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DIREITO, TECNOLOGIA E CULTURA

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  • 1. DIREITO, TECNOLOGIAE CULTURA

2. ESTA OBRA LICENCIADA POR UMA LICENACREATIVE COMMONSAtribuio Uso no-comercial Compartilhamento pela mesma licena 2.0 Voc pode:- copiar, distribuir, exibir e executar a obra; - criar obras derivadas.Sob as seguintes condies: Atribuio. Voc deve dar crdito ao autor original. Uso no-comercial. Voc no pode utilizar esta obra com finali- dades comerciais. Compartilhamento pela mesma licena. Se voc alterar, trans- formar ou criar outra obra com base nesta, somente poder dis- tribuir a obra resultante sob uma licena idntica a esta.- Para cada novo uso ou distribuio, voc deve deixar claro para outros os termos da licena desta obra.- Qualquer uma destas condies pode ser renunciada, desde que voc obte- nha permisso do autor.Qualquer direito de uso legtimo (ou fair use) concedido por lei ou qualquer outro direito protegido pela legislao local no so em hiptese alguma afe- tados pelo disposto acima. 3. RONALDO L E M O S DIREITO, TECNOLOGIAE CULTURA 4. SUMRIO Introduo 7 Modelo de anlise 151 O Digital Millenium Copyright Act: a responsabilidade dos provedores e o contedo na rede 31 Mapeamento do problema 31 Responsabilidade dos provedores de servios na internet: comparao entre o DCMA e as propostas do direito brasileiro 33 As normas propostas no Brasil 36 A responsabilidade dos provedores de acordo com o DCMA 49 Sntese conclusiva 632 Desafios e transformaes da propriedade intelectual 65 Copyright: o caso Microsoft e os velhos modelos na nova realidade 67 Copyleft: software livre e a possibilidade de transformao construtiva da propriedade intelectual 71 Comentrios finais 773 Alm do software livre: a revoluo das formas colaborativas 79 Aspectos jurdicos dos modelos colaborativos: o Creative Commons 82 Tipos de licenas do Creative Commons e modo de utilizao 85 Efeitos prticos 89 Em sntese 91 5. 4 A regulamentao da internet no Brasil 93 A idia de regulamentao da internet no Brasil e as possibilidades de inovao 94 A regulamentao da internet ao largo dos canais democrticos 101 Controle do contedo por meio do intermedirio em decorrncia da inexistncia de lei 1345 Modelos globais de propriedade intelectual que no devemos seguir 137 A proteo aos bancos de dados na Europa 138 A proteo dos bancos de dados no mbito da propriedade intelectual global 139 O contorno da proteo jurdica brasileira aos bancos de dados: repdio ao direito sui generis 143 Contratos por clique como forma de expandir direitos da propriedade intelectual 151 Outras peculiaridades dos contratos por clique vis--vis a expanso da propriedade intelectual 154 Em sntese 158 Modificaes no direito penal brasileiro 1606 Um modelo alternativo de remunerao para a propriedade intelectual 167 Incentivos sem monoplios: levando a srio o carter pblico da informao e da cultura 172 Um sistema alternativo de remunerao propriedade intelectual feito pela sociedade civil 182 Um sistema alternativo de remunerao propriedade intelectual e o Brasil 184Concluso 189Referncias bibliogrficas 195 6. INTRODUO Esta obra tem como objetivo investigar os desafios propostos ao direito em decorrncia do advento da internet e da tecnologia digital. A relao entre direito e realidade sempre foi um tema central no pensamento jurdico. Com o desenvolvimento tecnolgico, essa relao torna-se ainda mais importante, na medida em que a rpida mudana que presenciamos no plano dos fatos traz consigo o germe da transformao no plano do direito. Essa transformao se d de duas formas: de modo indireto, quando as instituies jurdicas perma- necem imutveis ainda que os fatos subjacentes a elas se alterem profunda- mente; ou de modo direto, quando o direito se modifica efetivamente perante a mudana na realidade, em um esforo de promover novas solues para os novos problemas.A questo faz-se ainda mais complexa, pois surge posta no mbito da situao apontada pela sociologia do direito como exausto paradigmtica.1 Trata-se do esvaziamento das categorias forjadas pela doutrina jurdica do s- culo XIX, de racionalidade primordialmente lgico-formal, levando ao esgota- mento de modelos analticos exclusivamente jurdicos na soluo de proble- mas normativos. Assim, a ordem jurdica torna-se um conjunto normativo ideal, contraposto a uma desordem real, derivada da incompatibilidade entre tipos de racionalidade distintos que se formam com certa autonomia no mbi- to de diferentes instituies sociais. A dogmtica jurdica, ao tentar conciliar essas incompatibilidades, esses conflitos de interesse e embates entre diferen- tes perspectivas de mundo, acaba valendo-se, para tanto, de uma racionalida- 1 Faria, 2000. 7. 8D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Ade lgico-formal. Por isso, torna-se arremedo de um monlogo sem ouvintes, ou acaba por produzir resultados normativos completamente contrrios ao seu substrato axiolgico. O direito da propriedade intelectual um bom exemplo dessa relao entre a manuteno da dogmtica jurdica e a transformao da realidade. Apesar do desenvolvimento tecnolgico que fez surgir, por exemplo, a tecnologia di- gital e a internet, as principais instituies do direito de propriedade intelec- tual, forjadas no sculo XIX com base em uma realidade social completamente distinta da que hoje presenciamos, permanecem praticamente inalteradas. Um dos principais desafios do jurista no mundo de hoje pensar qual a repercusso do direito em vista das circunstncias de fato completamente novas que ora se apresentam, ponderando a respeito dos caminhos para sua transformao. Nesse sentido, a fundao de um direito da tecnologia ocorre a partir do reconhecimento de que, quanto tecnologia, o cdigo2 a lei, atribudo a Lawrence Lessig em 1999. Lessig apontou que estruturas normativas compos- tas unicamente de linguagem de programao alcanavam importncia muito maior que estruturas normativas tradicionais no mbito da internet e da regulao tecnolgica. Desnecessrio dizer que as categorias dogmticas tradi- cionais sequer vislumbram essa caracterstica normativa contempornea. Esse um exemplo de como o direito se confronta com a necessidade de conside- rar, inclusive em sua dogmtica, estruturas normativas autnomas, estra- nhas a qualquer precedente institucional jurdico. Com isso, a crise de paradigmas antes mencionada revela seus traos. Dois caminhos so identifi- cados, dela decorrentes:so retomados controvrsias e posicionamentos de um passado que se julga- va superado; so propostas questes inditas com base em critrios sociolgicos, polti- cos e econmicos, que, de to interdisciplinares, pem em risco a prpria especificidade do direito.3 2 O termo cdigo utilizado no sentido de Lawrence Lessig, ou seja, o conjunto da infra- estrutura fsica (hardware) e lgica (software) que compe a internet, cujas prprias arquitetura e organizao determinam normativamente o seu funcionamento. Cf. o seguimento desta Intro- duo, onde se especifica o cdigo ou a arquitetura como uma das fontes reguladoras para a internet. 3 Faria, 2000:47. 8. INTRODUO 9 Este livro opta por uma anlise intermediria. Primeiramente, d impor- tncia dogmtica jurdica, sobretudo como forma de evidenciar suas contra- dies em face da transformao social, esmiuando-as em detalhe do ponto de vista prtico. Em seguida, adota a interdisciplinaridade como forma de ver as transformaes do direito como composio de interesses polticos, econ- micos e outros. Depois, ressalta que a ausncia de transformao do direito tambm representa uma composio desses mesmos interesses: ilusrio crer que, se a realidade se transforma e o direito se mantm o mesmo, o direito tambm continua o mesmo.4 Por fim, especialmente em razo do fenmeno da globalizao, o surgimento de um determinado paradigma na composio desses diversos interesses por um ordenamento jurdico estrangeiro acaba afe- tando outros ordenamentos que assim no o fizeram, por meio, por exemplo, de sua fora persuasiva.5 Por isso a necessidade de se entender o funcionamento normativo dessa nova realidade, a partir de novas perspectivas, para a tomada de posio. Por exemplo, preciso entender como a tecnologia se normatiza por meio do seu cdigo, no sentido antes explicitado, de estrutura normativa fundada na pr- pria arquitetura tcnica da tecnologia. De nada adianta o jurista debruar-se sobre o problema da privacidade na internet se ele desconhece o significado normativo da criao de um protocolo como o P3P, que permite inserir, na prpria infra-estrutura das comunicaes online, comandos normativos de filtragem que bloqueiam ou permitem a passagem de contedo, sendo auto- executveis e, muitas vezes, imperceptveis para o usurio. Tambm de nada adianta a regulao brasileira tomar posies, por exemplo, quanto proteo de direitos autorais online se decises anteriores quelas, com impacto mun- dial, esto sendo tomadas diuturnamente nos Estados Unidos, impossibilitan- do a efetividade das decises tomadas nos pases perifricos e afunilando as possibilidades normativas futuras. 4 Cabe, neste momento, at uma referncia teoria tridimensional do direito do prof. Miguel Reale (Reale, 1966, v. 2, p. 115-117). 5 O confronto entre diferentes paradigmas acaba conduzindo a um processo de persuaso, de carter basicamente retrico, motivo pelo qual a justificativa dos critrios e dos motivos das opes cientficas deve, como argumenta Kuhn, ser procurada numa ampla gama de fatores sociais, polticos, econmicos, culturais e at mesmo ideolgicos e no necessria ou obriga- toriamente no crculo estrito das condies tericas e dos mecanismos internos de validao da lgica formal, positivista e racionalista (Faria, 2000:51). 9. 10 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R APor tudo isso, esta obra tem por objetivo mapear os problemas jurdicos advindos do avano tecnolgico e do uso generalizado da internet, para aprofundar criticamente alguns desses problemas, destacando os impactos para as estruturas normativas tradicionais, ressaltando a necessidade de co- nhecer como o cdigo funciona e demonstrando as alternativas reguladoras e institucionais que um pensamento estratgico brasileiro sobre o assunto deve considerar. No por acaso, so usados os termos mapeamento e aprofundamento crtico. A obra adota tambm um mtodo investigativo, proposto pelo prof. Roberto Mangabeira Unger, de mapeamento e crtica, por sua adequao ao problema jurdico novo. A grande limitao da maioria das abordagens feitas at o momento sobre as questes jurdicas relativas tecnologia e internet seu apego demasiado preservao institucional, o que foi denominado por Unger fetichismo institucional. O mtodo proposto por ele busca uma alter- nativa aos mtodos de anlise jurdica tradicionais,6 especialmente quanto a 6 A citao do trecho todo a que se segue (Unger, 1996:130): Give the name mapping to the suitably revised version of the low-level, spiritless analogical activity, the form of legal analysis that leaves the law an untransformed heap. Mapping is the attempt to describe in detail the legally defined institutional microstructure of society in relation to its legally articulated ideals. Call the second moment of this analytic practice criticism: the revised version of what the rationalistic jurists deride as the turning of legal analysis into ideological conflict. Its task is to explore the interplay between the detailed institutional arrangements of society as represented in law, and the professed ideals or programs these arrangements frustrate and make real. Mapping is the exploration of the detailed institutional structure of society, as it is legally defined. It would be nave positivism to suppose that this structure is uncontroversially manifest, and can be portrayed apart from theoretical preconceptions. The crucial point of mapping is to produce a detailed, although fragmentary, legal-institutional analysis replacing one such set of preconceptions by another. The perspective to be adopted is the standpoint of the second moment of the revised practice of legal analysis I am sketching: the moment of criticism. Thus, the two moments connect closely; they are related to use one vocabulary dialectically and to use another internally. Mapping serving the purpose of criticism is an analysis exhibiting the formative institutions of society and its enacted dogmas about human association as a distinct and surprising structure, and, above all, as a structure that can be revised part by part. The established system of such arrangements and beliefs both constrains the realization of our professed social ideals and recognized group interests and gives them much of their tacit meaning. 10. INTRODUO11 enfocar as instituies jurdicas como passveis de constante transformao. Nas palavras do prprio Unger: O termo mapeamento pode ser entendido como uma verso devidamen-te revista de uma anlise analgica sem maiores questionamentos, efe-tuada rente realidade, ou em outras palavras, a forma de anlise jurdicano implica qualquer proposio transformadora para o direito.Mapeamento a tentativa de descrever em detalhes a microestrutura ju-ridicamente definida da sociedade com relao a seus ideais tambm arti-culados juridicamente. O segundo momento desta prtica de anlise deveser chamado de crtica, isto , uma verso revisada do que os juristasracionalistas desprezam como sendo a transformao da anlise jurdicaem conflito ideolgico. Sua tarefa explorar em detalhe as relaes entreos arranjos institucionais da sociedade tais como representadas pelo di-reito, e os ideais ou programas professados por esses arranjos institucionais,na medida em que so frustrados ou cumpridos.Ou como Unger descreveu em outro contexto: Trata-se de adaptar o ensino do direito s prticas caractersticas do ensi-no mais avanado das cincias. Abandonar-se-ia o enfoqueenciclopedstico para ter a experincia de domnio sobre um conjuntode problemas e solues. (...)O aprofundamento seletivo o estudo, dentro de uma disciplina, de con-juntos exemplares de problemas. No propriamente um estudo de ca-sos moda das antigas faculdades de direito e das atuais escolas de neg-cios dos Estados Unidos. a investigao persistente de um tema emtodas as suas ramificaes conceituais e prticas. Dessa forma, o emprego desse mtodo acopla-se premissa sociolgica de crise de paradigmas antes descrita, bem como ao caminho intermedirio proposto como forma de investigao. Ficam de fora esforos enciclopedsticos ou classificatrios de pouca relevncia prtica, j que estes tm valor somente para a dogmtica. O objetivo enfrentar as transformaes do direito em face do desenvolvimento tecnolgico dentro da teoria geral do direito, mas de uma perspectiva de resoluo prtica de problemas, e no de reorganizao lgico- formal de contedos jurdicos de pouca ou nenhuma conseqncia prtica. O critrio para a realizao da crtica proposta leva em considerao caracteres 11. 12D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Ainterdisciplinares como forma de analisar institutos jurdicos do ponto de vis- ta dos interesses econmicos, polticos etc., congregados por ele. Tambm como exemplo, o prprio critrio de aprofundamento dos temas mapeados polti- co, e no se deriva de qualquer preceito lgico-formal.7 Como exemplo dessa abordagem metodolgica, tome-se o direito da pro- priedade intelectual. Este posto em xeque, por exemplo, quando se conside- ra, do ponto de vista da realidade de nossos dias, a proteo a outros interes- ses, tais como a privacidade, a garantia da existncia de espaos pblicos (commons) na rede,8 a liberdade de expresso e a livre concorrncia. Cada um desses interesses demanda formas de proteo jurdica no raramente confli- tantes com as tradicionais instituies da propriedade intelectual, vinculadas a feixes de interesses sociais distintos. Um incremento excessivo quanto aos mecanismos de proteo a ela concedidos traz conseqncias diretas a outros valores jurdicos. Por exemplo, reduz a amplitude do chamado uso legtimo (fair use) de obras intelectuais, afetando valores ligados liberdade de expres- so. Traz igualmente preocupaes quanto garantia da manuteno de espa- os pblicos de uso comum (commons), na medida em que torna o acesso ao conhecimento limitado pelo regime de propriedade e, por conseqncia, con- trolado de maneira privativa (o eterno confronto entre cultura e mercado). Da mesma forma, a proteo excessiva propriedade intelectual traz problemas com respeito livre concorrncia. O direito da propriedade intelectual tem como um de seus objetivos assegurar o retorno de capital do autor/inventor, bem como incentivar o desenvolvimento tecnolgico futuro. No entanto, mui- tas vezes, acaba criando monoplios privados e ineficincias que a anlise ju- rdica tradicional no consegue considerar. Em face dessa mirade de questes, o mtodo de mapeamento e aprofundamento crtico, conjugado com a premissa de esgotamento de paradigmas investigativos, prope um enfoque peculiar. Em vez de preocupar- se com anlises genealgicas ou ontolgicas do conceito de propriedade inte- lectual, forjadas sobretudo no sculo XIX,9 e suas repercusses para a situao 7 Este mtodo segue uma estratgia similar weberiana, explicitada em Weber (s.d.:106). 8 Lessig, 2001. 9 Ver o caso Eldred v. Ashcroft, nos Estados Unidos, em que se questiona a legalidade da ampli- ao do tempo para proteo a direitos autorais de 70 para 90 anos. A Suprema Corte acabou por manifestar-se pela legalidade de tal ampliao, favorecendo os interesses patrocinados por gru- pos de mdia, como a Disney e estdios de cinema norte-americanos. 12. INTRODUO13 atual, esse mtodo prope a identificao dos principais problemas tangveis derivados dessas transformaes em seu contexto social, tecnolgico e jurdi- co, para ento se aprofundar em pontos especficos, almejando explicitar as alternativas institucionais da decorrentes. Se a propriedade intelectual forjada no sculo XIX passa a apresentar srios problemas de eficcia quando se depa- ra com a evoluo tecnolgica, no cumpre apenas ao jurista apegar-se de modo ainda mais ferrenho aos seus institutos como forma de resolver o problema, coisa que a anlise jurdica tradicional parece querer fazer. Cumpre, sim, ver as alteraes que a idia de propriedade intelectual sofre ou poderia sofrer em razo dessas transformaes, enfrentando essas questes de maneira aprofundada, sob pena de se ignorar uma parcela muito grande da realidade. Por isso, se a tecnologia chamada peer to peer, em que um computador com- partilha com outros computadores, tambm conectados pela internet, arqui- vos protegidos por direito autoral, no cabe insistir no modelo de anlise jur- dica tradicional, de procurar no ordenamento jurdico posto as normas jurdicas aplicveis a essa situao, sem qualquer precedente histrico. O que interessa apreender todos os ngulos da questo, no sentido de que, ainda que as normas jurdicas aplicveis sejam identificadas, sua eficcia resta gravemente comprometida por uma impossibilidade institucional do aparato adjudicante de conseguir fazer valer a aplicao de tais normas. Nesse sentido, inevitavel- mente, devem-se considerar as transformaes institucionais necessrias para que tal eficcia seja alcanada, ou considerar se faz ainda algum sentido a manuteno dessas estruturas normativas tradicionais. Em outras palavras, a questo comea a tornar-se relevante quando se inicia a partir do ponto em que a chave se a nova realidade deve adaptar-se ao velho direito ou se o velho direito deve adaptar-se nova realidade. Para tal tomada de deciso, o mtodo de mapeamento seguido de aprofundamento crtico, bem como in- vestigao sociolgica dos interesses circundantes, o que parece ser mais relevante. Ele torna vivel o contato perene com a realidade (mapeamento), seguido de discusso jurdica de valor para a reorientao de tomadas de posio, que conjugue enfoques especficos, como teorias da sociedade, eco- nomia e cincia (aprofundamento seletivo), sem, com isso, perder-se do eixo da eficcia. Em acrscimo, a obra tambm se preocupa com os caminhos brasileiros na relao entre direito e tecnologia. A grande peculiaridade das questes rela- tivas regulao tecnolgica seu inerente carter global. Global refere-se 13. 14D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Acaracterstica intrnseca dos esforos normativos nacionais nesta rea de ne- cessariamente terem de se conjugar com iniciativas alhures. Essa conjugao pode significar cooperao. Nesse sentido, os Estados Unidos adotaram o Di- gital Millenium Copyright Act (DMCA), com impacto em todas as jurisdies do mundo conectadas de alguma forma internet. A adoo desse ato normativo provocou imediatamente a adoo de legislao semelhante ou idntica em outros pases, como a Austrlia, ou o reconhecimento da extraterritorialidade de seus efeitos, por exemplo, na Noruega. Essas relaes podem ser tambm de submisso. Pases como a Rssia condenaram e prenderam pessoas com base na violao do ato normativo, tendo o fato ocorrido fisicamente em terri- trio russo. Outros pases adotaram posies contrrias ao DMCA, como a Coria do Sul, ou mantiveram-se neutros a esse respeito, como o Brasil, ainda que uma admirao velada pelos preceitos do DMCA seja moeda corrente en- tre advogados de propriedade intelectual no pas.10 O que importa, neste caso, que a neutralidade acaba implicando submisso. As disposies do DMCA, que criminalizam a quebra de mecanismos tecnolgicos para a proteo de direitos autorais, como, por exemplo, os cdigos regionais dos DVDs (um DVD comprado nos Estados Unidos no pode ser reproduzido por um aparelho leitor de DVD produzido no Brasil), acabam moldando toda a indstria mun- dial de DVDs de acordo com um formato preestabelecido nos Estados Unidos. Desse modo, uma empresa brasileira eventualmente competindo neste merca- do tem de participar de um jogo cujas regras foram definidas de acordo com interesses especficos que no so os nossos. Por isso, o mapeamento extensi- vo e o aprofundamento crtico aqui propostos visam ao destrinchamento da colcha de interesses que compe a regulao tecnolgica adotada alhures, como forma de dar vazo ao pensamento estratgico nacional nessa rea. Sem co- nhecimento, no possvel tomar posies. Ademais, o direito hoje o campo de batalha em que esto sendo definidas as oportunidades de desenvolvimento tecnolgico para os pases perifricos, bem como a estrutura normativa deri- vada da tecnologia (relao entre as normas tradicionais e o cdigo) e o futuro da liberdade de expresso na internet. 10Ata da Associao Brasileira da Propriedade Intelectual. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2002. Menciona o DMCA como foco dos trabalhos. 14. INTRODUO 15 Modelo de anlise Para efetuar a anlise das questes aqui propostas, so adotadas duas fer- ramentas metodolgicas recentes, desenvolvidas pelo prof. Lawrence Lessig, da Universidade de Stanford, e pelo prof. Yochai Benkler, da Universidade de Yale. A relevncia dessas duas ferramentas metodolgicas propor uma mol- dura terica que permite a anlise de questes ligadas regulamentao11 da internet e da tecnologia digital em funo de suas relaes com os sistemas de comunicao e de informao. Este , alis, o foco deste livro: estudar as rela- es entre as diversas fontes reguladoras e os sistemas de comunicao sociais estabelecidos em meio digital, bem como as transformaes dessas fontes (in- cluindo a lei) em razo do avano tecnolgico.Para isso, este estudo parte da moldura terica e dos pressupostos elabo- rados nesses dois modelos. O primeiro, desenvolvido por Lessig,12 prope uma classificao das fontes de regulao. O segundo, desenvolvido por Benkler, prope uma classificao estrutural dos sistemas de comunicao.Componentes dos sistemas de comunicao H trs camadas sobre as quais os sistemas de comunicao so construdos: a primeira a camada fsica, a segunda a camada lgica e a terceira, a camada do contedo.A comunicao entre pessoas, por exemplo, pode ser descrita de acordo com essas trs camadas. A camada fsica caracterizada pelo aparelho fonador do corpo humano, composto por suas partes produtoras de som (pulmes, msculos, diafragma), vibratrias (laringe), por seus ressonadores (cavidade nasal, faringe, boca), seus articuladores (lbios, lngua, palatos, mandbula) e seus coordenadores (ouvido, crebro).A camada fsica, no entanto, no suficiente para que a comunicao ocorra. preciso a existncia de uma camada lgica, um cdigo compartilha- do por todos os comunicadores. No caso em questo, o cdigo a linguagem, composta de gramtica, com seu lxico, sintaxe e semntica.11Ao longo deste livro, os termos regulao e regulamentao so indistintamente utilizados. 12Lessig, 1999a. 15. 16 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R A Por fim, alm da camada lgica, necessrio haver o contedo, que transmitido sobre as camadas fsica e lgica. O contedo, neste caso, com- posto por qualquer comunicao humana, como uma histria, um relato, uma descrio, uma interjeio etc.Essa mesma estrutura dividida em trs camadas ocorre tambm em siste- mas de comunicao, abrangendo internet e outras modalidades de tecnologia digital. Assim, a internet tambm composta por uma estrutura fsica, lgica e de contedo.A estrutura fsica da internet constituda pelo conjunto de computado- res que a compem e pelos meios fsicos que os interconectam, como fibras ticas, linhas telefnicas, ondas de rdio etc. A estrutura lgica da internet ou o seu cdigo so as inmeras linguagens que fazem com que as partes fsicas possam comunicar-se entre si. Nesta camada, esto includos no s os progra- mas de computador, como tambm protocolos e linguagens compartilhadas entre eles (como o protocolo TCP/IP, base da internet). Aqui se incluem tam- bm os sistemas operacionais, como o sistema Microsoft Windows ou o Linux.A estrutura de contedo corresponde a tudo aquilo que transmitido sobre as camadas fsica e lgica, como um texto, um e-mail, uma msica, um filme, uma mensagem, uma fotografia etc.Diferentemente do sistema de comunicao humano, o sistema formado pela internet e pela tecnologia digital caracteriza-se por estar sujeito a regimes de propriedade e controle em suas trs camadas.Por exemplo, a camada fsica na internet inteiramente sujeita ao regime de controle privado e propriedade privada. Cada computador pertence a uma pessoa ou entidade. Alm disso, as ligaes entre um computador e outro so tambm privadas na maioria das vezes, ou ao menos administradas por uma entidade especfica. Como exemplo, fibras ticas pertencem a empresas de telecomunicao, assim como os fios de cobre da rede telefnica. O espectro radioeltrico, por sua vez, tem suas faixas de freqncia concedidas a operado- res privados, e por eles controladas.O mesmo ocorre quanto camada lgica: seu controle predominante- mente privado. Sistemas operacionais como o Microsoft Windows so de pro- priedade da empresa que os criou. Inmeros outros programas fundamentais para o funcionamento da rede so tambm de propriedade de outras entidades ou outros indivduos. claro que, com o movimento dos commons ou do software livre, comeam a existir pores importantes da camada lgica que se 16. INTRODUO 17 tornam abertas, no sujeitas ao controle de uma entidade especfica. Em todo caso, pode-se assumir que a maior poro da camada lgica privada. Por fim, o contedo transmitido pela rede tambm, em grande parte, controlado por regimes de propriedade, como os direitos autorais, os direitos de marca ou outras formas de proteo propriedade intelectual. A tambm se incluem os contratos, os termos de uso e os contratos por clique, todos confi- gurando-se como instrumentos de controle do contedo que trafega na rede. Esse controle, entretanto, no absoluto. Em cada uma das camadas, exis- tem ainda alguns elementos que se configuram como res commune, isto , bens de todos e, ao mesmo tempo, bens de ningum, no sujeitos ao controle espe- cfico de ningum ou de nenhuma entidade. A doutrina norte-americana de- nomina esses elementos livres commons.13 Os commons sempre estiveram presentes na vida humana ao longo da his- tria, e a vida em sociedade depende profundamente de bens mantidos como tais. Como exemplos de commons podem ser mencionadas as praas, as ruas, os parques pblicos, as praias. Entretanto, o conceito muito mais complexo e abrange tambm, por exemplo, as frmulas matemticas, as receitas culin- rias, as obras intelectuais em domnio pblico, as patentes expiradas, os fatos, a proteo conferida pelas Foras Armadas, a iluminao pblica, os faris etc. O que define se um determinado bem um common no sua possibilida- de intrnseca de compartilhamento por todos, mas sim o regime pelo qual uma determinada sociedade decide lidar com um determinado recurso. O ar o tpico exemplo de bem passvel de compartilhamento por todos, configuran- do-se como um bem no-competitivo: o fato de eu respirar no priva ningum mais da possibilidade de fazer o mesmo, em igualdade de condies. H outros bens no-competitivos, entretanto, que a sociedade decide manter em regime privado, como se ver adiante. Por sua vez, parques, praias, ruas e praas no so passveis naturalmen- te de compartilhamento por todos: se eu me aproprio do terreno de uma praa, aquele terreno passa a pertencer apenas a mim e a mais ningum. Trata- se de bens competitivos. Entretanto, apesar disso, so mantidos em regime de commons. Se algum se utiliza exclusivamente de uma praa, impede que ou- 13Lessig, 2001. 17. 18D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Atras pessoas faam o mesmo. a sociedade, desse modo, que escolhe manter determinados bens, ainda que competitivos, como res commune. Como exemplo de outros bens que possuem a caracterstica intrnseca de serem no-competitivos, de serem res commune por sua natureza, cabe men- cionar as frmulas matemticas, as msicas, as obras literrias, os fatos, os faris martimos e a iluminao pblica. As obras literrias, as msicas e ou- tras obras intelectuais so competitivas apenas na medida em que se materia- lizam em um suporte fsico. De outro modo, no so competitivas. Assim, com o advento da tecnologia digital e da internet, as obras intelectuais perderam seu suporte fsico e passaram a tornar-se cada vez mais bens no-competitivos puros. Enquanto dependem do suporte fsico, so no-competitivos impuros. Quando no dependem dele, aproximam-se de ser no-competitivos puros. Se eu tenho um determinado texto em meu computador, posso copi-lo para outra pessoa sem, no entanto, perder minha cpia do texto. Ao final do processo, tanto eu quanto a outra pessoa teremos o mesmo texto, de modo idntico. O mesmo princpio aplica-se ao conhecimento contido nas frmulas matemticas, ou, ainda, ao benefcio gerado por um farol martimo: no pos- svel excluir naturalmente outras pessoas de se beneficiarem desses bens. Entretanto, a sociedade que decide fazer com que uma parte desses bens no-competitivos no seja tratada como commons. Com isso, a sociedade cria diversos artifcios que trazem uma competitividade artificial a esses bens, que no faz parte da sua natureza. Como exemplo desses elementos que tra- zem uma competitividade artificial, podem ser mencionados os direitos auto- rais. Eles estabelecem um monoplio sobre criaes intelectuais que, de outro modo, seriam livres. Ao mesmo tempo, garantem que, aps o decurso de um determinado perodo de tempo, essas criaes voltaro comunidade de modo livre, tornando-se ento res commune, como de sua natureza, compondo en- to o domnio pblico. Essa anlise dos bens competitivos, no-competitivos e commons, e de propriedade importante para se examinarem as repercusses que cada um desses regimes produz sobre os sistemas de comunicaes na era digital. En- quanto o sistema de comunicao humana composto predominantemente por commons (no nvel lgico, a linguagem e os idiomas no pertencem a nin- gum e, no nvel de contedo, o direito autoral no interfere diretamente no que pode ser expresso pela voz humana), os sistemas de comunicao da internet 18. INTRODUO 19 tornam-se, cada vez mais, compostos por camadas proprietrias,14 uma das questes fundamentais para este estudo. Na medida em que as camadas pro- prietrias predominam, controlando as comunicaes digitais, a sociedade deixa de ter acesso ao elemento mais fundamental para seu desenvolvimento e sua inovao: os commons. Sem commons, impossvel conceber a possibilidade de inovao e desenvolvimento continuados, especialmente porque o principal common em jogo a informao.15Veja-se, por exemplo, o quadro 1,16 que compara a presena de regimes de propriedade ou de res commune em diversos sistemas de comunicao e suas respectivas camadas. Quadro 1TelefoneC amada Praa pblicaEstdio InternetContedoLivre (commons)Livre (commons)Livre (commons)ProprietrioCdigoLivre (commons)Livre (commons)Proprietrio ProprietrioCamada fsica Livre (commons)Proprietrio Proprietrio ProprietrioCom isso, no preciso enfatizar, por ser patente, a dimenso do proble- ma em questo neste livro: os canais pelos quais passa a informao, bem como a prpria informao em si, gradualmente, se tornam privados e reduzem o espao dos commons, fundamentais inovao humana descentralizada. Con- siderando-se o fato de que as comunicaes digitais, cada vez mais, tornam-se mais importantes para a comunicao humana, em comparao com todas as outras formas de comunicao, a questo adquire ainda maior relevncia.Ou na anlise feita por Yochai Benkler, autor desta moldura analtica:17 Estamos fazendo escolhas reguladoras em todas as camadas do ambienteda informao sua estrutura fsica, sua infra-estrutura lgica e a cama- 14 O termo proprietrio, um anglicismo derivado de proprietary, utilizado no sentido de denotar bens que so controlados por regimes de propriedade ou regimes de direito, ou ainda outras formas de controle que os colocam sob a gide de um determinado indivduo ou uma entidade especfica. 15 Lessig, 2001. 16 Esse quadro adaptado de Lessig (2001:25). Foram feitas modificaes para adapt-lo ao contexto explicativo em questo.17 Benkler, s.d. Disponvel em: . 19. 20 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Ada de contedo que ameaam controlar o ambiente informacional na medida em que este se torna cada vez mais central para nossa vida social. Essas escolhas incluem decises sobre o direito da propriedade intelec- tual, que podem fazer com que a propriedade sobre o contedo se torne um fator de reconcentrao. Como exemplo, cito as decises sobre a criao de software e padres a ele conexos, e a regulao da infra-estru- tura fsica disponvel para as comunicaes pela internet, como os servi- os de conexo por cabo em banda larga. Em todas essas camadas, uma escolha errada pode levar reproduo de um modelo semelhante ao da mdia de massa, com todos os seus defeitos, ainda que se tenha em vista um ambiente conectado digitalmente. Evitar que tais erros sejam come- tidos deve ser o foco dos esforos com relao regulao estrutural dos meios de comunicao. (...) atravs de uma participao aberta e equnime que poderemos garan- tir uma democracia discursiva robusta e liberdade de expresso para o indivduo. A seguir, explicita-se o segundo modelo de anlise empregado ao longo deste estudo, consistente nas formas de regulao importantes para a tecnolo- gia digital.Formas de regulao Se as camadas que compem o sistema de comunicao da internet e do meio digital esto sendo cada vez mais controladas, quais so os fatores que regulam esse controle? Em outras palavras, que elementos devemos conside- rar efetivos na regulao da internet? A seguir, discute-se o segundo modelo de anlise deste estudo, desenvolvido por Lawrence Lessig, tratando das formas relevantes de regulao com relao ao avano tecnolgico.18O argumento de Lessig comea no sculo XIX, quando a ideologia liberal dominante se preocupava, sobretudo, com a manuteno e a garantia da liber- dade.19 Conforme a viso liberal clssica, a principal ameaa que se punha liberdade consistia no poder do Estado e na sua capacidade de gerar a lei. 18Lessig, 1999a. 19Lessig cita John Stuart Mill e sua obra On liberty, como paradigma desse pensamento. 20. INTRODUO 21 Entretanto, o foco libertrio de preocupao com a lei, por sua vez, decorre de uma questo metodolgica anterior, que a mesma aplicada para a confeco da moldura analtica aqui empregada.O enfoque liberal clssico na lei decorre da seguinte pergunta: quais so os fatores que efetivamente ameaam a liberdade? No sculo XIX, a resposta a esta pergunta era clara: a lei. Entretanto, na realidade tecnolgica que se pre- sencia hoje, h muito a lei deixou de ser o nico fator que contribui para a maior ou menor liberdade individual, ou para a regulamentao da sociedade da informao. Portanto, se colocarmos a mesma questo hoje quais so os fatores que ameaam a liberdade da sociedade da informao, da internet e da tecnologia digital? , encontraremos, pelo menos, quatro respostas: a lei, as normas sociais, o mercado e a arquitetura ou cdigo.A seguir, descreve-se brevemente cada um desses fatores. Acima de tudo, o argumento aqui traado chama a ateno para o quarto desses elementos, a arquitetura ou cdigo, como um dos mais importantes fatores a ser considera- do atualmente.Por lei, entende-se todo o conjunto normativo estatal, embasado consti- tucionalmente, em suas mais diversas naturezas e categorias hierrquicas. J as normas sociais so no s os usos e costumes, como tambm qualquer postulao normativa compartilhada por comunidades ou inerente a determi- nadas situaes e circunstncias. O mercado o outro fator relevante da regulao, por se tratar do mecanismo predominante de acesso aos bens eco- nmicos. Por fim, por arquitetura, entende-se a estrutura inerente de como as coisas so construdas e ocorrem. Esta ltima torna-se um fator regulador cada vez mais importante na sociedade da informao, como se ver.Esse modelo de anlise que leva em considerao esses quatro elementos pode ser utilizado no somente para compreenso da regulao da internet, mas tambm para o entendimento de qualquer outra pretenso reguladora.Considere-se, a ttulo de exemplo, a regulao da atividade de fumar.20Do ponto de vista legal, h inmeros fatores relevantes que regulam essa atividade. Por exemplo, a lei regula a atividade de fumar proibindo expressa- mente o fumo a bordo de aeronaves.21 Isso tem o efeito direto e imediato de 20Lessig, 1999a:87. 21Lei no 9.294, de 15-7-1996, art. 2o, 2o. 21. 22 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Aimpedir, por fora de lei, que pessoas possam exercer essa atividade enquanto viajam em um avio de carreira, por exemplo. Entretanto, a regulao da atividade de fumar no decorre somente da lei. Ela decorre tambm de normas sociais. Essas normas podem induzir algum a no fumar em veculos outros que aqueles estabelecidos na lei. Por exemplo, passageiros em um veculo privado podem sentir-se constrangidos em fumar, exceto se obtiverem permisso dos demais passageiros que o ocupam. Elas podem tambm induzir o fumante a no praticar essa atividade durante refei- es em companhia de outras pessoas, ou ainda prximo a crianas pequenas. O mercado outro fator que regula a atividade de fumar. Se o preo dos cigarros sobe, menos pessoas tero condies de fumar. Por fim, a prpria arquitetura do cigarro, suas caractersticas intrnsecas, tambm regulam a atividade de fumar. O fato de cigarros terem ou no filtro, por exemplo, levado em considerao pelo fumante na hora de optar por fumar: cigarros com filtro incentivam o fumante a consumir um maior nmero de cigarros do que se houvesse apenas cigarros sem filtro. Ou ainda mais im- portante: o fato de os cigarros conterem nicotina, uma substncia que causa dependncia, influencia diretamente o hbito de fumar. Controlando a quanti- dade de nicotina presente no cigarro, possvel incentivar ou desestimular o fumo. Desse modo, dependendo da prpria arquitetura do cigarro (mais ou menos nicotina, com filtro ou sem filtro), mais ou menos pessoas iro praticar o ato de fumar. Note-se que, de todas as modalidades reguladoras, a lei a que possui a posio mais privilegiada sobre todas as outras. Isso ocorre porque a lei a nica que, por sua prpria natureza, tem a capacidade de regular os demais fatores. Assim, a lei pode regular determinada situao diretamente, ou, ento, pode fazer isso indiretamente, influenciando os outros elementos reguladores para tanto. Ao influenciar esses outros fatores reguladores, a lei acaba influen- ciando tambm o objeto de regulao de um modo geral. Considere-se novamente a atividade de fumar. No primeiro exemplo dado, a lei probe diretamente essa atividade (a bordo de aeronaves). Entretanto, a lei se vale tambm da sua prerrogativa de influenciar os outros fatores na tentativa de regular o fumo. A lei influencia, por exemplo, as normas sociais. o caso da Lei no 10.167, de 2000, que estabelece os critrios aplicveis s comunicaes publicitrias relativas propaganda do fumo. Entre outras disposies, a lei obriga a incluso, em toda propaganda de cigarros, de dizeres como O Minis- 22. INTRODUO 23 trio da Sade adverte: evite fumar na presena de crianas.22 Desse modo, a lei tem por objetivo influenciar as normas sociais que afetam o fumo, na tenta- tiva de reprimir essa atividade. A lei tambm influencia o mercado de cigarros. Graas pesada incidn- cia do Imposto sobre Produtos Industrializados, cujas alquotas so elevadas especificamente quanto ao fumo, os preos dos cigarros aumentam de forma substancial. Este outro modo de fazer com que a demanda por cigarros se torne menor e, assim, restringir a atividade de fumar nos limites jurisdicionais aplicveis. Por fim, a lei pode optar por regular arquitetonicamente a atividade de fumar. o caso, por exemplo, quando a lei regula o limite de nicotina que um cigarro pode conter, ou quando estabelece a proibio da comercializao de cigarros feitos com fumo modificado por meio de engenharia gentica. tam- bm o caso de regulao arquitetnica quando a lei estabelece limites de hor- rio para venda de cigarros, ou limites quanto aos tipos de estabelecimentos que podem comercializar cigarros. Todos esses fatos, pertinentes ou relevantes arquitetura do ato de fumar e influenciados pela lei, acabam tendo impacto sobre essa atividade globalmente considerada. A utilizao da arquitetura ou cdigo como forma de regulao no nova. Napoleo III, em 1853, reconstruiu Paris com amplas avenidas, boulevards e mltiplas passagens, ciente de que a arquitetura antiga da cidade, composta de ruas estreitas, permitia facilmente o estabelecimento de barricadas, possibi- litando que insurreies pudessem controlar a cidade por meio do bloqueio de vias cruciais. Do mesmo modo, vrios pases utilizam a arquitetura para regular a sepa- rao de poderes, por exemplo, fazendo com que o tribunal constitucional no fique na mesma cidade que os demais poderes. Na Alemanha, o tribunal constitucional fica sediado em Karlsruhe e no em Berlim. Na Repblica Tche- ca, em Brno, e no em Praga. A razo manter o tribunal constitucional longe da influncia dos demais poderes, reforando assim sua independncia e difi- cultando presses regulares. Quando se est lidando com questes ligadas tecnologia, informao e internet, importa considerar esses mesmos fatores. Entretanto, um destaque 22Lei no 10.167, de 27-12-2000, art. 3o, 2o. 23. 24 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Aainda maior ao fator regulador da arquitetura ou cdigo fundamental. A lei, por exemplo, exerce controle direto sobre o contedo que trafega pelos canais digitais de comunicao por meio do direito autoral, dos dispositivos penais sobre calnia, injria e difamao, entre outros. Normas sociais tambm fa- zem isso: o envio de mensagens de e-mail com contedo excessivamente gran- de, ocupando muito espao na caixa postal do destinatrio, geralmente cons- trangido pela tica da rede, em alguns casos at mesmo apelidada de Netiqueta.23 Dessa forma, em uma lista de discusses sobre um determinado tema, por exemplo, reforma do Judicirio, evidente que no se deve falar longamente sobre jardinagem, sob pena de violao dessas normas e eventual punio, por meio de banimento, excluso de mensagens e outras. O mercado, igualmente, possui enorme influncia sobre o comportamen- to na internet. Primeiramente, os preos de conexo definem quem tem acesso ou no rede. Imensas reas de contedo, sobretudo, esto sendo cada vez mais e mais fechadas, tornando-se acessveis apenas queles que possuem se- nha e pagam regularmente pelo acesso a elas. Com isso, a rede, originariamen- te livre e acessvel a todos, passa a selecionar que tipo de informao acess- vel a certas pessoas de acordo com critrios mercadolgicos. Para que isso acontea, a arquitetura ou cdigo fundamental. A arquite- tura afeta profundamente a internet e os canais digitais de comunicao. valendo-se dela que se torna possvel a construo de ferramentas e a imple- mentao de mecanismos para o fechamento de contedo na rede. Dependen- do da arquitetura, uma determinada mensagem enviada pode ser interceptada e lida por quaisquer terceiros enquanto trafega at o destinatrio (tal qual um carto-postal), ou pode ser fechada, permitindo que apenas o seu destinatrio possa l-la (tal qual um envelope fechado). o caso, por exemplo, das comu- nicaes com sites de bancos, onde as mensagens trocadas entre o banco e o usurio s podem ser lidas por esses dois plos da comunicao, e no por intermedirios. Isso ocorre no por existir uma lei, uma norma social ou por fatores diretamente atribudos ao mercado. Isso acontece porque a arquitetura da comunicao com o banco diferente da comunicao com outros usurios e, portanto, torna-se confidencial entre as partes graas a um mecanismo tc- 23 Introduo Netiqueta. Disponvel em: . 24. INTRODUO25 nico chamado criptografia, independente da interveno da lei, do mercado ou de normas sociais. Alis, esta uma das principais conseqncias da regulao arquitetnica: ela produz efeitos imediatos, com imensa efetividade, independente dos outros fatores reguladores. Como exemplo de regulao arquitetnica que produz efeitos indepen- dentes da lei com relao tecnologia digital, podem ser mencionados os me- canismos tcnicos empregados para a proteo de DVDs. Conforme j men- cionado, um DVD vem hoje protegido pela mesma tecnologia empregada em sites bancrios (a criptografia), para impedir que seja copiado ou at mesmo executado fora das reas geogrficas predeterminadas pela indstria cinema- togrfica. Assim, quem quiser copiar um determinado DVD para seu computa- dor, ou executar um determinado DVD adquirido em outra rea geogrfica, ser impedido tecnicamente de faz-lo, independentemente do que a lei diz a respeito dos seus direitos de uso legtimo e de outras permisses ou licenas. Assim, como j foi exemplificado, um DVD comprado nos Estados Unidos, na maioria das vezes, no pode ser executado por aparelhos fabricados no Brasil, ainda que o usurio seja titular de todos os direitos legtimos de execuo quanto ao seu contedo. Por conseqncia, a regulao arquitetnica pode ampliar ou restringir direitos de modo significativo, em detrimento da lei. O problema que, por sua natureza, esse tipo de regulao no passa pelo escrutnio dos canais democrticos. So meios silenciosos, quase impercept- veis, de se regular a rede, bem como de se restringir ou aumentar o acesso informao. A histria recente tem demonstrado que, por causa de transfor- maes em sua arquitetura, a internet vem passando por um verdadeiro mo- mento de fechamento de contedo. A estrutura que havia em 1995 no existe mais. Naquela poca, os principais formatos de acesso e troca de informaes (FTP, SMTP e HTML)24 eram abertos, isto , no sujeitos a nenhuma espcie de regulao arquitetnica, exatamente pelo fato de que sua arquitetura era 24Todos esses formatos correspondem a protocolos de acesso e linguagens da rede. FTP significa file transfer protocol e permite a troca de arquivos de um computador para outro. SMTP significa simple mail transfer protocol e foi responsvel pelo surgimento do e-mail. Os dois primeiros so antigos e surgiram quase simultaneamente na infncia da internet. J a linguagem HTML, que significa hyper text markup language, surgiu em 1991 e foi responsvel pela criao da World Wide Web. O que os caracteriza o fato de serem abertos, no sujeitos a qualquer espcie de controle arquitetnico regulador fundado em sua prpria estrutura. 25. 26 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Aplanejada para garantir esse tipo de abertura e uma dificuldade de controle. Por abertura, entende-se que esses padres no pertencem a ningum e nin- gum exerce controle isolado sobre suas peculiaridades tcnicas. Modelos aber- tos so, assim, desenvolvidos e supervisionados em conjunto por todos os usu- rios da rede, e ningum exerce monoplio de controle sobre eles. Por isso, ningum controlava a linguagem sobre a qual as informaes trafegavam na rede em 1995. No o caso hoje, como se ver nos captulos que se seguem, em grande parte devido a modificaes na arquitetura da rede e outras modifi- caes na lei.Nesse sentido, a cada dia, formatos de arquivos abertos so substitudos por formatos fechados, cujo controle, na maioria das vezes, pertence a uma nica empresa ou entidade. Da mesma forma, projetos como o protocolo cha- mado P3P25 iro permitir que o prprio cdigo dos programas utilizados para navegao na internet reconhea imediatamente direitos e deveres inerentes a informaes que esto sendo transmitidas. Com isso, a prpria arquitetura da rede poder habilitar ou desabilitar automaticamente, sem qualquer interven- o do usurio, ou da lei, determinados direitos de acesso e restringir outros. O prprio cdigo selecionar que tipo de informao pode ou no chegar a um usurio, bloqueando todas as outras.26 Trata-se de situao em que o cdigo da internet deixa de ser aberto e passa a ser controlado por si mesmo, de acor- do com interesses especficos de quem o controla.O exemplo mais claro e significativo o dispositivo conhecido por Palladium, em desenvolvimento pela Microsoft.27 Em sntese, trata-se de um 25 P3P significa platform for privacy preferences (plataforma para preferncias de privacidade) e uma especificao que permitir aos programas de acesso internet, como Internet Explorer e Netscape, automaticamente entenderem polticas de privacidade determinadas arquitetonica- mente pelo cdigo. Cf. Webopedia. Disponvel em: . 26 Ver os exemplos de implementao de filtros de contedo na China, que nada mais so do que programas de computador (cdigo) instalados em ndulos da rede, que selecionam automatica- mente o que pode ou no ser acessado pelos cidados chineses: As expected, pro-democracy, Taiwanese and Tibetan sites are strictly off-limits to Chinese Internet users. So are health sites, Web pages from U.S. universities, online comic books and science-fiction fan centers and the Jewish Federation of Winnipegs Internet home. Cf. Schchtman, Noan. An inside look at China filters. Wired Magazine. Disponvel em: .27 O nome Palladium, pela conotao negativa, foi substitudo por Next-Generation Computing Base for Windows. Cf. Microsoft. Disponvel em: . 26. INTRODUO 27 sistema de gerenciamento digital de direitos, embutido na plataforma do siste- ma operacional dominante, Microsoft Windows. Ao que tudo indica,28 as pr- ximas geraes desse programa viro com um sistema que controlar automa- ticamente os direitos que um determinado usurio detm sobre o contedo que trafega em seu computador, bem como sobre o software que compe a sua camada lgica. Isso quer dizer que, se um determinado usurio desejar execu- tar uma msica, um texto, um filme ou um determinado arquivo, ele ter de comprovar que possui direitos sobre aquele contedo. Caso no os possua, o prprio sistema operacional ir recusar-se a executar esse contedo, em detri- mento de qualquer participao do usurio ou de seus direitos legtimos. Tra- ta-se do cdigo controlando o cdigo, com auto-executoriedade absoluta. Os prprios modelos de negcio quanto mdia digital podero ser modificados: haver a possibilidade, por exemplo, de que um usurio obtenha o direito de ouvir uma msica por trs vezes. Aps a terceira vez, o sistema automatica- mente impedir uma quarta audio, bloqueando o arquivo original. Estes so apenas alguns dos exemplos. As aplicaes dessa tecnologia so as mais diver- sas possveis.29O problema desse mecanismo arquitetnico de regulao alm de no passar pelo escrutnio dos canais burocrticos possuir uma caracterstica de auto-executoriedade e inflexibilidade que nenhuma das outras formas de regulao possui. Tanto a lei quanto as normas sociais existem na realidade social. Um indivduo maduro e integrado sociedade as internaliza e passa a se comportar de acordo com elas. Em caso de violao, a sociedade, por meio de um procedimento previamente estabelecido e transparente, que faz a apli- cao da norma e, eventualmente, da sua punio conexa, a posteriori. Mesmo o mercado, que pode trabalhar com regulaes cujo efeito no a posteriori, mas sim simultneo ao (primeiro preciso pagar o preo, para depois ter acesso ao produto), um dado social e socialmente controlado, dotado de flexibilidade (posso comprar com crdito, ou posso pedir dinheiro empresta- do, o que permite obter acesso, apesar de limitaes econmicas em determi- nado tempo). A regulao arquitetnica ou pelo cdigo no assim. Sua apli- cao no depende do escrutnio de nenhum processo social ou da interveno28 Cf. Microsoft. Disponvel em: . 29Ibid. Para uma descrio tcnica das funcionalidades do sistema conhecido por Palladium. 27. 28 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Ade nenhum indivduo, quanto mais da sociedade como um todo. Todo o seu efeito determinado a priori, e tambm a priori executado. Como ilustrao, convm lembrar o exemplo de regulao pelo cdigo que ocorreu quanto aos silos nucleares norte-americanos. Nos primrdios da construo dos primeiros, cada silo era controlado por equipes militares pr- prias. Para o lanamento de um mssil nuclear, a equipe recebia a ordem de um superior hierrquico especfico e, a partir da, implementaria essa ordem. En- tretanto, a estrutura militar norte-americana comeou a ter receios a respeito de eventuais dvidas ou desobedincias, decorrentes desses diversos interme- dirios humanos de verificao. Um militar em um determinado silo, ao rece- ber uma ordem de lanamento, poderia duvidar da ordem recebida ou se recu- sar a cumpri-la. Poderia at ser submetido a uma corte marcial, mas durante todo o processo haveria o escrutnio social e humano dos eventos. A preocupa- o com essa estrutura em que o fator humano era central levou sua subs- tituio por uma estrutura tecnolgica, que, atualmente, permite o lanamen- to de msseis nucleares por meio de um boto, acionado diretamente pelo presidente da Repblica nos Estados Unidos. Entre a ordem do presidente e o lanamento dos msseis, no existe nenhum canal de verificao humana ou social. A ordem auto-executvel.30 Isso traz consideraes a respeito da ma- nuteno, se desejvel ou no, do modelo anterior, em que o fator humano continua valorizado. O mesmo ocorre com a regulamentao pelo cdigo na internet. Com o avano cada vez mais significativo desta modalidade, o fator humano fica cada vez mais de lado. Com ele, ficam tambm o direito democraticamente estabelecido, as normas sociais, bem como quaisquer outros fatores sociais. Tudo substitudo pela deciso fria e apriorstica do cdigo, sem interme- dirios, juzes ou supervisores. Ao longo deste livro, sero discutidas as relaes entre a lei, as normas sociais e o cdigo, e, em menor grau, o mercado. Esses quatro elementos con- tribuem para a regulao do sistema de comunicaes fundado na tecnologia digital em suas trs camadas: fsica, lgica e de contedo. No incio de cada captulo ou seo relevante, h um quadro sinptico, com um resumo das30Lessig, 1999a, apndice. 28. INTRODUO 29 principais relaes entre as formas de regulao em questo (lei, normas so- ciais, arquitetura e mercado) e suas conseqncias e eventuais relaes com cada uma das camadas do sistema de comunicaes da internet (fsica, lgica e de contedo). a conjugao desses dois modelos de anlise que permitir que se visualizem os principais caminhos reguladores globais e brasileiros, bem como, efetivamente, o direito derivado da tecnologia. 29. 1 C APTU LO O DIGITAL MILLENIUM COPYRIGHT ACT: A RESPONSABILIDADE DOS PROVEDORES E O CONTEDO NA REDEQuadro 2Formas de regulaoCamadasafetadasLei Norma CdigoFsicaObstruo de canais por Disponibilizao decausa de dispositivos menos canais por temorlegaisde responsabilidadeLgicaAdoo de softwareDisponibilizao de menospara gerenciamento de servios na rede por temorcontedode responsabilidadeContedoRetirada macia deRetirada de contedoIncentivo adoo decontedo da redepor advogados, semcontedo trancado pararespaldo legaliseno de responsabilidadeMapeamento do problema A tecnologia digital conjugada com a internet tornou muito fcil a cpia e a distribuio de material protegido pelo direito autoral. Vrias formas de ex- presso protegidas podem ser transformadas para o formato digital, tais como textos, vdeos e sons, e a internet permite, de modo muito fcil, a circulao desses bens intelectuais. Em face disso, a resposta do direito foi inicialmente de espanto. Pregava-se, no comeo da dcada de 1990, que era impossvel regular a internet pelos meios jurdicos tradicionais.31 Naquele momento, tal31 Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone. You are not 30. 32 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Acrena permitiu o florescimento da rede de forma nunca sequer imaginada, fazendo com que, em 1995, ela fosse o meio mais livre e democrtico, bem como pluralista, de circulao de informaes. Ao longo de um curto perodo de tempo, tal crena cedeu lugar sua anttese: a hipertrofia de formas tradi- cionais de proteo propriedade intelectual como reao suposta anar- quia da internet. O que era livre passou a ser severamente controlado.Um dos primeiros produtos dessa anttese liberdade inicial quase abso- luta foi o Digital Millenium Copyright Act (DMCA), um texto normativo ado- tado nos Estados Unidos em 1998, com o objetivo de modificar o regime de proteo propriedade intelectual, mais especificamente os direitos autorais, no sentido de combater a facilidade de cpia, de circulao e, conseqente- mente, de violao de direitos autorais, trazida pela conjugao da tecnologia digital com a internet. As disposies do DMCA ampliaram de forma significa- tiva os tradicionais limites do direito autoral, tais como forjados no sculo XIX. Como exemplo dessa ampliao, o DMCA criminalizou quaisquer inicia- tivas que tivessem por objetivo violar mecanismos tcnicos de proteo pro- priedade intelectual, isto , bens intelectuais, na forma digital porventura im- plantados. Este aspecto especfico do DMCA ser analisado de modo aprofundado quando for tratada a questo das conseqncias dessas transfor- maes legais para o equilbrio de interesses na internet. Neste momento, cum- pre enfocar outro aspecto do DMCA, qual seja, a necessidade de extenso da responsabilizao de terceiros pela violao de direitos autorais.Nesse sentido, na tentativa de bloquear a facilidade de circulao de ma- terial protegido por direito autoral, o DMCA previu uma srie de mecanismos que imputariam a terceiros a responsabilidade por tais violaes. Um exemplo disso a imputao aos provedores de servios de acesso (PSAs) e provedores de servios online (PSOs) na internet da responsabilidade por infraes a di- reitos autorais cometidas por seus usurios. Note-se o impacto dessas disposi- es: o DMCA cria um mecanismo em que socializa a responsabilizao por violaes a bens intelectuais, estendendo tal responsabilidade queles que no foram propriamente agentes dessas violaes. Mais ainda, o DMCA cria umawelcome among us. You have no sovereignty where we gather. Cf. Declarao de Independncia da Internet. Disponvel em: . Acesso em: 20 dez. 2002. 31. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T33 srie de portos seguros (safe harbors), para iseno de responsabilidade. Es- tes nada mais so do que um rol de requisitos que, se atendidos, excluem a possibilidade de se responsabilizar um provedor pelas violaes cometidas por seus usurios. Dessa forma, suas normas tm um impacto direto sobre a orga- nizao dos provedores e o modo como estes lidam com a disseminao da informao, como se ver adiante.Mais importante, o DMCA passou a ter valor persuasivo para outros ordenamentos jurdicos que enfrentam problemas semelhantes. Indubitavel- mente, dado o carter global da internet, tambm o Brasil enfrenta questes semelhantes. Isso levou a Ordem dos Advogados do Brasil a elaborar e apre- sentar, em 1999, o Projeto de Lei no 1.589 ao Congresso Nacional, dando conta de vrias dessas questes. Naturalmente, o projeto de lei apresentado difere bastante do DMCA. Entretanto, o DMCA exerce uma influncia retrica imen- sa sobre a interpretao do projeto brasileiro, ou mesmo sobre praticantes do direito no Brasil quanto resposta a essas perguntas.Por tudo isso, a seguir, analisam-se comparativamente as disposies do DMCA no que tange responsabilidade de provedores de servios de acesso e de provedores de servios online na internet, com respeito s solues propos- tas no Brasil, ainda sob apreciao no Congresso Nacional. O que importa destacar nessa anlise no propriamente se tal legislao ser adotada ou no no Brasil, mas sim os mecanismos de influncia, trazidos pelos ventos da glo- balizao, sobre a forma como so resolvidos problemas semelhantes em Esta- dos nacionais que no sejam aqueles que propem um modelo universalizante como o DMCA.Responsabilidade dos provedores de servios na internet: comparao entre o DMCA e as propostas do direito brasileiro At o presente momento, o Brasil ainda no adotou nenhuma disposio legal especfica regulamentando a responsabilidade dos provedores de servi- os de acesso (PSAs) e dos provedores de servios online (PSOs). No entanto, existe, em tramitao no Congresso Nacional, o Projeto de Lei no 1.589, apre- sentado pela Ordem dos Advogados do Brasil, que prope regular especifica- mente o tema. Por meio da anlise comparativa desse projeto de lei com o 32. 34 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R Amodelo proposto pelos Estados Unidos com o DMCA, possvel ponderar sobre as influncias deste sobre as respostas que se pretende dar questo no Brasil.Assim, o estudo comparativo que se prope no pretende abordar a ques- to, por exemplo, do ponto de vista da proteo ao consumidor, mas sim da perspectiva do surgimento de uma responsabilidade especfica dos PSOs e PSAs, decorrente da necessidade de proteo propriedade intelectual.Breve histrico da regulamentao proposta no Brasil Em 1999, a Ordem dos Advogados do Brasil, em So Paulo, criou uma comisso especial com o intuito de redigir uma lei modelo a ser apresentada ao Congresso Nacional. Tal lei regulamentaria de maneira geral o comrcio ele- trnico no Brasil. Naquela poca, a internet j contava com um nmero de usurios significativo, o que justificava a preocupao de responder s necessi- dades de regulamentao.A comisso apontada enfocou trs grandes temas no anteprojeto de lei: regulamentao do comrcio eletrnico, validade dos documentos eletrnicos e assinaturas digitais. Entre os itens sobre comrcio eletrnico, a comisso incluiu uma srie de dispositivos referentes especificamente responsabilida- de dos PSAs e PSOs, que foram designados pelo texto do anteprojeto inicial- mente como intermedirios, denominao posteriormente abandonada e substituda pelo termo genrico provedores.O anteprojeto teve uma boa recepo no Congresso Nacional e, por inter- mdio do deputado Luciano Pizzato, tornou-se oficialmente o Projeto de Lei no 1.589, de 1999. Em 2001, a legislao proposta foi apensada a outro projeto de lei, do deputado Jlio Semeghini, e ambos os projetos foram consolidados em um texto nico no Projeto de Lei no 4.906, de 2001.As duas maiores influncias em termos de modelos internacionais que inspiravam o projeto de lei apresentado eram a Lei Modelo da Uncitral, sobre Comrcio Eletrnico, e as discusses propostas para a diretiva regulando o comrcio eletrnico no Parlamento europeu.32 32Estas influncias so expressamente mencionadas no relatrio preparado pela Comisso Es- pecial apontada para avaliar o Projeto de Lei no 1.483 de 1999 (2000). Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2001. O memorando no in- clui, no entanto, detalhes especficos sobre as discusses no Parlamento europeu. 33. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T35Com relao aos contornos da responsabilidade dos PSOs e PSAs previs- ta, h poucos indicativos oficiais disponveis publicamente sobre que inteno e interesses devem ser protegidos. Um indicativo dado pelo relatrio entre- gue ao Congresso por um grupo de especialistas oficialmente indicados para avaliar o projeto de lei. Nesse relatrio, apontam-se as seguintes justificativas para a regulao proposta: Com relao ao comportamento dos provedores com a privacidade deseus clientes, h que se criar o conceito de responsabilidade num am-biente em que se saiba que eles, provedores, no tero condies de co-nhecer todas as informaes que trafegam na rede por seu intermdio.Nesse aspecto, o dr. Costa tambm sugere que sejam adotados modelosde legislaes j existentes em outros pases, a exemplo da Frana. Oprincpio a ser seguido em relao aos provedores, segundo dr. Costa, o que considera que eles no tm responsabilidades sobre os dados quetrafegam por seu intermdio, mas, a partir do momento em que tmconhecimento inequvoco de que esto servindo para instrumentalizarilcitos, devem promover a imediata suspenso desses servios.33 Da histria legislativa do projeto de lei disponvel publicamente, no consta nenhuma referncia expressa ao Digital Millenium Copyright Act. No entanto, um interesse crescente sobre as disposies do DMCA pode ser notado no Brasil. Um exemplo so as atas de reunio da Associao Brasileira da Proprie- dade Intelectual (ABPI), publicadas na internet. A ABPI organizou diversos encontros em 2001, para a discusso das disposies do DMCA e a possibili- dade de extrair delas modelos normativos, para sugesto ao Congresso Nacio- nal, com a possvel insero no projeto de lei ora em curso. Por exemplo, na ata da reunio de 16 de maio de 2001, a ABPI expressamente menciona o seguinte, com relao responsabilizao de PSOs e PSAs, e ao DMCA: 33 Comisso especial destinada a apreciar e proferir parecer ao Projeto de Lei no 1.483 de 1999 do senhor deputado Dr. Hlio, que institui a fatura eletrnica e a assinatura digital nas transa- es de comrcio eletrnico, e apensado. Disponvel em: . Acesso em: 28 nov. 2002. Dr. Costa refere-se a Marcos da Costa, responsvel pela comisso da OAB-SP, quanto redao do anteprojeto de lei por esta sugerido. Os termos adotados em 1999 foram modificados em 2001 quando da criao do Pro- jeto de Lei no 4.906, substituindo, por exemplo, o termo intermedirios por provedores. 34. 36D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R AForam abordados igualmente aspectos relacionados ao tratamento da res- ponsabilidade de intermedirios em comrcio eletrnico segundo a legis- lao brasileira projetada, bem como sob a perspectiva da legislao nor- te-americana especfica (Digital Millennium Copyright Act). (...) Por fim, em vista da complexidade do assunto em debate, ficou decidido que sua anlise ter continuidade em futuras reunies conjuntas das Co- misses, com vistas ao seu melhor entendimento e elaborao de su- gestes de emendas, a serem apresentadas pela ABPI, aos projetos sobre comrcio eletrnico atualmente em trmite no Congresso Nacional. As- sim, ser realizada nova reunio conjunta das Comisses de Direito Au- toral e de Software e Informtica, em data e local a serem definidos pelos Coordenadores.34Dessa forma, o DMCA acaba tornando-se um elemento de considerao com relao adoo de modelos normativos futuros. A seguir, tenta-se deter- minar como essa influncia pode fazer sentido do ponto de vista comparativo, especialmente considerando-se a criao de modelos de porto seguro pelo DMCA em contraposio ao modelo brasileiro.As normas propostas no Brasil De forma a melhor discutir a proposta normativa feita no Brasil com res- peito responsabilidade dos provedores (PSAs e PSOs), segue a transcrio do Captulo IV do Projeto de Lei no 4.906, de 2001:Captulo IVDas obrigaes e responsabilidades dos provedores Art. 34. Os provedores de acesso que assegurem a troca de documentos eletrnicos no podem tomar conhecimento de seu contedo, nem duplic-los por qualquer meio ou ceder a terceiros qualquer informao, ainda que resumida ou por extrato, sobre a existncia ou sobre o conte- do desses documentos, salvo por indicao expressa do seu remetente. 34Associao Brasileira da Propriedade Intelectual. Ata da Reunio Conjunta das Comisses de Direito Autoral e de Software e Informtica realizada em 16 de maio de 2001. Disponvel em: . Acesso em: 20 out. 2002. 35. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T37 1o Igual sigilo recai sobre as informaes que no se destinem ao conhe-cimento pblico armazenadas no provedor de servios de armazenamentode dados.2o Somente mediante ordem do Poder Judicirio poder o provedor daracesso s informaes acima referidas, sendo que as mesmas devero sermantidas, pelo respectivo juzo, em segredo de justia.Art. 35. O provedor que fornea servios de conexo ou de transmissode informaes, ao ofertante ou ao adquirente, no ser responsvel pelocontedo das informaes transmitidas.Art. 36. O provedor que fornea ao ofertante servio de armazenamentode arquivos e sistemas necessrios para operacionalizar a oferta eletrni-ca de bens, servios ou informaes no ser responsvel pelo seu con-tedo, salvo, em ao regressiva do ofertante, se:I deixou de atualizar as informaes objeto da oferta, tendo o ofertantetomado as medidas adequadas para efetivar as atualizaes, conformeinstrues do prprio provedor; ouII deixou de arquivar as informaes ou, tendo-as arquivado, foramelas destrudas ou modificadas, tendo o ofertante tomado as medidasadequadas para seu arquivamento, segundo parmetros estabelecidos peloprovedor.Art. 37. O provedor que fornea servios de conexo ou de transmissode informaes, ao ofertante ou ao adquirente, no ser obrigado a vigiarou fiscalizar o contedo das informaes transmitidas.Art. 38. Responde civilmente por perdas e danos, e penalmente por co-autoria do delito praticado, o provedor de servio de armazenamento dearquivos que, tendo conhecimento inequvoco de que a oferta de bens,servios ou informaes constitui crime ou contraveno penal, deixarde promover sua imediata suspenso ou interrupo de acesso por desti-natrios, competindo-lhe notificar, eletronicamente ou no, o ofertante,da medida adotada. O projeto de lei distingue entre trs tipos diferentes de provedores, confor- me as funes de cada um deles, criando um tipo especfico de responsabilidade para cada um. Essas distines entre categorias funcionais so as seguintes: o provedor de acesso que assegure a troca de documentos eletrnicos(art. 34); 36. 38 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R A o provedor que fornea servios de conexo ou de transmisso de informa-es (art. 35);o provedor que fornea, ao ofertante, servio de armazenamento de arqui-vos e sistemas necessrios para operacionalizar a oferta eletrnica de bens,servios ou informaes (art. 36).O primeiro tipo de provedor refere-se definio tcnica clssica de pro- vedor de servio de internet (Internet Service Provider ISP),35 isto , empre- sas ou outras entidades que fornecem acesso e trfego de informaes sobre a internet. Sob o projeto de lei, existe um dever especfico de confidencialidade imposto sobre esses provedores com relao a documentos eletrnicos,36 ou seja, todos os tipos de dados transmitidos atravs de suas redes. Um provedor (ISP) no pode, assim, obter acesso, por quaisquer meios, informao que trafega por sua rede, nem pode duplicar ou manter uma cpia dessa informa- o. Por fim, vedado aos provedores ceder a terceiros extratos das informa- es que transmitem, mesmo se tais informaes consistem apenas na indica- o indireta de que certos contedos esto sendo trafegados (o que no se confunde com o contedo em si), a no ser que estes provedores sejam expres- samente autorizados pelo remetente da informao. A segunda proibio mencionada no projeto de lei ainda mais intrigan- te. Provedores no podem duplicar a informao contida em suas redes de nenhuma forma. Apesar disso, algumas vezes, a duplicao de contedo um requisito tcnico para a eficincia de uma rede, tal como so utilizados os 35O projeto de lei parece adotar, no art. 35, uma definio de provedor compatvel com a defini- o de Internet Service Provider apresentada na Webopedia, a enciclopdia de termos tcnicos da internet, qual seja: a company that provides access to the Internet. For a monthly fee, the service provider gives you a software package, username, password and access phone number. Equipped with a modem, you can then log on to the Internet and browse the World Wide Web and USENET, and send and receive e-mail. In addition to serving individuals, ISPs also serve large companies, providing a direct connection from the companys networks to the Internet. ISPs themselves are connected to one another through Network Access Points (NAPs). ISPs are also called IAPs (Internet Access Providers), Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2002. 36O art. 2o do projeto de lei define documento eletrnico assim: Art. 2o Para os efeitos desta lei, considera-se: I documento eletrnico: a informao gerada, enviada, recebida, armazenada ou comunicada por meios eletrnicos, pticos, optoeletrnicos ou similares. Portanto, o proje- to usa o termo documento em seu sentido amplo, abrangendo todas as formas concebveis de informao que possa ser digitalmente transmitida por um provedor. 37. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T 39 chamados servidores de proxy, para garantir velocidade e menor ocupao de trfego na rede.37 Em princpio, uma interpretao estrita do projeto de lei levaria concluso de que a prtica dessa necessria duplicao tcnica de dados por meio do uso de servidores de proxy seria uma violao de suas dis- posies. Alm disso, quando probe a cesso a terceiros de qualquer informao sobre a existncia de documentos, ainda que resumida ou por extrato, o projeto de lei pode levar a um impacto indesejado sobre algumas atividades online, como, por exemplo, processos de medio de audincia na internet (web ratings).38 A obteno de extratos da informao que trafega atravs da rede de um provedor pode ser necessria em diversas instncias, que vo des- de atividades comerciais at atividades relativas segurana pblica. A ques- to em que medida o acesso a esses extratos deve ser permitido. Se o projeto de lei for aprovado da forma como se encontra redigido, uma interpretao restritiva pode levar a uma situao de incerteza no desenvolvimento de ativi- dades como segurana, medio de audincia, planejamento estatstico e ou- tras. Por isso mesmo, a redao presente do projeto desproporcional na pon- derao desses valores conflitantes. 37 Um servidor de proxy assim definido pela Webopedia: a server that sits between a client application, such as a Web browser, and a real server. It intercepts all requests to the real server to see if it can fulfill the requests itself. If not, it forwards the request to the real server. Proxy servers have two main purposes: Improve Performance: Proxy servers can dramatically improve performance for groups of users. This is because it saves the results of all requests for a certain amount of time. Consider the case where both user X and user Y access the World Wide Web through a proxy server. First user X requests a certain Web page, which well call Page 1. Sometime later, user Y requests the same page. Instead of forwarding the request to the Web server where Page 1 resides, which can be a time-consuming operation, the proxy server simply returns the Page 1 that it already fetched for user X. Since the proxy server is often on the same network as the user, this is a much faster operation. Real proxy servers support hundreds or thousands of users. The major online services such as Compuserve and America Online, for example, employ an array of proxy servers. Filter Requests: Proxy servers can also be used to filter requests. For example, a company might use a proxy server to prevent its employees from accessing a specific set of Web sites. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2002. Dessa forma, um servidor de proxy precisa necessa- riamente duplicar a informao constante da rede para realizar sua funo. 38 Um exemplo de medio de audincia na internet consiste no da empresa Media Metrix. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2002. 38. 40 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R A O segundo tipo de provedor mencionado se refere tanto definio cls- sica de ISP j especificada quanto definio de OSP.39 De modo sinttico, o provedor de servios online, ao contrrio do ISP, no fornece acesso internet, mas sim utiliza-se desse acesso para a prestao de outros servios. Como exem- plo, um provedor de notcias como o Universo Online, ou ainda um sistema de busca como o Google, Altavista ou Cad. Esta definio, tal qual redigida, parece tambm abranger os prprios ISPs definidos no art. 34, sempre que um ofertante ou adquirente estiverem envolvidos no processo. Desse modo, a redao ampla o suficiente para abranger provedores de acesso que oferecem mais do que a simples troca de documentos eletrnicos, envolvendo tam- bm alguma forma de contedo. Um exemplo seria o Universo Online ou o Portal IG. O projeto de lei, no obstante, no claro o suficiente com respeito incluso ou no de outros tipos de provedores na definio sob a redao o provedor que fornea servios de conexo ou de transmisso de informa- es, ao ofertante ou ao adquirente. Uma vez que no inclui o termo aces- so, a redao poderia ser interpretada no sentido de abranger mecanismos de busca como Yahoo!, Altavista, Radaruol, Google e Cad. Mesmo pginas na internet poderiam ser includas na definio, se fossem consideradas in- termedirias entre ofertantes e adquirentes na troca de informaes. Um tpico exemplo desta situao seriam os sites de leilo, como o E-bay e ou- tros similares, que funcionam como intermedirios de informao entre ofertantes e adquirentes. 39A definio da Webopedia para Online Service Provider a seguinte: On the Internet, OSP (online service provider) has several different meanings. The term has had some currency in distinguishing Internet access providers that have their own online independent content, such as America Online (AOL), from Internet service providers (ISPs) that simply connect the user directly with the Internet. In general, the companies sometimes identified as OSPs (in this usage) offer an extensive online array of services of their own apart from the rest of the Internet and sometimes their own version of a Web browser. Connecting to the Internet through an OSP is an alternative to connecting through one of the national Internet service providers, such as AT&T or MCI, or a regional or local ISP Some Internet service providers (ISPs) describe themselves as online service providers. In this. usage, ISP and OSP are synonyms. America Online has used the term to refer to online content providers (usually Web sites) with which AOL has a business agreement. Disponvel em: . Acesso em: 14 nov. 2002. 39. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T41 Esta interpretao, entretanto, no clara. Um aspecto importante que a falta de clareza do texto do projeto de lei permite que os dispositivos ali cons- tantes tenham sua interpretao influenciada por categorias forjadas em ou- tros ordenamentos jurdicos que no o brasileiro. Como demonstram as atas da Associao Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI), existe um interes- se constante dos advogados brasileiros sobre o DMCA. Quando um texto normativo pretende regular um fenmeno global, tal como a responsabilidade dos provedores de acesso internet, entidades que tm basicamente as mes- mas caractersticas funcionais em qualquer lugar do mundo, naturalmente ocorre a influncia interpretativa de formao da norma entre diferentes ordenamentos jurdicos.40 Neste caso, essa influncia torna-se ainda mais ca- racterizada pelo fato de se tratar de um assunto recente, sem precedentes normativos claros. Nesse sentido, a influncia norte-americana a que mais se faz sentir: como os Estados Unidos so a ptria de origem da internet, foram tambm os primeiros a propor modelos normativos a seu respeito. Desse modo, principalmente por intermdio dos advogados e de acadmicos, esses modelos normativos acabam tendo influncia na interpretao e na formao da textu- ra normativa no pas. Isto, conjugado com a falta de clareza do texto do an- teprojeto, abre brechas para que uma determinada interpretao do DMCA acabe tendo reflexos na interpretao que eventualmente ser feita dos mes- mos institutos no ordenamento jurdico brasileiro. 40Ver, por exemplo, os julgados do Conselho Administrativo de Defesa Econmica (Cade), em que, com certa freqncia, so citados casos norte-americanos para embasar decises tomadas no pas. Cf. Cade, K&S Aquisies Ltda., e Kolynos do Brasil Ltda., conselheira Lcia Helena Salgado e Silva, Ato de Concentrao no 27/94 e Ato de Concentrao no 58/95 (Brahma, Miller), relator Renault de Freitas Castro. Em mercados onde a dinmica concorrencial assume a ex- presso da diferenciao de produtos, como o caso em muitos mercados de bens de consumo, o poder de mercado pode ser expresso pela estratgia de proliferao de marcas (como no caso FTC vs Kellogg et al. - 99 FTC, 8, 16, 1982) ou pela elevao do custo e mesmo bloqueio da entrada de concorrentes (com a imposio de acordos de distribuio exclusiva, de royalties e outras restries verticais, como no caso US vs Microsoft, 1995). O desfazimento, com a poss- vel aquisio da Kolynos por competidor hoje potencial, teria efeito equivalente ao que levou, em 1956, o FTC a impedir a aquisio da Clorox pela Procter & Gamble, com a alegao de que seria eliminado o concorrente potencial e com ele a disciplina e o estmulo eficincia gerada pela presso da sua possibilidade de entrada. No caso do direito da tecnologia e da internet, a influn- cia de ordenamentos estrangeiros ainda mais relevante, dadas a absoluta inexistncia de prece- dentes e a similaridade tcnica da infra-estrutura da internet nos diversos pases. 40. 42 D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R AVer, em continuidade, a responsabilidade dos provedores sob o art. 35. Este expressamente isenta os provedores ali mencionados de qualquer respon- sabilidade relativa ao contedo das informaes transmitidas atravs deles. Dessa forma, o texto atual do projeto de lei cria uma situao na qual a iseno de responsabilidade desses provedores no depende do cumprimento de ne- nhum requisito ou processo prvio estabelecido com respeito a material que viole direitos autorais. As normas definidas no DMCA so diferentes. Elas es- tabelecem que os provedores compatveis com o art. 35 (ver quadro 3) so isentos de responsabilidade apenas se cumprirem determinados requisitos le- gais, que sero discutidos com mais detalhes adiante. J o texto brasileiro indi- ca que foi excluda toda e qualquer responsabilidade da parte desses provedo- res, mencionados sob o art. 35, com respeito transmisso de material ilcito. O texto transfere, por sua vez, eventual responsabilidade para os indivduos ou para as entidades engajadas na transmisso de contedo ilcito atravs do provedor, pulverizando o controle a respeito de informaes ilcitas transmiti- das pela rede. Nesse sentido, o modelo norte-americano centraliza na figura do provedor a responsabilidade pelo material ilcito, exceto se o provedor se- guir risca passos para sua iseno de responsabilidade, o chamado porto seguro (safe harbor). O modelo brasileiro no criou nenhum porto seguro. De acordo com esse modelo, os provedores esto sempre seguros quanto sua ausncia de responsabilidade, e no seguros somente quando tomam providncias para tanto. Essa interpretao ainda reforada pelo art. 37 do projeto de lei, que prev que: O provedor que fornea servios de conexo ou de transmisso de informaes, ao ofertante ou ao adquirente, no ser obrigado a vigiar ou fis- calizar o contedo das informaes transmitidas. Uma interpretao razovel desse texto indica que, mesmo que o provedor seja notificado com relao a atividades ilcitas com respeito ao contedo que transmite, ele no tem nenhu- ma obrigao para com essas informaes, j que sua responsabilizao por elas no ocorre. A terceira e ltima distino feita pelo projeto de lei uma subcategoria da definio de provedores de acesso ou de contedo. O projeto define esta subcategoria como o provedor que fornea ao ofertante servio de armazenamento de arquivos e sistemas necessrios para operacionalizar a oferta eletrnica de bens, servios ou informaes. Esta definio parece mencionar 41. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T43 especificamente a atividade de hospedagem (hosting),41 que inclui os servios prestados por sites como o Geocities, ou ainda por certos provedores de acesso que oferecem a seus assinantes espao para a hospedagem de websites pes- soais ou comerciais. Conforme o projeto, esta subcategoria a nica em que existe uma estrutura normativa similar quela adotada pelo DMCA, por meio da criao de um porto seguro que, se atendido, elide a responsabilidade do provedor. Sob essa definio particular de provedor de armazenamento, o projeto requer que as informaes estejam efetivamente armazenadas junto a ele, e no apenas transmitidas por ele. Em seguida, cria uma estrutura similar a um porto seguro do tipo institudo pelo DMCA: para ficar isento de responsabi- lidade, o provedor deve atender a certas notificaes a respeito de material ilcito, retirando tais informaes de sua rede imediatamente, como se ver adiante. Em contrapartida a esse porto seguro, o projeto de lei cria um tipo espe- cial de responsabilidade aplicada somente com relao aos provedores de armazenamento. Assim, a responsabilidade destes dividida em duas catego- rias: responsabilidade para com o ofertante que se utiliza de seus servios (art. 36); e responsabilidade civil e criminal, surgindo a partir do armazenamento de contedo ilcito (art. 38). 41A definio de hosting adotada pelo projeto de lei compatvel com aquela apresentada pela Webopedia: Hosting (also known as Web site hosting, Web hosting, and Webhosting) is the business of housing, serving, and maintaining files for one or more Web sites. More important than the computer space that is provided for Web site files is the fast connection to the Internet. Most hosting services offer connections on T-carrier system lines. Typically, an individual business hosting its own site would require a similar connection and it would be expensive. Using a hosting service lets many companies share the cost of a fast Internet connection for serving files. A number of Internet access providers, such as America Online, offer subscribers free space for a small Web site that is hosted by one of their computers. Geocities is a Web site that offers registered visitors similar free space for a Web site. While these services are free, they are also very basic. A number of hosting companies describe their services as virtual hosting. Virtual hosting usually implies that their services will be transparent and that each Web site will have its own domain name and set of e-mail addresses. In most usages, hosting and virtual hosting are synonyms. Some hosting companies let you have your own virtual server, the appearance that you are controlling a server that is dedicated entirely to your site. Disponvel em: . Acesso em: 18 nov. 2002. 42. 44D I R E I TO , T E C N O LO G I A E C U LT U R A Com respeito s caractersticas da responsabilidade imposta pelo art. 36, especificamente atribuda a esse tipo de provedor, ele no ser responsvel pelo seu contedo, salvo em ao regressiva do ofertante, se cumprir com as disposies do tipo porto seguro definidas pelo texto do projeto de lei. A legitimidade de ao, nesse caso, exclusivamente do ofertante, isto , da parte que se utiliza dos servios de armazenamento, que devem incluir o armazenamento de arquivos e sistemas necessrios para operacionalizar a oferta eletrnica de bens, servios ou informaes. Terceiros ficam exclu- dos da possibilidade de ingressar em juzo contra o provedor de armazenamento. Alm disso, se cumpridos os dispositivos de porto segu- ro, fica o provedor isento de qualquer responsabilidade, mesmo com rela- o ao ofertante.Quanto s caractersticas do porto seguro criado pelo projeto de lei, o inciso I requer que o provedor de armazenamento atualize as informaes ar- mazenadas de acordo com as instrues recebidas do ofertante. Tambm re- quer que o provedor fornea instrues para o ofertante sobre como tais atua- lizaes devem ser solicitadas. A responsabilidade do mesmo surge, ento, quando o provedor deixa de cumprir com tais requisitos, uma vez que o ofertante teve acesso s instrues mencionadas no texto do projeto de lei.O inciso II requer ainda que o provedor fornea instrues ao ofertante sobre o mecanismo de armazenamento de informaes. Ele tambm cria um dever de diligncia da parte do provedor no sentido de que, se o provedor deixar de armazenar a informao enviada pelo ofertante de acordo com as instrues fornecidas, ele se torna responsvel perante o ofertante. Da mesma forma, se a informao armazenada pelo provedor destruda ou modificada, o provedor torna-se objetivamente responsvel pelas conseqncias dessa des- truio ou modificao.Alm disso, o art. 38 do projeto de lei pretende adotar ainda outras dispo- sies que so similares em estrutura ao DMCA. O artigo determina que o provedor se torna civilmente responsvel por perdas e danos e criminalmente responsvel como co-autor, mas apenas se deixar de suspender ou interrom- per o acesso com relao a um eventual crime ou uma eventual contraveno praticada por meio dos seus servios. O dever de interromper ou suspender o servio com relao atividade criminosa ou contraveno surge sempre que 43. O DI G I TA L MI L L E N I U M COPYR I G H T A C T 45 o provedor inquestionavelmente se torna ciente de que tais prticas esto ocor- rendo no mbito dos seus servios. O problema desta disposio que seu texto a