Direito civil I (Desembargador Rui Penha)

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MINISTÉRIO DA JUSTIÇA CENTRO DE FORMAÇÃO JURÍDICA Rui Penha (Juiz Formador CFJ) 1 Direito Civil I Introdução ao direito Capítulo I Introdução 1.1. Noção de Direito Direito consiste no ordenamento jurídico da sociedade. Direito é o sistema normativo de conduta social, coactivamente protegido porque mobilizado à realização da justiça. 1 O objecto material do direito, a matéria a que ele se reporta, é a vida social, são as relações dos homens entre si, as relações inter-humanas. Dai que o direito não seja uma mera realidade abstracta, visando antes a solução de casos concretos da vida em sociedade. 2 Ou seja, o Direito não regula o ser humano isolado, mas os homens na sua relação uns com os outros, procurando solucionar nessas relações os interesses conflituantes entre eles, disciplina que, por vezes, é conseguida dando-se preferência a um dos interesses em prejuízo de outros. 3 O Direito integra-se na sociedade como ordem normativa, que tem por base a que é a ordem natural ao homem: a ordem social. 4 A ordem jurídica traduz-se no complexo normativo que ordena os aspetos mais relevantes da sua vivência social, exprimindo-se através de regras 1 Pereira, Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações, 2001, pág. 11. 2 Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 14. 3 Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1999, pág. 21. 4 Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 74.

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1

Direito Civil I

Introdução ao direito

Capítulo I – Introdução

1.1. Noção de Direito

Direito consiste no ordenamento jurídico da sociedade. Direito é o sistema normativo de conduta

social, coactivamente protegido porque mobilizado à realização da justiça.1

O objecto material do direito, a matéria a que ele se reporta, é a vida social, são as relações dos

homens entre si, as relações inter-humanas. Dai que o direito não seja uma mera realidade

abstracta, visando antes a solução de casos concretos da vida em sociedade.2

Ou seja, o Direito não regula o ser humano isolado, mas os homens na sua relação uns com os

outros, procurando solucionar nessas relações os interesses conflituantes entre eles, disciplina

que, por vezes, é conseguida dando-se preferência a um dos interesses em prejuízo de outros.3

O Direito integra-se na sociedade como ordem normativa, que tem por base a que é a ordem

natural ao homem: a ordem social.4 A ordem jurídica traduz-se no complexo normativo que

ordena os aspetos mais relevantes da sua vivência social, exprimindo-se através de regras

1 Pereira, Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações, 2001, pág. 11.

2 Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 14.

3 Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1999, pág. 21.

4 Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 74.

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jurídicas prosseguindo como valores fundamentais, a justiça, a segurança e o bem-estar social,

económico e cultural.5

O que distingue o direito de outras normas reguladoras do comportamento humano, como as

normas éticas ou morais e religiosas é, desde logo, aquela finalidade de regular as relações entre

diversas pessoas (há normas morais ou religiosas que se aplicam ao indivíduo individualmente,

independentemente da interacção com outros), e é essencialmente a imperatividade da norma

jurídica.6

As regras jurídicas emanam da autoridade social que as promulga e têm por fim a tutela dos

interesses individuais e colectivos, segundo um critério de justiça.

As normas jurídicas têm que ser gerais e abstractas, no sentido de serem iguais para todos e

aplicarem-se igualmente a todas as pessoas perante iguais situações que se apresentem na vida

social.

E, como se viu, gozam da característica da coercibilidade, ou seja, podem ser impostas pela força

a quem não as cumpra.

1.2. Direito Público e Direito Privado

5 Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 83. Veja-se ainda Pinto, Teoria Geral

do Direito Civil, 1999, pág. 18. 6 Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 43.

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Embora a ordem jurídica seja uma só, a mesma decompõe-se tecnicamente em diversos ramos

(os Ramos de Direito), em função dos princípios gerais que lhe são próprios.7

Tradicionalmente divide-se o ordenamento jurídico em dois grandes sectores, em dois ramos

fundamentais: direito público e direito privado.

O critério que hoje prevalece na distinção destes dois ramos de direito é o da chamada teoria dos

sujeitos, que assenta na qualidade dos sujeitos das relações jurídicas disciplinadas pelas normas a

qualificar como de direito público ou de direito privado.8

Ou seja, o critério de distinção resulta da circunstância de, nas relações sociais a que se reporta o

direito positivo, intervir como um dos sujeitos a autoridade pública, o Estado na sua missão de

soberania (como se costuma dizer, dotado de ius imperii). Significa isto que não basta que o

estado seja um dos sujeitos da relação jurídica, é necessário que nessa relação intervenha dotado

da soberania que lhe é própria, e não, como pode acontecer, no mesmo plano de um comum

cidadão.

Nestes termos, deve exigir-se que a relação para ser de Direito Público deva ser travada entre

entidades dotadas de autoridade política (pública) e que intervenham nessa mesma relação

munidas dessa mesma autoridade (Ius Imperii), reservando para o campo das relações de

Direito Privado não só aquelas que se estabeleçam entre os particulares (não dotados de

autonomia política), mas também as relações de que sejam sujeitos entidades dotadas de

7 Sobre esta questão veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 99, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág.

333. 8 Mota Pinto, ob. cit., pág. 28. No mesmo sentido, Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 101-102, e

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 335.

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autoridade política mas intervenham desprovidos dessa mesma autoridade; isto é, no mesmo

plano que os particulares.9

Quer o direito público, quer o direito privado, podem ainda dividir-se em vários outros ramos de

direito.

1.3. Direito objectivo e direito subjectivo

A definição que se apresentou de direito reporta-se ao direito objectivo. Assim, direito objectivo

é o conjunto de normas que ordenam a vida social.

Este, como também já se viu, pode ser dividido em vários ramos, consoante as relações ou

situações sociais que concretamente se pretendem regular.

O direito subjectivo é o direito concedido pelo ordenamento jurídico (o direito objectivo) a um

sujeito determinado, ou indeterminado, mas sempre determinável, como igualmente já se referiu

supra.10

Por exemplo, quando se fala de direito das sucessões, estamos a falar de direito objectivo, mais

concretamente do ramo do direito que regula a forma como se determinam os herdeiros de uma

pessoa falecida, e a forma como se procede à distribuição dos bens do falecido entre estes.

9 Diogo e Januário, Noções e Conceitos Fundamentais de Direito, 2007, pág. 102.

10 Sobre esta materia veja-se Ascensão, O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2005, pág. 46.

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Mas quando falamos do direito de um herdeiro determinado à herança, já estamos a referir-nos

ao direito subjectivo que esta pessoa em concreto tem, nos termos daquelas regras que

constituem o direito objectivo.

1.3. Direito material e direito processual

Direito material, ou substantivo, é o conjunto de regras que directamente regulam a matéria da

vida social que se pretende ordenar e dirigir.

São as normas que basicamente regulam a vida em sociedade e determinam a forma de resolução

de conflitos entre as pessoas, nos termos que se têm vindo a expor.

O direito processual, ou adjectivo, é constituído por regras que estabelecem, ou regulam o modo

como se pode obter o cumprimento das disposições de direito substantivo. São regras meramente

instrumentais relativamente à realização dos fins que as primeiras se propõem11

. O direito

adjectivo é direito público.

Numa formulação mais simplista dir-se-á que o direito substantivo define ou atribui os direitos

subjectivos das pessoas, e o direito adjectivo regula a forma como esses direitos podem ser

exercidos através dos órgãos do Estado especialmente vocacionados para o efeito, os Tribunais.

11

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 137, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 355-357.

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2. Fontes de direito

2.1. Noção

Fontes de direito são modos de formação e revelação de regras jurídicas.12

Traduz o processo de

criação e de exteriorização das normas jurídicas.13

São fontes directas ou imediatas do direito a lei e o costume e fontes mediatas a jurisprudência e

a doutrina.

2.2. A Lei

Lei é a norma jurídica decidida e imposta por uma autoridade com poder para a exarar, e

determinar na sociedade política.14

“Lei é um texto ou fórmula significativo de uma ou mais

regras emanadas, com observância das formas estabelecidas, de uma autoridade competente para

pautar critérios jurídicos de solução de situações concretas”.15

Trata-se pois de uma fonte intencional do Direito. Para o art. 2º, nº 2, da Lei nº 10/2003, de 10 de

Dezembro (Interpretação do artigo 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de Agosto e Fontes do Direito), leis

são as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes.16

12

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 256. 13

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 141. 14

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 142. 15

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 284. 16

Segundo o Dicionário Universal da Língua Portuguesa, a palavra Lei provém do Latim lege, que significa uma

norma de carácter imperativo, imposta ao homem, que governa a sua acção e que implica obrigação de obediência

e sanção da transgressão (lei positiva); preceito ou conjunto de preceitos obrigatórios que emanam da autoridade

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No mesmo sentido, nos termos do art. 1º, nº 2, do Código Civil, em sentido material, leis são

todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes. Ou seja, é toda a

regra jurídica escrita, emanada dos órgãos do Estado que tenham competência para tal fim.

Em sentido formal, leis serão somente as disposições genéricas provindas do órgão legislativo

normal.

Também o art. 2º, nº 3, da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, enumera as fontes de direito

nacionais nos seguintes termos:

a) A Constituição da República;

b) As leis emanadas do Parlamento Nacional e do Governo da República;

c) Supletivamente os regulamentos e demais diplomas legais da UNTAET enquanto não forem

revogados, assim como a legislação indonésia nos termos do artigo 1º da presente lei.

Órgãos legislativos, ou órgãos do Estado com a função de legislar são somente órgãos do Poder

Central: o Parlamento Nacional e o Governo. Vejam-se os arts. 92º e 95º a 98º da Constituição

da RDTL, relativamente ao Parlamento, bem como os arts. 115º a 117º, relativamente ao

Governo.

Sobre este aspecto assume ainda particular relevância a Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, ainda no

mesmo sentido já exposto (arts. 9º, 10º, 12º, 13º e 20º).

soberana de uma sociedade, do poder legislativo; conjunto das regras jurídicas estabelecidas pelo legislador;

(entre outras definições) (acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008, proferido no âmbito do processo nº

4/2008, relator Ivo Rosa, publicado no Jornal da República nº 44, Série I, de 26-11-200).

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Conforme referido no aludido acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008 (nota 16), “Apesar

disso, no que concerne à identificação das fontes, o texto constitucional faz, em vários

momentos, referência a leis e demais actos do Estado e poder local (art. 2 n. 2); direito

internacional (art. 9); leis constitucionais - Leis de revisão constitucional ( art. 154). Estabelece,

também, a relação hierárquica entre vários tipos de actos legislativos: leis que autorizam o

governo a legislar sobre matéria da competência de reserva relativa do parlamento, definindo o

objecto o sentido e a extensão da autorização (art. 96); leis de bases- leis que estabelecem as

bases gerais dos regimes jurídicos (art. 95 n. 2 al l) e m) bases gerais do sistema de ensino, da

saúde e da segurança social, Por sua vez, o legislador ordinário, através da Lei 1/2002, de 7 de

Agosto, veio dizer, de forma expressa, quais eram os actos legislativos e actos normativos”.

2.3. A Constituição da RDTL

A Constituição ainda se integra na categoria de lei,17

no sentido amplo analisado (lei

constitucional), conforme resulta expressamente do disposto no art. 9º, nº 2, da Lei nº 1/2002, de

7 de Agosto.

Importa, não ignorar, contudo, a especial natureza da lei constitucional.

A Constituição é uma lei específica, com prevalência sobre todas as outras leis. A Constituição

constitui a lei fundamental da sociedade, da colectividade política. Trata-se da lei-quadro

fundamental da República.18

17

Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 4ª

ed. Revista, 2007, pág. 57, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 292.

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2.4. Leis do Parlamento e diplomas do Governo

Só o Parlamento Nacional pode legislar sobre algumas matérias (competência exclusiva, referida

no art. 95º, nº 2).

Nos modernos Estados de Direito, porém, a conveniência de intervenção legislativa não se

compadece com as delongas do processo de elaboração das leis por um Parlamento, e por isso

sucessivamente se tem vindo a afirmar a competência legislativa do Governo.

Deste modo desapareceu a rígida separação de um poder legislativo e de um poder executivo.

Ao Governo cabe, assim, tanto a função de legislar como a função de prover à execução das leis,

governar e administrar.

A competência legislativa exerce-se por meio de decretos-lei, aprovados pelo Conselho de

Ministros ou referendados por todos os Ministros.

O Governo tem também o poder de regulamentar as leis, de modo que possam ser

convenientemente executadas. Este poder regulamentar exercido pelo Governo relativamente a

todo o território nacional, cede quanto a matérias cuja tutela ou prossecução respeite a órgãos

locais.

A separação de poderes, que constitui princípio fundamental do Estado de Direito Democrático

(preconizado no art. 1º, nº 1, da Constituição), visando inibir que a acção de um deles limite o

18

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 56.

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outro, constituindo assim um verdadeiro sistema de freios e contrapesos (ou, usando a expressão

anglo-saxónica, cheks and balances), evoluiu no sentido de uma maior ligação entre os poderes,

por forma a poder encontrar-se um equilíbrio de poderes que possa colmatar os inconvenientes

de uma visão hermética e excessivamente rígida da separação de poderes.

É que o poder do Estado é uno e indivisível, sendo aquela divisão ou separação de poderes

meramente pragmática para a consecução dos fins do ente político e para a protecção da

indigitada garantia à liberdade dos indivíduos, através da pulverização do poder estatal.

2.5. Legislação pré-independência (UNTAET e legislação indonésia)

Nos termos do art. 165º da Constituição da RDTL, são ainda fontes de direito as leis e os

regulamentos vigentes em Timor-Leste em tudo o que não se mostrar contrário à Constituição e

aos princípios nela consignados.

É evidente que a última referência era desnecessária. Todo o diploma legal deve ser interpretado

à luz da lei fundamental, ou considerar-se por ela revogado se a sua redacção não permitir

harmonizá-lo com a constituição.

Por outro lado, a Constituição não revoga a lei vigente à data da sua entrada em vigor, a menos

que o declare expressamente.

Reafirmando o preceito constitucional escreveu-se no art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, a

legislação vigente em Timor-Leste em 19 de Maio de 2002 mantém-se em vigor, com as

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necessárias adaptações, em tudo o que se não mostrar contrário à Constituição e aos princípios

nela consignados.

Legislação da UNTAET:

A Constituição, ao mencionar os regulamentos vigentes em Timor-Leste, refere-se à legislação

produzida pela UNTAET.

A UNTAET (administração interina para Timor-Leste) Foi criada ao abrigo da Resolução do

Conselho de Segurança das Nações Unidas S/RES/1272 (1999), de 25 Outubro 1999.

Os regulamentos referidos na norma constitucional são os regulamentos emanados da UNTAET

ao abrigo da Secção 4 do Regulamento 1999/1.19

Sobre esta matéria veio a Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, veio consagrar no seu art. 20º20

que:

1. Os regulamentos da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste, doravante

designada abreviadamente por UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002 e que foram

aprovados pela Assembleia Constituinte, têm valor igual às leis.

2. Os demais regulamentos da UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002, têm valor igual aos

decretos do Governo.

19

In the performance of the duties entrusted to the transitional administration under United Nations Security Council

resolution 1272 (1999), the Transitional Administrator will, as necessary, issue legislative acts in the form of

regulations. Such regulations will remain in force until repealed by the Transitional Administrator or superseded by

such rules as are issued upon the transfer of UNTAET's administrative and public service functions to the

democratic institutions of East Timor, as provided for in United Nations Security Council resolution 1272 (1999). 20

Actos da Administração Transitória das Nações Unidas em Timor-Leste.

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3. As directivas da UNTAET, em vigor em 19 de Maio de 2002, têm valor igual aos diplomas

ministeriais.

4. As ordens executivas e as notificações emitidas pela UNTAET, em vigor em 19 de Maio de

2002, têm o valor que a sua natureza implicar.

A legislação indonésia:

A questão que se colocou relativamente aos preceitos em causa, quer o art. 165º da Constituição,

quer art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, o qual aliás seguia o disposto na Secção 3, nº 1, do

aludido Regulamento da UNTAET 1999/1,21

consistia em saber a que legislação se fazia

referência, mais concretamente a legislação portuguesa, face ao não reconhecimento da

integração indonésia,22

ou a legislação indonésia.

O Tribunal de Recurso entendia que “A legislação vigente em Timor-Leste antes de 25 de

Outubro de 1999 só podia ser aquela que, de acordo com os princípios do direito internacional,

estava legitimamente em vigor nesse território. E, de acordo com os princípios do direito

internacional, Portugal continuou a ser reconhecido pela comunidade internacional, pelo

Conselho de Segurança das Nações Unidas e pelo Povo Timorense como potência administrante

de Timor-Leste durante o período de Dezembro de 1975 até 25 de Outubro de 1999”.23

21

Until replaced by UNTAET regulations or subsequent legislation of democratically established institutions of East

Timor, the laws applied in East Timor prior to 25 October 1999 shall apply in East Timor insofar as they do not

conflict with the standards referred to in section 2, the fulfillment of the mandate given to UNTAET under United

Nations Security Council resolution 1272 (1999), or the present or any other regulation and directive issued by the

Transitional Administrator. 22

Importa aqui lembrar o art. 1º, nº 2, da Constituição da RDTL (O dia 28 de Novembro de 1975 é o dia da

Proclamação da Independência da República Democrática de Timor-Leste). 23

Acórdão do Tribunal de Recurso de 18-7-2003, processo nº 03/02, relator Cláudio Ximenes. No mesmo sentido a

generalidade dos acórdão proferidos pelo mesmo Tribunal durante o ano de 2003.

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Porém, este entendimento não era pacífico, nem mesmo no Tribunal de Recurso.24

Este foi o entendimento perfilhado pelo Parlamento Nacional no art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10

de Dezembro,25

o qual tem a seguinte redacção: “Entende-se por legislação vigente em Timor-

Leste em 19 de Maio de 2002, nos termos do disposto no artigo 1º da Lei nº 2/2002, de 7 de

Agosto, toda a legislação indonésia que era aplicada e vigorava “de facto” em Timor-Leste, antes

do dia 25 de Outubro de 1999, nos termos estatuídos no Regulamento nº 1/1999 da UNTAET”.

2.3. O Direito Internacional

Nos termos do art. 9º, nº 1, da Constituição, a ordem jurídica timorense adopta os princípios de

direito internacional geral ou comum.

Esta norma consagra a recepção automática do direito internacional público consuetudinário (o

costume internacional).26

Normas de direito internacional público geral são as normas

consuetudinárias (costume internacional) de âmbito geral, mesmo que se encontrem positivadas

27(escritas) em instrumentos internacionais (como sejam a Carta das Nações Unidas ou a

Declaração Universal dos Direitos do Homem).28

24

Conforme votos de vencido da juíza Jacinta da Costa, nos quais se defendia que a legislação referida no art. 165º

da Constituição, no art. 1º da Lei nº 2/2002, de 19 de Maio, e na Secção 3, nº 1, do Regulamento da UNTAET

1999/1, era a legislação indonésia. 25

Norma que, como o próprio refere na sua epígrafe, constitui interpretação autêntica das aludidas disposições

legais. 26

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 271. 27

A aprovação das convenções (tratados ou acordos) compete, conforme os casos, ao Parlamento Nacional ou ao

Governo, cabendo ao primeiro de forma exclusiva a aprovação dos tratados e dos acordos que versem matérias da

sua competência legislativa exclusiva (art. 91º, nº 3, al. f), e art. 115º, nº 1, al. f)), bem como a aprovação dos

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Já as restantes normas de direito internacional público (os tratados ou convenções e acordos

internacionais), só vigoram na ordem jurídica interna mediante aprovação, ratificação ou adesão

pelos respectivos órgãos competentes e depois de publicadas no jornal oficial (art. 9º, nº 2, da

Constituição).

2.4. O Costume

O costume consiste na prática social reiterada com convicção de obrigatoriedade.29

O direito consuetudinário será o direito que se revela no costume, enquanto obrigatório; o direito

escrito o que se expressa na lei.

Para Oliveira Ascensão,30

o costume constitui fonte privilegiada do direito, porquanto “exprime

directamente a ordem da sociedade, sem necessidade da mediação de nenhum oráculo”.

Nos termos do art. 2º, nº 4, da Constituição da RDTL, o Estado reconhece e valoriza as normas e

os usos costumeiros de Timor-Leste que não contrariem a Constituição e a legislação que trate

especialmente do direito costumeiro.

Porém, o art. 2º, nº 1, da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, estabelece que a lei é única fonte

imediata de direito em Timor-Leste.31

acordos sobre as matérias mais importantes politicamente (art. 91º, nº 1), tendo também o Presidente da República

competências nesta área (art. 87º, al. c)). Os tratados precisam ainda da ratificação do Presidente da República (art.

85º, al. a)). 28

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 254. 29

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 141. 30

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 264.

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Sendo o costume uma fonte imediata do direito, como se referiu, a questão que se coloca consiste

em saber como harmonizar o normativo constitucional com este último preceito.

A solução deve passar pelo preconizado no art. 2º do novo Código Civil, ou seja, os usos

costumeiros são juridicamente atendíveis apenas e na medida em que a lei o determine.

2.5. Jurisprudência e doutrina

Como já se referiu, a jurisprudência e a doutrina constituem fontes mediatas do direito.

Na medida em que constituem formas de interpretação do direito constituem fontes do mesmo

em dois sentidos: definem o sentido da lei (através da interpretação) e influenciam o legislador

mediante os estudos dos jurisconsultos.

A jurisprudência, a praxe jurídica constitui, em princípio, apenas uma fonte mediata do direito,

recebendo a sua autoridade das regras gerais e abstractas que lhe cumpre aplicar. A decisão

judicial é, porém, obrigatória na determinação do lícito e ilícito num caso concreto, é um modo

de revelação do direito quanto a esse caso concreto. Como se referiu supra, a ordenação geral

que as normas de direito estabelecem, visa a resolução dos casos individuais, para que se

conformem sempre com essas regras gerais, para que se verifique igualdade nos direitos e

deveres de todos.32

31

No mesmo sentido o art. 1º do projecto do novo Código Civil. 32

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 162. Veja-se igualmente o art. 516º do CPC.

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A jurisprudência pode, porém, fixar a interpretação das normas através dos recursos para fixação

de jurisprudência, o que aproxima bastante a jurisprudência das fontes imediatas do direito.33

Por outro lado, a doutrina procura a compreensão e sistematização das regras jurídicas, na sua

finalidade e relacionação, que por isso é também fonte mediata do direito.

3.1. Hierarquia das leis

A Constituição:

A Constituição é uma lei hierarquicamente superior (a lei fundamental, a lei básica), que se

encontra no vértice da ordem jurídica, à qual todas as leis e normas jurídicas em geral têm de

submeter-se.34

A organização jurídica da sociedade é, nos Estados modernos, fundamentalmente constante de

direito escrito. E este emana de diplomas legislativos da competência de órgãos do Estado. Esta

competência, por sua vez, é indicada numa lei fundamental: a Constituição.

A Constituição não se limita a definir os órgãos do poder político, pois que também indica os

princípios ou bases fundamentais do sistema jurídico no país.

Assim, a Constituição define a competência legislativa dos órgãos do Estado, e também a forma

de produção legislativa, pelo que as leis do Parlamento Nacional e os decretos do Governo não

podem contrariar os preceitos da Constituição, relativos a tal (sob pena de inconstitucionalidade

33

Vejam-se os arts. 322º, nº 3, do CPP, e 498º, nº 1, do CPC. 34

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 57.

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formal ou orgânica), nem podem contrariar as matérias reguladas na constituição (sob pena de

inconstitucionalidade material).35

A inconstitucionalidade formal vicia as leis, cujo processo de formação não obedece aos

requisitos impostos pela Constituição; a inconstitucionalidade orgânica vicia as leis que emanam

de órgão incompetente para legislar; e a inconstitucionalidade material respeita às contradições

entre o conteúdo da lei e as disposições constitucionais que regulam a mesma matéria.

O Direito Internacional:

Nos termos do art. 9º, nº 3, da Constituição da RDTL, são inválidas todas as normas das leis

contrárias às disposições das convenções, tratados e acordos internacionais recebidos na ordem

jurídica interna timorense.

Daqui resulta que as normas de direito convencional prevalecem sobre as leis ordinárias.

Relativamente ao direito internacional geral ou comum a supremacia das suas normas resulta já

da sua natureza (direito consuetudinário universal, ou princípios universais de direito), podendo

dizer-se que os mesmos prevalecem inclusivamente sobre a Constituição, o que só não ocorre na

prática porque a Constituição já reflecte estes princípios.36

Quanto ao direito internacional convencional, a disposição procura assegurar a vigência interna

dos acordos, convenções ou tratados recebidos na ordem interna, sob pena de o Estado se

encontrar vinculado internacionalmente mas podendo não aplicar as normas internamente, o que

35

Arts. 149 º a 153º da Constituição da RDTL. Veja-se o já mencionado acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-

2008, proferido no âmbito do processo nº 4/2008, relator Ivo Rosa, publicado no Jornal da República nº 44, Série I,

de 26-11-200. 36

A este propósito, referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., pág. 260), “de facto, não poderia reclamar

legitimidade em termos de Estado de direito democrático uma norma que admitisse, por exemplo, o «apartheid» ou a

depuração étnica, ou a tortura ou a gerra de agressão”.

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necessariamente implicaria sanções internacionais, por incumprimento do direito internacional

convencionado.

As “leis”:

Tomada a expressão lei no seu sentido material, e abrangendo, portanto, as disposições supra

referidas, há entre eles uma hierarquia. As leis em sentido formal são as que foram aprovadas

pelo Parlamento Nacional e promulgadas pelo Presidente da República.

A essas leis em sentido formal são equiparados os diplomas legislativos do Governo (Decretos-

Lei).

Mas os regulamentos já devem subordinar-se às Leis e Decretos-Lei, que não podem contrariar.

O vício da inconstitucionalidade das Leis e Decretos-Lei pode, no entanto, ter diversa natureza:

inconstitucionalidade formal, orgânica e material, como já se referiu.

Porém, existem leis que, pela sua natureza de leis quadro, devem ter preponderância sobre as

demais leis.37

Será, por exemplo, a lei do orçamento geral do Estado, que prevalecerá sobre

qualquer outra lei que a contrarie.38

37

“A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a

norma inferior” (Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 586, citando Kelsen). 38

O OGE só pode ser alterado por uma nova lei com a mesmo dignidade, uma lei de rectificação do OGE. “Deste

modo, quer se assente o traço característico das “leis com valor reforçado” na posição de proeminência de natureza

funcional traduzida numa específica força formal, ou se parta da ideia de que se está perante leis conformadoras da

produção de outras leis ou constitutivas dos seus limites, tais leis, para além de certas exigências procedimentais na

sua aprovação, dispõem de uma “superioridade relativa” em face de outros actos legislativos, derivada do seu

conteúdo que é condicionante material da normação a estabelecer pelos diplomas a publicar na sua directa

dependência” (acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-2008, já referido).

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3.2.1. Actos normativos

Uma regra ou norma jurídica é, em princípio, caracterizada por dois elementos que podem

formalmente encontrar-se ou distintos ou confundidos no mesmo texto: o preceito primário

(comando ou proibição) e o preceito secundário, que prescreve as consequências do

cumprimento ou não cumprimento daquele.

Para Luís da Costa Diogo e Rui Januário,39

a norma jurídica compõe-se de previsão (a situação

futura que se pode apresentar ao cidadão), estatuição (o dever ou obrigação de conduta do

cidadão perante tal situação) e sanção (as consequências da violação do ver de conduta imposto

pela norma).

A previsão, ou hipótese, consiste no facto, ou na factualidade (evento, conduta, relação ou

situação), que uma vez verificado desencadeia uma estatuição. A estatuição consiste no resultado

da implicação que o Direito impõe em face da verificação da previsão (a estatuição tem que ser

geral e abstracta. A sanção é a reacção Cominada ao incumprimento da estatuição.40

Por exemplo, em direito penal, as normas apresentam, em geral, sempre na mesma disposição, o

preceito primário (aquilo que a lei ordena ou proíbe) e a consequência ou sanção penal, que vem

como consequência da violação do preceito primário (“quem matar outra pessoa é punido pena

de prisão de 8 a 20 anos” – art. 138º do CP).

Mas há normas imperfeitas, normas que não têm sanção, como sucede com as obrigações

naturais (obrigações cujo cumprimento não pode ser coercivamente pedido). E também se dizem

imperfeitas as que estão desprovidas de todos os elementos que constituem a norma jurídica.

39

Ob. cit., pág. 177-178. 40

Manuel Neves Pereira, ob. cit., págs. 22-23.

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Assim, em direito penal existem as chamadas normas penais em branco, em que o conteúdo do

comando ou proibição não é directamente definido na norma penal, e antes se remete para uma

ordem emanada da autoridade, para uma indicação que consta ou virá a constar da resolução

duma instância oficial, etc. (por exemplo o art. 315º do CP).41

3.2.2. Classificações das regras jurídicas

a) Regras jurídicas preceptivas e proibitivas:

O Direito ordena e dirige a actividade do homem na sociedade. Ora, o homem pode agir na vida

social intervindo nesta quer de maneira positiva, praticando uma acção, quer de maneira

negativa, omitindo o que devia fazer. As regras que impõem um dever de acção são normas

preceptivas; as que impõem um dever de omissão, de não fazer, são regras proibitivas.

b) Regras autónomas e não autónomas:

Embora seja característica das regras jurídicas a sua imperatividade, embora elas se traduzam

normalmente em comandos e proibições, esta característica refere-se à ordem jurídica em geral.

A sistematização das regras de direito, a sua ordenação lógica em sistema, implica que muitas

disposições legais venham simplesmente completar, esclarecer, delimitar ou amplificar outras

disposições legais. Normas autónomas são então, as que, por si revestem as características de

comando ou proibição, a função valorativa e imperativa inerente às normas. Pelo contrário,

normas não autónomas são as que se reduzem a explicar, limitar, ampliar ou modificar outras

41

Sobre os caracteres da norma jurídica veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., págs. 178-181.

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normas que, desse modo completam. Normas não autónomas são, por exemplo, as que contêm

definições de conceitos utilizados por normas autónomas; as que explicam ou interpretam estas,

ou que estabelecem os critérios de interpretação; ou as que delimitam negativamente normas

autónomas; ou as que regulam a sua esfera de aplicação no tempo e no espaço.

c) Normas de direito público e de direito privado:

Quanto à matéria ou critério substancial, as regras jurídicas dizem-se de direito público ou de

direito privado.42

4. Sistemas jurídicos

4.1. Sistema jurídico civilista

A principal característica diferenciadora dos sistemas civilistas é a do primado da lei. De um

modo geral, nos países desta família, considera-se que a melhor maneira de chegar às soluções

de justiça, que o direito impõe, consiste, para os juristas, em procurar apoio nas disposições da

lei.43

O fundamento do sistema assenta no direito escrito, proveniente do poder legislativo ou da

administração, que os juristas interpretam e aplicam assim solucionando as situações concretas,

de forma hierarquizada.

42

Para outras classificações Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., págs. 181-189. 43

René David, in “Os Grandes Sistemas do Direito Contenporâneo”, Martins Fontes, São Paulo, 3ª Ed., 1998, pág.

93.

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22

Daí que todos os sistemas civilistas possuam constituições escritas.

Por outro lado, o sistema assenta ainda na codificação. Esta constitui formas estáveis de regular

matérias em função da sua específica natureza das mesmas.44

O papel do costume como fonte imediata do direito é assim subalternizado, em favor da lei.45

4.2. Sistema da “common law”

A base da common law, formou-se e é uma regra que tem como objectivo a solução

circunstanciada, a solução para determinado caso e/ou processo, e não uma regra que emoldure e

determine a conduta para o futuro.46

O sistema ainda assenta, essencialmente, no direito inglês.

Contrariamente ao que acontece no sistema civilista, o direito da common law a lei desempenha

aqui uma função secundária.

O sistema assenta na jurisprudência (é um direito jurisprudencial). “Tendo sido menor na

Inglaterra do que no continente a influência das universidades e da doutrina, e nunca tendo sido

efectuada pelo legislador através da técnica da codificação uma reforma geral, o direito inglês

44

Por exemplo, o CCI, em vigor em Timor-Leste, já tem mais de um século. 45

O que não significa que o costume esteja arredado como fonte de direito, conforme se referiu supra a propósito do

sistema nacional (veja-se Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 423, e Oliveira Ascensão, ob. cit., pág.

155). 46

Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 437.

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conservou, no que respeita às suas fontes tal com o à sua estrutura os seus traços originários. Ele

é, de forma típica, um direito jurisprudencial (case law)”.47

Assim, as decisões dos tribunais sobre determinada matéria nova devem ser seguidas a partir

dessa altura sempre que questões semelhantes sejam colocadas ao tribunal (trata-se da chamada

regra do precedente). Na sua pureza, o precedente só funciona perante as decisões de tribunais

superiores: os órgãos inferiores estão vinculados pelas decisões daqueles.48

As decisões dos Tribunais Superiores são obrigatórias.

Importa referir que o direito da common law não é baseado no costume. Trata-se, como se viu, de

um direito desenvolvido nos tribunais, mas que não assenta no costume, embora o costume e a

lei também sejam considerados fontes de direito, a par obviamente da jurisprudência, aqui com

papel predominante.49

4.3. Os sistemas mistos

Com excepção de alguns casos mais puros, como seja a Inglaterra para a common law, ou a

França, para o sistema civilista, a generalidade dos sistemas acaba por receber regras próprias de

ambos os sistemas.

47

René David, ob. cit., pág. 331. 48

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 157. 49

René David, ob. cit., pág. 351. No mesmo sentido Luís da Costa Diogo e Rui Januário, ob. cit., pág. 451-455.

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Assim, nos Estados Unidos da América, para além de uma cada vez maior profusão de leis, o

próprio sistema assenta numa Constituição escrita, que enforma todo o ordenamento jurídico (o

que não acontece em Inglaterra).

Por outro lado, nos sistemas civilistas, é cada vez maior o papel que se atribui à jurisprudência

enquanto forma “criadora” de normas jurídicas, como é o exemplo de Timor-Leste, onde, para

além do importante papel dos Tribunais (com especial relevância do Supremo Tribunal de

Justiça) na apreciação da constitucionalidade e mesmo legalidade das normas emanadas do poder

legislativo,50

também existe a possibilidade do Tribunal Superior estabelecer, com força

obrigatória, a interpretação das normas jurídicas.51

Os melhores exemplos de sistemas mistos encontram-se nos países nórdicos, especialmente na

Suécia e Finlândia, onde as próprias leis são precedidas de regras gerais que permitem aos juízes

encontrar soluções para as situações concretas que o legislador não previu especialmente nas

normas escritas, permitindo inclusivamente que o juiz deixe de aplicar leis que considere injustas

ou injustificadas para o caso concreto em análise.52

5. Vigência e eficácia da lei

5.1. Início da vigência da lei.

50

Arts. 149 º a 153º da Constituição da RDTL (veja-se o já mencionado acórdão do Tribunal de Recurso de 27-10-

2008). 51

Vejam-se os já referidos arts. 322º, nº 3, do CPP, e 498º, nº 1, do CPC (nestes casos, as decisões jurisprudenciais

têm verdadeira função normativa, isto é, valor e alcance semelhantes às leis, enquanto regras jurídicas, gerais e

abstractas, de aplicação geral e não apenas ao caso submetido a julgamento). 52

René David, ob. cit., pág. 105-106.

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Como a vida humana, a lei tem vida própria que é a sua vigência: ela nasce, existe, morre (ou

seja, o início da vigência, a continuidade de sua vigência e a cessação da vigência) 53

Após a promulgação da lei ela é considerada autenticada e perfeita, mas somente será

considerada uma ordem geral após a sua publicação, quando se presume conhecida de todos.

A sua vigência está sujeita a regras especiais. Poderá haver, ou não, coincidência entre a data da

publicação e o momento em que se inicia o seu vigor.

- a fixação do início da vigência de uma lei deve ser buscada nela própria: “esta lei entra em

vigor na data da sua publicação” - não ocorrendo qualquer tempo entre a data da publicação e a

sua vigência.

- às vezes fica estabelecido uma data especial para o momento inicial de sua eficácia, deve-se,

então aguardar a chegada do dies a quo para a sua vigência.

- na falta de disposição especial vigora o princípio que reconhece a necessidade de decurso de

um lapso de tempo entre a data da publicação e o termo inicial da obrigatoriedade.

Artigo 4º do Código Civil

(Começo da vigência da lei)

1. A lei só se torna obrigatória depois de publicada no jornal oficial.

2. Entre a publicação e a vigência da lei decorrerá o tempo que a própria lei fixar ou, na falta de

53

“O Direito não é uma ordem estática e acabada. É antes dinâmica, porque necessariamente se manifesta na acção”

(José de Oliveira Ascensão, in “o Direito”, 13ª ed. Refundida, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 14).

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fixação, o que for determinado em legislação especial.

No termos do artigo 16º, nº 1, da Lei nº 1/2002, de 7 de Agosto, que regula a publicação dos

actos normativos, os actos normativos entram em vigor no dia neles fixado, não podendo o

início da vigência verificar-se no próprio dia da publicação.

- o tempo intermédio entre a data da publicação e o início de vigência denomina-se vacatio legis.

- contagem da vacatio legis = dias corridos: exclui-se o do começo e inclui-se o do final,

computados domingos e feriados, de tal maneira que, no termo certo, inicia a sua

obrigatoriedade, sem interrupção ou suspensão.

O prazo geral de vacatio legis é de dez dias úteis, conforme estipulado no nº 2, do referido artigo

16º da referida Lei nº 1/2002.

5.1.2. Princípio da não retroactividade das leis.

ARTIGO 11º

(Aplicação das leis no tempo. Princípio geral)

1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que

ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.

2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos

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ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas,quando

dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que

lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange aspróprias relações já constituídas, que

subsistam à data da sua entrada em vigor.

A lei não deveria aplicar-se a factos passados antes da sua entrada em vigor, sob pena de

retroactividade, só se aplicando a factos futuros e seus efeitos.

À constituíção das situações jurídicas (requisitos de validade, substancial e formal, factos

constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituíção se verifica.

Ao conteúdo das situações jurídicas que subsistam à data da entrada em vigor da lei nova,

aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus

efeitos

ARTIGO 12º

(Aplicação das leis no tempo. Leis interpretativas)

1. A lei interpretativa integra-se na lei interpretada, ficando salvos, porém, os efeitos já

produzidos pelo cumprimento da obrigação, por sentença passada em julgado, por transacção,

ainda que não homologada, ou por actos de análoga natureza.

2. A desistência e a confissão não homologadas pelo tribunal podem ser revogadas pelo

desistente ou confitente a quem a lei interpretativa for favorável.

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5.1.3. Princípio da obrigatoriedade das leis.

A lei em vigor é ordem geral para todos. É obrigatória para todos, sem distinção de categoria

social, nível cultural, grau de instrução = esta força impositiva recebe o nome de princípio da

obrigatoriedade da lei.

A publicação da lei tem por finalidade torná-la conhecida de todos. Publicada a lei ela é

obrigatória “porque o ordenamento jurídico se desenvolve como se fosse o direito plenamente

conhecido”.

A lei é obrigatória, a lei tem de ser obedecida para que seja possível a convivência social.

Artigo 5º do Código Civil

(Ignorância ou má interpretação da lei)

A ignorância ou má interpretação da lei não justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as

pessoas das sanções nela estabelecidas.

5.1.4. Princípio da continuidade das lei.

A lei é uma ordem permanente mas não eterna. A lei em vigor permanece vigente até que uma

força contrária lhe retire a eficácia.

Uma lei não cessa a sua vigência pelo desuso. A não aplicação da lei, por maior que seja o tempo

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de desuso, jamais deverá ser considerado exclusão do ordenamento jurídico. Cessa a

obrigatoriedade da lei somente através da revogação.

A lei, enquanto não revogada, é eficaz e passível de aplicação. Esta permanência no

ordenamento jurídica é o princípio da continuidade, que a sustenta até o surgimento de outra lei.

5.2.1. Cessação da eficácia das lei: revogação, derrogação, ab-rogação.

ARTIGO 6º

(Cessação da vigência da lei)

1. Quando se não destine a ter vigência temporária, a lei só deixa de vigorar se for revogada por

outra lei.

2. A revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas

disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei

anterior.

3. A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.

4. A revogação da lei revogatória não importa o renascimento da lei que esta revogara.

Segundo o princípio da continuidade, a lei somente perde a eficácia em razão de uma força

contrária à sua vigência. Essa força é a revogação.

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A revogação é o acto pelo qual se retira a eficiência, a validade de acto anterior. “Acto que retira

a eficácia, a vigência de uma lei” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa).

A revogação pode ser total ou parcial, se atingir a totalidade ou apenas uma parte de seus

dispositivos.

- revogação total = ab-rogação: cessa a eficácia completa da lei anterior.

- revogação parcial = derrogação: atinge a eficácia de uma parte da lei, enquanto permanecem

íntegras as disposições não alcançadas.

A cessação da eficácia da lei é a revogação, sua causa normal e frequente, mas não é a única.

Uma lei poderá perder a sua eficácia independentemente da existência de lei posterior que a

venha substituir.

Algumas leis trazem no seu corpo o germe da sua extinção: são as leis temporárias. Essas leis

começam a vigorar com o estabelecimento de um prazo para a sua vigência, e força obrigatória a

termo certo, e assim, não precisam da votação de outra lei para que percam a sua força.

- ex.: leis do orçamento (fixam a despesa e orçam a receita nacional pelo período preestabelecido

(um ano), destinando-se a ter plena força dentro do prazo, para desaparecerem ao fim do tempo

durante o qual são naturalmente aplicáveis).

As leis temporárias não podem ultrapassar o seu termo final, salvo se houver prorrogação.

A prorrogação de uma lei temporária pode ser tácita ou expressa:

- prorrogação tácita = ex.: as leis ficam prorrogadas se o novo orçamento não for aprovado;

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- prorrogação expressa = quando outra lei é votada estendendo o prazo de duração, podendo até

ser por prazo indeterminado.

Uma circunstância especial de cessação da eficácia da lei é a resultante da declaração judicial de

sua inconstitucionalidade.

5.2.2. Revogação: expressa e tácita.

A revogação segundo a sua atuação pode ser expressa ou tácita.

Revogação expressa, ou directa, consiste na declaração inserta na lei, pela qual o legislador

revoga a lei anterior, para cessar sua eficácia total ou parcial.

Geralmente, a cessação da eficácia de uma lei dá-se no momento em que a lei revogadora entra

em vigor. Às vezes, a lei revogadora determina um prazo para a cessação da eficácia da lei ou

dos dispositivos revogados. Sendo atingido o termo, automaticamente se extingue a lei ou os

dispositivos.

Revogação tácita, ou indireta:

O legislador, com a finalidade de afastar as dúvidas que possam existir diante da revogação

tácita, fixou regras, sob forma normativa e obrigatória, que norteiam o intérprete quando estiver

diante de uma lei nova, que sem mencionar expressamente, revogou lei anterior, ou seja, quando

o intérprete deve averiguar se a lei nova teve o propósito de abolir disposição legal anterior ou se

existe a intenção de conservá-la coexistente.

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Regra básica para afastar as dúvidas é o princípio da incompatibilidade. Diante da

impossibilidade da existência simultânea de normas incompatíveis, toda a matéria da revogação

tácita sujeita-se ao princípio segundo o qual prevalece a mais recente (“lex posterior derogat

priori”).

A incompatibilidade pode ser total, quando a lei nova passa a regular inteiramente a matéria

tratada na lei anterior.

Poderá ser parcial a incompatibilidade, quando a lei nova disciplinar diferentemente, apenas

parte da matéria regulada na lei anterior, ocorrendo contradição parcial. As disposições não

podem coexistir, a incompatibilidade de alguns dispositivos impõe a revogação dos mais antigos.

Do mesmo modo a lei nova revoga a lei anterior se regular toda a matéria da lei anterior.

A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador

5.2.3. Lei repristinatória.

A lei revogadora de uma outra lei revogadora tem o efeito de restaurar automaticamente a

primeira lei revogada?

A lei revogadora de outra lei revogadora NÃO TEM o efeito repristinatório, de pleno direito,

sobre a velha lei abolida, senão quando por disposição explícita lhe é atribuído.

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5.3.1 Aplicação da Lei no Espaço

Em timor-Leste adota-se o sistema sincrónico/simultâneo, nos termos do qual a lei entra em

vigor na mesma data e em todo território nacional.

Princípios:

1) Territorialidade - em regra, a norma tem aplicação no território em razão da soberania

nacional;

2) Extraterritorialidade moderada – excepcionalmente a norma pode ser aplicada no estrangeiro,

tais como:

- embaixadas e consulados;

- as embarcações e aeronaves de natureza pública ou ao serviço do governo ou em serviço militar

ou oficial onde quer que se encontrem;

- as aeronaves e as embarcações mercantes ou de propriedade privada matriculados em Timor-

Leste, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ao alto-mar ou em alto-

mar.

ARTIGO 23º

(Actos realizados a bordo)

1. Aos actos realizados a bordo de navios ou aeronaves, fora dos portos ou aeródromos, é

aplicável a lei do lugar da respectiva matrícula, sempre que for competente a lei territorial.

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2. Os navios e aeronaves militares consideram-se como parte do território do Estado a que

pertencem.

Excepcionalmente a norma estrangeira pode ser aplicada em Timor-Leste, tais como:

- tratados internacionais;

- estatuto pessoal – lei do domicílio – a lei do país em que a pessoa for domiciliada é que

determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome a capacidade e os direitos

de família – artigo 24º do Código Civil.

6. Interpretação e integração da lei

6.1.1. A interpretação das leis

Interpretar as leis é determinar o seu sentido e alcance, definindo a matéria a que elas são

aplicáveis, e o critério de regulamentação que delas consta.

Orientações quanto ao modo de interpretar as leis:

- orientação subjectiva e

- orientação objectiva.

Na orientação subjectiva, interpretar a lei consistirá em procurar a vontade do legislador.

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Na orientação objectiva, a lei, embora formulada pelo legislador, dele se separa, alcançando

firme significado próprios, de modo que a interpretação procurará descobrir o pensamento

legislativo, a razão ou fim da própria lei.

O Código Civil (art. 8º) aceitou uma orientação objectiva.

1 - A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir de textos o

pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as

circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.

2 - Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na

letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

3 - Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as

soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados".

6.1.2. Formas de interpretação

a) quanto à qualidade do intérprete, isto é, quanto ao sujeito da interpretação;

b) quanto aos meios utilizáveis para proceder à interpretação;

c) quanto aos resultados obtidos pela interpretação;

d) quanto ao sujeito.

a) quanto à qualidade do intérprete, isto é, quanto ao sujeito da interpretação

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Interpretação autêntica – interpretação a que pode proceder o próprio órgão legislativo de que

emanou a lei. A interpretação duma lei, feita em outra lei, denomina- se interpretação legislativa.

E a lei que interpreta outra lei denomina-se lei interpretativa.

Interpretação jurisprudencial – interpretação das leis que é feita pelos tribunais, quando aplicam

as leis aos casos concretos.

Interpretação doutrinária – interpretação elaborada pelos juristas, quando estudam as leis no seu

conjunto.

b) quanto aos meios utilizáveis para proceder à interpretação;

Interpretação literal ou gramatical

Interpretação lógica ou teleológica: elemento racional; elemento sistemático; elemento histórico.

Elemento racional é a razão de ser da lei, do fim que se propõe.

Elemento sistemático, visa desvendar o alcance de um preceito legislativo no seu enquadramento

no sistema jurídico.

Elemento histórico, as circunstâncias que explicaram o aparecimento do preceito.

c) quanto aos resultados obtidos pela interpretação

Interpretação declarativa – quando do texto da lei resulta que gramaticalmente este exprimiu

devidamente o que efectivamente corresponde aos fins da lei.

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37

Interpretação restritiva – quando, por deficiência de expressão, os termos utilizados pela lei vão

além daquilo que a lei pretendia ordenar.

Interpretação extensiva – quando a letra da lei não diz tudo aquilo que, em função do fim que se

propunha, queria dizer.

As normas incriminadoras, que definem os crimes, não comportam o alargamento, não é lícito

interpretá-la de modo a que se obtenha uma extensão do seu conteúdo, para além do teor literal

da lei.

6.2.1. Integração das lacunas da lei

Art. 9º do Código Civil:

1º - os casos que a lei não preveja são regulados segundo a norma aplicável aos casos análogos.

2º - Resolução mediante formulação de norma que o legislador criaria em conformidade com o

sistema geral da ordem jurídica vigente.

6.2.2. Inexistência de lacunas nas normas penais e de direito excepcional

Não se admitem lacunas da lei na incriminação de factos criminosos. Só há os crimes que a lei

expressamente define.

Do mesmo modo, não contêm lacunas todas as normas que fazem excepção, a normas de

aplicação comum ou geral (art. 10º do Código Civil).

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Capítulo II – Noções Gerais de Direito

1. Relações jurídicas

Relação jurídica é a relação da vida social regulada pelo Direito, contrapondo direito subjectivo

de uma pessoa a dever jurídico ou sujeição de outra pessoa na relação.54

Assim, por exemplo, no

contrato de arrendamento o inquilino tem o direito de uso do imóvel arrendado e o senhorio o

dever de facultar tal uso.

54

Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 135.

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39

Podemos considerar a expressão relação jurídica com referência a um modelo contido na lei. Por

exemplo a relação pela qual o inquilino paga a renda ao senhorio. Trata-se aqui de uma relação

jurídica abstracta.

Ou podemos considerar a relação relativamente a uma realidade que concretamente envolve duas

pessoas. António pode exigir de José o pagamento da renda de US$ 100.00, na sequência de

contrato que celebrou com este. Trata-se aqui de uma relação jurídica concreta.55

O instituto jurídico é o conjunto de normas legais que estabelecem a disciplina de uma série de

relações jurídicas em sentido abstracto. Por exemplo, o instituto da compra e venda, o instituto

da adopção, o instituto da posse.

A relação jurídica é a matéria sobre que incide a regulamentação e o instituto o conjunto de

normas que a regulamenta.56

Estrutura da relação jurídica:

A relação jurídica é composta por quatro elementos que compõem a sua estrutura:

a) sujeitos;

b) objecto;

c) facto jurídico; e

d) garantia.

55

Veja-se Mota Pinto, ob. cit., pág. 167. 56

Mota Pinto, ob. cit., pág. 168.

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40

Direito subjectivo e direito potestativo:

O direito subjectivo é o poder, tutelado juridicamente, de uma pessoa exigir ou pretender de

outra um comportamento positivo (acção) ou negativo (omissão, não fazer, abstenção), ou de

produzir determinados efeitos jurídicos que inevitavelmente afectam outras pessoas (contra parte

ou adversário.57

Face a esta definição, não são direitos subjectivos os chamados poderes-deveres, ou poderes

funcionais ou de ofício, ou seja os poderes que são vinculados, que não podem ser ou não

livremente exercidos pelo titular. Como exemplo temos os poderes integrados no poder paternal

ou na tutela, que não podem ser exercidos como o titular pretenda, mas apenas nos termos

exigidos pela função do direito, sob pena de violação de uma obrigação com as inerentes

sanções.

Também não são direitos subjectivos os poderes jurídicos stricto sensu ou faculdades, como

sejam a faculdade de contratar ou de ocupar uma terra. Nestes casos não existe ainda nenhuma

relação jurídica.

Ou seja, o direito subjectivo pressupõe a existência de uma outra pessoa na relação a quem se

possa exigir determinado comportamento, ou a sujeição à manifestação de vontade do seu titular.

O direito subjectivo consiste no poder de exigir ou pretender de outra pessoa, no sentido de que

se o seu direito não for atendido, o titular pode solicitar a sua realização coactiva através dos

meios públicos.

57

Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 136, e Mota Pinto, ob. cit., pág. 169.

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41

Os direitos potestativos são poderes jurídicos de, por um acto livre de vontade, só por si ou de

acordo com uma decisão judicial, produzir efeitos jurídicos que se impõem à outra parte.58

Enquanto nos direitos subjectivos o titular tinha direito a uma prestação de outra pessoa, nos

direitos potestativos a outra pessoa apenas se sujeita, independentemente da sua vontade, à

produção de efeitos jurídicos na sua esfera jurídica, apenas como resultado da vontade do titular.

Os direitos potestativos podem ser constitutivos, modificativos ou extintivos.

Os direitos potestativos constitutivos produzem a constituição de uma nova relação jurídica,

sempre por acto unilateral do seu titular.59

Por exemplo, na constituição de uma servidão de

passagem a favor de prédio encravado (arts. 1433º do C. Civil e 674º do CCI), a qual é

constituída apenas por acção do dono do prédio beneficiário (ou dominante), independentemente

da vontade do dono do prédio serviente. Também a comunhão forçada dos muros de meação

(arts. 1290º do C. Civil e 630º(a) e 639º do CCI), nos quais se pode adquirir direito de

compropriedade, independentemente da vontade de quem erigiu o muro.

Os direitos potestativos modificativos produzem a modificação de uma relação jurídica já

existente, a qual continuará a existir mas modificada (sempre, mais uma vez, independentemente

da vontade da contraparte). Por exemplo, a mudança da servidão para outro sítio, por acção do

dono do prédio serviente, que se verificará independentemente da vontade do dono do prédio

dominante (arts. 1458º, nº 1, do C. Civil,60

e 692º do CCI).

58

Mota Pinto, ob. cit., pág. 174. 59

Como se viu característica própria do direito potestativo. 60

O oposto também pode ocorrer, procedendo à mudança o dono do prédio dominante, nos termos do art. 1458º, nº

2, do projecto.

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Os direitos potestativos extintivos são os que produzem a extinção de uma relação jurídica

existente (de novo, independentemente da vontade da contraparte). Por exemplo, o direito de

extinção da servidão por desnecessidade (arts. 1459º, nº 2 e 3, do C. Civil).61

Os direitos subjectivos podem ser relativos (quando se opõem no lado passivo a pessoas

concretas ou determinadas) ou podem ser absolutos (quando se impõem a todas as pessoas

genericamente – quando do lado passivo existe uma obrigação passiva universal).

A relação jurídica pode ser simples ou singular (quando existe um único direito do titular activo

a que corresponde um único dever do titular passivo) ou pode ser complexas (quando existem

vários direitos e deveres recíprocos que se entrecruzam).

1.1 Pessoa singular

Os sujeitos de direito são os entes que podem ser titulares de direitos e obrigações, ou seja, de

serem titulares de relações jurídicas.

Sujeitos de relações jurídicas tanto podem ser as pessoas singulares como as pessoas colectivas.

As pessoas singulares são os seres humanos (as pessoas físicas). As pessoas singulares têm

personalidade jurídica. A personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento completo

61

Não existe disposição semelhante no CCI, mas é também um direito potestativo extintivo o previsto no art. 689º

do CCI.

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e com vida62

(art. 63º, nº 1, do C. Civil) e só cessa com a morte (arts. 65º, nº 1, C. Civil). O CCI

não contém normas semelhantes mas o mesmo sentido pode ser extraído os arts. 1º a 3º. A

ninguém pode ser retirada a personalidade jurídica (art. 3º do CCI).

A personalidade jurídica consiste na possibilidade de se ser titular de relações jurídicas. Esta

aptidão é nas pessoas singulares uma exigência do direito ao respeito e da dignidade que se deve

reconhecer a todos os seres humanos.63

Veja-se o art. 6º da Declaração Universal dos Direitos do

Homem.64

A capacidade jurídica (também chamada de capacidade de exercício de direitos e capacidade de

agir)65

consiste na possibilidade de actuar juridicamente, quer exercendo direitos, quer

assumindo e cumprindo deveres, por acto próprio.

A pessoa dotada de capacidade jurídica actua no exercício dos direitos (ou cumprimento de

deveres) pessoalmente, não precisando de ter representante legal, e actua autonomamente, ou

seja, sem precisar de autorização de outra pessoa.

A capacidade jurídica para as pessoas singulares surge com a maioridade ou a antecipação. A

maioridade alcança-se aos vinte e um anos e a emancipação através do casamento se este ocorrer

62

Entende-se por nascimento a separação do filho do corpo materno, pelo que a aquisição da personalidade jurídica

se dá no momento dessa separação, com vida e de modo completo, sem qualquer outro requisito (Mota Pinto, ob.

cit., pág. 191). 63

Mota Pinto, ob. cit., pág. 191. 64

“Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento em todos os lugares da sua personalidade jurídica”. 65

Veja-se sobre a terminologia Mota Pinto, ob. cit., pág. 193.

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44

antes de o nubente atingir tal idade (arts. 330º do CCI).66

O C. Civil antecipa a maioridade para

os dezassete anos (art. 126º), ocorrendo a emancipação igualmente pelo casamento (art. 128º).67

1.2. Pessoa colectiva

As pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por

uma massa de bens, dirigida à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem

jurídica atribui personalidade jurídica.68

Pessoa colectiva é um organismo social destinado a um fim lícito a que o Direito atribui a

possibilidade de ser titular de direitos e de vinculações, ou seja, a possibilidade de ser sujeito de

relações jurídicas.69

Quanto à personalidade jurídica das pessoas colectivas, tudo se passa como se estivéssemos

perante pessoas singulares. “A personalidade colectiva consiste na aplicação do conceito

normativo de pessoa jurídica a agregados humanos ou de interesses humanos”.70

66

Nos termos do art. 29º do CCI, o homem só pode casar depois de completar dezoito anos e a mulher depois de

completar quinze anos. Esta disposição coloca o problema de constitucionalidade resultante do art. 17º da Lei

Fundamental. A solução será considerar que homens e mulheres podem agora casar, com o consentimento dos pais

obviamente (art. 35º do CCI), a partir dos quinze anos de idade. Por se tratar de um direito de personalidade, e um

direito fundamental (art. 39º, nº 2, da Constituição), a interpretação deve permitir o alargamento do direito em vez

da sua restrição. 67

Nos termos do art. 1490º, al. a), do C. Civil, podem casar (assim obtendo a emancipação) as pessoas que tenham

mais de dezasseis anos. O casamento de menores será sempre precedido de autorização dos respectivos pais (art.

1500º, nº 1, do C. Civil). 68

Mota Pinto, ob. cit., 267. 69

Carvalho Fernandes, in “Direito Civil (Teoria Geral)”, ed. policopiada da FDUL, vol. I, tomo II, 1980, págs. 10-

11. 70

Ibidem.

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45

Relativamente às sociedades comerciais a personalidade jurídica adquire-se com o registo do seu

acto constitutivo (art. 4º da Lei sobre Sociedades Comerciais, Lei nº 4/2004, de 21 de Abril).71

As associações civis gozam de personalidade jurídica após a sua constituição (art. 1653º do

CCI). Vejam-se os arts. 150º, nº 1, e 159º do C. Civil.72

As fundações carecem de reconhecimento da autoridade administrativa (art. 1653º do CCI e art.

150º, nº 2, do C. Civil).

Não se analisa aqui a questão da capacidade das pessoas colectivas no sentido de terem ou não,

ou seja, se elas próprias podem exercer os seus direitos e assumir obrigações, ou se o fazem

mediantes representantes73

.

O que interessa reter é que

A capacidade jurídica das pessoas colectivas é uma capacidade jurídica específica.74

Esta

capacidade está limitada pelos fins sociais, pelo seu objecto. Fora dos fins prosseguidos pela

sociedade a mesma já não dispõe de capacidade jurídica.

2.1. Objecto da relação jurídica

71

Contrariamente ao que sucedia no anterior regime (art. 1624º do C. Civil Indonésio). 72

Trata-de de um reconhecimento normative condicionado (art. 160º, nº 2, do C. Civil). 73

Para Mota Pinto as pessoas colectivas têm capacidade jurídica, uma vez que a relação das pessoas colectivas com

as pessoas colectivas que constituem os seus órgãos sociais é uma relação orgânica, pelo que há uma verdadeira

identificação entre ambos (ob. cit., págs. 313-314). Porém, o CPC, ao falar na capacidade judiciária das pessoas

colectivas fala em “representação” (art. 24º, nº 1). 74

Manuel Neves Pereira, ob. cit., págs. 186-190, e Mota Pinto, ob. cit., págs. 316-328.

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46

O objecto da relação jurídica é a realidade (a coisa, a prestação, etc.) sobre que incidem os

poderes e faculdades constituintes do direito subjectivo de cada relação jurídica.75

Nos termos do art. 271º do C. Civil, objecto da relação jurídica tem que ser física ou legalmente

possível, determinável, e não pode ser contrário à lei, à ordem pública, ou ofensivo dos bons

costumes.76

Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas.77

Consideram-se fora do comércio jurídico todas as coisas que não podem ser objecto de direitos

privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza,

insusceptíveis de apropriação individual (art. 193º, nº 2, do Código Civil). Vejam-se os arts. 519º

a 526º do CCI.

As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis,

consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes

ou futuras (art. 194º do Código Civil).78

São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores, os arbustos e os frutos

naturais, enquanto estiverem ligados ao solo, os direitos inerentes aos imóveis e as partes

integrantes dos prédios rústicos e urbanos (art. 195º, nº 1, do Código Civil).79

75

Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 192. 76

Vejam-se os arts. 1325º, nº 3 e 4, e 1335º do CCI. 77

Art. 193º, nº 1, do C. Civil. Para o CCI são coisas os bens ou direitos que podem ser objecto de propriedade (art.

499º). Vejam-se igualmente os arts. 527º e 528º do CCI. 78

Para o CCI as coisas são tangíveis ou não tangíveis (art. 503º) e móveis ou imóveis (art. 504º). Os bens móveis

podem ainda dividir-se em consumíveis e não consumíveis, definindo-se os consumíveis como aqueles que

desaparecem devido ao uso (art. 505º).

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47

Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que

não tenham autonomia económica.80

São partes componentes dos prédios rústicos as construções que não tenham autonomia

económica, tais como as adegas, os celeiros, as construções destinadas às alfaias agrícolas.

O prédio rústico abrange também o espaço aéreo e o subsolo correspondentes. Nos termos do art

1266º, nº 1, do Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à

superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do

domínio por lei ou negócio jurídico. Igual é a redacção do art. 571º do CCI e, de forma ainda

mais impressiva, o art. 4º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia.81

Entende-se por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe

sirvam de logradouro (art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil). Edifício incorporado é

79

Vejam-se os arts. 500º e 506º a 508º do CCI. Particularmente significativa é a descrição constante dos arts. 506º e

507º do CCI, da qual resulta evidente, por um lado, o princípio da ligação ao solo como distintivo da classificação

do bem como imóvel, por outro lado, o princípio da universalidade de certas coisas, como sejam as fábricas, que,

por serem imóveis (devido ao facto de estarem instaladas em construções permanentemente fixadas no solo)

transmitem tal qualidade de bem imóvel aos bens móveis que as equipam. 80

Art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil. O CCI não estabelece a distinção entre prédios rústicos e

prédios urbanos. 81

“Hak-hak atas tanah yang dimaksud dalam ayat (1) pasal ini member wewenang untuk mempergunakan tanah

yang bersangkutan, demikian pula tubuh bumi dan air serta ruang yang ada diatasnya, sekedar diperlukan untuk

kepentingan yang langsung berhubungan dengan penggunaan tanah itu dalam batas-batas menurut Undang-undang

ini dan peraturan-peraturan hukum lain yang lebih tinggi” (na versão em inglês, “The land rights referred to in

paragraph (1) of this article confers authority to use the land in question as well as the mass of the earth and the

water existing under its surface and the space above it to a point which is essentially required to allow for the

fulfillment of the interests that are directly related to the use of the land in question, such a point being within the

limits imposed by this Act and by other legislation of higher levels”).

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48

aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carácter de permanência por

alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio82

. Uma casa desmontável não é prédio urbano.

Integram o prédio urbano os pátios ou os quintais dos edifícios.83

É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de

permanência.84

São partes integrantes dos prédios rústicos os muros de vedação ou os engenhos

para tirar água. São partes integrantes dos prédios urbanos as instalações eléctricas ou os pára-

raios e os elevadores.

Para o Código Civil (art. 196º, nº 1) são móveis todas as restantes coisas, ou seja, a definição de

coisa móvel acha-se por exclusão de partes. Serão móveis as coisas que não sejam caracterizadas

pela lei como imóveis. Por exemplo, a energia eléctrica é coisa móvel e, como tal, a sua

subtracção fraudulenta integra o crime de furto.

Nos termos do CCI, são coisas móveis aquelas que são movíveis ou podem ser movidas (art.

509º CCI)85

. A base da distinção entre coisas móveis e imóveis é a circunstância de poderem ou

não ser transportadas de um para outro lugar sem se deteriorarem.

Importa aqui fazer uma breve referência às benfeitorias, incluídas no mesmo subtítulo II do

Código Civil, que trata “das coisas” e que aqui temos estado a analisar.

82

Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 23. 83

Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Português Anotado”, vol. III, Coimbra, 2006, pág. 131. 84

Art. 195º, nº 3, do Código Civil e 500º do CCI. 85

Nos arts. 509º a 518º do CCI encontramos depois a descrição de várias coisas concretas que o Código considera

como móveis. Esta descrição não deve, porém, ser considerada taxativa, podendo obviamente existir inúmeras

outras coisas móveis, para além das descritas nas referidas disposições legais.

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49

O CCI não contém uma definição legal de benfeitorias, nem as caracteriza, sendo certo, porém,

que se refere às mesmas em várias situações relativas aos direitos reais sobre imóveis. Assim, o

direito do possuidor, quer se encontre de boa-fé ou de má-fé, a indemnização por benfeitorias

necessárias realizadas no imóvel que possuía no caso de ter de o entregar ao seu proprietário

(arts. 575º e 579º do CCI)86

.

Para o Código Civil consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou

melhorar a coisa (art. 207º, nº 1). Assim, constituem benfeitorias não só as obras necessárias à

conservação da coisa, como pintar, substituir telhado danificado, substituir janelas quebradas,

mas também todas as obras que melhorem o prédio, como a construção de casas de banho em

casas onde não existiam, ou a construção de uma piscina.

As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 207º, nº 2, do Código Civil).

São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da

coisa (art. 207º, nº 3, do C. Civil). Assim, por exemplo: a substituição de um telhado que tenha

as telhas partidas (se o telhado não for substituído não só não se pode usar devidamente a casa,

como a entrada da água das chuvas vai estragar todo o imóvel); a substituição de janelas com a

madeira apodrecida ou vidros partidos, a reconstrução de uma parede que, pela acção do tempo

ameaça ruir.

São benfeitorias úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam,

todavia, o valor (art. 207º, nº 3, do Código Civil). Assim, por exemplo: a construção de casa de

banho numa casa que não tinha (trata-se de um melhoramento que beneficia o uso da casa e,

86

Na versão em inglês “expenditures necessary for the maintenance and benefit of the assets”. O CCI apenas exclui

o direito a indemnização por benfeitorias necessárias ao possuidor que tenha adquirido a posse por meios violentos

(art. 580º).

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50

consequentemente, aumenta o seu valor); a colocação de um sistema central de ar condicionado;

etc.. Já se podem colocar dúvidas relativamente à construção de uma piscina (porém, se da

mesma resultar um aumento considerável do valor do imóvel pode a mesma considerar-se

benfeitoria útil).

São benfeitorias voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe

aumentando o valor, servem apenas para o recreio do benfeitoriante (art. 207º, nº 3, do Código

Civil). Será o caso de alguém que gosta de ter peixes em casa e constrói um lago para ter peixes

no logradouro da casa, da colocação de estátuas dispendiosas num jardim, etc..

Como já se referiu o CCI não contém o mesmo tipo de definição expresso de benfeitorias.

Porém, pode surpreender-se claramente a distinção entre as reparações necessárias à manutenção

do imóvel87

(benfeitorias necessárias) (art. 578º), reparações no interesse do imóvel88

(art. 578º)

e reparações para utilidade e melhoramento da aparência do imóvel89

(art. 581º do CCI).90

Por outro lado o CCI estabelece ainda uma distinção entre reparações para o fim de manutenção

e as reparações maiores no art. 793º e estas últimas estão exemplificadas no art. 794º, ambos do

CCI.91

87

Na versão em inglês “expenses for the maintenance of the assets”. 88

Na versão em inglês “expenses for the interest of the assets”. 89

Na versão em inglês “expenses in respect of utility and improvement in appearance”. 90

Importa considerar, contudo, que as reparações para melhorar a utilidade do imóvel podem integrar o conceito de

benfeitorias úteis do projecto do novo Código Civil. 91

Na versão em inglês “Major repairs include the following: repairs to big walls and arched roofs; repairs to beams

and entire roofs; the total repair of dikes, wharf's, plastered waterworks, including supporting and boundary walls.

All other repairs shall be regarded as regular maintenance”.

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51

2.2. Acto jurídico e negócio jurídico

Facto jurídico ou facto gerador de relações é todo o facto (seja acto humano ou evento natural)

gerador de efeitos jurídicos (criação, modificação ou extinção de relações jurídicas).92

Os factos jurídicos podem ser voluntários ou involuntários, actos lícitos ou ilícitos, actos

jurídicos ou negócios jurídicos.

Os factos jurídicos involuntários são aqueles que são puramente naturais, sem qualquer

intervenção da vontade humana.93

Os factos jurídicos voluntários são os que resultam de uma acção humana voluntária, e tidos pela

ordem jurídica como manifestações relevantes de vontade.94

Os actos ilícitos são os que são contrários à ordem jurídica e por ela reprovados, pelo que

implicam a aplicação de uma sanção ao seu autor.95

Actos lícitos são todos aqueles que estão em conformidade com a ordem jurídica e,

consequentemente, são por ela consentidos.

Negócios jurídicos são factos jurídicos voluntários constituídos essencialmente por declarações

de vontade (uma ou mais) a que a ordem jurídica atribui efeitos jurídicos de acordo com tais

declarações de vontade das partes, tal como percebidas exteriormente.96

92

Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 203. No mesmo sentido Mota Pinto, ob. cit., pág. 353. 93

Constituem exemplo, o decurso do tempo, a destruição de uma coisa por acção da natureza, a acessão natural. 94

Mota Pinto, ob. cit., pág. 354. 95

É fácil encontrar exemplos de actos ilícitos. Desde logo os actos qualificados pela lei como crime. Os actos

negligentes que causem danos a terceiros, como acidentes de viação, ou actos voluntários que igualmente causem

lesões a outra pessoa, como seja uma difamação.

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52

Os actos jurídicos stricto sensu são actos jurídicos voluntários que não produzem

necessariamente efeitos jurídicos pretendidos, ou que produzem efeitos independentemente de

serem ou não pretendidos aquando da prática do acto.97

2.3. Conteúdo do negócio jurídico

Constituem elementos essenciais do negócio jurídico as realidades necessárias à própria

existência do negócio. Assim, são elementos do negócio jurídico a declaração, os sujeitos e o

conteúdo. Mas considera-se igualmente necessária a validade do negócio jurídico, pelo que

também são elementos todas as condições gerais de validade do mesmo.98

Os elementos naturais do negócio jurídico são os que derivam das normas legais supletivas. Toda

a regulamentação legal supletiva.

Elementos acidentais do negócio jurídico são as cláusulas acessórias do negócio, como, por

exemplo a estipulação dos juros.

Elementos essenciais:

Capacidade e legitimidade. No domínio dos negócios jurídicos fala-se de capacidade negocial de

gozo para referir a possibilidade de se ser titular de direitos e obrigações derivados de negócios

jurídicos. A capacidade negocial de exercício é a possibilidade de se celebrarem negócios

96

Mota Pinto, ob. cit., pág. 355. Veja-se o art. 1313º do CCI. 97

Constituem exemplos a interpelação do devedor para pagar, a fixação de domicílio voluntário, a ocupação de

animais bravios, ou de coisas móveis perdidas. 98

Mota Pinto, ob. cit., pág. 383-384.

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jurídicos, exercendo ou adquirindo direitos, cumprindo ou assumindo obrigações, por actividade

própria (ou através de representante voluntário).

A legitimidade relaciona o sujeito com o objecto do negócio.

O negócio jurídico é, por definição, um encontro de vontades.

A declaração de vontade não pode ser viciada, isto é, não pode sofrer deturpação ou

desvirtuamento, seja na sua formação, seja na sua manifestação.

O negócio jurídico inexistente é aquele a que falta um pressuposto material de constituição, ou

seja, falta o agente, ou falta o objeto, ou não foi emitida a declaração de vontade.99

O acto

inexistente não chega a formar-se, porque lhe falta requisito indispensável à sua existência

jurídica100

.

Assim, no caso de falta de declaração de vontade o negócio jurídico é inexistente. Também o

negócio que tem um objecto que não pode ser objecto de negócio.101

A declaração negocial pode ser expressa ou tácita (art. 208º do Código Civil).

A declaração negocial não tem que revestir nenhuma forma especial, excepto nos casos em tal

seja expressamente determinado por lei (art. 210º do Código Civil).102

99

Veja-se o art. 1335º do CCI. 100

Veja-se no Código Civil o contrato de casamento inexistente (arts. 1517º e 1518º), 101

Art. 1332º do CCI. 102

Contudo, a declaração negocial que não siga a forma legalmente exigida é nula (art. 211º do projecto). Sobre as

matérias da lebredade negocial e da liberdade de forma e consequências, o CCI não contém normas gerais como as

referidas no projecto.

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A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é

dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada. É

também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele

oportunamente recebida. A declaração recebida pelo destinatário em condições de, sem culpa

sua, não poder ser conhecida é ineficaz (art. 215º do Código Civil).103

2.4. Elementos acidentais do negócio jurídico

Sob o ângulo da eficácia dos negócios jurídicos, que se constituem em elementos acidentais, isto

é, que podem aparecer, acidentalmente na constituição do negócio, há que se mencionar:

A condição.

A condição constitui um evento futuro e incerto.

A condição deve dizer respeito a facto futuro. Facto passado não pode constituir-se em condição.

Se o facto ocorreu, o negócio deixou de ser condicional, tornando-se puro e simples. Se o facto

deixou de ocorrer definitivamente, a estipulação tornou-se ineficaz, pois não houve implemento

da condição. Imagine a hipótese de uma pessoa prometer quantia a outra pessoa se determinado

cavalo ganhar uma corrida. Se o cavalo ganhou, a obrigação a que se comprometeu é simples e

não condicional; se o cavalo não ganhou, a estipulação tornou-se ineficaz, por ter falhado o

implemento da condição.

103

Sobre a matéria da perfeição da declaração negocial vejam-se os arts. 215º a 226º do Código Civil.

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Por outro lado, a condição deve relacionar-se com facto incerto. Se o fato avençado for certo,

como, por exemplo, a morte de uma pessoa, não haverá condição, mas termo. A cláusula

condicional deve depender exclusivamente da vontade das partes. O evento falível é externo ao

negócio, mas a condição é elemento da vontade e somente opera porque os interessados no

negócio jurídico assim o desejaram.

Enquanto não realizada a condição, o acto não pode ser exigido. Assim, a promessa de pagar

quantia a alguém, se concluir curso superior, não pode ser exigida enquanto não ocorrer o

evento.

Nos termos do art. 261º do Código Civil, as partes podem subordinar a um acontecimento futuro

e incerto a produção dos efeitos do negócio jurídico ou a sua resolução: no primeiro caso, diz-se

suspensiva a condição; no segundo, resolutiva. Vejam-se os art. 1253º e 1265º do CCI.

Condição suspensiva: produção dos efeitos do negócio jurídico depende da verificação do facto

(art. 261º do Código Civil o e 1253º do CCI).

Condição resolutiva: a resolução do negócio jurídico depende da sua verificação (art. 261º do

Código Civil e1265º do CCI.

O termo pode definir-se como o evento futuro certo (arts. 269º do Código Civil e 1268º do CCI).

O termo é o limite, quer inicial, quer final, aposto ao prazo. É o tempo que decorre entre o acto

jurídico e o início do exercício ou o fim do direito que dele resulta.

2.5.1. Ineficácia, inexistência, nulidade e anulabilidade do negócio jurídico)

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A ineficácia do negócio jurídico pode se absoluta ou relativa.

Há ineficácia absoluta do negócio jurídico quando a mesma actua automaticamente, podendo ser

invocada por qualquer interessado, Por exemplo, há ineficácia absoluta quando no negócio sob

condição suspensiva a condição não se chega a verificar.

Na eficácia relativa, a mesma só opera em relação a certas pessoas (inoponibilidade), só por elas

podendo ser invocada (o negócio produz efeitos em relação aos contraentes, mas não pode ser

oponível a certas pessoas interessadas no mesmo). Por exemplo, os actos sujeitos a registo são

plenamente válidos entre as partes, mas não são oponíveis a terceiros.

Os negócios relativamente ineficazes produzem efeitos relativamente às partes, mas não são

dotados de eficácia relativamente a certas pessoas neles interessadas.

Inexistente são os negócios que nenhum efeito produzem, não têm qualquer relevância jurídica.

No projecto podemos encontrar a inexistência jurídica nos arts. 1517º e 1518º do Código Civil

relativamente ao contrato de casamento. Não se encontra esta sanção no CCI.

2.5.2. Nulidade e anulabilidade do negócio jurídico:

Quando faltam, nos termos que a lei define, os requisitos ou elementos essenciais dos negócios

jurídicos (gerais ou especiais de cada negócio), o negócio é nulo ou anulável.

O acto diz-se nulo quando não produz quaisquer efeitos jurídicos. Não tem valor, é como que

não tivesse existido para a ordem jurídica.

Por isso que se não processou em conformidade com a lei, a lei não lhe concede qualquer

relevância; não pode produzir os efeitos a que se destinava.

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A nulidade afecta o negócio desde sempre; não são os efeitos que são destruídos por uma

intervenção ou sanção posterior à lei; é o próprio negócio que desde o princípio é inidóneo para

produzir efeitos.

A lei, porém, pode estabelecer gradações no modo de anulação do negócio. Ao lado da nulidade

a que nos referimos admite a anulabilidade.

O negócio jurídico diz-se anulável quando a sua anulação depende da vontade de um ou mais

interessados.

O acto nulo é nulo independentemente do desejo da sua anulação pelas partes interessadas.

O negócio anulável só não produz efeitos jurídicos, se a causa da nulidade for arguida por quem

a possa invocar.

Donde resulta que o negócio nulo nasce morto; o negócio anulável permanecerá válido e eficaz

se não for pedida judicialmente a sua anulação.

Não obstante o acto anulável ser válido até que sobrevenha a sua anulação, o efeito desta, isto é,

a destruição dos efeitos do negócio opera retroactivamente: destrói desde o início o próprio

negócio jurídico.

Consoante, pois, a sanção atinge o acto por força de lei independentemente da arguição de

qualquer interesse particular em a invocar, assim se verificará a nulidade ou anulabilidade dos

negócios jurídicos.

Consequência do regime próprio da anulabilidade é a possibilidade da sanção ou confirmação do

negócio. A pessoa que possa invocar a nulidade, isto é, de cuja vontade dependa a anulabilidade

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do acto, pode saná-lo ou confirmá-lo, revalidando-o, desde que tenha cessado o vício que dava

origem à anulabilidade e o autor tenha conhecimento quer do vício, quer do direito à anulação.

No Código Civil o regime da nulidade e da anulabilidade encontram-se previstos nos arts. 276º a

285º.

No CCI o regime encontra-se previsto nos arts. 1320º a 1337º e 1446º a 1456º.

Relativamente aos negócios usurários (particularmente importantes pela sua frequência em

Timor-Leste) vejam-se as notas ao 1456º CCI (em particular a Lei nº S.38-524, de 1938, que

entrou em vigor a 9 de Setembro de 1938).

2.6. O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas

Os institutos da caducidade e da prescrição são consagrados por razões atinentes aos valores da

certeza e de segurança.

Ainda que a lei não tenha formulado um critério geral para distinguir tais figuras, as mesmas não

se confundem, assumindo um regime jurídico diferenciado.

2.6.1. Caducidade

Caducidade é a extinção não retroactiva de efeitos jurídicos em virtude da verificação de um

facto jurídico stricto sensu, isto é, independentemente de qualquer manifestação de vontade.

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Como forma extintiva dos direitos, a caducidade opera quando o direito não é exercido dentro de

um dado prazo fixado por lei ou convenção.104

O fundamento específico da caducidade é o da necessidade de certeza jurídica. Certos direitos

devem ser exercidos durante certo prazo, para que, no fim desse tempo fique inalteravelmente

definida a situação jurídica das partes.105

No que respeita ao seu objecto imediato e ao decurso do respectivo prazo, enquanto a prescrição

se reporta, pelo menos directa e imediatamente, ao pedido, a caducidade refere-se à acção.

A caducidade assenta em puras razões objectivas, em termos de segurança jurídica e estabilidade

das relações, e não como forma de sancionar a inércia do titular do direito.

A caducidade é por vezes estabelecida no interesse público, de modo a não poderem as partes

dispor do direito a que ele se refere, podendo ser estabelecida no interesse privado, em matéria

sujeita à disponibilidade das partes.

Caducidade é um instituto próprio dos direitos potestativos.

O prazo de propositura de acções é um prazo de caducidade e não de prescrição.106

A caducidade não tem regulamentação própria no actual CCI, encontrando-se o instituto previsto

e regulado nos arts. 287º a 290º e 319º a 324º do Código Civil.

104

Ana Prata, ob. cit., pág 179. 105

Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Coimbra Editora, 1997, pág. 464. 106

Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit, vol. I, pág. 252.

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A caducidade é de conhecimento oficioso se estabelecida em matéria indiponível (art. 324º do

Código Civil).

Se se tratar de caducidade estabelecida em relação a matéria na disponibilidade das partes, a

mesma tem que ser invocada pela parte que dela pretenda beneficiar.

Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo

prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à

prescrição (art. 289º, nº 2, do Código Civil).

Afigura-se que, não existindo norma semelhante no CCI, nem se regulando de forma autónoma a

caducidade, entendendo-se que a mesma é estabelecida por razões de segurança jurídica o ordem

pública, será sempre de conhecimento oficioso (veja-se, a título de exemplo, o disposto no art.

565º do CCI.

Prazos de caducidade:

Art. 218º do CCI: acção de divórcio por abandono (segunda vez), caduca em seis meses contados

da data do abandono do lar pelo outro cônjuge.

Art. 219º do CCI: acção de divórcio na sequência de decisão criminal, caduca em seis meses a

contar da decisão do processo criminal.

Art. 558º do CCI: acção de manutenção de posse caduca em um ano (tem que ver com o art. 545º

- perda da posse a favor de quem detenha há mais de um ano).

Art. 565º do CCI: acção de restituição de posse caduca em um ano (tem que ver com o art. 545º -

perda da posse a favor de quem detenha há mais de um ano).

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Art. 1115º do CCI: caduca em três anos o prazo para anulação de divisão de coisa comum

Art. 1124º do CCI: acção de impugnação de testamento violador de legítima, caduca em três

anos a contar da morte do testador.

Art. 1380º do CCI: acção de indemnização por facto ilícito de difamação caduca no prazo de um

ano a contar da data da prática do facto ou do seu conhecimento pelo titular do direito.

Art. 1454º do CCI: acção de anulação de contratos caduca em cinco anos, excepto se outro prazo

for estipulado para situações em concreto.

Art. 1489º do CCI: caduca em um ano o prazo para anulação do contrato de compra e venda,

redução do preço ou indemnização por anulação.

Art. 1512º do CCI: a acção por defeito de coisa vendida deve ser intentada logo que possível, de

acordo com a natureza do bem em questão e os costumes do local da venda.

Art. 1602º-S do CCI: acção relativa a direitos resultantes de contratos de trabalho referidos no

artigo caduca em cinco anos, a contar do último dia do ano.

Art. 1603º-T do CCI: acção relativa a despedimento caduca em um ano.

Art. 1692º do CCI: acção de restituição de bens doados em consequência da anulação da doação

caduca em um ano.

A caducidade opera com o simples instaurar da acção (art. 322º, nº 1, do Código Civil).

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O prazo de caducidade atinente ao processo, não se suspende nem se interrompe senão nos casos

em que a lei que regula cada situação concreta o admite (art. 319º do Código Civil).

O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o

direito puder legalmente ser exercido (art. 322º, nº 1, do Código Civil).

No caso de um facto continuado, o prazo só se inicia a partir do momento em que cessa esse

facto.

O facto persiste no tempo, traduzindo-se em sucessiva renovação da conduta violadora do

contrato, pelo que o prazo do exercício do direito vai renascendo.

A lei não fixa prazos ordinários e gerais de caducidade, estabelecendo prazos de caducidade para

concretas e especiais situações ou relações jurídicas por ela reguladas.

Assim, existem inúmeras situações em que a lei não prevê qualquer prazo de caducidade do

exercício do direito, pelo que este apenas prevalecerá nos termos gerais.

São válidos os negócios pelos quais se criem casos especiais de caducidade, se modifique o

regime legal desta ou se renuncie a ela, contanto que não se trate de matéria subtraída à

disponibilidade das partes ou de fraude às regras legais da prescrição (art. 321º, nº 1, do Código

Civil).

Quando se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível,

impede a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser

exercido (art. 322º, nº 2, do Código Civil).

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Os direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície e servidão não

prescrevem, mas podem extinguir-se pelo não uso nos casos especialmente previstos na lei,

sendo aplicáveis nesses casos, na falta de disposição em contrário, as regras da caducidade (art.

289º, nº 3, do Código Civil).

Assim:

Art. 669º do CCI: caduca no prazo ordinário de trinta anos o direito de servidão de passagem por

não uso.

Art. 708º do CCI: caduca no prazo ordinário de trinta anos o direito de servidão por

impossibilidade de uso do terreno dominante.

Art. 709º do CCI: caducam no prazo ordinário de trinta anos os demais direitos de servidão por

não uso.

2.6.2. Prescrição

O instituto da prescrição está directamente relacionado com o decurso do tempo ou por outras

palavras com o efeito do tempo nas relações jurídicas. Assim é que podemos desde logo

encontrar dois tipos de prescrição a aquisitiva, e a extintiva, ambas directamente relacionadas ao

tempo.

A prescrição aquisitiva acontece quando alguém incorpora no seu património determinado

direito do qual desfruta há um longo tempo, trata-se da usucapião.

A prescrição extintiva acontece sempre que o titular do direito não o reclama durante certo prazo

de tempo; perdendo a possibilidade exigir tal direito.

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O elemento presente na existência destas duas figuras jurídicas é o tempo, seja para conceder um

direito, seja para extingui-lo.

2.6.3. Prescrição extintiva

A prescrição consiste no não exercício do direito durante o lapso de tempo estabelecido na lei

que consente ao devedor invocar a excepção, dando-se o direito por extinto.

A prescrição não é verdadeiramente uma causa de extinção das obrigações mas apenas um meio,

para além das causas de extinção propriamente ditas, de se livrar de obrigações.107

No que respeita ao seu objecto imediato e ao decurso do respectivo prazo a prescrição reporta-se,

pelo menos directa e imediatamente, ao pedido.

Ou seja, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da

prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (art. 295º do

Código Civil).

Certo é que, o que prescreve é possibilidade de se propor uma acção que garanta o direito de que

se é titular; não o próprio direito; este pode subsistir não será é reclamável.

Existem dois requisitos elementares na ocorrência da prescrição: a inércia do titular do direito e o

decurso do tempo.

107 Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, pág. 133.

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Quando alguém é titular de um direito e não o reclama, deixa de propor a acção, revelando assim

seu desinteresse, não merece a protecção do direito, pois se ele próprio titular do direito deixou

de reclamá-lo.

Vários são os fundamentos para a prescrição, presunção de cumprimento (prescrições

presuntivas); sanção àquele que fica na inércia, sendo comum a todas as ordens jurídicas que

como a nossa contemplam tal instituto o que consiste, porém, na protecção do interesse social em

estabelecer harmonia e justiça, segurança, dando fim a litígios e evitando que estes fiquem por

tempo indefinido a disposição de alguém, se lhe fosse permitido muitos anos depois vir reclamar

um direito seu que se perdeu no tempo, com a consequente dificuldade de reconstituição das

provas que até poderão terão deixado de existir.

O tribunal não conhece oficiosamente a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser

invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou,

tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público (art. 294º do Código Civil e art. 1950º do CCI).

A prescrição aproveita a todos os que dela possam tirar benefício, sem excepção dos incapazes

(art. 1986º do CCI e art. 291º do Código Civil).

A prescrição é invocável pelos credores e por terceiros com legítimo interesse na sua declaração,

ainda que o devedor a ela tenha renunciado (art. 1952º do CCI e art. 296º do Código Civil).

2.6.4. Prazos de prescrição

Prazo ordinário de prescrição: trinta anos (art. 1967º do CCI). Tal prazo é de vinte anos no

Código Civil (art. 300º).

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Prescrevem no prazo de cinco anos:

a) As anuidades de rendas perpétuas ou vitalícias;

b) As rendas e alugueres devidos pelo locatário, ainda que pagos por uma só vez;

c) Os foros;

d) Os juros convencionais ou legais, ainda que ilíquidos, e os dividendos das sociedades;

e) As quotas de amortização do capital pagáveis com os juros;

f) As pensões alimentícias vencidas;

g) Quaisquer outras prestações periodicamente renováveis (art. 301º do Código Civil).

Prescrevem no prazo de cinco anos as rendas perpétuas e anuidades, as rendas por arrendamento

de imóveis, os juros por empréstimos, e as prestações pagas anualmente ou por prazos mais

curtos acordados entre as partes (art. 1975º do CCI).

Não se trata, neste caso, de prescrições presuntivas, mas de prescrições de curto prazo,

destinadas essencialmente a evitar que o credor retarde demasiado a exigência de créditos

periodicamente renováveis, tornando excessivamente pesada a prestação a cargo do devedor108

.

2.6.5. Prazos especiais de prescrição:

108

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I cit., pág. 280.

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Art. 547º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito de posse sobre bens intangíveis, após a

posse pacífica exercida por outra pessoa.

Art. 570º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito a rendas perpétuas de um décimo por

venda de imóveis.

Art. 570º do CCI: prescrevem no prazo de cinco anos os demais direitos a rendas perpétuas por

venda de imóveis.

Art. 599º do CCI: prescreve no prazo de três anos o direito de reivindicação de coisa no caso de

acessão mobiliária de terras.

Art. 610º do CCI: prescrição aquisitiva como forma de aquisição do direito de propriedade.

Art. 695º do CCI: prescrição aquisitiva de servidão (prazo ordinário de trinta anos).

Art. 718º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de superfície, se o terreno

continuar a ser utilizado pelo proprietário do terreno.

Art. 719º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de superfície, por não uso

do beneficiário.

Art. 736º do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de emparcelamento.

Art. 750º do CCI: prescreve no prazo de um ano o direito às rendas perpétuas em dívida.

Art. 754º, nº 4, do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de rendas perpétuas,

a contar da data em que as mesmas dixaram de ser pagas.

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Art. 807º, nº 5, do CCI: prescreve no prazo ordinário de trinta anos o direito de usufruto.

Art. 835º do CCI: prescreve no prazo de trinta anos o direito de reinvindição da herança, a contar

da data da disposição da mesma.

Art. 1110º do CCI: prescreve no prazo de três anos o direito de separação dos bens recebidos em

herança para satisfação de dívidas do autor da herança.

O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido (art. 297º do Código

Civil).

Tratando-se de renda perpétua ou vitalícia ou de outras prestações periódicas análogas, a

prescrição do direito unitário do credor corre desde a exigibilidade da primeira prestação que não

for paga (art. 298º do Código Civil).

2.6.6. Suspensão da prescrição

Podem ocorrer alguns casos em que a lei determine que o prazo prescricional não se inicie, ou, se

já iniciado, seja suspenso; em resultado de circunstâncias especiais ou em protecção de

determinadas pessoas ou interesses juridicamente relevantes.

A prescrição não começa nem corre:

a) Entre os cônjuges, ainda que separados judicialmente de pessoas e bens (art. 1987º do CCI e

art. 309º, al. a), do Código Civil);

b) Entre quem exerça o poder paternal e as pessoas a ele sujeitas, entre o tutor e o tutelado ou

entre o curador e o curatelado (art. 309º, al. b), do Código Civil);

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c) Entre as pessoas cujos bens estejam sujeitos, por lei ou por determinação judicial ou de

terceiro, à administração de outrem e aquelas que exercem a administração, até serem aprovadas

as contas finais (art. 309º, al. c), do Código Civil);

d) Entre as pessoas colectivas e os respectivos administradores, relativamente à responsabilidade

destes pelo exercício dos seus cargos, enquanto neles se mantiverem (art. 309º, al. d), do Código

Civil);

e) Entre quem presta o trabalho doméstico e o respectivo patrão, enquanto o contrato durar (art.

309º, al. e), do Código Civil);

f) Enquanto o devedor for usufrutuário do crédito ou tiver direito de penhor sobre ele (art. 309º,

al. f), do Código Civil).

A precrição não corre em relação a um herdeiro que aceitou a herança a benefício de inventário

(arts. 1991º e 1992º do CCI).

A prescrição não começa nem corre contra militares em serviço, durante o tempo de guerra ou

mobilização, dentro ou fora do País, ou contra as pessoas que estejam, por motivo de serviço,

adstritas às forças militares (art. 310º do Código Civil).

A prescrição não começa nem corre contra menores enquanto não tiverem quem os represente ou

administre seus bens (art. 311º, nº 1, do Código Civil).

O CCI vai mais longe ao estipular que a prescrição não corre contra menores, ou qualquer pessoa

sob poder parental ou tutela, a menos que de outra forma seja estipulado por lei (art. 1987º).

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70

A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer valer o seu

direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo (art. 312º, nº 1, do

Código Civil).

2.6.7. Interrupção da prescrição

A interrupção envolve a iniciativa, um comportamento activo do credor, a demonstrar que o

mesmo não está inerte.

A diferença entre suspensão e interrupção da prescrição consiste no facto de a suspensão ocorrer

por força de lei, independentemente da vontade do credor, enquanto na interrupção impõe-se

uma conduta deste destinada a tal fim.109

A prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima,

directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o acto

pertence e ainda que o tribunal seja incompetente (arts. 1979º e 1980º do CCI e art. 314º, nº 1, do

Código Civil).

Se a citação ou notificação se não fizer dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por

causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os

cinco dias (art. 314º, nº 2, do Código Civil).

A anulação da citação ou notificação não impede o efeito interruptivo previsto nos números

anteriores (art. 314º, nº 3, do Código Civil). Contrariamente o art. 1981º do CCI, retira os efeitos

interruptivos à interpelação ou citação declarada inválida ou anulada.

109

Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Coimbra Editora, 1997, pág. 455.

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As causas interruptivas da prescrição são de dois tipos: a) consistem num acto do titular do

direito; b) consistem num acto da pessoa a favor de quem está a correr o prazo.

O que interrompe a prescrição não é a propositura da acção mas a citação do réu.

A prescrição é ainda interrompida pelo reconhecimento do direito, efectuado perante o

respectivo titular por aquele contra quem o direito pode ser exercido. O reconhecimento tácito só

é relevante quando resulte de factos que inequivocamente o exprimam (art. 316º do Código

Civil).

O reconhecimento é um simples acto jurídico, consistente numa mera declaração de ciência

(conhecimento do direito do titular) e não é de exigir que o seu autor a faça com a intenção de

interromper a prescrição pois, se reconhece o direito da parte contrária, é legítimo entender que

deseja cumprir a obrigação.110

Não é relevante o reconhecimento tácito que não se baseie em facto que inequivocamente o

exprima.111

Na verdade, para haver reconhecimento com eficácia de interrupção da prescrição, é necessário

que haja, ao menos, através de factos, afirmações pessoais, comportamentos ou atitudes, o

propósito de reconhecer o direito da parte contrária.

A prescrição interrompe-se pela confissão do devedor (arts. 1982º a 1983º do CCI).

110

Vaz Serra, in B.M.J. nº 106, Lisboa, pág. 917. 111

Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 292.

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O reconhecimento do direito, para efeito de interrupção da prescrição, traduz-se na confissão ou

declaração da sua existência, desde que praticado pelo devedor perante o titular do crédito.

A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a

correr novo prazo a partir do acto interruptivo (art. 317º, nº 1, do Código Civil).

Se a interrupção resultar de citação, notificação ou acto equiparado, ou de compromisso arbitral,

o novo prazo de prescrição não começa a correr enquanto não passar em julgado a decisão que

puser termo ao processo (art. 318º, nº 1, do Código Civil).

Quando, porém, se verifique a desistência ou a absolvição da instância, ou esta seja considerada

deserta, ou fique sem efeito o compromisso arbitral, o novo prazo prescricional começa a correr

logo após o acto interruptivo (art. 318º, nº 2, do Código Civil).

Se, por motivo processual não imputável ao titular do direito, o réu for absolvido da instância ou

ficar sem efeito o compromisso arbitral, e o prazo da prescrição tiver entretanto terminado ou

terminar nos dois meses imediatos ao trânsito em julgado da decisão ou da verificação do facto

que torna ineficaz o compromisso, não se considera completada a prescrição antes de findarem

estes dois meses (art. 318º, nº 3, do Código Civil).

O meio normal de expressão directa da intenção de exercício do direito é a propositura de acção

em que se pede a condenação do devedor no pagamento da prestação ou no reconhecimento do

direito ou a formulação do pedido por via reconvencional, e, como meios indirectos, têm sido

indicados os de pedido de intervenção do devedor na causa, de chamamento de garantes, de

reclamação de créditos em execução ou falência, de exercício da compensação no processo, de

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dedução de acusação em processo criminal ou de intervenção nesse processo como assistente,

pois esses actos são praticados também com a intenção de exercer o respectivo direito.112

São requisitos cumulativos deste meio de interrupção da prescrição a prática de “acto”, num

processo de qualquer natureza; ser esse acto adequado a exprimir a intenção de exercício do

direito pelo seu titular, e a comunicação ao devedor do mesmo acto por citação ou notificação

judicial.

Importa ainda considerar o disposto no art. 241º, nº 2, do CPC, nos termos do qual, sem prejuízo

do disposto na lei civil relativamente à prescrição e à caducidade dos direitos, os efeitos civis

derivados da proposição da primeira causa e da citação do réu mantêm-se, quando seja possível,

se a nova acção for intentada ou o réu for citado para ela dentro de trinta dias, a contar do

trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância.

Tal preceito inculca a ideia que se o autor vier com novo processo dentro de trinta dias a contar

do trânsito em julgado da sentença de absolvição da instância a interrupção derivada da citação

para a primeira causa mantém-se e a prescrição não se terá consumado mesmo que o novo

processo já venha fora do prazo prescricional , mas para que tal aconteça torna-se necessário que

a nova acção seja intentada ou o réu seja citado para ela no prazo de trinta dias após o transito da

sentença.113

Portanto dois requisitos para que o credor possa aproveitar a acção e citação anteriores: 1º Que

tenha havido citação do réu na acção anterior; 2º Que a nova acção seja proposta no prazo de

112

Vaz Serra, in “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, Coimbra, ano 103º, pág. 415, e ano 112.º, pág. 290. 113

Manuel de Andrade, ob. cit., vol II, pág. 460.

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trinta dias e o réu seja citado em tal prazo contado a partir do transito da sentença que não

decidiu de mérito.

São nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a

facilitar ou dificultar por outro modo as condições em que a prescrição opera os seus efeitos (art.

291º do Código Civil).

A renúncia da prescrição só é admitida depois de haver decorrido o prazo prescricional (art.

1947º do CCI e art. 293º, nº 1, do Código Civil).

A renúncia pode ser tácita e não necessita ser aceita pelo beneficiário (art. 1948º do CCI e art.

293º, nº 2, do Código Civil).

Só tem legitimidade para renunciar à prescrição quem puder dispor do benefício que a prescrição

tenha criado (art. 1949º do CCI e art. 293º, nº 3, do Código Civil). Não é admissível a renúncia

antecipada à prescrição.

2.6.8. As prescrições presuntivas

Prescrevem no prazo de seis meses os créditos de estabelecimentos de alojamento, comidas ou

bebidas, pelo alojamento, comidas ou bebidas que forneçam (art. 307º do Código Civil).

Prescrevem no prazo de dois anos: a) Os créditos dos estabelecimentos que forneçam

alojamento, ou alojamento e alimentação, a estudantes, bem como os créditos dos

estabelecimentos de ensino, educação, assistência ou tratamento, relativamente aos serviços

prestados; b) Os créditos dos comerciantes pelos objectos vendidos a quem não seja comerciante

ou os não destine ao seu comércio, e bem assim os créditos daqueles que exerçam

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profissionalmente uma indústria, pelo fornecimento de mercadorias ou produtos, execução de

trabalhos ou gestão de negócios alheios, incluindo as despesas que hajam efectuado, a menos que

a prestação se destine ao exercício industrial do devedor; c) Os créditos pelos serviços prestados

no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes (art. 308º do

Código Civil).

Prescrevem no prazo de um ano: a) os créditos dos professores ou estabelecimentos de ensino,

por curso com duração até um mês; b) os créditos dos estabelecimentos que forneçam alojamento

ou alimentação; c) os créditos de trabalhadores por salários trimestrais (art. 1968º do CCI).

Prescrevem no prazo de dois anos: a) os créditos de médicos por serviços de saúde prestados; b)

os créditos por honorários a quem preste serviços jurídicos, não sendo advogado; c) os créditos

de tutores; d) os créditos de trabalhadores por salários não trimestrais (art. 1969º do CCI).

Prescrevem no prazo de dois anos: a) os créditos de honorários a advogados, pelos serviços

prestados; b) os créditos dos notários (art. 1970º do CCI).

Prescrevem no prazo de cinco anos: a) os créditos de industriais por serviços ou venda de bens

da sua indústria; b) os créditos dos comerciantes por bens vendidos a pessoas que não sejam

comerciantes (art. 1971º do CCI).

As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento (art. 303º do Código Civil).

Assim, nos termos do art. 304º, nº 1, do Código Civil, a presunção de cumprimento pelo decurso

do prazo só pode ser ilidida por confissão do devedor (conforme os arts. 1972º e 1973º do CCI).

Por outro lado, considera-se confessada a dívida se o devedor praticar em juízo actos

incompatíveis com a presunção de cumprimento (art. 305º do Código Civil).

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As prescrições presuntivas fundam-se na presunção de cumprimento, por se presumir que as

dívidas a que respeitam costumam ser pagas em prazo bastante curto, a débitos marcados pela

oralidade ou próprios do dia-a-dia, e de não se exigir, por via de regra, quitação, ou, quando

menos, não se conservar por muito tempo essa quitação. Decorrido o prazo legal, presume-se que

o pagamento foi efectuado. Daí o seu regime específico: findo o prazo prescricional o direito não

se extingue, como é próprio das verdadeiras prescrições, constituindo-se unicamente em

benefício do devedor uma presunção juris tantum de ter efectuado a prestação a seu cargo. Esta

presunção é, contudo, muito forte, pois que o credor, contra o que resultaria das regras gerais das

presunções juris tantum, não pode ilidir a presunção, provando que afinal o devedor não pagou.

Tal presunção só pode ser ilidida por confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida

tiver sido transmitida. Confissão esta que pode ser judicial ou extrajudicial. É admitida também a

confissão tácita.

Daí que se entenda que o réu, para poder beneficiar da aludida prescrição, tenha,

necessariamente, que invocar o pagamento. Assim, não pode o réu invocar factos incompatíveis

com tal presunção, nomeadamente que a dívida não existe ou existe mas por outro valor.

Neste tipo de prescrições, ao contrário do que acontece nas prescrições extintivas, o decurso do

prazo legal não extingue a obrigação, apenas fazendo presumir o pagamento, desta forma

libertando o devedor do ónus da prova que pagou. Isto é, o verdadeiro escopo das prescrições

presuntivas é libertar o devedor da prova do cumprimento. Mas não o liberta do ónus de alegar

que pagou.

São incompatíveis com a presunção de incumprimento, por exemplo, a negação originária da

existência do débito, a discussão do seu montante, ou a remissão da sua fixação para o tribunal, a

invocação de uma causa de nulidade ou anulabilidade do contrato donde emerja a dívida, a

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contestação da solidariedade da dívida, a reinvindicação do benefício da divisão, a alegação de

pagamento de importância inferior à reclamada, pretextando que ele corresponde à liquidação

integral do débito (o que vale como um reconhecimento de não ter pago a diferença); a

invocação da gratuitidade dos serviços, etc..

2.6.9. Aplicação das regras sobre caducidade e prescrição no tempo

A lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é

também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da

entrada em vigor da nova lei, a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo

se completar (art. 288º, nº 1, do Código Civil).

A lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso,

mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial (art. 288º, nº 2, do

Código Civil).

A prescrição é sempre um instituto de direito substantivo, não podendo ter aplicação uma norma

que fixa prazo de prescrição mais reduzido aos casos que antecedem a sua entrada em vigor (art.

11º do Código Civil). Não pode a parte ser surpreendida por uma norma nova que venha reduzir

o prazo de prescrição por forma a não mais poder exercer o seu direito.

Se a lei considerar de caducidade um prazo que a lei anterior tratava como prescricional, ou se,

ao contrário, considerar como prazo de prescrição o que a lei antiga tratava como caso de

caducidade, a nova qualificação é também aplicável aos prazos em curso (art. 290º, nº 1, do

Código Civil).

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No primeiro caso, porém, se a prescrição estiver suspensa ou tiver sido interrompida no domínio

da lei antiga, nem a suspensão nem a interrupção serão atingidas pela aplicação da nova lei; no

segundo, o prazo passa a ser susceptível de suspensão e interrupção nos termos gerais da

prescrição (art. 290º, nº 2, do Código Civil).

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CAPÍTULO III – Noções Gerais de Obrigações

1.1. Conceito de obrigação

Obrigação é a relação jurídica estabelecida entre devedor e credor e cujo objecto consiste em

prestação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa.

O direito das obrigações regula directamente relações sociais, na perspectiva das relações

estabelecidas directamente ente indivíduos.114

A forma de cooperação a que diz respeito o direito das obrigações pressupõe uma relação entre

sujeitos autónomos, independentes; e tem por objecto já não directamente uma coisa, mas uma

“prestação”, isto é, um comportamento de um dos sujeitos (o devedor) no interesse ou para

satisfação de um interesse do outro sujeito (o credor).

Por exemplo, num contrato de compra e venda a coisa que é objecto do contrato não constitui o

objecto imediato da relação jurídica, mas apenas o seu sujeito mediato, objecto da prestação do

devedor. Esta prestação é que se constitui como objecto imediato da relação.

1.2. Elementos essenciais das obrigações

A relação de obrigação é, na sua essência, o vínculo que liga o sujeito passivo ao sujeito activo, e

que tem por objecto a prestação, que consistirá em dever fazer alguma coisa, numa prestação de

facto, ou na prestação de uma coisa, prestação que o credor tem o direito de exigir.

114

Diferentemente, nos direitos reais a relação estabelece-se com a comunidade em geral, só surgindo relações

pessoais directas entre as pessoas no caso de ser contestado o direito real do titular do bem.

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2. Fontes das obrigações

As obrigações provém dos contratos, das declarações unilaterais de vontade e dos actos ilícitos.

Contrato é a convenção estabelecida entre duas ou mais pessoas, em virtude do qual uma delas

obriga a outra a dar, fazer, ou abster-se de algo. São também denominados convenção, ajuste,

pacto, etc.. Em princípio, os particulares têm a faculdade de contratar da maneira que bem

entendem, o limite dessa liberdade é a ordem pública, a moral e o direito.

Declarações unilaterais de vontade são obrigações emanadas de manifestações de vontade de

uma parte e não discriminam desde logo a pessoa do credor, que só surgirá após a constituição da

obrigação.

Actos ilícitos são actos geradores de responsabilidade civil.

3. Modalidades das obrigações

a) Obrigações de sujeito determinado e de sujeito indeterminado

O sujeito activo das obrigações (o credor) pode ficar determinado no momento em que a

obrigação é constituída, ou pode ficar indeterminado, não se sabendo desde logo quem será.

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Porém, no momento do cumprimento, o credor tem que ser determinado. E por isso esta

modalidade de obrigações implica que o credor seja determinável, sob pena de ser nulo o

negócio jurídico de que a obrigação resultaria (art. 445º do Código Civil).115

b) Obrigações conjuntas e obrigações solidárias

Do mesmo facto jurídico podem originar-se obrigações plurais, isto é, em que há vários credores

ou vários devedores.

Se a cada devedor compete apenas uma fracção do débito comum e a cada credor uma fracção do

crédito comum, as obrigações dizem-se conjuntas. Cada devedor só é obrigado à sua quota da

prestação e é essa que constitui a sua prestação. A elas se contrapõem as obrigações solidárias

(art. 512º do Código Civil e art. 1278º do CCI).

As obrigações plurais são, em regra, conjuntas, só sendo solidárias quando tal resulte da lei ou da

vontade das partes (art. 447º do Código Civil e art. 1278º do CCI).

A obrigação diz-se solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e

esta a todos libera (solidariedade passiva, isto é, entre devedores) ou quando cada um dos

credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para

com todos eles (solidariedade activa, isto é, entre os credores) (art. 446º, nº 1, do Código Civil e

arts. 1278º e 1280º do CCI).

Há pluralidade de vínculos, mas unidade de prestação, quanto a todos os devedores ou credores.

115

Não existe disposição semelhante no CCI. Porém, devem considerar-se este contratos como admissíveis à luz dos

arts. 1317º e 1338º.

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c) Obrigações divisíveis e indivisíveis

Quando a prestação numa obrigação, quer por natureza, quer por lei, quer por convenção, não

possa dividir-se, ou seja, não possa ser cumprida só em parte, a obrigação diz-se indivisível, caso

contrário será divisível (arts. 468º e 469º do Código Civil e 1296º e 1297º do CCI).

Quando a prestação seja indivisível e sejam vários os devedores, não obstante se tratar de

obrigação conjunta, o credor só pode exigir de todos os obrigados o cumprimento da prestação

(art. 449º, nº 1, do Código Civil e art. 1301º do CCI).

d) Obrigações genéricas

São obrigações genéricas aquelas cujo objecto for determinado apenas quanto ao género (art.

473º do Código Civil). Disposição semelhante encontramos no 1333º do CCI.116

Se o objecto da prestação é indicado pelo seu género, número ou quantidade, sem

individualização concreta do mesmo objecto, a obrigação é genérica. Por exemplo, a venda de

uma certa quantidade de arroz, ou de ferro para construção. A escolha pertence ao devedor, salvo

estipulação em contrário.

e) Obrigações alternativas

São alternativas as obrigações em que a prestação não é única na sua definição, mas é única para

os efeitos do cumprimento (art. 447º, nº 1, do Código Civil e art. 1272º do CCI). Ou seja, o

devedor compromete-se a cumprir uma ou outra prestação, nunca todas as prestações estipuladas

116

O art. 1334º do CCI admite ainda a existência de obrigações futuras.

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em alternativa. Salvo acordo em contrário a escolha fica pertence ao devedor (art. 447º, nº 2, do

Código Civil e art. 1273º do CCI).

d) Obrigações pecuniárias

São obrigações pecuniárias aquelas em que a prestação consiste em dinheiro (por isso as

obrigações pecuniárias são uma espécie de obrigações genéricas) (art. 484º do Código Civil).117

A obrigação pecuniária tem por objecto da prestação, dinheiro, ou seja moeda, e moeda será

aquela que tem curso legal no país em que for efectuado o pagamento.

Obrigações pecuniárias são também as obrigações de juros (art. 493º do Código Civil e art. 1250º

do CCI).

4.1. Extinção das obrigações

Nos termos do art. 1381º do CCI, são causas de extinção das obrigações:

a) o pagamento (arts. 1382º e seguintes);

b) a oferta de pagamento imediato, seguida de consignação em depósito (arts. 1404º e seguintes);

c) a novação (arts. 1413º e seguintes);

d) a compensação (arts. 1425º e seguintes);

117

O CCI não prevê genéricamente este tipo de obrigações, mas inclui as mesmas no capítulo das compensações por

custos e perdas e juros devidos a incumprimento de uma obrigação (arts. 1243º e seguintes).

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e) a confusão (arts. 1436º e seguintes);

f) a remissão (arts. 1438º e seguintes);

g) a destruição dos bens (arts. 1444º e seguintes);

h) a declaração de nulidade ou anulação do contrato (arts. 1446º e seguintes);

i) a verificação de condição resolutiva (art. 1265º); e

j) a prescrição (arts. 1265º, 1268º e seguintes, 1338º, 1646º, 1963º, 1967º).

4.1.1. Pagamento

O devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (art. 696º, nº 1,

do Código Civil).118

O devedor deve cumprir a prestação a que está obrigado nos precisos termos em que a obrigação

foi constituída, e o credor e devedor devem proceder com honestidade e lealdade recíprocas, ou

seja, com boa fé (art. 696º, nº2, do Código Civil).119

A prestação deve ser realizada integralmente e não por partes120

e deve ser feita no lugar e tempo

devidos.

118

Conforme salient Manuel Neves Pereira, ob. cit., pág. 187, o pagamento é sinónimo de cumprimento da

obrigação, embora não seja a expressão mais correcta, uma vez que a obrigação nem sempre é pecuniária. 119

Art. 1338º, parte final, do CCI (os contratos devem ser executados de boa fé). 120

Art. 697º, nº 1, do Código Civil e art. 1390º do CCI.

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O lugar é em geral o do domicílio do devedor, na falta de estipulação em contrário;121

mas nas

obrigações pecuniárias o lugar é, salvo estipulação em contrário, o do domicílio do credor, como

no caso de a obrigação ter por objecto coisa móvel será o lugar onde se encontrava a coisa à data

da conclusão do negócio.122

Sobre o lugar do pagamento os arts. 1393º e 1394º do CCI.

Há outras regras especiais para determinação do lugar em que é devido o cumprimento.123

Mas,

embora a lei, em função da natureza das obrigações, possa determinar directamente qual seja

esse lugar, geralmente as partes podem convencionar livremente o lugar do cumprimento e a lei

estabelece apenas em termos supletivos para a sua determinação na falta de estipulação das

partes.

Ou seja, a obrigação deve ser cumprida em função do acordo das partes: deve ser cumprida no

prazo ou data convencionados.

Quando as obrigações são para cumprir em certo prazo têm uma data de vencimento. O prazo é

em princípio estabelecido a favor do devedor, quando se não mostre que o tenha sido a favor do

credor (art. 713º do Código Civil). Desde que estabelecido a favor do devedor, pode este pagar a

antes do prazo sem que o credor se possa opor.

Quando não haja prazo para cumprimento, o credor tem o direito de exigi-lo a todo o tempo (art.

711º, nº 1, do Código Civil), como o devedor pagará a todo o tempo; para exigir o pagamento, o

credor deverá apenas “interpretá-lo”, isto é, exigir-lhe o pagamento (art. 1243º do CCI).

121

Art. 706º, nº 1, do Código Civil. 122

Art. 708º do Código Civil. 123

Arts. 706º a 710º do Código Civil.

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86

A prestação pode ser efectuada tanto directamente por quem a ela é obrigado, isto é, pelo

devedor, como por qualquer terceiro, se se não trata de obrigações de natureza pessoal (art. 701º,

n.º 1, do Código Civil e art. 1382º do CCI). A obrigação fica extinta entre o credor e o devedor; o

que pode surgir é a sub-rogação do que pagou na posição de credor, se era interessado no

pagamento.124

Nos demais casos só tomará o terceiro a posição do credor, se tal for convencionado (por cessão

ou sub- rogação convencionais de crédito); de todo o modo a obrigação do devedor extinguiu-se

relativamente ao primitivo credor.125

O cumprimento da obrigação é o modo natural e normal da extinção das obrigações. As

obrigações são relações jurídicas normalmente transitórias, destinadas a extinguir-se,

característica que as opõe às relações de direitos reais.

4.1.2. Dação em pagamento:

A dação em pagamento consiste na possibilidade de o devedor prestar coisa diversa daquela que

for devida, se o credor der para tanto o seu assentimento (art. 771º do Código Civil e art. 1389º

do CCI). Como o princípio da liberdade das partes domina a maior parte das obrigações, o

acordo de credor e devedor permitirá que se extinga a obrigação, mediante forma de

cumprimento diversa da anteriormente estabelecida.126

4.1.3. Consignação em depósito:

124

Assim acontece relativamente ao fiador ou ao avalista, por exemplo. 125

Art. 1382º do CCI, última parte. 126

Por exemplo, numa obrigação pecuniária o devedor procede ao pagamento através da entrega de bens, que se

considerará terem valor igual ao da dívida.

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Quando o devedor não puder efectuar a prestação, por qualquer motivo relativo à pessoa do

credor ou por mora do credor, tem o devedor o direito de depositar judicialmente a coisa devida

para ficar à disposição do credor extinguindo-se a sua obrigação, com esse depósito (art. 775º do

Código Civil e art. 1404º do CCI).

O pagamento por consignação ou consignação em pagamento é o meio pelo qual o devedor

extinguirá a sua obrigação perante o credor, no caso de este recusar-se a receber o pagamento.127

4.1.4. Novação:

Dá-se a novação quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição

da antiga (arts. 791º e 792º do Código Civil e arts. 1413º e seguintes do CCI). O crédito antigo

extinguiu-se para dar lugar a novo crédito, embora este tenha a mesma prestação que o anterior.

Surge como um novo crédito por acordo das partes, com novo prazo, porventura com novo

credor ou novo devedor. A novação tem de ser expressamente manifestada.128

É usual a novação

em obrigações comerciais.129

A novação é forma indireta de solvência de uma obrigação e produz o mesmo efeito do

pagamento, embora para o sujeito passivo deste vínculo não tenha ocorrido a redução real de seu

passivo. Novação é, em verdade, a criação de um novo vínculo obrigacional entre os sujeitos,

com a finalidade de extinguir um anterior. Pode-se, neste intento, mudar o objeto da prestação

127

Pablo Stolze Gagliano, Novo Curso de Direito Civil: Obrigações, 6ª.ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2006, pág. 151. 128

Veja-se o art. 1415º do CCI. 129

Habitualmente, quando duas pessoas mantêm relações comerciais é costume poder-se alterar a dívida,

renegociando-se a mesma, em função da própria evolução das relações comerciais entre ambos.

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(novação objetiva), ou, ainda, substituir o credor ou o devedor por terceiro estranho a relação

(novação subjetiva).130

4.1.5. Compensação:

Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da

sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor (art. 781º do Código

Civil e art. 1425º do CCI). É indispensável, porém, que as obrigações recíprocas sejam ambas

exigíveis judicialmente, isto é, sejam válidas e vencidas, e ainda que se trate de obrigações que

tenham por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.131

Par que se extingam total

ou parcialmente as obrigações basta que o devedor declare à outra parte querer a compensação.

A compensação terá sobretudo lugar em obrigações pecuniárias.132

4.1.6. Confusão:

Ocorre a confusão quando se reúnem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor da

mesma obrigação. Nessa altura extinguem-se o crédito e a dívida133

(art. 802º do Código Civil e

o art. 1436º do CCI).134

4.1.7. Remissão:

Entende-se por remissão a possibilidade de o credor abdicar do seu crédito a favor do devedor. O

credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor. A remissão resulta de um contrato

130

Sílvio Rodrigues, in “Direito Civil: Parte Geral das Obrigações”, 28ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 2000, pág. 199. 131

Arts. 781º, nº 1, al. b), do Código Civil e 1427º do CCI. 132

Art. 782º, nº 1, do Código Civil. Já para o CCI (art. 1426º) a compensação é automática, não carecendo da

declaração nesse sentido de qualquer das partes. 133

O credor não pode ser credor de si próprio. 134

Pablo Stolze Gagliano, ob. cit., pág. 261.

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oneroso ou gratuito entre as partes. É ainda o corolário do domínio da vontade das partes sobre a

obrigação (art. 797º do Código Civil e art. 1438º do CCI).

As restantes formas de extinção das obrigações já foram anteriormente analisadas.

4.2. Objecto e prova do pagamento

O pagamento é um meio de extinguir a obrigação que há entre credor e devedor, pressupondo a

existência de um vínculo obrigacional devendo ser cumprida a sua prestação.

Como já se referiu, o pagamento significa o desempenho voluntário por parte do devedor.135

Porém, o adimplemento ou cumprimento é a realização, pelo devedor, da prestação

concretamente devida, satisfatoriamente, ambas as partes tendo observado os deveres derivados

da boa fé que se fizeram instrumentalmente necessários para o atendimento do escopo da

relação, em acordo ao seu fim e as suas circunstâncias.136

A sub-rogação é um instituto autónomo. Pode não extinguir a obrigação. Se quem cumpre a

obrigação é um terceiro, como vimos, a obrigação subsiste na pessoa do terceiro. Em vez de se

extinguir o crédito, este transfere-se para o terceiro por vontade das partes ou por força da lei. A

135

Sílvio Rodrigues, ob. cit., pág. 199. 136

Judith Martins Costa, in “Comentários ao novo Código Civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do

adimplemento e da extinção das obrigações”, 2ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2005, pág. 113.

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própria relação jurídica sobrevive com a mudança do sujeito ativo. Tratando-se de uma forma de

facilitar o adimplemento, é incentivada pela lei.137

No pagamento com sub-rogação, um terceiro, e não o primitivo devedor, efetua o pagamento.

Esse terceiro substitui o credor originário da obrigação, de forma que passa a dispor de todos os

direitos, ações e garantias que tinha o primeiro.

O credor não é obrigado a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda que mais valiosa

(art. 1389º do CCI).

O pagamento deve compreender, como objeto, aquilo que foi acordado. Nem mais, nem menos.

Recebendo o credor o objeto da prestação, seu pagamento, estará a obrigação extinta. Já vimos

que o credor não pode ser obrigado a receber outra coisa, ainda que mais valiosa.138

E ainda que a prestação seja divisível, não pode ser o credor obrigado a receber por partes, se

assim não foi convencionado. Só existira solução da divida com a entrega do objeto da prestação.

Se a prestação é complexa, constante de vários itens, não se cumprirá a obrigação enquanto não

atendidos todos (art. 1390º do CCI).

A prova de pagamento é a demonstração material, palpável de um fato, ato ou negocio jurídico.

É a manifestação externa de um acontecimento. A prova do pagamento é a quitação, consistindo

em um escrito no qual o credor, reconhecendo ter recebido o que lhe era devido, libera o

devedor, do que foi pago.139

O objeto do pagamento deverá ser aquele que foi proposto no

137

Sílvio de Salvo Venosa, Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, 6ª ed., Ed. Atlas,

São Paulo, 2006, págs. 248-249. 138

Sílvio de Salvo Venosa, ob. cit., pág. 188. 139

A entrega voluntária, feita pelo credor ao devedor, do título original do crédito faz presumir a liberação do

devedor (art. 720º, nº 3, do Código Civil).

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contrato, nem mais, nem menos, mas poderá o credor aceitá-lo se for de seu agrado. Em regra se

paga com a prestação, mas é possível que o credor aceite receber outra coisa no lugar (dação em

pagamento), tratando-se de uma substituição de uma coisa para outra.

5.1. Inadimplemento absoluto e mora

Verifica-se o não cumprimento (incumprimento) da obrigação quando esta deixou de ser

cumprida fielmente, isto é, nos termos em que o devia ser, ou quando é realizada em termos que

não correspondam à adequada satisfação do interesse do credor.

O não cumprimento pode ter carácter definitivo ou consistir no retardamento da prestação. Na

primeira hipótese trata-se do caso de não cumprimento em sentido estrito, e no segundo caso do

não cumprimento que recebe a denominação de “mora” no cumprimento da obrigação. O

devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação,

ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (art. 738º, nº 2, do Código Civil).140

E pode ainda verificar-se, por motivo diverso da mora no cumprimento, um cumprimento

imperfeito ou defeituoso.

Em todos estes casos, à falta de cumprimento, o cumprimento imperfeito, a mora no

cumprimento da obrigação, podem ser ou não ser imputáveis ao devedor. É imputável o não

cumprimento da obrigação quando o devedor falta culposamente a esse cumprimento. A

inexecução da obrigação é um facto ilícito, que quando deriva da culpa do devedor acarreta a sua

140

Para ocorrer uma situação de mora, é necessário que ainda seja possível realizar a prestação em data futura. Por

esse motivo, em certo tipo de obrigações não se admite a ocorrência de mora, levando a violação do vínculo

obrigacional directamente ao incumprimento definitivo.

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responsabilidade pelos prejuízos que causa. Trata-se da forma da responsabilidade civil

denominada responsabilidade obrigacional (art. 732º do Código Civil e art. 1243º do CCI).

A falta de cumprimento não acarreta responsabilidade, quer nos casos em que se verificam

causas legítimas de não cumprimento, isto é, em que é lícito não cumprir, quer nos casos em que

não deva legalmente atribuir-se ao devedor culpa pelo não cumprimento.141

Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for

realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os

efeitos não cumprida a obrigação (art. 742º, nº 1, do Código Civil).142

Excepção de não cumprimento e direito de retenção:

A excepção do não cumprimento do contrato e direito de retenção consistem na possibilidade de

uma das partes, nos contratos de que resultam obrigações negociais para ambas as partes, não

cumprir a sua obrigação correlativa enquanto a outra parte não cumprir a sua.143

Também o devedor não é responsável pelo não cumprimento quando goza do direito de retenção,

que consiste precisamente em recusar a entrega de uma coisa, que em princípio devia entregar, e

que a lei autoriza que fique na sua posse, a garantir o cumprimento dessa obrigação do credor

para com o devedor a quem é concedida essa garantia especial.

5.2. Mora (espécies)

141

Veja-se os arts. 1244º e 1245º do CCI. 142

a perda de interesse no negócio tem de ser apreciada objectivamente, não bastando a mera afirmação por quem o

invoca de que já não está interessado no cumprimento da obrigação por parte do outro contraente (art. 742º, nº 1, do

Código Civil). 143

Por exemplo, o comprador não é obrigado a pagar o preço se não lhe tiver sido entregue a coisa vendida pelo

vendedor.

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5.2.1. Mora do devedor:

A mora do devedor depende, por outro lado, de a prestação não ter sido realizada a tempo

devido. Teremos, assim, que recorrer às normas de determinação do tempo do cumprimento,

para averiguar se o devedor esta ou não em situação de mora.

A regra é a de que as obrigações são puras, ou seja, que não têm prazo certo estipulado. Nesse

tipo de obrigações, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou

extrajudicialmente interpelado para cumprir (art. 739º, nº 1, do Código Civil e art. 1243º do

CCI).

A interpelação consiste precisamente na comunicação pelo credor ao devedor da sua decisão de

lhe exigir o cumprimento da obrigação a qual, de acordo com as regras gerais, pode ser expressa

ou tácita. A lei admite que essa comunicação possa ser feita por via judicial ou extrajudicial,

tendo como efeito constituir o devedor em mora, a partir da sua recepção.

Há, porém, casos em que a mora do devedor depende apenas de factores objectivos, tornando-se

irrelevante a existência ou não de interpelação pelo credor.144

As consequências da mora do devedor são as seguintes: obrigação de indemnizar os danos

causados pelo credor e a inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa devida.145

Tem

que haver um nexo de causalidade entre a mora e os danos sofridos. A concessão de uma

144

Art. 739º, nº 1, do Código Civil. 145

Arts. 738º, nº 1, e 741º, nº 1, do Código Civil e 1243º do CCI.

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indemnização moratória depende da demonstração de que a não realização da prestação no

tempo devido causou prejuízos ao credor.146

Tratando-se de obrigações pecuniárias, a lei fixa legalmente uma indemnização por considerar o

dano como necessariamente equivalente à perda da renumeração habitual do capital durante esse

período, ou seja, o juro (art. 740º, nº 1, do Código Civil e art. 1250º do CCI). A indemnização

corresponde aos juros desde a data da constituição em mora (juros moratórios), não se

permitindo ao credor a exigência de qualquer outra indemnização, e dispensando-o da prova dos

requisitos do dano e do nexo de causalidade entre o facto e o dano.147

5.2.2. Mora do credor

O credor incorre em mora, sempre que, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é

oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação

(art. 747º do Código Civil e art. 1404º do CCI). A mora tem assim os seguintes pressupostos: a

recusa ou a não realização pelo credor da colaboração necessária para o cumprimento e a

ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.

A mora do credor tem os seguintes efeitos: obrigação de indemnização por parte do credor,

atenuação da responsabilidade do devedor e inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa

(art. 748º do Código Civil).

146

Estes danos poderão consistir, por exemplo, em despesas, que o credor teve que suportar durante o período da

mora para satisfazer as suas utilidades que lhe seriam proporcionadas pela prestação. 147

Veja-se o § 2º do art. 1250º do CCI.

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Capítulo IV – Responsabilidade Civil

1.1. Conceito de responsabilidade civil.

A responsabilidade civil corresponde ao dever de determinado sujeito de reparar o prejuízo

sofrido por outrem, em razão de um acordo anteriormente firmado, ou por imposição de lei148

.

A responsabilidade civil consiste na necessidade imposta pela lei a quem causa prejuízos a

outrem de colocar o ofendido na situação em que estaria sem a lesão149

.

1.2. Responsabilidade civil contratual e responsabilidade civil extracontratual

Basicamente, a sé divide em duas grandes espécies: a responsabilidade e a extracontratual.

A responsabilidade civil contratual corresponde à imposição da reparação dos danos resultantes

da violação de um acordo prévio entre as partes. Não tem necessariamente que se tratar de um

contrato, podendo resultar de um acto jurídico unilateral. Por exemplo, no caso de gestão de

negócios150

, o gestor pode ser obrigado a indemnizar a pessoa em nome da qual negociou se a

148

O CCI integrou a responsabilidade civil extracontratual precisamente num capítulo que mereceu a tradução para

inglês de “contratos resultantes da lei” (capítulo III do Livro III, Contracts arising by force of law. Ou seja, relações

geradoras de obrigações emergentes da própria lei, por contraposição às que resultam de contratos. 149

Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1999, pág.

114. 150

A gestão de negócios consiste na direcção de negócio alheio no interesse e por conta do respectivo dono, sem que

tenha existido qualquer mandato nesse sentido (art. 339º do projecto e art. 1357º do CCI). Ou seja, uma pessoa

celebra um negócio em nome de outra, ou administra os bens de outra, como se fosse representante desta, mas sem

que tenha recebido dela poderes para o efeito, por entender que este seria o que a mesma pretenderia. Por exemplo,

se um amigo meu tem um imóvel desocupado e eu sei que o mesmo pretende arrendar o mesmo, quando este está do

estrangeiro, em férias, surgindo um interessado em tomar o imóvel de arrendamento, por uma valor de renda que

acho muito bom, embora não tenha procuração para o efeito, procedo ao arrendamento em nome do proprietário,

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gestão causou prejuízos a esta e o gestor agiu com negligência, ou se interrompeu a gestão sem

causa justificativa (arts. 401º, nº 1, do projecto e 1356º do CCI)151

.

No entanto, a situação mais comum de responsabilidade civil contratual é da violação de um

contrato. Por exemplo, numa contrato de compra e venda o comprador recebe o bem mas não

paga o preço. Ou o comprador recebe o preço da mercadoria mas não entrega esta. Num contrato

de arrendamento o arrendatário (inquilino) não paga a renda, ou o senhorio Não faz as obras

necessárias à reparação do imóvel por forma a que o inquilino possa usufruir do imóvel.

No caso de incumprimento contratual, a parte inadimplete (a parte que deixa de cumprir o

contrato, fica obrigada a indemnizar a outra parte pelos prejuízos resultantes do seu

incumprimento (arts. 732º do projecto e 1241º do CCI). O contrato passa a valer como

verdadeira lei entre as partes e o seu incumprimento por qualquer delas faz surgir o direito a

indemnização por aquele que se tornou lesado ante este inadimplemento. É nisto que consiste a

responsabilidade civil contratual, conforme a definição expressa supra (a necessidade/obrigação

imposta pela lei de o causador dos prejuízos reparar os mesmos).

A responsabilidade civil extracontratual, também chamada de responsabilidade aquiliana, tem

origem num acto ilícito não contratual, causador de prejuízo. Enquanto na responsabilidade

contratual há um vínculo anterior entre o credor e o devedor, na responsabilidade delitual (ou

extracontratual) tal vínculo poderá não existir.

ficando depois obrigado a transmitir a este a posição contratual e prestar-lhe contas (arts. 400º e 404º do projecto e

arts. 1354º a 1357º do CCI). 151

Daí que Mota Pinto, ob. cit., pág. 123, questione a definição de responsabilidade civil contratual. Esta é, porém, a

definição mais comum.

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Assim, no caso mais comum do acidente de viação, nenhum vínculo existia antes de tal evento

entre as partes envolvidas. A relação jurídica é constituida (nasce) com o facto ilícito.

1.3. Responsabilidade civil extracontratual e responsabilidade penal

Na responsabilidade penal o delinquente infringe uma norma de direito público, ocorrendo uma

reação do ordenamento jurídico, pois o interesse lesado é da sociedade. E o delinquente responde

pela privação da liberdade.

Na responsabilidade civil o interesse diretamente lesado é do interesse privado, a

responsabilidade civil é patrimonial, o património do devedor é quem responde por suas

obrigações. O interesse é da vítima, se esta permanecer inerte ou resignar a seu direito nenhuma

consequência haverá para o causador do dano.

A responsabilidade penal consiste na obrigação do seu autor se submeter a certas penas que são a

reparação do dano causado na ordem moral da sociedade. É de natureza extritamente pessoal e é

intransmissível152

, contratriamente à responsabilidade civil, que pode passar para os herdeiros do

responsável153

. É indiferente que exista um particular ou uma entidade colectiva lesada.

A responsabilidade civil tem carácter essencialmente patrimonial e por isso a obrigação de

indemnização que é seu conteúdo transmite-se aos herdeiros e pode igualmente ser cumprida por

terceiros que não o infractor. Não tem assim natureza estritamente pessoal; o que importa é

assegurar a reparação do dano causado

152

Art. 32º, nº 3, da Constituição e art. 12º, nº 1, do CP. 153

Veja-se o art. 1379º do CCI, para os casos de injúrias ou difamação e o art. 68º do Código Civil.

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Embora a responsabilidade civil possa existir sem responsabilidade penal, uma vez que nem

todos os factos ilícitos são puníveis criminalmente (princípio da intervenção subsidiária, como

ultima ratio, do direito penal), os ilícitos criminais que tenham um lesado particular (por vezes o

próprio Estado), geram igualmente responsabilidade civil extracontratual.

Nos termos dos arts. 72º e 284º do CPP e 104º do CP, o responsável por ilícito criminal deverá

ser igualmente condenado pela inerente civil, ainda que se conclua que apenas esta se verifica,

inexistindo qualquer responsabilidade criminal154

.

O art. 104º do CP estipula expressamente no seu nº 2 que a indemnização civil resultante dos

danos causados por ilícito criminal é apurada nos termos da responsabilidade civil

extracontratual.

2. Elementos da responsabilidade civil extracontratual

Nos termos do art. 417º, nº 1, do CCI, aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o

direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica

obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Disposição semelhante

encontramos no art. 1365º do CCI155

, o qual se aplica apenas aos actos dolosos, ou voluntários,

154

Importa aqui referir que a responsabilidade civil pode existir sem culpa (como se verá infra), contrariamente à

responsabilidade criminal que pressupõe sempre a existência de culpa. Mais, por vezes a responsabilidade criminal

exige o dolo, ao passo que a responsabilidade civil se conforma com a mera culpa (ou negligência). Veja-se o crime

de dano, que tem que ser doloso (art. 258º, nº 1, do CP), enquanto o dano negligente é sempre gerador de

responsabilidade civil extracontratual. 155

Na versão em inglês “A party who commits an illegal act which causes damage to another party shall be obliged

to compensate therefor”.

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mas que é extensivo os actos cometidos por negligência pelo art. 1366º156

. Apenas pode haver

responsabilidade pelo risco, ou seja, independentemente de culpa, quando a lei expressamente o

determinar157

.

A responsabilidade civil extra contratual, radica em quatro pressupostos essenciais: o facto

ilícito, o nexo de imputação subjectiva, o dano e o nexo de causalidade.

O facto ilícito traduz-se no evento, na acção ou omissão, enquanto ocorrência resultante da acção

humana lesiva de bens jurídicos pessoais e patrimoniais.

O nexo de imputação subjectiva exprime a ligação psicológica do agente com a produção do

acidente e traduz o grau de censurabilidade que a conduta merece.

O dano representa o desvalor infligido aos bens alheios por acção do facto ilícito.

Finalmente o nexo de causalidade revela-se no juízo de imputação objectiva do dano ao facto

que o produz.

O facto ilícito:

O primeiro requisito para que se verifique responsabilidade é a existência de um facto humano

voluntário. Assim, não será facto relevante para este efeito o evento natural onde não intervenha

156

Na versão em inglês “An individual shall be responsible, not only for the damage which he has caused by his act,

but also for that which was caused by his negligence or carelessness”. 157

Art. 417º, nº 2, do Código Civil, e 1367º a 1369º do CCI.

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a vontade humana minimamente determinante158

. Por exemplo, uma inundação que cause danos

na habitação de uma pessoa não é facto para efeitos de responsabilidade civil extracontratual.

Para além de um facto humano tem que ser um facto do lesante, podendo consistir numa acção

ou numa omissão159

.

O facto tem ainda que ser ilícito.

A ilicitude pode resultar da violação de um direito subjectivo absoluto ou da violação de normas

que visam a protecção de interesses alheios.

A violação de um direito subjectivo absoluto verifica-se, por exemplo o caso injúrias e

difamação previsto nos arts. 1372º a 1380º do CCI160

. Trata-se de um direito de personalidade

com consagração constitucional (art. 36º da Constituição), também previsto nos arts. 67º e 418º

do projecto.

Os direitos reais também são direitos absolutos, pelo que a sua violação confere direito a

indemnização, conforme se pode verificar, por exemplo, pelos arts. 563º do CCI (para o caso de

esbulho violento da posse) e 1204º do projecto.

A segunda situação referida engloba a violação de qualquer norma que vise a protecção de

interesses alheios. O caso mais comum de responsabilidade civil extracontratual por violação de

158

Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,

pág. 264. 159

A acção lesiva será por exemplo uma agressão (ofensa corporal) praticada pelo lesante no corpo do lesado, e a

omissão será, por exemplo, a conduta do médico que, estando obrigado a tratar o lesado se recusa a fazê-lo. 160

A injúria e difamação, são factos ilícitos expressamente previstos e regulados de forma exaustiva no CCI como

geradores de responsabilidade civil extracontratual, embora com a aprovação do novo CP tenham deixado de

integrar o elenco dos ilícitos penais.

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normas que visam a protecção de interesses alheios são os acidentes de viação. No caso de um

acidente de viação existirá, em princípio161

, a violação de uma norma do Código da Estrada162

pelo menos por parte de um dos intervenientes. Efectivamente, ao regular a forma como os

condutores se devem comportar ao conduzirem na via pública, pretende-se assegurar o interesse

de todos os cidadãos (e de cada um em particular) a que possam circular em segurança, seja em

veículos seja a pé, nas vias públicas nacionais.

Os requisitos para que se preencha este segundo tipo de ilicitude são: (a) que a lesão os interesses

do particular se verifique através da violação de uma norma legal; (b) que a norma violada tutele

directamente interesses particulares e não que os interesses particulares sejam protegidos porque

tal resulta da protecção de interesses colectivos; e (c) que o dano verificado seja daqueles que a

norma visa ao tutelar interesses privados163

.

Constituem ilícitos especialmente previstos na lei:

No projecto, (a) a ofensa do crédito ou do bom nome (art. 418º); (b) prestação de conselhos,

recomendações ou informações (art. 419º); e (c) simples omissões (art. 420º).

No CCI, (a) homicídio doloso ou negligente (art. 1370º); (b) ofensas à integridade física dolosa

ou negligente (art. 1371º); e (c) a injúria ou difamação (arts. 1372º a 1380º).

161

Se não existir, não existirá igualmente responsabilidade civil extracontratual subjectiva, embora possa existir

responsabilidade civil extracontratual objectiva ou pelo risco (o CCI, não prevê, contudo, este tipo de

responsabilidade para os acidentes de viação). 162

O Código da Estrada foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 6/2003, de 3 de Abril. 163

Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,

pág. 265.

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102

São causas de exclusão da ilicitude164

: (a) o exercício de um direito ou cumprimento de um dever

(prevalece o interesse mais relevante) (art. 326º do projecto); (b) a acção directa (art. 327º do

projecto); (c) a legítima defesa (art. 328º do projecto); (d) o estado de necessidade (art. 330º do

projecto); e (e) o consentimento do lesado (art. 331º do projecto).

O nexo de imputação subjectiva (culpa):

Culpa em sentido lato é a imputação de um acto ilícito ao seu autor, traduzido num juízo segundo

o qual este devia ter-se abstido desse acto165

. A culpa, para a responsabilização civil, é entendida

no sentido lato, abrangendo tanto o dolo como a negligência, ou seja, todas as espécies de

comportamentos contrários ao direito, sejam intencionais ou não, mas sempre imputáveis ao

causador do dano.

Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou

censura do direito: o lesante, pela capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação,

podia e devia ter agido de outro modo166

.

O comportamento causador do prejuízo é ilícito objectivamente desde que viole a diligência

objectiva que, relativamente aos interesses de terceiros, tutelados pela ordem jurídica, se impõe.

A culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em

face das circunstâncias de cada caso (art. 421º, nº 2, do projecto).

164

O CCI não prevê expressamente esta matéria. 165

Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 7ª ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 324. 166

Pires de Lima e Antunes Varela, no “C. Civil Anotado”, 4ª ed., vol. 1º, Coimbra Editora, 2010, pág. 474.

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103

Ou seja, a culpa é apreciada em abstracto, em face das circunstâncias de cada caso, pela

diligência de um homem médio em abstracto167

.

Nos termos do art. 421º, nº 1, do projecto, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da

lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.

Porém, a jurisprudência portuguesa, para norma semelhante168

vem entendendo que a culpa será

de presumir quando houver inobservância de normas jurídicas, dispensando-se a sua prova em

concreto, desde que, o evento causador da lesão seja um daqueles que a lei pretende evitar

quando impôs a disciplina traduzida na norma regra violada.

Como já se referiu, a culpa pode consistir numa acção dolosa, em qualquer das suas

modalidades: dolo directo, necessário ou eventual, ou em mera culpa (culpa stricto sensu ou

negligência).

O dano

Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se

tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 497º do projecto)169

. O cálculo efectua-se,

assim, pela chamada teoria da diferença.

Tal reconstituição é possível de alcançar através de reconstituição natural ou mediante o

pagamento de uma indemnização em dinheiro, quando aquela não é possível (art. 501º do

projecto).

167

Almeida e Costa, “Direito das Obrigações”, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1979, pág. 388. 168

Art. 487º do Código Civil Português de 1966. 169

Não existe norma semelhante no CCI.

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104

No entanto na responsabilidade civil, a indemnização nunca poderá exceder o montante dos

prejuízos que é a regra comum ou critério geral para fixação do montante da indemnização, quer

seja fundada em dolo como em culpa.

O dano ou prejuízo é sempre a ofensa ou lesão dum interesse. Consoante a natureza patrimonial

ou moral do interesse lesado, assim o dano poderá ser um dano patrimonial (avaliável em

dinheiro) ou moral (não avaliável em dinheiro).

Tanto os danos patrimoniais como os danos morais beneficiam de tutela legal; e a sua ofensa

pode acarretar sanções jurídicas civis (os danos morais são também ressarcíveis, como determina

o art. 430º, nº 1, do projecto)170

.

Os danos causados pelo acto ilícito podem, em outra perspectiva, distinguir-se em danos

emergentes, se determinam uma diminuição efectiva do património preexistente, e lucros

cessantes, quando consistam na frustração de um ganho, duma expectativa legítima de aumento

de património (art. 499º do projecto).

O dano emergente compreende a redução do património do lesado, o que existia à data da lesão.

O lucro cessante compreende o acréscimo patrimonial que em virtude do dano deixará de

ocorrer171172

.

170

O CCI não contém norma semelhante a esta mas é óbvio que a obrigação de indemnização abrange tanto os

danos patrimoniais como os danos morais. Este entendimento extrai-se com segurança da análise dos arts. 1365º a

1367º do CCI, que claramente incluem entre os danos indemnizáveis danos que não têm natureza patrimonial, como

sejam a “mutilação” resultante de ofensas à integridade física (art. 1371º) e a ofensa à honra ou bom nome de uma

pessoa (arts. 1372º e 1377º). 171

Manuel Neves Pereira, in “Introdução ao Estudo do Direito e às Obrigações”, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001,

pág. 265. 172

Por exemplo, é indemnizável a expectativa que o lesado tinha de vir a auferir um determinado salário como

mecânico numa plataforma de exploração petrolífera, trabalho para o qual tinha já sido contratado, se, em virtude

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105

O art. 499º, nº 2, do projecto, prevê ainda a indemnização por danos futuros. Os danos futuros

são aqueles que no momento é previsível que venham a verificar-se173

.

Nexo de causalidade

Nos termos do art. 498º do projecto, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos

que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Consagra-se a chamada teoria da causalidade adequada. O facto tem que ser causal do dano.

É a relação necessária entre o evento danoso e ação que o produziu. Não pode existir

responsabilidade civil sem a relação de causalidade entre o dano e a ação que o provocou.

3. Responsabilidade civil extracontratual pelo risco (ou objectiva)

A responsabilidade civil pelo risco consiste na reparação do dano, de modo a reconstituir a

situação alterada pela verificação do mesmo dano, a lesão de um interesse legítimo baseada não

na culpa mas no risco resultante de certas situações ou actividades, e que outrem vai assumir.

Trata-se de domínios em que o homem tira partido de actividades que, potenciando as suas

possibilidades de lucro, importam um aumento de risco para os outros174

.

acidente de viação da responsabilidade do lesante, ou de agressão corporal, vier a perder um braço e, por esse

motivo, não poder mais ser contratado para tal trabalho. 173

O melhor exemplo é o da vítima de acidente de viação, que ainda precisa de realizar intervenções cirúrgicas para

recuperar dos danos corporais sofridos. 174

Carlos Alberto da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed. Actualizada, Coimbra Editora, 1999, pág.

119.

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106

Dum ponto de vista positivo, a obrigação de indemnizar, na responsabilidade por risco, baseia-se

na justiça da imputação da obrigação de indemnizar o lesado àquele que beneficia da actividade

que produziu o dano.

Isso tanto pode suceder quando o dano seja produzido por facto ilícito e por culpa de terceiros

cuja actividade esteja directamente ao serviço daquele a quem a lei impõe também o dever de

indemnizar, como quando o risco de lesão de interesses de outrem resulta de actividades do

próprio agente, que com essas actividades lucra, ou que as organiza, embora não exista culpa na

sua forma de actuação.

O princípio da responsabilidade pelo risco tem vindo a sofrer grande incremento, como forma de

responsabilização dos promotores de certas actividades lucrativas, com especial incidências nas

novas áreas de intervenção dos direitos subjectivos, como sejam o direito do ambiente e o direito

do consumidor.

No que respeita à legislação vigente temos essencialmente:

A responsabilidade do comitente, prevista no art. 434º do Código Civil e no art. 1367º do CCI.

Para que se verifique a responsabilidade do comitente é necessário que exista uma relação de

comissão, ou seja, uma relação que tenha por conteúdo uma prestação realizada por conta e sob a

direcção do comitente175

. Mais é necessária a culpa do comissário, ou seja, que o comissário

tenha actuado de tal forma que se tenha preenchido os referidos elementos da responsabilidade

civil subjectiva. O projecto prevê uma situação especial de responsabilidade do comitente para o

caso do uso de veículos, no art. 437º. Assim, se o acidente resultar de culpa do comissário (por

175

A situação mais comum será a da relação de trabalho.

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exemplo o condutor do veículo pertencente a uma sociedade comercial), o comitente (no

exemplo dado a própria sociedade comercial) também responde pelos danos causados.

Responsabilidade por danos causados por animais, prevista no art. 436º do projecto e no art.

1368º do CCI. A responsabilidade por danos causados por animais pode resultar de culpa do

dono ou da pessoa que usa o animal (pode mesmo haver dolo, e inerente responsabilidade

criminal, se o dono do animal ou quem o utiliza o incitar a atacar outra pessoa). Será o caso de o

dono do animal ou a pessoa que o utiliza não cuidar de o prender176

. A responsabilidade pelo

risco existirá, pois, apenas para os casos em que o dono do animal ou a pessoa que tem a

obrigação de o guardar não age com culpa177

. Ainda assim, existe obrigação de indemnização.

Responsabilidade por acidentes causados por veículos, prevista no art. 440º do projecto178

. O

projecto parte do princípio que a circulação de veículos automóveis constitui uma actividade

perigosa, para concluir pela existência de responsabilidade objectiva pelos danos que de tal

circulação possam resultar, ainda que não se prove culpa de nenhum dos condutores dos

mesmos179

. Mais, pode acontecer que apenas um veículo automóvel esteja envolvido e não se

176

O dono do animal ou quem o utiliza tem a obrigação de garantir que o mesmo não cause danos a terceiro. Por

exemplo, se o dono de um cão sabe que este é um animal perigoso e que habitualmente ataca as pessoas com quem

se cruza, se sair com o cão à rua, tem obrigação de açaimar o mesmo e prendê-lo, como forma de garantir que tal

não se verifica. Se não tomar esse cuidado age com culpa. 177

Por exemplo, pode acontecer que o animal fique solto por causa não imputável ao seu dono (uma derrocada que

faça desmoronar o muro do local onde o animal estava preso). 178

O CCI não prevê este tipo de responsabilidade. 179

Por exemplo, normalmente considera-se que a responsabilidade objectiva pela circulação é maior num veículo

pesado que num veículo ligeiro. Assim, se ocorrer um acidente entre um veículo pesado e um ligeiro, a medida da

obrigação de indemnizar será maior para o veículo pesado (importa, porém, considerar que, nos termos do nº 2 do

art. 440º se presume igual a medida da contribuição dos veículos na produção do acidente).

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108

prove a culpa do seu condutor180

. Ainda aqui o mesmo estará obrigado a indemnizar nos termos

da responsabilidade objectiva prevista no art. 440º, nº 1.

Responsabilidade pelos danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás (art. 443º do

projecto). Neste caso, porém, a responsabilidade objectiva é delimitada, não só pelos casos de

força maior, como ainda quando a instalação se encontrar em boas condições técnicas ao tempo

do acidente. É sempre objectiva a responsabilidade se o dano foi causado na condução ou entrega

de electricidade ou gás.

A responsabilidade pelo risco tem limites fixados nos arts. 442º e 444º do projecto181

. A

responsabilidade pelo risco, porque não se baseia na culpa do responsável, tem limites que

podem ser inferiores e até muito inferiores ao montante dos prejuízos.

4. Responsabilidade civil do Estado e outras pessoas colectivas de Direito Público

O art. 157º do projecto, refere-se às pessoas colectivas de Direito Privado, o art. 435º do

projecto, aplica o mesmo regime ao Estado e às pessoas colectivas de Direito Público, pelos

actos dos seus órgãos, agentes ou representantes no exercício de actividades de “gestão privada”.

A responsabilidade de Estado ou pessoas colectivas de Direito Público por actos ou funções

públicas dos seus órgãos ou funcionários rege-se por princípios diversos não contidos no Código

180

Por exemplo, se uma indivíduo tem um carro novo, que legitimamente supõe que está em perfeito estado de

funcionamento, e atropela uma pessoa que se encontrava na berma da estrada porque os travões deixaram de

funcionar por defeito de fabrico do veículo, ele não cometeu nenhum facto culposo, mas não deixa de se considerar

objectivamente responsável por indemnizar a vítima do acidente pelas lesões por esta sofridas. 181

Não existem no CCI.

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109

Civil. É que então a responsabilidade do Estado ou outras pessoas colectivas de Direito Público

(na gestão pública) é mais ampla; não se limitando aos casos em que o funcionário tenha agido

ilicitamente e por culpa. Esta responsabilidade deve, pois, ser regulada por legislação especifica,

conforme previsto no art. 137º, nº 3, da Constituição.

Sucede, porém, que não existe ainda legislação emanada dos órgãos legislativos nacionais que

determine a medida da responsabilidade civil do Estado182

. Nesta área encontra-se, por exemplo,

a responsabilidade decorrente da de condenação injusta em processo penal (art. 31º, nº 6, da

Constituição).

Os princípios da responsabilidade administrativa do Estado são mais amplos. Não importa

averiguar da culpa do agente, ou da culpa do próprio serviço. Não se questiona se houve um mau

funcionamento da atividade administrativa. Basta estabelecer a relação de causalidade entre o

dano sofrido pelo particular e a acção do agente ou do órgão público. Se o funcionamento do

serviço público (bom ou mau não importa) causou um dano, este deve ser reparado.

Analisa-se agora a responsabilidade civil do Estado, decorrente de actos de gestão privada.

Em relação a esta a situação é a mesma da responsabilidade do comitente. Havendo

responsabilidade subjectiva dos agentes do Estado, administrativos ou políticos, haverá sempre

responsabilidade objectiva do Estado (arts. 435º do projecto e 1367º do CCI).

182

Desconhece-se legislação sobre o assunto que vigorasse no território nacional à data de 25 de Outubro de 1999

(art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro) e que, portanto, ainda vigore em Timor-Leste. Em último caso deverá

aplicar-se o regime previsto para a responsabilidade civil por actos de gestão privada, por analogia.

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110

Em concreto pode ver-se o disposto no art. 5º, nº 1, do Decreto-Lei nº 8/2003, de 18 de Junho

(Regulamento de Atribuição e Uso dos Carros do Estado)183

. Porém, no nº 2 do mesmo preceito

estipulou-se que “são excluídos do parágrafo anterior os casos em que o acidente resulte, directa

ou indirectamente, de uma contraordenação grave ou muito grave cometida pelo agente do

Estado envolvido, nos termos dos artigos 140.º e 141.º do Código da Estrada”. Esta norma só

pode ser interpretada no sentido de o Estado poder exercer o direito de regresso contra o seu

funcionário (ou agente), o que significa que não o poderá exercer nos restantes casos.

Efectivamente, não poderá o Estado eximir-se à responsabilidade civil objectiva presviata no

CCI. Ou no projecto.

No mais deve considerar-se o que se expôs supra relativamente à responsabilidade civil do

comitente.

183

O Estado assume a responsabilidade dos seus agentes pelos danos pessoais e/ou materiais resultantes acidentes ou

incidentes que envolvam veículo do Estado, quando o respectivo condutor esteja a utilizar o veículo de forma

legítima.

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111

CAPÍTULO V – Noções Gerais de Contratos

1. O contrato

Contrato é um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios

da função social e da boa-fé objectiva, auto-disciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem

atingir, segundo a autonomia das suas próprias vontades184

.

O contrato pressupõe necessariamente intervenção de duas ou mais pessoas que se põem de

acordo a respeito de determinada coisa. Sem o concurso de duas pessoas, pelo menos, impossível

surgir o contrato, não se podendo admitir que alguém seja ao mesmo tempo, credor e devedor de

si mesmo, o que viria a constituir verdadeiro contradictio in adjectis. Vejam-se os arts. 1233º e

1313º do CCI.

Elementos dos contratos:

a) A capacidade dos contratantes é o primeiro requisito para a validade dos contratos. Qualquer

pessoa pode contratar, desde que não seja absolutamente incapaz (arts. 1329º e 1330º do CCI e

64º e 248º do projecto).

b) Objeto lícito é o segundo elemento, como sendo a operação que os contraentes visaram a

realizar, o interesse que o ato jurídico tem por fim regular (arts. 271º do projecto e 1320º do

CCI).

184

Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, in “Novo curso de direito civil - Obrigações”, vol. IV, Saraiva,

São Paulo, 2005, pág. 12.

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112

c) O objeto do contrato, como o da obrigação, tem de ser possível, lícito e suscetível de operação

económica. Além disso, não só as coisas presentes como igualmente as futuras podem ser usadas

pelos contraentes. O objeto do contrato deve ser certo, ou, no mínimo, determinável.

d) O último requisito para a validade dos contratos é respeitante à sua forma, que deve ser legal:

a forma dá ser às coisas.

Principais princípios dos contratos:

a) Autonomia da vontade.

O contrato nasce de uma liberdade de contratar, liberdade esta que é denominada autonomia de

vontade, ou autonomia privada185

.

É no princípio da autonomia da vontade que se funda o princípio da liberdade contratual, e este

consiste no poder de estipular livremente mediante acordo de vontades, a disciplina de seus

interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica186

.

A autonomia de vontade e consequente liberdade contratual devem ser vistas sob dois aspectos, o

da liberdade de contratar propriamente dita, onde as partes de comum acordo estabelecem o

conteúdo do contrato e a liberdade de contratar, que é a faculdade de realizar ou não determinado

contrato, esta, mais utilizada ao se referir aos contratos de adesão.

185

Fernando Noronha, in “O direito do contrato e seus princípios fundamentais”, Saraiva, São Paulo, 1994, pág. 113. 186

Maria Helena Diniz, in “Curso de direito civil brasileiro.Teoria das obrigações contratuais e extracontratuais”,

vol. 3, Saraiva, São Paulo, 2002, pág 32.

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113

A regra geral é que, dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o

conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes

as cláusulas que lhes aprouver (art. 340º do projecto).

b) Consensualismo. Basta o acordo de duas ou mais vontades para gerar um contrato válido.

c) Obrigatoriedade da convenção.

O princípio da obrigatoriedade da convenção ou do contrato consagra a ideia de que o contrato,

uma vez cumpridos os requisitos legais, torna-se obrigatório entre as partes, que dele não se

podem desligar senão por outro acordo187

. O contrato constitui uma espécie de lei entre as partes,

pacta sunt servanda188

.

Este princípio não é, porém, absoluto, podendo o tribunal modificar as cláusulas contratuais em

certas circunstâncias, por forma a equilibrar situações de manifesto desequilíbrio das posição

contratual das partes (princípio da equivalência das prestações).

d) Relatividade dos efeitos do contrato.

O contrato vincula apenas as partes que o celebram, não podendo ser oposto a pessoa que nele

não teve participação.

Pelo princípio da relatividade dos efeitos do negócio jurídico, o contrato não prejudica e nem

aproveita a terceiros, vinculando exclusivamente as partes que nele intervieram, pois o ato

negocial deriva do acordo de vontade das partes, sendo lógico que apenas as vincule, não tendo

187

Neste sentido o art. 341º, nº 1, do projecto e o art. 1338º do CCI. 188

Silvio Rodrigues, in “Direito civil - Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade”, vol. 3, Saraiva, São

Paulo, 2002, pág. 15.

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114

normalmente eficácia em relação a terceiros189

.

Veja-se o art. 1315º do CCI, que claramente expressa este princípio. No mesmo sentido o art.

341º, nº 2, do projecto.

e) Princípio da boa-fé.

Em sentido objectivo, que é aquele que aqui interessa, a boa-fé constitui um princípio geral de

direito, um princípio normativo que implica a valoração da conduta das partes como honesta,

correcta e leal; é um princípio norteador de conduta, um padrão objectivo de comportamento, um

critério normativo de valoração190

.

A boa-fé objectiva é o dever de agir de acordo com determinados padrões em função da situação

das contrapartes, uma vez que é necessário ponderar, casuisticamente, se estão reunidas as

condições suficientes para criar na contraparte um estado de confiança no negócio celebrado,

para poder a expectativa ser tutelada191

.

A boa-fé é princípio fundamental dos contratos, quer na sua génese, ou seja, na fase de

celebração, quer na sua execução. Vejam-se os arts. 1338º do CCI e 218º e 696º, nº 2, do

projecto.

f) Ordem pública.

189

Maria Helena Diniz, ob. cit., pág 39. 190

Stela Marcos de Almeida Neves Barbas, in “Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ”, ano II, tomo 2º,

Casa do Juiz, Coimbra, 1994, pág. 13 191

Fernando Noronha, ob. cit., pág. 138.

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115

A ordem pública e os bons costumes, prevalece sobre o princípio da liberdade contratual,

cedendo esta quando as cláusulas contratuais contrariem aqueles princípios (arts. 271º do

projecto e 1339º do CCI).

A ideia de ordem publica e constituída por aquele conjunto de interesses jurídicos e morais que

incumbe a sociedade preservar, os quais não podem ser alterados por convenção entre

particulares.

2. Formação do contrato

Para sua formação, os contratos requerem a convergência de, no mínimo, duas vontades

coincidentes; ou consentimento; proposta (declaração que parte do proponente) e aceitação (que

parte do aceitante).

Negociações preliminares são prévias à formação dos contratos.Oo contrato não é obrigatório,

até porque ainda não existe enquanto tal. No entanto, pode surgir responsabilidade para os

participantes dessas negociações: responsabilidade pré-contratual (art. 218º do projecto)192

.

Proposta é a firme declaração receptícia de vontade dirigida à pessoa com a qual pretendem

alguém celebrar um contrato, ou ao público (arts. 215º e 216º do projecto).

A proposta há de ser séria, inequívoca, precisa e completa. O conteúdo da proposta deve denotar

a intenção de celebrar o contrato.

192

O CCI não regula expressamente esta matéria.

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116

Uma vez formulada (ressalvadas as exceções previstas em Lei), a proposta vincula o proponente

e, portanto, obriga a realização do contrato, caso haja aceitação eficaz (isto é, tempestiva,

incondicional e não seguida de retratação)193

.

Aceitação é a concordância com a proposta (como o próprio nome indica, a aceitação). Pode

exteriorizar-se por declaração ou pela prática de actos (p. ex., pelo início do cumprimento ou por

actos de apropriação, como quem recebe um livro que não encomendou e inicia sua leitura ou se

comporta como seu dono), ou, até mesmo, pelo silêncio (silêncio conclusivo)194

.

Se a aceitação contém modificações, restrições ou adições em relação ao que foi proposto, é de

se entender que houve contraproposta195

.

O contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas

sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo196

.

3. Forma e prova dos contratos

A regra é a forma livre. Esta é constituida por qualquer meio de manifestação da vontade no

negócio jurídico, desde que não previsto em lei (art. 210º do projecto).

Porém, quando a lei exige forma especial, esta tem que ser observada, sob pena de nulidade do

contrato (art. 211º do projecto)197

.

193

Art. 221º do projecto. 194

Art. 209º do projecto. 195

Art. 224º do projecto. 196

Art. 223º do projecto.

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117

Quando a lei não exigir forma especial para o contrato, este pode ser provado por qualquer meio

legalmente admissível (art. 502º do CPC).

Mas, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado

ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que

não seja de força probatória superior (art. 578º, nº 1, do CPC).

Se, porém, resultar claramente da lei que o documento é exigido apenas para prova da

declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contando que,

neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (art.

578º, nº 1, do CPC).

No primeiro caso trata-se daquilo a que se chama formalidade ad substantiam e no segundo

formalidade ad probationem.

Está-se em presença de uma formalidade ad substantiam, quando a lei se limita a exigir certo

documento como forma de declaração negocial, sem dizer mais nada198

.

4. Interpretação dos contratos

Os artigos 227º a 229º do projecto do Código Civil se determinam as regras de interpretação das

declarações negociais, no artigo 230º do mesmo projecto prevê-se a ocorrência de questões

197

Embora não exista norma semelhante no CCI, as normas que prevêm formalidades especiais para os contratos

sancionam com a nulidade a sua inobservância. 198

Pinto Furtado, in “Manuel de Arrendamento Urbano”, vol. I, 4ª ed. actualizada, Almedina, Coimbra, 2007, págs.

450-455.

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relacionadas com o objecto do contrato, que poderiam ter sido, mas não foram, regulamentadas

pelos contraentes e, consequentemente, os meios de integração da declaração negocial.

Tais meios integrativos são, em primeira linha, o recurso às normas supletivas, na medida em

que o normativo legal a que recorremos começa por referir que a sua doutrina só se aplica na

falta de disposição especial.

Em segundo lugar, apelar-se-á à vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto

omisso, ou seja, à sua vontade hipotética ou conjectural.

Por fim, se este critério integrativo se não mostrar operativo, por não haver coincidência entre as

vontades hipotéticas dos contraentes ou, havendo tal coincidência, o resultado apurado ser

injusto, adoptar-se-á a solução mais compatível com os ditames da boa fé.

Sobre esta matéria regulam os artigos 1347º, 1350º e 1351º.

Assim, para integrar os casos de omissão, prevê-se, para além do recurso aos costumes, será

considerado o elemento sistemático, as estipulações expressamente previstas e finalmente as

estipulações da lei.

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DIREITOS REAIS

CAPÍTULO I – DEFINIÇÕES E CARACTERÍSTICAS

I. Definição

Direito real é o poder que se exerce sobre uma coisa e que se traduz na possibilidade de exigir de

todos os outros indivíduos o respeito do exercício desses poderes sobre a coisa199

.

No plano interno o direito real caracteriza-se pelo tipo de poderes que podem ser exercidos sobre

a coisa. Por exemplo, direitos reais de gozo ou de garantia.

No plano externo o direito real caracteriza-se pelo poder de exigir dos outros a obrigação passiva

universal, o respeito pelo direito em concreto. Nomeadamente, os direitos de propriedade, de

usufruto, de servidão, de aforamento. Os direitos reais têm eficácia erga omnes. Ou seja, os

direitos reais individuais são impostos a todos os indivíduos, que têm que os respeitar200

.

199

José de Oliveira Ascensão, in “Direito Civil – Reais”, Coimbra Editora (Coimbra), 5ª ed. (2000), pág. 15, a propósito da origem histórica da expressão refere que a mesma deriva da figura actio in rem que se dirigia contra uma coisa, por contraposição à actio in persona que se dirigia contra uma pessoa. 200

Dispenso-me da análise das várias teorias sobre a natureza dos direitos reais (nomeadamente as teorias clássica ou realista e moderna ou personalista) e recomendo sobre o assunto a leitura da monografia de Diana Gomes Carvalhinho, “Direitos Reais: Noções Gerais”, in “Revista Jus Navigandi”, ano 10, nº 739, Teresina (Brasil), 14 Julho 2005 (igualmente acessível em www.juspodivm.com.br). “Existem, pelo menos, duas formas radicalmente opostas de conceber os direitos reais e de contrapô-los aos direitos pessoais: a teoria clássica ou realista e a teoria moderna ou personalista. Em síntese, para a teoria clássica ou realista, os direitos reais devem ser vistos como um poder direto e imediato sobre a coisa, enquanto os direitos pessoais traduzem uma relação entre pessoas, tendo por objeto uma prestação. Por outro lado, os defensores da teoria moderna ou personalista sustentam, basicamente, que o direito real não reflete relação entre uma pessoa e uma coisa, mas, sim, relação entre uma pessoa e todas as demais”.

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II. Princípios característicos dos direitos reais

São características fundamentais dos direitos reais: eficácia absoluta, inerência, sequela,

preferência, tipicidade, transmissibilidade, elasticidade, publicidade, e consensualidade.

a) Princípio da eficácia absoluta

Como resulta da própria definição do direito de propriedade, a principal característica dos

direitos reais é a sua eficácia absoluta201

.

Quer isto dizer que os direitos reais são oponíveis erga omnes, atribuindo a seu titular o poder de

exercê-los em face de quem quer que seja e, em contrapartida, impondo a todas as pessoas,

indistintamente consideradas, o dever de respeitar o seu exercício202

.

Os direitos reais são absolutos não porque não sofram quaisquer restrições, mas porque obrigam

toda a sociedade a um dever de abstenção, o dever de não perturbar o seu exercício por parte do

sujeito activo (o titular do direito).

Sobre esta matéria estabelece o art. 572º do CCI que presume-se que a propriedade está livre de

qualquer reclamação. Um indivíduo que reclame algum direito sobre os bens de outro indivíduo,

será obrigado a provar o direito que invoca203

.

201

Este não é contudo entendimento unânime, conforme Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais”, Lisboa: Lex Edições Jurídicas, 1993, págs. 302 a 311. 202

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, in “Direitos Reais: segundo as prelecções do Prof. Doutor C.A. da Mota Pinto ao 4º ano jurídico de 1970-71”, Almedina (Coimbra), 1971, pág. 44.

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Por sua vez, estabelece o art. 1227º do projecto do Código Civil de TL que “O proprietário goza

de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe

pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.

b) Princípio da inerência

A inerência é uma consequência da eficácia absoluta dos direitos reais, e traduz-se na aderência

do direito real à coisa que constitui seu objecto, justificando, em última análise, a oponibilidade

erga omnes. Ou seja, a coisa continua a ser objecto do mesmo direito real, ainda que se verifique

a transmissão da mesma, independentemente do número que vezes que ocorra.

Por exemplo, o titular do direito de superfície sobre um imóvel, mantém o seu direito inalterado,

mesmo que se verifiquem várias transmissões do direito de propriedade sobre o imóvel objecto

do seu direito.

c) Princípio da sequela (Direito de sequela ou de seguimento)

A sequela é uma prerrogativa, característica ou faculdade dos direitos reais, igualmente

resultante do seu carácter absoluto.

203 Da versão em inglês, “Article 572. Each property shall be presumed to be free of any claim. An individual who

claims any right to another individual's assets, shall be obliged to prove that right”.

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O direito segue a coisa, persegue-a, acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação

em que a coisa se encontre. Ou seja, ainda que outra pessoa se aproprie da coisa, o titular do

direito real pode sempre exercer sobre a coisa os poderes correspondentes ao seu direito204

.

d) Princípio da preferência (Direito de preferência ou de prevalência)

Traduz-se na circunstância de os direitos reais constituídos sobre uma coisa prevalecerem sobre

os direitos de crédito incidentes sobre essa coisa e sobre os direitos reais posteriormente

constituídos sobre a mesma coisa, que se revelem total ou parcialmente incompatíveis com o

inicial205

. Trata-se igualmente de característica resultante do carácter absoluto dos direitos reais.

e) Princípio da tipicidade

Os direitos reais estão sujeitos ao princípio da tipicidade ou do “numerus clausus”. Ou seja, não

podem existir outros direitos reais para além daqueles que estão tipificados na lei, nem podem

ser criados pelos particulares direitos reais com conteúdo diferente dos que estão legalmente

regulados.

Dessa forma, percebemos que um direito real é um direito tipificado normativamente, isto é, para

que um direito se qualifique como real, antes de tudo ele tem que estar elencado na lei,

delimitado legalmente.

204

A este propósito veja-se o art. 621º do CCI (na versão em ingles “Any individual may have his property title to

immovable assets, which he owns, acknowledged by the court of justice, within whose legal jurisdiction the assets

are located”). Veja-se igualmente o art. 1234º, nº 1, do projecto “O proprietário pode exigir judicialmente de

qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade”.

205 Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 62.

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O princípio da tipicidade está expressamente consagrado no artigo 1228º do projecto do novo C.

Civil206

.

Já o CCI207208

, à semelhança da generalidade dos sistemas jurídicos da altura não consagra

expressamente este princípio, sendo seguro, porém, que se regula de forma expressa todos os

direitos reais que considera admissíveis pelo ordenamento jurídico209

. Esta preocupação é ainda

mais evidente na Lei Agrária de 1960210

, conforme se pode ver da redacção dada ao artigo 16º, nº

1211

.

f) Princípio da especialidade

206

Artigo 1228º («Numerus clausus») 1. Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei; toda a restrição resultante de negócio jurídico, que não esteja nestas condições, tem natureza obrigacional. 207

Forma como se referirá sempre o Código Civil Indonésio recebido como legislação nacional timorense nos

termos das disposições conjugadas dos arts. 165º da Constituição da RDTL, 3º, nº 1, do Regulamento da Untaet nº

1/1999, e 1º da Lei nº 2/2002, este com a interpretação expressa pelo art. 1º da Lei nº 10/2003, de 10 de

Dezembro. O regime jurídico indonésio iniciou a sua vigência no território nacional como consequência natural da

integração naquele país, operada por declaração do Presidente da República da Indonésia de 17-7-1976.

208 Toda a restante legislação indonésia a que se faça referência neste texto é legislação recebida internamente nos

termos das disposições legais referidas na nota anterior. 209

Veja-se o art. 528º do CCI. 210

Lei nº 5 de 1960 (UUPA) (Undang Undang No. 5 Tahun 1960 Tentang: Peraturan Dasar Pokok-pokok Agraria)

211 Hak-hak atas tanah sebagai yang dimaksud dalam pasal 4 ayat (1) ialah … (Na versão inglesa “The rights on land

as meant in paragraph (1) of Article 4 are as follows …”).

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Os direitos reais devem ter por objecto coisas individualizadas, coisas certas e determinadas.

Acrescenta o artigo 1224º do projecto do novo Código Civil, que só as coisas corpóreas, móveis

ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste código212

.

Por outro lado, o direito real que incide sobre uma coisa é diferente do direito real, ainda que

porventura igual, que incida sobre outra coisa.

O facto de o direito dever incidir sobre uma coisa determinada não impede que, por exemplo,

possa incidir sobre uma universalidade213214

.

g) Princípio da transmissibilidade

Como qualquer direito patrimonial o direito real é transmissível. Significa isto que a ligação

entre o direito e o seu titular é cindível, pode ser quebrada por vontade do titular ou por outra

causa. Esta característica traduz no fundo a alienabilidade e a hereditabilidade dos direitos

reais215

.

Esta característica encontra-se particularmente acentuada no CCI que inclui as normas relativas

às sucessões por morte no seu Livro Dois216

, que tem por título “Coisas”, e que regula apenas a

matéria respeitante aos direitos reais e as sucessões217

.

212

No mesmo sentido o artigo 519º do CCI. 213

A definição das coisas compostas será efectuada infra a propósito da distinção das coisas. 214

“Está visto que as coisas colectivas, revistam elas a fisionomia de coisas compostas ou de universalidade de facto, são compatíveis como objecto de direitos reais, com a ideia de que estes têm de ter como objecto uma coisa certa e determinada. Isto, porque a universalidade ou a coisa composta são – elas próprias – uma forma de determinação ou de individualização” (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 100). 215

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., págs. 103 e 104. 216

Capítulos XII a XVIII, arts. 830º a 1130º.

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c) Princípio da elasticidade

No caso dos direitos reais onerados ou limitados (por exemplo por usufruto, servidão, hipoteca),

a extinção do direito real menor faz expandir o direito real principal, reconstituindo-se a

propriedade plena do direito. “Sempre que estamos perante um direito real limitado, concorrem

dois direitos sobre o mesmo objecto: o direito de propriedade e o direito real limitado a certas

utilidades da coisa”, há uma concorrência de direitos. Assim, se o direito real menor se extinguir,

há uma imediata restauração da propriedade plena do direito de propriedade218219

.

h) Princípio da publicidade

A constituição ou transferência de um direito real deve ser efectuada de forma pública, de modo

a ser conhecida de todas as pessoas220

.

Esta necessidade de publicidade implica a obrigação do uso de forma especial (a escritura

pública) para a celebração dos contratos que impliquem a constituição ou disposição de direitos

217

A este propósito veja-se ainda o art. 20º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik dapat beralih dan dialihkan kepada pihak lain”, na versão em inglês “A Hak milik can change hands and be transferred to other

parties”). 218

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., págs. 113 e 114. 219 Veja-se o art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia (UUPA) (“Hak milik adalah hak turun-menurun, terkuat dan

terpenuh yang dapat dipunyai orang atas tanah”, na versão em inglês “A Hak milik (right of ownership) is the

inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”.

220 Embora a questão dos registos das situação jurídica e das transmissões dos bens se tenha colocado

essencialmente relativamente aos bens imóveis, existem bens móveis, nomeadamente, ou por ora essencialmente, os veículos automóveis, relativamente aos quais a questão da necessidade do registo se tem colocado.

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sobre imóveis, nomeadamente a sua alienação (art. 617º do CCI221

e art. 808º do projecto do

novo Código Civil222

).

Relativamente ao registo dos actos de oneração ou disposição sobre bens imóveis o projecto do

novo Código Civil não lhe atribui efeito constitutivo, pelo que os actos efectuados com

observância do formalismo legal produzem imediatamente efeitos jurídicos223

. Ou seja, o

adquirente passa a ser proprietário do imóvel, independentemente da entrega do imóvel ou do

registo224

.

O CCI impõe um regime de efeito constitutivo do registo ao determinar que a transferência do

direito efectuada por escritura pública só se efectiva com o registo da mesma225

.

Mais exige que a prova da venda só possa ser efectuada mediante certidão do registo226

, assim se

reforçando o princípio da publicidade do acto227

.

221

Na versão em ingles “All deeds, by virtue of which immovable assets are disposed of, bequeathed, distributed,

encumbered, or transferred, shall be rendered invalid unless drawn up in an authentic form”.

222 “O contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública”.

223 Importa contudo ter presente que, normalmente, a precedência do registo pode ter consequências jurídicas

importantes, devido ao princípio da protecção de terceiros de boa fé, no caso de nova alienação de imóvel por quem já havia alienado o mesmo alienado anteriormente a outrem. 224

Princípio da consensualidade (a constituição e transmissão dos direitos reais resultam do contrato, não sendo exigida a tradição da coisa). 225 Art. 616º (“The delivery or order of immovable assets shall be effected by publication of the deed, in the

manner stipulated in article 620”).

226 “Evidence of the sale of the assets shall be in the form of excerpts from the roll or registers of the auction

department in the customary format effected with the assistance of the aforementioned department” (art. 617º);

“the public notification shall take place:- by submitting to the office of the registrar of the mortgages within whose

area the immovable assets to be delivered or ordered are located, an authentic and complete copy of the

authentic deed or of the judgment, and by the recording of the copy in the register designated thereto” (art. 620º).

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127

A mesma preocupação de publicidade resulta ainda do disposto no art. 19º da Lei Agrária

Indonésia228

. Porém, por se tratar de uma norma programática dirigida ao próprio Governo da

República da Indonésia, não se afigura que a mesma tenha aplicação na RDTL.

Já a nova proposta de lei de Regime Especial Para a Definição da Titularidade dos Bens Imóveis

(mais conhecida como Nova Lei das Terras), manifesta iguais preocupações de publicidade

(além da própria atribuição de direitos)229

.

III. O registo

O registo predial é forma de expressão máxima do princípio da publicidade supra referido.

O registo permite conhecer a situação exacta dos bens imóveis, nomeadamente a titularidade do

direito e propriedade e encargos que possam onerar o direito, por forma a que o potencial

adquirente do bem tenha conhecimento exacto de todos. Ou seja, o fim do registo é manifestar o

estado jurídico da propriedade230

.

Relativamente ao registo, o problema que se tem colocado em Timor-Leste consiste em

determinar a solução a dar aos casos das transacções jurídicas tendo por objecto bens imóveis

227

O mesmo se aplica aos casos previstos nos arts. 617º a 619º ainda do CCI. 228 “Untuk menjamin kepastian hukum oleh Pemerintah diadakan pendaftaran tanah diseluruh wilayah”, na versão

em inglês “To guarantee legal certainty, the Government is to implement land registration throughout the whole

territory …”.

229 “A presente lei estabelece o regime especial para a definição da titularidade imobiliária por meio do

reconhecimento e da atribuição de primeiros direitos de propriedade de bens imóveis da República Democrática de Timor-Leste” (art. 1º, nº 1). 230

José Dias Ferreira, in “Codigo Civil Portuguez Anotado”, vol. II, Lisboa, 1870, pág. 442.

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durante o período em que não havia notários nacionais e tendo em consideração a inexistência de

registo predial.

Uma das soluções mais frequente foi a celebração de contratos escritos com a chancela de um ou

mais advogados, que assim procuravam dar alguma certeza jurídica ao acto de transmissão do

direito sobre bens imóveis. Mas também se verificaram muitas transmissões de imóveis por mero

escrito particular ou por acordo verbal.

Com respeito por entendimento diverso, afigura-se não se poder atribuir a tais actos a eficácia

jurídica pretendida, ou seja, a virtualidade de operarem a transmissão do direito sobre o bem

imóvel, ou a constituição de qualquer ónus sobre o mesmo. De facto, não se afigura que a

situação excepcional própria da construção, ou reconstrução das infra-estruturas jurídicas

nacionais possa permitir a omissão de formalidades consideradas essenciais pela generalidade

dos ordenamentos jurídicos.

Por outro lado, não se pode ignorar a reafirmação da obrigação da celebração mediante escritura

pública dos actos que importem reconhecimento, constituição, aquisição, modificação, divisão

ou extinção dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, enfiteuse, superfície ou de

servidão sobre coisas imóveis, consagrada no art. 37º, nº 2, al. a), do Regime Jurídico do

Notariado (Decreto-Lei nº 3/2004, de 4 de Fevereiro)231

, que está em vigor em todo o território

nacional. Ou seja, o próprio legislador entendeu não atribuir relevância jurídica à aludida

situação.

231

Este diploma entrou em vigor no dia 7 de Março de 2004 (art. 79º).

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O que não quer dizer que tais contratos não possam produzir efeitos jurídicos, seja como meio de

transmissão da posse sobre os imóveis, nos termos do art. 543º do CCI232233

, seja como facto

gerador de obrigações entre as partes contratantes.

Relativamente aos actos praticados no período da colonização portuguesa ou ocupação indonésia

a questão não se coloca, sendo obrigatória a formalidade da escritura pública234

.

Quanto ao registo, nos termos do art. 949º do Código Civil Português de 1867, entre outros,

estavam sujeitos a registo “as transmissões de propriedade immovel, por titulo gratuito ou

oneroso” (§ 4º)235

.

O registo, tal como se veio a manter posteriormente (enquanto vigorou a legislação portuguesa),

visava apenas dar publicidade ao acto e não tinha natureza constitutiva. Assim, se António

adquirisse por contrato de compra e venda um prédio a Bernardo, ainda que não registasse tal

aquisição do direito, podia sempre impor o mesmo contrato ao Bernardo, uma vez que este se

encontrava vinculado pelo contrato celebrado, não podendo opor-se o Bernardo invocando o

facto de no registo estar ainda inscrito como titular do direito de propriedade.

232

Situação que se analisará infra aquando do estudo da posse. No projecto veja-se o art. 1178º (“Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do antecessor”). 233

Veja-se o acórdão do TR de 8 de Junho de 2010, processo nº 05/Agravo/Cível/2009/TR, relator Rui Penha. 234

Art. 875º do Código Civil Português de 1966, e o art. 617º do CCI. No âmbito do Código Civil Português de 1867, a compra e venda e a doação de bens imóveis teria que ser realizada mediante escritura pública, ou, pelo menos, mediante escrito particular, no caso de imóveis com valor inferior a cinquenta mil réis (para a compra e venda o art. 1590º e para as coações o art. 1459). 235

O Código Civil Português de 1867 (conhecido por Código Civil de Seabra) vigorava em todo o território de Portugal, incluindo as chamadas províncias ultramarinas, onde se incluía Timor-Leste, desde 18 de Novembro de 1869, conforme o art. 1º do Decreto de 18 de Novembro de 1869, que determinou a sua aplicação imediata a todo o território ultramarino, independentemente da sua publicação nos Boletins Oficiais dos diversos territórios (art. 2º).

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Porém, se o Bernardo vendesse de novo o mesmo o mesmo prédio a Carlos, procedendo este ao

registo da sua aquisição, sem que o António o fizesse antes, então o Carlos poderia opor ao

António o registo para ficar ele com o prédio. É que, quando adquiriu o prédio, por imposição do

princípio da publicidade, tudo se passou como se o Bernardo fosse o dono do mesmo. Resta a

António exigir uma indemnização a Bernardo por ter alienado o prédio que lhe havia vendido a

ele.

Ou seja, relativamente a terceiros os títulos sujeitos a registo só produzem efeitos desde que são

efectivamente registados (art. 951º do Código Civil de Seabra)236

.

Este regime manteve-se inalterado após a entrada em vigor do Código Civil Português de 1966237

(que veio substituir o Código de Seabra), conforme resulta dos arts. 2º. 7º, nº 1, e 9º, nº 1, do

Código de Registo Predial Português de 1967, aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28-3-

1967238

.

Os terceiros de boa fé, com o título de aquisição do seu direito devidamente registado,

beneficiavam ainda de protecção no caso de declaração de nulidade ou anulação do negócio

jurídico respeitante ao bem imóvel por si adquirido e registado, celebrado antes da sua aquisição,

nos termos do art. 291º, nº 1, do Código Civil Português de 1966239

. Por exemplo, se Bernardo

236

Veja-se José Dias Ferreira, in “Codigo Civil Portuguez Anotado”, vol. II, Lisboa, 1870, pág. 388. O art. 1549º do mesmo Código Civil de Seabra determinava igualmente, a propósito da compra e venda, que “em relação a terceiro, a venda, sendo de bens immobiliarios, só produzirá effeito, desde que for registada”. 237

Aprovado pelo Decreto-Lei nº 47 344, de 25 de Novembro de 1966, e tornado aplicável nas então províncias ultramarinas (designadamente em Timor-Leste), a partir de 1 de Janeiro de 1968, conforme o art. 2º, nº 1, da Portaria do Ministério do Ultramar nº 22.869, de 4-9-1967. 238

Alterado pelo Decreto-Lei nº 49.053, de 12-6-1969. 239

Artigo 291º (Inoponibilidade da nulidade e da anulação) “1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio

jurídico que respeite a bens imóveis, ou a bens móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre

os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção

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viesse invocar a nulidade de contrato, ou anulação de contrato de compra e venda que celebrara

com António, se este já tivesse vendido a Carlos, que desconhecia o alegado vício, tendo

adquirido o bem com case no que constava do registo, a declaração de nulidade ou a anulação do

primeiro negócio não prejudicaria o seu direito, sem prejuízo do disposto no nº 2 do referido

artigo.

Nos termos do art. 8º do aludido Código de Registo Predial Português de 1967, o registo

definitivo constituía presunção de que o direito definitivamente registado pertencia à pessoa em

nome da qual estava registado.

O CCI, como já se viu, vai ainda mais longe, impondo o efeito constitutivo do registo e exigindo

certidão do registo da venda ou outro tipo de transmissão ou constituição de ónus ou encargos

sobre imóveis, para prova dos mesmos (art. 617º)240

.

Conforme disposto do art. 23º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia, o direito de propriedade (hak

milik), toda e qualquer transferência afectando tal direito, a anulação (ou declaração de nulidade)

do mesmo a constituição de ónus sobre o direito tem que ser registado241

.

de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de

terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à

conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição

desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.

240 Nos termos do art. 578º, nº 1, do CPC, “Quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento

autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro

documento que não seja de força probatória superior”.

241 “Hak milik, demikian pula setiap peralihan, hapusnya dan pembebanannya dengan hak-hak lain harus

didaftarkan menurut ketentuan-ketentuan yang dimaksud dalam pasal 19” (na versão em ingles, “A hak milik,

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132

A Lei Agrária Indonésia sem referir a presunção, vem dizer que o registo serve como “forte meio

(ou ‘instrument’) de prova” (art. 23º, nº 2)242

.

De acordo com o estabelecido no art. 2º, als. g) e h), do Decreto Lei nº 12/2008, de 30 de Abril

(Estatuto Orgânico do Ministério da Justiça), são atribuições do Ministério da Justiça: organizar

e prestar serviços de administração e cadastro de bens imóveis em todo o território nacional e

promover as medidas de implementação necessárias à gestão do património imobiliano do

Estado e estabelecer e garantir os serviços de registo e de notariado243

.

IV. Função social (questão da nacionalidade)

Nos termos do art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL, a propriedade privada não deve ser usada

em prejuízo da sua função social.

A este propósito refere-se no preâmbulo da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (Regime Jurídico dos

Bens Imóveis) “a Constituição da República Democrática de Timor-Leste estabelece, no seu

every transfer affecting a hak milik, the nullification of a hak milik, and the encumbering of a hak milik with other

rights must be registered in accordance with the provisions referred to in Article 19”).

242 “Pendaftaran termaksud dalam ayat (1) merupakan alat pembuktian yang kuat mengenai hapusnya hak milik

serta sahnya peralihan dan pembebanan hak tersebut” (na versão em ingles, “The registration referred to in

paragraph (1) shall serve as a strong instrument of evidence concerning the nullification of a hak milik and

concerning the validity of the transfers and encumbrances affecting the said right”).

243 Sobre a situação actual veja-se o Relatório da missão de trabalho em timor-leste de equipa técnica do Instituto

dos Registos e do Notariado do Ministério da Justiça de Portugal, elaborado no âmbito do Acordo Bilateral de

cooperacão entre os Ministérios da Justiça de Timor-Leste e de Portugal.

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artigo 54°, os princípios gerais relativos à propriedade privada, reconhecendo inequivocamente

esse direito e referindo que ela deve ter uma função social e que só cidadãos nacionais têm

direito à propriedade privada da terra.

Embora no CCI não se encontre igualmente norma expressando claramente a função social dos

direitos reais, esta encontra-se fortemente vincada na Lei Agrária Indonésia de 1960, que lhe

atribui carácter verdadeiramente “sagrado”244

. Assim, encontra-se expressamente consagrado no

art. 6º da Lei a função social dos direitos sobre a terra245

.

Manifestação desta função social do direito de propriedade encontra-se no nº 4 do mencionado

art. 54º da Constituição, ao preceituar que só os cidadãos nacionais têm direito à propriedade

privada da terra.

A questão da exigência da nacionalidade para a titularidade do direito de propriedade plena

vigorava já no território nacional, por aplicação dos arts. 9º, nº 1, e 21º, nº 1, da Lei Agrária

Indonésia, devidamente adaptada à RDTL246247248

.

244

Art. 1º, nº 2 (“Seluruh bumi, air dan ruang angkasa, termasuk kekayaan alam yang terkandung didalamnya

dalam wilayah Republik Indonesia, sebagai karunia Tuhan Yang Maha Esa adalah bumi, air dan ruang angkasa

bangsa Indonesia dan merupakan kekayaan nasional”, ou, na versão em ingles, “All the earth, water, and airspace,

including the natural resources contained therein, which exist within the territory of the Republic of Indonesia as

gifts from the Only One God, are the Indonesian nation’s earth, water, and airspace and constitute the nation’s

wealth”).

245 “Semua hak atas tanah mempunyai fungsi social” (“All land rights have a social function”).

246 Os expatriados podem apenas ser titulares do direito de uso, conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re

Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs, ponto II (5) (Orang-orang asing dapat

mempunyai tanah dengan hak pakai yang luasnya terbatas) (“Expatriates can only have a hak pakai (right of use) to

land of limited dimensions”).

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134

Como consequência, encontram-se os Tribunais impedidos de julgar acções judiciais no sentido

de ser reconhecido o direito de propriedade a um cidadão estrangeiro.

O Tribunal de Recurso tem entendido que não se trata de saber se quem invoca o direito de

propriedade possui ou não documento de identificação emitido pelas autoridades de Timor-Leste,

o que apenas será necessário para a nacionalidade adquirida, mas apenas se preenche os

requisitos legais para poder invocar a nacionalidade originária, conforme disposto nos arts. 3º, nº

2 e nº 3, da Constituição, e no art. 8º, nº 1 e 2, da Lei da Nacionalidade (Lei nº 9/2002)249

.

A questão da nacionalidade de quem invoca o direito de propriedade é considerada condição para

a procedência da pretensão, e não um pressuposto processual250251

.

No acórdão de 2-2-2010, processo nº 07/2009, o Tribunal de Recurso concluiu ser possível a

titularidade do direito de propriedade sobre um imóvel a cidadãos estrangeiros desde que casados

com um nacional timorense, na condição de tal imóvel estar abrangido pela comunhão de bens

resultante do casamento252253

.

247

Assim, a questão coloca-se hoje relativamente aos cidadãos indonésios (os quais podiam ser proprietários de bens imóveis no território de Timor-Leste antes da independência nacional e deixaram agora de ter tal possibilidade). 248 Com relevância sobre este assunto veja-se ainda o Regulamento da UNATET nº 2000/27, sobre a proibição

temporária de transacções de terras em Timor-Leste por cidadãos indonésios não habitualmente residentes em

Timor-Leste e por empresas indonésias.

249 Acórdãos do TR de 10-3-2010, processo nº 23/2001, e processo nº 12/2009, relator José Luís da Goia.

250 Acórdãos do TR de 10-3-2010, processo nº 23/2001, e processo nº 12/2009, relator José Luís da Goia.

251 Tratando-se de condição para a procedência da pretensão, e não mero facto impeditivo do direito, o respectivo

ónus de prova impende sobre quem invoca o direito e não sobre a parte contrária (art. 510º, nº 1, do CPC). 252

Escreveu-se em tal acórdão (relator José Luís da Goia) “embora o autor não possa ele mesmo ser titular do direito de propriedade sobre o terreno dos autos, nada obsta a que se considere o direito adquirido pela sua mulher através do casamento com o autor. É certo que o autor beneficia indirectamente de tal direito da cidadã

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No acórdão de 16-6-2009, processo nº 06/2003254

, o Tribunal de Recurso decidiu que “o art. 54º,

nº 4, da CRDTL (…) dispõe sobre a propriedade privada da terra e não quanto à posse ou

propriedade do prédio nela incorporado”, o que permite a conclusão que a aludida proibição não

tem aplicação aos casos de prédios urbanos. Com todo o respeito discordo de tal posição, embora

possa parecer ser esse o entendimento que resulta ainda da Lei Agrária Indonésia.

Efectivamente, a construção ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência

constitui parte integrante do imóvel255

.

Sendo assim, quer a construção, quer o solo onde a mesma é implantada perdem a sua

individualidade e passa a ser coisa única. Daí que se conclua que o prédio ainda está abrangido

pela proibição da norma constitucional, uma vez que ele inclui o terreno onde foi implantado.

Por outro lado, como se verá, se os cidadãos estrangeiros não podem ser titulares do direito de

superfície, sobre prédios urbanos, ou seja edifícios256

, por maioria da razão, não podem ser

titulares do direito de propriedade sobre o mesmo tipo de bens.

Relativamente às pessoas colectivas, nomeadamente sociedades comerciais, resulta do art. 21º, nº

2, que a possibilidade de aquisição do direito de propriedade, ainda que para sociedades

constituídas exclusivamente por pessoas singulares nacionais, está dependente de

nacional sua mulher, por força do mesmo regime. Porém, o direito passa a pertencer a esta, pelo que nunca o autor poderá beneficiar do direito de propriedade, por exemplo, em caso de divórcio”. 253

Contrariamente ao que se escreveu, por manifesto lapso, em tal acórdão, nos termos do art. 35º da Lei Indonésia nº 1/74, o regime supletivo de bens no casamento é o regime de comunhão de adquiridos, pelo que, salvo convenção antenupcial que estabeleça outro regime, só pode haver comunhão (e a doutrina exposta no acórdão só é válida) para os casos em que os bens são adquiridos durante o casamento. 254

Relator José Luís da Goia. 255

Vejam-se os arts. 195º, nº 3, do projecto do novo C. Civil e 500º do CCI. 256

Art. 36º, nº 1, da Lei Agrária de 1960 (UUPA).

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regulamentação governamental, de determinação do governo ou de acto administrativo (art. 22º,

nº 2)257258

.

Importa ainda considerar que, nos termos do art, 1º, al a), do Regulamento nº 2000/27 da

UNTAET, qualquer contrato ou acordo celebrado por um cidadão da Indonésia que

habitualmente não resida em Timor Leste para vender qualquer interesse ou direito relativo a

terra no território de Timor Leste, não produz qualquer efeito.

“A ‘ratio legis’ do Regulamento em questão afigura-se evidente. Tratava-se então de impedir que

257

Conforme Elucidation of Act No. 5 of 1960 Re Basic Provisions Concerning The Fundamentals of Agrarian Affairs,

ponto II (5) (Demikian juga pada dasarnya badan-badan hukum tidak dapat mempunyai hak milik (pasal 21 ayat 2).

Adapun pertimbangan untuk (pada dasarnya) melarang badan-badan hukum mempunyai hak milik atas tanah,

ialah karena badan-badan hukum tidak perlu mempunyai hak milik tetapi cukup hak-hak lainnya, asal saja ada

jaminan-jaminan yang cukup bagi keperluan-keperluannya yang khusus (hak guna-usaha, hak gunabangunan, hak

pakai menurut pasal 28, 35 dan 41) (“corporate bodies basically cannot have a right of ownership [Article 21(2)] on

the consideration that that corporate bodies do not need to have a right of ownership but another right will do for

them as long as it is equipped with an adequate guarantee for the fulfillment of their specific requirements (e.g.

hak guna-usaha, hak guna-bangunan, or hak pakai according to Articles 28, 35, and 41)”).

258 Contra parece pronunciar-se o Relatório Sobre os Resultados de Pesquisa, Recomendações Políticas

para a Lei Sobre os Direitos de Terra e Restituição de Título, Programa de Legislação de Terras Apoiado pelo USAID, Julho 2004, embora entenda ser desejável clarificação legislativa, nos termos do qual “o artigo 54, parágrafo 4 do Constituição não excluiria pessoas jurídicas ou sociedades comerciais de Timor-Leste. Este ponto de vista é compartilhado por aqueles oficiais seniores do governo e membros do parlamento que foram consultados pelo LLP, assim como os participantes na mesa redonda do dia 30 de Junho de 2004 sobre direitos de terras. Praticamente todos os grupos de trabalho na mesa redonda concordaram que as entidades legais de Timor-Leste devem ser intituladas a propriedade perfeita. As seguintes sugestões foram feitas nesta consideração: As sociedades comerciais Timorenses e outras pessoas jurídicas devem ter direito a possuir terra. A Lei deve esclarecer a definição de `nacionais´ e `cidadãos´. A nacionalidade de Timor-Leste numa sociedade comercial deve ser determinada por um capital mínimo (de 50-60%) empreendido por pessoas de Timor-Leste. Isto permitiria a participação de investidores estrangeiros em sociedades comerciais de Timor-Leste. Se uma sociedade comercial declara falência, toda a terra que for possuída por ela deve reverter para o estado”. Afigura-se, porém, como vem sendo comum, que este entendimento ignora o sistema jurídico existente no momento em Timor-Leste, como seja a aludida Lei Agrária (que é legislação nacional timorense), e que regula de forma que se afigura clara esta matéria.

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nacionais indonésios, sem qualquer ligação a Timor Leste, pudessem beneficiar da situação de

ocupação do território que se verificava antes da independência. A referência a cidadãos da

Indonésia não habitualmente residentes em Timor Leste tem precisamente esse significado.

Assim, a venda de imóveis por cidadãos da Indonésia que habitualmente residissem em Timor

Leste já não se encontra abrangida pela cominação prevista no referido art. 1º do Regulamento

em causa” (acórdão do Tribunal de Recurso de 10-3-2010, processo nº 12/2009, relator José Luís

da Goia)259

.

A Lei Agrária Indonésia (UUPA), como já se viu, vai ainda mais longe, ao impedir a aquisição

(ou titularidade) do direito de superfície, quer sobre terreno agrícola, quer sobre prédio urbano a

pessoas singulares que não sejam nacionais, ou mesmo a pessoas colectivas (nomeadamente

sociedades comerciais) que não estejam reconhecidas segundo a legislação nacional, ou

domiciliadas em território nacional260

.

A questão que se coloca consiste em saber se esta condição também terá aplicação na RDTL,

face à redacção menos restritiva da própria Constituição. Ou seja, se a legislação ordinária

indonésia, recebida no sistema jurídico nacional, pode estabelecer restrições à titularidade de

direitos ainda mais amplas que aquela que resulta do texto constitucional.

259

Decidiu-se ainda no mesmo acórdão que “tratando-se de facto impeditivo do direito invocado pelo autor, impende sobre o réu o ónus de prova da verificação dos requisitos constantes do referido Regulamento, nos termos do art. 510º, nº 2, do CPC”. 260 Arts. 30º, nº 1, (Yang dapat mempunyai hak guna-usaha ialah. a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang

didirikan menurut hukum Indonesia dan berkedudukan di Indonesia) e 36º, nº 1 (Yang dapat mempunyai hak guna-

bangunan ialah a. warga-negara Indonesia; b. badan hukum yang didirikan menurut hukum Indonesia dan

berkedudukan di Indonesia) (na versão em inglês “Those eligible for a hak guna … are as follows: a. Indonesian

citizens, and b. bodies corporate incorporated under Indonesian law and domiciled in Indonesia”).

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Afigura-se que a resposta terá que ser positiva. Efectivamente, a Constituição estabelece

expressamente que “Todo o indivíduo tem direito a propriedade privada, podendo transmiti-la

em vida e por morte, nos termos da lei”261

. Sendo assim, a Lei Fundamental acolhe as restrições

constantes da Lei ordinária relativas à limitação da titularidade do direito de propriedade,

nomeadamente da lei que já existia anteriormente e que a Constituição acolheu262

, como a

aludida Lei Agrária Indonésia (UUPA).

Ora, se o titular do direito de propriedade só pode dele dispor nos termos da lei, então a

disposição dos direitos reais menores sobre os imóveis, como seja o direito de superfície,

também não podem ser constituídos contra a disposição legal supra referida, pelo que os

cidadãos estrangeiros e as pessoas colectivas (nomeadamente sociedades comerciais) que não

estejam reconhecidas segundo a legislação nacional, ou domiciliadas em território nacional não

podem sequer ser titulares daquele direito263264

.

Com esta questão está ainda relacionada a do direito de propriedade, uso e posse útil das terras,

que, nos termos do art. 141º da Constituição serão regulados por lei.

261

Art. 54º, nº 1. 262

Art. 165º. 263

O que pode ter sérias reprecurssões ao nível do investimento estrangeiro, tão necessário no estado actual de construção do novo país da RDTL. Efectivamente, fica vedado o uso do mecanismo legal mais adequado para a hipótese de alguém construir nomeadamente infraestruturas turisticas ou de outra natureza, uma vez que os restantes mecanismos jurídicos não asseguram de forma tão eficaz a possibilildade de uso das mesmas pelo período mínimo necessário à recuperação do investimento feito. 264

Porém, o art. 55º, nº 2, da Lei Agrária (UUPA), prevê a possibilidade de, excepcionalmente, o Estado poder conceder o direito de superfície sobre bens do seu domínio a empresas estrangeiras, que não preencham os requisitos dos aludisos arts. 30º, nº 1, e 36º, nº 1, desde que tal seja considerado necessário no acto que o autoriza (Hak guna-usaha dan hak guna-bangunan hanya terbuka kemungkinannya untuk diberikan kepada badan-badan hukum yang untuk sebagian atau seluruhnya bermodal asing, jika hal itu diperlukan oleh Undang-undang yang mengatur pembangunan nasional semesta berencana) (na versão em inglês, “The possibility for the granting of a hak guna-usaha and hak guna-bangunan to corporate bodies whose capital is partly or wholly foreign is open only in the case where it is deemed necessary to grant such rights to such corporate bodies in the light of an act which regulates pembangunan nasional semesta berencana (well-planned total, national development)”).

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V. As coisas

Diz-se coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas265

.

Consideram-se fora do comércio jurídico todas as coisas que não podem ser objecto de direitos

privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza,

insusceptíveis de apropriação individual (art. 193º, nº 2, do projecto do novo Código Civil).

Vejam-se os arts. 519º a 526º do CCI.

As coisas são imóveis ou móveis, simples ou compostas, fungíveis ou não fungíveis,

consumíveis ou não consumíveis, divisíveis ou indivisíveis, principais ou acessórias, presentes

ou futuras (art. 194º do projecto do novo Código Civil)266

.

São coisas imóveis os prédios rústicos e urbanos, as águas, as árvores, os arbustos e os frutos

naturais, enquanto estiverem ligados ao solo, os direitos inerentes aos imóveis e as partes

integrantes dos prédios rústicos e urbanos (art. 195º, nº 1, do projecto do novo Código Civil)267

.

265

Art. 193º, nº 1, do projecto do novo C. Civil. Para o CCI são coisas os bens ou direitos que podem ser objecto de propriedade (art. 499º). Vejam-se igualmente os arts. 527º e 528º do CCI. 266

Para o CCI as coisas são tangíveis ou não tangíveis (art. 503º) e móveis ou imóveis (art. 504º). Os bens móveis podem ainda dividir-se em consumíveis e não consumíveis, definindo-se os consumíveis como aqueles que desaparecem devido ao uso (art. 505º). 267

Vejam-se os arts. 500º e 506º a 508º do CCI. Particularmente significativa é a descrição constante dos arts. 506º e 507º do CCI, da qual resulta evidente, por um lado, o princípio da ligação ao solo como distintivo da classificação do bem como imóvel, por outro lado, o princípio da universalidade de certas coisas, como sejam as fábricas, que, por serem imóveis (devido ao facto de estarem instaladas em construções permanentemente fixadas no solo) transmitem tal qualidade de bem imóvel aos bens móveis que as equipam.

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140

Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que

não tenham autonomia económica268269

.

São partes componentes dos prédios rústicos as construções que não tenham autonomia

económica, tais como as adegas, os celeiros, as construções destinadas às alfaias agrícolas.

O prédio rústico abrange também o espaço aéreo e o subsolo correspondentes. Nos termos do art

1266º, nº 1, do projecto do novo Código Civil, a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo

correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja

desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. Igual é a redacção do art. 571º do CCI e, de

forma ainda mais impressiva, o art. 4º, nº 2, da Lei Agrária Indonésia270

.

Entende-se por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo com os terrenos que lhe

sirvam de logradouro (art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil). Edifício incorporado é

aquele que se encontra unido ou ligado ao solo, fixado nele com carácter de permanência por

alicerces, colunas, estacas ou qualquer outro meio271

. Uma casa desmontável não é prédio

urbano.

268

Art. 195º, nº 2, do projecto do novo Código Civil. 269

O CCI não estabelece a distinção entre prédios rústicos e prédios urbanos. 270 “Hak-hak atas tanah yang dimaksud dalam ayat (1) pasal ini member wewenang untuk mempergunakan tanah

yang bersangkutan, demikian pula tubuh bumi dan air serta ruang yang ada diatasnya, sekedar diperlukan untuk

kepentingan yang langsung berhubungan dengan penggunaan tanah itu dalam batas-batas menurut Undang-

undang ini dan peraturan-peraturan hukum lain yang lebih tinggi” (na versão em inglês, “The land rights referred

to in paragraph (1) of this article confers authority to use the land in question as well as the mass of the earth and

the water existing under its surface and the space above it to a point which is essentially required to allow for the

fulfillment of the interests that are directly related to the use of the land in question, such a point being within the

limits imposed by this Act and by other legislation of higher levels”.

271 Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 23.

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Integram o prédio urbano os pátios ou os quintais dos edifícios272

.

É parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de

permanência273

. São partes integrantes dos prédios rústicos os muros de vedação ou os engenhos

para tirar água. São partes integrantes dos prédios urbanos as instalações eléctricas ou os pára-

raios e os elevadores.

Para o projecto do novo Código Civil (art. 196º, nº 1) são móveis todas as restantes coisas, ou

seja, a definição de coisa móvel acha-se por exclusão de partes. Serão móveis as coisas que não

sejam caracterizadas pela lei como imóveis. Por exemplo, a energia eléctrica é coisa móvel e,

como tal, a sua subtracção fraudulenta integra o crime de furto.

Nos termos do CCI, são coisas móveis aquelas que são movíveis ou podem ser movidas (art.

509º CCI)274

. A base da distinção entre coisas móveis e imóveis é a circunstância de poderem ou

não ser transportadas de um para outro lugar sem se deteriorarem.

Importa aqui fazer uma breve referência às benfeitorias, incluídas no mesmo subtítulo II do

anteprojecto do novo Código Civil, que trata “das coisas” e que aqui temos estado a analisar.

O CCI não contém uma definição legal de benfeitorias, nem as caracteriza, sendo certo, porém,

que se refere às mesmas em várias situações relativas aos direitos reais sobre imóveis. Assim, o

direito do possuidor, quer se encontre de boa-fé ou de má-fé, a indemnização por benfeitorias

272

Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 131. 273

Art. 195º, nº 3, do projecto do novo Código Civil e 500º do CCI. 274

Nos arts. 509º a 518º do CCI encontramos depois a descrição de várias coisas concretas que o Código considera como móveis. Esta descrição não deve, porém, ser considerada taxativa, podendo obviamente existir inúmeras outras coisas móveis, para além das descritas nas referidas disposições legais.

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necessárias realizadas no imóvel que possuía no caso de ter de o entregar ao seu proprietário

(arts. 575º e 579º do CCI)275276

.

Para o do projecto do novo Código Civil consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para

conservar ou melhorar a coisa (art. 207º, nº 1). Assim, constituem benfeitorias não só as obras

necessárias à conservação da coisa, como pintar, substituir telhado danificado, substituir janelas

quebradas, mas também todas as obras que melhorem o prédio, como a construção de casas de

banho em casas onde não existiam, ou a construção de uma piscina.

As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias (art. 207º, nº 2, do projecto do novo Código

Civil).

São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da

coisa (art. 207º, nº 3, do projecto do novo C. Civil). Assim, por exemplo: a substituição de um

telhado que tenha as telhas partidas (se o telhado não for substituído não só não se pode usar

devidamente a casa, como a entrada da água das chuvas vai estragar todo o imóvel); a

substituição de janelas com a madeira apodrecida ou vidros partidos, a reconstrução de uma

parede que, pela acção do tempo ameaça ruir.

São benfeitorias úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam,

todavia, o valor (art. 207º, nº 3, do projecto do novo Código Civil). Assim, por exemplo: a

construção de casa de banho numa casa que não tinha (trata-se de um melhoramento que

beneficia o uso da casa e, consequentemente, aumenta o seu valor); a colocação de um sistema

central de ar condicionado; etc.. Já se podem colocar dúvidas relativamente à construção de uma

275

Na versão em inglês “expenditures necessary for the maintenance and benefit of the assets”. 276

O CCI apenas exclui o direito a indemnização por benfeitorias necessárias ao possuidor que tenha adquirido a posse por meios violentos (art. 580º).

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piscina (porém, se da mesma resultar um aumento considerável do valor do imóvel pode a

mesma considerar-se benfeitoria útil).

São benfeitorias voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe

aumentando o valor, servem apenas para o recreio do benfeitoriante (art. 207º, nº 3, do projecto

do novo Código Civil). Será o caso de alguém que gosta de ter peixes em casa e constrói um lago

para ter peixes no logradouro da casa, da colocação de estátuas dispendiosas num jardim, etc..

Como já se referiu o CCI não contém o mesmo tipo de definição expresso de benfeitorias.

Porém, pode surpreender-se claramente a distinção entre as reparações necessárias à manutenção

do imóvel277

(benfeitorias necessárias) (art. 578º), reparações no interesse do imóvel278

(art.

578º) e reparações para utilidade e melhoramento da aparência do imóvel279

(art. 581º do

CCI)280

.

Por outro lado o CCI estabelece ainda uma distinção entre reparações para o fim de manutenção

e as reparações maiores no art. 793º e estas últimas estão exemplificadas no art. 794º, ambos do

CCI281

.

277

Na versão em inglês “expenses for the maintenance of the assets”. 278

Na versão em inglês “expenses for the interest of the assets”. 279

Na versão em inglês “expenses in respect of utility and improvement in appearance”. 280

Importa considerar, contudo, que as reparações para melhorar a utilidade do imóvel podem integrar o conceito de benfeitorias úteis do projecto do novo Código Civil. 281

Na versão em inglês “Major repairs include the following: repairs to big walls and arched roofs; repairs to beams and entire roofs; the total repair of dikes, wharf's, plastered waterworks, including supporting and boundary walls. All other repairs shall be regarded as regular maintenance”.

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CAPÍTULO II – POSSE

I. Definição

Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do

direito de propriedade ou de outro direito real (art. 1171º do projecto do novo Código Civil)282283

,

ou seja, a posse é interpretada como a detenção ou uso de bens que um indivíduo, por si ou

através de outra pessoa, tem em seu poder, como se tivesse o correspondente direito (art. 529º do

CCI)284285

.

A posse pode coincidir com o direito respectivo (posse causal). Por exemplo, o proprietário de

uma casa que nela reside é simultaneamente possuidor e proprietário. Igualmente no caso de o

proprietário ter a casa arrendada e receber as rendas correspondentes, é proprietário e possuidor,

uma vez que o arrendatário é mero detentor, o proprietário exerce a posse por intermédio deste.

Porém, a posse pode não coincidir com o direito respectivo (posse formal). Por exemplo, um

lavrador que começa a cultivar o terreno vizinho, fazendo-o de forma reiterada, sem qualquer

autorização do respectivo proprietário, afirmando a sua intenção e se comportar como dono do

282

Trata-se de redacção identica há do art. 1251º do C. Civil Português de 1966, que vigorou em Timor Leste até à implementação do regime jurídico indonésio. 283

No mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real). 284

“Yang dimaksudkan kedudukan Berkuasa ialah, kedudukan seseorang suatu kebendaan, baik dengan diri sendiri, maupun dengan perantaraan orang lain, dan yang mempertahankan atau menikmatinya selaku orang yang memiliki kebendaan itu” (na versão em inglês, “Possession is interpreted as the holding or enjoyment of assets, which an individual, either in person or through another person, has within his power, as if he has actual title thereto”). 285

Já o Código Civil de Seabra continha uma concepção mais abrangente, incluindo na sua definição aqueles que se passaram a considerar-se meros detentores, conforme art. 474º (“diz-se posse a retenção ou fruição de qualquer cousa ou direito”). Porém, logo acrescenta no seu § 1º que “os actos facultativos ou de mera tolerância não constituem posse”. Também o CCI parace refletir a possibilidade de definição da mera detenção como posse (posse imediata), no seu art. 1959º.

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terreno, colhendo os frutos, o direito de propriedade continua a ser do dono, mas a posse passou

a ser exercida pelo aludido vizinho. Da mesma forma, alguém que tenha furtado ou achado um

objecto que pertença a outra pessoa passa a exercer a posse sobre tal objecto, que continua a

pertencer a outro. Ainda no caso de alguém adquirir por contrato um prédio de uma pessoa que

não é seu proprietário e passa a ocupar o mesmo, em consequência de tal contrato, passa a

exercer a posse, mas o prédio continua a pertencer a outra pessoa.

Os bens de domínio público não podem ser objecto de posse, uma vez que se encontram

excluídos do comércio jurídico (art. 193º, nº 2, do projecto de C. Civil)286

. Vejam-se os arts. 537º

e 520º a 525º do CCI.

II. Elementos da posse

a) Considerações gerais

A posse é caracterizada por dois elementos, o “corpus” ou domínio de facto sobre a coisa,

traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse

exercício, e o “animus”, consubstanciado na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular,

o direito real correspondente àquele domínio287

.

Elemento material – “corpus” – que se traduz nos actos materiais praticados sobre a coisa, com o

exercício de certos poderes sobre a coisa (art. 529º do CCI).

286

Contra, para as situações em que “um sujeito exerce uma actuação correspondente a um direito que englobe poderes de facto sobre uma coisa e a lei não exclua essa consequência”, José de Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 70-71. 287

Art. 1173º do projecto do novo C. Civil.

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Elemento psicológico – “animus” – que se traduz na intenção de o exercente se comportar como

titular do direito real correspondente aos actos que pratica (art. 538º do CCI)288

.

A relação possessória é relação material permanente e duradoura e daí que os factos que a

integram tenham que ser exercidos de forma a poder concluir-se que aquele que os pratica

pretende exercer sobre a coisa um poder permanente.

Porém, a posse mantém-se enquanto haja a possibilidade de continuar a actuação correspondente

ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o efeito não

implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais (art. 1179º, nº 1, do projecto de C.

Civil e art. 542º do CCI).

b) Posse pessoal ou por intermédio de outrem

A posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem (art. 1172º, nº 1,

do projecto do novo C. Civil e arts. 529º e 540º do CCI)289

.

Em caso de dúvida presume-se que a posse é daquele que exerce o poder de facto (art. 1172º, nº

2, do projecto do novo C. Civil e art. 534º do CCI).

A “presunção” do art. 1172º, nº 2, do projecto do novo C. Civil só funciona em caso de dúvida e

não quando se trate de uma situação definida, que exclui a titularidade do direito invocado. Já o

art. 534º do CCI contém uma verdadeira presunção que deve ser afastada por prova do contrário

288

José de Oliveira Ascensão, ob. cit., págs. 84 e 85. 289

Ainda no mesmo sentido o art. 6º, nº 2, da Lei nº 1/2003, de 10 de Março (posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real, podendo a posse ser exercida pelo titular do direito ou por intermédio de outrem).

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(art. 518º, nº 1 e 2, do CPC)290

.

A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao direito ou a possibilidade de a

continuar (art. 1177º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 1957º do CCI).

Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1177º, nº 2, do projecto do

novo C. Civil e art. 535º do CCI). Ou seja, no caso de um possuidor consentir o uso da coisa por

outra pessoa, ainda se entende que é o primeiro o possuidor da coisa.

Para além de se presumir que a posse continua em nome de quem a começou, ela mantém-se

enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a

continuar.

c) Sucessão e acessão na posse

Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte,

independentemente da apreensão material da coisa (art. 1176º do projecto do novo C. Civil e art.

541º do CCI).

O projecto do novo C. Civil, não enquadra a sucessão da posse nos meios de aquisição de posse

(art. 1183º do projecto do novo C. Civil). Estamos perante uma demonstração do princípio de

que a posse não depende da apreensão material da coisa. “Os herdeiros têm posse

independentemente do conhecimento da morte do “de cujus”, ou do facto designativo, ou até da

existência do bem. Quer dizer que aqui, mesmo sem “corpus” nem “animus”, a lei atribui aos

290

Veja-se ainda o disposto no art. 1174º do projecto do novo C. Civil (arts. 529º e 540º do CCI).

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herdeiros a protecção possessória”291

.

A posse do sucessor forma um todo com a do “de cujus”, havendo só alteração subjectiva292

.

Aquele que houver sucedido na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode

juntar à sua a posse do antecessor (art. 1177º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts. 543º e

1958º do CCI).

Se, porém, a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se

dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (art. 1177º, nº 2, do projecto do novo C.

Civil). Assim, por exemplo, se a posse do antecessor for de má fé, o sucessor só poderá invocar a

acessão da posse, ou seja, a posse desde o início por parte daquele, com as mesmas

características de má fé. Se o sucessor passou a usufruir o bem de boa fé, então só poderá invocar

tal característica da posse a partir do momento em que suceder na mesma.

Ao distinguir a sucessão por morte da acessão na posse por transmissão entre vivos,

considerando que na primeira o sucessor passa a ocupar o lugar do de cujus mantendo a posse

exactamente as mesmas características, o legislador terá querido retirar esta possibilidade ao

sucessor. Ou seja, se a posse do de cujus era de má fé, esta característica mantém-se após a

transmissão, não podendo o sucessor invocar a sua ignorância de violação do direito de outrem (a

boa fé)293

.

d) Posse precária

291

José de Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 78. 292

Henrique Mesquita, in “Direitos Reais”, Coimbra, 1984, pág. 103. 293

Aliás, como se viu, a sucessão opera automaticamente, não precisando o sucessor sequer de invocar a posse do de cujus que se mantém na mesma.

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São havidos como meros detentores ou possuidores precários:

- os que exercem o poder de facto sobre a coisa, mas sem intenção de agir como beneficiários do

direito;

- os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

- os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em

nome de outrem (art. 1173º do projecto do novo C. Civil e art. 1959º do CCI). Veja-se ainda o

art. 556º do CCI.

Na simples detenção ou posse precária, o sujeito exerce os poderes correspondentes ao direito

(“corpus”) mas não os exerce como se fora titular dele (“animus”) e, por isso, este estado de

coisas, por mais tempo que dure, não pode conduzir à aquisição do direito, de que o interessado

não se apresenta como beneficiário294

.

Actos de mera tolerância: trata-se de actos praticados com o consentimento, expresso ou tácito,

do titular do direito real mas sem que este pretenda atribuir um direito ao beneficiário. Com a sua

tolerância o titular do direito apenas quer significar que não fará oposição, que não reagirá contra

os actos incompatíveis ou contrastantes do seu direito. Mas não quer limitar este: o seu direito

conserva toda a licitude de onde deriva que o autor da tolerância se reserva a faculdade de, em

qualquer momento, pôr fim à actividade tolerada295

.

294

Galvão Telles, in “O Direito”, ano 121, Coimbra, 1989 (Janeiro-Março), pág. 650. 295

Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 70.

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III. Caracteres da posse

A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou

oculta – art. 1178º do projecto do novo C. Civil. A posse pode ser de boa fé ou de má fé (art.

541º do CCI).

a) Posse titulada e posse não titulada

Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer

do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico (art. 1179º, nº 1, do

projecto do novo C. Civil e art. 1964º do CCI). A existência do título pressupõe a transmissão da

posse, pelo que só pode ocorrer posse titulada nos casos de aquisição derivada da mesma.

O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca (art.

1179º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)296

.

Contrariamente ao que acontece com os vícios de natureza substantiva, nomeadamente a falta do

direito de quem declarou transmitir o mesmo, ou vícios substanciais do negócio, os vícios

formais, nomeadamente a falta de escritura pública, quando a mesma é exigida, conduzem à falta

de título297

.

O número um do artigo 1179º do projecto do novo C. Civil esclarece que nem a falta do direito

do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio jurídico excluem o título. “A

contrario”, temos de admitir que a falta de validade formal impede que se fale de título298

. Isto é

296

Art. 510º, nº 1, do CPC. 297

Art. 1964º do CCI. 298

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 96.

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o que resulta expressamente do disposto no art. 1964º do CCI.

Assim, a posse titulada relativa ao direito de propriedade, ou qualquer outro direito enunciado no

617º do CCI, só pode ser provada mediante a apresentação de certidão de escritura pública da

qual resulte a mesma, uma vez que só por esta forma o direito se poderia adquirir299

. Se a posse

só é titulada se for adquirida mediante título formalmente válido, quem não apresentar certidão

da escritura pública não pode invocar a posse titulada.

Ou seja, a posse relativa a um direito de propriedade resultante da “aquisição” por mero escrito

particular (que não escritura pública), é posse não titulada.

Mas a posse resultante da “aquisição” por escritura pública, ainda que possa ser anulada por

incapacidade, erro, dolo, ou coação, ou mesmo por a coisa pertencer a outra pessoa diversa do

“vendedor”, é posse titulada300

.

b) Posse de boa fé e posse de má fé

A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de

outrem (art. 1180º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 531º do CCI).

A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé (art. 1180º, nº 2, do projecto do

novo C. Civil).

Já para o CCI a posse presume-se sempre de boa fé, impendendo o ónus de prova da má fé sobre

299

Art. 578º, nº 1, do CPC. 300

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 199.

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quem a alega (arts. 533º e 1965º)301

. Será suficiente se a boa fé existir aquando da aquisição da

posse (art. 1966º do CCI).

A posse adquirida por violência é sempre considerada de má fé, mesmo quando seja titulada (art.

1180º, nº 3, do projecto do novo C. Civil)302

.

A posse é de má fé se o possuidor estava consciente que os bens na sua posse pertenciam a

outrem (art. 532º do CCI).

c) Posse pacífica e posse violenta

Posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art. 1181º, nº 1, do projecto do novo C. Civil).

Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de

coacção moral nos termos do artigo 246º (art. 1181º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)303

.

A violência tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre a própria coisa, nomeadamente

quando adquirida por meio de arrombamento.

A posse que começou violenta será violenta para sempre, mas já não é violenta a posse que

começou sem coacção (física ou moral), muito embora a sua subsistência resulte de violência

301

Conforme os arts. 512º, nº 1, e 518º, nº 1 e 2, do CPC. 302

Embora o CCI não o diga expressamente, é evidente que também considera tal posse como de má fé, sendo certo que penalisa severamente o possuidor que tenha obtido a posse com violência, não lhe reconhecendo sequer os direitos que reconheceu ao possuidor de má fé, conforme resulta dos arts. 557º, 563º, 568º e 580º do CCI. 303

Como já se referiu, o CCI não define a posse violenta, mas refere-se a ela em vários dos seus preceitos, retirando ao possuir todos os eventuais direitos resultantes da posse. Afigura-se que têm plena aplicação as considerações doutrinárias expostas a própsito do regime no âmbito do projecto do novo C. Civil.

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repetida (veja-se o art. 536º do CCI)304

. Ou seja, se o possuidor começou a usufruir da coisa de

forma pacífica, sem usar de violência contra ninguém, mas depois se opõe de forma “violenta” a

que o anterior possuidor reassuma os poderes sobre a coisa, a posse não é violenta. Pelo

contrário, se o possuidor ocupou o imóvel de forma violenta, conforme definido supra, mas

depois passa a fruir o bem sem oposição do anterior possuidor, ainda assim a posse é violenta.

d) Posse pública e posse oculta

Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1182º do

projecto do novo C. Civil).

A publicidade derivada da posse limita-se a noticiar, a dar a conhecer ao público, a existência de

um direito real305

.

Posse oculta é definida tendo em atenção, não o momento constitutivo, mas os próprio exercício.

A posse oculta é verdadeira posse, mas é preterida pela melhor posse do possuidor esbulhado306

.

Isto é, aquele que esconde a posse não pode opor a mesma ao possuidor esbulhado ou ao

proprietário, mas já a pode opor a outra pessoa que pretenda impedir a sua posse.

IV. Aquisição da posse

A posse adquire-se:

304

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 100. 305

Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 406. 306

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 101.

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a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do

direito (art. 1183º, al. a), do projecto do novo C. Civil e art. 538º do CCI);

b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor (art. 1183º, al.

b), do projecto do novo C. Civil e art. 543º do CCI);

c) Por constituto possessório (art. 1183º, al. c), do projecto do novo C. Civil e art. 574º do CCI);

d) Por inversão do título da posse (art. 1183º, al. d), do projecto do novo C. Civil e art. 535º do

CCI).

a) Empossamento

Entre outros meios, a posse adquire-se pela prática reiterada, com publicidade dos actos

materiais correspondentes ao exercício do direito. Por outro lado, a aquisição da posse pode ser

originária ou derivada, no primeiro caso por apossamento ou inversão do título e, no segundo,

por tradição, sucessão ou constituto possessório. O apossamento traduz-se na aquisição unilateral

da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja, pela prática reiterada, com

publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito, conforme o referido art.

1183º, al. a), do projecto do C. Civil. Trata-se de uma forma de aquisição originária da posse,

porquanto a mesma não deriva da posse anterior de outra pessoa.

b) Tradição da coisa

A “traditio” consubstancia-se, por seu turno, na transferência voluntária da posse entre vivos, em

regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre

quando há entrega da coisa. Trata-se da forma específica de transferência voluntária da posse

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entre vivos307

.

c) Constituto possessório

Se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa

de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele

continue a deter a coisa (art. 1184º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts. 543º e 574º do

CCI).

Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de

considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar (art.

1184º, nº 2, do projecto do novo C. Civil). Por exemplo, no caso de o proprietário de um prédio

arrendado o transmitir por contrato de compra e venda a outra pessoa, esta não deixa de passar a

ser possuidora do mesmo, se bem que se mantenha o contrato de arrendamento e

consequentemente a detenção do imóvel pelo arrendatário308

.

d) Inversão do título de posse

A inversão do título da posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra aquele em

cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse (art. 1185º do projecto do

novo C. Civil e arts. 1960º e 1961º do CCI). Vejam-se ainda os arts. 535º, 536º e 1959º do CCI.

Qualquer detentor pode adquirir a posse opondo-se ao titular do direito sobre a coisa detida, seja

307

José de Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 114 (“Aí, a transmissão da situação jurídica acompanha a transferência da situação de facto: o antigo possuidor demite-se da sua situação, em que ingressa o novo possuidor. Há então uma entrega”). 308

Conforme art. 988º do projecto do novo C. Civil e art. do CCI.

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qual for a razão da existência da mera detenção309

. A detenção da coisa está condicionada pelo

título que lhe deu origem. Daí a necessidade de inversão do título.

V. Perda da posse

O possuidor perde a posse:

a) Pelo abandono (art. 1187º, nº 1, al. a) do projecto do novo C. Civil e art. 544º do CCI);

b) Pela perda ou destruição material da coisa ou por esta ser posta fora do comércio (art. 1187º,

nº 1, al. b), do projecto do novo C. Civil e art. 545º, nº 2, e 546º do CCI);

c) Pela cedência (art. 1187º, nº 1, al. c), do projecto do novo C. Civil e art. 543º do CCI);

d) Pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver

durado por mais de um ano (art. 1187º, nº 1, al. d), do projecto do novo C. Civil e arts. 545º, nº 1,

e 1978º do CCI).

VI. Efeitos da posse

a) Presunção da titularidade do direito

O possuidor goza da presunção da titularidade do direito excepto se existir, a favor de outrem,

309

Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 667.

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presunção fundada em registo anterior ao início da posse (art. 1188º, nº 1, do projecto do novo C.

Civil e arts. 548º, nº 1, e 549º, nº 1, do CCI).

Esta presunção vale igualmente para a posse de boa fé como para a posse de má fé (arts. 548º, nº

1, e 549º, nº 1, do CCI). Importa aqui lembrar que a posse não titulada se presume de má fé (art.

1180º, nº 2, do projecto de C. Civil).

b) Responsabilidade do possuidor

O possuidor de boa fé só responde pela perda ou deterioração da coisa se tiver procedido com

culpa (art. 1189º do projecto do novo C. Civil e art. 574º do CCI).

O possuidor de má fé responde pela perda ou deterioração da coisa nos termos da

responsabilidade pelo risco por mora do devedor (art. 741º do projecto do novo C. Civil)310

. Ou

seja, o possuidor de má fé é responsável pela perda ou deterioração da coisa, mesmo que estes

factos lhe não sejam imputáveis, a menos que demonstre que os danos sempre teriam ocorrido se

não existisse a sua posse (art. 579º, nº 2, do CCI).

c) Frutos

O possuidor de boa fé faz seus os frutos naturais percebidos até ao dia em que souber que está a

lesar com a sua posse o direito de outrem, e os frutos civis correspondentes ao mesmo período

(art. 1190º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 548º, nº 3, do CCI). Veja-se ainda o art. 575º

do CCI.

310

1. Pelo facto de estar em mora, o devedor torna-se responsável pelo prejuízo que o credor tiver em consequência da perda ou deterioração daquilo que deveria entregar, mesmo que estes factos lhe não sejam imputáveis. 2. Fica, porém, salva ao devedor a possibilidade de provar que o credor teria sofrido igualmente os danos se a obrigação tivesse sido cumprida em tempo.

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Se ao tempo em que cessa a boa fé estiverem pendentes frutos naturais, é o titular obrigado a

indemnizar o possuidor das despesas de cultura, sementes ou matérias-primas e, em geral, de

todas as despesas de produção, desde que não sejam superiores ao valor dos frutos que vierem a

ser colhidos (art. 1190º, nº 2, do projecto do novo C. Civil e art. 576º do CCI)311

. Uma vez que o

possuidor de boa fé tem que restituir os frutos após cessar a boa fé, tendo ele pago as despesas

relativas às plantações ou obras, das quais resultam os aludidos frutos, seja com sementes, obras

(que não sejam enquadráveis na definição de benfeitorias), aquisição de água para rega, etc., e

estando na altura de tal investimento de boa fé, deve deduzir tais encargos na restituição dos

frutos resultantes do investimento feito. Caso este seja superior ao valor dos frutos, não pode,

porém, exigir a diferença, mas nada terá que pagar.

Se o possuidor tiver alienado frutos antes da colheita e antes de cessar a boa fé, a alienação

subsiste mas o produto da colheita pertence ao titular do direito, deduzida a indemnização a que

o número anterior se refere (art. 1190º, nº 3, do projecto do novo C. Civil)312

. A justificação do

preceito resulta do facto de a alienação dos frutos ser anterior à verificação dos mesmos.

O possuidor de má fé deve restituir os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse e

responde, além disso, pelo valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido (art.

1191º do projecto do novo C. Civil e art. 549º, nº 2, do CCI). Vejam-se ainda os arts. 559º e

579º, nº 1, do CCI. O possuidor de má fé comete um acto ilícito que obriga a indemnizar,

designadamente a restituir os frutos que a coisa produziu, ou podia produzir.

311

Cessa a boa fé com a citação do possuidor em acção de restituição de posse ou de reivindicação contra o possuidor actual, conforme art. 361º, al. a), do CPC (no mesmo sentido o art. 532º do CCI e o art. 1190º, nº 2, do projecto do novo C. Civil). Como se viu, a posse é de boa fé quando quem a exerce ignora que lesa o direito de outra pessoa. Assim, se o autor vem invocar algum direito sobre o bem possuído, após a citação o possuidor não pode mais ignorar que outra pessoa se arroga direitos sobre o mesmo bem. Daí que cesse a boa fé do possuidor. 312

O mesmo resulta do disposto no art. 576º do CCI.

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d) Encargos

Os encargos com a coisa são pagos pelo titular do direito e pelo possuidor, na medida dos

direitos de cada um deles sobre os frutos no período a que respeitam os encargos (art. 1192º do

projecto do novo C. Civil e arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI)313

. Daqui resulta que os encargos

serão suportados pelo possuidor, até à interposição da acção por quem pede a entrega do imóvel.

Aliás, o pagamento dos encargos constitui manifestação da posse, do uso do imóvel como titular

do direito.

e) Benfeitorias

Tanto o possuidor de boa fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias

necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa,

desde que o possam fazer sem detrimento dela (art. 1193º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e

arts. 575º e 579º, nº 1, do CCI). Exceptua-se no CCI o caso da posse adquirida por violência (art.

580º).

Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias,

satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do

enriquecimento sem causa (art. 1193º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).

O possuidor goza do direito de retenção sobre a coisa pelo valor das benfeitorias necessárias

efectuadas (art. 688º do projecto do novo C. Civil e art. 575º, 2ª parte, do CCI)314

.

O direito de indemnização por benfeitorias pressupõe e exige a posse em nome próprio.

313

Conforme referido no ponto anterior. 314

Porém, o CCI refere apenas o possuidor de boa fé.

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O possuidor de boa fé tem direito a levantar as benfeitorias voluptuárias, não se dando

detrimento da coisa; no caso contrário, não pode levantá-las nem haver o valor delas (art. 1195º,

nº 1, do projecto do novo C. Civil e art. 581º do CCI). Para José de Oliveira Ascensão parece

dever entender-se que o possuidor de boa fé poderá sempre levantar as benfeitorias voluptuárias,

desde que repare as deteriorações causadas na coisa315

.

O possuidor de má fé perde, em qualquer caso, as benfeitorias voluptuárias que haja feito (art.

1195º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).

A obrigação de indemnização por benfeitorias é susceptível de compensação com a

responsabilidade do possuidor por deteriorações (art. 1194º do projecto do novo C. Civil).

f) Usucapião

A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de

tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo

exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião, ou prescrição aquisitiva (art.

1207º do projecto do novo C. Civil e arts. 548º, nº 2, 1946º e 1955º do CCI).

Conforme já se referiu, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo,

mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a

aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião, ou

prescrição aquisitiva ou positiva (art. 1207º do projecto do novo C. Civil316

e arts. 548º, nº 2,

315

Ob. cit., pág. 109. 316

Igual o art. 1287º do C. Civil Português de 1966.

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1946º e 1955º do CCI) 317318319320

.

A verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período

de tempo variável, conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa, ou a característica da posse,

ou consoante o regime jurídico aplicável. Para conduzir à usucapião a posse tem de revestir

sempre duas características: pública e pacífica. Os restantes caracteres (boa ou má-fé, titulada,

etc.) influem apenas no prazo.

Importa salientar, contudo, que no CCI a posse de má fé não confere direito à aquisição por

usucapião ou, como se diz naquele código, por prescrição aquisitiva. Assim, no âmbito do CCI,

para além de pública e pacífica, a posse tem de ser de boa fé.

Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1208º do

projecto do novo C. Civil e art. 1957º do CCI)321

. É como se o direito existisse desde o início da

posse. Como se houvesse coincidência inicial.

A usucapião aproveita a todos os que podem adquirir (art. 1209º, nº 1, do projecto do novo C.

Civil e arts. 538º do CCI)322

. Assim, os incapazes podem adquirir por usucapião, tanto por si

como por intermédio das pessoas que legalmente os representam (art. 1209º, nº 2, do projecto do

317

O CCI denomina este instituto como de prescrição aquisitiva (designação frequente na doutrina internacional) e regula o mesmo precisamente no capítulo relativo à prescrição (Capítulo VII, do Livro IV, Secção 2), embora também se lhe refira no capítulo que aborda a posse (Capítulo II, do Livro II). 318

No mesmo sentido o C. Civil Portguês de 1867, que designa a situação de prescrição positiva no seu art. 505º. 319

Por contraponto à precrição extintiva, ou negativa, que extingue o direito do credor, aqui a prescrição cria, ou faz nascer um direito novo na esfera do seu beneficiário. 320

Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 112. 321

Art. 1288º do C. Civil Português de 1966. 322

Art. 1289º do C. Civil Português de 1966 e art. 510º do C. Civil Português de 1867.

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novo C. Civil e arts. 539º do CCI)323

.

Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito

possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário

para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título, conforme referido supra (art.

1210º do projecto do novo C. Civil e art. 1959º do CCI)324

. Vejam-se os arts. 1173º, 1183º, al. d),

e 1185º do projecto do novo C. Civil e o arts. 535º, 536º e 556º do CCI.

A usucapião por um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita

igualmente aos demais compossuidores (art. 1211º do projecto do novo C. Civil).

São aplicáveis à usucapião, com as necessárias adaptações, as disposições relativas à suspensão e

interrupção da prescrição, bem como o preceituado nos artigos 291º, 293º, 294º e 296º do

projecto (art. 1212º do projecto do novo C. Civil e art. 1946º do CCI). Como já se referiu,

estamos no âmbito da prescrição aquisitiva, que não deixa de ser uma caso de prescrição.

g) Usucapião de imóveis

Não podem adquirir-se por usucapião: a) As servidões prediais não aparentes; b) Os direitos de

uso e de habitação (art. 1213º do projecto do novo C. Civil e arts. 552º e 556º do CCI)325

.

Conforme se viu supra, a posse para poder conduzir à aquisição do direito por usucapião tem de

323

Porém, só podem adquirir por si os bens susceptíveis de aquisição por ocupação, isto é, bens móveis. “Em vista da letra do Codigo póde sustentar-se que para adquirir a posse são competentes até os menores, comtanto que tenha uso de rasão, ao passo que para adquiri a propriedade pela prescripção são incompetentes os menores, ainda que tenham uso de rasão” (José Dias Ferreira, ob. e vol. cit., pág. 15), mas podem adquirir por intermédios dos seus representantes legais (art. 507º do C. Civil Português de 1867. 324

Art. 1290º do C. Civil Português de 1966 e art. 480º do C. Civil Português de 1867. 325

Não existe disposição expressa de propibição da aquisição por usucapião do direito de uso e ocupação, mas ela parece resultar evidente do regime prevsito nos seus arts. 818º a 829º, em especial do art. 827º.

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ser pública e pacífica, pelo que as servidões não aparente estão excluídas, desconhecendo-se o

exercício dos actos materiais de posse não se pode atribuir relevância jurídica aos mesmos (veja-

se igualmente o art. 1438º, nº 1, do projecto de C. Civil e o art. 699º do CCI)326327

. Quanto ao

direito de uso e habitação esta impossibilidade está relacionada com a sua natureza. O direito de

habitação tem a natureza de afectação de satisfação de necessidades pessoais. O direito de

habitação abrange o “usus” e o “fructus”, mas apenas na medida das necessidades pessoais do

seu titular e da sua família. Este direito tem de se entender somente como abrangendo o morador

usuário, tem de se pautar pelas suas necessidades pessoais, contrariamente ao usufruto em que a

fruição e o uso são ilimitados328

.

A usucapião, como qualquer outra situação de prescrição, não é de conhecimento oficioso, pelo

que tem necessariamente que ser invocada pela pessoa a quem aproveita (art. 294º do projecto do

novo C. Civil329

, aqui aplicável por remissão do art. 1212º, e art. 1950º do CCI330

).

A questão que se coloca neste caso é a de saber se o direito de propriedade, adquirido por

usucapião, pode ser invocado por quem já não é possuidor, mas foi possuidor do imóvel durante

o prazo necessário para a sua verificação, tendo entretando sido esbulhado pelo possuidor actual.

Afigura-se que não, salvo o caso do esbulho violento.

326 Art. 678º do CCI (na versão em ingles “Visible servitudes are those that are physically apparent such as a door, a

window, a water pipe and other such similar objects. Invisible servitudes are those whose existence is

imperceptible, such as the prohibition against building on a plot of land, or against building above a certain height,

the right to graze cattle and other matters that require human involvement”).

327 Art. 1438º, nº 2, do projecto do novo C. Civil, “Consideram-se não aparentes as servidões que não se revelam

por sinais visíveis e permanentes”. 328

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 420. 329

O tribunal não pode suprir, de ofício, a prescrição; esta necessita, para ser eficaz, de ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público. 330

Na versão em inglês, “The judge may not, officially, apply the means of prescription”.

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Isto é o que resulta expressamente dos arts. 1955º e 1978º do CCI331

. Mas é também o que resulta

do art. 1207º do projecto do novo C. Civil.

Para o projecto do novo C. Civil, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada

ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a

posse se torne pública (art. 1217º do projecto). O que significa que o possuidor esbulhado ainda

pode invocar a usucapião (judicial ou extrajudicialmente) até um ano após ter cessado a

violência, ainda que não exerça poder de facto sobre o imóvel332

.

No âmbito do CCI, porém, no caso de o possuidor ter sido esbulhado com violência a sua posse

mantém-se sem limite de prazo, ainda que cesse a violência, pelo que pode a todo o tempo

invocar a prescrição, enquanto se mentiver a posse do esbulhador com violência333

.

A prescrição pode ser invocada mesmo em sede de recurso (art. 1951º do CCI). Importa, porém,

ter presente que a citação do réu possuidor para acção de reivindicação da propriedade do imóvel

que ele possui interrompe o prazo prescricional (art. 314º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e

arts. 1980º do CCI).

h) Prazos de usucapião

331

Na versão em inglês, “To acquire ownership of property by means of prescription, an individual must have

continuous, uninterrupted, open and unequivocal possession” (art. 1955º) e “Prescription shall be precluded if the

owner, within a period of more than one year, has been denied the enjoyment of a matter, either by the previous

owner, or by a third party” (art. 1978º). Lembre-se que a posse se perde através da posse de outrem por período

superior a um ano (art. 545º, nº 1, do CCI).

332 Conforme o art. 1187º, nº 1, al. d), do projecto.

333 Arts. 568º e 536º do CCI.

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No CCI o possuidor de má fé não pode adquirir por usucapião (art. 549º do CCI)334

. Por maioria

de razão, não se permite a aquisição do direito no caso da posse constituída com violência, ainda

que a mesma violência venha a cessar (arts. 536º e 568º do CCI).

Os prazos de prescrição são os seguintes (art. 1963º do CCI):

Vinte anos para o possuidor e boa fé que tenha um título legítimo de aquisição;

Trinta anos para os restantes possuidores de boa fé.

Também será de trinta anos o prazo de prescrição para a posse titulada, no caso de o título ser

formalmente inválido (art. 1964º do CCI).

Como já se referiu, presume-se a existência de boa fé na posse (art. 1965º do CCI), sendo ainda

suficiente que a boa fé exista aquando da aquisição da posse (art. 1966º do CCI), pelo que pode

haver má fé posterior (no sentido de se vir a tomar conhecimento da violação do direito de

outrem) sem que seja afectado o direito de prescrição.

O CCI não prevê a hipótese de registo da mera posse. Mas, como é óbvio, pode haver registo do

título que confere a posse. Como já se referiu, sendo o título formalmente válido, em princípio,

salvo ocorrendo violação do trato sucessivo do registo335

, nada obstará a que se proceda ao

registo do mesmo.

O CCI, porém, não dá qualquer tipo de privilégio ao registo desta posse titulada, mantendo-se o

prazo de vinte anos, independentemente do registo.

334

A a boa fé se traduz na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 531º do CCI) 335

Por exemplo a pessoa que consta como vendedora na escritura píbulica de compra e venda não ser a que consta como titular do direito de propriedade no registo.

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Para o projecto do novo C. Civil, havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem

lugar: a) Quando a posse, sendo de boa fé, tiver durado por dez anos, contados desde a data do

registo; b) Quando a posse, ainda que de má fé, houver durado quinze anos, contados da mesma

data (art. 1214º do projecto do novo C. Civil)336

. O título, relembra-se, tem que ser formalmente

válido (ou seja, no caso dos imóveis, tem de se tratar de uma escritura pública), embora possa ser

substancialmente inválido (art. 1181º do projecto).

Não havendo registo do título de aquisição, mas registo da mera posse, a usucapião tem lugar: a)

Se a posse tiver continuado por cinco anos, contados desde a data do registo, e for de boa fé; b)

Se a posse tiver continuado por dez anos, a contar da mesma data, ainda que não seja de boa fé

(art. 1215º, nº 1, do projecto do novo C. Civil). Conforme se referiu para os outros casos em que

se previa o registo da mera posse, esta só pode ocorrer em vista de sentença passada em julgado,

na qual se reconheça que o possuidor tem possuído pacífica e publicamente por tempo não

inferior a cinco anos (art. 1215º, nº 2, do projecto do novo C. Civil)337

.

Não havendo registo do título nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze

anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé (art. 1216º do projecto do novo C.

Civil).

Se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião

só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública (art. 1217º do

projecto do novo C. Civil).

336

Também aqui a boa fé se traduz na ignorância de violar direito de outra pessoa (art. 1182º, nº 1). 337

Valem aqui as considerações tecidas anteriormente sobre a matéria.

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VII. Defesa da posse

a) Acções possessórias

Existem os seguintes meios de defesa judicial da posse, previstos nos arts. 1196º a 1206º do

projecto: acção de prevenção, acção de manutenção, acção de restituição, acção de restituição no

caso de esbulho violento e embargos de terceiro. Para além destes meios, existem ainda os meios

de defesa da posse de carácter extrajudicial, como sejam a acção directa e a legítima defesa,

previstos nos arts. 327º e 328º do projecto do novo C. Civil.

b) Acção de manutenção da posse

Se o possuidor tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por outrem, será o autor da

ameaça, a requerimento do ameaçado, intimado para se abster de lhe fazer agravo, sob pena de

multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar (art. 1196º do projecto do novo Código

Civil)338

.

Para a aplicação da acção de prevenção é necessário, além de uma situação de posse, que esta

não tenha sido lesada e que tenham ocorrido factos de que seja legítimo inferir estar o possuidor

sob ameaça séria de ser perturbado ou esbulhado (trata-se pois de uma acção antecipatória). A

expressão “justo receio” destina-se a inculcar a ideia de que não basta um receio mais ou menos

vago, os actos atribuídos ao réu hão-de ter o carácter de ameaças positivas e capazes de se

traduzir em vias de facto339

.

O meio adequado para a acção de prevenção será a providência cautelar não especificada dos

338

Não existe disposição semelhante no CCI. 339

Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 835.

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arts. 305º a 316º do CPC. Efectivamente, se a ameaça é séria, como exige o artigo, então o

recurso ao processo declarativo comum não acautela o direito do possuidor ameaçado, devido à

natural demora do mesmo. Isto não invalida, obviamente, que o possuidor tenha que intentar

posteriormente acção declarativa, nos termos dos arts. 307º, nº 1, e 313º, nº 1, al. a), do CPC.

c) Restituição de posse

O possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força

e autoridade, nos termos do artigo 327º, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou

restitua a posse (art. 1197º do projecto do novo C. Civil e arts. 550º, 551º e 566º do CCI).

O recuso à acção directa e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do projecto) pressupõe a

verificação dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios

coersivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efectiva ou eminente do direito; c)

racionalidade dos meios utilizados.

Se o possuidor recorrer ao tribunal, não se verificando nenhuma situação de esbulho violento,

pode recorrer à providência cautelar de embargo de obra nova, se, por exemplo, o esbulhador

construir um muro que impeça a posse, ou usar dos meios cautelares comuns ou da acção

declarativa comum.

No caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído

enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito (art. 1198º, nº 1, do projecto

do novo C. Civil e arts. 561º e 562º do CCI).

d) Restituição provisória de posse

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O possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à

sua posse, sem audiência do esbulhador (art. 1199º do projecto do novo C. Civil). Veja-se o art.

563º do CCI.

No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua

posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência (art. 317º do CPC e art.

563º do CCI). Providência cautelar de restituição provisória de posse.

Os requisitos desta providência cautelar são (gerais):

- a séria probabilidade de existência do direito;

- o fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave ou

dificilmente reparável;

- que não seja manifestamente inferior ao prejuízo dela derivado para o requerido.

E, para além destes requisitos gerais, são ainda requisitos específicos da providência:

Esbulho - retirada total ou parcial da posse de um bem;

Violência - Com utilização de força, isto é, o acto de retirar a posse ao requerente é não

consentido. A violência poderá ser contra a pessoa ou contra a coisa. Exemplo de violência

contra a coisa: arrombar a porta, a fechadura, substituir a fechadura, destruição de obstáculos etc.

d) A acção de manutenção ou de restituição da posse

A acção de manutenção da posse pode ser intentada pelo perturbado ou pelos seus herdeiros, mas

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apenas contra o perturbador, salva a acção de indemnização contra os herdeiros deste (art. 1201º,

nº 1, do projecto do novo C. Civil).

A acção de restituição de posse pode ser intentada pelo esbulhado ou pelos seus herdeiros, não só

contra o esbulhador ou seus herdeiros, mas ainda contra quem esteja na posse da coisa e tenha

conhecimento do esbulho (art. 1201º, nº 2, do projecto do novo C. Civil).

O que ressalta deste artigo é que a acção de restituição não pode ser intentada contra quem esteja

na posse da coisa de boa fé.

A acção de manutenção, bem como as de restituição da posse, caducam, se não forem intentadas

dentro do ano subsequente ao facto da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando

tenha sido praticado a ocultas (art. 1202º do projecto do novo C. Civil e arts. 558º e 565º do

CCI).

Trata-se de um prazo de caducidade.

É havido como nunca perturbado ou esbulhado o que foi mantido na sua posse ou a ela foi

restituído judicialmente (art. 1203º do projecto do novo C. Civil e art. 560º do CCI).

É assim indiferente a posse do esbulhador, uma vez que sobre a mesma coisa não podem haver

duas posses plenas.

O possuidor mantido ou restituído tem direito a ser indemnizado do prejuízo que haja sofrido em

consequência da turbação ou do esbulho (art. 1204º, nº 1, do projecto do novo C. Civil e arts.

568º e 576º a 581º do CCI).

A restituição da posse é feita à custa do esbulhador e no lugar do esbulho (art. 1204º, nº 2, do

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172

projecto do novo C. Civil).

Só depois de mantido ou restituído pode o possuidor exigir ao turbador ou esbulhador que o

indemnize.

e) Embargos de terceiro

O possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua

posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo (art. 1205º do

projecto do novo C. Civil).

Nos termos do disposto no artigo 286º do CPC, se qualquer acto judicialmente ordenado de

apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização

ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo

valer, deduzindo embargos de terceiro.

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173

CAPÍTULO III – DIREITO DE PROPRIEDADE

I. Definição e conteúdo

Propriedade é o direito de ter livre aproveitamento da coisa e dispor dela de modo absoluto,

desde que um indivíduo não viole as leis e ordens públicas emanadas das autoridades, no uso de

tais bens, e desde que não interfira com os direitos dos outros indivíduos (art. 570º do CCI)340

.

O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das

coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela

impostas (art. 1225º do anteprojecto do novo C. Civil).

Por seu lado a Constituição da RDTL estipula que todo o indivíduo tem direito à propriedade

privada, podendo transmiti-la em vida e por morte, nos termos da lei, embora só os cidadãos

nacionais tenham direito à propriedade privada da terra (art. 54º, nº 1 e 4, da Constituição).

O direito de propriedade é um direito absoluto do qual resulta a exclusividade reconhecida ao

proprietário341

. A propriedade é comummente qualificada como o direito real máximo, o modelo

de todos os outros direitos reais342

.

340

Na versão em inglês “Ownership is the right to have free enjoyment of property and to dispose thereof

absolutely, provided that an individual does not violate the laws of the public ordinances stipulated by those who

have been granted authority to do so, in the course of using such assets, and provided that an individual does not

interfere with other individuals rights”.

341 Esta é a definição resultante do art. 20º, nº 1, da Lei Agrária Indonésia de 1960 (na versão em inglês “A Hak

milik (right of ownership) is the inheritable right, the strongest and fullest right on land which one can hold”).

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174

Dá-se o nome de fruição ao aproveitamento dos frutos e produtos de uma coisa, seja dos frutos

materiais, seja dos frutos jurídicos (rendas ou juros ou outro tipo de rendimento).

Entende-se por disposição a forma de exercício dum direito que implica a sua alteração ou perda,

absoluta ou relativa.

Há duas classificações possíveis do conceito de disposição: disposição total e disposição parcial;

disposição material e disposição jurídica343

.

Para José de Oliveira Ascensão “a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos

poderes que à coisa se podem referir344

.

A propriedade tem, porém, igualmente uma função social, que frequentemente determina a

limitação daquele direito absoluto (art. 54º, nº 2, da Constituição da RDTL). Vejam-se os citados

arts. 570º do CCI, 1225º do anteprojecto do novo C. Civil.

O direito de propriedade deve ser exercido dentro dos limites impostos, por um lado, pela boa fé,

pelos bons costumes e pelo fim social e económico e, por outro lado, pelas restrições, quer de

interesse privado, quer de interesse público que a lei expressamente consagra345346

.

Não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de propriedade ou de

figuras parcelares deste direito senão nos casos previstos na lei (art. 1226º do anteprojecto do

novo C. Civil). Trata-se de um dos princípios gerais dos direitos reais (o “numerus clausus”, ou

342

Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 441. “O direito de propriedade é o molde jurídico onde se vaza o poder humano de usar, de gozar, ou de dispor dos bens de forma plena” (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 217). 343

Castro Mendes, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, Lisboa, 1978, vol. II, pág. 40 344

Ob. cit., pág. 448. 345

José Osvaldo Gomes, “Comentário ao Novo Regime de Licenciamento de Obras”, Lisboa, 1971, pág. 22. 346

Sobre a função social do direito de propriedade veja-se o escrito supra (Título I, Capítulo IV).

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princípio da tipicidade). A lei não permite que sejam constituídos direitos reais que ela própria

não preveja347

.

Ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos

fixados na lei, sendo sempre devida indemnização adequada ao proprietário ou aos titulares dos

outros direitos reais afectados (arts. 1229º e 1231º do projecto do novo C. Civil). No mesmo

sentido o art. 570º do CCI e art. 54º da Constituição da RDTL348

. O que se prevê aqui é a

possibilidade de intervenção do Estado no direito de propriedade privada, por meio de privação

forçada da propriedade, nomeadamente por expropriação por utilidade pública349

. Veja-se o art.

18º da Lei Agrária Indonésia de 1960350

.

II. Conteúdo do direito de propriedade (propriedade de imóveis)

A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o

subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio

jurídico (art. 1264º, nº 1, do projecto do novo C. Civil). Veja-se o art. 571º do CCI.

O proprietário não pode, todavia, proibir os actos de terceiro que, pela altura ou profundidade a

que têm lugar, não haja interesse em impedir (art. 1264º, nº 2, do projecto). Sobre o assunto os

347

Veja-se o Título I, Capítulo II, e). 348

Sobre a vertente constitucional do direito de propriedade veja-se Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 4ª ed. Revista, 2007, págs. 799-805. 349

Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., págs. 805-810. 350

Na versão em inglês “In the interests of the public as well as of the nation and of the state and in the collective

interests of the people, land rights can be revoked by providing appropriate compensation and in accordance with

the procedure which is to be stipulated by way of an Act”.

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arts. 1º, nº 4 a 6, e 2º da Lei Agrária Indonésia de 1960.

2.1. Limitações ao direito de propriedade:

O fundamento das limitações encontra-se no primado do interesse coletivo ou público sobre o

individual e na função social da propriedade, visando proteger o interesse público social e o

interesse privado, considerado em relação à necessidade social de coexistência pacífica; sua

natureza é de obrigação propter rem, porque tanto o devedor como o credor são titulares de um

direito real, pois ambos os direitos incidem sobre a mesma coisa, só que não são oponíveis erga

omnes nem interessam a terceiros351

.

As obrigações de direito público são normalmente encontradas em legislação autónoma (não no

Código Civil) e visam salvaguardar essencialmente o interesse público352

. Estes limites são

gerais porque são comuns a todos os imóveis, todos estão sujeitos a suportar os limites imposto

pela administração em defesa do interesse público.

As limitações ao domínio baseadas no interesse privado inspiram-se no propósito de coexistência

harmónica e pacífica de direitos, fundando-se no próprio interesse do titular do bem ou de

terceiro, a quem este pretende beneficiar, não afetando, dessa forma, a extensão do exercício do

direito de propriedade; caracteriza-se por sua bilateralidade ante o vínculo recíproco que

351

Veja-se supra o Capítulo IV do Título I. 352

Contam-se entre estas as restrições à construção constantes de planos directores (ordenamento do território), que visam harmonizar a possibilidade de construção pelos privados, por forma a evitar a ocupação irracional e irreversível da terra, designadamente criando zonas habitacionais e zonas de serviços ou industriais diferenciadas, estipulando limites de construção, por exemplo em altura, bem como as chamadas servidões públicas (ou servidões administrativas), como seja a proibição de se poder construir demasiado perto da estrada, por forma a poder no futuro proceder ao alargamento da mesma. Trata-se de restrições ainda não existente na legislação nacional e que urge implementar, sob pena de se tornar irreversível a ocupação caótica e indisciplinada do território.

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estabelece.

Aqui se inclui o direito de vizinhança, limitações impostas por normas jurídicas às propriedades

individuais com o escopo de conciliar interesses de proprietários vizinhos, reduzindo os poderes

inerentes ao domínio e de modo a regular a convivência social (art. 625º do CCI). Por haver

contiguidade entre prédios, o proprietário não é livre de fazer tudo aquilo que se compreenderia

num ilimitado ‘jus utendi, abutendi e fruendi’, têm de estabelecer-se restrições rerivadas da

necessidade de coexistência353

.

Assim:

a) O proprietário de um imóvel pode opor-se à emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros,

calor ou ruídos, bem como à produção de trepidações e a outros quaisquer factos semelhantes,

provenientes de prédio vizinho, sempre que tais factos importem um prejuízo substancial para o

uso do imóvel ou não resultem da utilização normal do prédio de que emanam (art. 1266º do

projecto do novo C. Civil). No mesmo sentido, veja-se o art. 655º do CCI354

.

A Constituição concede maior protecção aos direitos, liberdades e garantias de que aos direitos

económicas, sociais e culturais e há uma ordem decrescente de consistência, de protecção

353

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 204. 354

Na versão em inglês, “An individual, who, within the area surrounding a communal or non-communal wall, has had a well, sewer, or outhouse dug, intends to install a chimney, a fireplace, an oven or furnace, intends to build a stable or fertilizer container, or build a salt storehouse or warehouse, or install a storage place of corrosive material, or intends to build other harmful or dangerous constructions, shall be required to leave or create space in the manner described in the special ordinances or customs in that regard, or to carry out constructions as required by the regulations and customs, in order to prevent any damage which may be caused to the neighboring plots of land”.

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jurídica, de densidade subjectiva daqueles para estes355

. Assim, no caso de colisão ou conflito de

direitos fundamentais devem prevalecer os direitos de personalidade (art. 326º do projecto C.

Civil).

O direito de oposição subsiste mesmo que a actividade de onde resultam as emissões haja sido

autorizada por entidade pública356

.

No entender de Álvaro Moreira e Carlos Fraga, este preceito aplica-se a quaisquer vizinhos e não

apenas ao vizinho contíguo357

.

b) O proprietário não pode construir nem manter no seu prédio quaisquer obras, instalações ou

depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas, se for de recear que possam ter sobre o

prédio vizinho efeitos nocivos não permitidos por lei (art. 1267º, nº 1, do projecto do novo C.

Civil)358

. Veja-se de novo o art. 655º do CCI.

Se as obras, instalações ou depósitos tiverem sido autorizados por entidade pública competente,

ou tiverem sido observadas as condições especiais prescritas na lei para a construção ou

manutenção deles, a sua inutilização só é admitida a partir do momento em que o prejuízo se

torne efectivo (art. 1267º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil). É devida, em qualquer dos

355

Veja-se os J.J. Canotilho, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 125º, Coimbra Editora, 1992, pág. 293, Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, vol. IV, Coimbra Editora, 1996, pág. 135, Vaz Serra, in “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 103º, Coimbra Editora, 1970, pág. 378, Fernando Augusto Cunha Sá, in “Abuso do Direito”, Almedina, Coimbra, 2005, pág. 528, e Fernando Pessoa Jorge, “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 201. 356

Hernrique Mesquita, ob. cit., pág. 142. 357

Ob. cit., pág. 244, nota 53. 358

Trata-se de norma preventiva. Não tem que se já verificar um dano efectivo, mas apenas a sua possibilidade (Menezes Cordeiro, in “Direitos Reais, Lex Editora, Lisboa, 1993, pág. 597).

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casos, indemnização pelo prejuízo sofrido (art. 1267º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil)359

.

c) O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer escavações,

desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos

ou deslocações de terra (art. 1268º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil).

O direito de construir constitui prerrogativa inerente da propriedade o direito que possui o seu

titular de construir em seu terreno o que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os

regulamentos administrativos360

.

Logo que venham a padecer danos com as obras feitas, os proprietários vizinhos serão

indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas

necessárias (art. 1268º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil e art. 1369º do CCI)361

.

Se qualquer edifício ou outra obra oferecer perigo de ruir, no todo ou em parte, e do

desmoronamento puderem resultar danos para o prédio vizinho, é lícito ao dono deste exigir da

pessoa responsável362

pelos danos as providências necessárias para eliminar o perigo (art. 1270º

do anteprojecto do novo C. Civil e art. 654º do CCI)363

.

d) Passagem forçada momentânea:

Se, para reparar algum edifício ou construção, for indispensável levantar andaime, colocar

359

Trata-se de uma hipótese de responsabilidade pelo risco, pelo que a obrigação de indemnização se verifica independentemente de culpa do proprietário (arts. 433º a 444º do projecto). 360

Talvez por isso o CCI não o refira expressamente. 361

Mais uma vez, a obrigação de indemnizar existe independentemente de culpa (nota 296). 362

A pessoa responsável é o proprietário ou possuidor do edifício (art. 426º do projecto). 363

Se o perigo de ruína ou desmoronamento resultar de obra nova pode-se recorrer ao procedimento cautelar de embargo de obra nova, dos arts. 334º a 339º do CPC.

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objectos sobre prédio alheio, fazer passar por ele os materiais para a obra ou praticar outros actos

análogos, é o dono do prédio obrigado a consentir nesses actos (art. 1269º, nº 1, do anteprojecto

do novo C. Civil, igual o art. 651º do CCI)364

.

No caso de recursa, o direito pode ser exercido através da providência cautelar não especificada

prevista nos arts. 305º a 316º do CPC. Ou seja, se o titular do direito for impedido de aceder ao

prédio vizinho, pode intentar procedimento cautelar não especificado por forma a poder exercer

o mesmo. Trata-se de um caso em que o procedimento cautelar não é dependente de uma acção

judicial posterior, uma vez garantido o acesso, o seu interesse encontra-se satisfeito, pelo que não

terá o titular do direito interesse em intentar a acção correspondente.

É igualmente permitido o acesso a prédio alheio a quem pretenda apoderar-se de coisas suas que

acidentalmente nele se encontrem; o proprietário pode impedir o acesso, entregando a coisa ao

seu dono (art. 1269º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil)365

.

Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o proprietário tem direito a ser indemnizado do

prejuízo sofrido (art. 1269º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil).

e) Os prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que, naturalmente e sem obra do

homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastam na

sua corrente (art. 1271º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil, conforme também o art. 626º do

CCI).

364

Note-se que não se está aqui perante qualquer servidão. Não é uma servidão que se constitui, mas somente uma passagem momentânea, embora forçada (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 245). 365

Por exemplo, o proprietário tem que tolerar a passagem momentânea de alguém que precise ir buscar uma coisa sua que acidentalmente se encontre na propriedade daquele, como um animal que para lá fugiu, ou uma coisa que para lá caiu (Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 245).

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Quando exista um terreno inclinado, o proprietário da parte inferior não pode instalar um dique

contra o qual a água de torrente natural ou da chuva fique retida, uma vez que isso prejudicaria o

proprietário do terreno superior e constituiria assim uma limitação do direito deste366

.

Nem o dono do prédio inferior pode fazer obras que estorvem o escoamento, nem o dono do

prédio superior obras capazes de o agravar, sem prejuízo da possibilidade de constituição da

servidão legal de escoamento, nos casos em que é admitida (art. 1271º, nº 2, do anteprojecto do

novo C. Civil. e o art. 626º do CCI). Deve permitir-se que os terrenos recebam ou escoem as

águas naturalmente, sem que as mesmas sejam retidas. Porém, pode o proprietário do terreno

fazer obra que dirija as águas de forma menos prejudicial para o seu terreno367

.

O dono do prédio onde existam obras defensivas para conter as águas, ou onde, pela variação do

curso das águas, seja necessário construir novas obras, é obrigado a fazer reparos precisos, ou a

tolerar que os façam, sem prejuízo dele, os donos dos prédios que padeçam danos ou estejam

expostos a danos iminentes (art. 1272º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil)368

. O disposto no

número anterior é aplicável, sempre que seja necessário despojar algum prédio de materiais cuja

acumulação ou queda estorve o curso das águas com prejuízo ou risco de terceiro (art. 1272º, nº

2, do anteprojecto do novo C. Civil). Todos os proprietários que participam do benefício das

obras são obrigados a contribuir para as despesas delas, em proporção do seu interesse, sem

prejuízo da responsabilidade que recaia sobre o autor dos danos (art. 1272º, nº 3, do anteprojecto

do novo C. Civil).

366

Álvaro Moreira e Carlos Fraga, ob. cit., pág. 246. 367

Acórdão da Relação de Lisboa de 9-11-1979, in “Colectânea de Jurisprudência”, ano IV, tomo 5º, Casa do Juiz, Coimbra, 1979, pág. 1597, citado por Abílio Neto, ob. cit., pág. 897. 368

O proprietário só está obrigado a tolerar que os proprietários dos prédio vizinhos façam as obras na sua propriedade se não as fizer ele mesmo.

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2.2. Direito de demarcação

O proprietário pode obrigar os donos dos prédios confinantes a concorrerem para a demarcação

das estremas entre o seu prédio e os deles – art. 1273º do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se

o art. 630º-A do CCI.

O direito de demarcação é imprescritível, sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião –

art. 1275º do anteprojecto do novo C. Civil.

2.3. Direito da tapagem

A todo o tempo o proprietário pode murar, valar, rodear de sebes o seu prédio, ou tapá-lo de

qualquer modo – art. 1276º do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 631º do CCI.

No que se refere ao direito de tapagem, o proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar

de qualquer modo o seu prédio urbano ou rural, para que possa proteger, dentro dos seus limites,

a exclusividade de seu domínio, desde que observe as disposições regulamentares e não cause

dano ao vizinho.

2.4. Construções e edificações

O proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas

ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das

obras o intervalo de metro e meio – art. 1280º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Vejam-se

os arts. 647º a 650º do CCI.

Igual restrição é aplicável às varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, quando sejam

servidos de parapeitos de altura inferior a metro e meio em toda a sua extensão ou parte dela –

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art. 1280º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 647º do CCI.

Se os dois prédios forem oblíquos entre si, a distância de metro e meio conta-se

perpendicularmente do prédio para onde deitam as vistas até à construção ou edifício novamente

levantado; mas, se a obliquidade for além de quarenta e cinco graus, não tem aplicação a

restrição imposta ao proprietário – art. 1280º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.

As restrições do artigo precedente não são aplicáveis a prédios separados entre si por estrada,

caminho, rua, travessa ou outra passagem por terreno do domínio público – art. 1281º do

anteprojecto do novo C. Civil.

Janelas são as aberturas que, não sendo portas e estando niveladas com as paredes

(contrariamente às varandas que se projectam para a frente delas), tem em qualquer das suas

dimensões mais de quinze centímetros e por função, além de assegurar a entrada de luz e ar,

facultar vistas.

A existência de janelas, portas, varandas, terraços, eirados ou obras semelhantes, em

contravenção do disposto na lei, pode importar, nos termos gerais, a constituição da servidão de

vistas por usucapião – art. 1282º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

Constituída a servidão de vistas, por usucapião ou outro título, ao proprietário vizinho só é

permitido levantar edifício ou outra construção no seu prédio desde que deixe entre o novo

edifício ou construção e as obras mencionadas no nº 1 o espaço mínimo de metro e meio,

correspondente à extensão destas obras – art. 1282º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

Não se consideram abrangidos pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar,

podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais

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aberturas – art. 1283º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 645º do CCI.

As frestas, seteiras ou óculos para luz e ar devem, todavia, situar-se pelo menos a um metro e

oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas

dimensões, mais de quinze centímetros; a altura de um metro e oitenta centímetros respeita a

ambos os lados da parede ou muro onde essas aberturas se encontram – art. 1283º, nº 2, do

anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 646º do CCI.

O proprietário deve edificar de modo que a beira do telhado ou outra cobertura não goteje sobre

o prédio vizinho, deixando um intervalo mínimo de cinco decímetros entre o prédio e a beira, se

de outro modo não puder evitá-lo – art. 1285º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o

art. 652º do CCI.

Constituída por qualquer título a servidão de estilicídio, o proprietário do prédio serviente não

pode levantar edifício ou construção que impeça o escoamento das águas, devendo realizar as

obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio

dominante – art. 1285º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

2.5. Plantação de árvores e arbustos

É lícita a plantação de árvores e arbustos até à linha divisória dos prédios; mas ao dono do prédio

vizinho é permitido arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou

ramos que sobre ele propenderem, se o dono da árvore, sendo rogado judicialmente ou

extrajudicialmente, o não fizer dentro de três dias – art. 1286º, nº 1, do anteprojecto do novo C.

Civil. Veja-se o art. 666º do CCI.

Não é adquirível por prescrição (usucapião) o direito de deitar ramos, tronco ou raízes sobre o

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prédio vizinho.

O proprietário de árvore ou arbusto contíguo a prédio de outrem ou com ele confinante pode

exigir que o dono do prédio lhe permita fazer a apanha dos frutos, que não seja possível fazer do

seu lado; mas é responsável pelo prejuízo que com a apanha vier a causar – art. 1287º do

anteprojecto do novo C. Civil.

2.6. Paredes e muros de meação

O proprietário de prédio confinante com parede ou muro alheio pode adquirir nele comunhão, no

todo ou em parte, quer quanto à sua extensão, quer quanto à sua altura, pagando metade do seu

valor e metade do valor do solo sobre que estiver construído – art. 1290º, nº 1, do anteprojecto do

novo C. Civil. O CCI prevê, em contrário, que nenhum muro se possa tornar comum sem o

consentimento do seu proprietário – art. 640º do CCI.

A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo

os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem – art. 1291º, nº 1, do anteprojecto do

novo C. Civil. Veja-se o art. 633º do CCI.

Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se

igualmente comuns, não havendo sinal em contrário – art. 1291º, nº 2, do anteprojecto do novo

C. Civil.

São sinais que excluem a presunção de comunhão:

a) A existência de espigão em ladeira só para um lado;

b) Haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura

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dele;

c) Não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados – art. 1291º, nº 3, do

anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 634º do CCI.

No caso da alínea a) do número anterior, presume-se que o muro pertence ao prédio para cujo

lado se inclina a ladeira; nos outros casos, àquele de cujo lado se encontrem as construções ou

sinais mencionados – art. 1291º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se o muro sustentar em toda a sua largura qualquer construção que esteja só de um dos lados,

presume-se do mesmo modo que ele pertence exclusivamente ao dono da construção – art.

1291º, nº 5, do anteprojecto do novo C. Civil.

O proprietário a quem pertença em comum alguma parede ou muro não pode abrir nele janelas

ou frestas, nem fazer outra alteração, sem consentimento do seu consorte – art. 1286º, nº 1, do

anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 644º do CCI.

Qualquer dos consortes tem, no entanto, a faculdade de edificar sobre a parede ou muro comum e

de introduzir nele traves ou barrotes, contanto que não ultrapasse o meio da parede ou do muro –

art. 1293º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. No mesmo sentido o art. 636º do CCI.

Veja-se ainda o art. 641º do CCI – nenhum consorte pode abrir buracos ou construir contra o

muro comum, sem consentimento do outro.

Tendo a parede ou muro espessura inferior a cinco decímetros, não tem lugar a restrição do art.

1293º, nº 1, do projecto – art. 1286º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

A qualquer dos consortes é permitido alterar a parede ou muro comum, contanto que o faça à sua

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custa, ficando a seu cargo todas as despesas de conservação da parte alterada – art. 1294º, nº 1,

do anteprojecto do novo C. Civil (art. 637º, primeira parte, do CCI).

Se a parede ou muro não estiver em estado de aguentar o alçamento, o consorte que pretender

levantá-lo tem de reconstruí-lo por inteiro à sua custa e, se quiser aumentar-lhe a espessura, é o

espaço para isso necessário tomado do seu lado – art. 1294º, nº 2, do anteprojecto do novo C.

Civil (art. 637º, segunda parte, do CCI).

O consorte que não tiver contribuído para o alçamento pode adquirir comunhão na parte

aumentada, pagando metade do valor dessa parte e, no caso de aumento de espessura, também

metade do valor do solo correspondente a esse aumento – art. 1294º, nº 3, do anteprojecto do

novo C. Civil (art. 639º do CCI).

A reparação ou reconstrução da parede ou muro comum é feita por conta dos consortes, em

proporção das suas partes – art. 1295º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art. 635º do CCI).

Se o muro for simplesmente de vedação, a despesa é dividida pelos consortes em partes iguais –

art. 1295º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se, além da vedação, um dos consortes tirar do muro proveito que não seja comum ao outro, a

despesa é rateada entre eles em proporção do proveito que cada um tirar – art. 1295º, nº 3, do

anteprojecto do novo C. Civil.

Se a ruína do muro provier de facto do qual só um dos consortes tire proveito, só o beneficiário é

obrigado a reconstruí-lo ou repará-lo – art. 1295º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil (art.

641º do CCI).

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É sempre facultado ao consorte eximir-se dos encargos de reparação ou reconstrução da parede

ou muro, renunciando ao seu direito nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 1331º – art. 1295º, nº 5,

do anteprojecto do novo C. Civil (art. 635º do CCI).

III. Defesa da propriedade

O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o

reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence –

art. 1232º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art. 574º do CCI).

Havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos

previstos na lei – art. 1232º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

«A causa de pedir nas acções de reivindicação, ou seja, o facto jurídico de que deriva o direito

real só pode ser constituído pela alegação de uma das formas de adquirir» - acórdão da Relação

de Lisboa de 19 de Março de 1975, sumariado no B.M.J. nº 244, Liaboa, 1975, pág. 177.

Sem prejuízo dos direitos adquiridos por usucapião, a acção de reivindicação não prescreve pelo

decurso do tempo – art. 1234º do anteprojecto do novo C. Civil.

É admitida a defesa da propriedade por meio de acção directa, nos termos do artigo 327º – art.

1235º do anteprojecto do novo C. Civil.

O recuso à acção directa e à legítima defesa (arts. 327º e 328º do anteprojecto) pressupõe a

verificação dos seguintes requisitos: a) impossibilidade de recurso, em tempo útil, aos meios

coersivos normais, nomeadamente aos tribunais; b) violação efectiva ou eminente do direito; c)

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racionalidade dos meios utilizados.

Quanto ao segundo requisito, há acção directa quando existe uma agressão do interesse do titular

já finda ou consumada e existe legítima defesa quando essa agressão é actual, portanto já iniciada

mas ainda não consumada.

IV. Aquisição da propriedade

O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação,

acessão e demais modos previstos na lei – art. 1237º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil (art.

584º do CCI).

Não se trata de enumeração taxativa, pelo que podem existir outros meio de aquisição da

propriedade.

a) Ocupação

Podem ser adquiridos por ocupação os animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono,

ou foram abandonados, perdidos ou escondidos pelos seus proprietários, salvas as restrições dos

artigos seguintes – art. 1239º do anteprojecto do novo C. Civil (art. 574º do CCI). Vejam-se os

arts. 1240º a 1244º do anteprojecto e 585º a 587º do CCI.

Os bens móveis do domínio privado do Estado, que forem abandonados, podem ser adquiridos

por ocupação.

b) Acessão

Dá-se a acessão, quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa

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que lhe não pertencia – art. 1245º do anteprojecto do novo C. Civil (art. 588º do CCI).

A acessão diz-se natural, quando resulta exclusivamente das forças da natureza; dá-se a acessão

industrial, quando, por facto do homem, se confundem objectos pertencentes a diversos donos,

ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o

resultado desse trabalho com propriedade alheia – art. 1246º, nº 1, do anteprojecto do novo C.

Civil.

A acessão industrial é mobiliária ou imobiliária, conforme a natureza das coisas – art. 1246º, nº

2, do anteprojecto do novo C. Civil.

Constitui benfeitoria o melhoramento de obra ou plantação já existente e acessão a obra ou

plantação nova, incluindo a acrescentada.

Se num terreno existe alguma construção, ela pode ser objecto de benfeitoria. Porém, se não

existia lá qualquer edifício, o que se construir constitui acessão e não benfeitoria.

A acessão dá-se pela mera união das coisas. Assim, o momento de aquisição por acessão é o da

união das coisas.

Porém, a aquisição por acessão não é automática, dependendo da manifestação de vontade do

beneficiário nesse sentido.

c) Acessão natural

Pertence ao dono da coisa tudo o que a esta acrescer por efeito da natureza – art. 1247º do

anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se no mesmo sentido o art. 588º do CCI.

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Pertence aos donos dos prédios confinantes com quaisquer correntes de água tudo o que, por

acção das águas, se lhes unir ou neles for depositado, sucessiva e imperceptivelmente – art.

1248º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

É aplicável o disposto no número anterior ao terreno que insensivelmente se for deslocando, por

acção das águas, de uma das margens para outra, ou de um prédio superior para outro inferior,

sem que o proprietário do terreno perdido possa invocar direitos sobre ele – art. 1248º, nº 2, do

anteprojecto do novo C. Civil. Vejam-se os arts. 595º a 598º do CCI, que precisamente diversas

situações de aluvião.

Se, por acção natural e violenta, a corrente arrancar quaisquer plantas ou levar qualquer objecto

ou porção conhecida de terreno, e arrojar essas coisas sobre prédio alheio, o dono delas tem o

direito de exigir que lhe sejam entregues, contanto que o faça dentro de seis meses, se antes não

foi notificado para fazer a remoção no prazo judicialmente assinado – art. 1249º, nº 1, do

anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 599º do CCI que para a situação de avulsão

estabelece o mesmo regime, mas fixa o prazo de três anos para que o dono das terras, plantas ou

outros objectos deslocados os exija do dono do terreno que os recebeu.

Não se fazendo a remoção nos prazos designados, é aplicável o disposto no artigo anterior (ou

seja, no art. 1249º, nº 1, do anteprojecto) – art. 1249º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil. No

mesmo sentido a segunda parte do art. 599º do CCI.

Se a corrente mudar de direcção, abandonando o leito antigo, os proprietários deste conservam o

direito que tinham sobre ele, e o dono do prédio invadido conserva igualmente a propriedade do

terreno ocupado de novo pela corrente – art. 1250º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

Contrariamente, nos termos do art. 592º do CCI, os donos dos terrenos que passaram a ser

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ocupados pelo leito do rio têm direito a ocupar os terrenos deixados pelo mesmo, na mesma

proporção dos terrenos que tinham, como forma de indemnização. Porém, a inundação

temporária não confere quaisquer direitos – art. 593º do CCI. Veja-se ainda o art. 594º do CCI.

Se a corrente se dividir em dois ramos ou braços, sem que o leito antigo seja abandonado, é ainda

aplicável o disposto no número anterior – art. 1250º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

As ilhas ou mouchões que se formem nas correntes de água pertencem ao dono da parte do leito

ocupado – art. 1251º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art. 590º do CCI.

Se, porém, as ilhas ou mouchões se formarem por avulsão, o proprietário do terreno onde a

diminuição haja ocorrido goza do direito de remoção nas condições prescritas pelo artigo 1249º –

art. 1251º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

As disposições dos artigos antecedentes são aplicáveis aos lagos e lagoas, quando aí ocorrerem

factos análogos – art. 1252º do anteprojecto do novo C. Civil.

d) Acessão industrial mobiliária

Se alguém, de boa fé, unir ou confundir objecto seu com objecto alheio, de modo que a

separação deles não seja possível ou, sendo-o, dela resulte prejuízo para alguma das partes, faz

seu o objecto adjunto o dono daquele que for de maior valor, contanto que indemnize o dono do

outro ou lhe entregue coisa equivalente – art. 1253º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se ambas as coisas forem de igual valor e os donos não acordarem sobre qual haja de ficar com

ela, abrir-se-á entre eles licitação, adjudicando-se o objecto licitado àquele que maior valor

oferecer por ele; verificada a soma que no valor oferecido deve pertencer ao outro, é o

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adjudicatário obrigado a pagar-lha – art. 1253º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se os interessados não quiserem licitar, será vendida a coisa e cada um deles haverá no produto

da venda a parte que deva tocar-lhe – art. 1253º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.

Em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, o autor da confusão é obrigado a ficar

com a coisa adjunta, ainda que seja de maior valor, se o dono dela preferir a respectiva

indemnização – art. 1253º, nº 4, do anteprojecto do novo C. Civil.

O autor da união fica sempre com o resultado da adjunção, independentemente do valor das

coisas, se a outra parte preferir a indemnização.

O CCI prevê a acessão industrial mobiliária no art. 606º, estipulando que a coisa passa a

pertencer a quem procede à incorporação, independentemente do valor, desde que pague os

materiais utilizados e indemnize o primitivo dono da coisa. Veja-se ainda o art. 608º do CCI.

Se a união ou confusão tiver sido feita de má fé e a coisa alheia puder ser separada sem padecer

detrimento, será esta restituída a seu dono, sem prejuízo do direito que este tem de ser

indemnizado do dano sofrido – art. 1254º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil. Veja-se o art.

609º do CCI, o qual tem aplicação também nos casos de acessão de boa fé.

Se, porém, a coisa não puder ser separada sem padecer detrimento, deve o autor da união ou

confusão restituir o valor da coisa e indemnizar o seu dono, quando este não prefira ficar com

ambas as coisas adjuntas e pagar ao autor da união ou confusão o valor que for calculado

segundo as regras do enriquecimento sem causa – art. 1254º, nº 2, do anteprojecto do novo C.

Civil.

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Se a adjunção ou confusão se operar casualmente e as coisas adjuntas ou confundidas não

puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, ficam pertencendo ao dono da mais valiosa,

que pagará o justo valor da outra; se, porém, este não quiser fazê-lo, assiste idêntico direito ao

dono da menos valiosa – art. 1255º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se nenhum deles quiser ficar com a coisa, será esta vendida, e cada um deles haverá a parte do

preço que lhe pertencer – art. 1255º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

Se ambas as coisas forem de igual valor, observar-se-á o disposto nos números 2 e 3 do artigo

1253º – art. 1255º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.

Nos termos do disposto no art. 607º do CCI, se a adjunção ou confusão se operar casualmente e

as coisas adjuntas ou confundidas não puderem separar-se sem detrimento de alguma delas, fica

o novo objecto pertencendo em conjunto a todos os donos dos materiais, na proporção do valor

do material de cada um.

Quem de boa fé der nova forma, por seu trabalho, a coisa móvel pertencente a outrem faz sua a

coisa transformada, se ela não puder ser restituída à primitiva forma ou não puder sê-lo sem

perda do valor criado pela especificação; neste último caso, porém, tem o dono da matéria o

direito de ficar com a coisa, se o valor da especificação não exceder o da matéria – art. 1256º, nº

1, do anteprojecto do novo C. Civil.

Em ambos os casos previstos no número anterior, o que ficar com a coisa é obrigado a

indemnizar o outro do valor que lhe pertencer – art. 1256º, nº 2, do anteprojecto do novo C.

Civil.

Dá-se especificação quando alguém, pelo seu trabalho, dá nova forma a coisa móvel pertencente

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a outrem, de tal modo que ela não poderá ser restituída à forma primitiva, ou não o pode ser sem

perda do seu valor pela especificação – Prof. Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, pág. 435.

Se a especificação tiver sido feita de má fé, será a coisa especificada restituída a seu dono no

estado em que se encontrar, com indemnização dos danos, sem que o dono seja obrigado a

indemnizar o especificador, se o valor da especificação não tiver aumentado em mais de um

terço o valor da coisa especificada; se o aumento for superior, deve o dono da coisa repor o que

exceder o dito terço – art. 1257º do anteprojecto do novo C. Civil.

Constituem casos de especificação a escrita, a pintura, o desenho, a fotografia, a impressão, a

gravura e outros actos semelhantes, feitos com utilização de materiais alheios – art. 1258º do

anteprojecto do novo C. Civil.

e) Acessão industrial imobiliária

Aquele que em terreno seu construir obra ou fizer sementeira ou plantação com materiais,

sementes ou plantas alheias adquire os materiais, sementes ou plantas que utilizou, pagando o

respectivo valor, além da indemnização a que haja lugar – art. 1259º do anteprojecto do novo C.

Civil. Disposição semelhante à do art. 602º do CCI, o qual acrescenta que o dono dos materiais

utilizados pelo dono do terreno não pode pedir a remoção dos materiais.

A acessão industrial imobiliária constitui uma forma de aquisição da propriedade sobre um

imóvel.

São elementos constitutivos da acessão: a construção de uma obra, a sua implantação em terreno

alheio, a formação de um todo único entre o terreno e a obra, o valor de um e outro e a boa fé na

conduta do autor da obra.

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Há acessão quando se altera substancialmente a coisa, quando há uma transformação, e

benfeitoria quando se verifica um simples melhoramento de uma edificação já existente.

Se alguém, de boa fé, construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o

valor que as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do

que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o

valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou plantações – art. 1260º, nº 1, do

anteprojecto do novo C. Civil.

Se o valor acrescentado for igual, haverá licitação entre o antigo dono e o autor da incorporação,

pela forma estabelecida no nº 2 do artigo 1253º – art. 1260º, nº 2, do anteprojecto do novo C.

Civil.

Se o valor acrescentado for menor, as obras, sementeiras ou plantações pertencem ao dono do

terreno, com obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da

incorporação – art. 1260º, nº 3, do anteprojecto do novo C. Civil.

Entende-se que houve boa fé, se o autor da obra, sementeira ou plantação desconhecia que o

terreno era alheio, ou se foi autorizada a incorporação pelo dono do terreno – art. 1260º, nº 4, do

anteprojecto do novo C. Civil.

Se alguém erigir construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro

indivíduo o dono do terreno pode ficar com a construção para si – art. 603º do CCI.

Ou seja, só há acessão se houver boa fé.

Se quem erigiu a construção estava de boa fé o dono do terreno pode optar entre reembolsar

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quem construiu o valor dos materiais de construção e salários pagos, ou pagar uma soma

monetária equivalente ao acréscimo do valor introduzido pela construção no terreno – art. 604º

do CCI.

Conforme resulta evidente do disposto nestes artigos e nos arts. 600º e 601º do CCI, quem

procede à implantação de imóveis ou culturas em terreno alheio nunca pode por essa via adquirir

o direito de propriedade sobre o terreno.

Se a obra, sementeira ou plantação for feita de má fé, tem o dono do terreno o direito de exigir

que seja desfeita e que o terreno seja restituído ao seu primitivo estado à custa do autor dela, ou,

se o preferir, o direito de ficar com a obra, sementeira ou plantação pelo valor que for fixado

segundo as regras do enriquecimento sem causa – art. 1261º do anteprojecto do novo C. Civil.

Se alguém erigir construção usando os seus próprios materiais em terreno pertencente a outro

indivíduo, agindo de má fé, o dono do terreno pode ficar com a construção para si, ou exigir que

esta seja removida por quem procedeu à construção, a expensas deste, o qual ainda terá que

indemnizar o dono do terreno por eventuais outros prejuízos resultantes da construção – art. 603º

do CCI.

Se o dono do terreno optar por ficar com a construção ou as culturas, terá que compensar os

custos dos materiais empregues e dos salários pagos, sem poder optar pelo valor acrestado do

terreno – art. 603º do CCI.

Quando as obras, sementeiras ou plantações sejam feitas em terreno alheio com materiais,

sementes ou plantas alheias, ao dono dos materiais, sementes ou plantas cabem os direitos

conferidos no artigo 1260º ao autor da incorporação, quer este esteja de boa, quer de má fé – art.

1262º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

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Se, porém, o dono dos materiais, sementes ou plantas tiver culpa, é-lhe aplicável o disposto no

artigo antecedente em relação ao autor da incorporação; neste caso, se o autor da incorporação

estiver de má fé, é solidária a responsabilidade de ambos, e a divisão do enriquecimento é feita

em proporção do valor dos materiais, sementes ou plantas e da mão-de-obra – art. 1262º, nº 2, do

anteprojecto do novo C. Civil.

Quando na construção de um edifício em terreno próprio se ocupe, de boa fé, uma parcela de

terreno alheio, o construtor pode adquirir a propriedade do terreno ocupado, se tiverem decorrido

três meses a contar do início da ocupação, sem oposição do proprietário, pagando o valor do

terreno e reparando o prejuízo causado, designadamente o resultante da depreciação eventual do

terreno restante – art. 1263º, nº 1, do anteprojecto do novo C. Civil.

É aplicável o disposto no número anterior relativamente a qualquer direito real de terceiro sobre

o terreno ocupado – art. 1263º, nº 2, do anteprojecto do novo C. Civil.

IV. Transmissão do direito de propriedade sobre imóveis

A transmissão do direito de propriedade sobre imóveis, bem como a constituição, transmissão ou

alteração de qualquer outro direito real sobre imóveis, tem que ser efectuada por escritura

pública – arts. 617º e 613º do CCI e art. 809º do anteprojecto do novo C. Civil.

A falta de observância da forma determina a nulidade do contrato – art. 617º do CCI e art. 211º

do anteprojecto do novo C. Civil.

Contrariamente ao que ocorre no projecto, o CCI precreve a natureza constitutiva do registo dos

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actos de transmissão, constituição ou alteração de direitos reais – arts. 616º, 618º e 620º do CCI.