulação de

    padrões de qualidade para o exercício), assumindo o poder jurisdicional e a sanção

    disciplinar, sendo a sua própria finalidade colocada a serviço do público (NUNES,

    2007).

    O cidadão que se constitui como enfermeiro deve conhecer e respeitar as normas

    regulamentadoras da profissão que estão contidas no Decreto-Lei n.º 161/96, que dispõe

    sobre o Regulamento do Exercício Profissional do Enfermeiro (REPE); no Código

    Deontológico de Enfermagem, disposto no Decreto-Lei 111/2009; e no Código de Ética

    de Enfermagem aprovado pela Resolução COFEN-311/2007 para aplicação na

    jurisdição de todos os Conselhos de Enfermagem.

    O enfermeiro, ao registrar-se como profissional, assume direitos e deveres éticos

    e deontológicos, os quais exigem que nas suas relações profissionais observem

    princípios e valores que são universais para humanidade.

    Na comunidade, o profissional tem a responsabilidade de promover a saúde e

    dar resposta adequada às necessidades em cuidados de enfermagem. No que se refere ao

    respeito do direito da pessoa à vida, durante todas as etapas da existência humana, o

    trabalhador da enfermagem assume deveres de manutenção e recuperação da vida e da

    qualidade de vida, agindo sempre com informação dos cuidados de enfermagem,

    obtendo o consentimento, garantindo o sigilo, respeitando a intimidade de maneira

    humanizada na assistência prestada, acompanhando o doente nas diferentes etapas,

    inclusive em fase terminal.

    As determinações legais para a execução da profissão foi instituída desde 1973

    pela Lei nº 5.905. A autarquia profissional de enfermagem é constituída pelo conjunto

    dos Conselhos Federal e Regionais de Enfermagem, com a finalidade de normatizar,

    disciplinar e fiscalizar o exercício da Enfermagem e de suas atividades em todo

  • 17

    Território Nacional, filiado ao Conselho Internacional de Enfermeiros, sediado em

    Genebra, vinculado ao Ministério do Trabalho e à Previdência Social.

    Os conselhos de enfermagem reconhecem o direito da população à assistência de

    enfermagem, pressupondo uma assistência de qualidade, livre de riscos e acessível,

    porém essa responsabilidade profissional leva os enfermeiros à vivência de dilemas e

    conflitos éticos e bioéticos.

    2.2. TRABALHO DO ENFERMEIRO OBSTETRA

    O Ministério da Saúde, em 1984, criou o Programa de Assistência Integral à

    Saúde da Mulher (PAISM), que estabelece o cuidado à saúde da mulher pelo sistema de

    saúde, com o objetivo de atender a mulher em sua fase reprodutiva. O PAISM, através

    de manuais, define o conteúdo das ações em saúde, normatizando os procedimentos e

    padronizando as condutas em relação às doenças sexualmente transmitidas; câncer

    cérvico-uterino e de mama; planejamento familiar; parto e puerpério; gravidez de baixo,

    médio e alto risco; assistência à adolescente e à mulher no climatério; assistência ao

    abortamento; assistência à concepção e anticoncepção (BRASIL, 1984).

    Atualmente a enfermagem obstétrica está sendo incentivada pelas políticas

    nacionais de saúde do Ministério da Saúde pela compatibilidade dessa formação com a

    contemporaneidade de atenção à gestação, ao parto e ao puerpério. O Ministério da

    Saúde apoia a enfermagem obstétrica e atribui ao enfermeiro a possibilidade de emissão

    de laudos de internação, define o enfermeiro obstetra como membro necessário na

    composição da equipe, além de regulamentar a emissão de declaração de nascimento

    por profissionais de saúde nos partos domiciliares (BRASIL, 1998; 2012).

    O trabalho dos enfermeiros obstetras é regulamentado pela lei do exercício

    profissional nº 7.498/86, artigo 6º inciso II que assegura ao profissional atuar no

  • 18

    acompanhamento do trabalho de parto e execução do parto normal sem distócias,

    realização de episiotomia e episiorrafia com aplicação de anestésico local, quando

    necessário, identificação das distócias obstétricas e tomada de providências até a

    chegada do médico, bem como a emissão de laudo de internação hospitalar

    (CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM, 2007).

    A atuação do enfermeiro obstetra é de grande importância na atenção à saúde da

    mulher no período gravídico-puerperal, contribuindo na melhoria da qualidade da

    assistência, desenvolvendo funções gerenciais e assistenciais, e, apesar do respaldo legal

    da profissão, enfrentam inúmeras dificuldades com a equipe de saúde do centro

    obstétrico. (BRASIL, 2001)

    A maternidade pública Albert Sabin, localizada na periferia da Cidade do

    Salvador e inaugurada na década de 1990, faz parte dessas ações do Ministério da

    Saúde, sendo considerada referência secundária para gestação de alto risco pela Central

    Estadual de Regulação (CER). Assim, recebe as gestantes com maior gravidade de todo

    Estado, realizando, em média, 300 partos por mês, contemplando as ações de Atenção

    Integral à Saúde da Mulher, utilizando a estratégia da Rede Cegonha (CONSELHO

    REGIONAL DE ENFERMAGEM DA BAHIA, 2014).

    A Rede Cegonha é uma estratégia do Ministério da Saúde, instituída no âmbito do

    SUS através da Portaria nº 1.459 de 24 de Junho de 2011, que visa a implementar uma

    rede de cuidados para assegurar às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e a

    atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério, bem como assegurar às

    crianças o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis.

    Esta estratégia tem a finalidade de estruturar e organizar a atenção à saúde materno-

    infantil no País e está sendo implantada, gradativamente, em todo o território nacional,

  • 19

    iniciando sua implantação de acordo o critério epidemiológico, taxa de mortalidade

    infantil e razão mortalidade materna e densidade populacional (BRASIL, 2012).

    O trabalho dos enfermeiros obstetras na maternidade estudada se apresenta com a

    alta demanda de atendimentos, superlotação, longos períodos em pé e com

    deslocamento em diversos momentos de um setor para outro em busca de resolução de

    problemas da unidade, caracterizando um trabalho intenso, com ritmo excessivo e

    desgaste físico e mental na execução das atividades. Por isso, os enfermeiros utilizam

    diversos artifícios que resultam no aumento das demandas sobre o corpo e sobre as

    capacidades cognitivas e psíquicas do enfermeiro (PEREIRA, 2013).

    Na organização do sistema de saúde, há incoerência entre a previsão real da

    demanda (demanda excedente) e a capacidade instalada disponível (real e necessária),

    produzindo perturbações na organização do processo de trabalho na maternidade,

    acarretando a sobrecarga de trabalho e sentimento de impotência e sofrimento nos

    trabalhadores (PEREIRA, 2013).

    Porém, a dificuldade de médicos obstetras e enfermeiros obstetras em delimitar

    funções e atribuições constitui a principal causa de conflitos do trabalho em equipe

    (TUESTA, 2003).

    As situações de conflitos acontecem quando os enfermeiros realizam o

    procedimento do parto normal, em que alguns profissionais percebem essa atuação

    como enfrentamento na tomada de decisões frente à assistência à parturiente. Essa

    dificuldade de aceitação do papel dos enfermeiros obstetras pela equipe médica inibe a

    realização do parto normal por enfermeiros, implicando em prejuízos na assistência à

    parturiente (ARAÚJO; OLIVEIRA, 2006).

  • 20

    No processo de trabalho dos enfermeiros obstetras observa-se a presença

    constante de conflitos e dilemas éticos e bioéticos devido principalmente às condições

    precárias de trabalho e às divergências dos profissionais da obstetrícia.

    2.3. BIOÉTICA

    Cotidianamente, os indivíduos se defrontam com a necessidade de pautar o seu

    comportamento em normas, as quais são aceitas e reconhecidas como obrigatórias. A

    partir da compreensão de que os homens agem moralmente na sociedade é que, de

    acordo com as normas, as pessoas guiam as suas ações e compreendem que têm o dever

    de agir desta ou de outra maneira, além de refletirem sobre o seu comportamento na

    vida prática e o tomarem como objeto da sua reflexão (VAZQUEZ, 2002).

    Nesse sentido, a Bioética, sendo um ramo da ética aplicada, contribui para a

    reflexão sobre os valores inerentes à vida e à saúde humana, abrangendo diversos

    posicionamentos com relação às mesmas situações, ensejando divergências pouco

    frequentemente superadas pelo diálogo, que podem evoluir para a discussão áspera e até

    para o conflito (SEGRE, 2002).

    Entretanto, essa tentativa de reflexão sistemática a respeito de todas as

    intervenções do homem sobre os seres vivos assume um objetivo árduo de identificar

    valores e normas que guiem o agir humano com relação à intervenção da ciência e da

    tecnologia sobre a própria vida e sobre a biosfera (SGRECCIA, 2009).

    No senso comum, a terminologia bioética é definida como “ética da vida” (do

    grego bios, “vida”, e ethike, “ética”) (PALÁCIOS et al., 2002).

    A Bioética considera que, ao vivenciar uma desorientação ou incerteza moral,

    somos levados a refletir sobre aquilo que é recomendado ou exigido pela moralidade e a

  • 21

    ponderar sobre o que devemos fazer, representando uma necessidade de justificação

    moral (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002). Por isso, evidenciamos diversos modelos

    éticos, a fim de solucionar os questionamentos em relação às ciências da vida.

    Neste estudo, abordaremos a Bioética Personalista, que coloca a pessoa como

    critério de avaliação frente a um dilema bioético, e a Bioética Principialista, que tem

    como pilares quatro princípios fundamentais: beneficência, não maleficência, autonomia

    e justiça. Além destes princípios, outros princípios descritos na Declaração Universal de

    Bioética e Direitos Humanos (UNESCO, 2005,) como vulnerabilidade, solidariedade,

    responsabilidade social e dignidade humana, serão incorporados às reflexões bioéticas

    dessa pesquisa.

    2.3.1. BIOÉTICA PRINCIPIALISTA

    A utilização de princípios para resolver situações de conflitos e dilemas da ética

    biomédica justifica a terminologia da teoria Bioética Principialista. Os princípios

    derivam de juízos ponderados no interior da moralidade comum e da tradição médica.

    Esses princípios não funcionam como diretrizes de ação precisas que nos informam

    como agir em cada circunstância. Os princípios são diretrizes gerais que deixam um

    espaço considerável para um julgamento, em casos específicos, e que proporcionam

    uma orientação substantiva para o desenvolvimento de regras e políticas mais

    detalhadas (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

    Os quatro princípios são: (1) o respeito pela autonomia (uma norma sobre o

    respeito pela capacidade de tomar decisões de pessoas autônomas), (2) a não

    maleficência (uma norma que previne que se provoquem danos), (3) a beneficência (um

    grupo de normas para proporcionar benefícios e para ponderar benefícios contra riscos e

    custos), (4) a justiça (um grupo de normas para distribuir os benefícios, os riscos e os

    custos de forma justa) (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

  • 22

    No sentido de tornar compreensível e aplicável o conhecimento ético e bioético,

    esses quatro princípios foram analisados nesse estudo. Até o momento esses princípios

    são os mais utilizados como referencial para abordagem de dilemas éticos na saúde e

    podem contribuir para a reflexão de situações no campo da Enfermagem.

    Na linguagem comum, a palavra “beneficência” significa compaixão, bondade e

    caridade. Refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros. A beneficência

    segue algumas regras morais, como: proteger e defender os direitos dos outros; evitar

    que os outros sofram danos; eliminar as condições que causarão danos a outros; ajudar

    pessoas inaptas; além de socorrer pessoas que estão em perigo (BEAUCHAMP;

    CHILDRESS, 2002).

    O princípio da beneficência é considerado o princípio fundamental para a

    assistência à saúde, por ser compreendido como uma ação a ser realizada em benefício

    do outro. No desenvolvimento das atividades da Enfermagem, tal princípio deve ser

    evidenciado a todos os profissionais, de forma a conscientizá-los da importância de tal

    valor na execução de qualquer ação sobre o ser humano. No gerenciamento dos serviços

    da profissão, a beneficência deve ser considerada durante todo o processo de tomada de

    decisão do enfermeiro com cargo gerencial, de modo que a decisão resulte em fatores

    positivos sobre todos os envolvidos (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

    O princípio da não maleficência determina a obrigação de não infligir dano

    intencionalmente, ou seja, acima de tudo não causar dano. As regras morais implicadas

    nesse princípio são: não matar; não causar dor, ofensa, sofrimento, incapacitação a

    outros, e não despojar outros dos prazeres da vida (BEAUCHAMP; CHILDRESS,

    2002). Na utilização deste princípio para reflexão e consequente tomada de conduta, é

    imprescindível estar atento e concentrado no contexto e, principalmente, nas crenças,

    valores e costumes pessoais, pois o que despercebidamente não causa dano a um

  • 23

    determinado indivíduo pode causar dano a outrem. No contexto da profissão, os

    profissionais devem primar em conhecer o ser humano a quem se destina o cuidado, na

    tentativa de compreender seus diversos aspectos sociais, políticos, econômicos,

    religiosos, dentre outros, para executar ações que não interfiram de forma negativa em

    suas crenças. O enfermeiro na função de gestor necessita fazer com que suas ações

    atendam à instituição, aos profissionais e aos clientes envolvidos (MARCON, 2005).

    O princípio do respeito à autonomia pode ser definido como uma questão de ter

    capacidade de controlar ponderadamente e de se identificar com desejos e preferências

    próprias. O respeito à autonomia é o reconhecimento do direito de a pessoa ter suas

    opiniões, fazer suas escolhas e de agir com base em suas crenças e valores pessoais, sem

    intervenções. Por isso, consideram-se duas condições essenciais para o exercício da

    autonomia: a liberdade (independência de influências controladoras), a qualidade de

    agente (capacidade de agir intencionalmente e com entendimento). Dizer a verdade,

    respeitar a privacidade dos outros, proteger informações confidenciais, obter

    consentimento para intervenções nos pacientes e, quando solicitado, ajudar os outros a

    tomar decisões importantes são regras morais referentes a esse princípio

    (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

    No fazer da Enfermagem, muitas vezes tal princípio é omitido pela preocupação

    central em executar as tarefas em tempo hábil. Tanto na assistência como no

    gerenciamento, é imprescindível que os profissionais se conscientizem para a

    importância de tal princípio como „guia‟ para toda a atividade a ser executada. Durante

    o cuidado, é necessário buscar a autonomia do cliente para prestar um cuidado

    personalizado e respeitoso. No gerenciamento, o respeito à autonomia do funcionário

    contribui para este sentir-se mais valorizado e respeitado, permitindo sua participação

  • 24

    em decisões, de forma que essas resultem em ações participativas e comprometidas pela

    equipe de enfermagem (MARCON, 2005).

    O princípio de justiça é interpretado como um tratamento justo, equitativo e

    apropriado, levando em consideração aquilo que é devido às pessoas. Há também de se

    considerar os princípios materiais de justiça que são: a todas as pessoas uma parte igual;

    a cada um de acordo com sua necessidade, seu esforço, sua contribuição e seu

    reconhecimento (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

    O enfermeiro, em todas as áreas do seu processo de trabalho, necessita alicerçar

    suas atitudes no princípio da justiça. Como exemplo dessa necessidade, tem-se o

    profissional gestor que, possuindo inúmeras atividades, necessita fazer escolhas de

    pessoas (para determinado cargo, atividade, horário, folga) e, para isso, precisa deste

    princípio muito bem esclarecido, evitando interferências advindas de amizades ou

    parentescos. Este princípio não é de fácil utilização, por envolver uma análise crítica

    aprofundada da situação em questão para tomar determinados posicionamentos

    (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

    Importante ressaltar que a consolidação da enfermagem na prática deveu-se,

    também, aos aportes da corrente principialista da bioética, ao adotar os princípios de

    autonomia, justiça, beneficência e não maleficência. Isso permitiu avanços importantes

    para superação de determinados conflitos produzidos pelo efeito indesejado das

    desigualdades no âmbito das relações sociais e profissionais, através da sistematização

    dos saberes pertinentes ao ofício, para constituir um campo profissional digno do ser

    humano e para o ser humano (BELLATO, 2003).

  • 25

    2.3.2. BIOÉTICA PERSONALISTA

    A tradição personalista aprofunda suas raízes na própria razão do homem e no

    coração de sua liberdade: o homem é pessoa porque é o único ser em quem a vida se

    torna capaz de “reflexão” sobre si, de autodeterminação; é o único ser vivo que tem a

    capacidade de captar e descobrir o sentido das coisas, e de dar sentido às suas

    expressões e à sua linguagem consciente (SGRECCIA, 2009).

    O homem é um indivíduo que se governa por si mediante a inteligência e a

    vontade; existe não só fisicamente, pois há nele um existir mais rico e mais elevado,

    uma superexistência espiritual no conhecimento e no amor.

    A pessoa humana se apresenta como o ponto de referência, o fim e não o meio.

    Desde a concepção até a morte, em qualquer situação de sofrimento ou de saúde, é a

    pessoa humana o ponto de referência e a medida entre o lícito e o não lícito.

    O indivíduo é um corpo espiritualizado, um espírito encarnado, que vale por

    aquilo que é e não somente pelas escolhas que faz. Em toda escolha a pessoa empenha

    aquilo que é a sua existência e a sua essência, o seu corpo e o seu espírito; nesse

    contexto a escolha engloba um fim, meios e valores (SGRECCIA, 2014).

    Dessa forma, se faz necessária a compreensão do significado da vida humana que

    se tem, além de considerar o homem em sua plenitude de valor (SGRECCIA, 2014).

    Lembrando que o corpo humano como valor não tem “preço” e, então, não é

    comercializável, a única possibilidade de “troca” se torna o “dom” inscritível no

    horizonte da gratuidade, da solidariedade, do altruísmo (SGRECCIA, 2014).

    Definir a essência humana como corporeidade e espiritualidade unidas significa

    explorar as profundezas reais que se escondem do “eu” e do “tu” na relação social

    (SGRECCIA, 2009).

  • 26

    Diante da pessoa, da saúde e da doença há quatro dimensões da saúde que se

    cruzam e se permeiam: a dimensão orgânica, a dimensão psíquica e mental, a dimensão

    ecológico-social e a dimensão ética (SGRECCIA, 2009).

    Considera-se a bioética como uma área de discussão sobre valores inerentes à vida

    e à saúde (SEGRE, 2002). Devido à complexidade de tais atividades, faz-se necessário

    adquirir conhecimento sobre ética e bioética, para subsidiar as decisões, de forma que

    satisfaça a todos.

    A bioética é um espaço multidisciplinar que envolve a área da saúde. Dessa

    forma, entendemos que o exercício da enfermagem deve se apropriar desse referencial

    de reflexão ética para nortear as suas práticas. No que se refere às relações com os

    pacientes tem-se observado, ainda, o paternalismo que remete ao critério bioético da

    beneficência (BOEMER, 2004). Presencia-se, no cotidiano das unidades de saúde, um

    aumento exponencial de complexidade tecnológica, científica e de relações humanas,

    gerando, dessa forma, a necessidade de um novo perfil para o profissional dessa unidade

    (TRAMONTIMI, 2002).

    Deve-se chamar atenção sobre a necessidade de estudos que avaliem os dilemas

    éticos e bioéticos na equipe de enfermagem e a relação desses com a qualidade de vida e

    a capacidade para o trabalho do enfermeiro.

    2.4. QUALIDADE DE VIDA EM SAÚDE

    Nahas (2006) entende a Qualidade de Vida (QV) como a medida da própria

    dignidade humana, além de considerar como a percepção de bem-estar resultante de um

    conjunto de parâmetros individuais e socioambientais modificáveis, ou não, que

    caracterizam condições em que vive o ser humano. Entre os socioambientais: moradia,

    transporte, segurança, assistência médica, educação, cultura, meio ambiente; como

  • 27

    parâmetros individuais: hereditariedade, estilo de vida (hábitos alimentares, controle do

    estresse, atividade física habitual, comportamento preventivo, relacionamentos).

    A qualidade de vida é uma percepção única e pessoal, o que denota a maneira

    como os pacientes percebem o seu estado de saúde e/ou aspectos não médicos de suas

    vidas (GILL; FEISNTEN, 1994).

    Considerando ser um conceito intrinsecamente subjetivo, dependente de uma série

    de fatores que constituem a percepção do observador de um dado objeto, pessoa ou

    evento, qualidade de vida pode ser definida como posicionamento do indivíduo em

    resposta física ou mental, diante dos estímulos construídos a partir de suas percepções

    em confronto com as expectativas elaboradas para determinadas condições reais ou

    aparentes. A qualidade de vida do trabalhador é uma forma simbólica da expressão da

    percepção do conjunto das condições de trabalho (BARBOSA FILHO, 2011).

    Para a Bioética Personalista, a análise da qualidade de vida deverá procurar dentro

    da pessoa a satisfação das necessidades e dos desejos, além do respeito e da promoção

    dos valores tipicamente humanos, sendo estes espirituais e/ou morais (SGRECCIA,

    2009).

    Segundo Chiavenato (2006), a qualidade de vida no trabalho – QVT –implica em

    profundo respeito pelas pessoas, para alcançar níveis elevados de qualidade e

    produtividade. Nesse sentido, as organizações precisam de pessoas motivadas que

    participem ativamente no trabalho e que sejam adequadamente recompensadas pelas

    suas contribuições.

    A qualidade de vida na prática dos profissionais de saúde tem sido considerada

    como qualidade de vida em saúde e, clinicamente, é usado para expressar o impacto

    físico e psicossocial causado pelas alterações físicas e biológicas produzidas por

    doenças e terapias que interferem nas condições de vida (MINAYO et. al., 2000).

  • 28

    Diante da diversidade de conceitos e da imanente subjetividade, alguns

    instrumentos foram desenvolvidos para avaliar a qualidade de vida. O Short Form 36

    Health Survey Questionnaire (SF-36) é um instrumento genérico de pesquisa utilizado

    em inquéritos de saúde. Foi desenvolvido no final dos anos 80 por Ware e Donald

    (WARE, 2000), sendo aplicado em numerosas situações. O SF-36 estabelece dois

    índices do estado de saúde, que incorpora várias dimensões, combinando aspectos

    físicos e cognitivos. A base conceitual de desenvolvimento do SF-36 é composta por

    “status funcional” e “bem estar” relacionados com a saúde (CICONELLI et.al, 1999).

    A avaliação da qualidade de vida é feita basicamente pela administração de

    instrumentos ou questionários que, em sua grande maioria, foram formulados na língua

    inglesa, direcionados para utilização na população que fala esse idioma. Portanto, para

    que possa ser utilizado em outro idioma, devem-se seguir normas preestabelecidas na

    literatura para sua tradução e, posteriormente, suas propriedades de medida devem ser

    demonstradas num contexto cultural específico. Sendo assim, o questionário SF-36 foi

    traduzido e adaptado culturalmente para a população brasileira de acordo com

    metodologia internacionalmente aceita (CICONELLI et.al, 1999).

    O SF-36 é autoaplicável, podendo também ser aplicado de forma

    computadorizada ou por telefone por um entrevistador treinado para as pessoas com

    idade igual ou superior a 14 anos. A duração média de aplicação deste questionário é de

    15 minutos, com elevado grau de aceitabilidade e qualidade dos dados.

    O questionário contém 36 itens, dos quais 35 encontram-se agrupados em oito

    dimensões (capacidade funcional, dor, aspectos físicos, aspectos emocionais, aspectos

    sociais, saúde mental, vitalidade e estado geral de saúde) e um último item que avalia a

    mudança de saúde no tempo, demonstrado no quadro 1. Para cada dimensão, os itens do

  • 29

    SF-36 são codificados, agrupados e transformados em uma escala de zero (pior estado

    de saúde) a 100 (melhor estado de saúde).

    Quadro 1- Taxonomia do SF-36

    ITENS DOMINIOS

    3a. Atividades vigorosas

    3b. Atividades moderadas

    3c. Levantar ou carregar mantimentos

    3d. Subir vários lances de escada

    3e. Subir um lance de escada

    3f. Curvar-se, ajoelhar-se ou dobrar-se

    3g. Andar mais de um quilômetro

    3h. Andar vários quarteirões

    3i. Andar um quarteirão

    3j. Tomar banho ou vestir-se

    Capacidade

    Funcional

    4a. Diminuir a quantidade de tempo

    4b. Realizar menos tarefas

    4c. Limitação em atividades

    4d. Dificuldade no trabalho

    Aspectos físicos

    7. Magnitude da dor

    8. Interferência da dor Dor

    1. Avaliação global da saúde

    11a.Adoecer mais facilmente

    11b. Tão saudável quanto

    11c. Saúde vai piorar

    11d. Saúde excelente

    Estado geral de

    Saúde

    9a.Vigor/vontade/força

    9e. Energia

    9g. Esgotamento

    91. Cansaço

    Vitalidade

    6. Interferência na vida social

    10. Interferência no tempo da vida social Aspectos sociais

    5a. Diminuir quantidade de tempo

    5b. Realizar menos tarefas

    5c. Cuidado com atividades

    Aspectos

    emocionais

    9b. Pessoa nervosa

    9c. Deprimido

    9d. Calmo/Tranquilo

    9f. Desanimado/abatido

    9h. Feliz

    Saúde mental

    Fonte: Ware (2000) / Adaptado

  • 30

    A confiabilidade dos oito domínios e das duas medidas sumarizadas tem sido

    estimada usando os métodos de consistência interna e teste-reteste. As publicações

    relatando estatística de confiabilidade do SF-36 têm demonstrado, com raras exceções,

    índices acima de 0,70, e até 0,80, para os diferentes domínios e, para as medidas

    sumarizadas, os coeficientes têm excedido 0,90. A revisão dos primeiros 15 estudos

    publicados revelou que a média dos coeficientes de confiabilidade para cada um dos

    oito domínios foi igual ou maior que 0,80, exceto para o domínio aspectos sociais, com

    média 0,76 (WARE, 2000).

    O quadro 2 apresenta um resumo do conteúdo do SF-36 com as médias dos

    escores em cada domínio para a população dos Estados Unidos, país de origem do

    instrumento, demonstrando também a confiabilidade de cada escala e o significado do

    menor e do maior escore.

  • 31

    Quadro 2- Resumo de conteúdo do SF-36 com a média, desvio padrão, confiabilidade e

    limite dos escores em cada domínio.

    Domínios

    Nº de

    itens

    Média

    DP

    Confiabilida

    de

    Menor escore

    possível (floor)

    Maior escore

    possível (ceiling)

    Capacidade

    funcional

    10

    84,2

    23,3

    0,93

    Muito limitado em

    realizar todas as

    atividades físicas,

    incluindo banhar-se e

    vestir-se

    Realiza todos os

    tipos de

    atividades físicas

    incluindo as mais

    vigorosas sem

    limitações a

    saúde

    Aspectos

    físicos

    4

    80,9

    34,0

    0,89

    Problemas com o

    trabalho ou outras

    atividades diárias

    como consequência

    da saúde física

    Nenhum

    problema com

    trabalho ou outras

    atividades diárias

    Dor

    2

    75,2

    23,7

    0,90

    Dor muito severa e

    extremamente

    limitante

    Nenhuma dor e

    nenhuma

    limitação devido

    à dor

    Estado geral

    de saúde

    5

    71,9

    20,3

    0,81

    Avalia sua saúde

    geral como muito

    ruim e acredita que

    ela piorará

    Avalia sua saúde

    pessoal como

    excelente

    Vitalidade

    4

    60,9

    20,9

    0,86

    Sente-se cansado ou

    esgotado todo o

    tempo

    Sente-se cheio de

    energia e vigor

    todo o

    tempo

    Aspectos

    sociais

    2

    83,3

    22,7

    0,68

    Interferência extrema

    e frequente de

    problemas físicos e

    emocionais nas

    atividades sociais

    Atividades

    sociais não

    sofrem

    interferência por

    problemas físicos

    ou emocionais

    Aspectos

    emocionais

    3

    81,3

    33,0

    0,82

    Problemas com o

    trabalho ou outras

    atividades diárias

    como consequência

    de problemas

    emocionais

    Nenhum

    problema com

    trabalho ou

    atividades

    diárias.

    Saúde

    mental

    5

    74,7

    18,1

    0,84

    Sentir-se nervoso ou

    deprimido todo o

    tempo

    Sentir-se feliz,

    calmo e tranquilo

    todo o tempo

    DP = Desvio padrão

    Fonte: WARE, 2000 / Adaptado

  • 32

    A validade de cada domínio foi avaliada através de estudos de análise fatorial. O

    primeiro é o de capacidade funcional, que tem sido a melhor medida de saúde física; o

    último domínio, saúde mental, foi o que teve o melhor desempenho nos testes de

    validação para avaliar saúde mental em diversos estudos. Contudo, esse domínio é a

    medida com pior desempenho para avaliar componente físico, e o domínio capacidade

    funcional é a pior para avaliação de componente mental. Os domínios de vitalidade e

    estado geral de saúde são válidos para avaliação de ambos componentes, físico e mental

    (WARE, 2000).

    Avaliação e interpretação do SF-36

    A interpretação dos resultados tem sido feita muito mais facilmente com a

    padronização dos escores médios e desvios-padrão para todas as escalas do SF-36,

    conforme disposição da segunda tabela. Especificamente, a pontuação normalizada com

    média 50 e desvio padrão 10 tem provado ser muito útil ao interpretar as diferenças

    entre as escalas no perfil SF-36 e para monitorar grupos de doenças ao longo do tempo

    (WERE, 2000).

    Apesar de serem amplamente utilizados no Brasil, os dados normativos

    disponíveis para a população geral são precários, dificultando a interpretação dos

    escores obtidos em diferentes grupos de pacientes (CRUZ,2010).

    2.5. CAPACIDADE PARA O TRABALHO

    A capacidade para o trabalho pode ser definida como recurso humano que reúne a

    capacidade física e mental, habilidades e conhecimentos, estilos de vida, além das

    condições sociodemográficas e valores (ILMARINEN, 2001).

    Essa capacidade para o trabalho é considerada como a base do bem-estar para

    todos, porém pode ser afetada por diversos fatores, influenciando o desenvolvimento da

  • 33

    atividade ocupacional bem como estilo de vida e o ambiente de trabalho (TUOMI et at.,

    2005).

    As exigências físicas e mentais positivas do trabalho promovem e protegem a

    saúde e a capacidade funcional do trabalhador (ILMARINEN, 2001). Porém, essas

    exigências podem gerar alterações fisiológicas agudas e crônicas, reações psicológicas e

    mudanças comportamentais, diminuindo a capacidade funcional e a capacidade para o

    trabalho, favorecendo o aparecimento de doenças relacionadas ao trabalho (TUOMI et

    al., 2005).

    A avaliação da capacidade para o trabalho pode ser realizada por meio da

    aplicação do instrumento Índice de Capacidade para o Trabalho – ICT–, que representa

    adequada abordagem individual e coletiva. O ICT foi desenvolvido por um grupo de

    pesquisadores filandeses com formação em psicologia, medicina, bioestatística,

    epidemiologia e profissionais da área de saúde ocupacional (TUOMI et at., 2005).

    Baseado na autopercepção dos trabalhadores, o ICT é um instrumento com

    objetivo de mensurar o “quão bem está, ou estará, um (a) trabalhador (a) neste momento

    ou num futuro próximo, e quão bem ele ou ela pode executar seu trabalho, em função

    das exigências, de seu estado de saúde e capacidades físicas e mentais” (TUOMI et al.,

    2005).

    O ICT é composto de sete itens, cada um avaliado por uma ou mais questões

    (quadro 3) que avaliam as exigências físicas e mentais do trabalho, o estado de saúde do

    trabalhador e seus recursos, físicos e mentais.

  • 34

    Quadro 3- Número de questões e pontos dos escores de cada dimensão do ICT

    Item Nº de

    questões Número de pontos (escore) das respostas

    1. Capacidade atual para o trabalho comparada com a

    melhor de toda a vida

    1 0 – 10 pontos

    (valor assinalado no questionário)

    2. Capacidade para o trabalho em relação às

    exigências do trabalho

    2 Número de pontos ponderados de acordo

    com a natureza do trabalho

    3. Número de doenças atuais diagnosticadas por médico

    1

    (lista de 51

    doenças)

    Pelo menos 5 doenças = 1 ponto.

    4 doenças = 2 pontos

    3 doenças = 3 pontos

    2 doenças = 2 pontos

    1 doença = 5 pontos

    Nenhuma doença = 7 pontos

    4. Perda estimada para o trabalho por causa de doenças

    1

    1-6 pontos (valor circulado no questionário;

    o pior valor

    escolhido)

    5. Faltas ao trabalho por doenças no último ano (12

    meses)

    1 1-5 pontos (valor circulado no questionário).

    6. Prognóstico próprio da capacidade para o trabalho daqui

    a 2 anos

    1 1, 4 ou 7 pontos (valor circulado no

    questionário).

    7. Recursos mentais * 3

    Os pontos das questões são somados e o

    resultado é contado da

    seguinte forma:

    Soma 0-3 = 1 ponto.

    Soma 4-6 = 2 pontos.

    Soma 7-9 = 3 pontos.

    Soma 10-12 = 4 pontos.

    Fonte: TUOMI et al., 2005

    *este item refere-se à vida em geral, tanto no trabalho como no tempo livre.

    O resultado atinge um escore de 7 a 49 pontos, que representam o conceito do

    trabalhador sobre sua capacidade para o trabalho. Esses escores são classificados em

    umas das quatro categorias do ICT (quadro 4), de maneira que indicam medidas

    necessárias a serem tomadas para restaurar, melhorar, apoiar e manter a capacidade para

    o trabalho.

  • 35

    Quadro 4 – Pontuação, escores e medidas necessárias do Índice de Capacidade para o

    Trabalho.

    Pontos Capacidade para o trabalho Medidas necessárias

    7-27 Baixa Restaurar a capacidade para o trabalho.

    28-36 Moderada Melhorar a capacidade para o trabalho.

    37-43 Boa Apoiar a capacidade para o trabalho.

    44-49 Ótima Manter a capacidade para o trabalho.

    Fonte: TUOMI et al., 2005

  • 36

    3. OBJETIVOS

    3.1. OBJETIVO GERAL

    Identificar os dilemas éticos e bioéticos referidos pelos enfermeiros

    obstetras e avaliar como os mesmos interferem na sua qualidade de vida

    relacionada à saúde e na sua capacidade para o trabalho.

    3.2. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

    Identificar os dilemas éticos e bioéticos referidos pelos enfermeiros obstetras;

    Avaliar como esses dilemas éticos e bioéticos interferem na sua qualidade de

    vida relacionada à saúde;

    Avaliar como esses dilemas éticos e bioéticos interferem na sua capacidade

    para o trabalho.

  • 37

    4. METODOLOGIA

    Trata-se de um estudo de método misto, qualitativo e quantitativo. A pesquisa de

    método misto oferece uma terceira alternativa alicerçada na dupla contribuição entre as

    duas abordagens metodológicas (TEDDLIE; TASHAKKORI, 2011). De acordo com

    Jonshonet al. (2007), o método misto consiste em:

    A pesquisa de método misto é o tipo de pesquisa na qual o

    pesquisador ou grupo de pesquisadores combinam elementos de

    abordagem qualitativa e quantitativa (ponto de vistas, coletas de

    dados, análises, inferências e técnicas qualitativas e quantitativas) no

    propósito de maior entendimento e compreensão (JONHSON et al.,

    2007, p123).

    A utilização de método misto é caracterizada pelo paradigma do pluralismo, tendo

    em vista: 1- considerar a posição alternativa de paradigma; 2- buscar a alternativa mais

    próxima às perspectivas do estudo (TEDDLIE; TASHAKKORI, 2011).

    A respeito da combinação de metodologias, a antropologia permite abordagens

    mais complexas com as seguintes regras: documentação estatística, observação do

    campo de estudo, desenvolver o olhar para diferentes fenômenos sociológicos e

    desenvolver a escuta na busca de compreender o objeto de estudo no seu contexto social

    (MINAYO, 2010).

    A complexidade da pesquisa de método misto envolve questões epistemológicas

    da objetividade e subjetividade, tendo-se como entendimento que os fenômenos sociais

    podem ser categorizados em sua análise qualitativa inserida em um contexto social.

    Na presente pesquisa, procurou-se identificar se os dilemas éticos e bioéticos

    vivenciados pela equipe de trabalhadores da enfermagem interferem em sua qualidade

    de vida e capacidade para o trabalho.

  • 38

    O método utilizado para análise qualitativa dos dados foi análise temática. O

    referido método considera a totalidade do texto na análise, passando-o por uma crítica

    de classificação e de quantificação, segundo a frequência de presença ou ausência de

    itens de sentido. É um método de gavetas ou de rubricas significativas que permitem a

    classificação dos elementos de significação constitutivos da mensagem (BARDIN,

    2011).

    Para análise quantitativa foi desenvolvido um instrumento de coleta de dados

    sociodemográficos (Apêndice 1), aplicado o questionário Short Form Health Survey

    (SF-36), versão Brasileira (CICONELLI at al, 1999), e o questionário de Índice de

    Capacidade para o Trabalho (TUOMI et al, 2005).

    A pesquisa foi realizada em uma maternidade pública da cidade de Salvador-BA.

    Participaram do estudo 10 enfermeiros que atuavam em diversos setores da

    maternidade. Os critérios de inclusão na pesquisa foram: ser enfermeiro atuante de

    qualquer setor da maternidade e que voluntariamente desejassem contribuir com o

    estudo. Foram excluídos do estudo os enfermeiros que estavam de férias e/ou licença,

    bem como aquelas que exerciam cargos administrativos.

    A coleta de dados ocorreu nos meses de maio e junho de 2014. Foram realizadas

    entrevistas, utilizando-se um roteiro para entrevista semiestruturada, com tópicos

    norteadores para identificar se os dilemas éticos e bioéticos podem interferir no trabalho

    e na sua qualidade de vida. O instrumento semiestruturado teve como referencial teórico

    o Código de Ética do enfermeiro, a Bioética Principialista, segundo Beauchamp e

    Childress, a Bioética Personalista, como descreve Sgreccia, assim como questões do

    SF-36, instrumento que avalia qualidade de vida em saúde, com medidas de resumo de

    saúde física e mental.

  • 39

    Após a gravação e transcrição das entrevistas, seguiu-se a técnica de análise

    temática, como descreve Bardin (2011), constituída por três etapas: a pré-análise,

    realizada com a leitura flutuante, obtendo um contato exaustivo com o material; a

    exploração do material, possibilitando a determinação das unidades de registro

    codificação e recorte das falas; e na última fase procedeu-se ao tratamento dos

    resultados obtidos e a interpretação, além da reflexão das temáticas identificadas com a

    literatura científica.

    A discussão dos aspectos éticos e bioéticos foi baseada na teoria principialista de

    Beauchamp e Childress (2002), no manual de Bioética de Elio Sgreccia (v.1 2009 e v.2

    2014) e na Carta Universal de Direitos Humanos da UNESCO (2005).

    O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina

    da Bahia da Universidade Federal da Bahia, com número CAAE

    26032313.3.0000.5577. Foram respeitadas as diretrizes e normas regulamentadoras de

    pesquisa envolvendo seres humanos do Conselho Nacional de Saúde na sua Resolução

    nº 466/12, com utilização do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

    As entrevistas foram realizadas pela mesma pesquisadora em ambiente reservado.

    Foram utilizados vários locais da própria maternidade, com a finalidade de ser um local

    reservado e confortável para o entrevistado, respeitando a privacidade dos participantes.

    Os locais utilizados foram a sala da coordenação de enfermagem, o conforto de

    enfermagem e a recepção do ambulatório, quando o expediente já havia terminado.

  • 40

    5. RESULTADOS E DISCUSSÕES

    Aproximação com o campo de pesquisa

    A realização da presente pesquisa representou um desafio para a pesquisadora,

    sendo necessário, antes do início do estudo, sua aproximação com o campo de estudo.

    Inicialmente, a pesquisa seria realizada numa instituição privada/ filantrópica. No

    entanto, houve uma negação da referida instituição, alegando que a mesma estava em

    momento delicado com a categoria de trabalhador a ser estudada, inviabilizando a

    submissão do projeto no CEP da mesma. A negativa institucional foi acompanhada da

    justificativa de que a pesquisa poderia fomentar um comportamento indesejado na

    equipe de enfermagem.

    Por essa razão, a pesquisa foi realizada no serviço público, sendo o campo de

    trabalho definido após reunião com Diretora da Maternidade Albert Sabin. O projeto foi

    avaliado pela instituição antes de receber anuência para submissão ao CEP FMB-

    UFBA.

    No processo de avaliação do projeto pela instituição, foi realizado um encontro

    presencial para apresentação do mesmo e esclarecimento de dúvidas. Após recebimento

    de anuência da Maternidade Albert Sabin, o projeto foi avaliado e aprovado pelo CEP

    FMB-UFBA. Tendo havido a aprovação pelo CEP, comunicamos à Direção da

    Maternidade Albert Sabin, a fim deiniciarmos o trabalho de campo. Minha participação

    foi marcada por um período de conhecimento institucional, inclusive com participação

    de reunião na maternidade, que objetivou melhor condução do processo, sendo feitos os

    ajustes de horários de permanência na unidade.

    O trabalho começou a ser realizado com grandes expectativas: a experiência do

    campo, a delicadeza da abordagem aos colegas e necessidade de afastamento do objeto

  • 41

    de estudo no qual a pesquisadora se encontrava inserida como enfermeira atuante. Para

    facilitar o acesso aos colegas, o projeto foi divulgado pela coordenação de enfermagem

    e registrado no livro de ocorrência local. Antes de iniciar a coleta de dados, os

    enfermeiros foram informadas sobre os objetivos da pesquisa, sua metodologia, da

    voluntariedade em participar ou não, bem como o direito e liberdade de se retirar o

    consentimento em qualquer fase da pesquisa, independente do motivo, e sem nenhum

    prejuízo.

    A pesquisa somente foi iniciada após a adaptação e aproximação da pesquisadora

    com o campo, de forma que a mesma incorporou-se ao espaço, havendo tranquilidade

    em sua circulação no campo de estudo. Apesar de a pesquisadora ser enfermeira, não

    pertencia à equipe de enfermeiros da instituição da pesquisa. As entrevistas foram

    diariamente gravadas e transcritas, sendo realizada leitura exaustiva, ainda na fase de

    coleta, determinando o ponto de saturação dos dados e encerramento da coleta.

    Durante a coleta de dados, foi possível perceber que o momento da entrevista

    funcionava como um desabafo profissional. Os enfermeiros demonstravam interesse

    pessoal em participar da pesquisa. A aparência das participantes era de esgotamento

    físico mental e até mesmo, aspecto apático. Ainda que houvesse uma negação verbal

    desse estado, o mesmo era visível e inquestionável ao observador. Muitos participantes

    se esforçavam para dar respostas positivas aos questionamentos. Parecia que algo ou

    alguma situação estava sendo encoberta pelos enfermeiros entrevistadas. Após início da

    pesquisa, os murais da unidade ganharam um renovo, com mensagens falando sobre o

    comportamento ético das pessoas e incentivando as boas práticas.

    No ambiente de trabalho, puderam-se observar momentos saudáveis e tensos entre

    as equipes multiprofissionais. Esses momentos funcionavam como estimulante ou

    desanimador para o exercício profissional.

  • 42

    No que tange às reações frente aos dilemas profissionais, foi observado que os

    enfermeiros com menos tempo de exercício profissional apresentavam discursos

    contraditórios sobre sofrimento no trabalho; já os enfermeiros com mais tempo de

    serviço referiram mais frequentemente e abertamente sobre traumas na vida social e

    emocional como também na saúde, vinculados ao trabalho. As mesmas manifestavam

    sentimentos de ansiedade pela aposentadoria como forma de livramento do sofrimento

    no trabalho.

    Os discursos das participantes da pesquisa durante as entrevistas foram marcados

    com frases impactantes que englobam os mais diversos conteúdos desse estudo. As

    principais frases foram: “Enfermagem por amor, sem prazer” (I2), “Enfermagem por

    amor, com sacrifício de vida pessoal e sem retorno” (I3), “O trabalho é um refúgio... só

    tenho alegria para o trabalho” (I4), “Eu era mais feliz antes de ser enfermeira” (I8), “É

    melhor fazer, né?! Não é meu dever? Então vou fazer, sim” (I10), “Existe sofrimento,

    não sei se propriamente isso, sofrimento mental, mas um massacre mental para o

    profissional enfermeiro sim” (I8), entre outras.

    Durante o desenvolvimento do trabalho de campo pude experimentar a

    dificuldade em garantir a confiabilidade e legitimidade da pesquisa, tendo que exercer a

    capacidade de dominar a técnica de saturação dos dados coletados conforme a técnica

    de Bardin (2011). Por ser enfermeira, tive o cuidado de manter distanciamento

    necessário para não interferir no estudo, disponibilizando mais tempo para coletar os

    dados. A pesquisadora absteve-se de realizar comentários sobre os relatos durante as

    entrevistas para não influenciar o objeto de estudo. No processamento e análises dos

    dados, a neutralidade e a objetividade do conhecimento científico foram priorizadas.

  • 43

    Caracterização da amostra

    Foram estudados 10 indivíduos, sendo nove do sexo feminino e um do sexo

    masculino. A idade média foi 41,1 anos e o desvio padrão de 8,3. Todos eram não

    fumantes e dois indivíduos referiram consumo de álcool.

    Tabela 1 - Características do trabalho de dez enfermeiros de uma maternidade,

    Salvador, 2014.

    Característica Média ± DP Mínimo - Máximo

    Carga horária semanal 44,2 ± 12,3 30 - 66

    Renda (reais) 4.130 ± 1.625 3.000 – 8.000

    Tempo na função 16,2 ± 8,1 8 - 31

    ICT (Pontos totais) 35,4 ± 6,5 25 - 46

    Capacidade para o trabalho (avaliação subjetiva)a 7,7 ± 1,4 5 - 9

    Capacidade Física (avaliação subjetiva)b

    4,1 ± 1,0 2 - 5

    Saúde Mental (avaliação subjetiva)b 3,9 ± 0,9 2 - 5

    Fonte: Questionário sociodemográfico e ICT. a – Numa escala de 0 a 10.

    b – Numa escala de 1 a 5.

    Uma pergunta do questionário Índice de Capacidade para o Trabalho (ICT)

    possibilita a avaliação subjetiva da saúde individual atual, comparada há um ano. Seis

    dentre os dez profissionais entrevistados afirmaram a manutenção do estado geral de

    saúde (Tabela 2).

    Tabela 2 - Avaliação subjetiva da saúde geral há um ano, por dez enfermeiros de uma

    maternidade de Salvador, 2014.

    Saúde há 1 ano N

    Muito melhor 2

    Um pouco melhor -

    Quase a mesma 6

    Um pouco pior 2

    Muito pior -

    Total 10

    Fonte: Questionário SF-36

  • 44

    A qualidade de vida relacionada à saúde, medida por meio do SF-36, revelou

    escores particularmente baixos para os domínios Aspectos Emocionais (41,7 ± 14,9) e

    Aspectos Sociais (43,0 ± 14,3), que contribuíram substancialmente para o baixo escore

    do Componente de Saúde Mental (43,3 ± 15,8). (Tabela 3)

    Os escores normalizados do SF-36 devem ser interpretados como comparações

    com os escores para a população padrão dos Estados Unidos, que assumem média igual

    a 50 e desvio padrão igual a 10.

    Tabela 3 – Escores brutos e normalizados dos domínios e componentes sumários do SF-36 em

    dez enfermeiros de uma maternidade de Salvador, 2014.

    Domínio / Componente Sumário

    Escore Bruto

    Escore Normalizado

    Capacidade Física 84,0 ± 17,9 50,4 ± 7,5

    Aspectos Físicos 72,5 ± 41,6 48,5 ± 11,8

    Dor 73,3 ± 27,5 51,3 ± 11,8

    Estado Geral de Saúde 68,7 ± 23,1 49,4 ± 10,8

    Vitalidade

    61,0 ± 24,0 51,9 ± 11,4

    Aspectos Sociais 67,5 ± 32,9 43,0 ± 14,3

    Aspectos Emocionais 56,7 ± 47,3 41,7 ± 14,9

    Saúde Mental

    69,2 ± 22,3 46,6 ± 12,7

    Componente Saúde Física _ 52,7 ± 9,7

    Componente Saúde Mental

    _ 43,3 ± 15,8

    Fonte: Questionários SF-36

    Seis indivíduos apresentaram níveis baixos do escore do Componente Saúde

    Mental, segundo o SF-36, e, destes seis, apenas um reconheceu ter baixa capacidade

    mental, segundo a questão 3 do ICT, que avalia subjetivamente a capacidade mental.

    Apesar de 60% das participantes apresentarem baixos escores do Componente

    Saúde Mental, no escore do Componente Saúde Física apenas dois informantes

    estiveram abaixo da média, segundo o SF-36.

  • 45

    Na avaliação subjetiva de capacidade física, baseada na questão 1 do ICT, 80%

    dos entrevistados se consideraram com capacidade física boa e muito boa; 10%,

    moderada; e 10%, baixa.

    Os escores normalizados do SF-36 dos Componentes Saúde Física e Saúde Mental, a

    classificação do Índice de Capacidade para o Trabalho e os relatos dos participantes

    foram correlacionados no Quadro 5.

  • 46

    Quadro 5 - Escores normalizados do Componentes Saúde Física e do Componente Saúde Mental do SF-36; Pontuação e Classificação do ICT;

    Comentários e Depoimentos de dez enfermeiras de uma maternidade de Salvador, 2014.

    SF – 36 ICT

    COMENTÁRIOS DEPOIMENTOS

    En

    ferm

    eiro

    /a

    Saú

    de

    Fís

    ica

    Saú

    de

    Men

    tal

    Pon

    tuaçã

    o

    Cla

    ssif

    icaçã

    o

    Cap

    aci

    dad

    e

    Atu

    al

    Para

    o

    Tra

    balh

    o *

    Cap

    aci

    dad

    e

    Men

    tal

    Para

    o

    Tra

    balh

    o**

    1 48,66 24,48 27

    Bai

    xa

    5 3

    CSF abaixo da média, CSM muito abaixo da média e

    ICT baixo. Análise subjetiva: considerou-se com

    qualidade de vida mediana. Demonstrou sofrimento com

    ausência de normas e protocolos no trabalho.

    Por falta de parâmetros padrões na

    equipe, em determinado plantão a equipe

    conduz daquela forma; em outro plantão,

    a equipe entende que é de outra forma...

    Isso desgasta... O que pode em um, não

    pode no outro?!

    2 50,90 34,75 33

    Mo

    der

    ada

    7 4

    CSF com valor médio, CSM muito abaixo da média e

    ICT moderado. Análise subjetiva: Demonstrou

    ansiedade para se livrar do trabalho. Informou trauma

    social, emocional e familiar. Relatou que se encontra em

    tratamento multidisciplinar com psicólogos,

    nutricionistas, psiquiatra, acupuntura e educador físico.

    Informa arrependimento por ter priorizado o trabalho.

    Enfermagem por amor, sem prazer.

    Vamos pensar em cuidar do cuidador

    também... Vamos pensar nisso.

    3 67,78 18,80 39

    Boa 7 2

    CSF com valor acima da média, CSM muito abaixo da

    média e ICT bom. Análise subjetiva: Demonstrou

    indignação com a profissão, desânimo com a pouca

    valorização do trabalho e falta de autonomia

    profissional.

    Enfermagem por amor, com sacrifício de

    vida pessoal e sem retorno.

  • 47

    4 54,35 62,93 34

    Moder

    ada

    9 4

    CSF com valor médio, CSM acima da média e ICT

    moderado. Análise subjetiva: Considerou-se com

    excelente capacidade física. Relatou Abandonou tudo

    pelo trabalho. Informou depressão quando está em casa.

    O trabalho é o meu refúgio.

    Só tenho energia para o trabalho.

    5 60,03 58,67 46 Ó

    tim

    a 9 5

    CSF e CSM acima da média e ICT ótimo. Análise

    subjetiva: Considera-se com ótima capacidade física e

    mental. Demonstrou esforço em dar respostas corretas

    (tentativa de camuflagem?), relatou situações de

    sofrimento no trabalho.

    Depende muito do plantão, da situação

    que agente vive... se você vive uma

    situação de superlotação, você vê a

    necessidade do seu paciente... você se vê

    numa emergência sem leito para atender

    esse paciente, isso leva ao sofrimento

    mental...

    6 43,36 44,83 32

    Moder

    ada

    8 5

    CSF e CSM abaixo da média e ICT moderado. Análise

    subjetiva: Aparentou calma, porém apresentou-se

    deprimida com as exig6encias do trabalho.

    Agora ficar sempre essa coisa: tudo é a

    enfermagem. Aqui tem muito esse

    problema.

    7 33,11 29,68 25

    Bai

    xa

    6 4

    CSF e CSM muito abaixo da média e ICT baixo.

    Análise subjetiva: Discursou com oscilação de

    comportamento, ora com disposição, ânimo e aparência

    de felicidade no exercício profissional e por vezes

    deprimida, abalada emocionalmente e desiludida.

    Relatou sobre-esforço no trabalho.

    Com todas as restrições, eu sou a primeira

    a carregar para disponibilizar aquele

    equipamento na hora. A vida do outro é

    sempre muito importante, e a gente até

    esquece da nossa em prol da vida do

    outro.

    8 57,68 57,48 40

    Boa 9 4

    CSF e CSM com valores médios e ICT bom. Análise

    subjetiva: Na avaliação subjetiva relatou excelente

    capacidade para o trabalho. Relatou satisfação para

    exercer a profissão, mas cobrança desigual de

    responsabilidade no trabalho.

    A todo o momento nós somos cobrados,

    não só da clientela, como também dos

    outros profissionais... a assistência de

    enfermagem está 24 horas, então tudo de

    certo que acontece os médicos recebem as

    palmas e tudo de errado que acontece o

  • 48

    enfermeiro é responsabilizado.

    9 51,64 58,76 41

    Boa 9 4

    CSF e CSM com valores médios e ICT bom. Análise

    subjetiva: Relatou satisfação com vinculo estatutário,

    mas aparentou sofrimento mental no discurso sem

    autopercepção do mesmo.

    A gente tem que aprender a se fazer de

    maluca mesmo (risos) para sobreviver.

    10 58,00 41,04 37

    Boa 8 4

    CSF mediano, CSM abaixo da média e ICT bom.

    Análise subjetiva: Aparentou desânimo, abatimento e

    apatia. Evidenciou desgaste físico e mental, fala fraca e

    andar arrastado.

    É melhor fazer, né?! Não é meu dever?!

    Os riscos ergonômicos, sobrecarga de

    trabalho, as noites perdidas, entendeu? A

    gente tem que ter dois vínculos para

    poder realmente ter qualidade de vida. A

    gente tem um ambiente sem ventilação,

    aumento de pessoas... tudo isso é risco.

    *AVALIAÇÃO SUBJETIVA CAPACIDADE TOTAL PARA O TRABALHO/ Questão 1 do ICT – Escala: 0(incapaz para o trabalho) a 10(melhor capacidade para o trabalho).

    ** AVALIAÇÃO SUBJETIVA CAPACIDADE MENTAL / Questão 2b do ICT – Escala: 1(muito baixa) a 5 (muito boa).

  • 49

    Categorias temáticas

    Foram identificadas sete temáticas que serão apresentadas a seguir: Representação

    das questões éticas e bioéticas no trabalho da enfermagem; Percepção da qualidade de

    vida relacionada à saúde; Aspectos éticos e bioéticos para ter qualidade de vida;

    Influência do trabalho na vida pessoal; Capacidade para o trabalho; Descrição do

    processo de trabalho e Principais dilemas éticos e bioéticos identificados na prática da

    enfermagem.

    1) Representação das questões éticas e bioéticas no trabalho da enfermagem

    Os sujeitos da pesquisa, ao se referirem às questões éticas e bioéticas no trabalho

    da enfermagem consideraram de fundamental importância o cumprimento normas e

    diretrizes do exercício profissional e o respeito do direito à vida do outro. Constituindo-

    se como aspectos deontológicos em detrimento dos aspectos humanísticos; apesar de

    alguns momentos ficarem em segundo plano em nome da política de sobrevivência no

    ambiente de trabalho, conforme explicitado nas falas seguintes.

    [...] Eu vejo como as normas morais que eu sigo para estar

    direcionando minha profissão e todo processo de trabalho. E a

    bioética são diretrizes éticas, morais as normas que a gente

    institui em relação à vida do outro que está sob os nossos

    cuidados. (I3)

    [...] A bioética ainda em alguns momentos vem sendo colocada

    em segundo plano e as pessoas, às vezes para satisfazer o ego,

    esquecem. (I8)

    Esse comportamento ético se estabelece com a finalidade de garantir o equilíbrio

    biopsicossocial do enfermeiro para prestação de uma boa assistência.

    O Conselho Federal de Enfermagem enfatiza que o aprimoramento do

    comportamento ético do profissional de enfermagem passa pelo processo de construção

    de uma consciência individual e coletiva, pelo compromisso social e profissional,

    configurado pela responsabilidade do plano das relações de trabalho com reflexos nos

  • 50

    campos técnico, científico e político. O decreto nº 94.406 de 1987 traz a incumbência de

    todo pessoal de enfermagem cumprir o Código de Deontologia da Enfermagem

    (CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM, 2007).

    Por ética deontológica entende-se toda concepção ética, que compreende certos

    deveres categóricos e certas proibições que têm precedência incondicionada sobre

    outras preocupações morais e sobre considerações de índole finalística e funcionalista

    (SGRECCIA, 2009).

    Oliveira (2011) concluiu que, embora com dificuldade para reconhecer os

    conflitos e dilemas éticos, os enfermeiros tomam decisões, e essas são fundamentadas

    na deontologia e na bioética. Ao fazê-lo, procuram manter o equilíbrio emocional da

    equipe e a harmonia no ambiente de trabalho.

    2) Percepção da qualidade de vida relacionada à saúde

    Esta categoria, que refletiu a expressão qualidade de vida no trabalho, trouxe

    consigo contradições pelo fato de possuir conceito subjetivo dependente de vários

    fatores sociais, psicológicos, emocionais, espirituais e até mesmo éticos.

    Neste estudo, a percepção dos indivíduos sobre sua qualidade de vida, revelou que

    os mesmos a consideram como comprometida, regular, em decorrência de uma carga

    horária de trabalho excessiva. A maioria dos profissionais tinham dois vínculos

    empregatícios, por necessidade de melhorar a remuneração a fim de atender suas

    Necessidades Humanas Básicas (NHB), como moradia, alimentação, bens e conforto,

    bem como a garantia da sustentabilidade da família.

    Foi possível observar, na descrição das falas citadas abaixo, a diversidade das

    definições de qualidade vida dos participantes, como: a) ter tempo; b) bem-estar na

    saúde, lazer, trabalho; c) cuidar de si mesmo, viver e não sobreviver; d) estar perto da

    família e amigos; e) se divertir e estar presente nos eventos sociais; f) bem-estar

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    biopsicossocial; g) garantir o sustento familiar; h) ter satisfação no trabalho, conquistas

    e conforto.

    [...] Qualidade de vida são as formas que você escolhe para ser

    feliz. Eu estava péssima, porque eu tinha uma sobrecarga de

    trabalho muito grande, estava me afastando da minha família e

    do meu filho, do meu marido e da minha família como todos os

    meus amigos. (I3)

    [...] Qualidade de vida é o padrão de saúde, de estar bem para

    atender bem. O cuidador tem que ser cuidado também porque

    ele é ser humano, então ele precisa estar bem

    biopsicossocialmente, precisa estar saudável mentalmente,

    precisa estar saudável fisicamente, precisa estar saudável

    socialmente, ter saúde social, porque se não se sentir bem com

    ele, ele não vai se sentir bem com o grupo de trabalho e também

    ele pode transparecer isso para os usuários. (I6)

    Na avaliação da Qualidade de Vida, deve-se procurar dentro da pessoa a

    satisfação das necessidades e dos desejos, além do respeito e da promoção dos valores

    tipicamente humanos, sendo estes espirituais e/ou morais (SGRECCIA, 2014).

    Ao interferir em sua qualidade de vida, o profissional muda atitudes, tanto no

    âmbito intrafamiliar quanto no intra-hospitalar, podendo comprometer o relacionamento

    interpessoal no trabalho e a qualidade do atendimento aos clientes, o que trará

    certamente consequências ao indivíduo e/ou à população assistida (FERREIRA;

    MARTINO, 2006).

    Por isso a saúde deve ser entendida como um equilíbrio dinâmico condicionado

    por quatro dimensões: a dimensão biológica, ou física, a dimensão psicológica, a

    dimensão socioambiental e a dimensão ética (SGRECCIA, 2014).

    3) Aspectos éticos e bioéticos para ter qualidade de vida

    Quando abordados sobre os aspectos éticos e bioéticos necessários para ter

    qualidade de vida, os enfermeiros referiram a importância do trabalho em equipe, com

    respeito, responsabilidade e compromisso. Além disso, foram referidos como fatores de

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    promoção da qualidade de vida: o estabelecimento e o cumprimento da deontologia

    como mecanismo de evitar conflitos entre as equipes multiprofissionais; agir com

    resolutividade nas tomadas de decisão, redução de carga horária e, consequentemente,

    da demanda de trabalho.

    [...] Ter normas bem definidas pra você saber exatamente o que

    é sua função e não ficar tendo que ficar se chocando com os

    outros profissionais pra decidir o que é seu e o que é do outro,

    ter embates que firam a própria ética nas relações. (I1)

    [...] Quando eu me submeto a vários vínculos empregatícios

    quando na verdade, muitas vezes, a questão física e a questão

    emocional não favorecem que você dê conta do todo. Mas,

    infelizmente, para manter um padrão de qualidade de vida que a

    gente julga necessário, a gente acaba se submetendo. (I3)

    [...] Essa questão do compromisso, responsabilidade, do

    respeito, que eu acho que são fatores imprescindíveis no

    ambiente do trabalho, porque se você tem um ambiente saudável

    nesse sentido, consequentemente, você vai ter um lado

    psicológico mais saudável, e isso se reflete de modo positivo,

    porque eu vou sair mais leve do trabalho, consequentemente, eu

    não vou chegar em minha casa com nível de stress muito

    elevado e, de certa forma, descontando isso em outros setores

    como família, ambiente escolar, ambiente de lazer ou numa

    academia. (I5)

    [...] No momento que as equipes conseguirem se tratar com

    ética, eu acho que vai melhorar bastante minha qualidade de

    vida, porque um momento que me irrita é esse, às vezes uma

    irritação que eu saio daqui em um plantão e levo isso para casa,

    porque a gente é ser humano e não tem jeito, não dá pra sair

    daqui e deixar aqui e as vezes você tem uma noite ruim por

    causa daquilo, até um outro dia ruim por causa daquilo

    martelando em sua mente. (I9)

    Tratar os colegas e outros profissionais com respeito e consideração faz parte dos

    deveres contidos no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (CONSELHO