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Direito Ambiental e a partilha de competências no sistema brasileiro e no Direito Comparado Gustavo Sampaio 1. Apontamentos introdutórios. 2. Notícia histórica. 3. Da repartição de competências no direito positivo brasileiro. 4. A tutela do meio ambiente pelo município no Direito Brasi- leiro e no Direito Comparado. 5. À guisa de conclusão. 6. Notas. 7. Referências bibliográficas. 1. Apontamentos introdutórios sistema positivo fundamental trazido pelo Poder Constituinte ~,il1;riginário ao final dos anos oitenta logrou consolidar, já mesmo no MO dedicado aos princípios fundamentais, os contornos definiti- '~\ros de um modelo federativo trial que permitisse o assentamento normativo da autonomia do poder local. Embora esta pugna já encontrasse precedentes na história republicana brasileira, durante a qual localizamos alguns avanços no tratamento da matéria, retro- cessos centralizadores decorrentes dos regimes de força propiciaram à novel lei fundamental um verdadeiro caráter de inovação na mol- dura dada ao relevo da descentralização vertical. Entrementes, talvez pelas sucessivas interrupções demo- cráticas verificadas no transcurso do século XX e·SU(l$' i.pafasçáveis conseqüências no quadro constitucional, associadas ,ai;p.da '~o,'~e-', sejo incontido de descentralizar poder como forma de/estabelecer cláusulas assecuratórias da estabilidade das instituições democrá- Revista de Direito da Cidade vol.02, nº 01. ISSN 2317-7721 Revista de Direito da Cidade, vol.02, nº01. ISSN 2317-7721 p. 112-129 112

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Direito Ambiental e a partilhade competências no sistema

brasileiro e no DireitoComparado

Gustavo Sampaio

1. Apontamentos introdutórios. 2. Notícia histórica.3. Da repartição de competências no direito positivo brasileiro.4. A tutela do meio ambiente pelo município no Direito Brasi-

leiro e no Direito Comparado. 5. À guisa de conclusão.6. Notas. 7. Referências bibliográficas.

1. Apontamentos introdutórios

sistema positivo fundamental trazido pelo Poder Constituinte~,il1;riginário ao final dos anos oitenta logrou consolidar, já mesmo noMO dedicado aos princípios fundamentais, os contornos definiti-

'~\rosde um modelo federativo trial que permitisse o assentamentonormativo da autonomia do poder local. Embora esta pugna jáencontrasse precedentes na história republicana brasileira, durantea qual localizamos alguns avanços no tratamento da matéria, retro-cessos centralizadores decorrentes dos regimes de força propiciaramà novel lei fundamental um verdadeiro caráter de inovação na mol-dura dada ao relevo da descentralização vertical.

Entrementes, talvez pelas sucessivas interrupções demo-cráticas verificadas no transcurso do século XX e·SU(l$' i.pafasçáveisconseqüências no quadro constitucional, associadas ,ai;p.da '~o,'~e-',sejo incontido de descentralizar poder como forma de/estabelecercláusulas assecuratórias da estabilidade das instituições democrá-

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ricas, legou-nos o redator da atual Carta Magna complexo sistema de reparti-ção de competências legiferantes e administrativas entre as três esferas de go-verno, remetendo-nos, portanto, a um exame mais apurado em torno da matéria.

Sem embargo de ser manifesta a contradição decorrente da coexistên-cia de níveis diversos de governo em concurso com uma concentração excessivade competências legislativas no plano unionista, marcadamente no que se refe-re à disciplina do inciso I do artigo 22 da Lei Fundamental, máxime do receioa um grau de autonomia mais amplo que se poderia outorgar às unidades daFederação, restou o temário do direito ambiental fixado no terreno das chama-das competências legislativas concorrentes da União e dos estados-membros, oque veio seguido de um conjunto de regras estabelecentes da conformação danormativa estadual ao regramento genérico ftxado por manifestação do Con-gresso Nacional. Assoma-se a este fator a fIXaçãode competência aos municí-pios para suplementar a legislação federal e estadual no que couber.

De um quadro unitarista centralizador desenhado pela influência eu-ropéia continental na Constituição Política do Império, com base no qual opoder central tudo estabelecia no exercício da atividade legislativa, passamoscom a instauração da República a uma fase de euforia americanista e de impor-tação de valores federativos, impulsionada pela crença idolátrica na possibili-dade de se consolidar autonomias estaduais com base em mera determinaçãotrazida pela nova Carta Magna.

Todos esses elementos históricos associados às já referidas contingên-cias de rompimento do processo democrático não trariam outro resultado se-não a complexa dogmática constitucional sobre repartição de competênciasentre os planos de governo.

Impõe-se, portanto, a compreensão destas determinantes temporais,bem como da influência exercida por ordenamentos estrangeiros na formaçãodo modelo pátrio.

Muito embora os estados nacionais europeus muito se diferenciemhodiernamente no tratamento da distribuição interna de competências legis-lativas, pretende-se com este trabalho monográfico tecer considerações compa-rativas entre alguns lá vigentes sistemas federativos, o modelo de estado regionale os ainda subsistentes estados erigidos sob a forma unitária, ainda que estes jásuportem tendências marcantes de descentralização.

2. Notícia histórica

o modelo constitucional do Império outorgado após o autoritário encerramentodos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte centralizara em caráter quase

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absoluto as competências legiferantes em torno do Parlamento Nacional, restan-do adstritas às províncias o exercício de tarefas de caráter meramente administra-tivo e de gerenciamento de seus parcos recursos orçamentários. Muito embora setenha com manifesta evidência caracterizado o predomínio da bancada conserva-dora durante todo o Primeiro Reinado, positivaram-se os prenúncios de umprocesso de descentralização vertical em sede do Ato Adicional de 1834, resulta-do do esforço acurado da vertente liberal em proveito do atendimento às deman-das então há muito formuladas pelas elites econômicas de regiões distantes dacapital imperial. Simbólica elucidação desta mudança se deu na implementaçãodas Assembléias Provinciais, instâncias de representação popular que passariam aexercero munus legiferante de caráter regional e que propiciariam com êxito anormatização de temas que por fundado motivo escapavam à atenção das Câma-ras dos Deputados e do Senado. Muito embora não se possa deixar de reconhe-cer a elevada significação desta mudança promovida em meados da fase regencial,o que propunha consolidar um sistema de descentralização mais razoável, poucose presta a fase monárquica ao estudo da repartição de competências, porquantoincondicional o retrocesso verificado com o advento da chamada Lei Interpretativade 1840 e a conseqüente restrição de poder suportada pelos novos órgãoslegislativos locais.

Passemos, pois, a algumas brevíssimas notas sobre o assentamento dotema na fase republicana.

Embora afirmadora de um processo federativo por desagregação, foi aCarta Magna de 1891 que sedimentou ipso facto a existência de estados-mem-bros, rbsultado da já mencionada euforia republicana e de um sentimento deimportação dos valores republicanos dalhures como forma de levar à ir-reversibilidade a derrocada das colunas imperiais. Aliás, tal era a ânsia muitasvezesdesmedida dos alardeadores do ideário da transição que os estados federadosficaram curiosamente nomeados como entes soberanos, atecnia inaceitável, po-rém compreensível, se observado o perfil dos redatores da Lei Fundamental deentão. A equivocidade redacional do texto levou até mesmo o Poder Constitui-nte Decorrente de alguns estados-membros a repetir a tal expressão e a defini-los, portanto, como entes soberanos. Sem embargo do não atendimento àspostulações de uma autonomia mais expressiva às municipalidades, foram osórgãos estaduais beneficiários de uma generosa margem de competências, ma-terializando o anseio de obter um conjunto de legislações processuais autôll,()-.mas que promovesse oposição ao centralismo do século XIX. Muito emhó,rànão se pudesse extrair da redação originária da Carta Magna de 1891 eleIl.c~taxativo na distribuição de competências legislativas entre as esferas de gover-no, a reverência à autonomia estadual atravessou a República Velha e aindahauriu contornos dogmáticos mais precisos com o resultado da Reforma Cons-titucional de 1926, concluída nos últimos meses do mandato do Presidente

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Artur Bernardes e que conduziria o País durante o último governo antecessor àvirada de 1930. Ficava, portanto, o tratamento da disciplina ambiental entre-gue de modo concorrente entre o poder estadual e o poder municipal, nesteúltimo caso para atendimento e satisfação das necessidades vinculadas ao inte-resse local.

Com o Governo Provisório de Vargas e com os trabalhos da AssembléiaNacional Constituinte durante seu transcurso instaurada, positiva-se na Leifundamental de 1934 distinção oportuna entre competências exclusivas deentes da federação e competências de natureza concorrente. Embora não sepreservasse tão larga margem de poder aos estados-membros como pretenderao primeiro texto republicano, embora ainda se fixasse extensa enumeração decompetências definidas como privativas da União Federal, não hesitou o reda-tor da nova carta em determinar que o seu exercício não afastaria a atividadesuplementar das assembléias estaduais para tratamento das questões derivadasdas peculiaridades próprias destas unidades, desde que, como aliás se mantémna constituição atual, restassem observadas as normas g~rais parametrizadaspela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal. Muito embora as expres-sões "direito ambiental" ou "legislação ambiental" não se afigurassem expressa-mente nas disposições dedicadas ao regime da repartição de tarefas entre asesferas de governo, foi, ainda que episodicamente, diversificada a normatizaçãoestadual em torno da matéria sob os auspícios do texto magno ora objeto danossa apreciação. Ademais, não deixou de ser estabelecido rol de competênciasdelineadas como privativas da esfera estadual, dentre as quais se anunciavaaquela de editar as suas próprias constituições.

Contudo, o reconhecimento do resultado positivo obtido com a Cons-tituição de 1934 no contexto da repartição de competências sofreria tormento-sa frustração com a instauração do Estado Novo e a edição da Carta Magna de1937. Editada por uma junta de juristas aliados ao governo autoritário eliderada por Francisco Campos, o novo texto refortalecia sobremaneira a ten-dência centralizadora por tantas ocasiões esboçada na condução política daNação. Sob o argumento da imperiosa necessidade de se elidir qualquer pros-crição subversiva e atentatória à ordem instituída, valeu-se o regime de força doargumento da repressão a movimentos separatistas que pusessem em risco aintegridade territorial brasileira. Isto basta para demonstrar quão danosa foi anova Lei Maior para a desejada consolidação de um modelo de divisão de tare-fas legiferantes entre União e estados-membros que justificasse de forma menosincoerente e idiossincrática a adoção da doutrina federativa no Brasil.

Embora o texto autoritário tenha preservado a técnica da divisão de fun-ções legislativas entre as esferas distintas de governo, notória restrição verificou-seem relação ao rol de competências privativas, e talvez ainda de modo mais signi-ficativo na quase supressão das competências de natureza concorrente. Isto re-

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freou inequivocamente a proposta de consolidação de um regime cooperativo nocontexto das relações federativas, ficando sobrestados anseios históricos de forta-lecimento de autonomias estaduais até a derrubada da Ditadura Vargas e a ins-tauração da Assembléia Nacional Constituinte da redemocratização.

Promulgada a Carta, verificou-se que uma das mais sensíveis preocu-pações constituintes foi a do restabelecimento de princípios e cláusulas as-securatórios da autonomia de estados e municípios, o que doravante sematerializou nas extensas limitações à decretação da intervenção federal nassuas unidad~s. Refortaleceu pontualmente as competências legislativas dosestados, fIxando no terreno das repartições de receitas tributárias hipóteses detransferências intergovernamentais de recursos promotoras do desenvolvimen-to integrado de políticas públicas. Não menos relevante foi a fIXaçãode varia-dos dispositivos destinados a salvaguardar a autonomia municipal comoprincípio constitucional, o que levou não poucos historiadores da República aidentificar a Lei Fundamental de 1946 como tendo sido a efetiva precursorado federalismo trial na organização do Estado Brasileiro.

Restava o município definitivamente estabelecido como pessoa jurídi-ca de direito público interno, resguardando-se desta maneira posição autonômicafrente às demais esferas de governo. Tendo-se reconhecido ao estado-membrocompetência para legislar sobre matéria de direito urbanístico, embora sempreem atendimento a normas gerais fIXadaspela União, coube, a partir da Consti-tuição de 1946, às municipalidades a suplementação das legislações federal eestadual naquilo que fosse possível. De fato, pode-se dizer que o modelo dedelimitação de competências concorrentes para regular as relações urbanas sem-pre deixou as unidades componentes da federação brasileira sem grandes res-trições dogmáticas, porquanto por décadas inerte o parlamento federal no quese refere à edição de um diploma que se pudesse definir como paramétrico àliberdade de legislar dos demais planos governamentais. Esta modalidadecompetencial se concretizou com habitualidade em matéria orçamentária, tri-butária e fInanceira, mas não no domínio propriamente do direito ambiental .

.Todavia, a rota evolutiva do sistema federativo brasileiro sofreria maisuma interrupção com ° advento do Golpe de Estado de 1964 e a implantaçãodo novo governo militar. Embora a Carta Magna daí decorrente resultasse damanifestação de uma Assembléia Nacional Constituinte, o que já se não haviapercebido na abertura da ditadura do Estado Novo na década de trinta, obser-vou-se uma franca tendência pela valorização dos poderes instituídos à Uniãoem detrimento das suas entidades integrantes. Se isto não consubstanciouverdade absoluta no texto originário "promulgado" no ano de 1967, certamen-te o foi com a Emenda n.O 1/69, com as transformações trazidas pelo regimedos atos institucionais e com as demais alterações promovidas no transcursodos anos setenta. Talvez se possa afIrmar com certa tranqüilidade que este viés

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restritivo à trajetória federativa se deu até a confirmação do historicamentechamado Pacote de Abril de 1977, resposta enérgica do Poder Central aosensaios democratizantes perpetrados pela resistência.

Embora se saiba que a partir daí ficou concretizada a tendência irrefreávelde uma lenta e gradual abenura política, muito do que se obtivera de progres-so nas fases democráticas anteriores em matéria de descentralização verticalteve que ser novamente debatido, examinado e sedimentado no Direito Cons-titucional Pátrio. Talvez a década de oitenta tenha marcado não somente novasconquistas federativas, mas também o restabelecimento de acréscimos outrorapositivados em sede constitucional e suprimidos pelo regime de força.

Se por um lado o Brasil sob a vigência da Constituição de 1967 e seusinúmeros atos de exceção representou indeclinável retrocesso ao propósitofederalista, sopraram novamente os ventos a seu favor a partir da campanhapela redemocratização e a conseqüente instauração da Assembléia NacionalConstituinte em 1987. Em conformidade com o modelo de carta analítica edirigente que tanto caracterizou as leis fundamentais erigidas na Europa dopós-guerra, a Constituição da República de 1988 aperfeiçoou incondicional-mente o regime de repartição de competências entre as três esferas de governo,consolidando pso facto a estrutura trial tão ambicionada durante o transcursohistórico nacional. O próprio conteúdo simbólico do caput do artigo 1.° doseu texto já demonstra o anseio da formação de uma comunidade harmônicade entes federados, aí incluídos os estados-membros, o distrito federal e osmunicípios, todos sob os auspícios dos princípios fundamentais definidores doestado Democrático de Direito.

Ainda que mantida a marca centralista tipificadora de um federalismopor desagregação em sede do elenco das competências legislativas privativas daUnião, o que ainda frustra as expectativas dos defensores mais vorazes da auto-nomia estadual, pareceu mais acurado o redator da nova Carta na enumeraçãodas competências concorrentes, tendo promovido razoável extensão de suashipóteses e passando a incluir expressamente a disciplina do direito ambiental.

Igualmente ficaram ampliadas as competências das câmaras munici-pais para suplementar a legislação federal e estadual no que couber, restandoao Poder Legislativo Federal o estabelecimento de diretrizes e normas gerais aserem seguidos pelos estados no contexto da regulamentação específica. Indoalém do título da organização político-administrativa do Estado, em análise,portanto, do conjunto das normas formalmente constitucionais, dedicou oPoder Constituinte Originário, em seqüência lógica ao regime da proprieda-de e dos princípios daí decorrentes, não poucas disposições sobre políticaurbana no capítulo da ordem econômica e financeira. Seguindo as tendênci-as assumidas pelo chamado Direito Civil-Constitucional, aduziu o redatordo texto magno institutos jamais ventilados em modelos anteriores, conju-

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gando a propriedade e a sua função social a princípios positivados na Cartade 88. Exigência de plano diretor, introdução da usucapião especial urbanae rural, fortalecimento da desapropriação e até mesmo edificação compulsó-ria galgaram o altiplano do Direito Constitucional, contingências sem ante-cedentes dogmáticos no ordenamento pátrio. Estabeleceu-se ainda um ca-pítulo autônomo sobre o "Meio Ambiente", nem sempre constituído de nor-mas formalmente constitucio-nais, e situado no Título da Lei Magna dedica-do à Ordem Social. No escopo das gerações dos direitos fundamentais, exsurgepositivado no altiplano constitucional brasileiro o chamado "direito ao meioambiente ecologicamente equilibrado", 1 elevado à categoria de princípio re-vestido da mais plena normatividade e em absoluta consonância com os ven-tos da universalização do Direito.

Estas são, portanto, algumas brevíssimas considerações para um traça-do histórico da evolução do sistema de repartição de competências no contextorepublicano brasileiro.

A partir de agora, passaremos a tecer brevíssimas considerações emtorno do Direito Ambiental no regime constitucional brasileiro.

3. Da repartição de competênciasno direito positivo brasileiro

É em sdde do Título III da carta Magna Brasileira que o tratamento da organi-zação político-administrativa do Estado trouxe à disciplina do Direito Ambientalexigência mais acurada ao intérprete para compreensão das relações harmôni-cas que se pretende instaurar entre os entes da Federação.

Embora tão somente o inciso I do artigo 22 já baste para demonstrar atradição centralista marcada na história nacional, ftxando amplíssima margemde poder às instâncias legislativas federais, foi no mister das competêncIas con-correntes' que o direito ambiental restou previsto e entregue a uma partilhamais generosa de encargos entre os entes federados. Ademais, a instituição decompetência local para suplementar legislações estaduais aliada à positivaçãode competências exclusivas legou aos municípios autoridade nem mesmo naCarta Magna de 1946 encontrada.

Contudo, a gestão do espaço urbano nos limites das prescrições am-bientalistas, sem embargo do advento da Lei n.o 1O~257 e de diplomas prove-nientes da autoridade dos entes federados, tornou-se um dos pontos maisnevrálgicos no cenário do poder local, sobretudo quando considerada a fragili-dade de formação técnica dos agentes integrantes da administração pública eda inviabilidade econômica comprometedora da realização de políticas que

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logrem materializar a contraprestação devida pelo Estado através de serviços deatendimento às demandas da sociedade.

Isto inexoravelmente nos conduz ao debate em torno de novos padrõesde cooperação entre as entidades integrantes da estrutura federativa nacional.Talvez pela indiscutível multiplicação de municípios havida no transcurso davigência do texto magno de 1988, resultado imediato de processos de eman-cipação muitas vezes casuísticos e indevidos, e ainda admitido o não cum-primento dos objetivos trilhados na geopolítica do regime militar com aimplantação das regiões metropolitanas, exsurgem do debate político contem-porâneo novas formas e proposições tendentes a viabilizar por fim o atendi-mento de todas essas necessidades impostas pela complexa realidade social.

Agregando novas molduras às já tratadas regiões metropolitanas, trouxeà baila o texto constitucional as chamadas regiões integradas de desenvolvimen-to, instituídas mediante lei complementar e destinadas à promoção de progra-mas unificados para fins de promoção de políticas públicas de caráter regional eque restariam pso facto inviabilizadas de cumprimento se deixadas unicamenteao encargo da esfera municipal de governo. Alguns experimentos práticos jáforam levados a efeito no nordeste brasileiro, tendo-se, portanto, mediante maio-ria absoluta das casas do Congresso N acionai e através da espécie normativa apli-cável à hipótese, implementado dois desses complexos envolventes de expressivapluralidade de entes locais. Contudo, destaque-se que o requisito geopolíticomaior imposto a este ainda não muito conhecido instituto, o que destarte tornamais complexo o seu estabelecimento, é aquele consubstanciado na necessária eindeclinável agregação de municípios integrantes de estados-membros distintos,prestando-se esta exigência à verdadeira restri~o do emprego do instituto.

Outra inovação bem recepcionada pelos analistas da matéria tem sidoa do consórcio público. Demonstração manifesta do malogro da utopia dofederalismo brasileiro encontra amparo em mais este novo instituto, via pró-pria para a celebração de acordos intermunicipais propiciadores da consecuçãode serviços públicos essenciais ao desenvolvimento regional e das cidades e quepossivelmente restaria inviabilizado se decorrente de iniciativas governamen-tais isoladas. Regulamentado pela Lei 11.107/2005, excede os limites da au-tonomia da vontade dos entes locais para abranger a possibilidade jurídica dacontratação pelos estados-membros, Distrito Federal e pela própria União. Talvezseja esta uma forma de compensar a rejeição pela Assembléia Nacional de 1988quanto a um perfil de assimetria federativa que alguns constituintes propu-gnavam durante os trabalhos de elaboração na nova Carta.

De modo oposto ao que se processa com as "regiões integradas de de-senvolvimento",z reconhece-se flexibilidade ao consórcio por não ser exigida aparticipação de municípios integrantes de pelo menos dois estados, assim comopoderá este vínculo se adstringir a uma finalidade setorial e específica.

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Associando-se consórcios às já tradicionais e ineficazes regiões metropo-litanas e às, agora mesmo mencionadas, regiões integradas de desenvolvimento,verifica-se que o regime constitucional de partição de competências administra-tivas entre os três níveis da federação não logra o atingimento integral dos obje-tivos constitucionalmente firmados, exigindo-se formas associativas que tornemefetiva a contraprestação pública na consecução das finalidades do Estado.

Quer-se com isso dizer que o federalismo triaI esquadrinhado no modelopátrio, talvez pela realidade histórica paradoxal que o informa, necessite cada vezmais de veículos hábeis de cooperação entre as entidades que o compõem.

Entre os objetos mais freqüentes de trabalho conjunto de entidadesmunicipais está a regulamentação do espaço urbano e a atuação propositivapara o tratamento de problemas hoje já não mais resolúveis pelo simples eisolado exercício do poder local. Sem desdouro da já mencionada divisão decompetências legislativas entre a Uniá03 e os estados no terreno do direitoambiental, reconhecida ainda a margem competencial dos municípios parasuplementar a legislação federal e a estadual naquilo que couber, a atenuaçãoda problemática social e econômica das cidades demanda sobremodo medidastangentes à função administrativa dos entes integrantes da Federação, o quetem sido com larga freqüência efetivado mediante laços contratuais ouinstitucionais celebrados entre municipalidades.

Destaque-se, contudo, que, sem embargo do Estatuto da Cidade haverlogrado com êxito a positivação das "normas gerais" requisitadas à União pelocaput do artigo 24 da Constituição da República, subsumindo desta forma asdemais e~feras de governo à sua obediência, restringiu-se o legislador no textoda Lei n.O 10.257/01 a pontuar nos instrumentos de política urbana e degestão ambiental algumas ferramentas legadas ao poder municipal isoladamente,apenas estabelecendo previsão genérica sobre "planos nacionais, regionais e es-taduais de ordenação do território" e "planejamento de regiões metropolitanas,aglomerações urbanas e microregiões". Até mesmo por razões cronológicas,haja vista que a Lei n. o 11.107 somente veio ao ordenamento posto no primei-ro semestr~ do ano de 2005, restaram os consórcios públicos não enumeradosentre os instrumentos de planejamento municipal trazidos pelo Estatuto daCidade. Presta-se este instrumento, contudo, à pontual vocação utilitária parafins da implementação de políticas providas de efetividade no trato da manu-tenção do equilíbrio do meio ambiente.

Não se confunde, entretanto, tal instituto com aquele referente às cp.a~.madas "operações urbanas consorciadas",4 positivado no diploma ora em r~fe-rência como c'conjuntode intervenções e medidas coordenadaspelo Poder Públicomunicipa~ com a participação dosproprietdrios, moradores, usudriospermanentes einvestidores privados", pugnando-se por mudanças de conteúdo estrutural noespaço urbano e incremento das condições sociais e ambientais. Fica então este

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instrumento circunscrito à atuação isolada da política local e de seus munícipes,desconsiderando imensuráveis benefícios que podem decorrer de acordos cele-brados entre entes da Federação através da figura do consórcio, ainda que paraatuação de caráter setorial.

Sem embargo do Título 111 da Constituição da República estabelecercompetência na disciplina ambiental sobremodo à União e aos estados-mem-bros, e apenas em teor suplementar à esfera municipal, estabelece a Carta, jáno Capítulo Segundo da Ordem Econômica e Financeira, que ao municípioresta o encargo da execução da política de desenvolvimento urbano, destinan-do-se ao cumprimento do princípio da função social e do bem-estar da coleti-vidade.5 Evidente que nos referimos aqui apenas às competências de naturezalegislativa, o que não corresponderia ipso facto ao regime de partilha de compe-tências de caráter administrativo, classificadas pelo texto maior como "comuns".

Aduziu, fixando tendência profundamente inovadora do texto maiorno cumprimento do intervencionismo estatal para a promoção da função a quese destina a propriedade, a chamada edificação compulsória,6 mediante a qualfica autorizado exigir do "proprietário do solo urbano não edificado, subutilizadoou não utilizado", a sua adequada e coerente utilização. Ao lado do impostosobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo e da desapropria-ção com pagamento baseado em títulos da dívida pública, a edificação com-pulsória representou inegável reforço dogmático à autoridade do município naordem federativa, o que veio contudo desacompanhado da aguardada efetividadepor falta manifesta de providência legislativa regulamentadora. Tal instituto,conforme prenunciam alguns de seus entusiastas, dando cabo da devida des-tinação social da propriedade do solo, prestar-se-ia de modo invulgar à conse-cução de uma coerente e devida política de assentamento e de ocupação doespaço urbano, concorrendo prontamente para a correta e fiel gestão ambientale de preservação dos recursos naturais.

4. A tutela do meio ambiente pelomunicípio no Direito Brasileiro e no

Direito ComparadoEntre todos os aspectos referentes ao estudo da autonomia municipal e positivadosno texto constitucional brasileiro, parece-nos, contudo, de maior relevância otratamento das questões ambientais e as respectivas competências fixadas ao ter-ceiro grau no nosso federalismo, assim como o papel desempenhado pelas ins-tâncias locais de poder nos demais sistemas nacionais de organizaçãopolítico-administrativa conhecidos em sede do direito comparado. Pontificando

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hodiernamente a temática do meio ambiente em quase todas as searas normativas,o que nos remete além dos limites clássicos e carcomidos do direito interno porforça da edição de inúmeros tratados e convenções internacionais sobre a maté-ria, insurge-se o poder local como ator indissociável à execução dos programasgovernamentais em prol do ecossistema bem como à aplicação das normas nacio-nais e mundiais destinadas à sua tutela. Embora a primeira metade do séculoXX tenha conhecido alguns atos internacionais destinados à preservação da eco-logia, foi, sobretudo, já no contexto da bipolaridade ideológica que esta temáticarecebeu guarida definitiva no direito internacional. Entre variados diplomas,pontificaram a "Convenção de Genebra sobre o Alto-Mar de 1958"; a "Conven-ção de Londres de 1976" sobre responsabilidade civil por danos resultantes daexploração mineral do subsolo marinho; a "Convenção de Oslo de 1972" acercada prevenção ao derramamento de poluentes nos oceanos Adântico e Ártico; a"Convenção de Viena de 1985" sobre a proteção da camada de ozônio, estaúltima elaborada sob os auspícios do Programa das Nações Unidas para o MeioAmbiente; a "Convenção de Estocolmo", também patrocinada pela ONU, apartir da qual se emitiu extensa "Declaração" instituinte do direito ao meio am-biente ecologicamente equilibrado, o que mais tarde viria a ser objeto de positivaçãono texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. A décadade 80 trouxe à dogmática internacional extensa normatividade no concerto dapreservação ecossistêmica, restando prontamente vinculados os Estados Nacio-nais em relação às suas políticas internas e ao compromisso firmado na defesaambient~. O encargo trazido pela atual carta Magna aos municípios no terrenoda matéiia ora em exame não se restringe ao modelo brasileiro, restando freqüen-te entre os Estados Europeus a fixação de competências ao poder local paranormatizar o espaço urbano e o campo no que se refere ao desenvolvimento deatividades econômicas em consonância com as prescrições ambientalistas. Semembargo da reserva a leis federais ou nacionais em relação ao estabelecimento deprincípios e regulamentação genérica concernente ao direito ambiental, são asentidades, encarregadas da administração local que detém os instrumentos derealização do controle do desenvolvimento urbanístico e da exploração rural, oque imprime a tal esfera de governo notável relevo na concretização das políticaspúblicas destinadas à preservação da ecologia.

Embora o sistema constitucional pátrio estatua o direito urbanístico ea tutela do meio ambiente como disciplinas de competência legiferante con-corrente entre a União e os estados-membros, o que significa dizer que aoCongresso Nacional caberá a fixação das normas gerais e às AssembléiasLegislativas o tratamento específico, instituiu o Constituinte aos municípios apossibilidade da suplementação da legislação federal e da estadual naquilo quefor atinente aos interesses peculiares das cidades. Isto implica a extensanormatização de questões ambientais em sede das leis municipais, o que se

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adiciona à participação do Poder Executivo local no cumprimento das normaslegais provenientes das três esferas de governo. Embora a tradição centralizadorado federalismo brasileiro tenha determinado a extensa margem de reproduçãode dispositivos constitucionais federais em sede das cartas estaduais, não me-diu esforços o Poder Constituinte Decorrente na expressiva maioria das unida-des da federação ao disciplinar os institutos voltados para a tutela do meioambiente, tendo acrescido inúmeras regras e instituído órgãos de fomento àpesquisa e à sua proteção. Comum ainda em sede dos textos estaduais foi afixação de áreas de preservação permanente e também das chamadas áreas derelevante interesse ecológico, pugnando-se desta sorte pela contínua fiscaliza-ção conjunta dos governos estaduais e municipais sobre as atividades desempe-nhadas pelo setor industrial e demais segmentos economicamente produtivos.

Ora, se assim tem se inclinado os textos constitucionais dos estados-membros, também generoso na positivação dos mecanismos de proteção ambientalse revelou o legislador municipal na edição de suas leis orgânicas, fonte inequívo-ca da inserção da esfera local de governo no contexto do debate ecológico.? Alémde fielmente reproduzir o texto da Carta da República e da Constituição doEstado do Rio de Janeiro no que concerne às bases principiológicas da tutela domeio ambiente, estabelece a Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiroamplíssimo elenco de disposições voltadas para a preservação florestal, marinha,fluvial, da fauna e da flora componentes do extenso espaço geográfico damunicipalidade, fixando meios de fiscalização da produção agrícola, industrial,da atividade pesqueira e de qualquer outra que seja potencialmente prejudicial àintegridade do ecossistema. Estabelece como instrumentos de execução da polí-tica ambiental a instituição de normas e padronização de regras para o licenciamentode atividades poluidoras; o controle sobre o cumprimento da normativa federal,estadual e aquela propriamente proveniente do poder local; o estabelecimentodas chamadas unidades de conservação, onde se incluem as áreas de preservaçãopermanente, além daquelas tidas como de relevante interesse ecológico ou cultu-ral, o que, aliás, encontra institutos simétricos em sede do texto constitucionalde Estado; a formação de parques municipais, estações ecológiças e reservas natu-rais; entre outras medidas. Positiva, outrossim, a referida lei orgânica, instru-mentos e obrigações de responsabilidade do. Poder Público Municipal paramanutenção do equilíbrio ambiental, entre as quais se destacam a celebração deconvênios com centros especializados em pesquisa, universidades, organizaçõessindicais e associações civis para garantir e fomentar o gerenciamento ecológico; oaprimoramento da pesquisa e da utilização de tecnologia destinada à redução doconsumo energético; a fiscalização das atividades decorrentes de concessões deexploração de recursos hídricos e minerais, mediante prévia autorização do PoderLegislativo; o estabelecimento de limitações administrativas incidentes sobre ouso de áreas particulares, desde que voltadas à proteção do ecossistema e das

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unidades de conservação. Merece destaque singular neste elenco trazido em sededo diploma organicista a concessão de incentivos fiscais às pessoas jurídicas queinstituam mecanismos tecnológicos de controle sobre as suas atividades produti-vas e que propiciem a baixa das emissões poluentes a níveis inferiores aos fixadosnos padrões de admissibilidade. Destinam-se igualmente tais benefícios de na-tureza fiscal às empresas que logrem incorporar matrizes energéticas alternativase, por conseguinte, mais compatíveis com as perspectivas de preservação ambiental.

Sem embargo da dimensão municipalista da Carta Magna de 1988 edo significativo alargamento do poder local verificado em comparação com otexto de 67 e daqueles que o precederam, é comum também nos modelosmenos descentralizados de alguns países integrantes do espaço europeu a dis-tribuição de competências aos entes e órgãos locais no que tangencia a temáticaambiental, fixando-lhes a tarefa da normatização sobre os aspectos e peculiari-dades locais bem como a execução dos serviços públicos destinados à preserva-ção e à defesa do ecossistema. Bem verdade que os Estados Nacionais da EuropaContinental encontram-se hodiernamente em profunda vinculação às normase diretivas promanadas da União Européia acerca da manutenção do equilíbriodo meio ambiente, haja vista a determinação expressa do próprio Tratado deMaastricht e aplicável a todos os signatários no que decorre do imperativo daproteção ecológica. Não poucas são por conseqüência as exigências introduzidaspelo" Parlamento Europeu no sentido da obediência e da uniformização dotrato normativo interno dos países componentes do bloco, atendendo-se destasorte à_ necessidade da formulação de políticas comuns que viabilizem oatinginlento das metas unionistas. Mesmo ainda sob os auspícios da anteriorComunidade Econômica Européia, exemplo de tal realidade integracionista seconcretizou em meados da década de oitenta na chamada "Politique AgricoleCommune~', a partir da qual, entre múltiplas exigências tarifárias dali decorren-tes, impunha-se ao produtor rural a adequação de suas atividades produtivas auma extensa lista de regras de padronização voltadas para as demandas doconsumo regional, onde se incluíam restrições ao uso de fertilizantes e deagrotóxicos e o emprego de técnicas propiciadoras do desenvolvimento susten-tável e da preservação do meio ambiente. A aceleração do processo de integraçãonaquele continente em muito determinou, portanto, a adstrição do legisladorinterno ao conjunto de normas promanadas dos órgãos .legiferantes e executi-vos da estrutura da União, o que, contudo, não comprometeu a autoridadeconferida constitucionalmente às entidades exercentes do poder local, sobretu-do quando se considera que a normatização ambiental do espaço urbano degrandes centros e de pequenas cidades quase sempre decorre de particularida-des não abrangidas pelo caráter genérico das normas nacionais e daquelas pro-venientes do ambiente comunitário. Na França, as comunas, figura assemelhadaaos municípios brasileiros, embora por lá somente por força de modificações

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constitucionais relativamente recentes se tenha reconhecido personalidade ju-rídica de direito público interno, é vasto o terreno normativo incidente sobre atemática do ecossistema, decorrência da intensa atividade dos "ConseilsMunicipaIs", constituídos como órgãos legítimos de representação popular.Pouco antes da promulgação da atual Constituição da Quinta República, edi-tou a Assembléia Nacional um dos mais relevantes diplomas legais no que serelaciona à organização político-administrativa do território francês. Tratou-seali do ainda vigente "Code de tAdministration Communale", publicado no anode 1957, verdadeira consolidação normativa disciplinadora das competênciasentregues aos órgãos legiferantes e executivos das comu'nas. Entre as·variadasmatérias destinadas ao tratamento normativo local, destacam-se a disciplinado zoneamento urbano; a elaboração de planos diretores destinados à adminis-tração das cidades; a implementação de programas para preservação da auten-ticidade do patrimônio histórico e arqueológico local; o estabelecimento dediretrizes voltadas para o incentivo à atividade turística; e, naquilo que mais épertinente ao tema ora em exame, a produção de normas referentes à manuten-ção do equilíbrio do meio ambiente e a fiel utilização do espaço urbano emconsonância com as prescrições de conservação ecológica. Fixa, outrossim, amencionada lei nacional relevantes funções à chamada "municipalité", órgãoencarregado da gestão administrativa da Comuna e que poderíamos grosseira-mente entender como semelhantes às prefeituras no modelo brasileiro. Embo-ra mais restrita a autonomia naquele regime do que em regra se constata nospaíses caracterizados pela forma federativa de Estado, resta, contudo, o gover-no comunal na França autorizado à aplicação de sanções administrativas decor-rentes da prática de atos contrários às perspectivas de preservação ambiental,assim como titular da autoridade de conceder e de permitir a execução deserviços públicos ligados à sustentação do meio ambiente por pessoas jurídicasde direito privado.

Semelhante resolução para o problema da repartição de competênciasé ,empregada pela Inglaterra na delimitação da autoridade dos burgos e doscondados por eles formados. Assim como se deu na sistemática francesa atravésda edição de lei nacional para regular estritamente a autonomia comunaI, ain-da no último quartel do século XIX a Câmara dos Comuns editou o para-digmático "Municipal Corporation Act" de 1882, estabelecendo os limites àautoridade administrativa bem como às atividades legiferantes modestamenteexercidas pelo "Burges Councit". Embora não entendido tal órgão como com-ponente de um Poder Legislativo, reflete a reverência prestada pela dogmáticaemanada do Parlamento Inglês na medida em que obrigatoriamente o provi-mento dos cargos representativos se dá mediante eleição direta em todas asmunicipalidades, pugnando-se desta sorte pela consolidação dos instrumentosde cidadania local. Tanto se valoriza a via democrática representativa que a

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própria função executiva se exerce através de um colégio de cidadãos escolhidosindiretamente pelo "Council", que por sua vez elegerão o c'Mayor", chefe daadministração pública municipal. A uniformização imposta pelo cCCorporationAct" não afasta igualmente a autonomia financeira e orçamentária das entida-des comunais, assegurando-se assim a boa prestação dos serviços públicos nacircunscrição dos seus territórios. Embora mais contido portanto o poder localna Grã-Bratanha se comparado ao modelo francês, menos restrição pelos trata-dos e protocolos de integração regional sofre o legislador interno na Inglaterraem razão da extensa reserva historicamente feita às propostas unificadoraspromanadas dos órgãos supranacionais europeus.

Ainda no contexto da realidade européia em permanente transformação,notável atenção ao problema da autonomia lócal concedeu a Lei Fundamental daRepública Federal da Alemanha de 1949, positivadora de arguto e eficaz regimede descentralização vertical. Em absoluto avanço em relação ao modelo federati-vo norte-americano, admitiu-se a organização político-administrativa pautadanão apenas em estados-membros, mas também em circunscrições e municípios,ambos titulares de competências normativas expressamente delineadas em sededo texto constitucional. Em virtude da extremada relevância sócio-econômico-cultural assumida por certos centros metropolitanos, determinou o legisladorconstituinte a possibilidade da transformação de tais municipalidades em cida-des-estado, figura jurídica atípica naquele modelo de descentralização e cumuladoradas competências estaduais e locais. Entretanto, embora expressamente assegu-rada por.manifestação constituinte originária a autonomia das entidades munici-pais, foi bmisso o redator da Carta Alemã quanto à padronização do poderio dasautoridades locais, verificando-se por conseguinte, assim como já observado nacrítica desenvolvida ao federalismo norte-americano, absoluta desuniformidadeno tratamento da matéria entre os diplomas disciplinadores da estrutura or-ganizacional dos estados-membros. Talvez isto se justifique historicamente pelaprovisoriedade de que se revestiu o texto maior elaborado no fim da década dequarenta, destinado, portanto, à reestruturação do estado alemão até que se ela-borassem os contornos finais de uma efetiva redação constitucional. Há, portan-to, hodiernamente que examinar o ordenamento de cada estado integrante daRepública Federal da Alemanha, certificando-se desta sorte a posição do municÍ-pio frente ao problema da autonomia destas entidades. Especificamente;:.~noquese refere à legiferação em matéria ambiental, o que momentaneamente tem sidoobjeto do nosso exame por força da resistência do poder local sobre o processo deinternacionalização das prescrições de preservação ecológica, há manifesta autori-zação dada por diplomas estaduais no sentido de fIXar ao Conselho Municipalcompetência para legislar especificamente sobre preservação do ecossistema, po-dendo ainda instituir sanções administrativas pelo descumprimento destas re-gras bem como poder de polícia ambiental às entidades executivas. Faça-se aqui

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a ressalva da adstrição imposta pelas normas unionistas européias às várias esferasgovernamentais internas do Estado Alemão, tendo em vista a irrestrita adesãodeste país ao processo de integração regional desde o pós-guerra empreendido.Embora bastante restrita seja a autonomia financeira e orçamentária das mu-nicipalidades alemãs, haja vista a larga margem de competências concedida aosestados para disciplinar a repartição de receitas tributárias, a reserva constitucio-nalmente feita aos entes locais quanto à percepção de parcela da arrecadação decertos tributos federais garante o atendimento às expectativas de defesa do meioambiente, podendo ainda certos municípios conceder isenções tributárias a em-presas que exercerem suas atividades em compasso com programas de reHoresta-mento e recomposição· do equilíbrio do espaço ecológico.

Muito embora pontualmente observada a generalidade das normas pro-venientes do Tratado de Maastricht, seus protocolos adicionais e subseqüentesdiretivas impostos pelos órgãos constituídos da União Européia naquilo que serefere à uniformização das regras sobre o meio ambiente, nota-se em breveavaliação de Direito Comparado quão imperativo ainda é o reconhecimento daautonomia do poder local como forma de defesa do ecossistema e suas peculia-ridades e quão farta tem sido a legislação municipal e análoga neste mister. Pormais amplo que venha sendo entendido o terreno normativo dos organismosregionais de integração econômica e por mais presente que se torne esta ten-dência no teatro da globalização, as peculiaridades residentes no espaço dacidade e do campo assegurarão sempre a sua autonomia política. Tal se mani-festa igualmente em outras matérias objeto do direito local.

" guisa de conclusão

A descentralização ansiada pelo movimento republicano e pautada na experiên-cia norte-americana não restava condizente com as tradições centralizadoras eunitaristas da formação política do Brasil. Com isso, a inovação trazida pelaCarta Magna de 1891 viria em breve a ser relativizada por novos modelos bemcomo por efemérides de ruptura democrática, determinando-se desta sorte umamoldura federativa por desagregação com um sistema quase inviável de repar-tição de competências.

Ademais, o assentamento definitivo da estrutura trial somente viria ase consolidar com a Lei Fundamental de 1946, legando-se aos municípios nãotão ampla margem legiferatória se comparado ao enorme progresso hauridopor essas entidades na vigente Constituição da República.

Em meio a enumerações de competências exclusivas, privativas, con-correntes e comuns, o direito ambiental encontrou no texto final apresentado

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à Assembléia Nacional Constituinte de 1988 posição de notório destaque,tendo-se firmado à União a função de estabelecer normas gerais, aos estados-membros a regulamentação específica da matéria, sem elidir a competênciasuplementar da esfera local de poder.

Atendendo-se ao caráter normativo dos princípios constitucionaisinformadores da disciplina ambiental, integrou-se a matéria ao regime de coo-peração entre os entes federados, logrando-se atingir a historicamente desejadatrialização das tarefas administrativas e legiferantes, máxime da formal restau-ração dos fundamentos democráticos da sociedade brasileira.

1 Dogmatiza o texto do caput do artigo 225 daConstituição da República Federativa do Brasilde 1988: "Todos têm direito ao meio ambienteecologicamente equilibrado, bem de uso comumdo povo e essencial à sadia qualidade de vida,impondo-se ao Poder Público e à coletividade odever de defendê-lo e preservá-lo para as pre-sentes e futuras gerações".

2 Preceitua a Constituição Federal de 1988, emsede do artigo 43, caput: "Para efeitos adminis-trativos, a União poderá articular sua ação emum meslI\O complexo geoeconômico e social,visando à ~eu desenvolvimento e à redução dasdesigualdade desregionais".Aduz ainda o texto do parágrafo primeiro: "Leicomplementar disporá sobre: I - as condiçõespara integração de regiões em desenvolvimento;11- a composição dos organismos regionais queexecutarão, na forma da lei, os planos regionais,integrantes dos planos nacionais de desenvolvi-mento econÔmico e social, aprovados juntamentecom estes".

3 O papel da União foi finalmente exercido atra-vés da edição da Lei n.O 10.257/01, que estabe-lece no parágrafo primeiro do artigo 1.°: "Paratodos os efeitos, esta Lei, denominada Estatutoda Cidade, estabelece normas de ordem pública

6. Notas

e interesse social que regulam o uso da proprie-dade urbana em prol do bem coletivo, da segu-rança e do bem-estar dos cidadãos, bem comodo equilíbrio ambiental".

4 Esta definição encontra previsão em sede doparágrafo primeiro do artigo 32 do Estatuto daCidade. Contudo, as operações urbanas consor-ciadas prestam-se igualmente à correta adminis-tração dos mecanismos de preservação do meioambiente no espaço das cidades, em cumpri-mento ao não raro previsto em sede das leisorgânicas municipais.

5 Artigo 182, caput: ''A política de desenvolvi-mento urbano, executada pelo Poder Públicomunicipal, conforme diretrizes gerais fixadas emlei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvol-vimento das funções sociais da cidade e garantiro bem-estar dos seus habitantes".

6 A edificação compulsória vem dogmacizada no§ 4.° do também artigo 182: "É facultado aoPoder Público municipal, mediante lei específicapara área incluída no plano diretor, exigir, nostermos da lei federal, do proprietário do solo ur-bano não edificado, subutilizado ou não utiliza-do, que promova seu adequado apJ:"9yeita-mento,sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamentoou edificação compulsórios; 11- urbana progres-sivo no tempo; 111- desapropriação com paga-

Gustavo Sampaio é doutorando em Direito daCidade. Professor Assistente da UniversidadeFederal Fluminense. Professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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mento mediante títulos da dívida pública de emis-sáo previamente aprovada pelo Senado Federal,com prazo de resgate de até dez anos, em parcelasanuais, iguais e sucessivas, assegurados o valorreal da indenização e os juros legais".

7 Estabelece a Lei Orgânica do Município doRio de Janeiro, em seu artigo 461, acerca dadefesa dos princípios sobre meio ambiente: "I -estabelecer legislação apropriada, na forma dodisposto no artigo 30, I e 11, da Constituição daRepública; 11 - definir política setorial específi-ca, assegurando a coordenação adequada dosórgãos direta ou indiretamente encarregados desua implementação; IH - zelar pela utilização

racional e sustentada dos recursos naturais e,em particular, pda integri~de do patrimônioecológico, paisagístico, histórico, arquitetônico,cultural e arqueológico". Ainda: "VI - estimulara utilização de fontes energéticas alternativasnão poluidoras, provenientes, de preferência, doMunicípio ou do Estado e, em particular, do gásnatural e do biogás para fins automotivos, e deequipamentos e sistemas de aproveitamento deenergia solar e e6lica; VII - promover a prote-ção das águas contra ações que possam compro-meter o seu uso, atual ou futuro; proteger osrecursos Wdricos, minimizando a erosão e a se-dimentação" .

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