Direito ao estado de filiação e direito à origem genética

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47 R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 47-56, out./dez. 2004 DIREITO AO ESTADO DE FILIAÇÃO E DIREITO À ORIGEM GENÉTICA: uma distinção necessária* Paulo Luiz Netto Lobo DIREITO DE FAMÍLIA RESUMO Delineia os contornos das duas garantias – o direito ao estado de filiação e o direito à origem genética – com base na Constituição Federal de 1988 e no Código Civil de 2002, ordenamentos consagradores das profundas transformações por que passaram as relações familiares no Brasil, ao longo do séc. XX. Observa que fatores históricos, religiosos e ideológicos fizeram com que, por muito tempo, o estado de filiação se subordinasse à verdade biológica e às relações matrimonializadas. Hoje, diante da evolução do Direito e dos valores sociais, nos possíveis conflitos entre a filiação genética e a socioafetiva, prevalecem a afetividade e o melhor interesse da criança como legitimadores da filiação e da paternidade, passando o estado de filiação a gênero, de que são espécies a filiação biológica e a não-biológica. Critica a confusão que faz a jurisprudência – inclusive do Supremo Tribunal Federal – entre direito à origem genética e reconhecimento ou contestação do estado de filiação. Afirma que, tendo a origem genética perdido o papel legitimador da filiação, passou a integrar os direitos da personalidade, com finalidade distinta, desvinculada do estado de filiação. PALAVRAS-CHAVE Direito de Família; estado de filiação; origem genética; filiação – biológica, não- biológica; inseminação artificial heteróloga; Constituição Federal de 1988; novo Código Civil; Lei n. 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). __________________________________________________________________________________________________________________ * Conferência proferida no “II Encontro de Direito de Família do IBDFAM/DF”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – Seção Distrito Federal, de 10 a 14 de maio de 2004, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília – DF.

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47R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 47-56, out./dez. 2004

DIREITO AO ESTADO DEFILIAÇÃO E DIREITO À

ORIGEM GENÉTICA:uma distinção necessária*

Paulo Luiz Netto Lobo

DIREITO DE FAMÍLIA

RESUMO

Delineia os contornos das duas garantias – o direito ao estado de filiação e o direito à origem genética – com base na Constituição Federal de 1988 e no CódigoCivil de 2002, ordenamentos consagradores das profundas transformações por que passaram as relações familiares no Brasil, ao longo do séc. XX.Observa que fatores históricos, religiosos e ideológicos fizeram com que, por muito tempo, o estado de filiação se subordinasse à verdade biológicae às relações matrimonializadas. Hoje, diante da evolução do Direito e dos valores sociais, nos possíveis conflitos entre a filiação genética e asocioafetiva, prevalecem a afetividade e o melhor interesse da criança como legitimadores da filiação e da paternidade, passando o estado de filiaçãoa gênero, de que são espécies a filiação biológica e a não-biológica.Critica a confusão que faz a jurisprudência – inclusive do Supremo Tribunal Federal – entre direito à origem genética e reconhecimento ou contestaçãodo estado de filiação. Afirma que, tendo a origem genética perdido o papel legitimador da filiação, passou a integrar os direitos da personalidade, comfinalidade distinta, desvinculada do estado de filiação.

PALAVRAS-CHAVEDireito de Família; estado de filiação; origem genética; filiação – biológica, não- biológica; inseminação artificial heteróloga; Constituição Federal de1988; novo Código Civil; Lei n. 8.069 de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

__________________________________________________________________________________________________________________* Conferência proferida no “II Encontro de Direito de Família do IBDFAM/DF”, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – SeçãoDistrito Federal, de 10 a 14 de maio de 2004, no auditório do Superior Tribunal de Justiça, em Brasília – DF.

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1 INTRODUÇÃO

Na tradição do Direito de Famí-lia brasileiro, o conflito entre afiliação biológica e a socio-

afetiva sempre se resolveu em bene-fício da primeira. Em verdade, ape-nas recentemente a segunda passoua ser cogitada seriamente pelos ju-ristas, como categoria própria, mere-cedora de construção adequada. Emoutras áreas do conhecimento quetêm a família como objeto de investi-gação, a exemplo da Sociologia, daPsicanálise, da Antropologia, a rela-ção entre pais e filhos fundada naafetividade sempre foi determinantepara sua identificação.

No Direito, a verdade biológi-ca converteu-se na “verdade real” dafiliação em decorrência de fatores his-tóricos, religiosos e ideológicos, queestiveram no cerne da concepçãohegemônica da família patriarcal ematrimonializada e da delimitaçãoestabelecida pelo requisito da legiti-midade. Legítimo era o filho biológi-co, nascido de pais unidos pelo ma-trimônio; os demais seriam ilegítimos.Ao longo do século XX, a legislaçãobrasileira, acompanhando uma linhade tendência ocidental, operou a am-pliação dos círculos de inclusão dosfilhos ilegítimos com a redução de seuintrínseco quantum despótico, com-primindo o discrime até o seu desa-parecimento, com a Constituição de1988. Com efeito, se todos os filhossão dotados de iguais direitos e de-veres, não mais importando sua ori-gem, perdeu qualquer sentido o con-ceito de legitimidade nas relações defamília, que consistiu no requisito fun-damental da maioria dos institutos doDireito de Família. Por conseqüência,relativizou-se o papel fundador daorigem biológica.

Ao mesmo tempo em que oDireito de Família sofreu tão intensastransformações em seu núcleo estru-tural, consolidou-se a refinada elabo-ração dos direitos da personalidade,nas últimas décadas, voltados à tu-tela do que cada pessoa humana temde mais seu, como atributos inatos einerentes, alcançando-se o que Pon-tes de Miranda denominou “um doscimos da dimensão jurídica”1. Sãodois universos distintos, pois o Direi-to de Família volta-se aos direitos edeveres das pessoas, hauridos dogrupo familiar, e os direitos da perso-nalidade aos que dizem com a pes-soa em si, sem relação originária comqualquer outra ou com grupo. A ori-gem genética da pessoa, tendo per-dido seu papel legitimador da filiação,

máxime na Constituição, migrou paraos direitos da personalidade, com fi-nalidades distintas.

O estado de filiação desligou-se da origem biológica e de seuconsectário, a legitimidade, para as-sumir dimensão mais ampla, queabranja aquela e qualquer outra ori-gem. Em outras palavras, o estadode filiação é gênero do qual são es-pécies a filiação biológica e a filiaçãonão-biológica. Daí, é de se repelir oentendimento que toma corpo nos tri-bunais brasileiros, de se confundirestado de filiação com origem bioló-gica, em grande medida em virtudedo fascínio enganador exercido pe-los avanços científicos em torno doDNA. Não há qualquer fundamentojurídico para tal desvio hermenêuticorestritivo, pois a Constituição estabe-lece exatamente o contrário, abrigan-do generosamente o estado defiliação de qualquer natureza, semprimazia de um sobre outro.

Na realidade da vida, o estadode filiação de cada pessoa é único ede natureza socioafetiva, desenvolvi-do na convivência familiar, emboraderive biologicamente dos pais, namaioria dos casos. Portanto, não podehaver conflito com outro que ainda nãose constituiu.

Os argumentos a seguir expen-didos prosseguem na mesma linhatraçada em trabalhos anteriores, quepublicamos2. Nos últimos anos, divi-samos dois marcos essenciais paraa solução do eventual conflito entrefiliação biológica e filiação não-bioló-gica: a Constituição de 1988 e a Con-venção sobre os Direitos da Criança,adotada pela Assembléia-Geral daONU em 20/11/1989, e com força delei no Brasil mediante o DecretoLegislativo n. 28, de 24/9/1990, e oDecreto Executivo n. 99.710, de 21/11/1990. Da Constituição derivam oestado de filiação biológico e não-bio-lógico e o direito da personalidade àorigem genética e, da Convenção,vem a solução do conflito pela apli-cação do princípio do melhor interes-se do filho, que significou verdadeirogiro de Copérnico, na medida em quea primazia do interesse dos pais foitransferida para o do filho.

2 ESTADOS DE FILIAÇÃOBIOLÓGICA E NÃO-BIOLÓGICA

Filiação é conceito relacional;é a relação de parentesco que se es-tabelece entre duas pessoas, umadas quais é considerada filha da ou-tra (pai ou mãe). O estado de filiaçãoé a qualificação jurídica dessa rela-

ção de parentesco, atribuída a al-guém, compreendendo um comple-xo de direitos e deveres reciproca-mente considerados. O filho é titulardo estado de filiação, da mesma for-ma que o pai e a mãe são titularesdos estados de paternidade e dematernidade, em relação a ele.

Na doutrina, o estado defiliação não tem merecido o tratamen-to devido, sem embargo de sua evi-dente essencialidade, salvo quandose cuida do estado de fato, na mo-dalidade de posse de estado, ou doreconhecimento voluntário ou força-do. Todavia, são situações que têmpor fito comprovar a existência doestado de filiação, quando este forobjeto de dúvida ou litígio.

O estado de filiação constitui-se ope legis ou em razão da possede estado, por força da convivênciafamiliar (a fortiori, social), consolida-da na afetividade. Nesse sentido, afiliação jurídica é sempre de nature-za cultural (não necessariamente na-tural), seja ela biológica ou não.

No Direito brasileiro atual, comfundamento no art. 227 da Constitui-ção e nos arts. 1.593, 1.596 e 1.597do Código Civil, consideram-se es-tados de filiação ope legis:

a) filiação biológica em facede ambos os pais, havida de rela-ção de casamento ou de união está-vel, ou em face do único pai ou mãebiológicos, na família monoparental;

b) filiação não-biológica emface de ambos os pais, oriunda deadoção regular; ou em face do paiou da mãe que adotou exclusiva-mente o filho; e

c) filiação não-biológica emface do pai que autorizou a insemi-nação artificial heteróloga.

Nessas hipóteses, a convivên-cia familiar e a afetividade são pre-sumidas, embora de fato possam nãoocorrer. Assim, a convivência fami-liar e a afetividade constroem e con-solidam diuturnamente os respecti-vos estados de filiação, passando aditar-lhes os contornos. Em qualquerdos casos, o estado de filiação po-derá ser substituído, em razão deadoção superveniente do filho poroutros pais.

Os estados de filiação não-biológica, referidos nas alíneas b ec, são irreversíveis e invioláveis, nãopodendo ser contraditados por in-vestigação de paternidade ou ma-ternidade, com fundamento na ori-gem biológica, que apenas poderáser objeto de pretensão e ação comfins de tutela do direito da persona-lidade.

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3 ESTADO DE FILIAÇÃO DERIVADODE INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL

HETERÓLOGA

A inseminação artificial hete-róloga, prevista no art. 1.597, V, doCódigo Civil, dá-se quando é utiliza-do sêmen de outro homem, normal-mente dador anônimo, e não o domarido, para a fecundação do óvuloda mulher. A lei não exige que o ma-rido seja estéril ou que, por qualquerrazão física ou psíquica, não possaprocriar. A única exigência é o mari-do ter previamente autorizado a utili-zação de sêmen estranho ao seu. Alei não exige que haja autorizaçãoescrita, apenas que seja “prévia”, ra-zão por que pode ser verbal e com-provada em juízo como tal.

Por linhas invertidas, a tutelalegal desse tipo de concepção forta-lece a natureza fundamentalmentesocioafetiva, e não biológica, dafiliação e da paternidade. Se o mari-do autorizou a inseminação artificialheteróloga, não poderá negar a pa-ternidade em razão da origem gené-tica, nem poderá ser admitida inves-tigação de paternidade, com idênti-co fundamento, máxime em se tratan-do de dadores anônimos.

Nos Estados Unidos, o UniformParantage Act, de 1973 e 1987, esta-belece: se, sob a supervisão de ummédico habilitado e com o consenti-mento do marido, a mulher forinseminada artificialmente com sêmendoado por um outro homem, o mari-do é considerado legalmente comose fosse o pai natural da criança con-cebida. O consentimento deve serescrito pelo marido e pela mulher.Toda a documentação relativa àinseminação será mantida pelo mé-dico responsável, sujeita a inspeçãojudicial. Segundo o Uniform Status ofChildren of Assisted Conception Act,de 1988/1997, o dador do sêmen oudo óvulo não é parente da criançaconcebida mediante concepção as-sistida 3 . O art. 311-20 do Código Ci-vil francês estabelece que o consen-timento dado em procriação medica-mente assistida interdita toda ação decontestação ao estado de filiaçãodecorrente.

Para Maria Helena Diniz, se fos-se admitida a impugnação da pater-nidade, haveria uma paternidade in-certa, devido ao segredo profissionalmédico e ao anonimato do dador dosêmen inoculado na mulher4.

A Corte de Cassação italianajá decidiu, nessa linha de entendi-mento, que o marido que tinhavalidamente concordado ou manifes-

tado prévio consentimento à fecunda-ção heteróloga não tem ação paracontestar a paternidade da criançanascida em decorrência de tal fecun-dação. A decisão ressalta a naturezade “pai de direito”, afirmando que ofavor veritatis não é um valor absolu-to, pois não pode comprometer posi-ções dotadas de tutela primária5.

4 POSSE DO ESTADO DE FILIAÇÃO

A posse do estado de filiaçãoconstitui-se quando alguém assumeo papel de filho em face daquele oudaqueles que assumem os papéis oulugares de pai ou mãe ou de pais6,tendo ou não entre si vínculos bioló-gicos. A posse de estado é a exterio-rização da convivência familiar e daafetividade, segundo as característi-cas adiante expostas, devendo sercontínua.

Trata-se de conferir à aparên-cia os efeitos de verossimilhança, queo Direito considera satisfatória. NoDireito anterior, a posse do estado defiliação apenas era admitida, para finsde prova e suprimento do registro ci-vil, se os pais convivessem em famí-lia constituída pelo casamento, ouseja, para a filiação considerada legí-tima. Em virtude do art. 226 da Cons-tituição Federal, outras entidades fa-

miliares, como a união estável e a fa-mília monoparental, podem servir defundamento para a posse do estadode filiação.

Embora mantenha a redaçãodo Código Civil de 1916, o art. 1.605do Código Civil de 2002, por seuenunciado genérico, abrange todasas hipóteses existenciais que seapresentem nos arranjos familiaresde posse do estado de filiação, antea falta ou o defeito do termo de nas-cimento. Essa norma não se refere àorigem biológica, e nem poderia,bastando a aparência dos papéis so-ciais de pais e filho, quando houvercomeço de prova por escrito ouquando existirem veementes presun-ções resultantes de fatos já certos .As presunções “veementes” sãoverificadas em cada caso, dispen-sando-se outras provas da situaçãode fato. O Código brasileiro não in-dica, sequer exemplificativamente,as espécies de presunção, ou a du-ração, o que nos parece a orienta-ção melhor. Por seu turno, o CódigoCivil francês, art. 311-2, na atual re-dação, apresenta as seguintes es-pécies não-taxativas de presunçãodo estado de filiação, não sendo ne-cessária a reunião delas:

a) quando o indivíduo porta onome de seus pais;

b) quando os pais o tratamcomo seu filho, e este àqueles comoseus pais;

c) quando os pais provêemsua educação e seu sustento;

d) quando ele é assim reconhe-cido pela sociedade e pela família;

e) quando a autoridade públi-ca o considere como tal.

Na experiência brasileira, con-figuram posse do estado de filiaçãoa adoção de fato, em que muitas ve-zes se converte a guarda, os filhosde criação e a chamada “adoção àbrasileira”.

Essa reconfiguração da possedo estado de filiação – no sentido do“nascimento da verdade sociológica”(dizemos “socioafetiva”), de um con-teúdo afetivo e social profundo, cujaruptura prejudicaria o interesse do fi-lho – foi bem destacada na doutrinaestrangeira: Ninguém estranharia queo conceito de posse de estado ga-nhasse um conteúdo particular e diri-gido à finalidade de que se trata. Emvez de um índice de filiação biológi-ca ela serviria para consolidar um vín-culo meramente afectivo, sociológico,para exprimir a criação de uma famí-lia cuja estabilidade a lei resolveriaproteger no interesso do filho e no in-teresse social 7 .

(...) No Direito anterior, aposse do estado de filiaçãoapenas era admitida, parafins de prova e suprimentodo registro civil, se os paisconvivessem em famíliaconstituída pelo casamento,ou seja, para a filiaçãoconsiderada legítima. Emvirtude do art. 226 daConstituição Federal, outrasentidades familiares, como aunião estável e a famíliamonoparental, podem servirde fundamento para a possedo estado de filiação.

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5 A “ADOÇÃO À BRASILEIRA” E AVERDADE DO REGISTRO CIVIL

Questão delicada diz respeitoao que se convencionou chamar de“adoção à brasileira”. Dá-se com de-claração falsa e consciente de pater-nidade e maternidade de criança nas-cida de outra mulher, casada ou não,sem observância das exigências le-gais para adoção. O declarante oudeclarantes são movidos por intuitogeneroso e elevado de integrar a crian-ça à sua família, como se a tivessemgerado. Contrariamente à lei, a socie-dade não repele tal conduta; exalça-a. Nessas hipóteses, mesmo de for-ma ilegal, atende-se ao mandamentocontido no art. 227 da Constituição, deser dever da família, da sociedade edo Estado assegurar à criança o direi-to à convivência familiar, com absolu-ta prioridade, devendo tal circunstân-cia ser considerada pelo aplicador,ante o conflito entre valores normativos(de um lado, o atendimento à regramatriz de prioridade da convivênciafamiliar; de outro, os procedimentoslegais para que tal se dê, que não fo-ram atendidos). Outrossim, ainvalidade do registro assim obtido nãopode ser considerada quando atingiro estado de filiação, por longos anosestabilizado na convivência familiar.

Alerta João Baptista Villela que,se o registro diz que B é filho de A e Anão é efetivamente o procriador gené-tico de B, o registro não conteria ne-cessariamente uma falsidade, pois eleé o espelho das relações sociais deparentesco. Na Constituição se colhe-riam o compromisso da República Fe-derativa do Brasil com a solidarieda-de, a fraternidade, o bem-estar, a se-gurança, a liberdade etc., estandoessas opções axiológicas muito maispara uma idéia de paternidade funda-da no amor e no serviço do que para asua submissão aos determinismosbiológicos.

Verdade e falsidade no registrocivil e na biologia têm parâmetros di-ferentes. Um registro é sempre verda-deiro se estiver conciliado com o fatojurídico que lhe deu origem. E é sem-pre falso na condição contrária. A cha-mada “verdade biológica”, se for ocaso de invocá-la ou fazê-la prevale-cer, tem um diverso teatro de opera-ções: o das definições judiciais ouextrajudiciais. Para que chegue ao re-gistro tem de converter-se em fato jurí-dico, o que, no tocante à natureza dafiliação, supõe sempre um ato de von-tade – pessoal, se for do declarante;política, se for da autoridade – e, por-tanto, um exercício de liberdade. Um

cidadão que comparece espontanea-mente a um cartório e registra, comoseu filho, uma vida nova que veio aomundo, não necessita qualquer com-provação genética para ter sua de-claração admitida 8 .

6 A AFETIVIDADE COMO DIREITO EDEVER JURÍDICOS

A família, tendo desaparecidosuas funções tradicionais no mundodo ter liberal burguês, reencontrou-seno fundamento da afetividade, na co-munhão de afeto, pouco importando omodelo que adote, inclusive o que seconstitui entre um pai ou uma mãe eseus filhos. A afetividade, cuidada ini-cialmente pelos cientistas sociais, pe-los educadores, pelos psicólogos,como objeto de suas ciências, entrounas cogitações dos juristas que bus-cam explicar as relações familiarescontemporâneas.

O afeto não é fruto da biologia.Os laços de afeto e de solidariedadederivam da convivência familiar e nãodo sangue. A história do direito àfiliação confunde-se com o destino dopatrimônio familiar, visceralmente liga-do à consangüinidade legítima. Porisso, é a história da lenta emancipa-ção dos filhos, da redução progressi-va das desigualdades e do quantumdespótico, na medida da redução dapatrimonialização dessas relações.

O desafio aos juristas, principal-mente aos que lidam com o Direito deFamília, é a capacidade de ver as pes-soas em toda a sua dimensãoontológica, a ela subordinando as con-siderações de caráter biológico oupatrimonial. Impõe-se a materializaçãodos sujeitos de direitos, os quais sãomais que simples titulares de bens. Arestauração da primazia da pessoa,nas relações civis, é a condição pri-meira de adequação do direito à reali-dade social e aos fundamentos cons-titucionais.

Como diz Eduardo de OliveiraLeite, as indagações doutrinárias maisrecentes têm insistido, de forma cadavez mais freqüente e firme, que afiliação não é somente fundada sobreos laços de sangue; o vínculo san-güíneo determina, para a grande maio-ria dos pais, um laço fundado sobre avontade da aceitação dos filhos. Logo,a vontade individual é a seqüência ouo complemento necessário do vínculobiológico 9 .

Homenageando a filiação so-cioafetiva, em promissora linha de ten-dência da jurisprudência brasileira,assim decidiu o Tribunal de Justiça doParaná:

1 A ação negatória de paterni-dade é imprescritível, na esteira doentendimento consagrado na Súmulan. 149/STF, já que a demanda versasobre o estado da pessoa, emanaçãodo direito da personalidade. 2. No con-fronto entre a verdade biológica, ates-tada em exame de DNA, e a verdadesocioafetiva, decorrente da denomina-da “adoção à brasileira” (isto é, da si-tuação de um casal ter registrado, comoutro nome, menor, como se deles fi-lho fosse) e que perdura por quasequarenta anos, há de prevalecer a so-lução que melhor tutele a dignidadeda pessoa humana. 3. A paternidadesocioafetiva, estando baseada na ten-dência de personificação do DireitoCivil, vê a família como instrumento derealização do ser humano; aniquilar apessoa do apelante, apagando-lhetodo o histórico de vida e condiçãosocial, em razão de aspectos formaisinerentes à irregular “adoção à brasi-leira”, não tutelaria a dignidade huma-na, nem faria justiça ao caso concre-to, mas, ao contrário, por critérios me-ramente formais, proteger-se-iam asartimanhas, os ilícitos e as negligên-cias utilizadas em benefício do pró-prio apelado10.

7 FUNDAMENTAÇÃO NACONSTITUIÇÃO E NO CÓDIGO CIVIL

Encontram-se na Constituiçãobrasileira vários fundamentos do es-tado de filiação geral, que não se re-sume à filiação biológica:

a) Todos os filhos são iguais,independentemente de sua origem(art. 227, § 6º);

b) A adoção, como escolhaafetiva, alçou-se integralmente ao pla-no da igualdade de direitos (art. 227,§§ 5º e 6º);

c) A comunidade formada porqualquer dos pais e seus descenden-tes, incluindo-se os adotivos, tem amesma dignidade de família constitu-cionalmente protegida (art. 226, § 4º);não é relevante a origem ou a existên-cia de outro pai (genitor);

d) O direito à convivência fami-liar, e não a origem genética, constituiprioridade absoluta da criança e doadolescente (art. 227, caput);

e) Impõe-se a todos os mem-bros da família o dever de solidarie-dade uns com os outros, dos pais paraos filhos, dos filhos para os pais, etodos com relação aos idosos (arts.229 e 230).

Em suma, a Constituição nãooferece qualquer fundamento para aprimazia da filiação biológica, poisamplo é seu alcance. A primazia não

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está na Constituição, mas na interpre-tação equivocada que tem feito fortu-na, como se o paradigma da filiaçãonão tivesse sido transformado. Atémesmo no Direito anterior, a filiaçãobiológica era nitidamente recortadaentre filhos legítimos e ilegítimos, ademonstrar que a origem genéticanunca foi, rigorosamente, a essênciadas relações familiares.

O Código Civil reproduziu, emseu art. 1.596, a regra matriz do § 6ºdo art. 227 da Constituição, em rela-ção à igualdade entre filhos de qual-quer natureza, superando o para-digma discriminatório da legitimida-de, fundado na consangüinidade e namatrimonialidade. Outra norma geralsuperadora e inclusiva é a do art.1.593, que se refere ao parentesconatural ou de “outra origem”11. Umadas regras especiais mais incisivasrumo à superação da consangüi-nidade é a constante no inc. V do art.1.597, destinada à inseminaçãoheteróloga, antes referida.

8 CRITÉRIO DO MELHOR INTERESSEDO FILHO PARA A SOLUÇÃO DO

CONFLITO ENTRE FILIAÇÃOBIOLÓGICA E NÃO-BIOLÓGICA

No que concerne ao estado defiliação, deve-se ter presente que,além do mandamento constitucionalde absoluta prioridade dos direitos dacriança e do adolescente (art. 227), aConvenção Internacional dos Direitosda Criança, da ONU, de 1989, pas-sou a integrar o Direito interno brasi-leiro desde 1990. O art. 3.1 da Con-venção estabelece que todas asações relativas aos menores devemconsiderar, primordialmente, o interes-se maior da criança, abrangente doque a lei brasileira (ECA) consideraadolescente. Por força da Convenção,deve ser garantida ampla proteção aomenor. Ela constitui a conclusão deesforços, em escala mundial, no sen-tido do fortalecimento da situação ju-rídica da criança, eliminando-se asdiferenças entre filhos legítimos e ile-gítimos (art. 18) e atribuindo-se aospais, conjuntamente, a tarefa de cui-dar de sua educação e desenvolvi-mento.

O princípio não é uma reco-mendação ética, mas diretriz deter-minante nas relações da criança e doadolescente com seus pais, família,sociedade e Estado. A aplicação dalei deve sempre realizar o princípio,consagrado, segundo Luiz EdsonFachin, como critério significativo nadecisão e na aplicação da lei, tute-lando-se os filhos como seres prio-

ritários12. O desafio é converter a po-pulação infanto-juvenil em sujeitosde direito, para deixar de ser tratadacomo objeto passivo, passando a ser,como os adultos, titular de direitosjuridicamente protegidos13. O princí-pio está consagrado nos arts. 4º e 6ºda Lei n. 8.069, de 1990 (ECA).

O princípio é um reflexo docaráter integral da doutrina dos direi-tos da criança e da estreita relaçãocom a doutrina dos direitos humanosem geral. Assim, segundo a nature-za dos princípios, não há suprema-cia de um sobre outro, ou outros, de-vendo a eventual colisão resolver-sepelo balanceamento dos interesses,no caso concreto. Nesse sentido, dizMiguel Cillero Bruñol que, sendo ascrianças parte da humanidade, e seusdireitos não se exerçam separada oucontrariamente ao de outras pessoas,o princípio não está formulado em ter-mos absolutos, mas que o interessesuperior da criança é consideradocomo uma “consideração primordial”.O princípio é de prioridade e não deexclusão de outros direitos ou inte-resses. De outro ângulo, além de ser-vir de regra de interpretação e de re-solução de conflitos entre direitos,deve-se ressaltar que nem o interes-se dos pais, nem o do Estado, podeser considerado o único interesse re-

levante para a satisfação dos direi-tos da criança14.

Valerio Pocar e Paola Ronfani15

utilizam interessante figura de imagempara ilustrar a transformação do pa-pel do filho na família: em lugar daconstrução piramidal e hierárquica, naqual o menor ocupava a escala maisbaixa, tem-se a imagem de círculo,em cujo centro foi colocado o filho, ecuja circunferência é desenhada pe-las recíprocas relações com seusgenitores, que giram em torno daquelecentro. Nos anos mais recentes, pa-rece que uma outra configuração defamília relacional está-se delineando,em forma estelar, que tem ao centroo menor, sobre o qual convergem re-lações tanto de tipo biológico quantode tipo social, com os seus doisgenitores em conjunto ou separada-mente, inclusive nas crises e separa-ções conjugais.

O princípio inverte a ordem deprioridade: antes, no conflito entre afiliação biológica e a não-biológica ousocioafetiva, resultante da posse doestado de filiação, a prática do Direi-to tendia para a primeira, enxergan-do o interesse dos pais biológicoscomo determinantes, e raramente con-templando os do filho. De certa for-ma, condizia com a idéia de poderdos pais sobre os filhos e da hege-monia da consangüinidade-legitimida-de. Menos que sujeito, o filho era ob-jeto da disputa. O princípio impõe apredominância do interesse do filho,que norteará o julgador, o qual, anteo caso concreto, decidirá se a reali-zação pessoal do menor estará as-segurada entre os pais biológicos ouentre os pais não-biológicos. De todaforma, deve ser ponderada a convi-vência familiar, constitutiva da possedo estado de filiação, pois ela é prio-ridade absoluta da criança e do ado-lescente (art. 227 da Constituição Fe-deral).

9 PATER IS EST – REDIRECIONANDODA LEGITIMIDADE PARA O ESTADO

DE FILIAÇÃO EM GERAL

A mudança do Direito de Fa-mília, da legitimidade para o plano daafetividade, redireciona a função tra-dicional da presunção pater is est.Destarte, sua função deixa de ser ade presumir a legitimidade do filho emrazão da origem matrimonial, para ade presumir a paternidade em razãodo estado de filiação, independente-mente de sua origem ou de sua con-cepção. A presunção da concepçãorelaciona-se ao nascimento, devendoeste prevalecer.

A mudança do Direito deFamília, da legitimidadepara o plano da afetividade,redireciona a funçãotradicional da presunçãopater is est. Destarte, suafunção deixa de ser a depresumir a legitimidade dofilho em razão da origemmatrimonial, para a depresumir a paternidade emrazão do estado de filiação,independentemente de suaorigem ou de suaconcepção. A presunção daconcepção relaciona-se aonascimento, devendo esteprevalecer.

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Essa é a orientação adotadaem legislações que recentemente al-teraram o direito de filiação, privile-giando o nascimento em detrimentoda concepção, como a da Alemanha(1997), segundo a qual, se um ho-mem for casado com a mãe no mo-mento do nascimento da criança, en-tão ele é pai da criança sem que devahaver outros requisitos. Deixaram deexistir as presunções de coabitaçãoe concepção. É decisiva somente aépoca de nascimento da criança. Ohomem casado com a mãe na épocado nascimento é o pai, mesmo que acriança tenha nascido durante a uniãoconjugal, mas sido gerada antes docasamento. Ao contrário do § 1.591al. 1 frase 2 BGB aF, ele é pai atémesmo se, conforme as circunstân-cias, seja obviamente impossível quea mulher tenha concebido dele16.

A contestação ou impugnaçãoda paternidade são direitos persona-líssimos, que radicam exclusivamen-te na iniciativa do marido da mãe.Ninguém, nem mesmo o filho ou amãe, poderá impugnar a paternida-de. O art. 1.601 do Código Civil, as-sim lido em conformidade com a Cons-tituição, desloca a paternidade daorigem biológica para o estado defiliação, de qualquer origem. Note-seque o artigo equivalente do CódigoCivil de 1916 referia-se à contestaçãoda legitimidade dos filhos, e não dapaternidade em si. Por sua vez, a le-gitimidade dos filhos fundava-se emdois fatores conjuntos, a saber, nafamília constituída pelo casamento(matrimonializada) e no fato de terem-se originado biologicamente do mari-do da mãe.

A presunção pater is est recon-figura-se no estado de filiação, quedecorre da construção progressiva darelação afetiva, na convivência fami-liar. Antes, presumia-se pai biológicoo marido da mãe. Segundo AnneLefebvre Teillard, citada por JoãoBaptista Villela, o adágio pater is estatuou, por séculos, mantendo forte-mente amarrado “o biológico aoinstitucional”, além de estar ancora-do no pressuposto da fidelidade damulher. Hoje, presume-se pai o mari-do da mãe que age e se apresentacomo pai, independentemente de tersido ou não o procriador. Como res-salta Villela17, no processo de refina-mento cultural do matrimônio consti-tui traço fundamental o encapsu-lamento da vida íntima na esfera in-terna da família. Assim, atribuir a pa-ternidade ao marido da mulher nãosignifica proclamar uma derivaçãobiológica. (...) A família não tem de-

veres de exatidão biológica perantea sociedade, pelo que, se a mulherprevarica e pare um filho que não foigerado pelo seu marido, isso, tenden-cialmente, é matéria da economia in-terna da família. Pode ser um graveproblema para o casal. Como podenão ser problema.

O pai biológico não tem açãocontra o pai não-biológico, marido damãe, para impugnar sua paternidade.O marido somente pode impugnar apaternidade quando a constatação daorigem genética diferente da sua pro-vocar a ruptura da relação paternida-de-filiação. Se, apesar desse fato, fo-rem mais fortes a paternidade afetivae o melhor interesse do filho, enquan-to menor, nenhuma pessoa ou mesmoo Estado poderão impugná-la para fa-zer valer a paternidade biológica, semquebra da ordem constitucional e dosistema do Código Civil.

10 IMPRESCRITIBILIDADE DOEXERCÍCIO DA CONTESTAÇÃO DAPATERNIDADE E DA IMPUGNAÇÃO

DO ESTADO DE FILIAÇÃO

O Código Civil de 1916 esta-belecia prazos prescritíveis curtospara que o marido da mãe pudessecontestar a paternidade, sendo dedois meses a partir do parto, se esti-vesse presente, e de três meses, seausente. A finalidade da lei era afir-mar a presunção pater is est, no sen-tido de tutelar a família legítima, poisapenas admitia essa exceção paraimpugná-la, desde que a pretensãose exercesse em prazo curto. Susten-tou-se na doutrina e na jurisprudên-cia que tais prazos eram deca-denciais ou preclusivos – atingindonão somente a pretensão, mas o pró-prio direito –, e não apenas pres-critíveis. O Código Civil de 2002 ado-tou orientação totalmente oposta eproblemática, optando pela imprescri-tibilidade.

O marido da mãe, e somenteele, poderá a qualquer tempo impug-nar a paternidade derivada da presun-ção pater is est. Provavelmente, mo-tivou o legislador a orientação adota-da no Direito brasileiro de seremimprescritíveis as pretensões relativasao estado das pessoas. Todavia, ain-da que imprescritível, a pretensão deimpugnação não poderá ser exercidase fundada apenas na origem genéti-ca, em aberto conflito com o estadode filiação já constituído. Em outraspalavras, para que possa ser impug-nada a paternidade, independente-mente do tempo de seu exercício, teráo marido da mãe de provar não ser o

genitor, no sentido biológico (porexemplo, com resultado de exame deDNA) e, por essa razão, não ter sidoconstituído o estado de filiação, denatureza socioafetiva; e se foi o pró-prio declarante perante o registro denascimento, comprovar que teria agi-do induzido em erro ou em razão dedolo ou coação.

A família, seja de que origemfor, é protegida pelo Estado e por suaordem jurídica (art. 226 da Constitui-ção). Se a exclusividade da prova deinexistência de origem biológica pu-desse ser considerada suficiente parao exercício da impugnação da pater-nidade, anos ou décadas depois deesta ser realizada e não questiona-da, na consolidação dos recíprocoslaços de afetividade, com a inevitá-vel implosão da família assim consti-tuída, estar-se-ia negando a normaconstitucional de proteção da família,para atender impulsos, alterações desentimentos ou decisões arbitrárias dopai.

Pelos fundamentos jurídicosque informam o atual regime brasilei-ro da paternidade, o exercício impres-critível da impugnação pelo marido damãe depende da demonstração, alémda inexistência da origem biológica,de que nunca tenha sido constituídoo estado de filiação.

O argumento, tantas vezesmanejado, da possível derrogação doart. 362 do Código Civil de 1916 (es-tabelecia prazo decadencial de qua-tro anos para o filho impugnar o reco-nhecimento da paternidade, quandoatingisse a maioridade) pelo art. 27do Estatuto da Criança e do Adoles-cente - ECA18 perdeu a consistência,pois o Código Civil de 2002 repetiu omesmo conteúdo normativo anterior19.Em verdade, as duas normas sãoharmônicas, mas cuidam de matériasdistintas. O art. 27 do ECA assegurao caráter de direito personalíssimo aoreconhecimento do estado de filiaçãodos filhos havidos fora do casamen-to, qualquer que seja a origem (art.26), isto é, daqueles que ainda nãotenham sido reconhecidos por ambosou por um dos pais. O art. 1.614 doCódigo Civil de 2002, ao contrário,disciplina a preservação do estadode filiação dos que já foram reconhe-cidos, conforme consta do registro.Portanto, o art. 27 do ECA nunca per-mitiu a impugnação do estado defiliação dos que já se encontravam re-conhecidos, ao qual só pode haverimpugnação do próprio pai (art.1.601) ou do filho, no prazo de qua-tro anos após a maioridade (art.1.614).

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11 AFINAL, QUAL É A VERDADEREAL DA FILIAÇÃO?

A verdade biológica nem sem-pre é a verdade real da filiação. O di-reito deu um salto à frente do dadoda natureza, construindo a filiação ju-rídica com outros elementos. A ver-dade real da filiação surge na dimen-são cultural, social e afetiva, dondeemerge o estado de filiação efetiva-mente constituído pois, como visto,tanto o estado de filiação ope legisquanto a posse de estado do filiaçãopodem ter origem biológica ou não.

Para o registro do filho, o de-clarante não precisa fazer prova daorigem biológica; nem seria obrigadoa fazê-lo, pois impediria a filiação deoutra natureza. O registro produz umapresunção de filiação quase absolu-ta, porquanto somente pode ser in-validado caso se prove erro ou falsi-dade (art. 1.604 do Código Civil). Adeclaração de nascimento do filho,feita pelo pai, é irrevogável. Ao paicabe apenas o direito de contestar apaternidade, se provar, conjuntamen-te, que esta não se constituiu por nãoter sido o genitor biológico e não terhavido estado de filiação estável.

Como diz Gerard Cornu, a ver-dade biológica não reina absoluta so-bre o direito da filiação, porque estaincorpora, necessariamente, um con-junto de outros interesses e valores.Para ele, confundir verdade real dafiliação com verdade biológica é umentendimento reducionista, cego, de-magógico e decepcionante, engen-drando um direito biológico totalitá-rio, além de um pseudo-direito subje-tivo ilusório e nefasto 20.

Esclarece João Baptista Villelaque o registro não exprime um even-to biológico, pois compete ao oficialrecolher uma manifestação de vonta-de; ele expressa um acontecimentojurídico: A qualificação da paternida-de ou a omissão dela dependerá, deum modo ou de outro, de um fato dodireito: estar ou não casada a mãe,sentença que estabeleça ou descon-stitua a paternidade, reconhecimentovoluntário etc. Ao registro não interes-sa a história natural das pessoas,senão apenas sua história jurídica.Mesmo que a história jurídica tenhasido condicionada pela história natu-ral, o que revela o registro é aquela enão esta 21.

Na Jornada de Direito Civil, le-vada a efeito no Superior Tribunal deJustiça entre os dias 11 e 13 de ju-nho de 2002, aprovou-se proposiçãono sentido de que, no fato jurídico donascimento, mencionado no art.

1.603, compreende-se, à luz do dis-posto no art. 1.593, a filiação consan-güínea e também a socioafetiva.

Não pode o autor da declara-ção falsa, conscientemente assumi-da, vindicar a invalidade do registrodo nascimento, porque violaria o prin-cípio assentado em nosso sistemajurídico de venire contra factumproprium nulli conceditur. Sem razãoo Tribunal de Justiça de São Paulo(AC 130.334-4 – Marília – 1ª CDPriv– Rel. Des. Guimarães e Souza –14.12.1999), ao decidir que a exis-tência de vício do ato jurídico podeser alegada a qualquer tempo atémesmo pelo autor da falsidade. Acontestação, nesse caso, terá deestar fundada em hipótese deinvalidade dos atos jurídicos, que oDireito acolhe, tais como erro, dolo ecoação. Na dúvida, deve prevalecero estado de filiação socioafetiva,consolidada na convivência familiar,considerada prioridade absoluta emfavor da criança pelo art. 227 daConstituição Federal.

No contexto atual, em confor-midade com a Constituição da Repú-blica, o art. 1.604 do Código Civil re-força a primazia do estado de filiaçãosobre a origem genética. Nesse sen-tido, a norma deve ser interpretadaem consonância com os arts. 1.596,

1.597, 1.601 e 1.614, todos do Códi-go Civil. É quase absoluta a presun-ção da filiação derivada do registrode nascimento, pois apenas é afas-tada nas hipóteses de erro ou falsi-dade, não sendo admissível qualqueroutro fundamento. O registro de nas-cimento é a prova capital do nasci-mento e da filiação materna e pater-na. No caso do pai, reforça a presun-ção pater is est; não é totalmenteabsoluta porque pode ser retificada,por decisão judicial, ou invalidada emvirtude de prova de erro ou falsida-de. A norma é cogente ao proclamarque ninguém poderá vindicar estadocontrário ao que resulta do registro denascimento. Refere-se ao estado defiliação e aos decorrentes estados depaternidade e maternidade. A veda-ção alcança qualquer pessoa, incluin-do o registrado e as pessoas queconstam como seus pais. No CódigoCivil de 1916, a norma equivalente(art. 348) tinha por fito a proteção dafamília legítima, que não deveria serperturbada com dúvidas sobre a pa-ternidade atribuída ao marido da mãe.A norma atual, no contexto legal inau-gurado pela Constituição, contemplaa proteção do estado de filiação epaternidade, retratada no registro.

12 DIREITO À ORIGEM GENÉTICACOMO DIREITO DA

PERSONALIDADE, SEM VÍNCULOCOM O ESTADO DE FILIAÇÃO

O estado de filiação, decorren-te da estabilidade dos laços afetivosconstruídos no cotidiano de pai e fi-lho, constitui fundamento essencial daatribuição de paternidade ou mater-nidade. Nada tem a ver com o direitode cada pessoa ao conhecimento desua origem genética. São duas situa-ções distintas, tendo a primeira natu-reza de direito de família, e a segun-da, de direito da personalidade. Asnormas de regência e os efeitos jurí-dicos não se confundem nem seinterpenetram.

Para garantir a tutela do direitoda personalidade, não é necessárioinvestigar a paternidade. O objeto datutela do direito ao conhecimento daorigem genética é a garantia do direi-to da personalidade, na espécie, di-reito à vida, pois os dados da ciênciaatual apontam para a necessidade decada indivíduo saber a história desaúde de seus parentes biológicospróximos, para prevenção da própriavida. Não há necessidade de atribui-ção da paternidade para o exercíciodo direito da personalidade de conhe-cer, por exemplo, os ascendentes bio-

O estado de filiação,decorrente da estabilidade doslaços afetivos construídos nocotidiano de pai e filho,constitui fundamento essencialda atribuição de paternidadeou maternidade. Nada tem aver com o direito de cadapessoa ao conhecimento desua origem genética. São duassituações distintas, tendo aprimeira natureza de direito defamília, e a segunda, de direitoda personalidade. As normasde regência e os efeitosjurídicos não se confundemnem se interpenetram.

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lógicos paternos do que foi geradopor dador anônimo de sêmen, ou doque foi adotado, ou concebido porinseminação artificial heteróloga.Exemplos como esses demonstramo equívoco em que laboram decisõesque confundem investigação de pa-ternidade com direito à origem gené-tica.

Em contrapartida, toda pessoatem direito inalienável ao estado defiliação, quando não o tenha. Apenasnessa hipótese, a origem biológicadesempenha papel relevante no cam-po do Direito de Família, como funda-mento do reconhecimento da paterni-dade ou da maternidade, cujos laçosnão se tenham constituído de outromodo (adoção, inseminação artificialheteróloga ou posse de estado). Éinadmissível que sirva de base paravindicar novo estado de filiação, con-trariando o já existente.

Como já afirmamos alhures22,a evolução do Direito conduz à dis-tinção, que já se impõe, entre pai egenitor ou procriador. Pai é o que cria.Genitor é o que gera. Esses concei-tos estiveram reunidos enquanto hou-ve primazia da função biológica dafamília. Ao ser humano concebido forada comunhão familiar dos paissocioafetivos, e que já desfruta doestado de filiação, deve ser assegu-rado o conhecimento de sua origemgenética, ou da própria ascendência,como direito geral da personalidade,conforme decidiu o Tribunal Constitu-cional alemão em 1997, mas sem re-lação de parentesco ou efeitos deDireito de Família tout court 23. Nessesentido, dispõe a Lei Francesa n.2002-93, de 22 de janeiro de 2002,sobre o acesso às origens das pes-soas adotadas e dos “pupilos do Es-tado” (filhos de pais desconhecidosou que perderam o poder familiar,enquanto aguardam inserção em fa-mília substituta). A lei francesa tempor fito a necessidade de informaçõessobre sanidade, identidade e condi-ções genéticas básicas, no interessedos menores, para que possamutilizá-las, principalmente quandoadquirirem a maioridade, ou de seusdescendentes, para fins de saúdepública e dos próprios, sem finali-dade de parentesco legal. O Direitoespanhol, ao admitir excepcional-mente a revelação da identidade dodoador do material fecundante, ex-pressamente exclui qualquer tipo dedireito alimentar ou sucessório entreo indivíduo concebido e o genitor bio-lógico.

Toda pessoa tem o direito fun-damental, na espécie, direito da per-

sonalidade, de vindicar sua origembiológica para que, identificando seusascendentes genéticos, possa ado-tar medidas preventivas para preser-vação da saúde e, a fortiori, da vida.Esse direito é individual, perso-nalíssimo, não dependendo de estarinserido em relação de família paraser tutelado ou protegido. Uma coisaé vindicar a origem genética, outra, ainvestigação da paternidade. A pa-ternidade deriva do estado de filiação,independentemente da origem (bio-lógica ou não). O avanço da biotec-nologia permite, por exemplo, ainseminação artificial heteróloga, au-torizada pelo marido (art. 1.597, V, doCódigo Civil), o que reforça a tese denão depender a filiação da relaçãogenética do filho e do pai. Nessecaso, o filho pode vindicar os dadosgenéticos de dador anônimo de sê-men que constem dos arquivos dainstituição que o armazenou, para finsde direito da personalidade, mas nãopoderá fazê-lo com escopo de atri-buição de paternidade. Conseqüen-temente, é inadequado o uso da açãode investigação de paternidade, paratal fim.

Os desenvolvimentos científi-cos, que tendem a um grau elevadís-simo de certeza da origem genética,pouco contribuem para clarear a rela-ção entre pais e filho, pois a imputa-ção da paternidade biológica nãodetermina a paternidade jurídica. Obiodireito depara-se com as conse-qüências da dação anônima de sê-men humano ou de material genéticofeminino. Nenhuma legislação atéagora editada, nenhuma conclusãoda bioética apontam para a atribui-ção da paternidade aos que fazemdação anônima de sêmen para oschamados “bancos de sêmen" de ins-tituições especializadas ou hospita-lares. Em suma, a identidade genéti-ca não se confunde com a identida-de da filiação, tecida na complexida-de das relações afetivas, que o serhumano constrói entre a liberdade eo desejo.

O Supremo Tribunal Federal fir-mou orientação polêmica, fundadasobretudo no princípio da dignidadeda pessoa humana, garantindo ao réuo direito de recusa ao exame de DNA,mas negando ao outro o direito deconhecer sua origem genética. Aementa do acórdão, no HC-71.373-RS(DJ de 22/11/96), sendo relator o Mi-nistro Marco Aurélio, expressa bemesse entendimento:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNI-DADE – EXAME DE DNA – CONDU-ÇÃO DO RÉU “DEBAIXO DE VARA”.

Discrepa, a mais não poder, de ga-rantias constitucionais implícitas eexplícitas – preservação da dignida-de humana, da intimidade, daintangibilidade do corpo humano, doimpério da lei e da inexecução es-pecífica e direta de obrigação de fa-zer – provimento judicial que, emação civil de investigação de pater-nidade, implique determinação nosentido de o réu ser conduzido aolaboratório, “debaixo de vara”, paracoleta do material indispensável àfeitura do exame DNA. A recusa re-solve-se no plano jurídico-instrumen-tal, consideradas a dogmática, adoutrina e a jurisprudência, no quevoltadas ao deslinde das questõesligadas à prova dos fatos.

Já o Superior Tribunal de Justi-ça orientou-se em sentido contrário.A Quarta Turma do Tribunal, por una-nimidade, sendo relator o MinistroSálvio de Figueiredo Teixeira, no Re-curso Especial n. 140.665-MG (DJ de03/11/98), decidiu que, na fase atualda evolução do Direto de Família, nãose justifica inacolher a produção deprova genética pelo DNA, que a Ci-ência tem proclamado idônea e efi-caz, em caso envolvendo reconheci-mento judicial de paternidade.

A divergência jurisprudencialreflete a confusão que se faz entredireito da personalidade, inerente einato à pessoa, em seu âmbito indivi-dual e personalíssimo, e o reconheci-mento ou contestação do estado defiliação, que pode ou não ter origembiológica. O STF fundamentou-se nasgarantias constitucionais do indivíduo(princípios e direitos da personalida-de) para imunizá-lo do exame de DNA,determinado por ordem judicial. Po-rém, seria lesivo à dignidade da pes-soa, e invasivo da intimidade, sub-meter alguém ao exame, extraindo-lhe uma gota de sangue, um cabeloou um fragmento de unha? A orienta-ção do STF é correta quanto ao impe-dimento que provoca a utilizaçãoequivocada da origem genética paranegar o estado de filiação já consti-tuído. Todavia, seu amplo alcancepode comprometer o conhecimento daorigem genética com intuito exclusi-vo de tutela do direito da personali-dade do interessado, fundado nomesmo princípio da dignidade dapessoa humana, ainda que não pro-duza efeitos de negar o estado defiliação de origem não-biológica,comprovadamente constituído na con-vivência familiar duradoura. Se hou-ver colisão de direitos, com base nomesmo princípio constitucional, os cri-térios hermenêuticos do balancea-

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mento ou ponderação dos interessesnão recomendam que um seja previa-mente sacrificado em benefício dooutro. Em tese, negar o direito ao co-nhecimento da origem genética é tãolesivo ao princípio da dignidade dapessoa humana quanto a submissãocompulsória a exame. Apenas o casoconcreto indicará quando um deveráprevalecer sobre o outro.

13 CONCLUSÃO

O direito à filiação não é so-mente um direito da verdade. É, tam-bém, em parte, um direito da vida,do interesse da criança, da paz dasfamílias, das afeições, dos sentimen-tos morais, da ordem estabelecida,do tempo que passa (...)24

No estágio em que se encon-tram as relações familiares no Brasil,ante a evolução do Direito, do conhe-cimento científico e cultural e dos va-lores sociais, não se pode confundirestado de filiação e origem biológi-ca. Esta não mais determina aquele,pois desapareceram os pressupostosque a fundamentavam, a saber, a ex-clusividade da família matrimo-nializada, a legitimidade da filiação,o interesse prevalecente dos pais, apaz doméstica e as repercussõespatrimoniais.

O estado de filiação é gênero,do qual são espécies a filiação bioló-gica e a filiação não-biológica. Em-bora ele derive, na grande maioria doscasos, do fato biológico, por força danatureza humana, outros fatos o de-terminam, a saber, a adoção, a pos-se do estado de filiação e a insemi-nação artificial heteróloga. Assim,para abranger todo o universo de si-tuações existenciais reconhecidaspelo Direito, o estado de filiação temnecessariamente natureza cultural (ousocioafetiva).

A origem biológica presume oestado de filiação ainda não consti-tuído, independentemente de compro-vação da convivência familiar. Nessesentido, a investigação da origem bio-lógica exerce papel fundamental paraatribuição da paternidade ou da ma-ternidade e, a fortiori, do estado defiliação, quando ainda não constituí-do. Todavia, na hipótese de estadode filiação não-biológica já constituí-do na convivência familiar duradou-ra, comprovado no caso concreto, aorigem biológica não prevalecerá. Ouseja, a origem biológica não se po-derá contrapor ao estado de filiaçãojá constituído por outras causas econsolidado na convivência familiar(Constituição, art. 227).

O conflito entre pais biológicose pais não-biológicos do filho menornão mais se resolve pela primazia dosprimeiros ou dos segundos. A solu-ção mudou o foco dos interesses, dospais para os filhos. A Convenção In-ternacional dos Direitos da Criança,de 1989, com força de lei ordinária noBrasil desde 1990, estabelece quetodas as ações relativas às criançasdevem considerar, primordialmente, omelhor interesse da criança, em facedos interesses dos pais. Essa norma,inteiramente conforme com a Consti-tuição, foi absorvida pelo Estatuto daCriança e do Adolescente e pelo Có-digo Civil de 2002.

Questão relevante diz respeitoao estado de filiação constituído a par-tir de fatos ilícitos (por exemplo, se-qüestro de criança, falsidade docu-mental, troca consciente de recém-nascidos). Também nessas situa-ções, não haverá automático predo-mínio da origem biológica, quando oestado de filiação perdurar no tem-po. A solução adequada consideraráo caso concreto, com fundamento noprincípio do melhor interesse da crian-ça, que, apesar da repulsa ao fatooriginário, poderá não coincidir comos dos pais biológicos.

Por fim, o direito ao conheci-mento da origem genética não signi-fica necessariamente direito à filiação.Sua natureza é de direito da persona-lidade, de que é titular cada ser hu-mano. A origem genética apenas po-derá interferir nas relações de famíliacomo meio de prova para se reconhe-cer judicialmente a paternidade ou amaternidade, ou para contestá-las, senão houver estado de filiação consti-tuído, nunca para negá-lo.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 MIRANDA, Pontes de. Tratado de DireitoPrivado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. t. 7,p. 6.

2 A repersonalização das relações de família.In: BITTAR, Carlos Alberto (Org.). O Direitode Família na Constituição de 1988. SãoPaulo: Saraiva, 1989. p. 53-82; O examede DNA e o princípio da dignidade dapessoa humana. Revista Brasileira deDireito de Família, Porto Alegre, n. 1, p. 67-78, abr./jun. 1999; Princípio jurídico daafetividade na filiação. In: PEREIRA,Rodrigo da Cunha (Org.). Anais do IICongresso Brasileiro de Direito de Família:A família na travessia do milênio. BeloHorizonte: OAB-MG/IBDFAM, 2000. p. 245-54; Código Civil comentado: Direito deFamília. Relações de parentesco. Direitopatrimonial. In: AZEVEDO, Álvaro Villaça(Org.). Código Civil comentado. São Paulo:Atlas, 2003. v. 16.

3 Transcrição de WADLINGTON, Walter;O’BRIEN. Family law statutes, internationalconventions and uniform laws. New York:Foundation Press, 2000. p.135, 148.

4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civilbrasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5,p. 380.

5 POCAR, Valerio; RONFANI, Paola. Lafamiglia e il diritto. Roma: Laterza, 2001. p.206-207.

6 Sobre o conceito de lugar, como im-portante contribuição da psicanálise,PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família,direitos humanos, Psicanálise e inclusãosocial. Revista Brasileira de Direito deFamília , Porto Alegre, n. 16, p. 8, jan./mar.2003: A partir de LACAN e LÉVI-STRAUSS,podemos dizer que família é uma estru-turação psíquica em que cada membroocupa um lugar, uma função. Lugar de pai,lugar da mãe, lugar dos filhos, sem,entretanto, estarem necessariamenteligados biologicamente. Tanto é assim,uma questão de lugar, que um indivíduopode ocupar o lugar de pai e mãe, semque seja o pai ou a mãe biológicos.

7 OLIVEIRA, Guilherme de. Critério jurídicoda paternidade. Coimbra: Almedina, 2003.p. 445.

8 O Modelo constitucional da filiação:verdade e superstições. Revista Brasileirade Direito de Família, Porto Alegre, n. 2, p.138-139, jul./set. 1999.

9 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriaçõesartificiais e o Direito. São Paulo: Revistados Tribunais, 1995. p. 203.

10 AC n. 108.417-9 - 2ª C.Civ. - Ac. n. 20.110- Rel. Des. Accácio Cambi - unân. - J. 12/12/2001.

11 FACHIN, Luiz Edson: o teor desse novodispositivo consagra situações jurídicasconhecidas e também abre espaço paranovas formulações já em construção,especialmente a socioafetiva, cabível em“outra origem” (Comentários ao novoCódigo Civil: Do Direito de Família. Dodireito pessoal. Das relações de paren-tesco. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo.Comentários ao novo Código Civil. Rio deJaneiro: Forense, 2003. v. 18. p.17).

12 FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade:relação biológica e afetiva. Belo Horizonte:Del Rey, 1996. p.125.

13 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do“melhor interesse da criança”: da teoria àprática. Revista Brasileira de Direito deFamília , Porto Alegre, n. 6, p. 31-49, jul./set. 2000.

14 BRUÑOL, Miguel Cillero. Infância, auto-nomía y derechos: una cuestión deprincipios. Infancia: Boletín del InstitutoInteramericano del Niño – OEA, n. 234, p.1-13, oct. 1997.

15 POCAR; RONFANI; op.cit., p. 207.16 SCHLÜTER, Wilfried. Código civil alemão:

Direito de Família, Trad. de Elisete Antoniuk.Porto Alegre: Fabris, 2002. p. 343.

17 VILLELA, João Baptista. O modelo cons-titucional da filiação: verdade e superstições.Revista Brasileira de Direito de Família, PortoAlegre, n. 2, p. 128, jul./set. 1999.

18 Art. 27. O reconhecimento do estado defiliação é direito personalíssimo, indisponívele imprescritível, podendo ser exercitadocontra os pais ou seus herdeiros, semqualquer restrição, observado o segredode justiça.

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19 No STJ, as 3ª e 4ª Turmas, após diver-gências havidas entre elas, convergirampara o entendimento de somente incidir oprazo decadencial previsto no CC-1916se, quando da vigência do art. 27 do ECA,o filho já não havia decaído de seu direito(4 anos posteriores à maioridade) àimpugnação. Todavia, a Seção de DireitoPrivado mudou essa orientação, decidindoque o direito do filho de obter a declaraçãode sua real filiação é insuscetível dedecadência , inclusive nas situaçõesanteriores ao advento do art. 27/ECA, epor força deste e da Constituição (nessecaso, sem dizer qual a norma). Como sevê, confunde “real filiação” com origembiológica. REsp. 208.788/SP, DJU 22/04/2003, p. 232.

20 CORNU, Gerard. Droit Civil: La Famille. 8ed. Paris: Montchrestien, 2003. p. 324-326.

21 VILLELA, 1999, op. cit., p. 140.22 LÔBO, Paulo Luiz Netto. O exame de DNA

e o princípio da dignidade da pessoahumana. São Paulo: Revista dos Tribunais,1999. p. 72.

23 SCHLÜTER, op. cit., p. 342.24 CORNU, op. cit., p. 325.

ABSTRACT

Paulo Luiz Netto Lobo é Doutor em DireitoCivil (USP); Professor na UFAL e na UFPE(Pós-graduação); Diretor Regional doIBDFAM – Nordeste, Maceió-AL.

The author outlines two rights – theright to filiation status and to genetic origin – asset forth by the 1988 Brazilian Constitution andby the 2002 Civil Code, which are legal systemsthat sanction the deep changes familyrelationships have undergone in Brazil,throughout the 20th century.

He notices that historical, religious andideological factors caused, for a long time,filiation status to be subordinate to both thebiological truth and the matrimonial unions.Nowadays, given Law evolution and socialvalues, in possible conflicts between geneticand socio-affective filiation, affection and thechild’s best interest prevail as elements forlegitimating filiation and paternity, changingfiliation status to gender, from which biologicaland non-biological filiations are species.

Furthermore, he criticizes the confusionbrought by jurisprudence – including that of theBrazilian Supreme Court – between the right togenetic origin and the recognition or rebuttingof paternity. He states that, having the geneticorigin lost the purpose of legitiming filiation, itstarted to integrate personal rights with a distinctaim, disconected from the filiation status.

KEYWORDS – Family Law; filiationstatus; genetic origin; filiation – biological, non-biological; heterogeneous artificial insemination;1988 Brazilian Constitution; new Civil Code;Law n. 8,069/90 (Statute of the Child andAdolescent).