Direito a Saude

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O DIREITO À SAÚDE Sueli Gandolfi Dallari* DALLARI, S. G. O direito à saúde. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 22:57-63, 1988. RESUMO: No fim do século XX a simples declaração de direitos não satisfaz ao povo. Busca-se delimitá-los determinando seu conteúdo, para se construírem estruturas que possam garantir o direito declarado. Nessa linha analisou-se a conceituação de saúde e de direito à saúde para procurar na organização do Brasil, Estado federal e capitalista, meios para garantir o direito à saúde. A municipalização das ações de saúde somada à necessidade de aprovação legislativa do Plano de Saúde e à organização judiciária local foram considerados elementos importantes para a efetivação do direito à saúde. UNITERMOS: Direito à saúde. Planejamento em saúde. Regionalização. Legislação sanitária, tendências. * Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo — Av. Dr. Arnaldo, 715 — 01255 — São Paulo, SP — Brasil. ** Altavila 1 apresenta excelentes análises dos textos legislativos clássicos. *** Veja-se, por exemplo, o relatório da VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em Brasília em setembro de 1986, os relatórios do Grupo Assessor para a Reforma Sanitária do Ministério da Saúde e as propostas para a nova Constituição apresentadas pelo Conselho Federal de Medicina e pela Socie- dade Brasileira para o Progresso da Ciência. INTRODUÇÃO O atual momento constituinte brasileiro caracteriza-se pela participação inusitada do povo. Os temas constitucionais estão sendo intensamente debatidos, e os direitos humanos, sem dúvida o tema de maior apelo popular, têm sido objeto de inumeráveis discussões. Aceita-se ser esse o momento ideal para que o documento social fundamental estabeleça os meios de garantir a existência desses direitos essenciais. E o povo não quer perder tal oportunidade. A experiência contemporânea favorece a confirmação da teoria das necessidades de Maslow 9 uma vez que, dada a predominância numérica de indivíduos pertencentes ao grupo social que mal consegue assegurar sua conser- vação vital, as reivindicações constitucionais por direitos humanos concentram-se naqueles direitos derivados diretamente da organização econômico-social. Trata-se de direitos comple- xos, cuja definição de seus conteúdos demanda elaboração social e, por isso mesmo, tempo. É inegável que o homem sempre teve neces- sidade de abrigo ou de saúde, por exemplo, mas a expressão delas tem variado conforme a consciência individual derivada da organi- zação social historicamente dominante. Assim, a Tábua VI da Lei das XII Tábuas romanas protege expressamente o direito à habitação, ainda nos anos 290 d.C., e a Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787, não contém uma só linha sobre o assunto. E o código de Hamurabi, legislação babilônica de 2.000 anos a.C., preocupa-se com a função social da propriedade da terra, tema que os constituintes franceses de 1791 sequer abor- daram**. A sociedade brasileira, especialmente du- rante a década originada em 1980, tem adqui- rido a consciência de seu direito à saúde. Tanto aqueles milhões de pessoas ainda com- pletamente à margem do mercado consumidor, quanto as elites econômico-sociais têm reivin- dicado a garantia do direito à saúde. Ninguém tem dúvida de que o artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organi- zação das Nações Unidas, assinada pelo Bra- sil, quando enumera a saúde como uma das condições necessárias à vida digna, está reco- nhecendo o direito humano fundamental à saúde. Também os profissionais ligados à área da saúde vêm exigindo do governo brasileiro a proteção, promoção e recuperação da saúde como garantia do direito essencial do povo***. Todavia para que tal direito seja realmente garantido é necessário que se compreenda

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  • O DIREITO SADE

    Sueli Gandolfi Dallari*

    DALLARI, S. G. O direito sade. Rev. Sade pbl., S. Paulo, 22:57-63, 1988.RESUMO: No fim do sculo XX a simples declarao de direitos no satisfaz ao

    povo. Busca-se delimit-los determinando seu contedo, para se construrem estruturas quepossam garantir o direito declarado. Nessa linha analisou-se a conceituao de sade ede direito sade para procurar na organizao do Brasil, Estado federal e capitalista,meios para garantir o direito sade. A municipalizao das aes de sade somada necessidade de aprovao legislativa do Plano de Sade e organizao judiciria localforam considerados elementos importantes para a efetivao do direito sade.

    UNITERMOS: Direito sade. Planejamento em sade. Regionalizao. Legislaosanitria, tendncias.

    * Departamento de Prtica de Sade Pblica da Faculdade de Sade Pblica da Universidade de SoPaulo Av. Dr. Arnaldo, 715 01255 So Paulo, SP Brasil.** Altavila1 apresenta excelentes anlises dos textos legislativos clssicos.*** Veja-se, por exemplo, o relatrio da VIII Conferncia Nacional de Sade, realizada em Braslia emsetembro de 1986, os relatrios do Grupo Assessor para a Reforma Sanitria do Ministrio da Sadee as propostas para a nova Constituio apresentadas pelo Conselho Federal de Medicina e pela Socie-dade Brasileira para o Progresso da Cincia.

    INTRODUOO atual momento constituinte brasileiro

    caracteriza-se pela participao inusitada dopovo. Os temas constitucionais esto sendointensamente debatidos, e os direitos humanos,sem dvida o tema de maior apelo popular,tm sido objeto de inumerveis discusses.Aceita-se ser esse o momento ideal para que odocumento social fundamental estabelea osmeios de garantir a existncia desses direitosessenciais. E o povo no quer perder taloportunidade.

    A experincia contempornea favorece aconfirmao da teoria das necessidades deMaslow9 uma vez que, dada a predominncianumrica de indivduos pertencentes ao gruposocial que mal consegue assegurar sua conser-vao vital, as reivindicaes constitucionaispor direitos humanos concentram-se naquelesdireitos derivados diretamente da organizaoeconmico-social. Trata-se de direitos comple-xos, cuja definio de seus contedos demandaelaborao social e, por isso mesmo, tempo.

    inegvel que o homem sempre teve neces-sidade de abrigo ou de sade, por exemplo,mas a expresso delas tem variado conformea conscincia individual derivada da organi-zao social historicamente dominante. Assim,

    a Tbua VI da Lei das XII Tbuas romanasprotege expressamente o direito habitao,ainda nos anos 290 d.C., e a Constituio dosEstados Unidos da Amrica, de 1787, nocontm uma s linha sobre o assunto. E ocdigo de Hamurabi, legislao babilnica de2.000 anos a.C., preocupa-se com a funosocial da propriedade da terra, tema que osconstituintes franceses de 1791 sequer abor-daram**.

    A sociedade brasileira, especialmente du-rante a dcada originada em 1980, tem adqui-rido a conscincia de seu direito sade.Tanto aqueles milhes de pessoas ainda com-pletamente margem do mercado consumidor,quanto as elites econmico-sociais tm reivin-dicado a garantia do direito sade. Ningumtem dvida de que o artigo 25 da DeclaraoUniversal dos Direitos do Homem, da Organi-zao das Naes Unidas, assinada pelo Bra-sil, quando enumera a sade como uma dascondies necessrias vida digna, est reco-nhecendo o direito humano fundamental sade. Tambm os profissionais ligados reada sade vm exigindo do governo brasileiroa proteo, promoo e recuperao da sadecomo garantia do direito essencial do povo***.Todavia para que tal direito seja realmentegarantido necessrio que se compreenda

  • claramente o significado do termo "direito sade".

    CONCEITUAO DE SADEMuito j se escreveu a respeito da concei-

    tuao da sade durante a histria da huma-nidade. Hipcrates, filsofo grego que viveuno sculo IV a.C., refere a influncia da cida-de e do tipo de vida de seus habitantes sobrea sade e afirma que o mdico no cometererros ao tratar as doenas de determinadalocalidade quando tiver compreendido ade-quadamente tais influncias6. Do mesmo mo-do, Paracelso, mdico e alquimista suo-alemo que viveu durante a primeira metadedo sculo XVI, salientou a importncia domundo exterior (leis fsicas da natureza e fe-nmenos biolgicos) para a compreenso doorganismo humano. Devido a sua experinciacomo mineiro pde mostrar a relao de cer-tas doenas com o ambiente de trabalho10.Tambm Engels, filsofo alemo do sculoXIX, estudando as condies de vida de tra-balhadores na Inglaterra, nos albores da Re-voluo Industrial, concluiu que a cidade, otipo de vida de seus habitantes, seus ambien-tes de trabalho, so responsveis pelo nvel desade das populaes5.

    Outra corrente de pensamento, entretanto,evoluiu no sentido de conceituar a sade comosendo a ausncia de doenas. Pode-se encon-trar a origem de tal corrente nos trabalhos dofilsofo francs do incio do sculo XVII,Descartes4, que ao identificar o corpo humano mquina acreditou poder descobrir a "causada conservao da sade". Nessa linha deevoluo, o sculo XIX enfatizou o cartermecanicista da doena. Sob o predomnio damquina, a sociedade industrial procurou ex-plicar a doena como sendo o defeito na linhade montagem que exigia reparo especializado.Exatamente nesse momento os trabalhos dePasteur11 e Koch8 provam a teoria sobre aetiologia especfica das doenas e fornecem,ento, a causa que explica o defeito na linhade montagem humana.

    O ambiente social do fim do sculo passadoe primeira metade do sculo XX, auge daRevoluo Industrial, propiciou o debate en-tre as duas grandes correntes que buscaramconceituar a sade. De um lado, grupos mar-ginais ao processo de produo que viviam

    em condies de vida miserveis, enfatizavama compreenso da sade como diretamentedependente de variveis relacionadas ao meioambiente, ao trabalho, alimentao e mo-radia. A incidncia de tuberculose, por exem-plo, era acentuadamente mais elevada nascamadas sociais com menos renda. Por outrolado, a descoberta dos germes causadores dedoena e seu subseqente isolamento, que pos-sibilitou o desenvolvimento de remdios espe-cficos, falava a favor da conceituao dasade como ausncia de doenas. Com efeito,as drogas aperfeioadas, adequadamente em-pregadas, resultaram na cura de vrias doen-as, salvando muitas vidas.

    A interveno de fatores polticos foi, con-tudo, aparentemente o marco final de tal de-bate. A experincia de uma Grande Guerraapenas 20 anos aps a anterior, provocadapelas mesmas causas que haviam originado apredecessora e, especialmente, com capacida-de de destruio vrias vezes multiplicada,forjou um consenso. Carente de recursos eco-nmicos, destruda sua crena na forma deorganizao social, alijada de seus lderes, asociedade que sobreviveu a 1944 sentiu anecessidade ineludvel de promover um novopacto. Tal pacto, personificado na Organiza-o das Naes Unidas, fomentou a Decla-rao Universal dos Direitos do Homem,ao mesmo tempo em que incentivou a criaode rgos especiais dedicados a garantir algunsdesses direitos considerados essenciais aoshomens. A sade, reconhecida como direitohumano, passou a ser objeto da OrganizaoMundial de Sade (OMS) que, no prembulode sua Constituio (1946), assim a concei-tua: "Sade o completo bem-estar fsico,mental e social e no apenas a ausncia dedoena".* Observa-se, ento, o reconhecimen-to da essencialidade do equilbrio interno edo homem com o ambiente (bem-estar fsico,mental e social) para a conceituao da sade,recuperando os trabalhos de Hipcrates6, Pa-racelso10 e Engels5.

    A aceitao da influncia decisiva do meiosobre a sade, porm, no impediu o exerccioda crtica da conceituao proposta pela OMS.Especialmente os trabalhadores sanitrios aquestionaram afirmando que ela corresponde definio da felicidade, que tal estado decompleto bem-estar impossvel de alcanar-see que, alm disso, ela no operacional. Uma

    * A Constituio adotada pela Conferncia Internacional da Sade, realizada em New York de 19 a 22de julho de 1946 e assinada em 26 de julho de 1946 por representantes de 61 Estados, apresenta estadefinio como o primeiro princpio bsico para a "felicidade, as relaes harmoniosas e a seguranade todos os povos".

  • crtica recente, feita por Dejours3, terminaconcluindo que o estado de completo bem-es-tar no existe mas que a sade deve ser enten-dida como a busca constante de tal estado.

    Pode-se compreender a angstia dos sanita-ristas que tm to vasto objeto de trabalho,"busca constante do completo bem-estar fsico,mental e social e no apenas a ausncia dedoenas"; entretanto, qualquer reduo nadefinio desse objeto o deformar irremedia-velmente.

    CONCEITUAO DO DIREITO SADEPrimeiramente, deve-se compreender o que

    seja "direito", termo cuja simples anlise se-mntica revela sua complexidade. De fato, apalavra direito refere-se a um ramo do conhe-cimento humano a cincia do direito , aomesmo tempo em que esclarece seu objetode estudo: o direito, um sistema de normasque regulam o comportamento dos homensem sociedade. Muitas vezes se emprega a pa-lavra direito em sentido axiolgico como sin-nimo de justia e muitas outras em sentidosubjetivo, o meu direito; trata-se, como en-sina Reale12, da "regra de direito vista pordentro, como ao regulada". Kelsen7, filsofodo direito alemo, partindo da anlise lings-tica chega concluso de que o significadoda palavra Recht (direito, em alemo) e desuas equivalentes em outros idiomas (Law,Droit e Diritto para o ingls, francs e italia-no, respectivamente) o mesmo: "ordens deconduta humana".

    O termo empregado com seu sentido dedireito subjetivo na reivindicao do "direito sade". Todavia, a referncia regra dedireito vista por dentro implica necessaria-mente a compreenso do direito como regrasdo comportamento humano em sociedade. Defato, as normas jurdicas representam as limi-taes s condutas nocivas para a vida social.Assim sendo, a sade, definida como direito,deve inevitavelmente conter aspectos sociais eindividuais.

    Observado como direito individual, o di-reito sade privilegia a liberdade em suamais ampla acepo. As pessoas devem serlivres para escolher o tipo de relao que te-ro com o meio ambiente, em que cidade eque tipo de vida pretendem viver, suas con-dies de trabalho e, quando doentes, o re-curso mdico-sanitrio que procuraro, o tipode tratamento a que se submetero entre ou-tros. Note-se, porm, que ainda sob a ticaindividual o direito sade implica a liber-

    dade do profissional de sade para determinaro tratamento. Ele deve, portanto, poder esco-lher entre todas as alternativas existentesaquela que, em seu entender, a mais ade-quada. bvio, ento, que a efetiva liberdadenecessria ao direito sade enquanto direitosubjetivo depende do grau de desenvolvimentodo Estado. De fato, unicamente no Estadodesenvolvido socioeconmico e culturalmenteo indivduo livre para procurar um completobem-estar fsico, mental e social e para, adoe-cendo, participar do estabelecimento do tra-tamento.

    Examinado, por outro lado, em seus as-pectos sociais, o direito sade privilegia aigualdade. As limitaes aos comportamentoshumanos so postas exatamente para que to-dos possam usufruir igualmente as vantagensda vida em sociedade. Assim, para preservar-se a sade de todos necessrio que ningumpossa impedir outrem de procurar seu bem-estar ou induzi-lo a adoecer. Essa a razodas normas jurdicas que obrigam vacina-o, notificao, ao tratamento, e mesmo aoisolamento de certas doenas, destruio dealimentos deteriorados e, tambm, ao controledo meio ambiente, das condies de trabalho.A garantia de oferta de cuidados de sade domesmo nvel a todos que deles necessitamtambm responde exigncia da igualdade. claro que enquanto direito coletivo, a sadedepende igualmente do estgio de desenvol-vimento do Estado. Apenas o Estado que tivero seu direito ao desenvolvimento reconhecidopoder garantir as mesmas medidas de pro-teo e iguais cuidados para a recuperao dasade para todo o povo.

    O direito sade ao apropriar-se da liber-dade e da igualdade caracteriza-se pelo equi-lbrio instvel desses valores. A histria dahumanidade farta de exemplos do movimen-to pendular que ora busca a liberdade, ora aigualdade. Os homens sempre tiveram a cons-cincia de que para nada serve a igualdadesob o jugo do tirano e de que a liberdade sexiste entre iguais. Tocqueville13, compreen-dendo as causas profundas do movimento pen-dular da histria, entendendo que a liberdade um processo, um objetivo a ser alcanadoem cada gerao, afirmou: "As naes de hojeem dia no poderiam impedir que as condi-es fossem iguais em seu seio, mas dependedelas que a igualdade as conduza servidoou liberdade, s luzes ou barbrie, pros-peridade ou s misrias." Tambm o direito sade ser ou no garantido conforme aparticipao dos indivduos no processo.

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  • GARANTIA DO DIREITO SADEFica evidente a dificuldade que existe para

    a garantia do direito quando se considera aamplitude da significao do termo sade ea complexidade do direito sade que de-pende daquele frgil equilbrio entre a liber-dade e a igualdade, permeado pela necessi-dade de reconhecimento do direito do Estadoao desenvolvimento. Encontrar o meio de ga-rantir efetivamente o direito sade a ta-refa que se impe de modo ineludvel aosatuais constituintes brasileiros. No basta ape-nas declarar que todos tm direito sade; indispensvel que a Constituio organize ospoderes do Estado e a vida social de formaa assegurar a cada pessoa o seu direito. funo de todo profissional ligado rea dasade contribuir para o debate sobre as for-mas possveis de organizao social e estatalque possibilitem a garantia do direito sade.

    Considerando especialmente a essencialida-de da participao popular para a compreen-so do direito sade e aproveitando a orga-nizao federativa do Estado brasileiro, amunicipalizao dos servios de sade respon-de idealmente necessidade de garantia dodireito sade. Com efeito, apenas a comu-nidade capaz de definir a extenso do con-ceito de sade e delimitar o alcance da liber-dade e o da igualdade que, interagindo comseu nvel de desenvolvimento, fundamentamseu direito sade. E apenas a partir dadeterminao concreta do direito que se podeconstruir sua garantia, determinando respon-sabilidade. Assim, por exemplo, somente umacomunidade situada pode definir que para se-rem saudveis as pessoas no podem enfren-tar problemas decorrentes do sistema de trans-portes. Ora, numa cidade de tamanho redu-zido, sem rea rural, ningum ter seu bem-estar fsico ou psquico atingido pela quanti-dade ou qualidade do transporte. Entretanto,em uma grande metrpole, o tempo despen-dido e as condies em que as pessoas sotransportadas de suas residncias para o localde trabalho freqentemente dificultam o al-cance do bem-estar fsico e psquico, quandono causam doenas. , portanto, indispen-svel que a sade seja conceituada em cadacomunidade.

    O direito sade deve ser definido em n-vel local. Apenas a comunidade pode decidirquanto deve privilegiar a liberdade em detri-

    mento da igualdade ou qual a limitao daliberdade justificada pelo imperativo da igual-dade. Assim, por exemplo, a comunidade, es ela, que pode determinar o tratamentoobrigatrio de todo tuberculoso, anulando sualiberdade de escolha do tratamento em nomedo igual direito de no serem contaminadosque tm todos os membros da sociedade. Logo,tanto a sade como o direito sade s podemser determinados em cada comunidade. E, co-mo a garantia do direito exige sua definio,o direito sade apenas ser assegurado nu-ma organizao estatal e social que privilegieo poder local, uma vez que a responsabilidadedeve ser especificada para que o direito sejagarantido.

    Ora, o Brasil um Estado Federal, o quesignifica que existe descentralizao poltica.No Estado brasileiro a federao possui trsesferas de poder poltico autnomas: a fe-deral, a estadual e a municipal, que tm com-petncias, encargos e rendas prprias. O Mu-nicpio, poder local autnomo no Brasil, aesfera ideal para assegurar o direito sadeporque, alm do que j foi dito, tem perso-nalidade jurdica pblica para responsabilizar-se. Pode-se, portanto, definir a sade, o con-tedo do direito sade e a responsabilidadepor sua garantia no Municpio.

    EFETIVAO DO DIREITO SADEA municipalizao do sistema sanitrio a

    forma ideal de organizao do setor sade noBrasil. A preservao da autonomia municipalser certamente objeto da nova ConstituioFederal pois, embora no tendo sido respeitadade fato na vigncia das ltimas Constituies, consensualmente aceita como a forma de des-centralizao poltica adequada formaohistrico-scio-cultural e poltica do Brasil.Com efeito, o municpio brasileiro nasceuautnomo e tem sido muito cioso em mantersua independncia quanto organizao, legislao, s finanas e administrao dosassuntos de seu "peculiar interesse".* Espe-cialmente os servios pblicos locais, como osservios de sade, esto constitucionalmentesob a responsabilidade do municpio. Acredi-tando-se, ento, como de se esperar, que otexto constitucional vigente no seja alterado**no que respeita s competncias municipais;admitindo-se, alm disso, que a nova Consti-tuio deva ter aplicao imediata, pois existe

    * Confere: Constituio Federal, artigos 14 e 15.** O atual "Projeto Afonso Arinos" mantm a declarao tradicional da autonomia municipal nos arti-

    gos 112 e 114. Tambm, o segundo substitutivo do deputado-constituinte Bernardo Cabral, relator daComisso de Sistematizao, repete tal declarao nos artigos 17 e 36.

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  • consenso quanto necessidade da Lei Maiorconter apenas dispositivos auto-aplicveis edisposio popular em fazer cumpri-la, a res-ponsabilidade municipal pela conceituao dasade, pela determinao do contedo do di-reito sade e sua garantia ser constitucional.

    interessante, ao considerar-se a necessi-dade de clareza do texto constitucional, queele explicite a responsabilidade do municpiopela segurana do direito sade. Portanto, necessrio que o Poder Legislativo Municipalaprove o Plano de Sade para o Municpio,elaborado com a participao popular e asses-sorada por pessoal tcnico do prprio Muni-cpio, da Unidade Federada ou da Unio, eque o Chefe do Poder Executivo o sancione,formalizando a responsabilidade civil, penal,administrativa e poltica do municpio. Talmedida essencial continuidade do plane-jamento e, infelizmente, no tem sido obser-vada no Brasil, onde a cada perodo de go-verno se elabora um Plano de Sade que noser executado pelo sucessor e se arquiva oprecedente. , pois, de todo conveniente quese estabelea a obrigatoriedade do planeja-mento municipal de sade e de sua apreciaolegislativa.

    bvio que no se deseja atomizar o pla-nejamento dos servios de sade, estabele-cendo-se planos municipais que jamais pode-ro ser compatibilizados entre si e com oplanejamento estadual e federal. por essarazo que s haver verdadeira municipaliza-o dos servios de sade quando o sistemade planejamento for nacional. Ento, a leinacional estabelecer as normas gerais para osistema de sade e a lei federal fixar o pla-nejamento federal de sade, determinando osmeios de que dispor para atender suas prio-ridades em conformidade com a lei nacional.Do mesmo modo, Estados e Municpios de-vero fixar seus objetivos e os meios queempregaro para alcan-los, respeitando aorientao dada pela lei nacional. A compati-bilizao do planejamento sanitrio depende-r, bvio, do estabelecido na legislaonacional. Ser conveniente, portanto, que tallegislao esclarea que a base do sistema desade ser municipal e que os Estados, assimcomo a Unio, devero colaborar tanto nafase de planejamento quanto na execuo dosservios previstos, sempre que necessario.Alm, evidentemente, de se organizarem para

    o atendimento das necessidades estaduais efederais de sade.

    Acredita-se que a legislao do processo deplanejamento ser de grande utilidade para oBrasil*, facilitando a execuo e a responsa-bilizao do Plano. Ser, entretanto, funda-mental para a municipalizaco da sade, por-que fornecer a oportunidade da participaopopular efetiva no processo de planejamentoe a segurana da continuidade do Plano en-quanto convier populao.

    Esclarecendo o contedo do direito sadeque o municpio reconhece e deve garantirser necessrio, ento, dispor-se de mecanis-mos que assegurem sua responsabilizao emcaso de ofensa ao direito protegido. A fixaoda responsabilidade do Poder Municipal, quedecorre da lei do Plano, deve ser de fcilexecuo. O controle popular dos meios pac-tuados de garantia do direito sade dependeda efetiva possibilidade de responsabilizaodo municpio, instncia asseguradora.

    bvio que a populao apenas se preo-cupar em responsabilizar o municpio pelaofensa ao seu direito sade quando, almde conscientizada de tal direito, possuir a in-formao de que ele lhe garantido, de que oresponsvel pela sua garantia o poder p-blico municipal e de que os meios para cobrardo municpio tal garantia lhe so de fcilacesso e eficazes. Portanto, qualquer esforopara assegurar o direito sade deve, neces-sariamente, prever mecanismos acessveis egeis de responsabilizao formal. Isto , ape-nas uma estrutura judiciria que possibilite,efetivamente, o acesso da populao justia,e a rapidez na obteno da resposta jurdicapermite o controle popular relativo ao direito sade.

    A segurana de uma deciso justa implicaconsideraes acerca do Poder local. Em si-tuaes ideais a justia do julgamento s podeser atingida quando a prpria comunidadeaplica a lei ao caso concreto. Porque a Lei "determinada ordenao racional visando aobem-estar comum"**, apenas os membros damesma comunidade podem decidir com justiasobre as atitudes que atentem contra o bem-estar comum. Entretanto, a existncia de indi-vduos que tanto pela fora fsica como, nostempos modernos, pela fora econmica con-trolam a definico dos objetivos comunitrios

    * muito clara a defesa do processo de planejamento apresentada por Comparato2.** Confere: Santo Toms, Suma Theologica, I-II, q. 90. Conceito de Lei em geral.

  • no pode ser desprezada. Tais indivduos mui-tas vezes fazem a sua lei, aplicam-na suamaneira e decidem, em certas ocasies, contraessa lei, quem deve ser penalizado pelo des-cumprimento da obrigao legal. Assim, provvel que a deciso justa seja alcanadaquando a organizao judiciria envolver umelemento acima das presses da fora fsicaou econmica local um juiz com as garan-tias da magistratura, e representantes da co-munidade um jri popular.

    Quando a populao tiver a certeza de umjulgamento justo, de nenhum prejuzo materialou moral por ter acionado a mquina judici-ria e acreditar que a soluo vir em tempode corrigir a situao de injustia questionada,ela promover a responsabilizao do muni-cpio pelo seu direito sade.

    CONCLUSOA nova Constituio do Brasil tratar cer-

    tamente da sade, reconhecendo-a como umdos direitos fundamentais dos brasileiros. indispensvel, porm, que ela preveja meca-nismos para que nenhum dos direitos afirma-dos seja negado na prtica constitucional.Apenas a implantao responsvel de um sis-tema de sade com base municipal pode via-bilizar a garantia do direito sade.

    O direito afirmado na Constituio serassegurado pela disposio que prev a obe-dincia do Plano Municipal de Sade por to-dos os prestadores de cuidados de sade,sejam eles instituies privadas ou pblicas ouqualquer agente sanitrio individualmenteconsiderado. claro que as demais esferas depoder pblico, tambm devedoras do direito sade, participaro do planejamento muni-cipal. Sua participao envolver tanto a fi-xao de normas gerais, como o assessora-mento e, em determinadas situaes, a exe-cuo dos cuidados sanitrios.

    A participao popular no processo de pla-nejamento fundamental para que o contedo

    do direito sade corresponda aos limites tole-rados de interferncia na liberdade e respeitea igualdade essencial dos homens, assim comoesteja adequado ao estgio de desenvolvimen-to atingido pela comunidade. Portanto, o pro-cesso de planejamento previsto na futuraConstituio deve assegurar mecanismos quepossibilitem a participao popular em todasas suas fases. E para que a populao estejasegura da importncia de sua participao noprocesso planejador, a Constituio deve afir-mar a necessidade de aprovao legislativapara o Plano Municipal de Sade, assim comopara o Plano Estadual e o Plano Nacional deSade.

    A definio legal do contedo do direito sade garantido pelo Poder Pblico implicasua responsabilidade jurdica. Contudo, sabe-se que as reais dificuldades de acesso ao Po-der Judicirio tm, freqentemente, impedidoque se promovam responsabilizaes. Assimsendo, deve a Constituio brasileira prevermeios de fcil acesso ao Judicirio, alm defacilitar a prolao de decises mais justasporque mais rpidas e mais reais. Para tanto, indispensvel que artigos constitucionaisinstituam o julgamento por jri popular sem-pre que se tratar de ofensa aos direitos huma-nos fundamentais; assegurar a presena dejuiz portador das garantias constitucionais damagistratura em tais julgamentos, como fia-dor da imparcialidade da deciso; favoreama multiplicao de fruns cuja distribuiogeogrfica seja orientada pelos municpios demodo a torn-los fisicamente acessveis; ga-rantam a possibilidade real de recursos Jus-tia, impedindo a cobrana de qualquer tipode taxa nos processos que tenham por objetoa violao dos direitos essenciais aos homens.

    Quando o Brasil reconhecer constitucional-mente que todo o povo tem direito sade eque esse direito to complexo s pode serdefinido e garantido pelo municpio, se terdado o primeiro passo para a conquista efetivada sade para todos.

  • DALLARI, S. G. [The right to health]. Rev. Sade pbl., S. Paulo, 22:57-63, 1988.ABSTRACT: At the end of the XXth century, a simple declaration of rights does

    not satisfy. It is necessary to establish its content meaning, and its limits with precision,so that the best structure to guarantee the right declared shall be created. Thus has treconception of and the right to health been analysed with a view to descovering in theorganization of Brazil a federal and capitalistic State the best tools effectivelyto guarantee the right to health. The municipalization of the Health Services, toghetherwith the need for the legislative approval of the Health Plan and the organization of thelocal judiciary, were considered important instruments in the quest to make the rightto health effective.

    UNITERMS: Health rights. Health planning. Regional health planning. Legislation,health, trends.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    Recebido para publicao em: 25/5/1987Aprovado para publicao em: 14/10/1987