Dimitri Dimoulis - A Decisão Do STF Sobre a Unição de Pessoas Do Mesmo Sexo

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    5. A DECISÃO DO SUPREMO T RIBUNAL 

    FEDERAL SOBRE  A  UNIÃO DE PESSOAS DO MESMO SEXO

    Dimitri Dimoulis1

    Soraya Lunardi 2

    Sumário: 1. Objetivos do trabalho. 2. Metodologia. 3. Problema jurídico da inconstitucionalidade e al-ternativas decisórias. 4. Argumentos empregados. 4.1. Argumentos de teoria da interpretação jurídico-consti-tucional. 4.1.1. Argumentos de teleologia objetiva invocando mudanças na realidade social. 4.1.2. Argumentoliteral. 4.1.3. Argumento sistemático. 4.1.4. Argumento da vontade do legislador constituinte. 4.2. Argumentosde teoria do direito. 4.2.1. Argumentos neoconstitucionalistas. 4.2.2. Argumento dos precedentes judiciais.4.3. Argumento de teoria da jurisdição constitucional - função do Tribunal Constitucional. 5. Resultados ob-tidos. 6. Bibliograia

    1. OBJETIVOS DO TRABALHO

    O nosso estudo realiza um levantamento detalhado dos argumentos de in-

    terpretação jurídica empregados nos votos dos Ministros do STF apresentadosno processo que reconheceu a união estável de pessoas do mesmo sexo3 (ADIN4.277, julgada em conjunto com a ADPF 132 em 2011).4

    Nosso objetivo é identiicar os padrões argumentativos aceitos pelos in-tegrantes do Tribunal, mostrando a concepção do Tribunal sobre o seu deverconstitucional de fundamentar as decisões. Além disso, pretendemos veriicarse são utilizados argumentos técnicos ou se os ministros recorrem ao populis-mo, atendendo anseios de seu vasto auditório.

    1 Bacharel em Direito pela Universidade Nacional de Atenas (1988). Mestre em Direito público pelaUniviversidade Paris-I (Panthéon-Sorbonne) (1989). Doutor em Direito pela Universidade Saarland(1994). Pós-doutor em Direito pela Universidade Saarland (1996). Professor da Escola de Direito de SãoPaulo da FGV (Graduação e Mestrado). Professor visitante da Universidade Panteion e da UniversidadePolitécnica de Atenas. Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

    2 Doutora em Direito pela Pontiícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-Doutora pela UniversidadePolitécnica de Atenas. Professora de Direito Público da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

    3 É comum qualiicar as uniões em questão como “homossexuais” ou “homoafetivas”. Contudo, nema Constituição nem a legislação comum brasileira mencionam a orientação ou atividade sexual comocritério relevante para a união familiar. Somente o sexo biológico é mencionado. Assim sendo, éjuridicamente correto se referir à união de pessoas do mesmo sexo.

    4 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Citamos os votos

    indicando o nome do Ministro e a página da publicação oicial.

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    A avaliação da qualidade argumentativa se baseia nos seguintes critérios:

    a) coerência interna (ausência de contradições no mesmo voto);

    b) grau de aderência dos argumentos a dados normativos pertinentes (so-

    luções preconizadas pela doutrina e jurisprudência, sintonia com os elemen-tos textuais, soluções contra legem  ou incoerentes com a tradição decisóriaconsolidada).

    c) qualidade das provas: as airmações da decisão que invocam fatos ou ten-dências foram comprovadas de maneira satisfatória ou permanecem retóricas?

    d) interpretação sistemática: a decisão interpreta o direito em vigor de ma-neira sistemática ou limita-se a indicar normas que favorecem certo posiciona-mento, ignorando outras?

    e) qualidade da subsunção: a consequência jurídica foi deduzida com rigorlógico de certa premissa ou trata-se de falsa subsunção? A falsa subsunção ocor-re quando se deduz uma consequência concreta de uma norma principiológicaou de uma ponderação moral.5

    2. METODOLOGIA

    Escolhemos a ADIN 4.277 porque apresenta três características interessantes:

    a) decide questão polêmica, havendo fortes controvérsias sociais e políticassobre os direitos das minorias sexuais e tendo a decisão motivado uma grande

    produção doutrinária;6

    b) o STF decidiu de maneira contrária à formulação literal da Constituição;

    c) trata-se de decisão unânime.

    As duas primeiras características indicam de que os votos foram cuidadosa-mente preparados para convencer a opinião pública hostil ao resultado. Nessadecisão eventuais deiciências argumentativas não podem ser explicadas pelairrelevância social e jurídica do caso ou pela pressão de tempo.

    A unanimidade, rara em decisões do Plenário sobre temas controvertidos,facilita o estudo das estratégias argumentativas, criando a expectativa de con-

    5 Uma avaliação completa da qualidade argumentativa de decisões judiciais deve examinar também osseguintes aspectos:

      Competência: veriicação da competência formal e dos demais elementos normativos que justiicam aatuação judicante.

      Utilização das fontes: a decisão cita a doutrina e a jurisprudência de maneira completa e ponderada ousó invoca elementos que corroboram sua tese, silenciando sobre posicionamentos contrários? Temos umdiálogo fundamentado com base em argumentos ou simples demonstrações de erudição?

    6 Cf. a título indicativo, incluindo muitos estudos recentes comentários à decisão do STF aqui analisada:Rios, 2001; Rios 2002; Rios (org.), 2007; Rios, 2008; Barroso, 2008; Sarmento, 2008; Séguin (org.), 2009;Dias, 2011; Lopes, 2012; Trivisonno, 2012; Vieira, 2012; Rinck e Yakabi, 2012; Sirena, 2012; Dimoulise Lunardi, 2013a. O estudo de Trivisonno (2012) propõe uma classiicação detalhada e sistemática dos

    argumentos empregados pelos Ministros na decisão aqui comentada.

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    cordância nos métodos e argumentos empregados. Veremos que isso não ocor-reu, havendo signiicativas divergências na argumentação e também fundamen-tos contrastantes. Isso caracteriza a forma de decidir do STF que diverge na

    argumentação, mesmo concordando no resultado.7

    Mediante leitura dos votos identiicaremos os argumentos utilizados, suge-rindo uma classiicação. A nossa abordagem analítica inspira-se em estudos deGiovanni Damele8 e de outros estudiosos da argumentação nas Cortes constitucio-nais.9 Mas segue um caminho próprio, na medida em que apresenta classiicaçãode argumentos e formas de interpretação elaborada pelos autores desse estudo.

    Deixamos fora do campo de análise argumentos dos Ministros manifestada-mente alheios ao caso10 ou de mero apelo emocional.11 Ambos oferecem indica-ções antropológico-culturais sobre o estilo de pensar e decidir dos Ministros.

    Mas não afetam a qualidade argumentativa da decisão.

    3. PROBLEMA JURÍDICO DA INCONSTITUCIONALIDADE E ALTERNATIVAS DECISÓRIAS

    O principal pedido ADIn foi que o art. 1.723 do Código Civil fosse interpre-tado conforme a Constituição Federal, entendendo-se que o artigo reconhecetambém uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo.

    7 Conforme o texto da decisão, houve unanimidade no deferimento do pedido (p. 880). Contudo há fortesdiferenciações entre os Ministros na fundamentação. Três Ministros incluíram na Ementa da decisão atese da diferenciação jurídica das uniões de pessoas do mesmo sexo: “os Ministros Ricardo Lewandowski,Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxoenquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Semembargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidadefamiliar” (p. 614).

      O Min. Luiz Fux considerou que o requisito da publicidade para reconhecimento da união estável deveser mitigado em razão do receio de muitos casais de orientação homossexual em dar ampla publicidadeà sua união, temendo discriminações (p. 681-682).

      O Min. Joaquim Barbosa considerou que o art. 226 CF não tutela uniões do mesmo sexo, mas que a tuteladecorre de princípios constitucionais. O Ministro não indicou se há equiparação com as uniões entrehomem e mulher e quais normas regem a união de pessoas do mesmo sexo (p. 726).

      Assim sendo, dos 9 Ministros que votaram só quatro (Ayres Britto, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celsode Mello) concordaram na tese da igual e direta proteção constitucional de uniões afetivas-familiaresindependentemente do sexo dos envolvidos. Declarando-se impedido, o Min. Dias Tofoli não votou.Ausentou-se a Min. Ellen Gracie.

    8 Damele, 2011; cf. também Damele et al., 2011.

    9 Cf. as classiicações e análises propostas em Puceiro, 2003.

    10  Exemplo: o Min. Luis Fux disserta sobre os deveres de proteção e a dimensão objetiva dos direitosfundamentais para dizer que, em razão da existência de casais homoafetivos no Estado do Rio de Janeiro,a ADPF deve ser conhecida, havendo pertinência temática entre a ação e as competências do Governadordaquele Estado (p. 661-665).

    11  Exemplo: transcrição de “poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiroChico Xavier”. Min. Ayres Britto, p. 650. “Entendi também importante deixar luir a voz do coração”. Min.

    Luiz Fux, p. 683.

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    O art. 1.723 dispõe:

    “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e amulher, conigurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabe-

    lecida com o objetivo de constituição de família”.

    O art. 226 § 3º da CF dispõe:

    “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre ohomem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua con-versão em casamento”.

    Isso indica que há absoluta coincidência do Código Civil de 2002 com o textoconstitucional de 1988. O legislador infraconstitucional praticamente reprodu-ziu o art. 226 § 3º, invertendo a ordem sintática e acrescentando condições parao reconhecimento da união estável. Observe-se que o § 5º do art. 226 da CF tam-

    bém deine o casal como composto de pessoas de sexo diferente:“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igual-mente pelo homem e pela mulher”.

    Em razão da literalidade com que o Código Civil reproduz o dispositivoconstitucional, o STF se encontrava diante de um dilema: poderia fazer umainterpretação literal, declarando a constitucionalidade do dispositivo do CódigoCivil, com o risco de ser tachado como um tribunal conservador; ou adotarpostura politicamente liberal, julgando procedente a interpretação conforme aconstituição, mas correndo o risco de ser criticado como ativista por contrariar

    claros dispositivos legais e constitucionais.12 Com efeito, ao aplicar a técnica dainterpretação conforme a Constituição, o Tribunal constitucional indica, dentrevárias possíveis interpretações da norma, as compatíveis com a Constituição,não sendo possível afastar a norma infraconstitucional e muito menos acres-centar-lhe algo.13

    Essa situação normativa abre as seguintes possibilidades de decisão sobreo pedido da ADIn:

    1. Indeferimento em vista da identidade textual entre Constituiçãoe lei civil. Seria a solução textualmente iel, mas causaria forte

    decepção às minorias sexuais e à opinião pública progressista.2. Indeferimento com declaração da existência de lacuna legislati-

    va que poderia conigurar (ou não) omissão inconstitucional. OTribunal poderia formular apelo ao legislador para regulamen-tar as uniões de pessoas do mesmo sexo. Poderia também defe-rir a ação, ultra petita, declarando a omissão inconstitucional eobrigando o legislador a regulamentar a questão, com possibili-

    12 Cf. Trivisonno, 2012, p. 203.

    13  Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 271.

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    dade de aplicação analógica das normas sobre uniões entre ho-mem e mulher até que o legislador cumprisse com o seu deverde regulamentação.14

    3. Deferimento, declarando inconstitucional tanto o art. 1.723 doCódigo civil, como o art. 226 § 3° da CF, ao interpretá-los à luzde certos dispositivos constitucionais (igualdade, dignidade hu-mana etc.). Essa solução introduziria a teoria da hierarquia dasnormas constitucionais e da consequente possibilidade de in-constitucionalidade de normas constitucionais que o STF sem-pre rejeitou.15

    4. Deferimento, considerando que certas normas constitucionaisimpõem o reconhecimento de uniões familiares de pessoas do

    mesmo sexo como entidade diferente das uniões de “homeme mulher” do art. 226 § 3° CF. A interpretação sistemática daConstituição autorizaria essa solução, aplicando-se analogica-mente as normas sobre uniões de pessoas do mesmo sexo, atéque o legislador cumpra com o seu dever de regulamentação.

    O Tribunal adotou a terceira alternativa de maneira peculiar. Decidiu que oCódigo Civil somente seria constitucional se autorizasse a união de pessoas domesmo sexo, mas fez interpretação conforme contra sua letra e não afetou o art.226 § 3º CF. Já a minoria adotou a quarta alternativa, mas não fez constar sua

    divergência na votação.16

    4. ARGUMENTOS EMPREGADOS

    4.1. Argumentos de teoria da interpretaçãojurídico-constitucional

    Classiicamos nessa categoria argumentos que invocam os quatro métodosde interpretação jurídica codiicados por Savigny e aceitos pela doutrina e juris-prudência como meios de interpretação constitucional.17

    4.1.1. Argumentos de teleologia objetiva invocandomudanças na realidade social

    Um dos argumentos mais recorrentes é o da realidade, no sentido da neces-sidade de guiar a decisão por aquilo que de fato ocorre na sociedade. Esse ar-

    14  Sobre as possíveis consequências da omissão inconstitucional no direito brasileiro cf. Dimoulis e Lunardi,2013, p. 134-137.

    15  Referências jurisprudenciais em Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 110.

    16 Cf. nota de rodapé 5.

    17  Análises e bibliograia em Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 265-269.

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    gumento é muito importante no caso em discussão, pois o texto constitucionale o Código Civil, ao especiicar que a união estável será entre homem e mulher,ignoram a minoria que vive em uniões estáveis do mesmo sexo.

    - O não reconhecimento da união homoafetiva deve-se ao conservadorismosocial que rejeita a homossexualidade. Min. Ayres Britto, p. 627.

    - A sexualidade é elemento existencial. Expressa a identidade e a dignidadedo ser humano, devendo ser valorizada independentemente da orientação se-xual. Min. Ayres Britto, p. 636-637.

    - A família tem um “coloquial ou proverbial signiicado” que a deine comofato “cultural e espiritual”, independentemente do sexo biológico dos envolvi-dos. Min. Ayres Britto, p. 644.

    - A homossexualidade e a existência de casais homossexuais “é um fato davida”, estatisticamente comprovado pelo IBGE e exigindo sua regulamentaçãojurídica. Min. Luiz Fux, p. 666-667. Min. Ricardo Lewandowski, p. 717-718.

    - O direito deve acompanhar a evolução social, devendo reconhecer as uni-ões homoafetivas, sempre mais aceitas socialmente. Min. Luiz Fux, p. 668 e 678.

    - O direito deve acompanhar a evolução social, devendo reconhecer as uniõeshomoafetivas que são uma realidade social. Mas o direito brasileiro não foi capazde acompanhar a evolução social nesse ponto. Min. Joaquim Barbosa, p. 723.

    4.1.2. Argumento literal

    O argumento é crucial nesse caso, em razão da comentada identidade tex-tual entre a Constituição e o Código Civil. Esse argumento foi empregado porministros que indicaram a existência de lacuna legislativa.18

    - “A norma constitucional (...) é clara ao expressar, com todas as letras, que aunião estável só pode ocorrer entre o homem e a mulher, tendo em conta, ainda,a sua possível convolação em casamento”. Min. Ricardo Lewandowski, p. 713;idêntico o posicionamento do Min. Gilmar Mendes, p. 732.

    - A interpretação literal indica que a união entre pessoas do mesmo sexo não

    é a união estável do art. 226 § 3º, mas outro gênero que pode ser deduzido deuma leitura sistemática do texto constitucional. Logo existiria uma lacuna quedeve ser suprimida pela interpretação. Min. Ricardo Lewandowski, p. 712.

    4.1.3. Argumento sistemático

    O argumento sistemático foi utilizado tanto para justiicar a existência de la-cuna legislativa, como para negar a necessidade de regulamentação legislativa,

    18 O argumento literal é também mencionado em votos da maioria, mas para ser logo afastado com

    invocação de outros argumentos.

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    considerando suicientes para o reconhecimento da união de pessoas do mes-mo sexo as normas constitucionais vigentes. Essa segunda posição sustenta quea Constituição já prevê implicitamente a união estável entre pessoas do mesmo

    sexo, através do conjunto de suas normas. Os principais argumentos utilizadospelos Ministros são:19

    - É vedada a discriminação com base no sexo em razão da inalidade de pro-mover o bem de todos (art. 3º CF). Min. Ayres Britto, p. 631. Min. Cármen Lúcia,p. 701.

    - A Constituição silencia sobre as opções e atividades sexuais dos indivíduos,podendo-se concluir que são permitidas orientações e atividades homoafetivas.Min. Ayres Britto, p. 634, 638. Min. Luiz Fux, p. 667. Min. Joaquim Barbosa, p.724-725.

    - Nenhuma norma constitucional proíbe a constituição de união e famíliahomoafetiva. Min. Ayres Britto, p. 655. Min. Luiz Fux, p. 667.

    - A preferência sexual decorre da dignidade humana constitucionalmentetutelada (art. 1, III) e impõe respeitar os projetos de vida de todos, reconhecen-do-os como livres e autônomos. Min. Ayres Britto, p. 638. Min. Luiz Fux, p. 674-675. Min. Cármen Lúcia, p. 699.

    - A preferência e atividade sexual são tuteladas pelos direitos fundamen-tais à privacidade e à intimidade (art. 5º da CF). Min. Ayres Britto, p. 639. Min.

    Cármen Lúcia, p. 700, 703.- A igualdade entre casais com diferentes preferências sexuais é plena sefor reconhecido “igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada (sic)família”. Min. Ayres Britto, p. 649.

    - Ontologicamente, o afeto e a vontade de convivência duradoura e solidáriaque caracteriza a família pode se encontrar em casais independentemente dapreferência sexual. Se essas famílias são ontologicamente iguais, a Constituiçãonão pode diferenciá-las. Isso é imposto pelo princípio da igualdade que impõetratar igualmente casos substancialmente idênticos. Min. Luiz Fux, p. 671-672.

    - O não reconhecimento de uniões afetivas prejudica a segurança jurídica,impedindo que os interessados planejem suas relações patrimoniais e pessoaiscom consequências jurídicas previsíveis. Min. Luiz Fux, p. 678.

    - Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade, igual-dade, liberdade e intimidade impõem reconhecer a união estável de pessoas

    19 Analiticamente, os sub-argumentos que dão base à leitura sistemática seriam: sub-argumento dadignidade, sub-argumento da liberdade, sub-argumento da intimidade, sub-argumento da nãodiscriminação em razão de orientação sexual, sub-argumento da proteção à família e do novo conceito

    de família. Classiicação proposta por Trivisonno, 2012, p. 208-209.

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    do mesmo sexo como instituição diferente da união estável do art. 226 CF, re-servada a pessoas de sexo diferente. Para tanto, é necessário aplicar analogia,colmatando a lacuna com referência às normas das uniões heterossexuais. Min.

    Ricardo Lewandowski, p. 713-714, 719. Min. Gilmar Mendes, p. 745. Min. CezarPeluso, p. 874.

    - Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade e aigualdade, impõem reconhecer a união estável de pessoas do mesmo sexo, quenão tem base no art. 226 que só se refere a uniões heterossexuais. Min. JoaquimBarbosa, p. 726.20 

    - Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade, igual-dade, liberdade e intimidade, impõem reconhecer a união estável de pessoas domesmo sexo mediante interpretação sistemática “superadora da literalidade”

    com base em princípios, não havendo lacuna a ser colmatada. Min. Ayres Britto,p. 746. Min. Marco Aurélio, p. 820-821. Min. Celso de Mello, p. 841, 844-845.

    - O direito brasileiro inclui o “postulado constitucional implícito que consa-gra o direito à busca da felicidade”. Deriva da dignidade humana que justiica olivre desenvolvimento de todos, impondo, inter alia, o reconhecimento da uniãoestável de pessoas do mesmo sexo. Min. Celso de Mello, p. 844-845, 856-861.

    Os ministros utilizam a interpretação sistemática para introduzir no racio-cínio fundamentos constitucionais diversos do art. 226 § 3°, buscando justiicara decisão de interpretação conforme a constituição. Observe-se que esse mé-todo deveria ter levado à declaração de inconstitucionalidade do próprio textoconstitucional, como conclusão lógica da prevalência de certos princípios sobrenormas taxativas.21 Mas o Supremo Tribunal Federal não fez esse passo, prefe-rindo a incoerência.

    4.1.4. Argumento da vontade do legislador constituinte

    Proponente da redação inal do artigo constitucional sobre a família foi umbispo evangélico que fez constar expressamente que a redação dada pretendiaexcluir uniões entre pessoas do mesmo sexo. Os demais deputados constituin-

    tes não questionaram esse posicionamento que foi aprovado de maneira unâni-me, indicando uma clara vontade do constituinte originário.22 Isso foi indicadono voto do Min. Ricardo Lewandowski.

    20  O argumento não indica qual o parâmetro normativo para regulamentar as uniões de pessoas do mesmosexo, colmatando a lacuna.

    21 Nesse sentido Trivisonno, 2012, p. 233.

    22  “O SR. CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: - Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art.225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estávelentre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ Tem-

    se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação

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    - Os debates na Assembleia constituinte deixam clara a intenção de im-pedir uniões homossexuais, tendo sido introduzida a especiicação de união“entre homem e mulher” após sugestão de um bispo evangélico. Min. Ricardo

    Lewandowski, p. 711-713.Alguns ministros utilizaram o argumento histórico em sentido diferente.

    - A menção à união estável “entre homem e mulher” no art. 226 não obje-tiva excluir da união estável pessoas do mesmo sexo, mas tão somente encora-jar a equiparação das uniões estáveis heterossexuais ao casamento. Min. AyresBritto, p. 652. Min. Luiz Fux, p. 681. Min. Joaquim Barbosa, p. 726. Min. GilmarMendes, p. 738.

    - O constituinte não mencionou as uniões homoafetivas “talvez” porque con-siderou-o desnecessário diante dos princípios da liberdade e da igualdade. Min.Luiz Fux, p. 691.

    4.2. Argumentos de teoria do direito

    Classiicamos nessa categoria argumentos que se deduzem de teorias so-bre a estrutura do sistema jurídico e as formas de sua aplicação. Cabem duasobservações:

    a. Do ponto de vista da origem desses argumentos, os ministros não ade-rem explicitamente a uma “escola” justeórica. Mas a maioria dos argumentos deteoria do direito empregados nessa decisão (assim como em geral na recentejurisprudência do STF) decorrem da visão moralista, rejeitando o positivismojurídico. No debate brasileiro essa visão é conhecida como pós-positivismo ouneo-constitucionalismo, havendo ampla produção doutrinária a respeito.23

    O propósito do nosso artigo é descritivo e por isso não analisaremos a per-tinência e coerência dessa visão. Observamos tão somente que a maioria dosautores positivistas reconhece um amplo poder discricionário ao aplicador, desorte que não haveria, a princípio, objeção positivista caso o juiz adotasse uma

    inclusive de grupos gays através do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendoque a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiáriode televisão, no show do Fantástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto Augusto, autor desteparágrafo, teve a preocupação de deixar bem deinido, e pede que se coloque no § 3º dois artigos: ‘Paraefeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidadefamiliar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desideratodesta Assembleia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero textoconstitucional recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda” (trecho incluídono voto do Min. Ricardo Lewandowski, p. 711-712).

    23  Indicações bibliográicas em Schiavello, 2003; Lois, 2006; Sarmento, 2007 e 2009; Barroso, 2007;Bello, 2007; Moreira, 2008; Agra, 2008; Streck, 2008, p. 285-286; Maia, 2009; Cambi, 2009; Kim, 2009;

    Schiavello, 2003; Lois, 2006; Sarmento, 2007 e 2009.

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    interpretação “evolutiva” ou “larga” nas suas decisões, desde que isso fosse jus-tiicado pelo material normativo pertinente.24

    b. Do ponto de vista da inalidade, esses argumentos objetivam justiicar

    a opção a favor certa interpretação em detrimento de outras. Por isso, podemser considerados como meta-argumentos ou argumentos de segundo nível.25 Argumentos de teoria do direito são também utilizados como expedientes retó-ricos, por exemplo, invocando o caráter “justo” de certa decisão sem especiicarcritérios e fundamentos para tanto. Em alguns casos, são mesmo vazios de con-teúdo, por exemplo, quando se airma que deve-se decidir conforme o “espírito”,mas sem esquecer a “letra” constitucional.

    Encontramos os seguintes argumentos de teoria do direito.

    4.2.1. Argumentos neoconstitucionalistas- O constitucionalismo fraternal como opção teórica impõe a inclusão de

    grupos discriminados com base em visões pluralistas de convivência com a di-versidade. Min. Ayres Britto, p. 632.

    - Sabe-se que é impossível determinar o que é justo. Mesmo assim, casoscomo o presente, impõem encontrar a solução justa. Min. Luiz Fux, p. 685.

    - A visão pós-positivista identiica “um novel princípio” constitucional, queconsiste no dever estatal de tutelar minorias discriminadas. Min. Luiz Fux, p.689.

    - “A largueza dos princípios fundamentais” impõe interpretar normas con-cretas e excludentes de maneira que permita tutelar direitos de todos (“inter-pretação conforme da regra em foco segundo a norma constitucional entendidanuma largueza maior”). Min. Cármen Lúcia, p. 698.

    - As normas constitucionais devem ser interpretadas levando em considera-ção, além da letra, “o espírito que se põe no sistema”. Min. Cármen Lúcia, p. 699.

    - A letra do art. 226 Constituição não pode “matar o seu espírito”, discrimi-nando os homossexuais. Min. Ayres Britto, p. 653.

    - A violação de princípios constitucionais é mais grave do que a violação deregras. Por isso, os princípios devem dar sentido às regras e permitir contornar“o óbice gramatical”. Min. Marco Aurélio, p. 821.

    - É permitida “certa criatividade dos juízes” na interpretação, em parti-cular quando há lacunas e para adaptar o texto às mudanças históricas. Masisso não pode ocorrer contra o sentido do texto interpretando. Min. RicardoLewandowski, p. 712-713.

    24  Dimoulis, 2006; Dimoulis e Lunardi, 2008; Ávila 2009; Pozzolo, 2006 e 2006a.

    25 Cf. Damele, 2011, p. 92.

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    - Não é permitida interpretação de lei conforme a Constituição que contra-rie a letra do dispositivo interpretado. Por isso não pode ser dada interpretaçãoconforme a Constituição do artigo 1.723 do Código Civil como autorizador da

    união homoafetiva. Min. Gilmar Mendes, p. 706.4.2.2. Argumento dos precedentes judiciais

    A necessidade de preservar a segurança jurídica enquanto inalidade dosistema jurídico torna comum a invocação dos precedentes judiciais paramanter a coerência do sistema de decisões judiciais e também para permitira previsibilidade de futuras decisões. Trata-se de um argumento de teoria dodireito que apresenta alto risco, pois não raramente encontram-se precedentescontraditórios.26

    Esse argumento é amplamente utilizado nessa decisão, observando osMinistros que maneira consensual que a jurisprudência brasileira já atribuiuefeitos jurídicos a uniões homoafetivas, dando-lhes reconhecimento em váriosde seus aspectos. Min. Luiz Fux, p. 681. Min. Cármen Lúcia, p. 704. Min. JoaquimBarbosa, p. 726. Min. Gilmar Mendes, 784-786. Min. Celso de Mello, p. 839-840.Min. Cezar Peluso, p. 875.

    4.3. Argumento de teoria da jurisdição constitucional - funçãodo Tribunal Constitucional

    Uma forma de argumentar utilizada nessa decisão consiste na invocaçãoda função do Tribunal enquanto elemento central da jurisdição constitucional.Considera-se que sua função é delimitar o signiicado e, eventualmente, deter-minar as inconstitucionalidades do texto em discussão. Podemos constatar autilização desse argumento nas seguintes referências:

    - Cabe ao STF exercer função contramajoritária e garantir direitos de mi-norias oprimidas e vítimas de preconceitos. Min. Luiz Fux, p. 668. Min.Joaquim Barbosa, p. 724. Min. Gilmar Mendes, p. 778. Min. Celso de Mello,p. 845-850.

    - Cabe ao STF ser guardião da Constituição e preservar direitos afetadospelo Estado ou por particulares. Min. Luiz Fux, p. 668. Min. Celso de Mello,p. 852.

    - Cabe ao STF acompanhar a evolução social enquanto intérprete maior dodireito, cuja decisão tem efeitos que transcendem o caso. Min. Luiz Fux, p.692.

    26  “Não há no Brasil um sistema de precedentes organizado. A citação de casos, quando ocorre, não buscareconstruir um padrão de argumentação relevante para o caso a ser decidido. Os casos são citados em

    forma de acúmulo para reforçar a autoridade de quem está proferindo a sentença”. Rodriguez, 2013.

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    - Cabe à Corte constitucional atuar como legislador positivo, substituindo olegislador omisso. Min. Gilmar Mendes, p. 729. Min. Ricardo Lewandowski,p. 746. Min. Celso de Mello, p. 868.27

    - Cabe ao tribunal constitucional representar argumentativamente os ci-dadãos em paralelo à representação política pelos demais poderes. Min.Gilmar Mendes, p. 749.

    - O STF possui “o monopólio da última palavra” em temas constitucionais.Min. Celso de Mello, p. 870.

    Essa maneira de justiicar as decisões do STF possui evidente caráter retó-rico, objetivando reforçar a legitimidade da decisão com invocação da teoria dajurisdição constitucional, justiicando também eventuais interpretações polê-micas ou contrárias a evidências textuais.

    5. RESULTADOS OBTIDOS

    Sacralidade e Heresia na visão do Supremo Tribunal Federal. Observa-se umparadoxo. Na opinião unânime e constante do Supremo Tribunal Federal, váriasvezes reproduzida nessa decisão, o texto constitucional é visto como supremoe inviolável, logo sagrado, cuja guarda cabe aos próprios Ministros enquantorepresentantes supremos do Poder Judiciário. Mas ao mesmo tempo, o textoconstitucional é visto como óbice para se chegar a soluções satisfatórias, sen-do que algumas vezes airma-se que pode “matar” o espírito da Constituição.28 

    Muitos Ministros questionam a vontade do pequeno grupo de pessoas que re-digiu a Constituição. Será que esse grupo é capaz de representar a vontade dopoder constituinte? O Supremo Tribunal Federal parece duvidar, adotando in-terpretações “livres” e “alternativas”. São interpretações “heréticas” se foremcomparadas com o texto constitucional. Essa dualidade na argumentação fazdos magistrados ieis guardiões do texto originário e também heresiarcas.

     Argumentos retóricos. Muitos dos argumentos apresentados pelo SupremoTribunal Federal têm a função de justiicar a decisão perante a sociedade. Issoé claro nos argumentos neo-constitucionalistas com suas referências à “justiça”,ao “espírito do texto” ou ao constitucionalismo fraternal. O mesmo vale para asmenções na função do STF enquanto guardião da Constituição que objetivamjustiicar atuações ativistas. Os Ministros abandonam a tecnicidade jurídica eargumentam para um auditório não especializado, utilizando argumentos comalta carga valorativa para atender anseios populares.

    Sincretismo metodológico. O sincretismo pode ser deinido como junção dedoutrinas de diversas origens. Os Ministros utilizam argumentos construídos

    27  O Min. Celso de Mello se refere a legítimas “práticas de ativismo judicial”, p. 868.

    28  A letra do art. 226 Constituição não pode “matar o seu espírito”, discriminando os homossexuais. Min.

    Ayres Britto, p. 653.

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    com base em variados métodos jurídicos, sem se preocupar em seguir determi-nado padrão. O sincretismo nesse caso indica a despreocupação com o rigor daargumentação jurídica.

    Contradições entre votos que utilizam o mesmo argumento. Constatamos issocom maior clareza no emprego do argumento histórico (vontade do constituin-te). Os ministros se contradizem, atribuindo ao constituinte tanto a intenção dereconhecer qualquer união afetiva, independentemente do texto por ele redigi-do, como a intenção de excluir as uniões do mesmo sexo com base em debatesna Assembleia Constituinte. Contradição semelhante encontra-se nos argumen-tos de fato. Alguns Ministros invocam a realidade de uniões heterossexuais paralamentar que o legislador não lhes deu reconhecimento e outros para conside-rar que esse fato real obriga o Judiciário a oferecer reconhecimento jurídico.

    O mesmo ocorre com os argumentos sistemáticos utilizados tanto para sus-tentar a tutela constitucional de uniões do mesmo sexo, como o contrário. Viade regra, argumentos de igualdade não oferecem respostas conclusivas. Emmuitos casos a Constituição discrimina certas categorias, apesar da igualdadeontológica de sua situação ou função. O trabalhador doméstico possui menosdireitos dos trabalhadores de empresas (art. 7° § único), apesar de não haverdiferença ontológica entre o trabalho de quem cuida da limpeza de um hotel oude uma residência particular. As menções genéricas não comprovam que a CFconsiderou iguais todas as uniões afetivo-familiares.

    Divergente concordância. Já indicamos que houve quatro opiniões diferentessobre o tratamento jurídico da união de pessoas do mesmo sexo. Três Ministros29 optaram pela solução n° 4 e os demais por uma versão incoerente da soluçãon° 3. Além disso, os votos dos Min. Joaquim Barbosa e Luiz Fux divergem, emalguns pontos, da maioria. Logo só houve plena concordância de quatro entre osnove Ministros que votaram.30 Mas essas divergências não impediram chegar auma decisão unânime. Isso indica que a fundamentação constitucional e o rigorargumentativo cedem diante da busca por um resultado, tido como satisfatóriodo ponto de vista político.31

    A maioria dos ministros utilizou a interpretação conforme a constituição,mas não tematizou (e muito menos justiicou) a ampliação do objeto dessatécnica de controle de constitucionalidade. Como interpretar o art. 1.723 doCódigo Civil de maneira contrária à sua letra que é praticamente idêntica aoart. 226 § 3° da Constituição e alegar que isso constitui interpretação conforme

    29  Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Gilmar Mendes.

    30  Marco Aurélio, Celso de Mello, Cármem Lucia, Ayres Brito.

    31  Cf. as observações de Rodriguez, 2013: “A irrelevância da fundamentação para a decisão inal podecontribuir (...) para aliviar o peso político da decisão, deixando o espaço aberto para a contínua discussão

    do tema pela esfera pública”.

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    a Constituição? Isso só seria possível admitindo, primeiro, que a interpretaçãoconforme possa mudar a letra das leis interpretadas32 e, segundo, que algumasnormas constitucionais são superiores às demais. Com a exceção da referên-

    cia do Min. Marco Aurélio à superioridade dos princípios constitucionais, osMinistros evitaram se referir a esses pressupostos teóricos de sua opinião.

    Saturação probatória. Nessa decisão argumenta-se com a realidade socialde uniões de pessoas do mesmo sexo, como se isso fosse um fato notório, dis-pensando provas. Com a exceção da menção de um dado estatístico, as referên-cias não se baseiam em comprovações. Tal comprovação seria necessária não sópara aferir as formas concretas, a função social, a duração e outros dados sobreas uniões de pessoas do mesmo sexo, comparando-as àquelas de sexo diferente,como também para veriicar a postura da sociedade perante a homoafetividade.

    Se, a título de exemplo, uma pesquisa empírica comprovasse que uniões de pes-soas do mesmo sexo costumam ser mantidas em (relativo) sigilo e a maioria dasociedade as reprova, isso invalidaria o argumento da interpretação teleológicacom base na evolução social. Sem base empírica sólida não é possível avaliar amaioria das questões constitucionais. Observe-se que essa deiciência proba-tória contrasta com outras decisões recentes, nas quais o STF utilizou amplomaterial empírico, recorrendo a audiências públicas e admitindo amici curiae

    6. BIBLIOGRAFIA

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    32 Essa possibilidade foi criticada no voto do Min. Gilmar Mendes (p. 706).

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