Diogo de Figueiredo Moreira Neto- Reinstitucionalização da Ordem Econômica no Processo de...

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REINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO* DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO** Uma apreciação sobre a reinstitucionalização da ordem econômica, pressupõe uma posição doutrinária referencial a respeito de certos tópicos impulsores das mudanças, como sejam, entre outros, a privatização, a vocação do Estado contem- porâneo e, destacadamente, a globalização. Sustento que globalização descreve hoje um fenômeno econômico, social e político, com causas estruturais que desconhecem fronteiras e que vai muito mais além da mera reversão da saturação dos espaços de atuação da sociedade por parte do Estado, ou seja, de uma simples devolução de escolhas do setor público ao privado. E porque esse fenômeno provoca uma inelutável transformação estrutural qua- litativa nas sociedades e em suas expressões políticas contemporâneas, é que sua natureza necessita ser cuidadosa e competentemente analisada para que possa ser compreendida, como condição de êxito das reformas político-institucionais que estejam ou venham a ser empreendidas em nosso, como em qualquer outro país. Esse processo de transformação foi decerto provocado por uma constelação de causas, mas, dentre elas, é sobressalente a revolução tecnológica, plenamente defla- grada com a Segunda Guerra Mundial, que vem mudando o homem, a sociedade e o próprio planeta. Na economia, as inovações introduzidas nos sistemas de produção tornaram obsoleto o modelo fordista, que havia produzido a Segunda Revolução Industrial e, por isso, servido de base à estruturação tanto do Welfare State, de um lado, como do Estado Socialista, do outro. O modelo fordista voltava-se à organização da produção em massa, obtida com mecanização crescente, incremento do poder aquisitivo dos assalariados em função da produtividade e assentada na estabilidade do lucro e na plena utilização dos equipamentos e da mão-de-obra, compatibilizando, nesse quadro, a produção em * Comunicação do autor em painel sobre Regulamentação da Ordem Econômica, no XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, em 22 de maio de 1966. ** Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Diretor do Instituto Atlântico. R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 204: 135-144, abr./jun. 1996

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Artigo da Revista de Direito Administrativo - FGV/Rio de Janeiro.

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REINSTITUCIONALIZAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA NO PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO*

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO**

Uma apreciação sobre a reinstitucionalização da ordem econômica, pressupõe uma posição doutrinária referencial a respeito de certos tópicos impulsores das mudanças, como sejam, entre outros, a privatização, a vocação do Estado contem­porâneo e, destacadamente, a globalização.

Sustento que globalização descreve hoje um fenômeno econômico, social e político, com causas estruturais que desconhecem fronteiras e que vai muito mais além da mera reversão da saturação dos espaços de atuação da sociedade por parte do Estado, ou seja, de uma simples devolução de escolhas do setor público ao privado.

E porque esse fenômeno provoca uma inelutável transformação estrutural qua­litativa nas sociedades e em suas expressões políticas contemporâneas, é que sua natureza necessita ser cuidadosa e competentemente analisada para que possa ser compreendida, como condição de êxito das reformas político-institucionais que estejam ou venham a ser empreendidas em nosso, como em qualquer outro país.

Esse processo de transformação foi decerto provocado por uma constelação de causas, mas, dentre elas, é sobressalente a revolução tecnológica, plenamente defla­grada com a Segunda Guerra Mundial, que vem mudando o homem, a sociedade e o próprio planeta.

Na economia, as inovações introduzidas nos sistemas de produção tornaram obsoleto o modelo fordista, que havia produzido a Segunda Revolução Industrial e, por isso, servido de base à estruturação tanto do Welfare State, de um lado, como do Estado Socialista, do outro.

O modelo fordista voltava-se à organização da produção em massa, obtida com mecanização crescente, incremento do poder aquisitivo dos assalariados em função da produtividade e assentada na estabilidade do lucro e na plena utilização dos equipamentos e da mão-de-obra, compatibilizando, nesse quadro, a produção em

* Comunicação do autor em painel sobre Regulamentação da Ordem Econômica, no XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, em 22 de maio de 1966. ** Procurador do Estado do Rio de Janeiro e Diretor do Instituto Atlântico.

R. Dir. Adm., Rio de Janeiro, 204: 135-144, abr./jun. 1996

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massa com o consumo de massa l• Para atuar coerentemente com a Segunda Revo­

lução Industrial o Estado passou a desempenhar. como se sabe, um progressivo papel corretivo de disfunções e falhas do sistema. ao mesmo tempo que assumia o encargo de ser o principal agente de desenvolvimento. levando-o, por isso, freqüentemente, a assumir, ele próprio, certas atividades econômicas que considerasse mais vulnerá­veis ou estratégicas, sob a presunção, paradigmalmente aceita, de ter melhores condições de tomar decisões técnica e eticamente superiores para manter fluente a economia. Nos exemplos extremos do modelo socialista, o Estado foi ainda mais além, pretendendo racionalizar todo o processo econômico com a avocação de plena gestão dos meios de produção.

No social, essa expansão da defesa pública refletida demandas insopitáveis despontadas com a multiplicação e a diversificação dos interesses dos grupos sociais emergentes que, para a composição de seus crescentes conflitos, passaram a se socorrer cada vez mais do Estado, obrigando-o a se hipertrofiar para atuar eficien­temente. O estatismo, desse modo deflagrado como panacéia política, surgiu como um movimento não deliberado, como resultado de demandas explosivas por grandes e custosas infra-estruturas e por serviços públicos generalizados e de baixo custo, que não se compatibilizavam com uma lucratividade atraente para o setor privado, isso além, naturalmente, das motivações estratégicas e geopolíticas de cada país, variando desde a mera afirmação de independência do exterior até a estruturação de um complexo industrial-militar.

A partir da Segunda Guerra Mundial o modelo fordista de produção deu sinais de exaustão, principalmente pela incapacidade de absorver as aceleradas mudanças tecnológicas surgidas no período sem rompimento do equilíbrio, ou seja, sem falên­cias e desemprego. Os fatores de produção foram perdendo seu valor relativo à medida em que iam sendo introduzidas novas tecnologias no produto e na produção. Assim, tal como na ciência, de que derivavam, e no capital, que as suportavam, as tecnologias deixavam de ser referíveis a qualquer país em particular, tomando irrelevante o local da produção e, por isso, a própria importância do Estado no processo, ainda porque, com o tempo, os déficits estruturais acumulados tanto pelo Welfare State, como, mais expressivamente, pelo Estado Socialista, já não mais permitiam que eles continuassem a desempenhar o velho papel impulsionador e financiador de outrora.

Essas mudanças repercutiram sobre os conceitos de eficiência produtiva, de­mandando um novo modelo, em que certa "otimização" dos fatores de produção viesse a possibilitar a satisfação máxima de interesses com um mínimo de custos. Uma vez estruturado, as comunicações, encurtando distâncias e ,agilizando as deci­sões, difundiram globalmente o modelo de resposta, com as características que aí estão, pressionando as reformas econômicas.

I LIPIETZ. A. - Audácia. Uma Alternativa para o Século XXI, S. Paulo, Ed. Nobel. 1991. ps. 31 e 32. 2 V. ROSSI. GIAMPAOLO - Pubblico e Privato nel/' Economia di Fine Sec%, in Le Transformazioni dei Diritto Amministrativo, Ed. Giuffré, Milão. 1995. p. 229.

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Ora, transformações de tal vulto refletem-se, inevitavelmente, nos sistemas de poder, conferindo à globalização também um sentido político. Essa repercussão alcançou em cheio os modelos de Constituição vigentes, tal como nos relata MIGUEL ACOSTA ROMERO ao identificar, em 1993, movimentos de reforma constitucional na França, na Argentina, no Peru, na Venezuela, no Paraguai, no Canadá, na Rússia, na Rumânia, no Viet-Nam, na Bósnia-Herzegovina, no México, nas repúblicas surgidas com a desarticulação da antiga Federação Iugoslava e, é claro, no BrasiP.

Mas não apenas na ordem política interna dos países processam-se as acomo­dações institucionais; a globalização vem provocando, acima e além dessa ordem, uma profunda redefinição de unidades políticas de poder em nível internacional. Isso nitidamente se patenteou com a rápida articulação da União Européia, bem como com a criação de vários blocos econômicos regionais, e mais ainda se está consolidando com a recente criação da Organização Mundial do Comércio - OMC, como resultado da Rodada do Uruguai, em 1993, e do Pacto de Marrakesh, em 1994, que vem de submeter a decisões de maioria (e não mais à unanimidade) uma importante produção normativa de reflexos econômicos, capaz de se impor a Estados e a blocos de Estado em matéria aduaneira4

Mas, ainda assim, em todos os os quadrantes em que vêm sendo empreendidas, as reformas constitucionais correm o risco de não serem satisfatórias em termos de rapidez e de profundidade, defasando, em conseqüência, vários países, nessa corrida de modernização. É facilmente observável que o ritmo das transformações em escala global não tem sido acompanhado convenientemente nem pelos atores políticos nem pelas elites jurídicas em vários Estados-Nação, muito embora sejam eles os primeiros convocados para responderem a esses vertiginosos desafios. Ambos, políticos e juristas, parecem apresentar alguma dificuldade em absorver as mudanças de con­ceitos e de métodos de ação, possivelmente por terem sido surpreendidos pelos acontecimentos, sem pleno acesso aos instrumentos analíticos necessários para com­preendê-los, não raro persistindo, por mero conservadorismo, em interpretá-los à luz de seu arsenal analítico-dogmático tradicional. Registre-se que essas mudanças tão profundas, no lapso de menos de uma geração, jamais tinham sido experimentadas no passado, nem mesmo com o Renascimento, a Revolução Francesa, a Revolução Americana e as duas Revoluções Industriais.

Ora, no campo do Direito, tanto ou mais conservador que no Político, isso se revela na dificuldade em identificar as novas fontes de produção do direito, que surgem e se substituem às tradicionais, como espontâneo resultado das novas arti­culações internas e externas de poderes. São fontes diversificadas: heteronômas ou autônomas, impostas ou consensuais, locais, regionais, nacionais, comunitárias ou supranacionais, em caleidoscópias composições, desafiando os juristas contemporâ­neos. O direito se redesenha seguindo as linhas mestras do poder: se descentraliza,

3 ROMERO, MIGUEL ACOSTA - Las Mutaciones de Los Estados en la ÚltitrUl Década dei Siglo XX. Ed. POITÚa, México, DF, 1993, ps. I e 2. 4 Observe-se que as tarifas aduaneiras médias em todo mundo, que nos anos 50 oscilavam em tomo de 40%, reduziam-se a 5% após a Rodada do Uruguai, em 1993.

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se reconstrói, se globaliza e se transconstitucionaliza, sem que disso ainda nos tenhamos dado plenamente conta. Assim, do mesmo modo que o local da produção se tomou irrelevante na economia, o território, base física do poder do Estado, perde importância, enquanto emergem novas esferas de competência transversais e técni­cas, e se definem novos princípios de organização do poder político, como o da subsidiariedade, que se aplica tanto às relações das entidades políticas territoriais de vários níveis quanto entre essas, as sociedades, os mercados e as associações de todo o tip05.

Como a política pressupõe escolhas submetidas a um marco normativo, e como esses quadros de referência jurídica se multiplicam e sofrem mutações, é óbvio que no novo direito a importância de distinções outrora fundamentais, como a entre o público e o privado, vem perdendo consistência.

Não obstante, até mesmo para encetar as necessárias mudanças jurídicas, con­tinuamos a submeter os fenômenos, embora novos e mal conhecidos, a equaciona­mentos ultrapassados, o que freqüentemente nos conduz a falsos dilemas, como, no fundo, se encontra a própria opção dicotômica e apriorística entre o público e o privado, como também, como o mesmo radicalismo, entre o Estado e a sociedade. Tudo, como se existisse sentido em submeter disfunções políticas, econômicas e sociais, que sequer foram suficientemente analisadas e compreendidas, quer a mo­delos novecentistas, quer a métodos de redução que manejavam premissas não mais existentes.

Em vez de insistirem na aplicação de velhos esquemas dogmáticos e ideológicos, preconcebidos em outras diferentes circunstâncias, o político e o jurista necessitam agora de novos instrumentos de análise política, econômica, social e jurídica para definir que tipos de organização têm as melhores condições de chegar a decisões eficientes para satisfazer os interesses da sociedade. Algumas atividades, por certo, existirão, que devam ser exercidas monopolizadamente pelo Estado; outras, por entidades privadas e outras, ainda, por entidades intermédias; o importante é dar-se a escolha adequada para que cada uma delas possa proporcionar o máximo de eficiência social, não importa se através de métodos impositivos ou consensuais de decisão e de execução.

De qualquer sorte, decisões eficientes pressupõem sempre serem opções livres, tomadas com plena consideração de custos e benefícios, de modo a estabelecerem certa proporcionalidade que resulte no máximo de benesses sociais, o que vale dizer, na linguagem da Economia: "maximizar" os resultados.

É preciso sublinhar que essa nova abordagem tem o condão de eliminar a separação entre o mercado e o Estado e, assim, entre as respectivas Ciências, a Econômica e a Política, como tão brilhantemente propôs o nobelista JAMES M. BUCHANAN, ao identificar na origem e no método de cada uma delas um tipo de escolha: na Política parte-se da escolha imperativa e, na Economia, da escolha

5 GALGANO, in 11 diritto nella società pos-industriale. U. de Bolonha, 1991/1992, alocução de abertura do ano acadêmico, apud GIANPAOLO ROSSI, op. cit., p. 235.

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consensual, respectivamente referidas ao provimento de bens coletivos e de bens privados6

É por essa razão que vai perdendo sentido científico e prático acreditar-se na maior ou menor eficiência de modelos abstratos de ação política na ordem econô­mica, sem levar-se em consideração que em qualquer decisão imperativa que venha a ser adotada há que se considerar duplamente: o conhecimento empírico e a con­cordância ou divergência da opção com a vontade real das pessoas envolvidas7

Trata-se, assim, de submeter não apenas ao teste da experiência como ao crivo da legitimidade toda a ação econômica do Estado, começando por sensibilizar o político e o jurista para a unidade que se pode dar aos instrumentos teóricos de análise social destinados à identificação das escolhas públicas mais eficientes e mais justas, sem perder a consciência de que há um limite lógico e prático para a imposição de decisões de Estado, pois dá-se uma inegável relação direta entre progresso e consensualidadeR

, muito embora dava reconhecer-se a indispensabilidade da coação estatal para que se tome possível o funcionamento das três instituições fundantes do direito privado: a propriedade, o contrato e a responsabilidade civil9

• Afinal, como sintetiza o insuspeito KARL POPPER, "não existe mercado livre sem intervenção do Estado" lO.

Toma-se, assim, fácil de se entender por que as ideologias e as doutrinas políticas que exploravam posições maniqueístas, de fácil difusão e inegável sedução pela simplificação da realidade, tão em voga durante grande parte deste século, perdem hoje espaço e vigência. Faltam-lhes tanto fundamentos empíricos quanto legitimantes que possam sustentá-las num mundo pluralista e competitivo, que não se compadece com esquemas rígidos e inflexíveis. Morrem vítimas dos próprios apriorismos, dogmatismo, radicalização e inflexibilidade que fizeram sua popularidade na socie­dade monoclasse. Curioso é que o próprio NORBERTO BOBBIO, não obstante toda sua extraordinária experiência, ao tentar salvar a surrada dicotomia esquerda-direita, produto dessa era, não conseguiu livrar-se da velha herança metodológica ao apontar o igualitarismo como distinção entre as duas antigas correntes ll. Faltou-lhe perceber que nada há mais igualitário, afinal, que a disposição de bens e de serviços baratos e abundantes em qualquer sociedade, que se possa alcançar como resultado de um sistema de produção que se desenha, simultaneamente, pós-capitalista e pós-socia­lista, possivelmente sociocapitalista, como a percebe PAULO RABELLO DE CAS­TR012

6 8UCHANAN, J. M. - Liberty, Markets and State, Wheatsheft Books, Grã-Bretanha, 1982.

7 BUSTAMANTE, JORGE EDUARDO - Desregulación - Entre el Derecho y la Economia, Ed. Abeledo Perrot, B. Aires, 1993, p. 66. 8 A respeito, nosso Direito de Participação Política, Ed .• Renovar, Rio de Janeiro, 1992.

9 BUSTAMANTE,J. E., op. cit., p. 10.-10 POPPER, K., La /ezione di questo secolo, Veneza, 1992. p. 32. 11 BOBBIO. N .• Direita e Esquerda. Unesp. S. Paulo. 1995. 12 CASTRO. P. R .• in A Reengenharia do Estado Brasileiro. Ed. RT .• S. Paulo, p. 49.

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Do mesmo modo que as doutrinas e ideologias do passado nada têm a ver com as novas realidades, é preciso reconhecer também que o direito tem envelhecido mais rapidamente que no passado. As novas figuras jurídicas, derivadas de um contexto de globalização progressiva já não mais se enquadram nas caleidoscópicas definições do público-privado positivadas nos distintos países do mundo, de modo que, para lograr uma necessária e eficiente disciplina uniforme para institutos aná­logos, que não obstante se apresentam tão diferentes e irreconciliáveis nos vários ordenamentos jurídicos, quer sejam os de origem continental européia, quer os de origem anglo-saxônica, vem se tornando necessário definir um novo referencial, desvencilhado das categorias formais, que já se convencionou chamar de "público substancial" , uma noção transversal em plena evolução na Comunidade Européia e utilíssima para a atuação conjunta de blocos de países e organismos internacionais 13 •

É preciso considerar que nesse movimento de diversificação em curso nas fontes jurídicas registra-se, por certo, uma expansão do privado, mas, não, necessariamente, uma contração do público. Isso é mais evidente nos serviços públicos, que deixam de ser gestionados pelo Estado para serem efetivamente por ele regulados.

Com a absorção da gestão dos serviços públicos pelo Estado, típica da era do Welfare State, tinha ocorrido uma coincidência entre gestão e regulação que acabava por submeter decisões que deviam ser tomadas em favor dos interesses primários dos usuários, aos interesses secundários das empresas estatais, quando não de suas expressões corporativas. Assim, por paradoxal que pareça, muitas vezes, privatizar as entidades estatais é publicizar o trato dos interesses gerais envolvidos.

Apenas este exemplo dá-nos conta de quanto impreciso é referir-se à desesta­tatização como "privatização".

É mais importante, ainda no exemplo dado dos serviços públicos, que a regu­lação seja pública do que sua propriedade ou, mesmo, sua gestão.

Já se vê, pelo exposto, que globalização também deve ser entendida nesses termos. E é ainda sob essas premissas que propõe-se o exame crítico das instituições juspolíticas interferentes na economia, para que se possa avançar prospectiva e conclusivamente a respeito da adequabilidade e suficiência das reformas empreitadas para anteciparem-se às crises previsíveis l4

• O próprio conceito, cunhado recentemen­te, de "Constituição Econômica" , embora tenha logrado rápido e retumbante trânsito acadêmico, parece estar também passando da moeda, remanescendo apenas na lin­guagem dos últimos baluartes juspositivistas, que ainda insistem em submeter a uma rígida geometria constitucional esses fenômenos extremamente dinâmicos, como o são os da economia em progressiva globalização.

Torna-se hoje cada vez mais evidente que, na economia, do mesmo modo que nos campos científico e tecnológico, há risco em em passar dos princípios no texto das Constituições, só cabendo especificar preceitos no indispensável para fixar alguns poucos institutos autorizativos da intervenção do Estado em defesa do mercado agredido. As Constituições que descem a detalhes e multiplicam preceitos interven-

13 ROSSI. G .. op. ât .. p. 241. 14 A alusão é ao tema geral do XVII Congresso Brasileiro de Direito Constitucional.

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tivos tornam-se rapidamente obsoletas, quando não inconvenientes e obstrutivas do progresso. Os preceitos mostram-se vantajosos apenas quando se torna necessário reduzir o campo de discricionariedade do legislador ordinário quando este se apre­sentar demasiadamente dilatado a partir do enunciado dos princípios.

A pouco e pouco essa discricionariedade desloca-se do campo puramente polí­tico para o técnico, à medida que o fracasso das opções apriorísticas, como no caso das ideológicas, demonstra sua visceral irrazoabilidade.

Afinal, decisões que durante tanto tempo foram consideradas aparentemente "boas" podem resultar nocivas para a sociedade, do mesmo modo que decisões aparentemente" más" estariam aptas para concorrer efetivamente para o benefício geral. De qualquer modo, "boas" ou "más" , o que se toma cada vez mais inadmis­sível é que as congele nas Constituições, anquilosando opções que necessitam de constante reverificação de sua utilidade e de sua legitimidade, o que só é possível pela via legislativa ordinária.

Com efeito, tem-se como fato histórico, reconhecido e sublinhado em particular pelo insigne MAURICE DUVERGER, que, com a exceção dos Estados Unidos da América, cuja Constituição ultrapassou dois séculos, na maior parte dos países do mundo a regra tem sido a substituição de uma Constituição obsoleta por uma nova, à medida que a antiga perde sua vigência real, como, apontando o autor como exemplos entre alguns países importantes, foi o caso da França (14 Constituições), do Brasil (8 Constituições), da Argentina (3 Constituições), da Colômbia (12 Cons­tituições), da antiga União Soviética (6 Constituições) e do México (5 Constitui­ções) 15.

Ora, o que a recente teoria da escolha pública pôs à disposição das Ciências Política e do Direito vem a ser um novo instrumento de análise mais apto para avaliar o impacto das decisões públicas sobre o seu destinatário final, o povo, do mesmo modo que esse instrumental tão bem já tem servido para avaliar a qualidade das decisões privadas consideradas em seu impacto sobre os atores econômicos. Tudo se baseia na idéia central de que sempre existe possibilidades de aprimorar quaisquer escolhas políticas para melhorar as prestações públicas do Estado, o que inclui, é claro, as escolhas interventivas que excepcionalmente se deva fazer na ordem eco­nômica; essas, enfim, como quaisquer outras, submissíveis a critérios de "maximi­zação de resultados" .

Além disso, o próprio conceito de eficiência das escolhas interventivas passa a exigir séria reconsideração, ao se reconhecer afinal que, ao cabo de qualquer exaus­tivo processo de intervenção econômica que venha a ser deflagrado pelo Estado, as condutas humanas se acomodam às próprias regras interventivas, ajustando-se per­versamente, de modo que alguns acabam por tirar vantagens da mudança coacta introduzida. Em outros termos: muitas vezes, para impor uma correção aprioristica­mente considerada boa, o Estado acaba por transferir aos mais espertos, riquezas que normalmente não auferiram no mercado em regime de competição. A médio

15 DUVERGER, M. - Les Constitutions de la France, Presses Universitaires de France, Paris, 9i ed., 1971,p.5.

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prazo, portanto, ninguém regula nada e só piora tudo. A única saída é aflexibilidade para promover os ajustes e as correções com oportunidade.

Finalmente, hoje, mais que ontem, graças a fenômenos como a ampliação da consciência cidadã, a definição dos direitos coletivos e difusos, a abertura da parti­cipação política e, sobretudo, a introdução do consensualismo como opção de ad­ministração pública, a insistência valorativa se concentra na proporcionalidade entre aquilo que o Estado demanda da sociedade o que a ela devolve em forma de serviços, o que toma insuportáveis e inadmissíveis as deseconomias estatais, não só pelos' seus efeitos danosos diretos sobre os contribuintes, como pelos efeitos perniciosos contaminatórios indiretos sobre todo o mercado.

Nessas circunstâncias,. considerando em particular o caso brasileiro, deve-se reconhecer que tanto as reformas constitucionais já empreendidas como aquelas pretendidas, ainda se apresentam extremamente tímidas e conservadoras. Aquelas empreendidas até o momento, no máximo, servirão para afastar durante algum tempo o proceloso cenário que nos aguardaria a curto prazo se se mantivesse a economia totalmente tolhida e enrijecida pelos antiquados instrumentos de intervenção econô­mica que remanesceram e até se multiplicaram no texto original da Constituição de 1988. Todas essas reformas, necessário é que se advirta, poderão ser insuficientes para evitar um indesejável colapso do plano real, com suas nefastas conseqüências, se não se solucionar problemas cruciais como, desde logo, o do déficit público.

Por outro lado, a inserção do País na economia global, que será a solução segura e duradoura para a recapitalização e a atualização tecnológica, necessita, na verdade, muito mais do que algumas correções superficiais sobre os monopólios da União. Abundam amarras econômicas nas quarenta e uma formas de intervenção previstas na Constituição de 1988, sendo que, na modalidade regulatória, ascendem a vinte e oito tiposl6.

Assim, paradoxalmente, enquanto nos faltam quadros regulatórios modernos para as concessões de serviços públicos, sobejam regulações estatais antiquadas, inúteis e redundantes, quando não nefastas, sobre a produção, os transportes, o comércio exterior e, sobretudo o setor laboral, contribuindo para exacerbar o .. custo Brasil" além dos riscos empresariais razoáveis.

Com efeito, julgado em termos de atratividade de capitais e de tecnologia, o modelo econômico constitucional de 1988 é totalmente obsoleto. Isso é extensivo ao sistema de encargos fiscais que recaem sobre a produção, com sua pletora de tributos e contribuições, não raro pleonásticos, aos sistemas de seguridade social, falidos a curto prazo, e também à administração pública, esse vasto e poluído estuário de erros, no qual se acumularam vícios paternalistas e cJientelistas de um século, para tomá-Ia paquidérmica e tanto cara quanto ineficiente.

Tome-se, afinal, para exemplificar, essa perigosa instituição que é o controle estatal de preços; esse instrumento a que tanto se tem inutilmente recorrido e que não apresenta a seu favor qualquer registro de êxito em nenhum país do mundo. Na

J 6 Ref. à nossa Ordem Econômica e Desenvolvimenro na Constituição de J 988, Ed. APEC, Rio de Janeiro, 1988, p. 63.

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verdade, não se pode vislumbrar como se pretenda atrair investidores de capital e de tecnologia a um Estado que se arrogue tal prerrogativa, qual essa, de ditar preços de mercado, ainda que pretenda fazê-lo a pretexto de "corrigir" excessos. Ora, quaisquer justificativas, por mais "justas" que possam ser apresentadas, continuarão a obedecer aos antigos critérios velada ou escancaradamente emocionais e arbitrários, despidas de validações empíricas satisfatórias para convencer agentes econômicos acostumados a atuar num universo altamente competitivo.

E mesmo sob o aspecto jurídico, considerado sob a ambígua Constituição de 1988, não obstante certas construções cerebrinas, por vezes, reconheça-se, bem­intencionadas, arquitetadas para defender o controle de preços e suas inefáveis "tabelas", não se pode vislumbrar um fundamento constitucional consciente para esse tipo extremo de intervenção no mercado.

Ao contrário, o que se exige é que quaisquer intervenções admitidas, e só poderão sê-lo exclusivamente em nível constitucional, por excepcionais aos princí­pios econômicos adotados, devendo ser expressas de modo claro, direto e inequívoco, tal como se faz, de resto, com as demais hipóteses de intervenção constitucionalmente previstas, sendo que o controle de preços, que se pretenderia implícito, não se enquadra, nem forçada nem obliquamente, entre os 28 tipos de intervenção regula­tórias existentes 17.

O que há, e aí se tem um nítido modelo de dispositivo expresso e inequívoco, é o permissivo constitucional de intervir em caráter sancionatório - e não regula­tório - na hipótese de abuso do poder econômico, no caso, caracterizado pelo aumento arbitrário de lucros. Essa intervenção, porém, distintamente na regulatória, é concreta e não abstrata e geral, devendo ser aplicada individualmente sobre o infrator do preceito e, por isso, sempre dependente da observância do devido processo legal em cada caso. Sua finalidade, acrescente-se, não é disciplinar preços, mas coibir o aumento arbitrário dos lucros, o que, por certo, repercute sobre preços, mas, distintamente, só pode ser considerado casuisticamente.

Isso não afasta, por certo, o monitoramento de preços por parte do setor público, atividade distinta e indispensável para detectar-se quando a elevação de preços no mercado possa indicar um aumento arbitrário de lucros.

Esse exemplo, colhido no arsenal constitucional de intervenções regulatórias é bem indicativo da confusão ora reinante a respeito do sentido de alguns institutos do Direito Econômico e da necessidade de redefini-Ios à luz dos instrumentos analíticos modernos e de proposições empíricas deles derivadas, rechaçando-se, definitivamente, as decisões ditadas por preconceitos doutrinários e ideológicos, quando não e quantas vezes por interesses subalternos, o que também, afinal, .mos­tra-se bem revelador das dificuldades a serem vencidas para a reinstitucionalizaçlo necessária no processo de globalização.

Com efeito, a reinstitucionalização da ordem econômica na linha do processo de globalização é uma etapa muito difícil para os países que não têm tradição de

17 Ref. à nossa Ordem EcorWmica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, Ed. APEC, Rio de Janeiro, 1989, p. 63.

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livre empresa e de livre concorrência equilibradas e que hoje tentam remover de cima de seus respectivos mercados uma montanha de regras interventivas, invaria­velmente arrostando poderosos interesses conservadores, não raro autodenominados, paradoxal e curiosamente, de "progressistas".

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