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DIÁLOGO ZOLA – EÇA DE QUEIRÓS:

UNE PAGE D’AMOUR E A ESTÉTICA IMPRESSIONISTA DE OS MAIAS

João RibeireteUniversidade de Lisboa

Portugal

Mencionar a influência da escrita de Zola num romance

queirosiano é hoje matéria delicada, depois da longa discussão

em torno de O Crime do Padre Amaro e do que muitos viram

abusivamente como plágio de La faute de l’abbé Mouret. Apesar

deste mau começo (desde logo combatido por muitos e pelo

próprio autor português), a crítica queirosiana não pode deixar

de reconhecer a grande influência que o autor de L’Assommoir

exerceu na escrita de Eça de Queirós. No entanto, a análise

comparativa da obra completa dos dois autores, ainda que

extremamente produtiva, está por fazer. A crítica queirosiana

dedicou-se quase exclusivamente à polémica em torno de La

faute de l’abbé Mouret, esquecendo, praticamente, toda a

restante obra de Émile Zola. Neste estudo, tenciono reflectir

sobre a influência na escrita queirosiana de um desses

romances “esquecidos”, o oitavo volume da série Les Rougon-

Macquart: Une Page d’amour. Numa carta de 4 de junho

de 1878, endereçada ao seu editor, a apenas seis semanas da

primeira edição em Paris, Eça de Queirós pede que lhe seja

enviado um volume de Une page d’ amour1. A grande

proximidade com a data de publicação é já sintomática da

extrema atenção com que o escritor português seguia o

trabalho de Zola. Este ano de 1878 foi o “ano magno” da

escrita de Eça de Queirós. Por altura dessa carta (junho) e pelo

que podemos reconstituir da cronologia da produção

queirosiana, Eça estaria a preparar a segunda edição de O

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Primo Basílio, a escrever e a reescrever A Capital!2, a trabalhar

na terceira refundição de O Crime do Padre Amaro3 e a produzir

o manuscrito “A Catástrofe”. Piwnick na sua “Introdução” à

edição crítica de “A Catástrofe”, a partir de uma emenda (a

interpretação, que esta estudiosa deu a essa emenda, é ela

própria contestável por razões que não cabem aqui) e a partir

de uma coincidência temática com um episódio de Os Maias,

datou, recentemente, com muitas reservas, este texto: “a

minha proposta é distinguir ‘A Catástrofe’ d’A Batalha do Caia

e admitir, sem garantia, que o conto foi redigido após 1885”4.

Sinto como pouco provável esta datação, pela proximidade

textual que “A Catástrofe” mantém com a carta que Eça

escreveu a Ramalho Ortigão de 10 de novembro de 18785.

Nesta carta, Eça, para escândalo do seu correspondente,

propõe que lhe seja concedida pelo Estado português uma

indemnização que o compense por não escrever o romance

“irritante” A Batalha do Caia. Deste romance abortado, resta

apenas o que dele refere Eça nesta carta e um manuscrito com

o seu esboço6. A carta sobre A Batalha do Caia, o esboço deste

mesmo romance e o manuscrito “A Catástrofe” manifestam

óbvias semelhanças e paralelos textuais, que me fazem crer

que a escrita destes três documentos terá ocorrido nesse

mesmo ano de 1878. Provavelmente, o aspecto menos

esquemático e mais acabado do conto “A Catástrofe” levou a

que se pensasse que este teria sido escrito depois de o

romance A Batalha do Caia ter abortado. Eça teria partido do

esquema feito para compor um conto e não o romance que

tinha planeado. Na minha opinião, existe uma

possibilidade muito forte de ter sido “A Catástrofe” a primeira a

ser composta. Assim, Eça teria escrito primeiro um conto,

mitigando todas as marcas explícitas de uma intriga

internacional referenciável (note-se que Eça era, em 1878,

Consul de Portugal em Inglaterra) e, desse exercício, teria

surgido a idéia de extremar essas marcas numa obra de maior

extensão e peso, tornando o romance em projecto a um tempo

mais escandaloso, incómodo e ameaçador para o Governo

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Português. Portanto, “A Catástrofe” é uma versão (na minha

opinião anterior) atenuada do romance A Batalha do Caia (isto

é, expurgada dos elementos que poderiam causar uma maior

irritação). Concordo com Piwnick quando esta afirma que

romance e conto são distintos entre si – mais do que distintos,

são a imagem invertida um do outro e duas soluções

diametralmente opostas para a idéia de colocar em ficção as

conseqüências da perda da Nação Portuguesa. Deste modo, os

dois manuscritos (conto e esboço de romance) estão presentes

na carta enviada a Ramalho Ortigão, de 10 de novembro de

1878, o que me leva a pensar que ambos serão anteriores a

essa data (sendo “A Catástrofe” a mais anterior) e que Eça

pensava produzir um romance utilizando, fundindo, ambos os

manuscritos. No entanto, nem todos estes textos foram

publicados. A Tragédia da Rua das Flores, provavelmente

desde janeiro desse ano, já jazia na funda gaveta de Eça, que

se preparava para acolher ainda “A Catástrofe” e mais tarde A

Capital!. Eça faz ainda uma última tentativa de publicação de A

Tragédia da Rua das Flores, em novembro de 1878. No

entanto, a maneira como fala do seu romance e o facto de este

ter sido excluído da colecção “Cenas Portuguesas”, que Eça

projectou nesse ano, leva-nos a crer que a escrita deste

romance já teria parado muito tempo antes: Eu tenho

justamente um romance que estava à espera de vez: escrevi-o

para ser a primeira parte das Cenas, mas além de ser mais

volumoso do que o plano das Cenas comporta (atinge quase a

obesidade do Primo Basílio), não me servia artisticamente como

Introdução às Cenas. Foi por isso que o substituí pela Capital,

que é mais um trabalho de generalidade. O assunto é grave –

incesto; mas tratado com tanta reserva, que não choca. Os

amores de um lindo moço, título pretensiosamente medíocre.

Poderei, pour la circonstance, chamar-lhe: O Brasileiro; o herói

é-o.7

A primeira referência ao título d’Os Maias, romance de

que me vou ocupar mais demoradamente, surge igualmente no

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ano de 1878, em janeiro, numa outra carta a Ernesto

Chardron8. Ainda que tivesse já nesta altura a idéia vaga de

escrever um romance centrado numa família nobre (como o

título já denuncia), reaproveitando talvez a temática do incesto,

que caíra com A Tragédia da Rua das Flores na sua gaveta de

obras inacabadas, parece provável que Eça apenas tenha

trabalhado seriamente neste romance a partir de 1880.

De qualquer modo, dentro dos dez anos de gestação de

Os Maias (1878-1888), para além da leitura muito provável de

Une page d’ amour, gostaria de destacar um outro dado

biográfico, que terá posto com ainda maior evidência Zola

diante de Eça de Queirós: a entrevista de pouco mais de meia-

hora que o autor de Naná concedeu ao romancista português e

ao seu amigo, Mariano Pina, no primeiro semestre de 1885.

Esta entrevista, apesar de nos chegar relatada por Mariano

Pina e não por Eça, revela-se importante, já que nela Zola ter-

se-á referido a Une page d’ amour, pejorativamente, como “um

romance de meia-tinta [por oposição a Germinal, obra que

tinha terminado e que o deixara exausto]”. Este julgamento

negativo e de autocrítica, proferido pelo próprio autor francês,

pode ter activado na mente do escritor português a memória de

Une page d’ amour, numa altura em que trabalhava

fervorosamente no seu maior romance. Com efeito,

podemos detectar uma influência profunda do romance de Zola

n’Os Maias, desde logo, a partir da caracterização das suas

personagens principais : Hélène é viúva e vive com a sua filha,

Jeanne, do mesmo modo que Maria Eduarda, sobrevivendo ao

seu marido, vive com Rosicler; Carlos, como Henri, é um jovem,

rico e galante médico. No entanto, para além do tema do

incesto no romance queirosiano (que como referi anteriormente

foi recuperado de um outro romance abandonado, A Tragédia

da Rua das Flores), a perspectiva modifica fundamentalmente

as duas narrativas: em Os Maias, o protagonista é Carlos da

Maia e, em Une page d’amour, a personagem principal é

feminina, Hélène Grandjean. Apesar disso, trata-se nos

dois romances de histórias de amores proibidos e fatais, que

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acabam por vitimar quem está mais próximo da personagem

protagonista. Em Une page d’amour, Jeanne morre em

conseqüência directa da sua consciência da relação amorosa (e

adúltera) que Hélène mantinha com Henri, do mesmo modo

que Afonso da Maia sucumbe à evidência do incesto praticado

pelos seus netos. Existem ainda algumas personagens

secundárias que aproximam muito o romance queirosiano do

de Zola: o Abade Custódio de Os Maias é em tudo semelhante

ao Abbé Jouves, de Une page d’amour; também a Condessa

Gouvarinho se assemelha muito a Juliette Deberle, na

superficialidade com que se relaciona em sociedade e na

idealização que faz do adultério. É, não obstante, na

constituição de “quadros”, na descrição impressionista de

paisagens e episódios, que se manifesta uma maior

proximidade entre os dois romances. O Impressionismo,

movimento que se inicia nas Artes Plásticas, mas que depressa

se expande a outras formas de expressão artística, como a

Música e a Literatura, designa o momento em que aparecem

estes três “problemas modernos”, que são a relação “da forma

e da luz”, a “triangulação do espaço” e a “ sua representação

polissensorial” por meio de valores tácteis9. O Impressionismo

abalou as coordenadas da representação do Real estabelecidas

desde o Renascimento, procurando não a descrição de um

objecto com todos os seus detalhes no espaço, mas a sua

evocação através da diluição ou vaporização da forma-contorno

na forma-mancha. De acordo com Pierre Francastel, É a forma

que passa para segundo plano. O contorno da mancha colorida

vence o contorno dos objectos. Outrora, a cor submetia-se ao

contorno através de determinado esbatido, uma determinada

confusão dos valores na penumbra; doravante, o contorno não

será mais do que um traço sugerido pelos limites da mancha

triunfante.10

Émile Zola contactou com a primeira geração de

Impressionistas e, muito cedo, começou a introduzir nos seus

romances descrições de acordo com as coordenadas miméticas

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deste movimento. Une page d’amour, um romance pictórico em

que as descrições se apresentam predominantemente

organizadas e estruturadas por planos e enquadramentos, é

seguramente exemplo disto: Maintenant, Hélène, d’un coup

d’oeil paresseusement promené, embrassait Paris entier. [...]

Les détails si nets aux premiers plans, les dentelures

innombrables des cheminées, les petites hachures noires des

milliers de fenêtres, s’effaçaient, se chinaient de jaune et de

bleu, se confondaient dans un pêle-mêle de ville sans fin, dont

les faubourgs hors de la vue semblaient allonger des plages,

noyées d’une brume violâtre, sous la grande clarté épandue et

vibrante du ciel.11

Neste excerto, o espaço é contemplado e descrito a partir

de uma periferia e como que enquadrado pela janela por onde

Hélène observa Paris. Se na descrição feita começamos por ter

uma noção de profundidade pela distinção entre primeiros e

segundos planos, esta se desvanece com a falta de nitidez do

que está mais afastado do sujeito. O olhar, em vez de recuar

ante aquilo que não consegue ver, enfrenta-o e descreve-o

vago, informe, de cores empastadas e (con)fundidas. Neste

excerto, como no resto do romance, a cidade de Paris é

observada de fora, à distância, e descrita como um quadro

impressionista, sem contornos precisos, com formas abertas,

atmosféricas. Para esta distância contribui o facto do

observante não conhecer a cidade em que está a viver: Elles ne

savaient rien de Paris, en effet. Depuis dix-huit mois qu’elles

l’avaient sous les yeux à toute heure, elles n’en connaissent

pas une pierre. Trois fois seulement, elles étaient descendues

dans la ville; mais remontées chez elles, la tête malade d’une

telle agitation, elles n’avaient rien retrouvé, au milieu du pêle-

mêle énorme des quartiers.12

Também em Os Maias encontramos quadros do mesmo

tipo: Agora, uma estreita tira de água e monte que se avistava

entre dois prédios [...] formava toda a paisagem defronte do

Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um

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Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um

encanto íntimo. Era como uma tela marinha, encaixilhada em

cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço,

mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios

fugitivos de uma pacata vida de rio [...] E sempre ao fundo o

pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto,

e duas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão –

ora faiscantes e despedindo raios das vidraças acesas em

brasa; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas

dos rosados do poente, quase semelhante a um rubor humano;

e de uma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão

brancas, como nuas, sob o tempo agreste.13

Como no excerto de Une page d’amour, encontramos

neste passo de Os Maias um olhar sobre uma “tela”

(enquadrada por dois prédios fronteiros), que se detém no

“alto”, no plano superior pouco nítido, onde as cores se

constituem como manchas e as fronteiras entre os objectos

descritos surgem esbatidas. Repare-se que se registra não

uma mas várias paisagens de acordo com os respectivos tipos

de iluminação (dia, “fim de tarde”, “nos dias de chuva”), fixando

de cada uma apenas o efeito geral produzido e não o detalhe

(tal como defendia Monet para se contrariar a transformação

efectuada pela passagem do tempo sobre a luz e a forma das

coisas). Note-se, igualmente, que a aposta no contraste claro-

escuro (“fundo [...] verde-negro [...] e duas casas brancas”) e na

emotividade das formas (“duas casas brancas ao rés da água

[...] de uma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão

brancas, como nuas”), aproxima esta descrição do tipo de

Impressionismo praticado por Van Gogh, percursor do

Expressionismo. As novas teorias miméticas não diziam

apenas respeito ao tratamento das cores ao ar livre, mas

também ao das formas em movimento. Vejamos o episódio do

baloiço em Une page d’amour, onde Zola, retomando um tema

celebrizado na pintura romântica por Jean-Honoré Fragonard,

o conforma a uma estética de representação impressionista:

Puis, montée debout sur la planchette, les bras élargis et se

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tenant aux cordes […] Elle portait une robe grise, garnie de

noeuds mauves. Et, toute droite, elle passait lentement, rasant

la terre […] Une brusque secousse l’enleva. Elle montait dans

le soleil, toujours plus haut. Une brise se dégageait d’elle et

soufflait dans le jardin; et elle passait si vite, qu’on ne la

distinguait plus avec netteté. Maintenant elle devait sourire,

son visage était rose, ses yeux filaient comme des étoiles. La

natte dénouée battait sur son cou. Malgré la ficelle qui les

nouait, ses jupes flottaient et découvraient la blancheur de ses

chevilles. [...] En haut, elle entrait dans le soleil, dans ce blond

soleil de février, pleuvant comme une poussière d’or. Ses

cheveux châtains, aux reflets d’ambre, s’allumaient; et l’on

aurait dit qu’elle flambait tout entière, tandis que ses noeuds

de soie mauve, pareils à des fleurs de feu, luisaient sur sa

robe blanchissante.14

Temos neste episódio o registro da impressão da luz, da

velocidade e do movimento. Deixa de haver gradualmente

nitidez nos contornos e a figura humana deixa um lastro de cor

atrás de si, deslocando-se num espaço triangular e

progressivamente táctil. Hélène abandona-se ao excesso das

sensações num baloiço, ao mesmo tempo em que o seu corpo

visualmente se desmaterializa numa mancha de cores claras,

onde se destaca o brilho dos seus olhos, o rosa da face, o

castanho dos cabelos, os atilhos soltos do seu vestido e o

branco das suas meias que se mistura com a cor do vestido

(agora esbranquiçado). Hélène experimenta a diluição do seu

próprio corpo e esse excesso, a que põe um fim violento e

automutilador, porque se lança do baloiço, ferindo-se numa

perna, após a chegada de Henri, torna-a mais consciente e

dependente das suas sensações físicas15. Em Os Maias,

durante a visita de Vilaça (pai) a Santa Olávia, surge um eco

deste episódio de Une page d’ amour: O bom Vilaça voltou-se

com esforço. O pequeno, muito alto no ar, com as pernas

retesadas contra a barra do trapézio, as mãos às cordas,

descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com

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cabelos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo

em pleno sol; todo ele sorria; a sua blusa, os calções

enfunavam-se à aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos

seus olhos muito negros e muito abertos.16

Também aqui se registra o movimento, por meio da

diluição gradual da forma no espaço. Surge, inicialmente, uma

figura humana com contornos nítidos (“pernas retesadas”, “as

mãos às cordas”, “cabelos ao vento”), que vai progressivamente

perdendo os seus contornos e o último registro é o da cor e do

seu lastro (“via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito

negros”). Como em Une page d’amour, o espaço em redor é

cavado largamente, isto é, vai ganhando a materialidade do

corpo que se desfaz em cor com a velocidade. O narrador n’Os

Maias perspectiva a cena a partir da personagem Vilaça, que

não suporta o excesso visual da diluição do corpo e lhe volta as

costas. Quando Vilaça volta (e nós voltamos) a olhar o trapézio,

o corpo já não existe: “Vilaça voltou-se para aplaudir, mas

Carlos tinha já desaparecido; o trapézio parava, em oscilações

lentas”17. O movimento do trapézio de Os Maias resulta

no desaparecimento corporal, sem que isto traga

conseqüências físicas ou psicológicas para o protagonista, que

volta a surgir ileso no momento seguinte. Em Une page

d’amour, este processo de diluição atmosférica do corpo revela-

se também insuportável (excessivo), mas, pelo contrário, é

interrompido e marca Hélène de modo violento e descontrolado.

Como vimos, Une page d’amour e Os Maias apresentam

uma tendência para a dissolução dos objectos em quadros

impressionistas, em que a forma apenas é sugerida por meio

do agrupamento de manchas de cor. Essa dissolução da forma

pode ser progressiva, se os objectos estiverem em movimento,

e até resultar no desaparecimento efectivo do corpo como

ocorre n’Os Maias. No entanto, não podemos afirmar,

seguramente, ao contrário do que se passa com Zola, que Eça

de Queirós tenha tido contacto com a pintura impressionista e

que, a partir daí, tenha deixado contagiar o universo

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romanesco dos seus princípios estéticos. Se esse contacto e

influência existiram, Eça deles optou por guardar silêncio.

Garcez da Silva, no seu estudo A Pintura na obra de Eça de

Queirós, afirma que o autor de Os Maias desconheceria

estranhamente as obras e os pintores da Escola

Impressionista: “O que se torna estranho é a ausência, na sua

obra de ficção, de um comentário, uma palavra que ao menos

denote o conhecimento, vago que seja, de qualquer pintor ou

de qualquer quadro da escola impressionista”18. Parece, de

facto, estranho que um autor, com amigos atentos e

entusiastas do Movimento Impressionista (como Mariano Pina

e Ramalho Ortigão), tendo vivido durante vários anos em

Londres e Paris (eixo onde surgiu e cresceu o Impressionismo

na pintura), sendo obrigado, para as suas colaborações

jornalísticas, a estar atento à vida cultural daqueles países,

tivesse ignorado este movimento artístico que tanta celeuma

causou. Mas, de facto, existe o testemunho de um olhar de

Eça para uma tela de Manet, registrado por Mariano Pina na

entrevista a Zola, referida anteriormente: Eça de Queirós [...]

investigava e inventariava por dentro e por fora o seu homem

[Émile Zola], não lhe perdendo um gesto, uma expressão

physionómica. E de quando em quando, Queirós fixava o

monóculo: ou sobre um delicioso pastel de Manet, o artista que

Zola tanto amava; ou n’uma antiga Nossa Senhora, de prata

lavrada, pregada a um fundo de velludo encaixilhado n’uma

velha moldura.19

Há também uma

referência irónica a

um dispendioso

quadro, de fraca

qualidade e

“apanhado a fortes

brochadelas de

primeira impressão”,

n’Os Maias20, mas

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não possuímos nada

que ateste o

conhecimento por

parte do romancista

português da obra

produzida pela Escola

Impressionista (por

Manet, Renoir, entre

muitos outros). No

entanto, existem

textos que atestam

que Eça admiraria

artistas como Turner

(“o vago ideal das

composições de

Turner”. In: A

Tragédia da Rua das

Flores), Daubigny e

Rousseau, entre

outros precursores do

Impressionismo (“Já

muito raramente se

pinta a paisagem tal

como a viram os

sinceros e claros

olhos dos Daubigny,

dos Th. Rousseau”21).

N’Os Maias, o

escritório de Afonso

da Maia continha

também, como

extremo de requinte e

bom-gosto,

“paisagens de

Rousseau e

Daubigny”.

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Apesar disso,

podemos verificar que

as descrições de Os

Maias, das quais

destacámos alguns

exemplos, apontam

para uma reflexão

profunda e

amadurecida sobre a

estética

impressionista. Para

essa reflexão parece

ter contribuído

sobretudo a leitura de

Une page d’ amour, de

Émile Zola, romance

que seguramente

contagiou o modo de

ver (e sugerir) os

ambientes e as

personagens

queirosianas.

1 Cf. Eça de Queirós. Obras de Eça de Queirós. Porto, Lello, 1986. Vol. 4, p. 1185.

2 Na carta ao seu editor de 15 de junho de 1878, Eça refere-se claramente ao seutrabalho de revisão d’O Primo Basílio e de composição de A Capital! Cf. Eça deQueirós, 1986, p. 1886-1887.

3 Na carta a Ernesto Chardron de 2 de maio de 1878, Eça expõe ao seu editor asua vontade de reformular O Crime do Padre Amaro, numa edição “aumentada” e“definitiva”. O seu trabalho em torno desta obra já tinha começado antes, como oatestam outros documentos da sua correspondência particular (por exemplo, acarta a Ramalho Ortigão de 15 de março de 1878) e continuará depois de junho.Cf. Eça de Queirós, 1986, p. 1183-1184 e p. 1175-1176, respectivamente.

4 Eça de Queirós. Contos II. Lisboa, INCM, 2003. p. 30.

5 Eça de Queirós, 1986. Vol. 4, p. 1197-1202.

6 Cf. Carlos Reis & Maria do Rosário Milheiro. A Construção da Narrativa

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Queirosiana – O Espólio de Eça de Queirós. Lisboa, Imprensa Nacional Casa daMoeda, 1989. Este manuscrito 232 é transcrito nas páginas 207-208.

7 Carta de 10 de novembro a Ramalho Ortigão. Eça de Queirós, 1986. Vol. 4, p.1206-1207.

8 Apud Lopes d’ Oliveira. Eça de Queirós; A sua vida e a sua obra. Lisboa, SOPCUL,1944. p. 120.

9 Cf. Pierre Francastel. Destruction d’un espace plastique. Études de sociologie del’art. Création picturale et société. Paris, Denöel-Gonthier, 1977 [1952]. p. 204.

10 Francastel, 1977, p. 208 (tradução minha).

11 Émile Zola. Une page d’ amour. Paris, Gallimard, 1989. p. 91.

12 Zola, 1989, p. 91.

13 Eça de Queirós. Os Maias; episódios da vida romântica. Lisboa, Livros do Brasil,s.d. p. 11.

14 Zola, 1989, p. 79.

15 Zola, 1989, p. 81.

16 Eça de Queirós, Os Maias, p. 66.

17 Eça de Queirós, Os Maias, p. 66.

18 Garcez da Silva. A Pintura na obra de Eça de Queirós. Lisboa, Caminho, 1986.p. 136.

19 Mariano Pina. Zola e Eça de Queirós. A Ilustração, n.º 11, 5 de junho de 1885.p. 163.

20 Eça de Queirós, Os Maias, p. 155.

21Notas Contemporâneas. Lisboa, Livros do Brasil, 1927. p. 244-245.