DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES ...€¦ · case and with the possibility of...

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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS QUALIFICADOS NA CIVIL LAW RUY ALVES HENRIQUES FILHO ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO OTERO TESE ESPECIALMENTE ELABORADA PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS 2018

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  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE DIREITO

    DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES

    JUDICIAIS QUALIFICADOS NA CIVIL LAW

    RUY ALVES HENRIQUES FILHO

    ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR PAULO OTERO

    TESE ESPECIALMENTE ELABORADA PARA OBTENÇÃO DO GRAU

    DE DOUTOR EM CIÊNCIAS JURÍDICO-POLÍTICAS

    2018

  • UNIVERSIDADE DE LISBOA

    FACULDADE DE DIREITO

    DIÁLOGO DE TRADIÇÕES E A FORMAÇÃO DOS PRECEDENTES JUDICIAIS

    QUALIFICADOS NA CIVIL LAW

    RUY ALVES HENRIQUES FILHO

    Orientador: Professor Doutor Paulo Otero

    Tese especialmente elaborada para obtenção do Grau de Doutor em Direito,

    especialidade de Ciência Jurídico-Políticas.

    Juri: Presidente: Doutor José Artur Anes Duarte Nogueira – Professor Catedrático e

    Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

    Vogais: - António Ulisses Cortês – Professor Auxiliar da Escola de Lisboa da Faculdade

    de Direito da Universidade Católica Portuguesa;

    - Doutora Isabel Celeste Monteiro da Fonseca – Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho;

    - Doutor Paulo Manuel Cunha da Costa Otero – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, orientador;

    - Doutora Ana Paula Mota da Costa e Silva – Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

    - Doutor Carlos Manuel Almeida Blanco de Morais – Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

    - Doutor Luís Miguel Prieto Nogueira de Brito – Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa;

    - Doutora Ana Fernanda Ferreira Pereira Neves – Professora Auxiliar da Faculdade de Direito de Lisboa.

    2018

  • Agradecimentos:

    Durante quase uma década de estudos, viagens de pesquisa e leituras, venho tornar

    público meu agradecimento ao incentivo das investigações e aprofundamentos

    provocados pelo meu orientador, Professor Doutor Paulo Otero. Quero também agradecer

    aos Professores Doutores Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, pelas aulas e

    também pelo estímulo recebido quando da minha estadia em Lisboa. Da mesma forma,

    sinto o carinho dos servidores e colaboradores da Faculdade de Direito da Universidade

    de Lisboa. Quero, ainda, deixar aqui minha gratidão aos colegas do Tribunal de Justiça

    do Estado do Paraná, companheiros de gabinete e colegas de docência do Centro

    Universitário Curitiba e da Escola da Magistratura do Paraná. Por fim, meu carinho e

    amor à minha esposa e companheira Ana Lúcia, sempre firme ao meu lado, embora

    muitas vezes eu cambaleante, minha amada filha Marina, minhas irmãs e sobrinhos,

    sogros e também aos meus pais, Ruy e Lidette, sendo que esta flor generosa e forte, partiu

    deste plano material durante a elaboração desta preciosa pesquisa além mar.

  • Resumo:

    Trata-se da elaboração de uma tese nascida do estudo dos precedentes judiciais

    incorporados na tradição civil law, com a intenção de determinar a obrigatoriedade

    judicial de suas razões. Inicia-se pela análise das tradições jurídicas ocidentais e

    respectivo diálogo entre as mesmas, decorrente do fenômeno da globalização e

    aproximação entre as nações, cultura e história tão divergentes. Alguns instrumentos

    favorecem esta aproximação e proporcionam um diálogo profícuo, porém demandante de

    adaptações, revisões e recriações de institutos jurídicos. Na esteira dos Assentos judiciais

    portugueses, comparou-se a tentativa brasileira atual de criação de instrumentos

    uniformizadores dos julgados decorrentes de filosofia sulamericana do

    neoconstitucionalismo. Este fenômeno sócio-jurídico, por autorizar não só a interpretação

    construtiva do direito, mas também estimular a criação de julgados com força de lei,

    provoca instabilidade no sistema jurídico brasileiro, como já ocorrido no passado lusitano

    quando da adoção dos Assentos. Referida insegurança jurídica, paradoxalmente nasce da

    tentativa de uniformização dos julgamentos que terminam por conferir incontroláveis

    poderes aos Tribunais. A promulgação do novo código de processo civil brasileiro em

    2015, instituindo de forma parcial e inadequada a Teoria dos Precedentes Judiciais

    Vinculantes criou o ambiente ideal para a análise do diálogo das tradições da civil law e

    common law. O modo que as cortes são compostas e, em especial, como a colegialidade

    trabalha para julgar um case sem precedente e com a possibilidade de vincular outros

    julgados, sob pena de nulidade da decisão posterior em desobediência à decisão

    paradigma, da mesma forma, foi analisado. Instrumentos como o controle da

    constitucionalidade das decisões judiciais e normas legislativas; o uso abusivo de cláusula

    geral, de conteúdo indeterminado e inconsistente forma de revisão e atualização dos

    precedentes judiciais com pretensão vinculativa geral e abstrata, ganham importante

    espaço no presente estudo. Portanto, propõe-se a qualificação e consequente

    especialização dos chamados precedentes judiciais obrigatórios para alcançar a

    pretendida uniformização e previsão do sistema judicial decisório, de modo a colaborar

    para com o trato da crise de identidade referida e, ainda, a atuação eficaz e pacificadora

    da jurisdição estatal.

    Palavras-chave: PRECEDENTE JUDICIAL VINCULANTE – FORMAÇÃO –

    TRADIÇÕES JURÍDICAS DIVERGENTES

  • Abstract:

    It concerns to the formulation of a thesis that was born of judicial precedents

    studies incorporated by the civil law tradition, trying to determinate the judicial

    obligation of their reasons. It begins by analysis of western law traditions and their

    respective dialogue between them, due to the globalization phenomenon and the

    approach among nations, culture and history so divergent. Some instruments encourage

    this approximation and provide a profitable dialogue, however demanding adaptation,

    reviews, and re-creations of law institutes. Regarding to Portuguese judicial assentos,

    was compared the current Brazilian attempt of making uniformity tools for decisions as

    result of the South American neoconstitucionalism philosophy. This social and legal

    phenomenon, which authorizes not just the constructive interpretation of law, but also

    encourage the creation of judgments with power of legislation, lead to instability of the

    Brazilian Legal System, as already have happened in the Lusitanian past when was

    adopted the assentos. This juridical insecurity paradoxically was born by the attempt of

    judgment standardization, which entails by give uncontrollable power to the Court. The

    enactment of the new Brazilian civil procedure code in 2015, instituting partially and

    inadequate the theory of binding judicial precedents created the ideal environment for

    the analysis of the dialogue of civil law and common law traditions. The way the courts

    are composed and, in particular, how plurality of judges work to decide an unprecedented

    case and with the possibility of linking others decisions, under penalty of nullity the

    subsequent decision in disobedience to the paradigm decision, in the same way, was

    analyzed. Instruments such as the control of the constitutionality of judicial decisions and

    legislative norms; abuse of general clause, of undetermined content and inconsistent way

    of reviewing and updating judicial precedents with general and abstract binding intent,

    gain important space in the present study. Therefore, it is proposed the qualification and

    consequent specialization of the so-called mandatory judicial precedents to achieve the

    desired standardization and prediction of the judicial decision-making system, in order

    to collaborate with the treatment of the referred crisis of identity and, also, the effective

    and pacifier action of the state jurisdiction.

    Keywords: BINDING JUDICIAL FORCE – FORMATION - DIVERGENT LEGAL

    TRADITIONS.

  • SUMÁRIO/ÍNDICE

    Summary/Index

    INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 01

    Introduction ........................................................................................................................ 01

    § 1º O Diálogo de Tradições ............................................................................................. 04

    The Dialogue of Traditions ......................................................................................... 04

    1. A Atuação Judicial: parcial sobre sua evolução ........................................................ 04 The Judicial Action: part of its evolution.................................................................. 04

    2. Interpretação e criação do direito .............................................................................. 28

    Interpretation and creation of law ............................................................................ 28

    3. Difícil equação Previsibilidade x Efetividade ........................................................... 53

    Difficult equation: Predictability x Effectiveness ..................................................... 53

    4. Crise sistêmica: judicialização e atuação legislativa ................................................. 84

    Systemic Crisis: judicialization and legislative action ............................................. 84

    5. A tentativa de uniformização das decisões: Brasil e Portugal ................................. 108

    The attempt to standardize decisions: Brazil and Portugal ................................... 108

    § 2º As Tradições Jurídicas ........................................................................................... 120

    The Legal Traditions ................................................................................................. 120

    6. Diferenciação entre common law e civil law .......................................................... 121

    Differentiation between common law and civil law ............................................... 121

    7. A tradição civil law ................................................................................................. 126

    The civil law tradition ............................................................................................. 126

    a. O Poder Judiciário brasileiro ........................................................................... 135

    The brazilian judiciary ....................................................................................... 135

    b. Histórico .......................................................................................................... 136

    History ............................................................................................................. 136

    c. O sistema judiciário brasileiro atual ................................................................ 141

    The current brazilian judicial system ................................................................. 141

    d. Os Tribunais Superiores .................................................................................. 143

    The High Courts ................................................................................................. 143

    e. A Justiça Comum ............................................................................................. 156

    The Common Justice .......................................................................................... 156

    f. A Justiça Especializada .................................................................................... 160

    The Specialized Justice ....................................................................................... 160

    g. O Ministério Público ....................................................................................... 169

    The Public Prosecutor's ..................................................................................... 169

    h. O Poder Judiciário português .......................................................................... 174 The Portuguese judiciary ................................................................................... 174

    i. O Tribunal Constitucional ................................................................................ 174

    The Constitutional Court .................................................................................... 174

    8. A tradição common law .......................................................................................... 182

    The common law tradition ...................................................................................... 182

    a. O Sistema Judiciário Inglês ............................................................................. 194

    The British judicial system ................................................................................. 194

    b. O Parlamento Inglês ........................................................................................ 194

    The British parliament ....................................................................................... 194

    c. O Ato de Reforma Constitucional de 2005 ..................................................... 195

    The 2005 Constitutional Reform Act .................................................................. 195

  • d. A Suprema Corte do Reino Unido .................................................................. 197

    The UK Supreme Court ..................................................................................... 197

    e. Court of Appeal ................................................................................................ 198

    f. A primeira instância inglesa ............................................................................. 199 The first British instance .................................................................................... 199

    g. Peculiaridades da Justiça Inglesa ..................................................................... 199 Peculiarities of British Justice ........................................................................ 199

    h. O sistema judiciário dos Estados Unidos da América .................................... 202 The judicial system of the United States of America ...................................... 202

    9. O Juiz: seu papel nas tradições ............................................................................... 212 The judge: his role in the traditions ....................................................................... 212

    10. O Diálogo das tradições jurídicas: Ativismo Judicial e Neoconstitucio

    nalismo ......................................................................................................................... 222

    The Dialogue of legal traditions: Judicial Activism and Neo-

    constitutionalism .......................................................................................................... 222

    a. Compreendendo o ativismo judicial e o neoconstitucionalismo .................... 233 Understanding judicial activism and neo-constitutionalism .......................... 233

    b. Possíveis causas do ativismo ........................................................................... 247

    Possible causes of activism ............................................................................. 247

    c. O Ativismo e sua expressão por meio dos “precedentes judiciais” e

    as fontes tradicionais do direito ........................................................................... 255

    Activism and its expression through "judicial precedents" and

    traditional sources of law .................................................................................... 255

    § 3º Ferramentas à disposição do diálogo .................................................................... 265

    Tools available for dialogue ..................................................................................... 265

    a. Breves apontamentos históricos do protagonismo judicial ............................. 265

    Brief historical notes of judicial protagonism ................................................ 265

    b. Sistemas de fiscalização ................................................................................... 273

    Surveillance systems ........................................................................................ 273

    c. Normas sujeitas à fiscalização judicial ............................................................ 274

    Standards submitted to judicial review ........................................................... 274

    d. Formas e tempo de fiscalização ....................................................................... 279 Forms and time of inspection .......................................................................... 279

    11. Juízos de controle da constitucionalidade ............................................................ 280

    Judgments on constitutionality control ................................................................ 280

    a. Controle jurisdicional difuso ou em concreto ................................................. 280

    Diffuse or concrete jurisdictional control ....................................................... 280

    b. Controle jurisdicional concentrado ou em abstrato ......................................... 285

    Concentrated or abstract jurisdictional control ............................................. 285

    12. Decisões dos tribunais e seus efeitos .................................................................... 287

    Decisions of courts and their effects .................................................................... 287

    a. Decisões em controle preventivo e seus efeitos .............................................. 287

    Decisions on preventive control and their effects ........................................... 287

    b. Decisões em controle concreto e seus efeitos ................................................. 288

    Decisions in concrete control and their effects .............................................. 288

    c. Decisões em controle abstrato e seus efeitos ................................................... 297

    Decisions in abstract control and their effects ............................................... 297

    d. Decisões conforme e sem redução de texto legal............................................ 302

    Decisions according to and without reduction of legal text ........................... 302

    e. O controle de convencionalidade ..................................................................... 319

  • The conventionality control ............................................................................ 319

    13. Decisões atípicas ................................................................................................... 332 Atypical decisions ................................................................................................. 332

    a. Decisões atípicas exemplificativas .................................................................. 332 Exemplary atypical decisions .......................................................................... 332

    b. Legitimidade para edição de súmulas vinculantes .......................................... 353 Legitimacy for edition of binding precedents ................................................. 353

    c. Cláusulas gerais ................................................................................................ 370 General clauses ............................................................................................... 370

    § 4º Teoria dos Precedentes ........................................................................................... 375

    Theory of Precedents .............................................................................................. 375

    14. Precedentes judiciais ............................................................................................. 375

    Judicial Precedents .............................................................................................. 375

    a. Definição .......................................................................................................... 376 Definition ......................................................................................................... 376

    b. Tipos de precedentes ........................................................................................ 386

    Types of precedents ......................................................................................... 386

    c. Stare Decisis e as Cortes internacionais .......................................................... 395

    Stare Decisis and the international Courts .................................................... 395

    15. Composição do precedente ................................................................................... 411

    Composition of the precedent .............................................................................. 411

    a. A Ratio decidendi ............................................................................................. 411

    b. Obter dictum .................................................................................................... 416 16. A formação do precedente .................................................................................... 420

    The formation of precedent .................................................................................. 420

    a. A rigidez e mobilidade dos precedentes .......................................................... 424

    The rigidity and mobility of precedents .......................................................... 424

    b. A legalidade e aplicabilidade no sistema da common law. A

    questão da colegialidade ...................................................................................... 429

    Legality and applicability in the common law system. The

    Issue of collegiality .............................................................................................. 429

    c. A diferenciação da Súmula Vinculante ........................................................... 445

    The differentiation of the Binding Precedent .................................................. 445

    d. A força vinculativa dos precedentes e seus argumentos: prós e

    contras ................................................................................................................... 453

    The binding force of precedents and their arguments: pros and

    cons ....................................................................................................................... 453

    17. Modificação dos precedentes ................................................................................ 472 The modification of precedents ............................................................................ 472

    a. Overruling ........................................................................................................ 473

    b. Antecipatory overruling ................................................................................... 476 c. Distinguishing ................................................................................................... 478

    d. The drawing of inconsistent distinctions ......................................................... 480 e. Technique of signaling ..................................................................................... 481

    f. Transformation .................................................................................................. 482 g. Overriding ........................................................................................................ 483

    h. Efeitos da revogação dos precedentes na common law .................................. 484 The revogation effects of precedentes on common law .................................. 484

    18. A necessidade da qualificação dos precedentes ................................................... 487

    The qualification needs of precedents .................................................................. 487

  • a. A adoção dos precedentes judiciais na tradição brasileira e os

    assentos de Portugal ............................................................................................. 493

    The adoption of precedents in the brazilian tradition and the

    assentos of Portugal ............................................................................................. 493

    b. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas como

    formador de precedentes no processo civil brasileiro ......................................... 520

    The incident of resolution on Repetitive Demands as maker of precedents in

    Brazilian Civil Procedure .................................................................................... 520

    c. Assunção de Competência ............................................................................... 531 Assumption of Competence ............................................................................. 531

    d. Os efeitos da revogação dos precedentes no civil law .................................... 534 The effects of precedent’s revogation on civil law ......................................... 534

    e. A impossibilidade de vinculação dos precedentes atípicos ou não

    qualificados ........................................................................................................... 545

    The impossibility of atypical precedent’s binding or not qualified ................ 545

    CONCLUSÃO ................................................................................................................. 578

    Conclusion ........................................................................................................................ 578

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 589

    Bibliographic references .................................................................................................. 589

  • 1

    Introdução

    A velocidade da dinâmica social naturalmente se reflete no cenário jurídico,

    tanto na forma e intenção das leis, quanto nos julgados. As constantes modificações

    sofridas pela sociedade nos últimos tempos, mais especificamente no último século, bem

    demonstram a necessidade da evolução do direito, de modo a acompanhar a expectativa

    da população tutelada pelo Estado. Tais transformações logicamente atingem outros

    campos, países e continentes, porque vivemos em tempo de globalização e de blocos

    socioeconômicos.

    É sabido que, tendo a função de garantir a pacificação social, não pode o

    Direito, tampouco a justiça, permanecerem inertes, devendo adequar-se de modo a suprir

    as necessidades sociais. Diante disso, pretende o presente estudo demonstrar que antigos

    institutos jurídicos não mais têm razão de ser, devendo necessariamente adequar-se, ou

    substituírem-se por novas opções. É neste contexto que se verifica a miscigenação entre

    institutos típicos das tradições da civil law e da common law, ensejando o surgimento de

    nova tradição jurídica ou mesmo de um sistema híbrido.

    É neste contexto que se pretende analisar a convergência entre as tradições

    jurídicas ocidentais, assimilando a proposta de absorção, pela civil law, de institutos

    típicos da common law, a fim de assegurar, em tese, a consistência do ordenamento

    jurídico e da segurança jurídica frente as mudanças e necessidades sociais prementes. O

    rápido e intenso fluxo de informações, pessoas e capitais, na Era da Globalização deitou

    por terra não apenas o conceito de fronteiras, como anteriormente concebido, mas

    também os modelos jurídicos praticados ao redor do globo. As antigas tradições jurídicas

    não mais são possíveis de análise de modo estanque, senão de modo sistematizado: a

    troca de influência entre as tradições é prática corriqueira e também necessária.

    Tem-se como inafastável a convergência entre as tradições referidas, não

    mais se verificando a existência de uma tradição sistemicamente pura, mas até mesmo

    uma simbiose de institutos utilizados pelas duas correntes. Ao passo que a common law

    vem aderindo a codificação, como foi o caso do código de processo civil inglês de 1995,

    é flagrante na civil law a liberdade experimentada pelos julgadores e o protagonismo da

    jurisprudência enquanto fonte do direito.

    É nesta toada que o presente trabalho tem por objeto, ainda, o estudo de

    institutos que bem denotam a referida miscigenação, por meio da abordagem do

  • 2

    neoconstitucionalismo, do fenômeno do Ativismo Judicial e do Controle da

    Constitucionalidade das normas. A Teoria dos Precedentes Judiciais e os Assentos de

    Portugal também ganham destaque.

    Não obstante, como escopo precípuo, envidou-se a análise de um dos

    institutos que bem representa o ponto de intersecção entre as duas tradições no Brasil: os

    precedentes judiciais. Breve análise do contexto judiciário bem demonstra o ganho de

    importância do papel jurisprudencial, tendo o juiz positivista e representante da célebre

    expressão “buche de la loi” passado a verdadeiro protagonista judicial, fenômeno a que

    muitos atribuem o papel criativo do direito, similar ao que se infere na common law.

    De outra banda, o ganho de liberdade na atuação jurisdicional provoca a

    ruptura do sistema tradicional brasileiro e imputa maior responsabilidade do julgador. A

    atuação não sistêmica e dessincronizada da magistratura traz à tona a insegurança

    jurídica, derivada de um sistema guiado não pela norma jurídica, mas pelo subjetivismo.

    Ao jurisdicionado fica somente a dúvida e a instabilidade de contar com o elemento sorte,

    a fim de que o pleito pretendido seja analisado por juiz subjetivamente favorável ao seu

    intento. O fator de maior importância para que o julgador brasileiro e adepto a tradição da

    civil law tenha partido para essa jornada imprecisa é, sem dúvida, o déficit legislativo

    importante (anomia), cuja prática, ou melhor, a ausência de sua prática, afeta o Princípio

    da Proibição de Insuficiência.

    É em razão do cenário de insegurança e falta de estabilidade do direito dito

    pelos tribunais que este estudo se debruça sobre a análise dos efeitos dos precedentes

    judiciais vinculativos, típicos da common law, agora na tradição da civil law. Sugere-se

    sua adoção como mecanismo de auxílio para solução do indigitado problema. Trata-se de

    tema de suma relevância, eis que consiste o direito jurisprudencial no direito vivo,

    concretizado, e que diretamente atinge a população. Nesse contexto, procura-se

    demonstrar que a Teoria dos Precedentes não pode ser objeto de implante automático e

    incondicional à tradição da civil law, sob pena de originar maior caos jurídico. Não se

    pode olvidar que a simples implantação do instituto sem quaisquer adequações consiste

    em improviso maléfico, visto tratar-se de mecanismo forjado sob contexto cultural

    diverso, cuja adaptação não é simples, tampouco poderá ser imposta.

    A adoção desta teoria com as devidas adaptações junto à civil law pode ser

    usada como medida de solução parcial à insegurança jurídica que tanto se combate no

    Brasil, porém, como evidente, não se trata de ferramenta hábil, por si só, a resolver a

  • 3

    problemática da imprevisão dos julgamentos.

    A proposta de elementos que possam filtrar o vigor e a força vinculante dos

    precedentes judiciais criados a partir da civil law é uma das formas de amortecer a

    “importação” de uma ferramenta legitimamente ligada à tradição de um povo mais

    antigo, que é composto por maioria não católica e, ainda, derivado de um processo de

    constante fortalecimento das relações entre o Legislativo e a Magistratura.

    Aponta-se, ainda, a formação de precedentes judiciais na tradição brasileira e

    até portuguesa, derivados de exercício de decisões aditivas e atípico da função judicante,

    em especial via assentos. A exigência de elementos para a qualificação é imperativa, de

    modo a criar uma espécie de ferramenta legitimamente nascida da tradição legalista e

    potivista. Na esteira da qualificação proposta, surge a necessidade de comparar o instituto

    dos precedentes com os antigos assentos portugueses, cuja semelhança revela importante

    crítica e dúvida quanto ao sucesso dos mecanismos citados. Visita-se a questão da

    uniformização da jurisprudência e sua consequente possibilidade de descontrole criativo

    pelos tribunais ou mesmo paralisante em face dos juízos monocráticos de primeiro grau

    de jurisdição.

    Exigir a aplicação de um julgado emblemático a casos análogos deve se dar

    naturalmente, pela tradição e confiança do povo na atuação dos tribunais. Por meio de

    qualquer outra forma de imposição, que não a do convencimento derivado da confiança,

    vicia a empreita que ainda poderá tolher a liberdade do julgador, preso aos precedentes

    ilegítimos ou eivados de interesses políticos de momento.

    Portanto, ao tratar da incidência desta questão no direito brasileiro, dar-se-á

    atenção aos julgados politicamente influenciados pelos tribunais, que, em tese, seriam

    responsáveis pela criação dos tais precedentes judiciais obrigatórios, similares aos antigos

    assentos lusitanos.

    Para esperar que todos os juízes decidam da mesma forma que seus tribunais

    de origem, deve haver um componente especificante. Se aceitam-se as ferramentas de

    vinculação, devem-se estar preparados para utilizar os mecanismos de modificação deste

    mesmos precedentes. Ocorre que, infelizmente, além de restar ausente na legislação (e até

    mesmo na jurisprudência brasileira) quem teria a competência para a formação dos tais

    precedentes judiciais, não é possível prever seus efeitos, tampouco as formas que os

    mesmos julgados podem ser alterados ou superados. Este estudo visa esclarecer os

    parâmetros para a formação, sujeição e revisão dos precedentes judiciais vinculantes,

    criando, por fim, métodos para sua sua qualificação obrigatória, bem

  • 4

    como buscar as questões que levaam os mecanismos dos assentos falirem em Portugal. A

    tarefa proposta é singular e curiosa, pois a pesquisa sugere, cada vez mais, a atenção

    para um estudo multidisciplinar em relação ao mundo do Direito e sua aplicação num

    Estado em mutação social e normativa. Mesmo no novíssimo código de processo civil

    brasileiro, não há sequer metade das formas de adequação e modificação dos precedentes

    judiciais obrigatórios, como as têm os países dessa tradição. A confiança nos

    mecanismos revelados vem do uso e costume, do tempo embarcado na vida de cada

    sociedade. Os tribunais da civil law devem, como no direito consuetudinário, refletir

    esta expectativa e mudança comportamental, não impondo ao povo apenas o sentir do

    culto e do político que vive em cada um dos magistrados. A colegialidade dos

    julgamentos e a força vinculante dos precedentes também será objeto do estudo, bem

    como a força dos assentos lusitanos e fontes tradicionais do direito.

    § 1º O Diálogo de Tradições

    1. A atuação judicial: parcial sobre sua evolução

    Para entender todo o mecanismo da atividade judicial que hoje se conhece, é

    indispensável voltar na história para buscar suas origens e desvendar em detalhes como se

    deu, ao longo dos vários períodos históricos, a atuação judicial ocidental. A magistratura,

    como órgão responsável pela atividade julgadora, ao longo do tempo sofreu grandes

    transformações e evoluções, tanto pelas mudanças ocorridas na sociedade em si, como

    em razão da complexidade das organizações sociais mais ligeiras e superficiais.

    Para destacar as tradições ou sistemas 1 judiciais ocidentais modernos, é

    necessário vinculá-los ao exercício da judicatura, especialmente em razão da postura do

    julgador ao julgar. Apesar de todas as dúvidas quanto ao poder criador do magistrado ao

    julgar um hard case e sua relação com as leis, apenas uma questão era e

    1 Antes de prosseguir, a referência que se faz sobre sistemas ou tradições jurídicas ainda é discutível, posto

    que há quem defenda o uso da expressão “tradições”, sob o argumento de que a sistematização impõe regras

    infraconstitucionais para tipificar as condutas, o que retira o caráter “tradicional e cultural” da regra. Optou -

    se por não ingressar nessa discussão por temor de perder o foco sobre o que irá se descortinar. Segundo

    RONALD DWORKIN, “o conceito doutrinário de direito figura entre os limites do conceito sociológico da

    seguinte maneira: nada é um sistema jurídico no sentido sociológico a menos que faça sentido perguntar

    que direitos e deveres o sistema reconhece”. Por entender a amplitude da discussão, em especial sob o seu

    aspecto ontológico, prosseguiremos sem maiores enfrentamentos pontuais para não perder o foco do estudo.

    Cf. A justiça de toga. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 7.

  • 5

    é evidentemente certa: o Estado não pode abandonar o cidadão à própria sorte, de modo

    que a decisão e efetivação de qualquer solução dada em razão da demanda, por

    determinação constitucional, é responsabilidade inafastável do agente estatal.

    Nestes termos, o estudo em apreço é destinado a identificar a atual relação de

    sistemas judiciais e o modo de formação dos precedentes, tendo estes últimos a função de

    padronizar entendimentos e até, há quem imagina, reduzir o tempo para a tomada de

    decisões e seu respectivo cumprimento.

    Dalmo de Abreu Dallari ensina que é relativamente recente a aceitação da

    atividade do juiz como uma profissão, pois, inicialmente, o juiz era visto como um

    representante do povo “ou de um segmento da sociedade ou, então, como auxiliar do

    governo para tarefas específicas, consideradas de grande relevância”.2 A partir de tal

    ideia tem-se que a escolha dos juízes se deu de forma variada ao longo do tempo,

    inicialmente selecionados de acordo com os anseios do soberano, ou de acordo com o

    contexto histórico e social da época em que atuavam.

    Quando da formação das civilizações organizadas, as regras “sociais”

    emanavam do próprio soberano, a exemplo da Europa Medieval, uma vez que a figura do

    julgador se confundia com a do soberano. O soberano era quem julgava eventuais

    conflitos ocorridos na sociedade e, pela falta de um mecanismo judicial, fazia-o de

    maneira totalmente arbitrária, solucionando de maneira parcial os conflitos, quando

    muito.

    Nas Cidades-Estado gregas, o posto de magistrado era concedido a um

    cidadão que possuísse poder de comando, com o objetivo de atender ao interesse público.

    Assim, qualquer pessoa poderia ser candidata a ocupar vaga de magistrado e a escolha se

    dava por meio de sorteio ou eleição. Com a utilização de tal método, verifica-se que

    qualquer um poderia ser magistrado, sem que para isso fossem exigidos conhecimentos

    específicos da judicatura, podendo a ocupação do cargo se dar de forma vitalícia ou

    temporária, o que induz a crer que a magistratura não era vista como uma profissão,

    muito menos como função de Estado. Vale ressaltar que a magistratura poderia ser

    exercida por uma única pessoa ou por um grupo de pessoas, dito colegiado. De todo

    modo, originalmente, já não se atribuía aos magistrados o poder de iniciativa, cuja função

    era restrita a julgar os casos submetidos ao seu conhecimento, por interesse da parte.

    2 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9.

  • 6

    Hugo Enrico Paoli, em estudo mais aprofundado sobre a magistratura grega

    antiga, leciona que “o processo de escolha dos magistrados dependia do sistema político

    vigente”.3 Desta feita, nas oligarquias apenas os membros que pertenciam às classes

    dominantes poderiam ser magistrados, revelando que a ocupação do cargo dependia da

    posição social e política do indivíduo. Já nos sistemas em que predominava a democracia,

    o povo poderia participar da escolha dos magistrados. Com a escolha, em ambas as

    formas de governo, o magistrado era investido de legitimidade para representar os que o

    haviam escolhido, de modo a decidir as controvérsias levadas ao seu conhecimento.

    Reportando-se a Roma, é perceptível a paulatina complexidade atribuída à

    magistratura, mesmo por força direta da expansão territorial imanente àquele império,

    simultaneamente à agregação de novos povos com diferentes costumes. Fator de destaque

    refletido no seio jurídico refere-se às mudanças políticas e sociais vivenciadas ao longo

    da história romana.

    A palavra “magistrado” acredita-se derivar da palavra magister, que significa

    “chefe”, muito embora não haja prova cabal de sua origem, tendo sido utilizada pela

    primeira vez no sentido de referir-se à pessoa que “recebia um mandato do povo e agia

    como seu representante, ocupando uma posição de relevo na organização política”.4

    Inicialmente singulares, em momento posterior foram criadas as magistraturas coletivas,

    perdurando a questão da representatividade até o período imperial romano em 27 a.C. A

    forma de escolha dos magistrados era a eleição, de modo que o escolhido ocupava a

    função pelo período de um ano. Tanto a forma de escolha de magistrados como o lapso

    temporal de atuação variou muito durante a história moderna.

    Como consequência da expansão do território romano e a evolução social,

    diversificaram-se as categorias de magistrados, diferenciados segundo a classe social,

    divididos em patrícios e plebeus, sendo, então, eleitos pelas suas respectivas classes. Se

    inicialmente não se exigia do magistrado qualquer saber jurídico, as mudanças

    vivenciadas pela sociedade romana acabaram por influir, exigindo a seleção de pessoas

    com algum conhecimento específico na área. Uma vez escolhido através do processo de

    eleição, o magistrado vestia o manto da legitimidade, daí advinda sua autoridade. Embora

    não se confundisse com a divindade que revestia a toga em passado distante, o juiz era

    extremamente respeitado e vinculado ao Imperador.

    3 PAOLI apud DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 9.

    4 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 10.

  • 7

    A conversão do sistema político romano em império influiu também na

    magistratura, que perdeu o caráter representativo, passando os magistrados a serem

    escolhidos por exclusivo critério do Imperador, bem como considerados funcionários

    deste.

    No âmbito processual, vale lembrar que o processo civil romano possuiu três

    fases que foram importantes para a individualização da ciência jurídica, mas ainda longe

    da festejada autonomia carneluittiana de 1903. É possível encontrar a fase da legis

    actiones; período do processo formulário; e período da extraordinaria cognitio. Na

    primeira fase, denominada de legis actiones, a pessoa do rei se confundia com a do

    magistrado, pois eram a mesma pessoa, tal função possuía caráter vitalício.

    Posteriormente, no período republicano, houve grande manifestação dos plebeus que

    reivindicavam acesso aos cargos de magistrados, bem como às leis escritas. Em seguida,

    visando mais segurança, foi criada a Lei das XII Tábuas, tendo, enfim, essência de

    normatividade.

    Também a sentença, como conhecida hoje, foi criação romana, a qual

    representava a autoridade do Estado em decidir acerca de determinado litígio. Os

    romanos denominaram as sententias, que se referiam às decisões finais do processo e

    poderiam ser atacadas através do recurso de apelação, e as interlocutiones, referentes às

    decisões que ocorriam ao longo do processo e que não eram passíveis de recursos, quase

    como se pretendeu impor na recente discussão processual civil brasileira.

    Com a gradativa oficialização das instituições processuais, em

    consequência da consolidação da cognitio extraordinaria, o

    magistrado, agora também juiz, passa a ser titular do poder-

    dever de examinar as provas (cognoscere) e proferir a sentença,

    a qual, pela primeira vez na história do processo civil romano,

    não mais consistia num ato exclusivo do cidadão romano, não

    tinha mais caráter arbitral, mas, sim, consubstanciava-se numa

    atuação em que era exprimida a vontade do soberano: ex

    autoritate principis. (...) Cria-se então, na organização

    judiciária do império, uma verdadeira estrutura hierárquica

    composta por inúmeros órgãos, a quem conferia o poder de

    julgar em primeiro ou superior grau de jurisdição. Ao lado das

    antigas magistraturas, que são preservadas, novos cargos são

    instituídos.5

    5 JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI; LUIZ CARLOS DE AZEVEDO. Lições de história do processo

    civil romano. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1996, p.140-141.

  • 8

    A queda do Império Romano e o advento do que se convencionou chamar por

    Idade Média também refletiu no papel do magistrado:

    Durante o longo período de conturbação e transformações que

    foi a Idade Média, as condições políticas da Europa, a

    definição de novos institutos jurídicos e políticos, a

    multiplicação de ordens jurídicas sem entrosamento numa

    ordem superior e sem ainda ter sido estabelecida uma

    hierarquia quanto à eficácia das normas, tudo isso torna muito

    difícil encontrar uma caracterização para a magistratura

    medieval. A partir do século nono, mais ou menos, com o

    desenvolvimento das corporações; com a multiplicação e o

    aumento da riqueza e do poder político das ordens religiosas e

    da Igreja Católica de modo geral; com as alianças de senhores

    feudais em torno de um rei, vão sendo definidas novas

    magistraturas. Assim, haverá tribunais corporativos e

    eclesiásticos independentes, decidindo sobre matéria cível e

    criminal, dando a certas pessoas o privilégio de não serem

    julgadas pelos tribunais do rei.6

    Já na Idade Moderna, o fortalecimento dos reinos trouxe também reflexos à

    judicatura. O mundo jurídico adquiriu alguns dos contornos até hoje perceptíveis. Neste

    contexto, no direito português foi criado o recurso de sopricação, posto que era

    impossível atacar sentenças de determinados juízes, sendo um meio através do qual a

    parte vencida poderia questionar a decisão proferida. Em momento posterior, o recurso de

    sopricação ficou conhecido como agravo ordinário.

    Para melhor visualização da forte ligação entre o magistrado e o soberano,

    cite- se como exemplo que as Ordenações Afonsinas estabeleceram a possibilidade

    quanto à parte que se sentisse lesada por uma decisão não terminativa, teoricamente não

    passível de recurso, poder reivindicar a reforma do julgado, mediante recurso de apelação

    ou pelo juízo de retratação.

    No caso de negativa da reforma, poderiam ser utilizadas, consoante anterior

    publicação desta autoria, “as querimas, as quais se pareciam muito com o nosso agravo”.7

    A parte tinha a opção, ainda, de reclamar diretamente com o rei, explicando o fato de

    maneira oral, perante a corte, por meio do agravo de estormento.

    6 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 11.

    7 RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

    p. 7.

  • 9

    Posteriormente, extinguiu-se a possibilidade da reclamação oral, perdurando somente a

    possibilidade de queixa escrita.

    Nota-se, neste contexto, que o juiz era mero fantoche nas mãos do soberano,

    na medida em que estes utilizavam os magistrados para atingir interesses pessoais, do

    mesmo modo que somente aos magistrados atingia a revolta da parte perdedora, eis que

    aquele ficava na linha de frente da “batalha”, protegendo o rei, que por sua vez escondia-

    se por trás da figura do magistrado.

    No período de 774 a 900 d.C., na França, aos juízes era imposta certa

    fidelidade com relação à defesa dos interesses de quem lhes havia escolhido para

    ocupação do cargo de magistrado. Com base nisso, criou-se uma áurea negra em torno

    dos magistrados, os quais eram vistos como injustos e arbitrários, consequentemente

    temidos por agirem sempre em consonância com a vontade do soberano e dos nobres.

    Segundo Dallari:

    [...] Governantes absolutos utilizavam os serviços dos juízes

    para objetivos que, muitas vezes, nada tinham a ver com a

    solução de conflitos jurídicos e que colocavam o juiz na

    situação de agente político arbitrário e implacável. Em tal

    circunstância, a escolha dos juízes era feita diretamente por

    quem detinha o comando político, o que deixava evidente que

    eles decidiam e praticavam outros atos, não decisórios, em

    nome e com o respaldo dos chefes supremos. [...] Isso

    contribuiu para que a magistratura se tornasse poderosa mas

    também para que se criasse uma imagem negativa dos juízes.

    Estes, afinal, sofrendo restrições apenas nos casos em que

    havia interesse do soberano, passam a agir com independência,

    fora de qualquer controle, cometendo muitas arbitrariedades,

    sendo temidos pelo povo.8

    Neste período atribui-se à magistratura uma postura intensa, com certa

    liberdade para atuar, cujas arbitrariedades eram justificadas pela atuação de acordo com a

    vontade dos nobres e do soberano.

    Consoante os ensinamentos de Raymond Carré de Malberg, nos séculos XVII

    e XVIII “o ofício dos juízes que integravam os Palarments era considerado um direito de

    propriedade, tendo a mesma situação jurídica das casas e das terras”.9 Nesta esteira, nota-

    se que a magistratura era algo que poderia ser comprado, vendido, transmitido por

    8 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12.

    9 MALBERG apud DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 12.

  • 10

    meio da herança, e até mesmo poderia ser alugado, por período que fosse interessante

    para o proprietário do cargo, pois por vezes o proprietário não se interessava pela

    atividade judicante, mas queria conservá-la para um futuro descendente. Esse fato curioso

    da história alcançou até o pensador Montesquieu, na medida em que este adquiriu o cargo

    de magistrado por meio da herança deixada por um tio, pelo período de 1716 a 1726,

    tendo em momento posterior o célebre pensador acabado por vender o seu cargo,

    provavelmente cansado do fardo e impressionado com as injustiças cometidas por aqueles

    que tinham o dever de preservar o bem social. Tanto pode ser verdade tal hipótese que o

    Conde, logo em seguida, surgiu com a tese de divisão das funções do Estado, como se

    verá adiante.

    O posto de magistrado era tido como real propriedade e, nesse sentido, a

    prestação judicial oferecida à população era fornecida mediante cobrança de taxas,

    havendo relatos, inclusive, de cobranças abusivas. Muito embora não houvesse uma clara

    separação distinguindo o que era público e o que era privado, a magistratura era

    considerada, definitivamente, um serviço da esfera pública, mas os juízes agiam de forma

    contraditória, na medida em que se portavam como prestadores de atividade privada, haja

    vista venderem a prestação à população, sem qualquer motivação ideológica, senão

    mercantilista.

    Em outro momento encontram-se condutas que indicavam um choque direto

    em determinadas demandas, sobremaneira quando ao juiz cabia solucionar conflito entre

    um particular em face de servidores públicos e, decidindo a questão, julgava

    desfavoravelmente ao poder público, fazendo transbordar a ira dos governantes, que

    interpretavam tal situação como verdadeira afronta dos magistrados contra quem lhes

    concedeu o poder judicante.

    Por todas as questões expostas, os magistrados eram temidos e vistos com

    desconfiança pelo povo, uma vez que os particulares ficavam receosos de se envolver

    numa controvérsia que demandasse a atuação judicial. Os próprios “funcionários” do

    governo viam o juiz como uma figura que se preocupava mais com seus interesses

    pessoais do que pela ciência do direito.

    Tais fatos, bem como a estreita relação entre a magistratura e a nobreza

    daquele tempo, fizeram com que a Revolução Francesa afetasse diretamente a

    magistratura, punindo vários deles, não obstante os reflexos sentidos no exercício da

    atividade por aqueles que continuaram exercendo a função judicante. Com este marco na

    história, a

  • 11

    ideia de soberania popular tinha como escopo e pressuposto teórico a necessidade de

    submissão dos juízes à lei.10

    Reportando-se brevemente para o cenário nacional, há registros de que, na

    época do Brasil Colônia, uma carta foi escrita alegando a necessidade de implantação de

    um Poder Judiciário, não exatamente com tal denominação, nas Capitanias Hereditárias.

    Em tal período, observa-se que o cargo de magistrado era exercido por pessoas das quais

    não se exigia qualquer conhecimento jurídico. A população da colônia, assim como da

    metrópole portuguesa, desconfiava da atuação dos juízes, que exerciam suas atividades

    lastreados em entendimentos pessoais e subjetivos, portanto, arbitrários. Tem-se,

    contudo, que tal desconfiança foi desaparecendo na medida em que leis escritas foram

    criadas, não obstante o surgimento das Constituições.

    Com um olhar voltado, agora, para a história da judicatura nos Estados

    Unidos, percebe-se que naquele país objetivou-se instalar de modo peculiar o sistema de

    separação das funções dos poderes, inovando à medida que se adotou o denominado

    sistema de “freios e contrapesos”, prevendo a cada um dos poderes um conjunto de

    funções típicas e atípicas, estas consistentes na fiscalização dos demais poderes.

    Lá as ideias de Thomas Jefferson e as divergências tidas com o presidente da

    Suprema Corte, John Marshall, ocasionaram, em meados do ano de 1803, a competência

    daquela corte suprema para controlar a constitucionalidade dos atos praticados pelo

    Congresso Nacional, bem como do Executivo. Segundo Dallari, isso “foi fundamental

    para assegurar um papel ativo à magistratura, o que tem sido extremamente benéfico para

    a proteção e promoção dos direitos fundamentais dos indivíduos nos Estados Unidos”.11

    Tal fato trouxe como consequência a ideia do Poder Judiciário como um poder político

    participante da República. Sempre que necessária a verificação, modificação ou

    incremento dos textos fundamentais da constituição americana, formam-se convenções

    que, em número de 233 edições, entre 1776 a 2005, acabam por debater e equipar a

    magistratura com as melhores maneiras de gerir o Estado jugador fundamental.12

    A contribuição de Thomas Jefferson vai além, pois também colaborou para a

    Declaração de Independência em 1776, bem como estabeleceu os fundamentos da

    10 TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER. Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito

    direito e de ação rescisória: recurso extraordinário, recurso especial e ação rescisória: o que é uma

    decisão contraria à lei? São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2001. p. 16. 11

    DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16. 12

    JOHN J. DINAN. The American State Constitutional Tradition. University of Kansas, 2009. p. 6.

  • 12

    Constituição estadunidense de 1787, não obstante ter sido o terceiro

    presidente da República em um momento crucial em que se firmava um governo

    constitucional, superando a ideia do absolutismo.

    Os primeiros anos de colonização dos Estados Unidos assentaram algumas

    linhas que permanecem até a atualidade, desde então ficando determinado que o Poder

    Judiciário é um poder pertencente ao Estado, tratando-se de um poder independente, de

    mesma hierarquia dos demais; do mesmo modo assentou-se o federalismo, dotando-se os

    Estados Federados de capacidade para definição de aspectos sobre seus sistemas

    judiciários; e, por fim, determinou-se desde logo que os juízes e tribunais devem

    posicionar-se do modo mais próximo possível da população, possibilitando que as

    controvérsias sejam solucionadas relevando-se aspectos inerentes aos costumes e, daí,

    influenciando a tipificação da conduta pelo Legislativo.

    Faz-se pertinente uma observação quanto ao pensamento de Thomas

    Jefferson inerente ao ideário do papel dos juízes, pois almejava para um governo

    republicano que os magistrados fossem escolhidos pelo chefe do Poder Executivo. Tal

    ideia foi inserida no projeto de Constituição preparado por ele no ano de 1776. Os juízes

    ocupariam o cargo apenas enquanto “bem servissem”, portanto demissíveis ad nutum.

    Jefferson não compartilhava da ideia de que magistrados desfrutassem de vitaliciedade,

    sob pena de prejuízos à sua produtividade, não obstante à facilidade que poderia levá-los

    a cair em tentações, como o aceite de propinas, por exemplo.

    Indo de encontro ao defendido por Thomas Jefferson, em 1801 foi aprovada

    pelo Congresso uma lei denominada “Judiciary Act”, através da qual determinou-se,

    entre outras questões, que os juízes eram irremovíveis. A aprovação da mencionada lei

    contou com a resistência de Jefferson, que alegava tratar-se de uma afronta aos princípios

    constitucionais e, utilizando-se desse argumento, seu governo recusou-se a confirmar

    determinadas indicações realizadas pelo seu antecessor. Curioso é que, embora Jefferson

    tenha tecido críticas ácidas a tal lei, nada fez para enfraquecê-la. Dos aliados políticos de

    Jefferson surgiu a ideia de propor uma emenda constitucional visando derrubar a

    vitaliciedade dos juízes, mas não obtiveram resposta positiva de Thomas Jefferson.

    Todavia, segundo Dallari13:

    13 DALMO DE ABREU DALLARI. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 16.

  • 13

    Thomas Jefferson foi sempre favorável à independência dos

    juízes, fazendo, entretanto, a seguinte ressalva: um Judiciário

    independente de um rei ou de um governo monocrático é uma

    boa coisa; mas independente da vontade do povo é um erro,

    pelo menos num governo republicano.

    Atualmente, segundo Toni Fine 14 , não há norma escrita que preveja a

    vitaliciedade dos juízes da suprema corte norte-americana no cargo. No entanto, esta é

    jurisprudencialmente entendida pelo vocábulo “bom comportamento” exigido dos juízes

    pelo art. III da Constituição norte-americana, em cotejo à garantia da irredutibilidade de

    vencimentos, expressamente prevista no mesmo artigo.15

    A preocupação de Thomas Jefferson, sobretudo, consistia no controle de

    constitucionalidade dos atos dos demais poderes, quais sejam, Executivo e Legislativo.

    Percebe-se daí advindo o gérmen da preocupação em tornar os atos estatais limitados e

    submetidos a um controle pelo próprio Estado, pois este representa, em última análise, o

    povo.

    Diante disso, tem-se que os Estados Unidos idealizaram o Poder Judiciário

    como um “ponto de equilíbrio”, objetivando, dessa forma, evitar possíveis excessos dos

    outros poderes. Para que esse ideal fosse alcançando era necessário que os juízes fossem

    escolhidos pelo povo e ocupassem o cargo por tempo determinado, na concepção da

    época. Atualmente, apenas juízes de condados são escolhidos pelo povo, opção já em

    revisão em muitos estados americanos.

    A questão da judicatura estadunidense passou por muitas discussões e

    modificações, de modo que o que hoje se estabelece é a ausência de vitaliciedade aos

    juízes, os quais exercem a função por tempo determinado, cabendo, contudo, a reeleição.

    Há exceção à regra da vitaliciedade, é o que se vislumbra dos juízes federais e em alguns

    tribunais estaduais. A essência da Constituição é o mote norteador do Judiciário nos

    Estados Unidos, embora lá as fontes formais do direito passam pela Constituição,

    tratados, leis ordinárias, regulamentos e decisões judiciais. As decisões judiciais são

    entendidas como “direito comum” e revelam que a função interpretativa é

    14 TONI M. FINE. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p.

    16. 15

    Section 1. The judicial Power of the Unidet States, shall be vested in one supreme Court, and in such

    inferior Courts as the Congress may from time ordain and establish. The Judges, both of the supreme and

    inferior Courts, shall hold their Offices during good Behavior, and shall, at stated times, recive for their

    services a compensation n office. CONSTITUÇÃO DO ESTADOS UNIDOS.

  • 14

    a mais importante tarefa do Judiciário americano. A Corte Constitucional

    norte- americana será alvo de melhor estudo a frente. 16

    Retomando-se a análise histórica, impossível deixar de analisar em

    pormenores os efeitos que a Revolução Francesa exerceu sobre a atividade judicante, não

    somente na França, mas em todos os demais países pelos quais se disseminou o ideal

    republicano encetado pela burguesia, espalhado por todo o continente europeu e por

    parcela da América já colonizada. A esses ideais típicos do modelo de pensamento que

    inaugurou o período convencionou-se chamar de Idade Contemporânea. A Revolução

    Francesa, além de propugnar os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade, trazendo

    consigo o gérmen dos direitos individuais, teve sobre a magistratura um verdadeiro efeito

    de ruptura. Muitos juízes foram perseguidos e sancionados por terem atuado apenas em

    benefício da autoridade que havia lhes indicado. Tais juízes foram forçados a se submeter

    ao ideal republicano, tendo seus poderes restritos e suas atividades moldadas de acordo

    com a separação dos poderes concebida por Montesquieu.

    Em dito contexto, os juízes passaram a ser apenas a “boca da lei”, ou seja,

    reproduziam os textos previstos previamente na lei, sendo-lhes vedado interpretar e

    adequar a lei diante do caso concreto. Não cabia ao magistrado exercer juízo de valor

    frente à norma, pouco importando se a lei era imoral ou injusta: ao juiz apenas atribuía-se

    a função de aplicar a norma legislada ao caso concreto que lhe fosse apresentado.

    A criação de códigos casuísticos, que a um só tempo petrificavam o

    pensamento do magistrado, impedindo qualquer exercício efetivo de poder construtivo

    pela magistratura, escondia-se sob o subterfúgio da legalidade. É fato que o Estado

    Liberal teve por condão extinguir as arbitrariedades do absolutismo, sustentando-se no

    princípio da legalidade. Todavia, a escolha do princípio da legalidade para embasar

    decisões do novo Estado escondia um lado negro, conforme asseverado alhures:

    [...] Acontece que o motivo pelo qual os legisladores elegeram

    o princípio da legalidade como base da nova era social não era

    tão puro e justo quanto se pensava. À época, a lei nascia de ato

    16 Ademais, a legislação das colônias não era verdadeiramente submetida à lei inglesa, mas sim

    vinculada ao direito inglês. O controle da legitimidade das leis coloniais se dava a partir do common

    law, até porque o Parlamento, como já dito, estava submetido a um metadireito ou a uma

    metalinguagem (o common law), e não simplesmente escrevendo as primeiras linhas de um direito

    novo, como aconteceu com o poder (legislativo) que se instalou com a Revolução Francesa. LUIZ

    GUILHERME MARINONI. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2010. p.

    47.

  • 15

    emanado pela assembléia parlamentar francesa, a qual

    substituiu o rei na tarefa de legislar. Assim, em tal panorama,

    manteve-se uma espécie de “absolutismo velado”, uma vez que

    a vontade do tirano foi simplesmente substituída pela vontade

    legislada dos parlamentares, os quais, astutamente, reservaram

    para si, mediante processo político e legal, bem como

    utilizando a fórmula do princípio da legalidade, o poder

    absoluto e descomprometido.17

    Paralelamente, voltando os olhos para Inglaterra, percebe-se que o

    parlamento conteve rigidamente o absolutismo sem a necessidade de tolher o poder

    conferido à magistratura, mas ao revés, aliando-se a ela. Este e outros traços marcantes

    definiram o que hoje conhecemos como common law.

    O cenário continental europeu do século XVII mostra que o legislativo, ao

    confeccionar as normas, pouco se preocupava em observar se estas refletiam justiça e

    moral. Tal cenário se tornava ainda mais grave na medida em que o Poder Executivo

    apenas poderia atuar mediante a permissão legal, e ao Judiciário era cabível apenas a

    aplicação da norma, sem interpretações ou criações, chegando mesmo a ser concebido

    como poder nulo, sem voz. Tal contexto tornava impossível o controle dos atos

    legislativos.

    Segundo Teresa Arruda Alvim Wambier:

    Não foi pequena a desconfiança dos legisladores franceses em

    relação aos juízes. Em decorrência disto, acabou-se

    restringindo a atividade jurisdicional – especialmente no que

    diz respeito à interpretação – a um âmbito estrito, pois que o

    juiz era tido como um ser inanimado e não deveria ser nada,

    além de ser a boca da lei. A Corte de Cassação francesa nasceu

    como órgão anexo ou auxiliar do Corps Legislatif.18

    A restrição da atividade judicial ao exercício da mera subsunção entre fato e

    norma ensejou a denegação de julgar por parte de magistrados, que, frente a casos

    concretos não previstos pela norma, viam-se impossibilitados de exercer a jurisdição. Por

    este fato, convencionou-se a solução ainda hoje utilizada pelo direito brasileiro, inserida

    neste ordenamento desde meados de 1900, na qual se prevê que, quando determinado

    caso não encontra previsão legal casuística, na qual pudesse ser feita a

    17

    RUY ALVES HENRIQUES FILHO. Direitos fundamentais e processo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

    p. 26. 18

    TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER. Controle. p. 16.

  • 16

    subsunção, resta autorizado o uso da analogia, dos costumes e princípios gerais de direito,

    encetando aí, ainda que timidamente, uma abertura hermenêutica deferida ao magistrado.

    Na atualidade, o novo Código de Processo Civil brasileiro determina que, “ao aplicar a

    lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum,

    observando sempre os princípios da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da

    legalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência”. 19 No mesmo sentido,

    demonstrava-se a maior liberdade hermenêutica do magistrado através da previsão

    constante do art. 472 do projeto do mesmo diploma, o qual dispunha:

    Parágrafo único: Fundamentando-se a sentença em regras que

    contiverem conceitos juridicamente indeterminados, cláusulas

    gerais ou princípios jurídicos, o juiz deve expor,

    analiticamente, o sentido em que as normas foram

    compreendidas, demonstrando as razões pelas quais,

    ponderando os valores em questão e à luz das peculiaridades

    do caso concreto, não aplicou princípios colidentes.

    Esse projeto sofreu restrições severas e o artigo 489 do novíssimo código

    determina apenas que a inobservância dos precedentes poderá produzir a nulidade da

    sentença por falta de fundamentação específica. Como se verá adiante, a aplicação do

    mecanismo dos precedentes judiciais teve uma importante diminuição quando positivado

    no Brasil.

    Na concepção do positivismo jurídico, a lei era produto da atividade

    legislativa. A função da lei era justamente limitar a atuação do jurista, fazendo com que o

    magistrado se detivesse apenas na letra da norma legislada. Dessa forma, o juiz passou a

    ser mero figurante da atividade judicante, posto que não possuía liberdade para julgar,

    afastando-se mais ainda da sociedade que já o desprezava.

    Cumpre ressaltar que, para o positivismo jurídico, o direito deve ser estudado

    como fato social, tendo como objeto as normas que vigoram em determinado Estado, em

    época específica, não importando se tais normas obedecem ou não o ideal de justiça, cuja

    conceituação estende-se fora dos limites da ciência jurídica, conforme preconizado por

    Hans Kelsen.20

    Elival da Silva Ramos acentua, neste contexto, que “a objetividade

    metodológica não importa, necessariamente, na aceitação passiva do direito posto

    19

    Lei n.º 13.105 de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil, artigo 8.º 20

    HANS KELSEN. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 116.

  • 17

    (legislado ou costumeiro), pela completa desconsideração dos juízos de valor nele

    encarnado”. 21 Contudo, as normas positivas não deixam de determinar condutas,

    impondo, ainda que implicitamente, juízos de valor.

    Ramos compara o positivismo jurídico com a dogmática jurídica conhecida

    na modernidade, aduzindo que o positivismo jurídico não está superado, pois “participa

    da base comum a todas as correntes doutrinárias que, a partir da metodologia positiva, se

    digladiam quanto a aspectos mais específicos de Teoria do Direito, como é o caso, por

    exemplo, da Teoria da Interpretação”.22 Mesmo Norberto Bobbio já acentuava que o

    método do positivismo era um método científico.23

    O positivismo jurídico consiste, no tocante às fontes do Direito, na

    superioridade da legislação em relação às demais fontes do Direito, notadamente à

    jurisprudência e aos costumes. Como consequência, tem-se que o Estado passou a

    controlar a edição das normas, elegendo para isso órgão competente. Essa característica

    do positivismo jurídico deriva do fato da norma ser posta pelo Estado, e não por fonte

    diversa24.

    Outra característica do direito positivo consiste na imperatividade do direito,

    que se baseia na ideia de que norma jurídica corresponde a um comando do soberano em

    relação os seus súditos, ou seja, a lei se exterioriza como verdadeiro poder estatal. A

    Teoria da Imperatividade foi duramente criticada por Kelsen, uma vez que o núcleo

    imperativo da norma estaria voltado aos magistrados, verdadeiros operadores do direito, e

    não aos súditos.

    Ressalta-se que a mais notória característica do positivismo jurídico reside na

    adoção do conceito de ordenamento jurídico, ou seja, na concepção de que as normas são

    integradas em um único sistema. Cuida-se de ideia tratada por Hans Kelsen em sua obra,

    Teoria Pura do Direito, em que o membro da Escola de Viena defendeu que a

    21 ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p

    36. 22

    ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

    p. 37. 23

    NORBERTO BOBBIO. Teoria geral do direito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p.299. 24

    [...] A preponderância do ato decorrente do exercício da função legislativa sobre as demais fontes não é,

    propriamente, um traço tipificador das proposições positivistas, em sentido estrito, tendo aparecido nos

    escritos dos positivistas europeus do século XIX e das primeiras décadas do século XX pela circunstância

    de se viver, então, no Velho Continente o período do Estado Legal. Com a definitiva

    consolidação do sistema europeu de controle de constitucionalidade, principalmente após a segunda metade

    do século passado, a Constituição, e não a lei, passou a assumir a primazia das fontes de produção do direito

    estatal, sem que isso venha a representar alteração significativa nos marcos do positivismo teórico. ELIVAL

    DA SILVA RAMOS. Ativismo Judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 39.

  • 18

    norma jurídica nasce de algo que se encontra externo ao direito, ou seja, de um aspecto

    exterior à ciência jurídica, mas de cunho político, quando o povo aceita os comandos

    inseridos na Carta Constitucional.

    Da noção de ordenamento jurídico enquanto sistema único25 decorrem, ainda,

    duas características, quais sejam, a coerência e a completude. Fica certo, entretanto, que

    nenhum sistema jurídico é puro e intocável quando comparado à base da ciência jurídica,

    segundo Karl Popper.26 A coerência significa dizer que em um sistema não se admitem

    normas conflitantes entre si. No tocante à completude, cuida-se de característica ligada à

    ideia central do movimento positivista – certeza do direito. Do princípio da completude,

    podemos extrair duas conclusões: a vedação ao juiz quanto à criação do direito e a

    vedação ao juiz quanto à esquiva em solucionar controvérsia, sob o subterfúgio de

    ausência de previsão legal.

    Para se chegar ao nível de coerência dentro do ordenamento jurídico, revela a

    doutrina:

    A coerência do ordenamento jurídico é assegurada pelo

    estabelecimento dos chamados critérios de solução de

    antinomias, a saber, o hierárquico (lex superior derogat

    inferiori), o cronológico (lex posterior derogat priori) e da

    especialidade (lex specialis derogat generali). Entretanto, não

    há como negar a insuficiência dos três critérios em algumas

    situações, ou seja, quando há um conflito entre os próprios

    critérios, no sentido de que a uma mesma antinomia se possa

    aplicar dois critérios, cada um deles levando a um resultado

    diverso e quando não é possível aplicar nenhum dos três

    25 Segundo TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, a ideia de ordenamento como sistema é resultado

    do surgimento do Estado Moderno e capitalista no século XVI. In Introduçao ao estudo do direito. 4.

    ed. Sao Paulo: Atlas. 2003. p. 178. Larenz sustenta que onde quer que tenhamos de tratar com uma

    verdadeira ordem jurídica, teremos de tratar com a ideia de sistema, em decorrência de princípios

    imanentes que se permeiam no seu conjunto, em um sistema. Aduz o autor que a única espécie de

    sistema cabível à ciência do direito é o sistema aberto, móvel em si até certo grau, que nunca está

    completo e pode ser continuamente posto em questão, tornando clara a racionalidade inerente aos

    princípios jurídicos. KARL LARENZ. Metodologia da ciência do direito. Trad. José Lamego. Lisboa:

    Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. p. 231-241.

    Para Bobbio, “Sistema é uma totalidade ordenada, um conjunto de organismos entre os quais existe uma

    certa ordem. Para que se possa falar em ordem, é preciso que os organismos constitutivos estejam em

    relação com o todo, mas também estejam em relação de compatibilidade entre si. Quando perguntamos

    se o ordenamento jurídico constitui um sistema, perguntamo-nos se as normas que o compõem estão em

    relação de compatibilidade entre si e em que condições é possível esta relação”. NORBERTO BOBBIO.

    Teoria geral do direito. Trad. Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 219. 26

    KARL RAYMUND POPPER. Lógica das ciências sociais. Trad. Estevão de Rezende Martins. 3. ed.

    Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 16.

  • 19

    critérios, visto que há duas normas antinômicas que são

    contemporâneas, paritárias e gerais.27

    Diante de tal obstáculo, o princípio da completude foi rigidamente criticado.

    Para Maria Helena Diniz, as lacunas existentes no Direito devem ser preenchidas pelo

    poder competente, através de meios jurídicos, possibilitando manter a completude do

    sistema jurídico.28

    O positivismo filosófico exerceu forte influência sobre o positivismo jurídico,

    motivo pelo qual este último buscou interpretar o direito como ele é, entretanto, o

    positivismo parece ir além da mera questão de entender o direito, atingindo também a

    forma do direito objetivado, ou seja, o movimento positivista não é apenas um modelo

    para entender o direito, mas também de como se pretende que o direito seja. Na

    Alemanha do século XIX podem ser encontrados resquícios da ideologia positivista, uma

    vez que tal país foi adepto de tal corrente. Muito embora a Alemanha afirmasse possuir

    uma essência racionalista, cultuando o direito positivo como um organismo racional,

    guardava em seu interior resquícios do pensamento jusnaturalista, conforme leciona

    Bobbio:

    Essa tendência ideológica recebeu influência direta da

    concepção hegeliana de Estado, que não lhe atribui mero valor

    técnico, não sendo o Estado ‘um simples instrumento de

    realização dos fins dos indivíduos (como é no pensamento

    liberal), mas um valor ético, é a manifestação suprema do

    Espírito no seu devir histórico e portanto é ele mesmo o fim

    último ao qual os indivíduos estão subordinados.29

    O que se mostra curioso é que a adoração ao direito estatal que marcou

    fortemente a Alemanha recebeu duras críticas dos não positivistas, que sustentam a

    opinião que o apego ao positivismo foi a base do regime nazista germânico,

    27 ELIVAL DA SILVA RAMOS. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

    p. 41. 28

    MARIA HELENA DINIZ. As lacunas do direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 72. 29

    NORBERTO BOBBIO. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Trad. Márcio Pugliesi.

    São Paulo: Ícone, 1995. p. 223-224. E ainda: Estado Liberal e Estado Democrático são interdependentes

    em dois modos: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas

    liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao

    liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a

    persistência das liberdades fundamentais. Em outras palavras: é pouco provável que um Estado não

    liberal possa assegurar um correto funcionamento da democracia, e de outra parte é pouco provável que

    um Estado não democrático seja capaz de garantiras liberdades fundamentais.

  • 20

    fortalecendo suas ideias em conjunto com a crise ideológica e monetária enfrentada

    pelos alemães após a derrota na primeira guerra mundial.

    Embora as críticas tenham sido relevantes, não há nada concreto que

    demostre, de maneira inquestionável, que o positivismo ideológico radical e o nazismo,

    assim como o fascismo, ocorrido na Itália de Mussolini, tenham alguma relação. Aliás,

    cumpre-nos lembrar que o apego à lei está inserido no contexto de Estado de Direito

    Liberal, o que claramente está longe de possuir afinidades com regimes totalitários. Tanto

    o fascismo italiano, quanto o nazismo na Alemanha, vieram com o duplo objetivo, o de

    combater o liberalismo democrático e de reagir contra a infiltração comunista, contudo

    foi a história mostra o qual amargo foi este remédio.

    Entretanto, há quem sustente que o desuso do positivismo se encontra

    associado ao fracasso do nazismo alemão e do fascismo italiano. Esses poderes estatais,

    que se caracterizaram por violações de vários direitos fundamentais conhecidos hoje,

    atuaram sempre em nome da lei, tendo suas condutas legitimadas, enquanto chefes de

    Estado, pela lei. A lei era vangloriada e tudo justificava, conforme ensina Luís Roberto

    Barroso: “os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a

    obediência a ordens emanadas da autoridade competente”.30

    Frise-se que o direito posto atualmente no Brasil reforça a ideia de um Estado

    que busca trazer previsibilidade ao direito, porém, oferecendo ao julgador mecanismos de

    colmatação da norma à realidade, ou seja, embora positivado, o juiz pode optar pela

    opção do precedente judicial. No decorrer da história percebemos que não há um trato

    indissolúvel entre o positivismo jurídico em face do positivismo ético extremista. Na

    contramão de tal constatação, temos que o modelo dogmático adotado positivista é a

    versão “prudente” do positivismo ético, que não se contenta em apenas afirmar que o

    direito é a saída para se obter a ordem social; vai mais além, aduzindo que a lei é o

    melhor meio de exteriorizar o direito, porém, espera-se que esta seja, acima de tudo,

    justa.

    30 LUÍS ROBERTO BARROSO. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional

    brasileiro: pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. Rio de janeiro. Disponível em:

    . Acesso em: 28.09.2011.

    http://www.direitopublico.com.br/pdf_6/DIALOGO-JURIDICO-06-SETEMBRO-2001-

  • 21

    Encontra-se uma série de críticas ao direito positivo, destacando-se a “teoria

    crítica do direito”31, que tece vários questionamentos, inclusive de caráter ideológico do

    Direito, comparando-o com a política, buscando saber de onde vem a legitimidade do

    poder.32

    Uma das questões levantadas pela teoria crítica é o fato de que nem sempre o

    direito será encontrado na letra literal da lei. Vejamos o que diz Luis Roberto Barroso

    acerca do assunto:

    Uma das teses fundamentais do pensamento crítico é a

    admissão de que o Direito possa não estar integralmente

    contido na lei, tendo condição de existir independentemente da

    bênção estatal, da positivação, do reconhecimento expresso

    pela estrutura de poder. O intérprete deve buscar a justiça,

    ainda quando não a encontre na lei. A teoria crítica resiste,

    também, à idéia de completude, de autossuficiência e de

    pureza, condenando a cisão do discurso jurídico, que dele

    afasta os outros conhecimentos teóricos. O estudo do sistema

    normativo (dogmática jurídica) não pode insular-se da

    realidade (sociologia do direito) e das bases de legitimidade

    que devem inspirá-lo e possibilitar a sua própria crítica

    (filosofia do direito). A interdisciplinaridade, que colhe

    elementos em outras áreas do saber – inclusive os menos

    óbvios, como a psicanálise ou a linguística – tem uma fecunda

    colaboração a prestar ao universo jurídico.33

    31 O movimento de crítica no direito iniciou-se nos anos 60 na Europa, atingindo a América Latina na

    década de 1980. No Brasil, foram expoentes desta construção crítica do direito Roberto Lyra Filho,

    Tércio Sampaio Ferraz Jr., Luiz Fernando Coelho e Luis Alberto Warat. Segundo Barroso, “O

    pensamento crítico teve expressão na produção acadêmica de diversos países, notadamente nas décadas

    de 70 e 80. Na França, a ‘Critique du Droit’, influenciada por Althusser, procurou atribuir caráter

    científico ao Direito, mas uma ciência de base marxista, que seria a única ciência verdadeira. Nos

    Estados Unidos, os ‘Critical Legal Studies’, também sob influência marxista – embora menos explícita –

    difundiram os fundamentos de sua crença de que ‘law is politics’, convocando os operadores jurídicos a

    recompor a ordem legal e social com base em princípios humanísticos e comunitários. Anteriormente,

    na Alemanha, a denominada Escola de Frankfurt lançara algumas das bases da teoria crítica,

    questionando os postulados positivistas da separação entre ciência e ética, completando a elaboração de

    duas categorias nucleares – a ideologia e a práxis –, bem como identificando a existência de duas

    modalidades de razão: a instrumental e a crítica. A produção filosófica de pensadores como

    Horkheimer, Marcuse, Adorno e, mais recentemente, Jürgen Habermas, terá sido a principal in