Direito à Educação Das Pessoas Com Deficiência

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    27R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 27-35, jul./set. 2004

    DIREITO À EDUCAÇÃODAS PESSOAS COM

    DEFICIÊNCIA *Eugênia Augusta Gonzaga Fávero

    DIREITO DA EDUCAÇÃO

    RESUMO

     Trata do direito à educação da pessoa portadora de deficiência como umdireito fundamental e indisponível tendo emvista, entre outros, o princípiodaigualdade de condições para o acesso e permanência na escola  (Constituição, art. 206, I).

    No entanto, afirma que a prática contraria o postulado constitucional, pois os alunos comessa característica são segregados emsalas ou escolas“especiais”, ficando privados do contato coma diversidade e dos estímulos que só umambiente heterogêneo pode oferecer.

    Discorre sobre os aspectos jurídicos relativos ao direito à educação das pessoas comdeficiência e sobre a prática da liberdade como a única forma deenfrentarmos a diversidade intelectual comqualidade, visto que, para exercê-la, é indispensável o reconhecimento da igualdade como direito de todos.Por fim, defende a educação “inclusiva”, consistente na aceitação das diferenças e no trato das limitações de cada umde forma cooperativa entre osalunos.

    PALAVRAS-CHAVEEducação; Direito Constitucional; deficiência – mental, intelectual; princípio da igualdade; escola “inclusiva”; Constituição Federal de 1988; Direito daEducação; Direito Internacional; Lei n. 9.394/96.

    __________________________________________________________________________________________________________________* Conferência proferida no “Seminário sobre Direito da Educação”, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal,de 23 a 25 de junho de 2004, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília-DF.

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    1 INTRODUÇÃO

    É do conhecimento geral, na co-munidade jurídica, que a edu-cação é um direito humano, fun-damental e indisponível. É dever doEstado e da família. Portanto, pareceóbvio que as pessoas com deficiên-cia também têm direito à educação,

    mas as estatísticas teimam em evi-denciar que, na prática, trata-se dedireito ainda muito longe de ser ga-rantido.

    Nossa intenção é demonstrarnão só que as pessoas com deficiên-cia têm esse mesmo direito, mas tam-bém o de exercê-lo sem discrimina-ções, ou seja, de serem recebidas eensinadas no mesmo espaço (turma)que todos os demais educandos. Senecessitarem de atendimento educa-cional especializado, este pode seroferecido à parte, como complemen-

    to, mas nunca de forma a impedir-lheso acesso à sala de aula comum.

    Ninguém, conscientemente,nega às pessoas com deficiência odireito à educação, entretanto, diantedas dificuldades práticas, freqüen-temente admitem que esse direitoestaria suprido se elas fossemeducadas separadamente, apenas emambientes especializados. Às vezes justificam e alegam que é para o “seupróprio bem”.

    Embora se saiba que o proble-

    ma todo é a situação prática, discor-reremos sobre os aspectos jurídicosrelativos ao direito das pessoas comdeficiência à educação (começandopor tratar do direito à educação emgeral), constatando que uma educa-ção que não seja “inclusiva”1 não aten-de os postulados constitucionais.

    Nosso atrevimento pode nãoser em vão. Houve tempos em quese via “total impossibilidade prática”de receber mulheres na mesma salade aula, de receber pessoas de raçanegra na mesma sala de aula, de re-

    ceber pessoas de diferentes religiõesna mesma sala de aula; tudo supera-do em nome do direito à igualdade edo direito à dignidade da pessoa hu-mana. Quem sabe o argumento das“dificuldades práticas” em relação àspessoas com deficiência ceda lugarà consciência de que elas tambémtêm esse direito indisponível, semdiferenciações que levem a exclusõesem relação às pessoas sem deficiên-cia.

    Não desconhecemos também

    que se afirma: “no tocante aoseducandos com deficiência, isso édiferente, pois eles não aprendem damesma forma e tratamos de educa-

    ção. Além disso, necessitam de aten-ções específicas e talvez não devamter a obrigação   de freqüentar esco-la”. A justificativa para não recebermulheres e outras minorias não eramuito diferente. Basta a escola setransformar para acolher as diferen-ças e a questão estará superada.

    A escola que se organiza para

    receber apenas alunos com determi-nado nível de desenvolvimento inte-lectual exclui até mesmo pessoassem nenhum tipo de deficiência ounecessidade educacional especial(são poucos os que terminam o cur-so na mesma escola); cria situaçõesodiosas de competição entre alunosde uma mesma turma2; privilegia tan-to a transmissão de conhecimentosque se esquece do desenvolvimentohumano; prejudica o futuro pessoal eprofissional do indivíduo.

    Há exemplos de escolas que

    recebem pessoas com e sem defi-ciência, na mesma sala de aula ouespaço educacional, absolutamentebem-sucedidas, tanto do ponto devista pessoal como da transmissãode conhecimentos.

    2 DO DIREITO À EDUCAÇÃO

    No dizer de Paulo Freire, não há educ ação fo ra d as soc ied ad es humanas e não há homem no vaz io 3.

    A educação é um direito huma-

    no e, como não poderia ser diferente,é prevista em nossa Constituição, emseu art. 6º, em primeiro lugar entre oschamados “direitos sociais”. Maisadiante, no art. 205, é definida comodireito de todos e dever do Estado e da família , e esclarecido que será pro- movida e incentivada com a c olabo- ração da soc iedade, visando ao p le- no desenvolvimento da pessoa, seu prep aro para o exercício d a c idada- nia e sua qualific ação para o trab a- lho .

    A educação, além de ser um

    direito, foi sempre um dever naturaldos pais, coextensivo ao dever dealimentação e outros cuidados. É de-ver e direito de iniciação na vida co-munitária4. Em Platão, p or exemp lo,não éa idéia de direito à educação que preva lece; a educação éum de- ver: o Estado deve obrigar as c rian- ças a instruírem-se, porque pertencem 

     à c id ad e mais d o q ue aos p a is (Compernolle, 1975:99) 5.

    Agostinho dos Reis Monteirotraz em sua obra6 uma excelente pes-

    quisa sobre a emergência e as fon-tes do direito à educação. Em geral,a idéia de educação para todos estásempre presente, mas o significado

    da palavra “todos” nem sempre dizrespeito a “todos os seres humanos”,principalmente se considerarmos aspessoas com deficiência. Com baseno autor já citado, podemos resumirtais fontes conforme segue:

    1. Educação grega, período dohelenismo: desenvolve-se no quadromunicipal, mas por obra de benfeito-

    res. A instrução era um “privilégio denascimento”, destinada apenas aos“filhos dos cidadãos”. Uma enormemassa de seres humanos permane-cia sem qualquer direito, nem mes-mo moral, à educação.

    2. Renascimento: tal períodooriginou uma renovação no pensa-mento pedagógico. A partir do sécu-lo XVI, é reconhecida a importânciada educação como instrumento polí-tico e emerge a idéia de uma “educa-ção nacional”. No entanto, existia ain-da uma resistência à universalização

    do ensino, pois, entre os ideólogos eprotagonistas da Revolução France-sa, uns eram partidários de um am-plo sistema de educação pública,mas outros temiam o desvio das pro-fissões e a criação de deslocadossocialmente.

    3. Declaração dos Direitos doHomem, de 1789: representou umagrande evolução. Apesar de não seencontrar em seu texto a palavra“educação”, a Constituição francesade 1791, nela inspirada, trouxe refe-

    rências à educação de crianças aban-donadas, e também a uma instrução comum a tod os os cid adãos, gratu i- ta no q ue resp eita às partes do ensi- no ind ispensáveis para todos os ho - mens . Finalmente, o Ato Constitucio-nal de 1793 reconhecia: a instrução é uma necessidade de todos os ho- mens e deve estar ao alcance de to- dos os c idadãos 7.

    4. Constituição francesa de1795: foi dedicado um título especifi-camente à instrução pública, garan-tindo-se esc olas p rimárias ond e os alunos aprendem a ler, a escrever, os elementos d o cálculo e os da moral 8

    (art. 296, Título X). Foram tambémgarantidas as esc olas sup eriores às primárias  (art. 297) e o d ireito de for- mar estabelecimentos particulares de ed uc ação e de instrução  (art. 300).

    5. Constituição francesa de1848: indicada como a primeira Car-ta que reconheceu a educaçãocomo direito. Também dispôs que aeducação é dever do Poder Público,pois proclamava em seu preâmbulo

    que a República deve (...) pôr ao al- canc e de cada um a instrução ind is- pensável a todos os homens . Outranovidade foi ter reconhecido, em seu

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    art. 9º, que o ensino élivre . Essa li-berdade, de acordo com o mesmoartigo, deveria ser exercida segundo as cond ições de c apac idade e de moralidad e determinadas pelas leis e sob a vigilância d o Estado .

    6. Constituição dos EstadosUnidos Mexicanos, 1917: sua impor-tância reside no fato de ter prescrito

    que a educação p rimária será ob rig a- tória  e que a educação pública seriamantida afastada de q ualquer doutri- na rel igiosa . Também mencionoucomo um dos objetivos da educaçãoa melhor compreensão humana .

    7. Constituição da URSS, 1918:garantiu aos operários e camponesesmais pobres instrução completa , un i- versal e gratuita , a fim de assegurar-lhes o acesso rea l à cultura .

    8. Constituição alemã deWeimar, 1919: encontra-se bemsedimentado o entendimento da edu-

    cação como dever e direito natural dospais, uma ob rigação esc olar geral  (art.145), sob total controle do Estado (art.144). Muita ênfase para o ensino cívi-co, o desenvolvimento no espírito da nacionalidade alemã, mascom a preo- cup ação de não ferir os sentimentos daqueles que pensam diferentemen- te . Prevê como objetivo da educa-ção das jovens gerações a aquisiçãode qualidades físicas, intelec tuais e sociais .

    9. Constituição soviética, 1924:

    conferia aos órgãos supremos daUnião o poder de estabelecer os p rin- cípios gerais em matéria de instrução pública .

    10. Constituição soviética,1936: foi a primeira a declarar for-malmente que os c idadãos da URSS têm direito à instrução , asseguradopela ins trução primária g era l e ob ri- gatória, pela gratuidade d o ensino septenal.

    11. Constituição da Repúblicada Irlanda, 1942: dispunha que a fa-mília é o educador primário e natural da c riança   (art. 41), mas o Estadopodia exigir que as crianças recebam um certo mínimo de ed uc ação moral,intelectual e social (art. 42).

    12. Carta da Organização dasNações Unidas, 1945: menciona aeducação ou a instrução, em váriospontos, inclusive ordenando aosmembros das Nações Unidas queassegurem o desenvolvimento da sua instrução .

    13. Constituição da RepúblicaFederal Alemã, 1946: estabelecia que

    todo o ensino éposto sob a vig ilân- cia do Estado .14. Constituição francesa,

    1946: após reafirmar em seu preâm-

    bulo os direitos e liberdades procla-mados em 1789, determinou que a Nação garante o igual acesso da crian- ça e do adulto à instrução, à forma- ção p rofissional e à cultu ra. A org ani - zação do ensino público, g ratu ito e laico, em tod os os g raus éum dever do Estado .

    15. Constituição italiana, 1947:

    previa que a instrução primária, dadadurante oito anos, pelo menos, é obri-gatória e gratuita. Acesso ao ensinosuperior com base no mérito, mesmoque a pessoa não tivesse meios de ex istênc ia , pois eram concedidasbolsas de estudo, subsídios às famí-lias e outras disposições, distribuídaspor concurso.Usou pela primeira veza expressão “direito à educação”, eo fez justamente para garantir aosinaptos e àqueles que sofrem de uma inferioridade  o d ire ito à ed uc ação e à prep aração p rofissional 9.

    16. Características básicas dasconstituições adotadas entre as duasguerras mundiais: privilegiavam a “au-toridade de fiscalização” dos Estados,os seus poderes de direção, a influên-cia sobre a instrução e suas váriasformas. O direito “à instrução” nãocaminhava na direção do direito “àeducação”. Apesar da garantia cons-titucional da instrução pública, issonão significa ainda o reconhecimentode um verdadeiro “direito do homemà educação”.

    17. Constituições do pós-guer-ra: aqui se verifica um desenvolvimen-to significativo. Houve uma marchade afirmação e internacionalização deum direito do homem à educação –sobretudo após a Declaração Univer-sal dos Direitos do Homem10.

    18. Declaração Universal dosDireitos do Homem, 1948: o direito àeducação é enunciado no art. 26, sen-do a educação também referida nopreâmbulo. Fixa-se o direito à instru-ção gratuita e também que a instru- ção elementar será ob rigatória. A ins- 

    trução técnico-profissional será ac es- sível a tod os, b em como a ins trução sup erior, esta b aseada no mérito . Eainda, a instrução será orientad a no sentido d o pleno desenvolvimento da personalidad e humana e d o fortaleci- mento do respeito pelos direitos hu- manos e pelas liberdad es fundamen- tais  e que os pais têm p rioridade de direito na escolha do gênero d e ins- trução q ue será min istrada a seus f i- lhos .

    19. Convenção sobre a Luta

    contra a Discriminação no Domínio doEnsino, 1960: adotada pela Unesco eem vigor desde 1962. Instituiu umacomissão para a busca de solução

    dos problemas que implicam discri-minação no âmbito do ensino.

    20. Convenção sobre o Ensino Técnico e Profissional, 1989: tambémadotada pela Unesco. Assim como aConvenção de 1960, faz parte do “di-reito universal convencional específi-co”, ou seja, relativo a um direito emparticular, no caso, o ensino.

    21. Convenção sobre os Direi-tos da Criança, 1989: está no planodo direito universal categorial, ouseja, relativo a uma categoria de pes-

    soas. Esta convenção é a mais avan-çada delas em matéria de direito àeducação. Tal direito é referido no pre-âmbulo e em vários de seus disposi-tivos. Porém, toda a convenção inte-ressa sobremaneira ao direito à edu-cação porque, entre outros motivos,a educação implica ou condiciona arealização de praticamente todos osseus direitos.

    22. Convenção Interamericanapara a Eliminação de Todas as For-mas de Discriminação contra a Pes-

    soa Portadora de Deficiência

    11

    , 1999:apesar de não se referir diretamenteà educação, é de suma importâncianessa temática. Tal Convenção,

    A escola que se organizapara receber apenas alunos

    comdeterminado nível dedesenvolvimento intelectualexclui até mesmo pessoassemnenhumtipo dedeficiência ou necessidadeeducacional especial (...);cria situações odiosas decompetição entre alunos deuma mesma turma;privilegia tanto a

    transmissão deconhecimentos que seesquece dodesenvolvimento humano;prejudica o futuro pessoal eprofissional do indivíduo.

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    ratificada e promulgada no Brasil(Dec. n. 3.956/2001), proíbe qualquerdiferenciação que implique exclusãoou restrição de acesso a direitos fun-damentais, e a educação, pelos me-nos na etapa do ensino fundamental,é um deles.

    23. Declaração de Salamancasobre Princípios, Política e Prática em

    Educação Especial12

    , 1994: tem comoprincípio orientador o de que as es- colas deveriam acomodar todas as crianças indep endentemente de suas cond ições físic as, intelec tuais , so- c iais, emoc iona is, lingüísticas ou ou - tras . Menciona a expressão “escolainclusiva”, definindo-a como aquelaconfrontada pelo desafio do desen- volvimento de uma pedagogia cen- trada na c riança e cap az de b em suced idamente educar a todas as crianças, incluindo aq uelas que pos- suam desvantagens severas , mas

    não reconhece expressamente a edu-cação como “direito indisponível” paraas pessoas com deficiência13.

    24. Declarações diversas: alémda Declaração Universal dos Direitosdo Homem, no plano do direito uni-versal não-convencional, há váriasdeclarações e recomendações queinteressam à educação, valendo ci-tar a Declaração dos Direitos da Crian-ça (Nações Unidas, 1959); a Reco-mendação sobre a Condição do Pes-soal Docente (Unesco/OIT, 1966); e a

    Declaração Mundial sobre a Educa-ção para Todos (Conferência mundialde J omtien14, 1990).

    25. J urisprudência internacio-nal: a mais importante foi produzidaem nível regional, pela comissão epelo tribunal europeus dos direitos dohomem, com destaque para quatroprocessos clássicos da jurisprudên-cia européia sobre o direito à educa-ção:

    a) processo relativo a certosaspectos do regime lingüístico doensino na Bélgica (Acórdão de 1968)

    – o direito à instrução foi interpretadocomo direito misto (direito-liberdadee direito-crédito, ao mesmo tempo);

    b) processo Kjeldsen, BuskMadsen et   Pedersen (Acórdão de1976) – ficou reconhecida a priorida-de do direito da criança e o direito deregulamentação do Estado, mas os pais pod em exigir do Estado o res- peito das suas c onvicções religiosas e filosóficas ;

    c) processo Tyrer (Acórdão de1978) – as punições corporais foram

     julgadas degradantes, mas houvevoto vencido no sentido de que os métodos corp orais seriam a via evi- dente e natural de lidar com a má 

    conduta dos jovens . A decisão final,no entanto, foi de que as penas cor- porais implicam, por natureza, que um ser humano se entreg ue a violênc ias físicas sob re um de seus seme lhan- tes , cujas possíveis “seqüelas psico-lógicas nefastas” também não podemser menosprezadas.

    d) processo Campbell e

    Cosans (Acórdão de 1982) – foi reco-nhecido que a rejeição às puniçõescorporais na escola representavamuma convicção filosófica merecedorade respeito numa sociedade demo-crática, embora a criança não sofra aviolência física diretamente. A meraameaça de violência deveria ser re- jeitada. Realçou Klecker que a puni-ção corporal é o desrespeito total

     para com o ser humano; e isso não pode depender da idade desse ser humano. (grifo nosso). Ponto muitoimportante desse julgado foi ter co-meçado a examinar se as convicçõesdos pais não são incompatíveis coma dignidade da pessoa e, além dis-

     so, não vão contra o direito funda- mental da criança à instrução. (grifonosso)

     Tais seriam, pois, conforme apesquisa de Reis Monteiro e os itens22 e 23 por nós acrescentados, “asfontes principais do direito à educa-ção” e, na expressão do mesmo au-tor, todo esse vasto corpus  jurídicoconstitui um verdadeiro Direito Inter-

    nacional da educação, no seio do Di-reito internacional dos direitos do ho-mem15.

    A educação deve ser vistacomo “direito fundamental” do serhumano porque, conforme ensinaCanotilho, os direitos fundamentaissão direitos dos indivíduos perante oEstado16. E mais, o Estado democrá-tico exige os direitos fundamentais;os direitos fundamentais exigem oEstado de direito democrático17. Nãopodemos, pois, conceber um Estadodemocrático de Direito sem garantir

    aos indivíduos o Direito à educação,oponível ao Estado. É o que fez aConstituição brasileira de 1988, porexemplo. Logo, educação é direitohumano, fundamental, de todos.

    2 DO DIREITO INDISPONÍVEL DASPESSOAS COM DEFICIÊNCIA À

    EDUCAÇÃO ESCOLAR

    A nossa Constituição, além detratar a educação como direito funda-mental, elegeu como um dos princí-

    pios basilares do ensino a todos aigualdade de condições para acessoe permanência na escola  (art. 206,inc. I).

    Escola é o estabelecimentopúblico ou privado onde se ministra,sistematicamente, ensino coletivo 18.O ensino coletivo é, portanto, pres-suposto para ser “escola”. Para nãoser discriminatória e ter a coletivida-de como público, deve ser o localonde estudam os alunos do bairro, dacomunidade, independentemente de

    suas características individuais. Sóassim a escola será o espaço ade-quado e privilegiado da preparaçãopara a cidadania e para o pleno de-senvolvimento humano, objetivos aserem alcançados pelo ensino e pre-vistos na Constituição Federal de 1988(art. 205).

    No entanto, apesar de a edu-cação ser um direito humano, fun-damental, e ter a escola como viaprincipal, é comum a recusa19 de alu-nos pelos mais diferentes motivos,desde uma pequena dificuldade de

    aprendizado até uma deficiência gra-ve, embora isso não prive o aluno deuma interação, ainda que pequena,com os demais.

    A escola deve enfrentar o de-safio das diferenças a fim de ser umlocal acolhedor para todos e, conse-qüentemente, “escola” de verdade. Ébíblico o ensinamento de que a reali-zação plena só é alcançada pelo ca-minho mais difícil, chamado de “por-ta estreita”. Não há realização possí-vel quando deixamos para trás, em

    nome do caminho mais fácil, pesso-as que deveríamos envolver.A “porta estreita” às vezes se

    apresenta como muito difícil, mas a“porta larga” das turmas homogê-neas, que facilita o trabalho dos edu-cadores, acaba estreitando20 a men-te e o progresso social dos alunos,que têm direito de ter contato com adiversidade, com a vida.

    Não podemos negar que al-guns alunos, principalmente aquelesque têm certos tipos de deficiência,precisam de cuidado especial para

    que possam ter pleno acesso à edu-cação. No entanto, tal não pode sig-nificar seu confinamento em umasala/escola, longe dos demais. Aocontrário, deve-se oferecer subsídiospara que os alunos com deficiênciapossam aprender conteúdos especí-ficos concomitantemente ao ensinocomum.

    Mesmo se existisse um graude especialização escolar tão eleva-do, a ponto de se destinar espaçosexclusivos para contemplar cada um

    dos tipos de necessidades educacio-nais especiais, a atitude seria umcontra-senso. Um espaço assim podeaté ser importante por algumas horas

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    do dia, mas não supre totalmente odireito de acesso à educação esco-lar, porque não pode ser considerado“escola”, já que não ministra o ensino“coletivo”. E ainda, em tal local, nãohá como se estar voltado ao pleno de-senvolvimento humano e ao preparopara o exercício da cidadania, poissabemos: “homem nenhum é uma

    ilha”21

    , logo não pode ser educadocomo tal22. Isso não seria “educação”.De acordo com nossa atual Lei

    de Diretrizes e Bases da EducaçãoNacional, Lei n. 9.394/96, art. 21, aeducação escolar compõe-se de:

    I - ed uc ação básic a, formada pela ed ucação infantil, ens ino funda- menta l e ensino médio; e 

    II - educação superio r.No Brasil, portanto, o direito à

    educação contempla o direito de aces-so à escola, com a oferta dos níveisde ensino acima previstos. Nenhuma

    outra modalidade de ensino (com ex-ceção da educação de jovens e adul-tos23) supre o direito à educação es-colar.

    A educação também foi ado-tada como um direito misto. Além deser um direito de todos os homens edever do Estado, é também obriga-tória em seus anos elementares. Dis-põe o art. 208, inc. I, da Constituiçãoque o ensino fundamental é obriga-tório.

    Platão já ensinava ser a edu-

    cação não só um direito, mas umaobrigação. A educação escolar se-ria uma obrigação também paraquem tem deficiência? Se reconhe-cêssemos que não, seria o mesmoque a negação da cidadania, poisesta pressupõe direitos e deveres.Pessoas acometidas de doenças con-tagiosas por mera convivência soci-al, que necessitam de internação hos-pitalar, estão dispensadas dessaobrigatoriedade, mas nem em relaçãoa elas o Poder Público está desobri-gado, uma vez que deve aparelhar

    as chamadas “classes hospitalares”,quando necessário.

    A escola especial quer ter omesmo caráter: atendimento à parte,pelo tempo necessário. Parece muitoplausível, mas na prática implica ex-clusão e ofensa a direitos fundamen-tais na medida em que não há motivopara impedir a convivência de pes-soas portadoras de deficiência comoutras sem tais limitações. Ao con-trário, há razões de sobra para lhesproporcionar essa convivência, em-

    bora difícil num primeiro momento,mas imprescindível para a superaçãodos desafios que todos enfrentarãoem sociedade.

    Nada temos contra o atendi-mento educacional especializado aosque dele necessitem, oferecido em es-colas especiais, mas isso deve serfeito, conforme já mencionado, emrespeito à Constituição e à LDBEN,como apoio e complemento à escola-rização em ambientes educacionaiscomuns.

    Em nível fundamental, portan-to, o direito de acesso à educaçãoescolar é um direito indisponível, oque, mais uma vez, revela a necessi-dade, muito pouco lembrada, de todaescola habilitar-se para receber todosos educandos.

    Se compararmos a atual Cons-tituição brasileira com as Cartas an-teriores, veremos que ela trouxe ino-vações muito importantes no DireitoEducacional. Nina Beatriz Ranieri ob-serva que se as c artas anteriores fo- ram econômicas em relação ao d ever 

    do Estad o com a educação, a atual Constituição chega a ser m inuc iosa 24.

    Da análise do histórico das fon-tes do direito à educação, aqui trazi-do em resumo, verificamos que as“minúcias” de nossa Constituição es-tão em perfeita consonância com asdiretrizes mundiais mais recomenda-das no tocante ao direito à educação.Nossa Constituição, ao garantir a edu-cação como direito humano, funda-mental e indisponível, baseia-se nosprincípios da igualdade, da não-dis-

    criminação, no direito de acesso detodos aos níveis mais elevados doensino, da pesquisa e da criação ar-tística e na obrigatoriedade do ensi-no fundamental.

    Mas tudo isso causa grandeimpasse para muitas escolas, queainda apóiam seu aparente sucessoem exclusões e imposições de mo-delos a serem alcançados pelos alu-nos. Essas exclusões vão desde asmais terríveis formas de discrimina-ção, motivadas por critérios de etnia,religião, até uma bem intencionada

    repetência25 de uma série para outra.

    3 DA PRÁTICA DA LIBERDADECOMO SOLUÇÃO PARA O DESAFIO

    DA DIVERSIDADE PELA ESCOLA

    Sampaio Dória26, à luz da Cons-tituição de 1946, apontava o caminhopara a educação de um povo comosendo a “escola da liberdade”. Só umpovo educado com liberdade e paraa liberdade é capaz de construir emanter um regime democrático.

    A escola formadora do alunopara o exercício da cidadania acolhee incentiva o espírito crítico do edu-cando. Torna-o capaz de reconhecer

    no outro, embora este outro seja mui-to diferente, um cidadão com os mes-mos direitos.

    A maioria das pessoas edu-cadas em regimes rígidos, treinadasapenas para obedecer e se esquecerde quem “não acompanhou a turma”,não sabe lidar com a liberdade e aca-ba se transformando em adultos sembrilhantismo, ou em hábeis descum-pridores de regras.

    A educação na liberdade pres-supõe a consciência de que todos

    têm direitos iguais e por isso o res-peito às decisões coletivas ocorrenaturalmente27. O resultado obtido éo exercício da “liberdade com respon-sabilidade”28, alicerce da democracia.

    Não é isso o que tradicional-mente fazem as escolas. Basta quequalquer um de nós tente recordar-sede momentos ali vividos que já vêmà mente os horários incontrastáveis,as tarefas indesejadas, castigos, com-parações e competições, entre outrosexemplos que revelam muito poucode liberdade.

    Por mais que as escolas atuaistentem abandonar a rigidez, o que amaioria está conseguindo é o cresci-

    Emnível fundamental,portanto, o direito de acessoà educação escolar é umdireito indisponível,

     

    o que,

    mais uma vez, revela anecessidade, muito poucolembrada, de toda escolahabilitar-se para recebertodos os educandos. (...)Nossa Constituição, aogarantir a educação comodireito humano, fundamentale indisponível, baseia-se nos

    princípios da igualdade, danão-discriminação, no direitode acesso de todos aos níveismais elevados do ensino, dapesquisa e da criaçãoartística e na obrigatoriedadedo ensino fundamental.

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    mento da indisciplina, pois o modeloda subordinação do aluno, ainda man-tido graças à exclusão dos que nãose encaixam no padrão esperado, nãopermite ao educando exercer a liber-dade e viver na diversidade.

    Dessa forma, tais escolas nãosão adequadas nem mesmo para aclientela que já possuem e por isso,

    embora sem nenhum tipo de defi-ciência, os alunos fogem do desafioda diversidade. Os educadores justi-ficam essa fuga com a alegação deque querem proporcionar maior qua-lidade de ensino aos alunos mais pri-vilegiados intelectualmente, como sea qualidade do ensino fosse medidapelo maior número possível de maté-ria que o professor registra comodada. Esquecem-se da célebre frasede Montaigne: mais vale uma cabe- ça bem-fe ita do que uma cabeça cheia 29. Não é natural que se forme

    cidadãos em um ambiente de com-petição e não de cooperação, em quese espera dos alunos a obediência, enão a emancipação.

    Paulo Freire constata que uma das grandes, se não a maior, tragé- dia d o homem moderno, está em que éhoje d ominado pela força dos mi- tos e comandado pela publicidad e organ izada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o sabe r, à sua cap acidade d e dec i- d ir 30. Lembra que grande parte dos

    homensnão cap ta as tarefas que têm ,mas elas lhes são apresentadas por uma elite, que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, prescri- ção a ser seguida. E, q uand o julg a que se salva seguindo as prescri- ções, afoga-se no anonima to nive- lador da massific ação, sem esperan - ça e sem fé, domesticado e acomo- dad o: já não ésujeito .(...) Segundo Fromm, este homem não sab e mais atuar segundo a sua p rópria vonta- de . (...) Ajusta-se 31 ao mandado de autoridad es anônimas e adota um eu 

    que não lhe p ertence. Quanto mais proced e deste modo, tanto mais se sente forçado a conformar sua c on- duta à expec tativa alheia. Apesar de seu d isfarce de iniciativa e otimismo,o homem moderno está esmag ado por um p rofundo sentimento de im- po tência que o faz olhar fixamente e ,como que paralisado, p ara as ca tás- trofes que se avizinham.

    Para Freire, a solução estariaem uma p ermanente atitude crítica ,único mod o pelo qual o homem reali- 

    zará sua vocação natural d e integ rar- se, superando a atitude do simples ajustamento ou acomodação, apreen- dendo temas e tarefas d e sua época .

    Ricardo Semler32, por sua vez,afirma que pesquisado res d e várias partes do mundo também c onc luíram que a escola atua l está obsoleta. E o que vem no lugar dela? (...) se o pres- suposto éo de q ue estamos passan- do p ara a tal da “era do conhecimen- to” (e, talvez, para a era d a sabed o- ria, que p oderia vir a seguir), pergun- 

    ta-se: Que tipo de esc ola prepara crianças para isso e qual éa q ues tão fundamental para que elas apren- dam? E eu respondo: provavelmen- te, o âmb ito da liberdad e 33.

    Ou seja, de Dória (1946) aSemler (2004), aponta-se como solu-ção para a formação de cidadãos oexercício da liberdade. A diversida-de em sala de aula é a conseqüênciaóbvia de um ambiente como esteporque, para exercer a liberdade, éindispensável o reconhecimento dodireito de todos à igualdade34.

    A diversidade e a liberdade,portanto, estão entrelaçadas. A pri-meira, além de ser conseqüência, épressuposto para o sucesso da es-cola cidadã, e a prática da liberdade,por sua vez, é a única forma de selidar com essa diversidade intelectualcom qualidade.

    Para tanto, as escolas não po-dem mais se organizar com a exclu-são de crianças que não se adaptamaos seus padrões; não podem maisavaliar crianças e adolescentes exi-

    gindo deles mérito para cursar o en-sino fundamental, absurdo diante dofato de que essa etapa escolar é umdireito indisponível. Garantir o aparen-te sucesso de algumas escolas combase na subordinação dos alunos atais regras está muito longe da alme- jada prática da liberdade.

    A nossa Constituição delineouas escolas brasileiras como verda-deiro berço de cidadania. Para issobasta que elas se utilizem de práti-cas de ensino que acolham as dife-renças, fazendo com que os alunos

    se considerem, uns aos outros, comopartes indispensáveis de uma mes-ma comunidade.

    A escola da liberdade conside-ra o ritmo e as aptidões de cada indi-víduo e oferece condições35 para quetodos nela permaneçam e progridam.Não espera colocá-los em padrão.Numa escola assim, as pessoas comdeficiência são naturalmente acolhi-das.

    4 EDUCAÇÃO INCLUSIVA: UMA

    REVOLUÇÃONorberto Bobbio, emA Era dos 

    Direitos 36,  lembra que a Revolução

    Francesa, a qual teve como lemas aigualdade, a liberdade e a frater-nidade, foi exaltada e execrada, julgada ora como obra divina, oracomo obra diabólica.

    A chamada “educação inclusi-va” é uma revolução. Assim como afrancesa, é ao mesmo tempo exalta-da e execrada. Vamos explicar por

    quê. Revolução é qualquer grande transformação soc ial e p olític a sus- cetível de sub stitu ir as institu ições e relações socia is anteriores e d e ini- ciar novas relações de poder e de au- toridade 37. A educação inclusiva éuma revolução38, pois ela implica umagrande transformação dos ambienteseducacionais, transformação extrema-mente benéfica para todos os edu-candos.

    Apesar de ser inegável que aeducação “é um direito do homem”,

    infelizmente, o que temos visto naprática, na maioria das escolas, é queé um direito do homem que acompa- nha a turma , do aluno que não apre-senta nenhum tipo de necessidademais específica. Se isso ocorrer, éconvidado a procurar outro local “pre-parado” para “aquela” necessidade e,se não encontrar, deve ter paciência.A característica individual é um pro-blema dele e de sua família.

    Mesmo após séculos de afir-mação da educação, ou instrução,

    como direito humano, as pessoascom deficiência pareciam não estarcontempladas com esse direito.Quando começaram a ter reconheci-do o seu direito à educação, muitorecentemente39, o foram apenas parao fim de lhes garantir o acesso a umaeducação “especial”.

    Porém, atualmente, estamosdiante de um movimento mundial pelainclusão de alunos com qualquer ne-cessidade especial nas escolas eclasses comuns do ensino regular, oque é uma novidade, pois o quadro

    tradicional do ensino sempre nosapresentou escolas regulares, ou co-muns, e escolas especiais, cada umacom sua clientela bem definida e se-parada.

    Normalmente, as escolas co-muns selecionam seus alunos no iní-cio e durante o curso, por meio deprocessos de avaliação que admitema repetência e até o encaminhamentodo educando ao ensino especial. Arede conhecida como “especial”, porsua vez, é composta, na sua esma-

    gadora maioria, de instituições filan-trópicas. Destina-se, basicamente, aoatendimento e ensino de pessoas comdeficiência visual e ou auditiva, de

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    pessoas com deficiência mental e,não raramente, de pessoas sem qual-quer deficiência40, mas que não se en-caixaram no ensino comum, por di-versos motivos.

    Com o movimento pela inclu-são, começaram a surgir as esco-las inclusivas, como uma terceira es-pécie, caracterizando-se por rece-

    berem, simultaneamente, na mesmasala de aula, pessoas com e semnecessidades educacionais espe-ciais.

     Tais escolas representam umoásis no campo dos direitos huma-nos e colocam em prática os ideaisda Revolução Francesa. Elas não searvoram no direito de recusar alunosem virtude de suas condições pes-soais e proporcionam as adequaçõesque se fizerem necessárias para bematender a todos (respeito ao princí-pio da igualdade); trabalham a dis-

    ciplina com base em “combinados”entre os alunos e dirigentes, oriun-dos da conscientização do respeitoaos direitos de todos (liberdade comresponsabilidade); e, para trabalharcom diferentes habilidades e limita-ções na mesma turma, lançam mão,o tempo todo, da cooperação entreos alunos, fazendo com que cada umse sinta útil, necessário (exercício dafraternidade).

    As escolas inclusivas sãoexaltadas pelos benefícios que se

    podem extrair de uma prática comoa citada acima. Mas também são ex-tremamente criticadas.

    De um lado, pelos profissio-nais ligados ao ensino comum, quenão se sentem “preparados” para li-dar com tal diversidade, apesar dea Resolução n. 2 do Conselho Plenodo Conselho Nacional de Educação,que trata da formação de professo-res para a educação básica, disporem seu art. 2º que um dos pressu-postos dessa formação é justamen-te habilitá-lo ao acolhimento e trato

    da diversidade.De outro lado, pelos profissio-

    nais ligados ao ensino especializa-do, que parecem ter medo de per-der sua clientela. No entanto, esseaparente medo decorre do fato denão terem consciência de que jamaisserão dispensáveis, se utilizaremseus conhecimentos não para edu-car alunos com necessidades espe-ciais em separado, mas para ofere-cer-lhes subsídios que os habilitema freqüentar o ensino comum.

    Os críticos da educação inclu-siva jamais dizem que são contra ainclusão mas, com um discurso mui-to palatável, alegam serem a favor

    de uma inclusão “com responsabili-dade”41. Segundo eles, inclusão comresponsabilidade significa que a es-cola deve continuar selecionando erecebendo apenas os alunos para osquais ela se julga previamente “pre-parada”, o que implica a recusa rei-terada de muitos deles. Pensamosque inclusão com responsabilidade

    significa que a escola deve recebertodos os educandos, adequando-seconforme as necessidades deles, porser impossível prever todas de an-temão. Não há responsabilidade narejeição de um aluno com limitações,sabendo-se que ele precisa da con-vivência com outros educandos semas mesmas necessidades especiais.É mais provável que, com essa re-cusa, ele acabe ficando sem acessoà educação escolar.

    5 CONCLUSÃO: EDUCAÇÃO

    INCLUSIVA = EDUCAÇÃO

    A educação inclusiva é, no di-zer de Boaventura Santos, respei- tadora d as diferenças de conc ep- ções alternativas da dig nidade hu- mana 42.

    Para nós, a expressão “esco-la inclusiva” é um pleonasmo, sim-plesmente porque, se não for “inclu-siva”, não é escola e, conseqüente-mente, está ferindo o disposto emnossa Constituição.

    A Constituição brasileira ga-rante a todos a educação escolar (art.206, I). A educação deve visar ao ple-no desenvolvimento da pessoa e seupreparo para o exercício da cidada-nia (art. 205), com acesso obrigató-rio ao ensino fundamental (art. 208,I), que só pode ser ministrado em“escola” (art. 21, LDBEN), vale repe-tir. Escola pressupõe o ensino cole-tivo (definição obtida até nos dicio-nários comuns).

    O atendimento educacional es-pecializado, por sua vez, deve ser

    oferecido preferencialmente na rederegular (art. 208, IIII), e não está es-crito, em local algum, que ele dis-pensa o ensino fundamental obriga-tório. Como atendimento educacionalespecializado, ou educação especial(LDBEN, art. 58 e ss.), é diferente deensino escolar (LDBEN, art. 21), eledeve ser oferecido como complemen-to, não suprindo sozinho o direito deacesso ao ensino fundamental.

    Assim, ou a escola recebe atodos, com qualidade e responsabi-

    lidade, sendo “inclusiva”, ou não es-tará oferecendo “educação”, nos ter-mos definidos na Constituição de1988.

    NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

    1 A que se organiza para receber, no mesmoambiente escolar, todos os alunos, aindaque alguns possuam limitações signi-ficativas.

    2 Maria Cândida de Moraes alerta para a necessidade de criarmos não apenas ambientes intelectualmente adequados, mas também emocionalmente sadios,onde prevaleça a cooperação, a alegria eo prazer em aprender. Ambientes compe-titivos, segundo Maturana, tendem adestruir as relações cooperativas pela

     negação do out ro em nome de uma pseudoprodutividade. A inveja, o medo e ambição, a compet ição, res tringem aconduta inteligente e estreitam a visão e a

     atenção, limitando a dinâmica operacionaldo indivíduo e, conseqüentemente, o seucampo de ação e de reflexão. MORAES,Maria Cândida. Educar na biologia do amor e da solidariedade. Petrópolis: Vozes, 2003.p. 118.

    3 FREIRE, Paulo. Educação como práticada liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,2001.

    4 MONTEIRO, Agostinho Reis. O direito àeducação. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.p. 35-46.

    5 Idem, p. 35.6 Idem, p. 35-46.7 Segundo os registros dessa época, apenas

    no século XVIII começou-se a falar em

    (...) as escolas não podemmais se organizar comaexclusão de crianças que

    não se adaptamaos seuspadrões; não podemmaisavaliar crianças eadolescentes exigindo delesmérito para cursar o ensinofundamental, absurdo diantedo fato de que essa etapaescolar é umdireitoindisponível. Garantir o

    aparente sucesso dealgumas escolas combasena subordinação dos alunosa tais regras está muitolonge da almejada prática daliberdade.

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    34 R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 27-35, jul./set. 2004

    educação para as pessoas com deficiên-cia, porém jamais de forma integrada, e opior, sob o título de “educação de defi-cientes” encontram-se atendimentos ouatenção em vários sentidos: abrigo,assistência, terapia etc., mas não no sentidoeducacional. Os locais que podiam serchamados de “escolas” destinavam-se àeducação apartada de surdos e cegos, apartir de 1770 (MAZZOTTA, Marcos J. S.Educação especial no Brasil: histórias epolíticas públicas. São Paulo: Cortez, 1966.p. 16-25.

    8 Interessante observar que os objetivos dachamada “instrução primária”: habilidadede leitura, escrita e cálculo, aliados aoprogresso moral, são os mesmos daatualidade, em relação ao ensino funda-mental, conforme se vê do art. 32 da Lei n.9.394/96 (LDBEN):  Art. 32. O ensinofundamental, com duração mínima de oito

     anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básicado cidadão, mediante: I - o desenvol-vimento da capacidade de aprender, tendocomo meios básicos o pleno domínio da

     le itura , da esc ri ta e do cálculo; II - acompreensão do ambiente natural e social,do sistema político, da tecnologia, das artese dos valores em que se fundamenta a

     sociedade; III - o desenvolvimento dacapacidade de aprendizagem, tendo emvista a aquisição de conhecimentos e

     habilidades e a formação de atitudes evalores; IV - o fortalecimento dos vínculosde família, dos laços de solidariedade

     humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

    9 Ao que tudo indica, portanto, somente emmeados do século XX mencionaram-sepessoas com déficits intelectuais como

    titulares do direito à educação, e lhes foireconhecido – corretamente – o direito àeducação, e não à educação especial. Aexpressão “educação especial”, ao invésde garantir as condições necessárias paraa participação de pessoas com deficiênciana sala de aula comum, acabou sendousada para o oferecimento de uma“educação” à parte.

    10 Mesmo assim, com todo esse reconhe-cimento aos direitos humanos, autores daépoca, bastante distinguidos na matéria, eque não podem sequer ser criticados,ainda têm muita dificuldade de se posi-cionar em relação aos direitos das pessoascom deficiência. Vale transcrever oseguinte trecho de Sampaio Dória, sobreo princípio da igualdade: em não setratando de monstros, em quase nadadiferem entre si os recém-nascidos. Têmtodos os mesmos órgãos, a mesmaconformação geral, cabeça sobre osombros, duas mãos, dois braços, duas

     pernas, dois pés, os mesmo aparelhos internos, coração, rins, pulmões, intes-tinos, os mesmos sentidos . (DÓRIA,

     Antônio de Sampaio. Os direitos do homem. São Paulo: Revista dos Tribunais,1942. p. 632).

    11 Item por nós acrescentado, não consta daobra de A. Reis Monteiro.

    12 Idem.13 Apesar de proclamar a “educação inclu-

    siva”, contraditoriamente, reconhece aspessoas com deficiência como titulares do

    direito à “educação especial”. Para esteinstrumento, que reflete o pensamento daépoca e de muitos até hoje, mas não oque consta da CF/88 e da atual LDBEN,educação especial seria a que se destinaao ensino das pessoas com deficiência eoutras, independentemente do tipo delimitação (física, sensorial ou mental) e deesse tipo de limitação interferir ou não noaprendizado. A educação especial, paraestes, independe do conteúdo ministradoe da vivência proporcionada; pode seroferecida tanto em ambientes comunscomo em ambientes especiais, basta quetenha como destinatárias pessoas comnecessidades especiais (educacionais ounão, já que alunos com deficiência física,que não demandam nenhum tipo deaparato educacional, sempre foramcomputados nas estatísticas da “educaçãoespecial”).

    14 Da leitura desse documento é possívelconcluir que o “todos” de Jomtien não é omesmo “todos” de Salamanca.(WERNECK, Cláudia. Quem cabe no seutodos? Rio de Janeiro: WVA, 1999. p. 23).

     Além de Jomtien dar especial ênfase àexclusão das mulheres do direito àeducação, traz expresso em seu texto:cada pessoa – criança, jovem ou adulto –deve estar em condições de aproveitar asoportunidades educativas voltadas para

     satisfazer suas necessidades básicas de aprendizagem.

    15 MONTEIRO, op.cit., p. 46.16 CANOTILHO, José Joaquim Gomes.

    Fundamentos da Constituição. Coimbra:Coimbra, 1991. p. 101.

    17 Idem, p. 99.18 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.

    Novo dicionário da língua portuguesa .

    19 A recusa, cancelamento, suspensão ouprocrastinação de matrícula em escola parapessoas com deficiência é prevista comocrime pela Lei n. 7.853/89.

    20 V. menção a Maturana, nota n. 1.21 Esta frase é do poeta inglês John Done:No

     man is an island, extraída do lindo poema“Por quem os sinos dobram” (For whom the

     bell tolls). Esse poeta, numa incrível lição dehumanidade, após dizer que homemnenhum é uma ilha, afirma que a morte decada homem o diminui, por isso, quando ossinos da igreja anunciarem um falecimento,“não pergunte por quem os sinos dobram,eles dobram por ti”. Para que todas aspessoas, inclusive as que têm deficiênciaou dificuldades de aprendizado, façam partedessa humanidade, a convivência escolaré uma das condições imprescindíveis. Sóassim os sinos de sua exclusão dobrarãopor cada um de nós.

    22  A sociedade é ambiente indispensável àvida do homem. (DÓRIA, op. cit., p. 12).

    23 Somente esta modalidade é prevista naLDBEN dentro do capítulo relativo àeducação básica, e tem autorização legalpara oferecer certificação compatível como ensino fundamental ou médio:  Art. 38.Os sistemas de ensino manterão cursos eexames supletivos, que compreenderão a

     base nacional comum do curr ículo,

     habilitando ao prosseguimento de estudosem caráter regular: § 1º Os exames a que

     se refere este art. realizar-se-ão: I - no nívelde conclusão do ensino fundamental, para

    os maiores de quinze anos; II - no nível deconclusão do ensino médio, para os

     maiores de dezoito anos.24 RANIERI, Nina Beatriz.Educação Superior,

    Direito e Estado na Lei de Diretrizes e Bases(Lei n. 9.394/96). São Paulo: Editora daUniversidade de São Paulo, Fapesp, 2000.p. 74.

    25 Sobre não-repetência ver também: PARO,Vitor Henrique. Reprovação escolar :renúncia à educação. São Paulo: Xamã,2001; FREITAS, Luiz Carlos de. Ciclos,

     seriação e avaliação: confrontos de lógicas.São Paulo: Moderna, 2003. (ColeçãoCotidiano Escolar).

    26 DÓRIA, Antônio de Sampaio.Comentários à Constituição de 1946. São Paulo: MaxLimonad, 1960.

    27 Uma das acepções de liberdade é a deque ela é limitada pelo direito dos outros a

     não serem prejudicados, reflet ind o oclássico  princípio iuris do neminem laedere.(BOBBIO, Norberto.  A era dos direitos.Tradução de Carlos Nelson Coltinho. Riode Janeiro: Campus, 1992. p. 122).

    28 Para Sampaio Dória, deve haver um

    equilíbrio entre a liberdade e autoridade:Cada uma tem sua esfera própria de ação.(...)  os indivíduos são livres por direito

     próprio, e seu poder de ação só tem por  limites o direito alheio expresso na lei, queeles mesmos tenham votado. (...)  a

     autoridade não é milagre que venha docéu, mas um poder que emana dacoletividade, para lhe assegurar ascondições de vida e desenvolvimento. Aautoridade é uma coação incontrastável,mas não para  sacrificar a liberdade, mas

     precisamente para defini-la e defendê-la.Os Direitos do Homem, p. 05.

    29 MORIN, Edgar.  A cabeça bem- fe it a :

    repensar a reforma, reformar o pensamento.Trad. de Eloá Jacobina. 9. ed. Rio deJaneiro: Bertrand Brasil, 2004.

    30 FREIRE, op. cit., p. 51.31 Ainda de acordo com Fromm, citado por

    Paulo Freire, na mesma obra.32 SEMLER, Ricardo; DIMENSTEIN,

    Gilberto;COSTA, Antônio Carlos Gomesda. Escola sem sala de aula. Campinas:Papirus, 2004. p. 11.

    33 Idem, p. 12.34 Bobbio ensina que  a igualdade, valor 

     supremo de uma convivência em socie-dade feliz, é uma aspiração constante dos

     homens e tema das ideologias e das teorias políticas, está sempre lado a lado com a liberdade.(BOBBIO, Norberto. Igualdade y  libertad. Intr. de Gregório Peres Barba. Trad.de Pedro Aragon Rincón. Barcelona:Paidós Ibérica, 1993. p. 53).

    35 Essas condições para os alunos comdeficiência vão desde a adaptaçãoarquitetônica das escolas, o oferecimentode intérpretes de língua de sinais, materialdidático adaptado, a práticas de ensinoque acolham a diversidade intelectual doalunado. Para maiores detalhes, consultar“O Acesso de pessoas com deficiência

     às classes e escolas comuns da rede regular de ensino”, manual publicado peloMinistério Público Federal, em parceria

    com outras instituições. Disponível em:.

    36 BOBBIO. A era ..., op. cit., p. 85-142.37 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de

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    35R. CEJ, Brasília, n. 26, p. 27-35, jul./set. 2004

    Filosofia . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.p. 344.

    38 Ver também BELISÁRIO FILHO , JoséFerreira. Inclusão : uma revolução na

     saúde. Rio de Janeiro: WVA, 1999.39 MAZZOTTA, op. cit., p. 15. O mesmo autor,

    na página 16, lembra que, até o séculoXVIII, as noções a respeito da deficiênciaeram basicamente ligadas a misticismo eocultismo, não havendo base científicapara o desenvolvimento de noçõesrealísticas. O conceito de diferençasindividuais não era compreendido ouavaliado. As noções de democracia e

     igualdade eram ainda mera centelhas na imaginação de alguns indivíduos criadores(CRUICKSHANK, W.M.  A educação dacriança e do jovem excepcional. Porto

     Alegre: Globo, 1974. v. 1. p. 11).40 É o atendimento para pessoas com as

    denominadas “necessidades especiais”,termo abrangente que não se restringe àsdeficiências.

    41 Para uma idéia mais aprofundada sobretodas essas críticas, vale consultarOMOTE, Sadao (org.). Inclusão: intenção

    e realidade. Marília: Fundepe, 2004.42 SANTOS, Boaventura de Souza (org.).Reconhecer para libertar : os caminhos docosmopolitismo multicultural. Rio deJaneiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 25.

    BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

    CARVALHO, Rosita Edler.  A nova LDB e aeducação especial. 2. ed. Rio de Janeiro: WVA,1998.MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Ser ou estar,eis a questão: explicando o déficit intelectual.Rio de Janeiro: WVA, 1997.

    ______. Inclusão escolar : O que é? Por quê?Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

     ABSTRACT 

    Eugênia Augusta Gonzaga Fávero  éProcuradora da República e ProcuradoraRegional dos Direitos do Cidadão no Estadode São Paulo.

    The authoress considers handicappedpeople’s right to education as a fundamentaland inalienable right with a view to, amongothers, the principle of equal conditions of 

     access and permanence in school  (BrazilianConstitution, article 206, I).

    However, she states that the practicecontradicts the constitutional postulate, for thestudents with this feature are segregated in

    “special” classes or schools, being deprived ofcontacting with diversity and stimuli that only aheterogeneous setting may provide.

    She discourses on the judicial aspectsrelated to handicapped people’s right toeducation and on the freedom practice as theonly way to face the intellectual diversity withquality, because to perform it, theacknowledgement of equality as everybody’sright is essential. At last, she supports the“inclusive” education, which consists ofacceptance of differences and dealing witheach person’s limitations through cooperativeparticipation among the students.

    KEYWORDS – Education; Constitutional

    Law; handicap – mental, intellectual; principleof equality; “inclusive” school; BrazilianConstitution of 1988; Educational Law;International Law; Law n. 9,394/96.