Dilermando Reis

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PERSONAGEM DILERMANDO REIS "urante quatro décadas, Diler- mando Reis percorreu todos os ca- minhos que um instrumentista é ca- paz de conhecer. Com seu violão, compartilhou da boémia dos grandes centros urbanos e vasculhou todo o interior do Brasil. Participou de se- restas nas madrugadas da Guanaba- ra e da Paulicéia. Tocou em lojas de venda de partituras, foi artista de rá- dio, atração de cassinos, teve sua or- questra e completou muitos conjun- tos alheios. Dilermando compôs, gravou, ensinou. Orgulhou-se de sua amizade com Juscelino Kubits- chek, que fez dele um dos pioneiros da construção de Brasília: "Ajudei a construir o Catetinho com minhas próprias mãos, meu violão foi o pri- meiro ouvido nos céus da nova ca- pital, fiz a primeira música em home- nagem à cidade que nascia...". En- fim, Dilermando Reis fincou seu no- me, a sua marca, na história da mú- sica no Brasil. O músico nasceu em Guaratin- guetá, SP, em setembro de 1916. Aprendeu a tocar com o pai, Chico Reis, um violonista diletante. Aos quinze anos, quando encantava a família e os vizinhos com seu talen- to, conheceu um exímio concertista cego, Levino da Conceição. Diler- mando deslumbrou-se com o músi- co e resolveu segui-lo aonde fosse. A dupla passou meses visitando os pontos mais escondidos do Bra- sil. Levino apresentava Dilermando como o seu melhor aluno. E este, na verdade, começou a superar o mes- tre, a extrair de seu instrumento ideias mais ricas e mais elaboradas. Talvez por isso, certa ocasião, Le- vino procurou o garoto e disse: "Eu vou a Campos, depois à Bahia. En- Em quarenta anos de carreira, Dilermando formou diversas gerações de violonistas. tão, mando te apanhar". Não man- dou. Apenas deixou pagos quinze dias de hotel para Dilermando, e su- miu do mapa. Num depoimento à Rádio Jornal do Brasil, o bem-hu- morado Dilermando relembra: "Fi- quei num mato sem cachorro. Sem dinheiro e sem ninguém, perdido no Rio. Daí, como o Levino não apa- receu e nem deu notícias, resolvi lu- tar pela vida, só eu e meu violão". Foram tempos bicudos, aqueles. Para sobreviver, Dilermando dava aulas de seu instrumento, por pre- ços insignificantes. Seus conheci- mentos, todavia, se ampliavam. Um de seus alunos levou-o ao Bandolim de Ouro, uma das lojas musicais mais famosas da época. Do Bando- lim, Dilermando ganhou uma apre- sentação para outra casa importan- te, a Guitarra de Prata. Empregou-

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P E R S O N A G E M

DILERMANDOREIS

"urante quatro décadas, Diler-mando Reis percorreu todos os ca-minhos que um instrumentista é ca-paz de conhecer. Com seu violão,compartilhou da boémia dos grandescentros urbanos e vasculhou todo ointerior do Brasil. Participou de se-restas nas madrugadas da Guanaba-ra e da Paulicéia. Tocou em lojas devenda de partituras, foi artista de rá-dio, atração de cassinos, teve sua or-questra e completou muitos conjun-tos alheios. Dilermando compôs,gravou, ensinou. Orgulhou-se desua amizade com Juscelino Kubits-chek, que fez dele um dos pioneirosda construção de Brasília: "Ajudei aconstruir o Catetinho com minhaspróprias mãos, meu violão foi o pri-meiro ouvido nos céus da nova ca-pital, fiz a primeira música em home-nagem à cidade que nascia...". En-fim, Dilermando Reis fincou seu no-me, a sua marca, na história da mú-sica no Brasil.

O músico nasceu em Guaratin-guetá, SP, em setembro de 1916.Aprendeu a tocar com o pai, ChicoReis, um violonista diletante. Aosquinze anos, quando já encantava afamília e os vizinhos com seu talen-to, conheceu um exímio concertistacego, Levino da Conceição. Diler-mando deslumbrou-se com o músi-co e resolveu segui-lo aonde fosse.

A dupla passou meses visitandoos pontos mais escondidos do Bra-sil. Levino apresentava Dilermandocomo o seu melhor aluno. E este, naverdade, começou a superar o mes-tre, a extrair de seu instrumentoideias mais ricas e mais elaboradas.

Talvez por isso, certa ocasião, Le-vino procurou o garoto e disse: "Euvou a Campos, depois à Bahia. En-

Em quarenta anos de carreira, Dilermando formou diversas gerações de violonistas.

tão, mando te apanhar". Não man-dou. Apenas deixou pagos quinzedias de hotel para Dilermando, e su-miu do mapa. Num depoimento àRádio Jornal do Brasil, o bem-hu-morado Dilermando relembra: "Fi-quei num mato sem cachorro. Semdinheiro e sem ninguém, perdido noRio. Daí, como o Levino não apa-receu e nem deu notícias, resolvi lu-tar pela vida, só eu e meu violão".

Foram tempos bicudos, aqueles.Para sobreviver, Dilermando davaaulas de seu instrumento, por pre-ços insignificantes. Seus conheci-mentos, todavia, se ampliavam. Umde seus alunos levou-o ao Bandolimde Ouro, uma das lojas musicaismais famosas da época. Do Bando-lim, Dilermando ganhou uma apre-sentação para outra casa importan-te, a Guitarra de Prata. Empregou-

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PERSONAGEse nas duas, como experimentadorde instrumentos e como professor derudimentos de violão. Em 1935, fi-nalmente, com dezenove anos in-completos, conheceu o radialista Re-nato Murce e recebeu uma oferta detrabalho na Rádio Transmissoras.

Não se pode dizer que o trabalhoo satisfazia. O público preferia ascanções e os cantores — uma velhatradição brasileira. Dilermando se li-mitava a perpetrar alguns solinhos,enquanto as plateias aguardavam achegada de Chico Alves ou SílvioCaldas. De qualquer modo, sua ha-bilidade e seu talento logo se impu-seram. Com o auxílio de RenatoMurce, o jovem Dilermando ganhouum programa semanal de meia ho-ra — que perduraria até 1969, já emoutra emissora, a Rádio Nacional.

Em 1942, formou uma orquestrade violões. O repertório, extrema-mente eclético, incluía temas comoa "Marselhesa", o hino nacional daFrança, ou "Jalousie", um sucessodas big bands nos shows do Cassi-no da Urca. Com a proibição do jo-go, o conjunto se desfez, mas Diler-mando continuou se empenhandopara valorizar o violão, esforço fun-damental para que o instrumentoconquistasse também seu espaçonos proscénios, as áreas mais ilumi-nadas do palco, normalmente reser-vadas ao protagonista. Mesmo nasdécadas de 50 e 60, quando a can-ção, no Brasil, virtualmente sufocoua música instrumental, Dilermandonão desanimou. Resistente, obstina-do, insistiu no seu dever sem aderirpor um instante sequer aos modis-mos, da bossa nova ao rock, do pro-testo à tropicália.

Embora musicalmente conserva-dor, Dilermando sempre demons-trou muita versatilidade na maneirade encarar seu trabalho. Conhecia àperfeição, os métodos do violão eru-dito, mas não descurava do violãopopular: "Sou contra o purismo exa-gerado. Sou contra as ortodoxias.Os ortodoxos condenam o popularporque se consideram génios. Só es-quecem que os génios não se encon-tram em qualquer esquina. Os gé-nios não se escondem. Os génios,

Com Pixinguinha, em 1973, no Rio.

quando existem, aparecem cedo outarde".

Adorava os antigos. Mas tambémapreciava os mais modernos, comoBaden Powell, Tom Jobim, Edu Lo-bo, Carlos Lyra, Egberto Gismonti eChicoBuarque de Holanda, os seusprediletos. "São autores que nãoperderam de vista a característica daalma brasileira. Autores nossos."Gfaças a essa flexibilidade, Diler-mando permaneceu por mais detrinta anos na gravadora Continen-tal, sem nunca ter assinado contra-to — "confio mais na palavra" - egravando praticamente um disco portemporada.

Alguma mágoa em sua carreira?Ocorreu em 1966, quando o disc-jóquei Celso Teixeira denunciou Ge-raldo Vandré e Théo Barros por te-rem plagiado quase integralmenteuma composição de DilermandoReis. Na opinião do radialista, "o iní-cio, toda a segunda parte e o finalde "Disparada" (a música que em-patou com "A banda", de ChicoBuarque de Holanda, no Festival daTV Record daquele ano) foram de-calcados de "Oiá de Rosinha". Di-lermando também se manifestou pu-blicamente: "Existe semelhança nalinha melódica e até mesmo na bati-da". Triste ironia: "Fico até feliz aoconstatar que uma música, plágio de

obra minha, foi ganhadora de umconcurso que abalou a opinião dopaís".

O músico, de qualquer modo,passado o tempo, consumido o res-sentimento, reformulou sua posição:"O Vandré e o Théo são duas pes-soas honestas e competentes. Achoque o Celso Teixeira se precipitou.Se eu fizesse parte do júri, mesmoreconhecendo a semelhança, dariameu voto à 'Disparada'. Não acre-dito que tenha havido um plágio vo-luntário. A moda de viola é a mes-ma em qualquer parte do Brasil. Emtodas as modas de viola existem es-truturas idênticas ou, ao menos,muito parecidas".

Homem discreto, que abomina-va as confusões e até o excesso depublicidade, Dilermando foi-se tor-nando, com o correr da vida, cadavez mais caseiro e arredio. Literal-mente se escondeu em sua casa doEngenho Novo, no Rio de Janeiro.A companhia preferida: dona Celes-te, que se casara com ele meninota,aos quinze anos de idade; e a cole-ção de cães e gatos que ele e a mu-lher acarinhavam no Engenho No-vo, consolo de um casal sem filhos.Dilermando morreu em janeiro de1977, de um colapso cardíaco, umasurpresa para quem conhecia seu vi-gor, sua força de vontade, sua vidasempre regrada, temperada apenaspelo uisquinho doméstico. De reli-gião espiritualista, foi velado debai-xo de um dístico muito significativopara aqueles que compartilham desua fé: "Nascer, viver, morrer, re-nascer ainda. Progredir sempre. Talé a lei". Deixou como herança dezdiscos em 78 rpm, vinte LPs e ummagnífico álbum em sete volumes."Uma voz e um violão em serena-ta", com o cantor Francisco Petrô-nio. No dia de seu enterro, um ami-go de infância, de apelido Tietê, pre-to velho e magro, vestido num ma-cacão puído e imundo de tinta,acompanhou chorando o seu veló-rio. Até que, num instante, enxugouas lágrimas e balbuciou: "O Diler-mando não está morto. O Dilerman-do está só dormindo. Artista nãomorre. Artista apenas descansa".