Dimensão simbólica

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1 Textos Informativos Complementares Expressões Português 12.° ano EXP12 © Porto Editora SEQUÊNCIA 4 A dimensão simbólica de Memorial do Convento Ao longo de Memorial do Convento, vários são os elementos que assumem uma dimensão simbólica; esses elementos, conjugados com o universo “real” e histórico do romance, conferem ao texto saramaguiano características que fazem lembrar o “rea- lismo maravilhoso” sul-americano. A máquina voadora – constitui um símbolo de liberdade, mas igualmente de luz, de guia. A memória da passarola mantém Baltasar e Blimunda esperançados, durante o longo período obscuro e solitário do trabalho na construção do convento. Bartolo- meu e Scarlatti, cúmplices, no modo como olham a realidade, acreditam um no outro, conseguindo “sobrepor-se ao determinismo histórico.” Sete-Sóis – “batismo” de Baltasar, porque só pode ver à luz. Sete-Luas – “batismo” de Blimunda, porque “vê” no escuro, evidenciando os dotes de clarividência. Os nomes destas duas personagens (sóis e luas), em conjunto, funcionam como um todo, porque elas são o verso e o reverso de uma mesma realidade, o dia; é o próprio Bartolomeu que na hora do “batismo” afirma “Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras”; eles são, igualmente, a união do princípio mascu- lino e do princípio feminino: “dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados enquanto as estrelas giravam devagar no céu”. Algarismo sete – o número sete indicia totalidade completa e perfeita: os sete dias da criação do mundo, os sete dias da semana, os sete pecados mortais, as sete cores do arco-íris… No romance, são várias as referências simbólicas a este algarismo, sendo a mais relevante a perfeita completude de Baltasar e Blimunda, bem como a escolha do momento da sagração do convento: 7 da manhã, do dia 17 de novembro de 1717. Para além disso, há outras ocorrências do número sete: as sete igrejas visitadas pelas mulheres na Quaresma; a infanta batizada por sete bispos; quando Scarlatti vem para Portugal, a língua portuguesa já lhe era familiar há sete anos; Blimunda passa por Lisboa sete vezes em busca de Baltasar. Algarismo nove – segundo alguns estudiosos, o “nove parece ser a medida das ges- tações, das buscas frutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação”. Esta interpretação espelha-se na demanda exaustiva de Blimunda por Baltasar – “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”. O convento – o gigantesco edifício barroco é um “jugo” para milhares de homens, representando o “esforço mortífero”; é uma espécie de “esquizofrenia transformada em pedra”.

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1Textos Informativos ComplementaresExpressões • Português • 12.° ano

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raSEQUÊNCIA 4

A dimensão simbólica de Memorial do Convento

Ao longo de Memorial do Convento, vários são os elementos que assumem uma dimensão simbólica; esses elementos, conjugados com o universo “real” e histórico do romance, conferem ao texto saramaguiano características que fazem lembrar o “rea-lismo maravilhoso” sul-americano.

◆ A máquina voadora – constitui um símbolo de liberdade, mas igualmente de luz, de guia. A memória da passarola mantém Baltasar e Blimunda esperançados, durante o longo período obscuro e solitário do trabalho na construção do convento. Bartolo-meu e Scarlatti, cúmplices, no modo como olham a realidade, acreditam um no outro, conseguindo “sobrepor-se ao determinismo histórico.”

◆ Sete-Sóis – “batismo” de Baltasar, porque só pode ver à luz.

◆ Sete-Luas – “batismo” de Blimunda, porque “vê” no escuro, evidenciando os dotes de clarividência.

Os nomes destas duas personagens (sóis e luas), em conjunto, funcionam como um

todo, porque elas são o verso e o reverso de uma mesma realidade, o dia; é o próprio Bartolomeu que na hora do “batismo” afirma “Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras”; eles são, igualmente, a união do princípio mascu-lino e do princípio feminino: “dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados enquanto as estrelas giravam devagar no céu”.

◆ Algarismo sete – o número sete indicia totalidade completa e perfeita: os sete dias da criação do mundo, os sete dias da semana, os sete pecados mortais, as sete cores do arco-íris… No romance, são várias as referências simbólicas a este algarismo, sendo a mais relevante a perfeita completude de Baltasar e Blimunda, bem como a escolha do momento da sagração do convento: 7 da manhã, do dia 17 de novembro de 1717. Para além disso, há outras ocorrências do número sete: as sete igrejas visitadas pelas mulheres na Quaresma; a infanta batizada por sete bispos; quando Scarlatti vem para Portugal, a língua portuguesa já lhe era familiar há sete anos; Blimunda passa por Lisboa sete vezes em busca de Baltasar.

◆ Algarismo nove – segundo alguns estudiosos, o “nove parece ser a medida das ges-tações, das buscas frutíferas e simboliza o coroamento dos esforços, o concluir de uma criação”. Esta interpretação espelha-se na demanda exaustiva de Blimunda por Baltasar – “Durante nove anos, Blimunda procurou Baltasar”.

◆ O convento – o gigantesco edifício barroco é um “jugo” para milhares de homens, representando o “esforço mortífero”; é uma espécie de “esquizofrenia transformada em pedra”.

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◆ A figura feminina – a mulher, como nos restantes romances do autor, assume um papel relevante e simbólico: no mundo dos pobres, ela cultiva as virtudes de um hero-ísmo anónimo que nunca lhe é reconhecido e é a única capaz de amar como verdadei-ramente deve ser o amor, com generosidade. São as conversas das mulheres que “segu-ram o mundo na sua órbita”.

◆ O sonho – são constantes as referências aos sonhos das personagens: de Baltasar, do rei, da rainha, do infante D. Francisco, de Blimunda. Todos têm o seu espaço oní-rico, mas é sobretudo o sonho de voar de Bartolomeu Lourenço que domina o romance. Há, assim, uma clara intenção de sublinhar a importância do sonho como forma de evidenciar os medos, as ansiedades e os desejos das personagens na construção dos percursos de vida.

◆ A vontade – a recolha de milhares de vontades, combustível necessário para levantar a passarola, simboliza que, sem o querer humano, nenhum progresso cientí-fico, por si só, faz avançar o mundo.

◆ A trindade – a referência à trindade terrestre, constituída por Bartolomeu, o pai, Baltasar, o filho, e Blimunda, o espírito, é reiterada ao longo do romance, simboli-zando a tríade indissociável, harmoniosa e perfeita.

Para além dos elementos referidos, também as personagens assumem um valor simbólico, o que, mais uma vez, atenua o carácter exclusivamente histórico de Memo-rial do Convento. Vejamos o caso do Padre Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”, cujo sonho de construir uma passarola é, simultaneamente, um facto histórico e a expressão de que a vontade dos homens supera os seus próprios limites. Um dos aspe-tos característicos e distintivos do romance de Saramago reside, precisamente, na con-jugação entre real e simbólico.

RAMOS, Auxília, e BRAGA, Zaida, 2009. Memorial do Convento, José Saramago. Porto: Ideias de Ler