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Ano 1 (2015), nº 4, 1443-1490 DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS NOS ESTADOS UNIDOS E NO BRASIL Rodrigo Brandão 1 Sumário: 1. Introdução; 2. Ataques institucionais; 2.1 Estados Unidos; 2.2 Brasil; 2.3 Ataques institucionais e Estado de Di- reito; 3. o poder do congresso nacional sobre o orçamento e o salário do judiciário; 3.1 Estados Unidos; 3.2 Brasil; 3.3 Con- clusão; 4. O processo de nomeação e de investidura dos juízes da Suprema Corte; 4.1 Estados Unidos; 4.2 Brasil; 4.3 Proces- sos de nomeação e investidura, realinhamento jurisprudencial e accountability; 5. Os mecanismos de superação legislativa de decisões da Suprema Corte; 5.1 Estados Unidos; 5.2 Brasil; 5.3 Conclusão; 6. A inevitabilidade dos diálogos institucionais na definição do sentido da constituição; 7. Interpretação constitu- cional, grupos de interesse e opinião pública; 8. Conclusão: o estoque limitado de decisões contramajoritárias da suprema corte e o seu adequado emprego em uma democracia constitu- cional 1. INTRODUÇÃO debate sobre a legitimidade da jurisdição cons- titucional parte da premissa de que a invalida- ção de lei pelo Judiciário, sobretudo quando fundada em princípios constitucionais abstratos, padece de uma dificuldade contramajoritária, pois órgão não eleito afastaria escolhas tomadas por maiorias políticas. 2 Todavia, é crescente a percepção de que há uma ten- 1 Professor-adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público UERJ. Procurador do Município do Rio de Janeiro. 2 FRIEDMAN, Barry. Mediated popular constitutionalism. Michigan Law Review, Vol. 101, p. 2.603. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=406620 or

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Ano 1 (2015), nº 4, 1443-1490

DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS NOS ESTADOS

UNIDOS E NO BRASIL

Rodrigo Brandão1

Sumário: 1. Introdução; 2. Ataques institucionais; 2.1 Estados

Unidos; 2.2 Brasil; 2.3 Ataques institucionais e Estado de Di-

reito; 3. o poder do congresso nacional sobre o orçamento e o

salário do judiciário; 3.1 Estados Unidos; 3.2 Brasil; 3.3 Con-

clusão; 4. O processo de nomeação e de investidura dos juízes

da Suprema Corte; 4.1 Estados Unidos; 4.2 Brasil; 4.3 Proces-

sos de nomeação e investidura, realinhamento jurisprudencial e

accountability; 5. Os mecanismos de superação legislativa de

decisões da Suprema Corte; 5.1 Estados Unidos; 5.2 Brasil; 5.3

Conclusão; 6. A inevitabilidade dos diálogos institucionais na

definição do sentido da constituição; 7. Interpretação constitu-

cional, grupos de interesse e opinião pública; 8. Conclusão: o

estoque limitado de decisões contramajoritárias da suprema

corte e o seu adequado emprego em uma democracia constitu-

cional

1. INTRODUÇÃO

debate sobre a legitimidade da jurisdição cons-

titucional parte da premissa de que a invalida-

ção de lei pelo Judiciário, sobretudo quando

fundada em princípios constitucionais abstratos,

padece de uma dificuldade contramajoritária,

pois órgão não eleito afastaria escolhas tomadas por maiorias

políticas.2 Todavia, é crescente a percepção de que há uma ten-

1 Professor-adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Doutor e Mestre em Direito

Público UERJ. Procurador do Município do Rio de Janeiro. 2 FRIEDMAN, Barry. Mediated popular constitutionalism. Michigan Law Review,

Vol. 101, p. 2.603. Available at SSRN: http://ssrn.com/abstract=406620 or

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dência de alinhamento entre a jurisprudência da Suprema Corte

e as preferências dos demais poderes e da opinião pública em

número significativo de questões politicamente relevantes.3

O objetivo do artigo é compreender os fatores de intera-

ção do Judiciário com os demais poderes e agentes sociais

através do cotejo das experiências norte-americana e brasileira.

Busca-se, assim, melhor compreender as razões que conduzem

a uma sincronização entre as decisões da Suprema Corte e as

preferências dos mencionados atores políticos e sociais em

número relevante de casos politicamente salientes.

Não há dúvida de que diversas outras experiências inte-

ressantes poderiam ser estudadas. A escolha da norte-

americana, porém, se deve à sua longeva prática de interações

institucionais acerca da interpretação e aplicação da Constitui-

ção em um contexto de estabilidade democrática. Muito embo-

ra o Brasil possua um sistema de controle de constitucionalida-

de em funcionamento há mais de um século, a profunda insta-

bilidade democrática existente até o advento da Constituição de

1988 não conferiu ao Supremo Tribunal Federal condições

adequadas para ser o principal árbitro das mais importantes

crises institucionais vivenciadas até 1988.4

Entretanto, após o advento da Constituição de 1988 a si-

tuação se tornou bastante distinta. Vive-se no Brasil o período

mais longo de estabilidade democrática, e assim se torna pre-

mente o estudo das interações institucionais sobre a interpreta-

ção da Constituição nesse contexto. Há, porém, uma importan-

te diferença na dinâmica dessas relações nos Estados Unidos e

no Brasil.

http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.406620, Acesso em 10.02.2014. 3 FRIEDMAN, Barry. The will of the people: how public opinion has influenced the

Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. New York: Farrar,

Straus and Giroux, 2009, p. 14. 4 Ver BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais:

a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro:

Lumen Iuris, 2012, p. 89/117.

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Os mais de dois séculos de experiência dos EUA reve-

laram que a atuação politicamente relevante da Suprema Corte

pode assumir conotação conservadora ou progressista. Exem-

plos típicos da primeira foram os casos Dred Scott v. Sanford e

Lochner v. New York,5 nos quais a Suprema Corte, em síntese,

conferiu respaldo constitucional à escravidão e invalidou legis-

lação social destinada à proteção do trabalhador. Todavia, a

partir da década de 1950, a Corte de Warren marcou época com

a sua postura progressista na proteção de direitos civis. Cite-se,

dentre outras, as decisões proferidas nos casos Brown v. Board

of Education of Topeka, na qual declarou a inconstitucionali-

dade da segregação racial em escolas públicas, e Miranda v.

Arizona, em que afirmou o direito de suspeito da prática de

crimes de permanecer calado e de ser assistido por advogado.6

Entretanto, recente jurisprudência da Suprema Corte é

caracterizada por uma sistemática invalidação de direitos reco-

nhecidos pelo Parlamento,7 especialmente através da interpre-

tação bastante restritiva que tem conferido à cláusula da equal

protection of law. Robert Post e Reva Siegel salientam que a

Suprema Corte nutre uma “suspeição e hostilidade” à interpre-

tação constitucional pelo Legislativo, praticamente anulando o

poder do Congresso de concretizar os direitos civis.8

Portanto, o contexto de uma Suprema Corte mais con-

servadora do que o Parlamento explica a razão pela qual juris-

tas americanos progressistas vêm sustentando a necessidade de 5 Respectivamente: 60 US 393 (1857); 198 US 45 (1905); 323 US 214 (1944).

HALL, Kermit L. The Oxford guide to United States Supreme Court decisions. New

York: Oxford University Press, 1999. 6 Respectivamente: 347 US 483 (1954); 384 US 436 (1966). Ver HALL, Kermit L.

The Oxford guide to United States Supreme Court decisions. New York: Oxford

University Press, 1999. 7 GRIFFIN, Stephen. Judicial supremacy and equal protection in a democracy of

rights. University of Pensylvania Journal on Constitutional Law, v. 5, p. 282, nov.

2001. 8 POST, Robert & SIEGEL, Reva. Equal protection by law: federal antidiscrimina-

tion legislation after Morrison and Kimel, 110, Yale Law Journal, 441-526 (2000),

p. 477.

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devolver a interpretação da Constituição ao povo, através do

chamado constitucionalismo popular.9 Dentre suas propostas

mais radicais, cite-se o emprego de expedientes como o impe-

achment de juízes, cortes no orçamento do Judiciário, descum-

primento das decisões da Suprema Corte, encolhimento das

suas competências, ou aumento do número dos seus mem-

bros,10

ou mesmo a extinção do controle judicial de constituci-

onalidade.11

Todavia, a realidade brasileira é muito distinta da norte-

americana. Primeiro, porque enquanto o fenômeno da judiciali-

zação da política, e a consequente saliência política do Judiciá-

rio, têm mais de 200 anos nos EUA, no Brasil ele data de pou-

co mais de uma década. Segundo, porque, enquanto há nos

EUA uma sólida cultura liberal que impediu o êxito de autori-

tarismos mesmo no momento em que tais regimes se expandi-

am por todo o mundo (primeiro pós-guerra), a democracia bra-

sileira ainda está em sua infância, e a nossa história político-

institucional possui relevantes exemplos de governos autoritá-

rios que achacaram a independência judicial. Terceiro, porque

enquanto os EUA a partir da década de 1960 podem ser consi-

derados uma democracia de direitos, na qual todos os poderes

9 O constitucionalismo popular consiste em relevante movimento teórico em curso

nos EUA, no qual, embora congregue diferentes propostas, apresenta a crença co-

mum de que o processo de interpretação e aplicação da Constituição não deve ocor-

rer exclusivamente, nem mesmo preferencialmente, no Judiciário, mas no âmbito

dos demais poderes e da sociedade civil. O seu lema fundamental pode ser sintetiza-

do na expressiva frase de Franklin Roosevelt: “A Constituição é um instrumento

leigo de governo, não um contrato elaborado por advogados”. Portanto, sustenta-se

que a Constituição é passível de interpretação e aplicação pelos Poderes Legislativo

e Executivo e pela sociedade civil, sem a necessária intermediação do Judiciário. Os

marcos fundamentais do constitucionalismo popular são os seguintes livros:

TUSHNET, Mark. Taking the Constitutional away from the Courts. New Jersey:

Princeton University Press, 1999; KRAMER, Larry. The people themselves – popu-

lar constitutionalism and judicial review. Oxford University Press: Oxford, 2004. 10 KRAMER, Larry. The people themselves – popular constitutionalism and judicial

review. Oxford University Press: Oxford, 2004. 11 TUSHNET, Mark. Taking the Constitutional away from the Courts. New Jersey:

Princeton University Press, 1999.

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se encontram seriamente vinculados a esse ideal (em cuja im-

plantação a Suprema Corte – reconheça-se – teve papel histori-

camente importante), no Brasil o constitucionalismo e os direi-

tos ainda não se incorporaram plenamente à nossa cultura polí-

tica.12

Desta forma, a proposta de extinção do controle judicial

de constitucionalidade seria nefasta para a implantação de uma

democracia de direitos entre nós. Mesmo propostas de emprego

de mecanismos de reação a decisões judiciais que interferem

mais radicalmente na independência judicial (como as propos-

tas de Kramer de impeachment de juízes, cortes no orçamento

do Judiciário, descumprimento das decisões da Suprema Corte,

redução das suas competências ou do número dos seus mem-

bros) parecem excessivas no Brasil. Com efeito, tais mecanis-

mos deram o tom das relações institucionais travadas antes de

1988, e o que se viu não foi um constitucionalismo popular,

mas uma hegemonia dos poderes políticos (sobretudo do Exe-

cutivo) na definição do sentido de normas constitucionais inde-

terminadas, que produziu efeitos deletérios para a implantação

do constitucionalismo e de uma cultura de direitos no Brasil.

Portanto, acredita-se que o Judiciário em geral, e o Su-

premo Tribunal Federal em particular, têm um papel relevan-

tíssimo na proteção de direitos e no aprimoramento do caráter

deliberativo da democracia brasileira. Nada obstante isso, há

mecanismos formais e informais de interação entre o Judiciá-

rio, os demais poderes e agentes sociais que conferem uma

natureza política ao processo de interpretação e aplicação da

Constituição que não é capturada pelo conhecimento jurídico

convencional. O presente artigo se destina ao estudo desses

elementos, valendo-se da experiência norte-americana que,

guardadas as suas particularidades, fornece importantes in-

sights a democracias constitucionais mais jovens como a brasi-

12 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a

quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Op. Cit., p. 89/117.

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leira.

2. ATAQUES INSTITUCIONAIS

2.1 ESTADOS UNIDOS

Consideram-se ataques institucionais à Suprema Corte

medidas destinadas a alterar a sua estrutura e funcionamento

como reação a sua jurisprudência. Cite-se, por exemplo, a mo-

dificação do número dos seus membros, a manipulação das

suas competências e o impeachment de juízes para fins não

disciplinares (sobretudo para o realinhamento da sua jurispru-

dência às preferências políticas dos demais poderes ou de agen-

tes sociais relevantes).

Nos Estados Unidos, o número de juízes da Suprema

Corte foi alterado algumas vezes. Os federalistas, através do

Judiciary Act de 1801, reduziram-no de seis para cinco, com o

escopo de impedir que Thomas Jefferson, que sucederia John

Adams no ano seguinte na Presidência da República, pudesse

nomear juiz da sua predileção. No ano seguinte, com a revoga-

ção do Judiciary Act, o número voltou a seis, chegando a nove

em 1869, número que se mantém até hoje.13

Por outro lado, a rejeição do impeachment do Justice

Chase no Senado norte-americano durante a disputa entre fede-

ralistas v. antifederalistas após a Fundação dos Estados Uni-

dos, garantiu a inviabilidade do uso do impeachment de juízes

como instrumento de readequação política da jurisprudência

da Suprema Corte, mas apenas para fins disciplinares, em

noção fundamental para o florescimento da independência ju-

dicial nos Estados Unidos.14

Constitui exemplo clássico de ataque à Suprema Corte a 13 Ver <http://www.supremecourt.gov/>. Acesso em: 20/12/2010, às 19h. 14 ACKERMAN, Bruce. The failure of the founding fathers: Jefferson, Marshall and

the rise of presidential democracy. The Belknap Press of Harvard University Press,

2005.

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tentativa malograda de Franklin Roosevelt de “empacotá-la”.

Na década de 1930, uma Suprema Corte de maioria conserva-

dora declarou inconstitucional uma série de normas aprovadas

por Roosevelt, inclusive aquelas que compunham o seu pacote

de medidas destinado a retirar os Estados Unidos da crise

econômica que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York em

1929 (New Deal).15

A eleição consagradora de Roosevelt em 1936 pavi-

mentou o caminho para a sua reação à jurisprudência conser-

vadora da Suprema Corte. Após rejeitar várias soluções,16

Roo-

sevelt optou por apresentar ao Congresso projeto de lei que lhe

autorizaria a nomear um novo juiz para cada membro da Su-

prema Corte com mais de 70 anos que se recusasse a se apo-

sentar. No momento do seu envio (05/02/1937), a proposição,

se aprovada, lhe garantiria a nomeação de seis juízes, e, segu-

ramente, a reversão da jurisprudência conservadora contra a

qual se opunha.17

O Comitê Judiciário do Senado rejeitou duramente a

medida, que, a seu ver, tinha um único propósito: aplicar força

ao Judiciário. Todavia, a mudança de entendimento na Supre-

ma Corte tornou o Court Packing Plan desnecessário. Com

efeito, o Justice Roberts abandonou a jurisprudência laissez-

faire da Corte em casos como West Coast Hotel v. Parrish18

,

em que superou recente precedente para declarar a constitucio-

15 São exemplos dessa jurisprudência conservadora que desafiara um Presidente

amplamente respaldado pelo apoio popular, a declaração da inconstitucionalidade do

National Industrial Recovery Act (NIRA), e de norma que aliviava dívidas de produ-

tores rurais, e a imposição de sérias restrições ao poder do Presidente de destituir

dirigentes de agências reguladoras independentes. Confira-se, a propósito, os casos

Schechter Corp. v. United States 295, US 495 (1935); Louisville Bank v. Radford,

295 US 555 (1935); Humprey´s Executor v. United States 295 US 602 (1935). 16 Por exemplo, emenda constitucional superadora da jurisprudência da Corte pela

dificuldade na sua aprovação; lei de igual teor à anteriormente declarada inconstitu-

cional, pela probabilidade de a Suprema Corte declará-la inconstitucional etc. 17 FISHER, Louis. Constitutional dialogues – interpretation as a political process.

Oxford: Princeton University Press, 1988, p. 212/213. 18 300 US 379 (1937).

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nalidade de lei que fixara salário-mínimo para mulheres, em

mudança de posição sugestivamente apelidada de switch in

time that saved nine. No curso de 1937, Roberts se juntou defi-

nitivamente aos liberais, viabilizando a manutenção das medi-

das sociais que compunham o New Deal. Roosevelt reconheceu

o sucesso que a simples ameaça de empacotamento lhe rendeu,

ao afirmar que a antiga minoria de 1935 e 1936 se tornou a

maioria de 1937 – sem uma única nomeação de juiz!19

Quanto à manipulação das competências da Suprema

Corte pelo Legislativo, o artigo terceiro da Constituição norte-

americana permite que o Congresso Nacional regule e crie ex-

ceções à competência recursal da Suprema Corte.20

O caso

mais emblemático de redução das suas competências foi ex

parte McCardle (1869),21

no qual se discutiu a constitucionali-

dade de lei que retirava da Corte a competência para julgar

recursos em decisões proferidas em habeas corpus por tribu-

nais inferiores. O objetivo da lei era privar a Suprema Corte da

análise da validade das normas de reconstrução do Sul aprova-

das após o fim da Guerra Civil, e, especificamente, retirar o

habeas corpus impetrado por William McCardle da pauta da

Suprema Corte, pois, embora o julgamento do caso já estivesse

em fase adiantada, temia-se que o Tribunal declarasse a incons-

titucionalidade dos atos de reconstrução dos EUA.

Caso a Suprema Corte invalidasse a lei que a privou da

referida competência havia enorme risco de entrar em rota de

colisão com o Congresso, pois não apenas o caso Dred Scott

havia contribuído para a deflagração da guerra civil norte-

americana, como no Congresso tramitavam propostas de ata-

19 Ver FISHER, Louis. Constitutional dialogues – interpretation as a political pro-

cess. Op. cit., p. 215. 20 Veja-se o seguinte trecho do dispositivo citado: “The Supreme Court shall have

appellate jurisdiction, both as to law and fact, with such exceptions, and under such

regulations as the Congress shall make” (grifei). 21 73 US (6 Wall), 250, 254 (1866).

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ques institucionais à Suprema Corte.22

Em decisão unânime, a

Suprema Corte declarou a norma constitucional, demonstrando

forte deferência ao poder de o Congresso regulamentar e criar

exceções a competências recursais da Suprema Corte.

2.2 BRASIL

Embora se costume citar no Brasil o Court Packing

Plan de Franklin Roosevelt como o exemplo clássico de ataque

institucional à Suprema Corte, o constitucionalismo brasileiro

é repleto de exemplos de ataques institucionais ao Supremo

Tribunal Federal. Alguns inclusive assumiram uma forma, por

assim dizer, pitoresca.

Só no governo Floriano Peixoto (1891 a 1894) houve

pelo menos quatro casos relevantes. Cite-se, inicialmente, a

ameaça de descumprimento e mesmo de prisão formulado pelo

Presidente em face dos ministros do STF, caso eles deferissem

habeas corpus em favor dos indivíduos que participaram de

protestos pelo fato de Floriano Peixoto ter assumido a presi-

dência com a renúncia de Deodoro da Fonseca, ao invés de

convocar novas eleições.23

Também se destacou no período o caso do Vapor Júpi-

ter. Por ocasião da Revolução Federalista no Rio Grande do

Sul, o almirante Vandelkolk armou a navio mercante Júpiter,

tendo ocorrido confronto com as tropas governistas na Baía do 22 Com efeito, já havia sido aprovada pela House of Representatives proposta de

aumentar o quorum para a Suprema Corte declarar lei inconstitucional (de maioria

absoluta para dois terços), e parlamentares mais radicais aspiravam extinguir a Su-

prema Corte. FISHER, Louis. Constitutional dialogues – interpretation as a politi-

cal process. Op. cit., p. 219. 23 Na ocasião Floriano Peixoto teria declarado “se os juízes do Tribunal concederem

o habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus

que, por sua vez, necessitarão”. Acuado pela pressão do Presidente da República, o

Tribunal denegou a ordem, sob o argumento de que não lhe caberia a apreciação do

pedido até que o Legislativo se pronunciasse sobre o estado de sítio em vigor. V.

COSTA, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania.

São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 30.

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Rio Grande. Presos o almirante e a sua tripulação, o STF defe-

riu parcialmente o habeas corpus impetrado, fixando a compe-

tência da Justiça Federal, e não da Justiça Militar, para julgar a

causa, tendo em vista os militares envolvidos já terem passado

à inatividade. Contudo, o Ministro da Guerra fez publicar no

Diário Oficial ofício, no qual assentou suposto equívoco jurídi-

co na decisão, pois a reforma não retiraria a condição de mili-

tar, e, consequentemente, a competência da Justiça Militar.

Por sua vez, diante do deferimento pelo STF de salvo-

conduto em favor de estrangeiros envolvidos na Revolta da

Armada para impedir que eles fossem expulsos do Brasil, o

governo Floriano Peixoto usou expediente ardiloso: expedição

de Decreto de expulsão com data retroativa. Por fim, destaque-

se a o não preenchimento por longo espaço de tempo das ca-

deiras vagas no STF, o que dificultou bastante o seu funciona-

mento, e posteriormente a indicação pelo Presidente de um

médico e de dois generais para os cargos vagos.24

Há também no Brasil exemplos marcantes de redução

das competências do STF. Caso expressivo ocorreu quando da

extinção da doutrina brasileira do habeas corpus pela Reforma

Constitucional de 1926. Assim, o Tribunal foi privado de um

remédio processual célere e eficaz para a tutela de direitos in-

dividuais, que não a liberdade individual, violados por ato ile-

gal ou abusivo de autoridade.25

Outra hipótese relevante se deu

com o advento da Constituição de 1937, que tornou judicial-

mente insindicáveis as questões de natureza política.

Quanto à alteração do número de ministros, à cassação

das suas investiduras e à suspensão das garantias da magistra-

tura, são exemplos emblemáticos os atos do Governo Provisó-

rio após a Revolução de 1930, que reduziram de 15 para 11 o

24 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a

quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Op. Cit., p. 96/99. 25 Sobre a doutrina brasileira do habeas corpus, conferir RODRIGUES, Lega Boe-

chat. A história do Supremo Tribunal Federal. Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização

brasileira, 1991.

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número de ministros do STF e aposentaram compulsoriamente

seis ministros; o Ato-Institucional n. 02 (27/10/1965), que au-

mentou o número de ministros do STF de 11 para 16 (em vagas

depois preenchidas por ministros ligados à UDN) e suspendeu

as garantias dos magistrados. Por fim, cite-se a previsão na

Carta de 1937 acerca da possibilidade de o Parlamento negar

aplicação a decisões do STF, que, diante do fechamento do

Legislativo durante o Estado Novo, foi usada pelo Presidente

Getúlio Vargas por meio de decretos-lei.26

2.3 ATAQUES INSTITUCIONAIS E ESTADO DE DIREITO

Os ataques institucionais à Suprema Corte são clara-

mente prejudiciais à implantação de um Estado de Direito.

Com efeito, enfraquecem a independência judicial, debilitando

a possibilidade de os juízes aplicarem imparcialmente o Direi-

to. O seu reiterado emprego com a finalidade de reversão da

jurisprudência da Suprema Corte implica colonização do direi-

to pela política, aniquilando a sua pretensão de impor limites

jurídicos ao poder político.

O vínculo entre independência judicial e Estado de Di-

reito é singularmente ilustrado por uma história apócrifa atribu-

ída a Frederico, o Grande: incomodado com o barulho inces-

sante de um moinho de vento localizado em um milharal vizi-

nho à sua residência de verão (Palácio de Sanssouci, em Pots-

dam), o rei da antiga Prússia formulou uma proposta de compra

do terreno, e o seu proprietário prontamente a recusou. Irresig-

nado, Frederico teria lhe dito: Você não sabe que posso usar os

meus poderes para tomar o seu milharal sem lhe pagar nada?

Ao que o proprietário retrucou: Com todo respeito, Vossa Ma-

jestade poderia fazê-lo, se não houvesse juízes em Berlim.27

26 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a

quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Op. Cit., p. 102/115. 27 VANBERG, Georg. Establishing and maintaining judicial independence. In:

WHITTINGTON, Keith, KELEMEN, Daniel, CALDEIRA, Gregory. The Oxford

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A noção de que Cortes devem ter a sua independência

garantida para controlar abusos dos governos, especialmente

quando resvalarem sobre os direitos humanos, ocupa papel

central no pensamento constitucional ocidental contemporâ-

neo.28

Portanto, as mencionadas visões mais radicais do cha-

mado “constitucionalismo popular” devem ser recusadas.

Mesmo nos Estados Unidos, onde o apoio popular confere à

Supreme Court uma aura de santidade que lhe protegeu de ata-

ques institucionais quando a sua jurisprudência se desviou ra-

dicalmente da visão constitucional adotada por ampla maioria

do povo (como na Lochner Era), tal proposta sofre duras críti-

cas, sobretudo por aniquilar o potencial de Cortes independen-

tes protegerem direitos contra arbitrariedades estatais.29

Com muito mais razão, uma defesa normativa do em-

prego desses instrumentos para viabilizar um “mal pensado

constitucionalismo popular” no Brasil é impertinente. Não se

deve esquecer que os mais diversos ataques institucionais ao

Supremo Tribunal Federal foram usados até 1988 para lhe pri-

var do exercício da sua competência constitucional de controlar

imparcialmente a validade de leis e atos administrativos. A

recente retirada do jogo político desses mecanismos deve ser

comemorada como uma evolução da jovem democracia brasi-

leira, como um passo importante na consolidação da indepen-

dência judicial e do Estado de Direito no Brasil.

Todavia, a constatação histórica do emprego dos ata-

ques institucionais quando a Suprema Corte se afastou bastante

de perspectiva amplamente compartilhada pelos poderes políti-

Handbook of law and politics. New York: University Press, p. 99. 28 CAPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no

direito comparado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. 29 CHEMERINSKY, Erwin. In defense of judicial review: the perils of popular

constitutionalism. Disponível em

http://scholarship.law.duke.edu/faculty_scholarship/1398/. Acesso em 05.02.2014.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1455

cos e pelo próprio povo,30

e o seu sucesso em alterar a juris-

prudência da Corte, revela a importância da experiência norte-

americana sobre a questão.

A propósito, Barry Friedman considera que a tentativa

frustrada de Franklin Roosevelt de aprovar o Court Packing

Plan marcou profundamente a dinâmica das relações entre a

Suprema Corte e os poderes políticos na tarefa de interpretação

da Constituição. Do episódio teria resultado um acordo tácito

entre os “poderes” que confere ao Judiciário um poder político

relevante, desde que ele não se afaste demais da vontade majo-

ritária em assuntos politicamente sensíveis.31

Entretanto, a defesa no plano prescritivo de que os ata-

ques institucionais à Corte violam a Constituição (especialmen-

te o Estado de Direito, a separação dos poderes e a indepen-

dência judicial) não é incompatível com o reconhecimento no

plano descritivo de que, se a Suprema Corte interpretar princí-

pios constitucionais controvertidos de forma radicalmente des-

viante de visão amplamente majoritária em questões de grande

relevo, o povo e os seus representantes acharão mecanismos

para evitar ou para reverter as respectivas decisões judiciais.

Ademais, se os poderes políticos resolverem promover ataques

institucionais à Suprema Corte, e tiverem amplo respaldo po-

pular, não se pode ser ingênuo em desconhecer que pouco po-

derá o Tribunal fazer a respeito.32

3. O PODER DO CONGRESSO NACIONAL SOBRE O OR-

ÇAMENTO E O SALÁRIO DO JUDICIÁRIO

30 WHITTINGTON, Keith. Legislative sanctions and the strategic environment of

judicial review. Disponível em

http://www.princeton.edu/~kewhitt/strategic_context.pdf, p. 465/473.Acesso em

05.02.2014. 31 FRIEDMAN, Barry. The will of the people: how public opinion has influenced the

Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. New York: Farrar,

Strauss and Giroux, 2009, p. 4. A influência da opinião pública sobre o controle de

constitucionalidade será analisada posteriormente. 32 Ibid.

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1456 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

3.1 ESTADOS UNIDOS

Tradicionalmente, as Constituições conferem ao Parla-

mento o poder de aprovar o orçamento dos Tribunais e os salá-

rios dos juízes. É natural que tal competência venha sendo um

dos pontos de maior conflito entre o Judiciário e o Legislativo,

notadamente porque os juízes fazem parte de um poder inde-

pendente, e, portando, costumam se ressentir da interferência

do Congresso Nacional em suas finanças. Por outro lado, o

Legislativo tende a ver o Judiciário como mais um “órgão pú-

blico” que busca maximizar o seu orçamento, de modo que o

antagonismo entre as perspectivas institucionais fomenta o

conflito.33

Cuidando-se de instrumentos inerentes aos mecanismos

de freios e contrapesos, o Congresso pode usar tais poderes

para mandar recados ao Judiciário.34

Exemplo pitoresco se deu

com a insatisfação do Congresso Nacional dos Estados Unidos

com a decisão proferida em Reynolds v. Sims. Tal decisão, ao

afirmar o princípio do one man one vote, redesenhou distritos

eleitorais, prejudicando parlamentares e partidos que se benefi-

ciavam do sistema antigo. Em resposta, o Senado emendou

proposição legislativa aprovada na Câmara que dava aumento

de $ 7.500 (sete mil e quinhentos dólares) a todos os juízes

federais, com a finalidade de aumentar os vencimentos dos

juízes da Suprema Corte em apenas $ 2.500 (dois mil e qui-

nhentos dólares). O Senador John Tower explicou a emenda

parlamentar da seguinte forma: Se a Suprema Corte parece

entender que pode legislar e emendar a Constituição, talvez os

33 MILLER, Mark C. The view of the Courts from the hill: a neoinstitutional per-

spective. In: MILLER, Mark C. & BARNES, Jeb (Ed.). Making policy, making law:

an interbranch perspective. Washington, DC: Georgetown University Press, 2004,

p. 64. 34 BARNES, Jeb. Overruled? Legislative overrides, pluralism and contemporary

Court-Congress relations. Stanford: Stanford University Press, p. 33.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1457

seus juízes devam ganhar o mesmo que os parlamentares.35

3.2 BRASIL

A Carta de 1988 seguiu tendência verificada em diver-

sos ordenamentos jurídicos, no sentido de atribuir ao Parla-

mento o poder de aprovar o orçamento dos Tribunais e os sa-

lários dos juízes. Ainda que a Constituição tenha dado aos Tri-

bunais o poder de elaborar as suas propostas orçamentárias

dentro dos limites estipulados conjuntamente com os demais

poderes na lei de diretrizes orçamentárias (art. 99, § 1°, da

CF/1988 – autonomia financeira), o Congresso Nacional não

está vinculado à proposta orçamentária enviada pelo Judiciário,

podendo aprovar, na lei orçamentária anual, orçamento menor

(art. 165 da CF/1988).

No mesmo sentido, o valor dos salários dos juízes é de-

finido por lei de iniciativa privativa dos Tribunais, de maneira

que, embora somente o Judiciário possa fixar o valor contido

na proposta original, o Legislativo não está obrigado a aprová-

lo. Pode, assim, fixar valor menor ou simplesmente rejeitar a

proposta de aumento (art. 96, inc. II, b, da CF/1988), desde

que, evidentemente, não viole a garantia constitucional da irre-

dutibilidade de subsídios (art. 95, inc. III, da CF/1988).36

No Brasil, os conflitos entre Parlamento e Suprema

Corte na definição do orçamento dos Tribunais e dos salários

dos juízes são frequentes. Em caso emblemático, o Conselho

Nacional de Justiça, após divulgar um estudo no qual demons-

trou que 90% (noventa por cento) dos orçamentos dos Tribu-

nais de Justiça estaduais foram absorvidos pelas respectivas

35 Ibid. 36 Note-se que a jurisprudência do STF afirma que a garantia da irredutibilidade de

vencimentos ou de subsídio somente protege o agente público contra a redução do

valor nominal da sua remuneração, não lhe garantindo direito subjetivo à reposição

de perdas inflacionárias (preservação do valor real). Ver, por exemplo, STF, RE

375936 AgR, julgamento: 23/05/2006.

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1458 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

folhas de pessoal, criou o Grupo de Apoio aos Tribunais, cuja

função é auxiliar as presidências dos Tribunais de Justiça a

negociarem com o Legislativo e o Executivo estaduais para

garantir o adequado funcionamento do Judiciário.37

Por outro

lado, houve grande insatisfação dos juízes diante da aprovação

do Projeto de Decreto Legislativo n. 3.036/2010, que igualou

os subsídios dos Parlamentares aos dos Ministros do STF, sem

que tivesse sido concomitantemente apreciada a proposta de

aumentos dos subsídios dos juízes.

3.3 CONCLUSÃO

No plano descritivo, parece inegável que o uso pelo

Congresso Nacional do seu poder de decidir sobre o orçamento

dos Tribunais e sobre os salários de juízes pode dar azo a bar-

ganhas e a retaliações ao Judiciário – como nos exemplos rela-

tados –, inclusive pela inexistência de instrumentos jurídicos

que lhe vinculem aos valores sugeridos pelos Tribunais. Toda-

via, em uma análise prescritiva, é evidente que tais instrumen-

tos são inadequados para expressar a insatisfação do povo ou

de seus representantes com decisões judiciais específicas. A

uma, porque consistem em retaliações que não contribuem em

nada para a realização do ideal constitucional de independência

harmônica entre os poderes (art. 2° da CF/1988). A duas, por-

que não são instrumentos efetivos para reverter a decisão inde-

sejada nem o curso da jurisprudência dos Tribunais.38

A garantia de condições adequadas de trabalho e de

vencimentos dignos e compatíveis com os elevados misteres

dos juízes consiste em pressuposto necessário para a indepen-

37 Ver a notícia CNJ socorre tribunais para evitar cortes no orçamento do Judiciário.

Disponível em:

<http://www.portalcorreio.com.br/noticias/matLer.asp?newsId=158058>. Acesso

em 10/01/2011. 38 BARNES, Jeb. Overruled? Legislative overrides, pluralism and contemporary

Court-Congress relations, Op. cit., p. 33.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1459

dência judicial, que, por sua vez, é absolutamente essencial ao

Estado de Direito.

4. O PROCESSO DE NOMEAÇÃO E DE INVESTIDURA

DOS JUÍZES DA SUPREMA CORTE

4.1 ESTADOS UNIDOS

O processo de nomeação dos juízes consiste no mais vi-

sível e tradicional mecanismo de influência dos poderes políti-

cos na Suprema Corte.39

O seu desenho institucional é constru-

ído dentro de um continuum em cujos polos se encontram mo-

delos ideais de independência e de responsividade judicial (ac-

countability). No primeiro, busca-se insular ao máximo os juí-

zes da política com a finalidade de lhes permitir a aplicação

imparcial do direito. No segundo, são estabelecidos mecanis-

mos de conexão do juiz com a vontade popular para evitar que

ele se utilize da sua independência para decidir com base nas

suas preferências ideológicas.40

Sendo rara a adoção de mode-

los puros de seleção de membros de Supremas Cortes ou de

Cortes Constitucionais (concurso público ou cargos de livre-

nomeação e exoneração), a tendência natural é a realização de

um trade-off entre independência e responsividade judicial.

Os mecanismos que concedem a um só órgão o poder

de nomear os ministros (normalmente o Presidente, que tende a

atuar como líder da coalização parlamentar majoritária), e os

que sujeitam a sua indicação a um processo de confirmação

meramente formal a outro órgão, privilegiam a accountability à

independência judicial. Já mecanismos que exigem o efetivo

concurso de vontades de dois ou mais órgãos são mais propen-

sos à escolha de juízes moderados e à proteção de minorias, 39 Ibid. 40 YALOF, David A. Filling the bench. In: WHITTINGTON, Keith; KELEMEN, R.

Daniel e CALDEIRA, Gregory A. (org.). The Oxford handbook of law and politics.

New York: Oxford University Press, p. 471.

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1460 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

havendo, porém, o risco de impasses no processo de escolha.41

Ademais, a natureza da investidura dos juízes da Su-

prema Corte exerce influência importante no equilíbrio entre

independência e responsividade judicial. Em uma ordem de-

crescente de independência judicial se colocam: (i) vitalicieda-

de (que pode ser potencializada pela ausência de aposentadoria

compulsória), (ii) mandatos por prazos certos e não renováveis,

e (iii) mandatos renováveis.42

Em artigo clássico publicado em 1957, Robert Dahl an-

tecipou algumas das principais conclusões obtidas pela análise

contemporânea acerca da posição ocupada pela Suprema Corte

em um sistema político.43

Dahl percebeu que a Suprema Corte

não consiste em mera instituição legal, mas em instituição polí-

tica, na medida em que decide questões relevantes politicamen-

te. Desta forma, a vinculação da legitimidade da sua atuação a

critérios exclusivamente jurídicos (i. e., critérios de interpreta-

ção constitucional, sobre cujo respeito há forte desacordo in-

clusive no seio da Suprema Corte) consiste em “ficção” que

cria sérios problemas de legitimidade democrática.44

Todavia, o problema da “dificuldade contramajoritária”

da Suprema Corte não considera que um Presidente nomeia

novo ministro da Suprema Corte em média a cada dois anos.

Assim, os dois ministros que o Presidente nomeará em seu

mandato provavelmente irão reverter eventual jurisprudência

que repute equivocada em assuntos especialmente controverti-

dos, nos quais as votações tendem a ser muito parelhas. Se não

lograr fazê-lo em um mandato, será praticamente inevitável a

mudança da jurisprudência em um segundo mandato.45

41 GINSBURG, Tom. Judicial review in new democracies – constitutional Courts in

asian cases. USA: Cambridge University Press, 2003, p. 42/46. 42 Ibid., p 46/47. 43 DAHL, Robert A. Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a

national policy-maker. Journal of Public Law, 1957, n. 6, p. 279/295. 44 Ibid., p. 280. 45 Dahl destaca que os candidatos a Suprema Corte são homens públicos, que ex-

pressam as suas opiniões sobre questões politicamente relevantes e controvertidas, e,

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1461

Desta forma, o processo de nomeação pelo Presidente e

de confirmação pelo Senado conferiria uma sintonia entre as

preferências políticas da Suprema Corte e dos poderes políti-

cos, não sendo factível que o Tribunal se mantenha, por longo

período, contrário a maiorias legislativas. Portanto, a Suprema

Corte dificilmente bloqueará uma maioria legislativa persisten-

te e determinada, somente terá algum sucesso em se opor a

maiorias fracas ou mortas.46

Assim, o processo de nomeação

conferiria accountability à Suprema Corte e reduziria a drama-

ticidade do caráter contramajoritário do controle de constituci-

onalidade.47

Com efeito, ao longo dos seus mais de dois séculos de

funcionamento, o Senado norte-americano não confirmou

aproximadamente 20% das indicações para a Suprema Corte

(25 no total). A maioria das rejeições se deu antes de 1900,

tendo assumido um padrão consensual entre as décadas de

1930 e 1960, quando se restabeleceram os conflitos entre o

Presidente da República e o Senado por ocasião da rejeição da

ascensão de Abe Fortes, de Associate Justice para Chief Justi-

ce, em 1968, e das recusas das indicações de Clement F.

Haynsworth Jr. e G. Harrold Carswell para o cargo de Associa-

te Justice em 1969 e 1971, respectivamente.48

Porém, o caso de

maior repercussão foi a rejeição do juiz Robert H. Bork pelo

Senado em 1986, que fora nomeado por Richard Nixon após se

naturalmente, o Presidente da República optará por escolher alguém que seja, con-

comitantemente, alinhado à sua visão constitucional e palatável ao Senado. Ibid., p.

285. 46 Ibid., p. 286. Dahl considera que a crise que levou ao envio do Court Packing

Plan ao Congresso foi excepcional, pois Franklin Roosevelt teria tido terrível “má

sorte” ao somente fazer a sua primeira nomeação quatro anos após a sua posse. 47 O argumento de que há significativo alinhamento entre Suprema Corte e opinião

pública foi retomado por autores contemporâneos, que serão abordados mais adian-

te. 48 FISHER, Louis. Constitutional dialogues – interpretation as a political process.

Op. cit., p. 138/139. Fortes posteriormente renunciou ao cargo de Associate Justice,

quando respondia a processo de impeachment por impropriedades pessoais e finan-

ceiras.

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1462 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

notabilizar pela sua atuação conservadora nas searas acadêmica

e profissional.49

Em síntese, há nos Estados Unidos, após a indicação do

Presidente, um processo de deliberação no Senado altamente

politizado, em que as opiniões dos candidatos a Suprema Corte

sobre questões politicamente controvertidas são analisadas e

discutidas pelos Senadores.

4.2 BRASIL

A influência do modelo norte-americano de nomeação e

investidura dos juízes da Suprema Corte no Brasil é evidente,

na medida em que por aqui também se optou por conferir a

prerrogativa da nomeação dos juízes da Suprema Corte ao Pre-

sidente da República, por sujeitar a sua indicação à confirma-

ção do Senado, e pela vitaliciedade da sua investidura ao invés

de mandatos fixos. A única diferença normativa relevante é a

previsão de aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade no

Brasil, limitação inexistente nos EUA.

Todavia, a prática institucional tem sido bastante distin-

ta, especialmente no que diz respeito à deliberação no Senado.

Desde a nossa primeira Constituição republicana (1891) o pro-

cesso de confirmação pelo Senado das indicações do Presidente

à Suprema Corte não tem proporcionado intensos debates como

49 A ênfase dada por Richard Nixon às preferências políticas dos candidatos, ao

invés das suas credenciais jurídicas, já tornara evidente o alto grau de politização das

nomeações para a Suprema Corte. Entretanto, a reação conservadora ao ativismo

liberal da Warren Court e o fato de Ronald Reagan já ter nomeado juristas conserva-

dores para a Suprema Corte (Antonin Scalia e a ascensão de William Rehnquist para

Chief Justice, ambas em 1986) aumentaram a dimensão político-ideológica da no-

meação de Bork, que viria a substituir o moderado Powell, e assim poderia instituir

sólida maioria conservadora na Corte. O estilo provocativo das críticas de Bork a

decisões liberais da Suprema Corte em matéria de direitos civis lhe rendeu a oposi-

ção de várias organizações de proteção de minorias, e a estratégia da Casa Branca de

transformá-lo em um juiz moderado desmobilizou os setores mais conservadores do

Partido Republicano da sua campanha. Tais fatores, somados ao controle dos Demo-

cratas sobre o Senado em 1986, selaram a sorte de Bork.Ibid, p. 139/141.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1463

se dá nos EUA. Curiosamente, a significativa expansão do po-

der político do STF atualmente em curso não foi acompanhada

de proporcional aumento da atenção dispensada pelos poderes

políticos e pelos partidos à importância de uma nomeação para

a Suprema Corte, ao contrário do que ocorre nos Estados Uni-

dos, onde se trata de tema de enorme destaque na mídia e nos

debates políticos.50

4.3 PROCESSOS DE NOMEAÇÃO E INVESTIDURA, RE-

ALINHAMENTO JURISPRUDENCIAL E ACCOUNTABI-

LITY

Neal Katyal considera que a nomeação pelo Presidente

e a confirmação pelo Senado conferem ao processo de nomea-

ção dos juízes da Suprema Corte americana forte caráter deli-

berativo. A propósito, considera que a conexão eleitoral dá ao

Senado vantagem comparativa – quando comparado à Suprema

Corte – na identificação de mudanças na visão do povo sobre

questões constitucionais controvertidas, além de conferir às

suas interpretações constitucionais maior dose de accountabi-

lity.

Assim, o processo de confirmação daria “voz ao povo”

no processo de interpretação constitucional, pois os debates

travados no Senado influenciariam não só o candidato que vie-

sse a ser aprovado, mas também os demais membros da Su-

prema Corte e os futuros candidatos ao cargo. À luz dessas

características, reputa que o processo de confirmação de candi-

datos a Suprema Corte no Senado contribui bastante para a

construção de um modelo dialógico entre Judiciário e Legisla-

tivo na interpretação constitucional, apresentando inclusive

vantagens em relação a instrumentos alternativos.51

50 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a

quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Op. Cit., p. 232/237. 51 KATYAL, Neal. Legislative Constitutional interpretation. Disponível em:

<http://www.jstor.org/pss/1373024>. Acesso em: 10/03/2010. Dentre as vantagens

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1464 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

A visão de Katyal deve servir de estímulo para que o

processo de confirmação no Senado seja desenhado de forma a

estimular o seu potencial deliberativo. Não há dúvidas de que

um amplo e transparente debate no Senado a respeito das vi-

sões do candidato a Suprema Corte sobre questões constitucio-

nais controvertidas, com a participação da sociedade civil e de

diversos grupos de interesse, contribuiria para que visões popu-

lares sobre a interpretação da Constituição fossem veiculadas e

influenciassem o atual candidato, os demais membros da Su-

prema Corte e futuros candidatos.

Todavia, mesmo nos Estados Unidos, onde há intensa

sabatina no Senado sobre os candidatos, falar-se em uma fina

sintonia entre a sua jurisprudência e a vontade popular parece

ilusório. Isto porque a maioria das questões decididas pela Su-

prema Corte não vem à baila no processo de nomeação e de

confirmação dos candidatos à Suprema Corte. Ainda que as

questões constitucionais fossem discutidas no Senado, como as

nomeações são raras, o momento em que elas precisarão ser

decididas dificilmente coincidirá com a sabatina do candidato.

Além disso, o impacto de uma nomeação sobre a mudança da

jurisprudência da Suprema Corte é relativo, pois depende não

só da fidelidade de quem entra, mas também do perfil ideológi-

co de quem sai (p. ex. a substituição de juiz conservador por

outro juiz conservador terá reduzida repercussão). Por fim, não

se pode desconsiderar a dificuldade prática de superar jurispru-

dência há muito consolidada.52

Em suma, é verdade que o processo de nomeação dos

comparativas que atribui ao processo de confirmação de candidatos da Suprema

Corte no Senado em relação à superação de decisões constitucionais pelo Legislati-

vo, Katyal arrola as seguintes: “(i) o maior intervalo de tempo entre a decisão da

Suprema Corte e o processo de confirmação no Senado permite deliberação consti-

tucional mais sóbria e tendente ao consenso; (ii) abordagem de um espectro mais

amplo de questões constitucionais controvertidas; (iii) maior saliência política e

abertura a grupos de interesse.” 52 BARNES, Jeb. Overruled? Legislative overrides, pluralism and contemporary

Court-Congress relations. Op. cit., p. 33/34.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1465

juízes pelo Presidente e de confirmação pelo Senado contribui

para um realinhamento da jurisprudência da Suprema Corte a

aspectos centrais da visão constitucional da coalização gover-

namental dominante e da opinião pública. Todavia, ao contrá-

rio do que acreditava Dahl, não se sabe exatamente o quanto tal

processo contribui para tal desiderato,53

e certamente a sua in-

fluência sobre boa parte das questões decididas pela Suprema

Corte é mínima ou mesmo nenhuma.

Tais conclusões são aplicáveis ao modelo brasileiro,

com um importante adendo. A reduzida participação do Senado

brasileiro torna o processo de nomeação de juízes para o Su-

premo Tribunal Federal uma prerrogativa fundamentalmente

do Presidente da República. Se tal circunstância não infirma a

conclusão acerca do potencial incerto e limitado de o processo

de nomeação influenciar o curso da jurisprudência do Tribunal,

decerto reduz o seu caráter deliberativo. Isto porque minimiza a

possibilidade de o processo de nomeação constituir instrumen-

to capaz de conferir dose sensível de accountability à jurispru-

dência do Tribunal, diante do seu limitado potencial de propor-

cionar um amplo debate público em relação a questões consti-

tucionais controvertidas. Há, claramente, uma primazia da von-

tade unilateral do Presidente da República. Entretanto, adota-se

no Brasil um sistema de investidura que garante a vitaliciedade

no cargo, o que reforça a independência judicial, pois a perma-

nência do juiz no cargo até os setenta anos só depende da sua

vontade e saúde.

Em síntese, o poder de nomeação de juízes do STF pelo

Presidente da República influencia a evolução da jurisprudên-

cia constitucional do Supremo especialmente em aspectos de

grande saliência política e caros ao Presidente e à sua coalizão

parlamentar. Entretanto, em razão do reduzido número de ques-

tões constitucionais discutidas durante a sabatina no Senado, da

53 FRIEDMAN, Barry. Mediated popular constitutionalism. Michigan Law Review,

August 2003, v. 101.

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falta de concomitância entre os momentos em que o assunto

surge no STF e em que há vaga no Tribunal, do perfil das saba-

tinas no Senado, e da vitaliciedade do juiz, pode-se concluir

que a influência do processo de nomeação para a reversão de

um número significativo de linhas jurisprudenciais, para além

das hipóteses antes mencionadas, é bastante reduzida.

5. OS MECANISMOS DE SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DE

DECISÕES DA SUPREMA CORTE

5.1 ESTADOS UNIDOS

A dinâmica das respostas legislativas a decisões da Su-

prema Corte americana é marcada pela enorme dificuldade do

processo de reforma. Não é de causar espécie, portanto, que as

respostas legislativas veiculadas por emendas constitucionais

sejam extremamente raras.

Com efeito, somente em quatro oportunidades o Con-

gresso norte-americano alterou formalmente a Constituição

com vistas a superar decisão constitucional da Suprema Cor-

te.54

A décima primeira emenda superou o precedente

Chisholm v. Georgia(1793) para afirmar a competência dos

tribunais federais para julgar demandas contra os Estados-

membros, o que havia sido negado pela Suprema Corte. A dé-

cima terceira emenda superou o infeliz entendimento fixado no

caso Dred Scott v. Sandford, no qual a Suprema Corte negou

cidadania norte-americana, e, consequentemente, as garantias

constitucionais, aos negros, para extinguir textualmente a es-

cravidão após a vitória dos Estados do Norte na Guerra Civil.

A décima sexta emenda foi aprovada para superar o

precedente fixado em Pollock v. Farmers Loan & Trust Co.

(1895), no qual a Suprema Corte declarou a inconstitucionali-

54 FISHER, Louis. Constitutional dialogues – interpretation as a political process.

Oxford: Princeton University Press, 1988, p. 201/206.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1467

dade de lei que tributava uniformemente o imposto de renda,

sob o argumento de que se tratava de imposto indireto, que

deveria seguir a regra da proporcionalidade. Por fim, a vigési-

ma sexta emenda superou a decisão da Suprema Corte no caso

Oregon v. Mitchell, no qual a Suprema Corte declarou a in-

constitucionalidade de lei federal que obrigava os Estados a

reduzir a idade mínima para o voto para dezoito anos, por con-

siderá-la aplicável apenas às eleições federais.

Por outro lado, a validade de lei idêntica a lei anterior-

mente declarada inconstitucional pela Suprema Corte é objeto

de intenso debate nos Estados Unidos. No caso City of Boerne

v. Flores a Suprema Corte afirmou que lei federal destinada a

reverter a sua interpretação constitucional violaria a suprema-

cia da Constituição e o Estado de Direito, competindo-lhe, por-

tanto, a última palavra na atribuição de sentido à Constituição.

Com efeito, entendeu-se que o Religious Freedom Res-

toration Act (RFRA), ao determinar que leis restritivas à liber-

dade religiosa sujeitar-se-iam a parâmetro de controle de cons-

titucionalidade mais rigoroso (strict scrutiny), representaria

exercício abusivo de poder pelo Parlamento. Isto porque, se o

Parlamento pudesse não só regulamentar os direitos previstos

na Constituição, mas também definir o seu sentido em oposição

ao entendimento da Suprema Corte, as leis sobrepor-se-iam às

normas constitucionais e o Legislativo ostentaria um poder

ilimitado.

Entretanto, em outras oportunidades a Suprema Corte

admitiu a constitucionalidade de lei que, no essencial, restabe-

lecia o teor de lei anteriormente declarada inconstitucional. As

tentativas do Congresso Nacional de regular o trabalho infantil

na primeira metade do século passado constituem exemplo

interessante. A primeira norma destinada a regular o trabalho

de menores de idade, aprovada pelo Congresso em 1916 com

base no seu commerce power, foi declarada inconstitucional

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1468 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

pela Suprema Corte em 1918.55

O Congresso voltou a tentar

regular a matéria após um ano, com base no seu taxing power,

e novamente a Suprema Corte se pronunciou acerca da incons-

titucionalidade da respectiva norma.56

O Congresso aprovou,

então, emenda constitucional com vistas a reverter a orientação

da Suprema Corte, todavia ela não logrou ser ratificada pelos

necessários 36 Estados. Em 1938 o Congresso voltou ao tema,

optando por se valer novamente do commerce power para inse-

rir dispositivo sobre trabalho infantil no Fair Labor Standards

Act. Somente na quarta tentativa, a Suprema Corte, em decisão

unânime, admitiu a possibilidade de o Congresso Nacional

regular o trabalho infantil por lei ordinária.57

Como nos Estados Unidos o processo de alteração for-

mal da Constituição é dificílimo, a afirmação de que decisões

de inconstitucionalidade da Suprema Corte somente podem ser

revertidas por emenda constitucional equivale, na prática, à

atribuição da última palavra sobre o sentido da Constituição à

Suprema Corte. Entretanto, conforme será desenvolvido na

seção seguinte, os poderes políticos e a opinião pública acharão

mecanismos institucionais de comunicar as suas preferências à

Corte. Se não há viabilidade prática de superação legislativa

das decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos, especial-

mente quando existir forte oposição popular à decisão judicial,

a tendência será o uso dos instrumentos anteriormente tratados:

ataques institucionais à Corte, retaliações ao Judiciário sob a

forma de “congelamento” dos vencimentos dos magistrados ou

de cortes no orçamento do Judiciário, ou mesmo aprovação de

leis ordinárias contrárias a decisão judicial.

5.2 BRASIL

55 Hammer v. Dagenhart 247 US 251 (1918). 56 Bailey v. Drexel Furniture Co., 259 US 20 (1922). 57 United States v. Darby, 313 US 100 (1941). Ver FISHER, Louis. Constitutional

dialogues – interpretation as a political process. Op. cit., p. 251.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1469

A observação da dinâmica das relações institucionais

sobre a interpretação da Constituição brasileira revela que o

método típico de superação de decisão de inconstitucionalidade

do Supremo Tribunal Federal pelo Congresso Nacional é a

aprovação de emenda constitucional.

Vejam-se os principais casos: no RE 153.771,58

o STF

afirmou que o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) tem

natureza real, de maneira que a Constituição somente permiti-

ria a fixação de alíquotas progressivas para o atendimento da

finalidade extrafiscal de adequação do uso da propriedade ur-

bana à sua função social (art. 182 da CF/1988). Todavia, a

Emenda Constitucional n. 29/2000 alterou a redação do art.

156, § 1°, da CF/1988 para permitir que o IPTU seja progressi-

vo em razão do valor venal do imóvel, precisamente a progres-

sividade para fins fiscais que as leis municipais anteriormente

declaradas inconstitucionais estabeleciam.

Note-se, por outro lado, que o STF julgou reiteradamen-

te inconstitucionais leis municipais que instituíram as chama-

das “taxas de iluminação pública”, visto que tais espécies tribu-

tárias somente poderiam remunerar serviços públicos específi-

cos e divisíveis, e a iluminação pública consiste em serviço

indivisível. Contudo, o Congresso Nacional aprovou a Emenda

Constitucional n. 39/2002 que instituiu a “contribuição para o

custeio da iluminação pública”.

Cite-se também a Emenda Constitucional n. 33/2001,

que superou o entendimento do STF no sentido da não incidên-

cia do ICMS sobre a importação de bens por pessoas físicas,

fixado em virtude de o art. 155, inc. IX, § 2°, a, da CF/1988

aludir à expressão circulação de mercadorias e estabelecimen-

to, circunstância que restringiria o rol de contribuintes do im-

posto àqueles que exercem atos de comércio com habitualida-

de.59

58 STF, RE 153.771, DJ, 05/09/1997. 59 RE 203.075, STF, DJ, 29/10/1999.

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1470 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

Ainda na seara tributária, cumpre mencionar o RE

166.772,60

no qual o STF afirmou que, tendo em vista a reda-

ção original do art. 195, inc. I, da CF/1988, fazer referência ao

termo “folha de salários” para fins da incidência de contribui-

ção previdenciária em face do empregador, tal norma deveria

ser interpretada no seu sentido técnico-jurídico, reservando-se a

incidência da exação aos trabalhadores com vínculo empregatí-

cio nos termos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). A

Emenda Constitucional n. 20/1998 alterou a redação do art.

195, inc. I, a, da CF/1988, para prever a incidência da contri-

buição previdenciária do empregador sobre a folha de salários

e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a

qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo

sem vínculo empregatício. Houve, portanto, clara e frontal su-

peração da interpretação constitucional do STF, pois a Consti-

tuição foi alterada para admitir precisamente o que fora vedado

por decisão da Suprema Corte: a incidência de contribuição

previdenciária do empregador em face de rendimentos de tra-

balho percebidos por indivíduos sem vínculo empregatício.61

A questão relativa à possibilidade de aprovação de leis

que revertam decisões constitucionais do STF tem ensejado

decisões aparentemente contraditórias em sua jurisprudência.

Com efeito, no caso do foro por prerrogativa de função, o STF

afirmou a necessária inconstitucionalidade de lei que pretende-

ra substituir a interpretação constitucional atual do STF, ainda

que o Congresso Nacional buscasse substituí-la pela exegese

contida em votos minoritários e adotada no passado pelo pró-

prio Supremo. A negativa da validade de leis que superassem

frontalmente decisões de inconstitucionalidade seguiu uma

lógica bem próxima à adotada pela Suprema Corte norte-

americana no caso City of Boerne: se o legislador ordinário 60 STF, DJ, 16/12/1994. 61 Uma lista mais abrangente de casos pode ser obtida em BRANDÃO, Rodrigo.

Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última pala-

vra sobre o sentido da Constituição?. Op. Cit., p. 289/300.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1471

puder interpretar diretamente a Constituição, com vistas a criar

novos direitos ou a reverter precedentes da Suprema Corte, a

lei se situará acima da Constituição, e o Congresso Nacional

disporá de poderes absolutos.62

Todavia, na ADI 3.772,63

a composição majoritária do

STF admitiu a constitucionalidade de lei que alterara interpre-

tação constitucional consolidada na sua súmula n. 726: Para

efeito de aposentadoria especial de professores, não se compu-

ta o tempo de serviço fora da sala de aula. Com efeito, o STF

há muito interpretava a expressão “funções de magistério”

(arts. 40, § 5º, e 201, § 8º da CF/1988) como atividades exclu-

sivamente docentes, excluídas quaisquer outras mesmo que

vinculadas ao ensino. Contudo, a Lei n. 11.301/2006 alterou o

art. 67 da Lei n. 9.394/1996, para conceder aposentadoria espe-

cial a professores que desempenhassem as funções de diretor

de escola e de coordenador e assessor pedagógico.

Por ocasião da impugnação da constitucionalidade da

norma citada (ADI 3.772) o STF alterou a sua interpretação

dos arts. 40, § 5º, e 201, § 8º, da CF/1988, como se vê do se-

guinte trecho do acórdão: A função de magistério não se cir-

cunscreve apenas ao trabalho em sala de aula, abrangendo

também a preparação de aula, a correção de provas, o aten-

dimento a pais e alunos, a coordenação de assessoramento

pedagógico e, ainda, a direção escolar. As funções de direção,

coordenação e assessoramento pedagógico integram a carrei-

ra do magistério, desde que exercidos em estabelecimentos de

ensino básico, por professores de carreira, excluídos os espe-

cialistas em educação, fazendo jus aqueles que as desempe-

nham ao regime especial de aposentadoria estabelecidos nos

arts. 40, § 5°, e 201, § 8°, da Constituição Federal.

Vê-se que o STF, ao invés de afirmar a inconstituciona- 62 Maiores detalhes sobre os casos citados podem ser obtidos em BRANDÃO, Ro-

drigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última

palavra sobre o sentido da Constituição?. Op. cit., 10/14. 63 STF, ADI 3.772, DJ, 26/03/2009.

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1472 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

lidade da lei apenas pelo fato de ela ter revertido a sua interpre-

tação constitucional (como o fez no caso do foro por prerroga-

tiva de função), aproveitou o ensejo da nova lei para reinterpre-

tar os arts. 40, § 5°, e 201, § 8°, da CF/1988, tendo concordado

parcialmente com o legislador. Com efeito, a Corte abandonou

a tese que restringia o alcance da expressão “funções de magis-

tério” a atividades estritamente docentes, para abranger as fun-

ções de direção, coordenação e assessoramento pedagógico

desempenhadas por professor.

5.3 CONCLUSÃO

Barry Friedman assinala que a forma como foi resolvi-

do o impasse entre a Suprema Corte e o Presidente Franklin

Roosevelt na Lochner Era marcaria profundamente o papel das

instituições políticas na interpretação constitucional nos Esta-

dos Unidos. Isto porque desde então existe um acordo tácito no

sentido de que os juízes têm amplos poderes nessa esfera, des-

de que não se afastem demais da opinião pública, sobretudo em

assuntos politicamente relevantes.64

Assim, mesmo que tais

mecanismos de ataque institucional à Corte não tenham sido

mais usados, a mera possibilidade do seu emprego tende a

manter a Suprema Corte não muito afastada da opinião pública.

Aliás, o fato de o Court Packing Plan não ter sido levado a

cabo, pois a mera ameaça de “empacotamento” da Corte já a

conduziu a adequar a sua jurisprudência à visão constitucional

do Presidente da República respaldada por reiteradas vitórias

eleitorais, parece confirmar que tais remédios amargos podem

ser eficazes mesmo com a mera possibilidade do seu uso.

Portanto, se as reações políticas são muito prováveis ca-

so o Judiciário se desviar demais da opinião pública, é funda-

64 FRIEDMAN, Barry. The will of the people: how public opinion has influenced the

Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. New York: Farrar,

Strauss and Giroux, 2009, p. 1/2.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1473

mental identificar o instrumento mais apto a conciliar as exi-

gências de governo limitado e de governo do povo, cuja tensão

está na base da cláusula do Estado Democrático de Direito.

Dentre todos os instrumentos analisados na presente seção, a

superação legislativa apresenta prima facie o melhor potencial.

Já se salientou os efeitos deletérios causados pelos ata-

ques institucionais e pelas retaliações ao Judiciário para a inde-

pendência judicial, a qual, por sua vez, consiste em garantia

institucional do Estado de Direito. Além de os mecanismos de

ataque institucional e de retaliações ao Judiciário serem lesivos

à independência judicial – e, portanto, não consistirem em ins-

trumentos compatíveis com o Estado de Direito –, eles são ine-

ficientes para a superação de decisões judiciais específicas,

pois atingem o Judiciário enquanto instituição.

A mesma ineficácia para a alteração de decisões espe-

cíficas acomete a nomeação e a sabatina de juízes da Suprema

Corte por autoridades políticas, pois, como tais processos não

abordam senão uma pequena parte das questões apreciadas pela

Suprema Corte, somente têm o potencial de interferir na juris-

prudência da Corte em questões centrais à coalização gover-

namental majoritária. Assim, sobretudo em países em que o

processo de nomeação tem reduzido potencial deliberativo,

dele não podem ser extraídas consequências normativas rele-

vantes.

A aprovação de norma idêntica à anteriormente decla-

rada inconstitucional, desde que produza efeitos apenas pros-

pectivos, tem claras vantagens sobre os demais mecanismos.

Com efeito, por se tratar de uma reação expressa à decisão ju-

dicial, para além de promover a sua reversão, todos terão a

oportunidade de conhecer a posição do Poder Legislativo, via-

bilizando que se estabeleça debate público sobre a respectiva

questão constitucional. Inclusive terá a Suprema Corte a possi-

bilidade de reexaminar a constitucionalidade do conteúdo re-

produzido pela “norma superadora”– se ela for impugnada ju-

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1474 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

dicialmente, o que é altamente provável que ocorra –, voltando

a declarar o respectivo conteúdo inconstitucional, caso não

reste convencida das novas razões trazidas pelo legislador.

Apesar das vantagens da “superação normativa” sobre

os demais mecanismos de reação política a decisões judiciais

indesejadas, deve se reconhecer que, se o Congresso Nacional

puder reverter decisão constitucional da Suprema Corte pelo

processo legislativo ordinário, o regime se aproximará de um

modelo de flexibilidade constitucional e de supremacia parla-

mentar,65

conforme afirmado corretamente pelas Supremas

Cortes norte-americana e brasileira nos casos City of Boerne e

do foro por prerrogativa de função (ADI 2860). Se, por outro

lado, o único instrumento legítimo de reversão de decisão da

Suprema Corte for emenda constitucional dificílima de ser

aprovada, na prática haverá supremacia judicial.

Nos EUA a questão assume contornos mais dramáticos

do que no Brasil. Com efeito, diante da notável dificuldade do

processo de emenda à Constituição norte-americana há maior

risco de emprego de mecanismos de reação mais nocivos ao

Estado de Direito. Como no Brasil, o processo de emenda é

sensivelmente mais fácil, há tendência a que as respostas dos

poderes políticos e de atores sociais a decisões indesejadas

sejam veiculadas dessa forma. Porém, o fato de o artigo 60 da

Constituição brasileira de 1988 sujeitar o processo de emenda a

rigores adicionais ao processo legislativo ordinário evita a sua

vulgarização, e consequentemente a aproximação de um regi-

me de supremacia parlamentar.66

65 O problema não se coloca se o Congresso Nacional divergir da interpretação

conferida pelo STF em matéria legal, pois, sendo o Parlamento supremo na matéria,

poderá naturalmente reverter o entendimento do STF com efeitos prospectivos. Ver

BAUM, Lawrence e HAUSEGGER, Lori. The Supreme Court and Congress. Re-

considering the relationship; MILLER, Mark C. The view of the Courts from the

hill: a neoinstitutional perspective. In: MILLER, Mark C. & BARNES, Jeb (Ed.).

Making policy, making law: an interbranch perspective. Washington, DC: George-

town University Press, 2004. 66 O ponto é aprofundado em BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1475

À luz dessas considerações, buscar-se-á no próximo

item sistematizar as principais conclusões obtidas sobre as re-

lações travadas entre a Suprema Corte e o Congresso Nacional

na interpretação constitucional.

6. A INEVITABILIDADE DOS DIÁLOGOS INSTITUCIO-

NAIS NA DEFINIÇÃO DO SENTIDO DA CONSTITUIÇÃO

Como os mecanismos de reação a decisões judiciais

afetam negativamente o Judiciário enquanto instituição, espe-

cialmente a Suprema Corte tende a evitar o seu efetivo empre-

go com um espírito de autopreservação. Portanto, sendo pre-

mente esse risco, a Suprema Corte tende aguiar-se por uma

postura de “reação antecipada”, na qual altera a sua preferência

original para adequar-se a perspectiva aceitável pelos poderes

políticos.67

Comprova o exposto a tendência contraintuitiva de as

Supremas Cortes serem mais deferentes ao legislador logo após

o advento de uma nova Constituição. Com efeito, em um cená-

rio de recente mudança constitucional, a Suprema Corte – todo

o resto sendo igual – tenderia a proferir mais decisões de inva-

lidade constitucional do que em momento posterior, pois neste

primeiro momento persistiriam em grande número normas e

práticas constituídas sob a égide do anterior regime constituci-

onal, e, em boa medida, incompatíveis com a nova Carta.

Entretanto, após ampla análise comparativa da jurispru-

dência de Supremas Cortes em novas democracias, Tom Gins-

burg percebeu que o padrão que se verifica é exatamente o

oposto: na infância de uma nova ordem constitucional as Cor-

tes tendem a ser extremamente cautelosas na afirmação do seu

poder, de maneira que a sua jurisprudência constitucional apre- Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Consti-

tuição?, Op. cit, p. 289/308. 67 WHITTINGTON, Keith. Legislative sanctions and the strategic environment of

judicial review. Op. cit., p. 447.

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1476 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

senta uma curva ascendente de ativismo.68

Notável exceção – que, aliás, confirma a regra – ocor-

reu na Rússia logo após o desmantelamento da União Soviéti-

ca, quando a sua jovem Corte Constitucional desafiou podero-

sos atores políticos em embate que lhe deixou cicatrizes pro-

fundas. Logo após o início do seu funcionamento em 1991, a

Corte Constitucional russa decidiu complexos casos ligados à

separação de poderes, adquirindo a fama de desafiar a autori-

dade presidencial, sobretudo no controle da amplitude dos seus

poderes normativos.

De fato, a Corte Constitucional invalidou decreto presi-

dencial que unificara as forças de segurança em um só Ministé-

rio, por vislumbrar usurpação de poder normativo do Parla-

mento. Posteriormente, foi submetida à Corte a validade do

decreto do Presidente Boris Yeltsin que dispersara o Partido

Comunista e confiscara os seus bens. O caso apresentava notá-

vel complexidade política, pois, embora o decreto fosse clara-

mente ilegal, o Partido Comunista organizara golpe de Estado.

A Corte entendeu por aplicar lógica federativa para validar o

decreto em face do diretório nacional do Partido, e invalidá-lo

em relação aos diretórios estaduais, em “decisão intermediária”

que desagradou a ambas as partes.

Com o acirramento da crise política entre Parlamento

e Presidente da República, a Corte Constitucional – em particu-

lar o seu presidente, Valery Zorkin– se envolveu intensa e pu-

blicamente nas negociações políticas que resultaram em um

compromisso formal entre o Legislativo e o Executivo russos.

A inserção de juízes em negociações político-partidárias afas-

tou qualquer imagem de neutralidade política da Suprema Cor-

te, que, a bem da verdade, nunca chegou a existir nos seus pou-

cos anos de funcionamento. Quando Yeltsin rompeu o com-

promisso e anunciou decreto que lhe garantia poderes de emer-

68 GINSBURG, Tom. Judicial review in new democracies – constitutional Courts in

asian cases. Op. cit., p. 70/71.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1477

gência em março de 1993, antes mesmo de o ato ser publicado,

Zorkin deu entrevistas a redes de televisão onde denunciou a

sua ilegalidade. Em poucos meses, Yeltsin dissolveu o Parla-

mento e suspendeu o funcionamento da Suprema Corte. A Cor-

te só voltou a funcionar dois anos depois, com poderes severa-

mente reduzidos, e nunca mais foi tão ativista em matérias po-

liticamente relevantes.69

Porém, convém reiterar que a experiência russa foge ao

padrão que se verifica no direito comparado. De fato, Ginsburg

constatou que no início de um regime constitucional – sobretu-

do em novas democracias – há maior risco de ataques instituci-

onais, de retaliações ao Judiciário ou de descumprimento de

decisões judiciais, pois a Corte ainda não teve tempo para

construir uma imagem de neutralidade política que a blindasse

de tais ameaças. Precisamente para construir essa couraça, a

Suprema Corte tende a se pautar por postura autorrestritiva nos

seus primeiros anos de vida, preferindo metodologias mais

formalistas. Assim, para expandir o seu poder a Corte deve

avançar devagar.

A evolução da jurisprudência do STF pós-1988 de-

monstra claramente um viés de progressivo crescimento do

ativismo judicial com o “envelhecimento” do regime constitu-

cional brasileiro. Com efeito, logo após a Constituição de 1988

o STF adotou postura de sensível autorrestrição, sobretudo em

relação a questões centrais à agenda política do governo fede-

ral,70

que pode ser ilustrada por três casos paradigmáticos. O

primeiro deles se deu com o entendimento do STF acerca da

incompatibilidade entre lei anterior a Constituição e o seu teor

encerraria hipótese de revogação, e não de inconstitucionalida-

de superveniente, excluindo, neste particular, o cabimento de

69 GINSBURG, Tom. Judicial review in new democracies – constitutional courts in

asian cases. Op. cit.,p. 101/102. 70 Sobre o compromisso do STF com a “governabilidade”, ver SUNDFELD, Carlos

Ari. O fenômeno constitucional e suas três forças. In: Revista de Direito do Estado

(RDE), jul./set. 2008, ano 3, n. 11, p. 209/217.

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1478 | RJLB, Ano 1 (2015), nº 4

Ação Direta de Inconstitucionalidade.71

Por outro lado, a Medida Provisória n. 173/1990 vedou

ao Judiciário a possibilidade de concessão de liminares para a

liberação de recursos financeiros depositados em instituições

financeiras, que foram retidos pelo Plano Collor. Tendo a sua

constitucionalidade questionada na ADI 223-6/DF,72

o STF

indeferiu a liminar, com base na orientação de que o princípio

da inafastabilidade da tutela jurisdicional (art. 5, XXXV,

CF/88) não é incompatível com o estabelecimento, por lei, de

limitações ao poder de cautela do juiz, sem prejuízo do exame

judicial em cada caso concreto da sua constitucionalidade.73

Note-se ainda que o Programa Nacional de Desestatiza-

ção promovido pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em-

bora tenha gerado uma avalanche de processos judiciais que

causaram atrasos e embaraços pontuais aos leilões de privatiza-

ção, teve no Supremo Tribunal Federal um importante aliado

no sentido da sua viabilização. Com efeito, o STF não invali-

dou nenhum leilão de privatização de antiga empresa estatal,

nem julgou procedente nenhuma das 39 Ações Diretas de In-

constitucionalidade referentes às privatizações.74

Conforme a

correta percepção de Vanessa Elias de Oliveira, o único resul-

tado obtido foi o retardamento do processo, mas não o seu

cancelamento em função das ações impetradas.75

As chamadas “teorias do equilíbrio” visam a explicar a

forma pela qual os limites políticos e institucionais impostos à 71 STF, Pleno, ADI 438, RDA, 187: 152, 1992. A possibilidade de controle abstrato e

concentrado da compatibilidade do direito pré-constitucional com a Constituição só

se implementou com a regulamentação da Arguição de Descumprimento de Preceito

Fundamental pela Lei n. 9.882/1999. 72 STF, Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ, 29/06/1990, julgamento:

05/04/1990. Posteriormente o STF reconheceu a perda do objeto da ação, tendo em

vista a MP n. 173/1990 não mais se encontrar em vigor. 73 Ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos fundamentais – uma leitura da jurisprudên-

cia do STF. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 492/511. 74 OLIVEIRA, Vanessa Elias. Judiciário e privatizações no Brasil: existe uma judi-

cialização da política? Dados Rio de Janeiro, jul./set. 2005, v. 48, n. 3, p. 559/587. 75 Ibid., p. 580.

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RJLB, Ano 1 (2015), nº 4 | 1479

Suprema Corte influenciam o seu processo decisório. Ocupam

posição de destaque dentre tais concepções teóricas o modelo

adotado pela rational choice theory para explicar a interação

estratégica entre os “poderes” na interpretação do direito. Em

importante trabalho, Willian Eskridge desenvolveu uma inter-

pretação dinâmica do direito, segundo a qual o Judiciário não

aplica meramente as suas preferências, antes as submete a um

jogo político sequencial.76

Tal jogo seria um corolário da separação dos poderes,

especialmente dos mecanismos de freios e contrapesos, pois tal

princípio atribuiria uma dimensão dinâmica à interpretação do

direito. Com efeito, a aprovação de lei exige, via de regra, a

comunhão entre as preferências de uma maioria parlamentar e

do Presidente da República (diante do seu poder de veto). Por

outro lado, o controle de constitucionalidade permite ao Judi-

ciário invalidar a lei, de maneira que a sua preferência também

será relevante para o deslinde da questão, embora não seja de-

finitiva, pois os demais “poderes” poderão reagir à decisão de

inconstitucionalidade pelos instrumentos anteriormente arrola-

dos. Em suma, a solução final para a questão será fruto da inte-

ração entre as preferências dos “poderes”.

Antes do início do “jogo da separação dos poderes”, ca-

da jogador tem uma preferência (dita crua) que pode ser posi-

cionada em um determinado ponto de uma linha. A premissa

fundamental é a de que os atores não aplicarão ingenuamente

as suas preferências cruas, mas, diante do risco de elas serem

afastadas pelas preferências dos demais jogadores, cada um

deles atuará estrategicamente para que o resultado da interação

seja o mais próximo possível da sua preferência inicial. Assim,

esta preferência será alterada no mínimo necessário para que se

possa vencer a disputa.

A tendência natural do jogo é o resultado se situar em

76 ESKRIDGE Jr., William N. Overriding Supreme Court Statutory Decisions. Yale

Law Journal, 1991, v. 101, n. 2, p. 331-417.

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um ponto de indiferença, onde há um equilíbrio entre as prefe-

rências dos jogadores. Veja-se o seguinte exemplo: se a prefe-

rência da Suprema Corte se situa em um ponto intermediário

entre as preferências do legislador médio e do Presidente, a

tendência é a Corte aplicar a sua preferência crua sem medo de

reação política, pois para o legislador e para o Presidente da

República a preferência da Corte é mais aceitável do que a pre-

ferência do outro adversário. Por outro lado, se a preferência do

Judiciário estiver em uma extremidade desta linha, a do legis-

lador médio em ponto intermediário, e a do Presidente no polo

oposto, a tendência é a adoção de postura de autorrestrição ju-

dicial, pois há fundado risco de uma postura ativista do Judiciá-

rio gerar comunhão de esforços dos Poderes Legislativo e Exe-

cutivo para superá-la.77

O modelo parece possuir base empírica pela circunstân-

cia de diversas crises institucionais entre o Judiciário e os po-

deres políticos terem ocorrido precisamente pelo primeiro não

ter adotado postura de autorrestrição quando as suas preferên-

cias foram radicalmente desviantes daquelas esposadas pelos

Poderes Executivo e Legislativo. A Lochner Era constitui

exemplo clássico desta dinâmica. Em um cenário em que o

advento do Welfare State representava uma nova visão consti-

tucional apoiada pelo Presidente Franklin Roosevelt, por um

Congresso majoritariamente democrata, e pelo povo em reite-

radas eleições, é natural que a opção da Suprema Corte por

uma postura ativista na preservação de um liberalismo

econômico anacrônico já no início no século XX pareça suici-

da. Também parece confirmar o modelo o fato de as decisões

mais duradouras da Suprema Corte normalmente terem sido

proferidas em assuntos altamente controvertidos, pois diante da

sensível diversidade entre as preferências dos atores políticos é

77 HANSFORD, Thomas G. e DAMORE, David F. Congressional preferences,

perceptions of threat, and Supreme Court decision making. In: American politics

quaterly, 2000, v. 28, n. 04, p. 494/497.

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muito difícil obter consenso em qualquer sentido, sobretudo na

superação da decisão judicial pelos mecanismos que os poderes

políticos têm a sua disposição, em razão do alto custo político

nela embutido.78

Embora o modelo de interação estratégica da rational

choice theory traga insights valiosos para a análise da relação

entre Suprema Corte e Parlamento na interpretação da Consti-

tuição, ele superestima o conhecimento pelos jogadores das

preferências dos seus adversários,79

para além de silenciar so-

bre os aspectos normativos pertinentes às exigências do Estado

Democrático de Direito.80

Com efeito, há diversos fatores além

das preferências cruas dos atores políticos que influenciam este

diálogo institucional, como a atuação de grupos de interesse

bem articulados e a influência da opinião pública.

7. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL, GRUPOS DE

INTERESSE E OPINIÃO PÚBLICA

A influência dos grupos de interesse em uma visão di-

nâmica da interpretação constitucional revela a importância

decisiva dos movimentos sociais na definição do sentido da

Constituição. Veja-se o caso Boutlier v. INS: diante de norma

que estabelecia que imigrantes que apresentassem, dentre ou-

tras moléstias, problemas psiquiátricos, deveriam ser deporta-

dos dos Estados Unidos, o governo norte-americano considera-

va que o homossexualismo enquadrar-se-ia dentre os proble-

78 ESKRIDGE Jr., William N. Overriding Supreme Court statutory decisions. Op.

cit., p. 365/367. 79 HANSFORD, Thomas G. e DAMORE, David F. Congressional preferences,

perceptions of threat, and Supreme Court decision making. In: American Politics

Quaterly, v. 28, n. 4, 2000, p. 491. 80 Sobre as críticas formuladas ao modelo da rational choice, ver BAUM, Lawrence

e HAUSEGGER, Lori. The Supreme Court and Congress. Reconsidering the rela-

tionship. In: Making policy, making law: an interbranch perspective. MILLER, Mark

C. & BARNES, Jeb (Ed.). Washington, DC: Georgetown University Press, 2004, p.

107, 123.

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mas psiquiátricos. Embora na medicina tal concepção já se

encontrasse em franca decadência, a Suprema Corte em 1967

referendou a inserção do homossexualismo nas doenças psi-

quiátricas, e, via de consequência, a diretriz do governo de

promover a retirada compulsória de homossexuais que tives-

sem ingressado em solo americano. Nenhum esforço de supe-

ração da decisão foi feito, tendo em vista que o preconceito

existente à época tolhia os gays mesmo de se identificarem,

que dirá de se mobilizarem no espaço público para reverter a

decisão judicial.81

Por sua vez, Michael Klarman argumenta que o ativis-

mo judicial a favor dos direitos civis na Corte de Warren so-

mente foi possível pela mobilização social nesse sentido na

década de 1960 nos EUA. Com efeito, se anteriormente a Su-

prema Corte havia validado a escravidão, o aprisionamento de

japoneses sem a observância do devido processo legal, e restri-

ções às liberdades de expressão, de reunião e de associação de

comunistas, não é de causar surpresa que a Suprema Corte te-

nha feito ginásticas interpretativas para reverter tais preceden-

tes, alinhando-se ao movimento dos direitos civis precisamente

no momento em que ele ganhava força nos Estados Unidos.82

Robert Post e Reva Siegel também destacam a relevân-

cia dos movimentos sociais na interpretação constitucional. Os

autores comungam do entendimento de que, se a Suprema Cor-

te se afastar demais da opinião pública o povo não só achará

mecanismos para comunicar a sua oposição, mas também para

reverter decisões judiciais dissonantes. Dentre vários exemplos

citam o entendimento que perdurou na Suprema Corte até o fim

da década de 1970, no sentido de que as distinções baseadas no

gênero não eram constitucionalmente suspeitas à luz da cláusu-

81 ESKRIDGE Jr., William N. Overriding Supreme Court statutory decisions. Op.

cit., p. 357. 82 KLARMAN, Michael. J. Court, Congress and civil rights. In: DEVINS, Neal e

Whittington, Keith E. Congress and the Constitution. Durham: Duke University

Press, 2005, p. 182.

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la da equal protection of law, e, portanto, não se sujeitariam a

parâmetro rigoroso de controle de constitucionalidade (strict

scrutiny). Todavia, com a organização de movimentos feminis-

tas o senso comum mudou, e distinções baseadas no sexo pas-

saram a parecer a todos – inclusive aos juízes – contrárias à

igualdade, gerando a reversão da jurisprudência da Suprema

Corte.83

No Brasil a influência de grupos de interesse na inter-

pretação constitucional não é menos evidente. Grupos a que se

atribuiu a pecha de inimigos da República - como os monar-

quistas, os operários, os integralistas, e os comunistas - tiverem

frequente insucesso na tutela judicial dos seus direitos indivi-

duais. Na República Velha, ocorreram dois casos emblemáticos

relativamente a monarquistas e operários, nesta ordem. Diante

do fechamento do Centro Monarquista de São Paulo após a

proclamação da República por ordem da polícia local, o STF

indeferiu o habeas corpus impetrado, valendo-se do argumento

de que os monarquistas queriam garantias do governo republi-

cano para conspirar contra ele. Por sua vez, em 1917 o STF

indeferiu habeas corpus impetrado em face da proibição da

realização de meetings operários, tendo afirmado que o anar-

quismo era a mais subversiva das doutrinas sociais e impedia

os trabalhadores de trabalhar.84

Após a revolução constitucionalista de 1930, foi impe-

trado habeas corpus pela Associação Nacional Libertadora

(ANL) contra ato de autoridade policial que determinara o can-

celamento das suas atividades, pelo seu caráter subversivo

(1937). O STF indeferiu o writ, tendo inclusive afirmado o

Min. Carvalho Mourão que a limitação da liberdade de associ-

ação a “fins lícitos” não obstaria que autoridades policiais a

restringissem em proteção à ordem pública. Após a chamada 83 POST, Robert e SIEGEL, Reva. Democratic constitutionalism and backlash.

Harvard Civil Rights ‒ Civil Liberties Law Review, v. 42, p. 382. 84 COSTA, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidada-

nia. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

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intentona comunista - suposto levante comunista realizado em

quartéis de Natal, Recife e Rio de Janeiro – e o consequente

recrudescimento da repressão estatal aos comunistas, o STF

indeferiu habeas corpus impetrado por João Mangabeira, dentre

diversos outros.85

Mesmo após 1988, setores estigmatizados da sociedade

brasileira ainda encontram enormes dificuldades para a efetiva

fruição de direitos. Exemplo disso é o fato de, apesar de o art.

15, inc. III, da CF/1988, somente suspender o exercício dos

direitos políticos após o trânsito em julgado da sentença crimi-

nal condenatória, os Tribunais Regionais Eleitorais brasileiros

terem demorado bastante para disponibilizar os mecanismos

necessários para que os presos provisórios exercessem o seu

direito ao voto, os quais ainda estão longe de abranger todos os

indivíduos nesta situação.86

Após analisar mais de cem casos de superação legislati-

va de decisões da Suprema Corte entre 1967 e 1990, William

Eskridge elaborou um rol decrescente de atores mais propensos

a reverter decisões judiciais indesejadas: governo federal, gru-

pos financeiros (empresários, banqueiros etc.), cidadãos difu-

sos, governos locais, sindicatos de trabalhadores, mulheres,

portadores de necessidades especiais, acusados em processos

criminais, minorias raciais, imigrantes, pobres etc.87

Jeb Bar-

85 Ibid. 86 Ver a matéria jornalística: Direito de voto de preso provisório é ignorado na maior

parte do país. Disponível em:

<http://eleicoes.uol.com.br/2008/ultnot/2008/09/12/ult6008u176.jhtm>. Acesso em

02/02/2011. Na doutrina, ver SARMENTO, Daniel. Representação sobre a violação

ao direito de voto do preso provisório. In (Id.) Por um constitucionalismo inclusivo:

história constitucional brasileira, teoria da Constituição e direitos fundamentais. Rio

de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 311/334. Só recentemente o CNJ selou acordo de

cooperação técnica com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Ministério da Justiça

e outros órgãos e entidades para garantir o exercício do direito de voto para presos

provisórios e adolescentes em conflito com a lei privados de liberdade. A efetiva

implementação do direito, contudo, ainda sofre sérias limitações. 87 ESKRIDGE Jr., William N. Overriding Supreme Court statutory decisions. Op.

cit., p. 348.

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nes, após realizar pesquisa empírica igualmente ampla, também

concluiu que o governo federal é o ator mais bem-sucedido em

promover a reversão de decisões judiciais, sobretudo quando

elas causarem forte impacto financeiro-orçamentário.88

Por outro lado, a opinião pública consiste em influência

decisiva para a jurisprudência constitucional das Supremas

Cortes. Georg Vanberg considera que a existência de apoio

popular à independência judicial fortalece o Judiciário, na me-

dida em que eleva o custo político de qualquer reação a decisão

judicial. De fato, caso a população puna severamente políticos

que não sejam reverentes a decisões da Suprema Corte, atores

políticos, mesmo que atuem de forma autointeressada com vis-

tas à sua reeleição, irão titubear antes de negar publicamente

cumprimento a decisão, de sugerir a aprovação de norma supe-

radora e, sobretudo, de propor ataques institucionais ou retalia-

ções à Corte.89

Todavia, como explicar a louvável decisão proferida no

caso Brown v. Board of Education of Topeka, na qual a Supre-

ma Corte esteve à frente da opinião pública, ao superar a se-

gregação racial em escolas públicas norte-americanas quando o

movimento negro ainda perseguia objetivos mais básicos, co-

mo a redução da violência policial, a busca de emprego, a ob-

servância do devido processo legal em persecuções criminais

nos Estados do Sul etc.90

Naturalmente que a inserção dos juí-

zes em um determinado contexto cultural limita o seu distanci-

amento da opinião pública (a decisão em Brown seria impensá-

vel um século antes, quando a Suprema Corte decidiu Dred

Scott);91

todavia, há outros fatores que pautam a complexa rela-

ção entre a jurisdição constitucional e opinião pública.

88 BARNES, Jeb. Overruled? Legislative overrides, pluralism and contemporary

Court-Congress relations. Op. cit.,p. 159/185. 89 VANBERG, Georg. The politics of judicial review in Germany (political economy

of institutions and decisions). Op. cit., p. 20/24. 90 KLARMAN, Michael. J. Court, Congress and civil rights. Op. cit., p. 182/193. 91 Ibid.

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Em influente dissociação, David Easton vislumbrou du-

as modalidades de apoio popular à independência judicial. O

apoio popular específico consiste em concordância a decisão

particular, enquanto o apoio difuso revela o suporte popular a

Suprema Corte enquanto instituição, que persiste mesmo na

hipótese de discordância quanto a decisões específicas.92

Toda-

via, é natural que, caso a Corte decida reiteradamente de forma

contramajoritária, o estoque de apoio difuso tenda a reduzir-se

progressivamente, pois é evidente que a opinião do povo quan-

to à qualidade das decisões de um tribunal tem forte impacto

sobre a sua visão sobre o tribunal em si. Daí dizer-se que o

apoio difuso define o quanto a Suprema Corte pode andar com

as suas próprias pernas, distanciando-se da opinião pública.93

Exemplo típico de apoio difuso à Suprema Corte dos Estados

Unidos se deu após a decisão que proferiu no caso Bush v. Go-

re: apesar das severas críticas no sentido da influência da polí-

tica partidária na decisão, pesquisas de opinião revelaram que

os níveis de aprovação popular da Suprema Corte se mantive-

ram estáveis.94

Assim, a opinião pública influencia a tomada de decisão

por Cortes Supremas, pois os juízes são conscientes de que a

prolação reiterada de decisões inaceitáveis por maiorias políti-

cas e pela população torna factível o uso dos referidos meca-

nismos de reação política, dos quais a Corte tende a evitar em

prol da sua integridade institucional. Todavia, a sensibilidade

das decisões judiciais à opinião pública interage de forma

complexa com a aparência de neutralidade política: de fato,

mesmo juízes bastante ativistas na concretização de princípios 92 EASTON, David. Uma teoria de análise política. Rio de Janeiro: Zahar Editores,

1968. 93 FRIEDMAN, Barry. The will of the people: how public opinion has influenced the

Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. New York: Farrar,

Strauss and Giroux, 2009. 94 GIBSON, James L.; CALDEIRA, Gregory Caldeira e SPENCE, Lester. The

Supreme Court and the US presidential election of 2000. In: British Journal of

Political Science, 2003, n. 33, p. 538.

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constitucionais abstratos nutrem a imagem de uma “justiça

cega”, circunstância que revela a essencialidade da imagem de

neutralidade política para a construção do apoio difuso ao Judi-

ciário, e, consequentemente, para a expansão dos seus pode-

res.95

Não é por acaso que o padrão das Cortes Constitucionais

contemporâneas é a de uma expansão progressiva e cautelosa

dos seus poderes, portando-se de forma ativista quando a sua

reputação de neutralidade judicial, construída após razoável

período de autorrestrição judicial, já se encontra consolidada.

Adotado em sua forma pura, o modelo de interação da

rational choice pressupõe que os atores institucionais conhe-

çam as decisões e as preferências do seu “adversário”, para que

possam a elas se antecipar. Todavia, caso haja forte assimetria

de informações entre os atores, ou mesmo desconhecimento

sobre a decisão do outro, as condições para a sua atuação estra-

tégica não se verificam.96

Com efeito, se há pouca transparência em relação ao

que decide a Suprema Corte, muitas das suas decisões podem

ser finais não pela aquiescência do povo e dos seus represen-

tantes ao seu teor, mas simplesmente pelo seu desconhecimen-

to. Por outro lado, se há forte opacidade no processo legislati-

vo, tentativas resistir a decisões judiciais igualmente irão pre-

valecer por não terem se tornado públicas. Um dos fatores re-

levantes para que haja efetiva publicidade da decisão judicial e

legislativa é o seu monitoramento por grupos de interesse or-

ganizados, pois, caso eles atuem em determinada disputa, difi-

cilmente o seu resultado deixará de ser conhecido por grande

parte dos interessados.97

Desta forma, costumam ser mais fre-

95 VANBERG, Georg. The Politics of judicial review in Germany (political econo-

my of institutions and decisions). Op. cit., p. 52. 96 BARNES, Jeb. Overruled? Legislative overrides, pluralism and contemporary

Court-Congress relations. Op. cit., p. 70. 97 Sobre o tema da influência da transparência na interação entre a Suprema Corte e

o Parlamento ver, por todos, VANBERG, Georg. The politics of judicial review in

Germany (political economy of institutions and decisions). Op. cit., p. 95/116.

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quentes superações legislativas de decisões da Suprema Corte

quando atuam como amici curiae entidades representativas

bem organizadas.98

8. CONCLUSÃO: O ESTOQUE LIMITADO DE DECISÕES

CONTRAMAJORITÁRIAS DA SUPREMA CORTE E O

SEU ADEQUADO EMPREGO EM UMA DEMOCRACIA

CONSTITUCIONAL

Ao longo do artigo se buscou demonstrar que os meca-

nismos de reação dos poderes políticos a decisões judiciais

indesejadas e a atuação de grupos de interesse promovem uma

razoável sincronização entre a jurisprudência da Suprema Cor-

te e a opinião pública. Isto porque a busca de preservação da

legitimidade institucional da Corte, e a consequente antecipa-

ção das reações dos demais “poderes” e da sociedade às suas

decisões, tende a manter a Suprema Corte não muito distante

da opinião pública.99

Assim, os mecanismos de reação a decisões da Supre-

ma Corte atuam como limites institucionais à sua jurisprudên-

cia. Ademais, tais limites conferem uma nova forma de ac-

countability à atuação da Suprema Corte, pois às suas decisões

se reconhece referibilidade, em grande medida, à opinião pú-

blica. Reduz-se, assim, a força da crítica da dificuldade con-

tramajoritária ao controle de constitucionalidade.100

Note-se, contudo, que a sincronização entre opinião pú-

blica e jurisprudência da Suprema Corte não é igualmente efi-

caz em diferentes searas: em questões de alta relevância políti-

98 ESKRIDGE Jr., William N. Overriding Supreme Court statutory decisions. Op.

cit. 99 WHITTINGTON, Keith. Legislative sanctions and the strategic environment of

judicial review. Op. cit., p. 330 100 DIXON, Rosalind. Creating dialogue about socioeconomic rights: strong-form

versus weak-form judicial review revisited. In: International Journal of Constitu-

tional Law, 2009, v. 5, n. 3, p. 407.

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ca, centrais à coalizão governamental majoritária e que atraiam

o interesse de grupos bem articulados, a influência da opinião

pública é mais significativa. Já em questões de menor repercus-

são política e que não atraia a atenção de grupos políticos e

econômicos influentes, a Suprema Corte frequentemente voa

abaixo do radar.101

Assim, a jurisprudência constitucional da Suprema Cor-

te tende a ser mais sensível à opinião pública em questões fun-

damentais para maiorias políticas e para grupos de interesse

bem organizados, havendo, portanto, menos espaço nesse âm-

bito para a Corte dar a última palavra sobre a respectiva con-

trovérsia constitucional, em substituição a interpretação dos

poderes políticos. Todavia, em questões de menor saliência

política, vale dizer, que não demandem a atenção de grupos

políticos e sociais bem articulados, há maior chance de o Judi-

ciário fixar a solução final.

Surge, contudo, um paradoxo: se a própria razão de ser

do constitucionalismo é a proteção de direitos de minorias es-

tigmatizadas no processo político contra a influência dos pode-

res político e econômico, a constatação de que o potencial do

controle de constitucionalidade é mais reduzido precisamente

quando há forte oposição de grupos políticos e econômicos

bem estruturados representaria o reconhecimento da falência

do constitucionalismo?

Não. Sem dúvida que o reconhecimento de que o Judi-

ciário não pode desempenhar uma postura messiânica de Guar-

dião da Constituição – acima e para além da política e da opi-

nião pública – deve levar a uma redução de expectativas quanto

ao efetivo papel desempenhado pelo controle de constituciona-

lidade em uma democracia constitucional.

Nada obstante, subsiste ao Judiciário uma função politi-

camente relevante. Já se salientou que o apoio difuso à inde-

101 FRIEDMAN, Barry. The will of the people: how public opinion has influenced

the Supreme Court and shaped the meaning of the Constitution. Op. cit., p. 377.

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pendência judicial, que costuma existir em boa medida nas

democracias constitucionais contemporâneas, garante-lhe um

estoque de decisões contramajoritárias. Nesta esteira, o reco-

nhecimento da influência da opinião pública sobre o controle

de constitucionalidade não se incompatibiliza, antes estimula, a

concepção de teorias prescritivas que se destinem a incitar o

Judiciário a empregar a sua “cota de decisões contramajoritá-

rias” para a tutela de direitos de minorias estigmatizadas, colo-

cando-se à frente da opinião pública, tal como a Suprema Corte

dos Estados Unidos o fez no caso Brown v. Board of Educati-

on.

Desta forma, o Judiciário não é uma instituição super-

poderosa que dá a última palavra sobre os mais diversos confli-

tos constitucionais acima da política e da opinião pública, nem

um “tigre de papel”102

que se limita a carimbar preferências de

maiorias políticas transitórias ou os resultados da última pes-

quisa de opinião. A partir dessa premissa pode ser construída

uma teoria normativa sobre o papel do controle de constitucio-

nalidade na democracia constitucional brasileira que tenha o

mínimo de conexão com a realidade, e que, portanto, tenha

aplicabilidade fora dos bancos acadêmicos.

102 A expressão é de VANBERG, Georg. The politics of judicial review in Germany

(political economy of institutions and decisions). Op. cit.