Direito Como Experiencia - Miguel Reale

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MIGUEL REALE o DIREITO COMO " EXPERIENCIA (Introdução à Epistemologia Jurídica) EDIÇÃO FAC-SIMILAR COM NOTA INTRODUTIVA DO AUTOR (\ \ '\ 1992 O.SARAIVA

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MIGUEL REALE

o DIREITO COMO " EXPERIENCIA

(Introdução à Epistemologia Jurídica)

2~ EDIÇÃO FAC-SIMILAR COM NOTA INTRODUTIVA DO AUTOR

( \

\

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1992

O.SARAIVA

Page 2: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

ISBN 85-02-00967-2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C IP) (Câmara Brasi leira do Livro, SP, Brasil)

Reale, Miguel, 1910-O Direito como experiência : introdução à epistemologia jurídica /

Miguel Reale . - 2. ed . - São Paulo: Saraiva, 1992.

1. Direito - Filosofia 2. Direito - Teoria I. Título.

91-1089 CDU-340.12

índices para catálogo sistemático:

1. Direito: Filosofia 340. 12 2. Direito jurídico: Teoria do Direito 340.12 3. Epistemologia jurídica: Direito 340.12

c!i- T - iS{ ",,~- l .~ r I

D __ SARAIVA

198;3

Avenida Marquês de São Vicente. 1697 - CEP: 01139 - Tel.: PABX (011) 826-8422 -Barra Funda - Caixa Postal 2362 - Telex: 1126789 - FAX: (0111826-0606 - São Paulo - SP

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PRINCIPAIS OBRAS DO AUTOR

o Estado Moderno. 1933, 3 edições esg. Formação da PoHtica Burguesa. 1935. esg. O Capitalismo Internacional. 1935. esg. Atualidades de um Mundo Antigo. 1936. esg. Atualidades Brasileiras. 1937. esg. Fundamentos do Direito. 1940. esg. 2. ed. Re-

vista dos Tribunais, 1972. Teoria do Direito e do Estado. 1940. esg. 2.

ed. 1960. esg. 3. ed., rev., Livr. Martins Ed., 1972. esg. 4. ed., Saraiva, 1984.

A Doutrina de Kant no Brasil. 1949, esg. Filosofia do Direito. 1. ed. 1953.2. ed. 1957.

3. ed. 1962. 4. ed. 1965. esg. 5. ed. 1969. 6. ed. Saraiva, 1972. 7. ed. 1975. 8. ed. 1978. 9. ed. 1982. 10. ed. 1983. 11. ed. 1986. 12. ed. 1987. 13. ed. 1990.

Horizontes do Direito e da História. Saraiva, 1956.2. ed. 1977.

Nos Quodrantes do Direito Positivo. Ed. Mi­chalany, 1960.

Filosofia em São Paulo, 1962. esg. 2. ed. Ed. Grijalbo-EDUSP , 1976.

Parlamentarismo Brasileiro , 2. ed. Saraiva, 1962. Pluralismo e Liberdade. Saraiva, 1963. imperativos da Revolução de Março. Livr.

Martins Ed., 1965. Poemas do Amor e do Tempo. Saraiva, 1965. Introdução e Notas aos "Cadernos de Filoso­

fia", de Diogo Antonio Feijó. Ed. Grijal­bo, 1967.

Revogação e Anulamento do Ato Administrati­vo. Forense, 1968.2. ed. 1980.

Teoria Tridimensional do Direito. Saraiva, 1968.4. ed. 1986.

Revolução e Democracia. Ed. Convívio , 1969. 2. ed. 1977.

O Direito como Experiência, Saraiva, 1968. Direito Administrativo. Forense, 1969. Problemas de Nosso Tempo. Ed. Grijalbo-

EDUSP, 1969. Lições Preliminares de Direito. Bushatsky,

1973, 18. ed. Saraiva, 1991. Lições Preliminares de Direito. Ed. portugue­

sa. Coimbra, Livr. Almedina, 1982. Cem Anos de Ciência do Direito no Brasil. Sa­

raiva, 1973. Experiência e Cultura. Ed. Grijalbo-EDUSP,

1977. PoWica de Ontem ede Hoje (Introdução à Teo­

ria do Estado) , Saraiva, 1978. Estudos de Filosofia e Ciência do Direito. Sa­

raiva, 1978. Poemas da Noite. Ed. Soma, 1980. O Homem e seus Horizontes. Ed. Convívio,

1980.

Questões de Direito. Sugestões Literárias, 1981. Miguel Reale na UnB, Brasília, 1982. A Filosofia na Obra de Machado de Assis -

Antologia Filosófica de Machado de Assis. Pioneira, 1982.

Verdade e Conjetura . Nova Fronteira, 1983. Obras Políticas (I? fase - 1931-1937). UnB,

1983. 3 vols. Direito Na/ural ! Direilo Positivo. Saraiva, 1984. Figuras da Inteligência Brasileira. Tempo Bra-

sileiro Ed . e Univ. do Ceará, 1984. Teoria e Prática do Direito. Saraiva, 1984. Sonetos da Verdade. Nova Fronteira, 1984. Por uma Constituição Brasileira. Revista dos

Tribunais. 1985. Reforma Universitária. Ed. Convívio, 1985. O Projeto de Código Civil. Saraiva, 1986. Liberdade e Democracia. Saraiva, 1987. Memórias. v. I. Destinos Cruzados. Saraiva,

1986.2. ed. 1987. Memórias. v. 2. A Balança e a Espada. Sarai­

va, 1987. Introdução à Filosofia. Saraiva, 1988. O Belo e oulros Valores. Academia Brasileira

de Letras, 1989. Aplicações da Constituição de 1988. Forense,

1990. Nova Fase do Direito Moderno, Ed. Saraiva,

1990. Vida Oculta, Massao Ohno!Stefanowski Edito­

res, 1990.

PRINCIPAIS OBRAS TRADUZIDAS

Filosofia dei Diritlo. Trad. Luigi Bagolini e G. Ricci. Torino, Giappichelli, 1956.

11 Diritto come Esperienza, com ensaio introd. de Domenico Coccopalmerio. Milano, Giuffre, 1973.

Teoría Tridimensional dei Derecho. Trad. J. A. Sardina-Paramo. Santiago de Compostella, Imprenta Paredes, 1973.2. ed. Universidad de Chile, Vai paraíso (na coletãnea "Juris­tas Perenes").

Fundamentos dei Derecho. Trad. Julio A . Chiappini. Buenos Aires, DepaIma, 1976.

Introducción ai Derecho. Trad. Brufau Prats. Madrid, Ed. Pirámide, 1976. 2. ed. 1977. 9. ed. 1989.

FilosoFa dei Derecho. Trad. Miguel Angel Herreros. Madrid, Ed. Pirámide, 1979.

Expérienceet Culture. Trad. Giovanni Dell' An­na. Bourdeaux, Éditions Biere, 1990.

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íNDICE GERAL

Nota introdu tória

II

1TI

Motivo da edição fac-similar .....

Momentos da Teoria Tridimensional do Direito

Lógica Jurídica Formal e Lógica Jurídica Dialética

IV - O problemático e o conjetural no Direito ............. .. .

V - Modelos do Direito: Modelos Jurídicos e Modelos Dogmáticos

VI Uma antiga conversa a.inda atual sobre o presente livro . ... ..... .

PÁG.

XIII

XIII

XIV

XIX

XXI

XXIV

XXIX

Prefác io da L" ed ição ...... ...... ... . ....... . ........ ... .... .. ... XXXVII

ENSAIO I

O PROBL EMA DA EXPERIÊNCIA JURíDICA

A crise da teoria da experiência jurídica e a atualidade do tema .... I

II As três perspectivas filosóficas fundamentais da experiência jurídica 7

J II A experiência ética na linha de Kant e dos neokantianos ... . !3

IV - A experiência ét ica a part ir da fenomenologia ....... .. ........... .

E NSAIO II

EXPERIÊN CIA JURIDICA PR~-CATEGORIAL E OBJ ETIVAÇÃO CIENTlFICA

- Concrctitude axio lógica da experiênc ia jurídica ................... .

11 - Problematicismo e tipicidade da experiência jurídica - Sua natureza

20

25

dialética ......... . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3\

!fI - A experiência jurídica pré-categorial ............... . 36

IV - A ordem imanente à experiência jurídica .......... . . 4 1

V - A experiência jurídica como objetivação científi ca ...... ... ........ 47

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x MIGUEL R EALE

ENSAIO IH

ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS DO CONHECIMENTO JURíDICO

I _ A experiência jurídica sob os prismas transcendental empírico-positivo ............ ...... .......................... .

II - Espécies de pesquisas positivas do Direito ....

III Lógica jurídica e Lógica jurídica formal

IV - Analítica e Dialética Jurídicas .. ",., .. """.""." .,.,' ,.

ENSAIO IV

FILOSOFIA JURlDICA, TEORIA GERAL DO DIREITO E DOGMÁTICA JURíDICA

_ A Filosofia jurídica e o papel da Jurisprudência - A crise do Direito

II - Ontognoseologia e Epistemologia jurídicas

III _ A Te~ria G,er~ 1 do Dtreito corno teoria positiva de todas as fo rmas da experrenc12 Jund lca , . . . ",."" .""""".".","",., .. ".,"

ENSAIO V

NATUREZA E OBJETO DA ClfNCIA DO DIREITO

! - Direções fundamentais

II - O Direito como realidade "a se" de caráter normativo

TTI - O neo-positivismo jurídico

TV - O Direito como fato

V - Rumo à compreensão integra l do Direito

VI - A Jurisprudência corno ciência histórico-cultural compreensivo-normativa

ENSAIO V I

ClfNC IA DO DIREITO F. DOGMÁTICA JURlDI CA

Os uois momentos da pesquisa jurídica

II Momento normativo e momento dogmático

I II Sistema e problema

IV Problemática do "dogma" jurídico

51

58

(;5

70

75

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95

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139

II

TIl

IV

V

VI

o DIREITO CO MO EXPERIÊNCIA

ENSAIO VII

ESTRUTURAS E MODELOS DA EXPERlfNCTA JURlDICA - O PROBLE MA DAS FONTES DO DIREITO

Do conceito de estrutura na Sociologia e na Jurisprudência

O conceito de estrut ura no piano filosófico e no científico-posi tivo

Natureza tios mode los jurídicos

A teoria dos modelos ju ríd icos e a das fontes formais

Ciênc ia do D ireito e Teor ia da Comunicação , .. , . , , , , ..

Espécies de modelos jurídicos e sna correlação

ENSAIO vm

GfNESE E VlDA DOS MODELOS JURíDI COS

I - Duas especles de Ilormat ivismo jurídico

Il - Nomogênese jurídica

IH - O nexo fático-axiológico - O fato e o direito

IV - Problemas de semântica jurídica

V - O tempo no Direito

11

11

III

ENSAIO IX

COLOCAÇÃO DO PROBLEMA FILOSÓF ICO DA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Do divórcio entre o filósofo do Direito e o jurista

A perspectiva do fil ósofo no processo hermenêutico

ENSAIO X

PROB LEMAS DE HERMENfUTlCA JURíDICA

A interpretação como tema de Filosofia e de Teoria Geral do Direito

A Hermenêutica jurídica como ciência positiva

Fenomenologia do ato interpretativo e objetividade

IV O intérprete perante as intencionalidades objetivadas

V Ato interpretat ivo e norma jurídica "".,.",. , , . , , ... , , , .

VI lmperatividade e interpretação ""."""",."" ., ., .. , .. ",.,

VII Natureza axioIógica do ato interpretativo e sua condic ionalidade histó-rica """""" , .. ", ... , .. "., ... """,

XI

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154

16 I

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187 192

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XJl MIGUEL RE A LE

VfII - Logicidade concreta do ato interpretativo como exigência de objetivação racional .. ... ..... ... ......... . ....... . ........ ".,'

IX - Plenitude do ordenamento jurídico e pluralismo metódico "" . '"

X - Interpretação e integração normativa """".,. " "".", . ".,

ENSAtO Xl

EXPERlfNCIA MORAL E EXPERlfNCIA JURIOICA

I - Duas perspectivas do problema

II - Sentido da subjetividade da Moral e da objetividade do Direito ". ,

IH - A moralidade do Direito .... . ... , ... , .. . ... " ... ". , ., . ,',.,

IV - Os corolários da atributividade ... , ... . ...... . . .. .. ....... , . .. '.

E NSAIO XII

PENA DE MORTE E MISTÉRIO

I - O problema da morte na consciência contemporânea ., .... , . .. , ... ,

II A morte e o conceito racional de pena .. "'."."""",, .. ,'

UI A morte à luz da filosofia existencial: Sêneca, Agost inho, Heidegger e Sartre , . " .. .. , .. . ,., ... , ............. , ... , .... , .. . .. .

IV - O absurdo da morte na gradação das penas ., ... . . , . . . ", . . ", .. '

INDICE DOS AUTORES CiTADOS. , .. , . .. " ...... . . " . . . " · ··,,, · · ,·

252

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I NOTA INTRODUTÓRIA

SUMÁRIO : I - Motivo da Edição Fac-similar; li - Momentos da Teoria Tridimensional do Direito; III - Lógica Jurídica Formal e Lógica Jurídica Dialética; IV - O Problemático e o Conjetural no Direito; V - Modelos do Direito: Modelos Jurídicos e Modelos Dogmáticos; VI - Uma Antiga Conversa ainda Atual sobre o Presente Livro,

I

MOTIVO DA EDIÇÃO FAC-SIMILAR

~ 1. Quando a Saraiva, a fim de atender a pedidos chegados de todos os recantos do País, resolveu publicar a 2.a edição de O Direito como Experiência fiquei diante de uma alternativa : ou atualizar a obra, refundindo-a em alguns pontos para fazê-la corresponder ao desenvolvimento de meus estudos, quase vinte quatro anos após a primeira edição, ou, então, manter o texto inalterado, feita apenas a correção de lapsos graves que o enfeiavam.

Após atenta releitura, optei por esta segunda solução, porque me parece que o livro exige menos retificações de fundo do que notas complementares, com remissão a tópicos de livros posteriores onde o assunto passou a ser versado com mais amplitude ou profundidade. Daí a idéia da presente Nota Introdutória, a exemplo da tradução italiana, mas com o objetivo específico de salientar as conseqüências das investigações por mim elaboradas com base nas conclusões a que chegara em 1968.

Na realidade, a presente obra tem a distingui-la o fato de ter operado, por assim dizer, como um divisor de águas na corrente de minhas pesquisas, abrindo meu espírito para problemas tanto de Fi­losofia G€ral como de Filosofia e Ciência do Direito: alterá-Ia subs­tancialmente significaria, pois, perder o nexo que suas raízes guar­dam com os desenvolvimentos teóricos, notadamente em razão da passagem de uma teoria da experiência jurídica para os amplos qua­dros de uma teoria da experiência em geral, objeto de Experiência e Cultura, publicado em 1977.

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XIV MIGUEL REALE

Nem mesmo me parece necessário converter os Ensaios em Ca­pítulos, como se fez na edição italiana " por tel' o ilustre mestre que a dirigiu, o Professor Domenico Coccopalmerio, da Universidade de Trieste, considerado plenamente comprovado o travamento que une todos os estudos numa seqüência lógica essencial.

Além do mais, na inteligência do autor, certos livros se revestem de uma configuração especial, de tal modo que nasce o receio de reto­cá-los para não alterar-lhes a fisionomia . Problema, pois, de filiação espiritual que peço seja respeitada ...

O que me comove é saber que, depois de tantos anos, estando o livro esgotado, dele se faziam fotocópias para pesquisas de sem iná­rios, ou para atender àqueles que cuidam da história das idéias jurí­dicas no Brasil, onde é sem dúvida crescente o interesse pelos proble­mas de Filosofia Social e Jurídica, não somente em razão de novos cursos universitários que conduzem à interdisciplinaridade, mas tam­bém em virtude da insegurança que reina em nosso ordenamento ju­rídico positivo, impondo o exame de seus alicerces.

Foi talvez a Filosofia do Direito o primeiro ramo filosófi co a adqUirir, em nossa Terra, dimensão própria, projetando-se univer­salmente por seus valores próprios, muito embora em necessária e fecunda correlação com o diálogo das idéias acima de distinções de fronteiras ou de idiomas. Hoje em dia, outros campos lavrados por nossos "filosofantes", como é o caso da Lógica Paraconsistente de Newton A. da Costa, atraem a atenção de pensadores alienígenas, adqUirindo, assim, a projeção já alcançada pelo Brasil no plano do Dire ito Positivo (nesse sentido bastaria o exemplo de Teixeira de Freitas) , na Música, nas Letras, na Arquitetura e em alguns domí­nios da Ciência positiva.

Espero que esta edição, com as notas que a acompanham, possa preencher a reclamada lacuna, contribuindo para a transladação à esfera do Direito do espírito crítico de que andamos tão precisados.

II

MOMENTOS DA TEORIA TRIDIMENSIONAL DO DIREITO

§ 2. A teoria tridimensional do Direito não surgiu de repente, desde logo plenamente constituída, mas veio sendo completada e aper­feiçoada ao longo do tempo, graças a um constante trabalho de auto-

1. Tl ide MiGU EL REAL E - II dil'illo COllle esperiellza, Giuffre Editore, 1973, com Saggio il1ll'odul!ivo de DOMENICO COCCOPALMERIO.

o DIREITO CO~IO EXP ERI ÊNCl A xv

crítica e também em função da emergência de novas diretrizes dou­trinárias no domínio da Ciência ou da Filosofia do Direito.

É claro que, corno sói acontecer, essa teoria foi fruto de uma intuição inicia l, qURndo, ao consta ta r a persistência de uma divisão tripartida da Filosofia do Direito para fins didá t ;cos - desde o posi tivista Icilio Vanni até os neokantistas Giorgio Del Vecchioe Adolfo Havà -, me ocorreu perguntar se essa tripartição nâo ocultava um problema de luudo rela tivo à estrutura mesma de fenômeno jurídico, a té então não devidamente analisado.

Essa primeira tomada de posi ção ocorreu em 1940, com a simul­tânea publicação de duas obras básicas na história de meu pensamen­to jurídico, Fw/domentos do Direito e T eor ia do Direito e do Est:t ­do ", de concepção geminada, corno foi bem observado , na época, pOI' Waldemar Ferreira.

Nesses dois livros já saliento a exístência de três elementos cons­titutivos, sempre presentes em toda experiência jurídica , a que deno­minei lato) valor e l/Ornla, segundo terminologia ao depois uni versa­lizada.

Essa primeira colocação do problema traduziu-se numa correla­ção estática e a inda não plenamente esclarecida entre aqueles fa tores , paI' não ter ainda concebido o valor como elemento autônomo, não redutível aos objetos ideais. Só depois víria superar a "idea lidade axiológica" de inspiração platônica estabelecida por Max Scheler e Nicola i Hartmann, cujas diretrizes então seguia. Isto, porém, não me impediu de , à pág. 26 de Teoria do Direito e do Est~doJ já poder afir­mar, em 19"10, que "é da i nt3gmção elo f ato em um vélZcr que surfle t1

norma" , o que permitiu a Josef Kunz, em seu conhecido estudo sobre a Filosofia do Direito na América Latina, referir-se à "fórmula Rea­le" como integração normativa de fatos segundo valores, expressão primeira da tridimensionalidade.

§ 3. Foi nos anos seguintes, como o demonstram as sucessivas preleções taquigrafadas de meu curso de Filosofia do Direito, que mi­nhas idéias sobre a tridimensionalidade vieram progressivamente se determinando, em virtude, em primeiro lugar, de uma revisão da teo­ria dos objetos de Frank Brentano com base numa compreensão 1'2"1-

lista da distinção kantiana entre ssr (Ssin ) e d%sr -ssr (SoZlen ), com o entendimento de que o que deve ser não pode deixar de conver ter-se em algum momento da história, em algo de atualizado ou rea lizável,

2. O primeiro. tese com que me apresentei ao concur, o de Filosofia do Direito na hi stórica Faculdade elo Largo cle São Francisco. apa receu como edic i' o pa rticu­lar (2." ed. da R el'Ís!a dos Tribllna is. com am pla Int rodução de THEO PHIlO CA\·ALC.~ N II FILHO) C o segundo fo i inic ia lmente publicado pela Livrar ia Mariins Edi tora. , enel o a 4. ' eel. da Editora Sara iva , reestruturada com todos os textos estra ngeiros traduzi­dos (1 984).

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XVI MIGUEL REALE

sob pena de esfumar-se como quimérica aparência. Desse modo, o va­lor deixava de ser algo que é (um dado lógico ou ideal) para passar a ser algo que deve ser (um dado deontológico). Não creio que essa mudança de enfoque seja irrelevante para um conceito autônomo de Axiologia.

Por outro lado, minha análise do problema do conhecimento le­vou-me a outra e complementar conclusão quanto à correlação essen­cial entre sujeito e objeto, exposta em termos ontognos301úgicos, isto é, como fatores em mútua e unitária dependência. É claro, penso eu, que nessa dupla correlação entre suj eito e objeto e ser e dever-ser está imanente uma dialética de novo tipo, a dia!ética de complemen­taridade, por sinal que cada vez mais prevalecente no campo da Filo­sofia da Ciência, como viria a expor, detalhadamente,em meu livro Experiência e Cultura (1977). De tal modo, o objeto (meta do pro­cesso gnoseológico) se convertia concretamente no objetivo visado pelo processo valorativo e ético, compondo em integralidade meu pen­samento filosófico, depois exposto na obra supracitada.

Cabe notar que essas colocações dos dados do problema ocorre­ram !':Ob a influência crescente da fenomenologia de Husserl, mas em uma "visão histórica" que poucos a consideravam compatível com a sua teoria transcendental. Sua obra póstuma A crise da Ciência euro­péia e a fencmenologia transcendental viria, porém, dar-me razão. Foi, assim, que surgiu o meu historicismo axiológico, feliz denomi­nação dada a meu pensamento pelo fraterno amigo Luigi Bagolini, ao prefaciar a tradução italiana de minha Filosofia do Direito, que ele me deu a honra de traduzir conjuntamente com Giovanni Ricci. Na concepção histórico-axiológica da vida humana, que, em minha experiência pessoal representava o superamento do historicismo de Benedetto Croce e Giovanni Gentile, a inda apegados à dialética hege­liana, já está implícita a dialetização d3 fato, valor e norma, a qual, no dizer de Sanchez De La Torre, catedrático da Universidade de Ma­drid, representou inovação fundamental no estudo do que há de fac­tual, normativo e axiológico na experiência social e jurídica. Em ver­dade, é tão-somente quando os três fatores são vistos como termos entre si dialeticamente correlacionados que se pode considerar (~l abo­

r ada uma teoria fundada na estrutura tridimensional de qualquer segmento ou momento da experiência jurídica. Foi propriamente em 1952 que essa idéia se me apresentou de maneira clara, sendo recebi­da com entusiasmo por Luigi Bagolini, ao retomar seu curso em nos­sa Faculdade de Direito.

Como se vê, minha Filosofia do Direito, cuja l.a edição é de 1953, significa o ponto de chegada de uma longa e continuada pesquisa, muito embora interrompida por freqüentes intervalos determinados por a tividades políticas e administrativas, a que os intelectuais não podem fugir, sobretudo nos países do Terceiro Mundo. Aliás, se os

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA XVII

empenhos práticos, de um lado, nos afastam das elaborações teóricas, de outro, nos enr iquecem de senso do real concreto, alimentando e re­orientando as fases sucessivas de indagação.

§ 4. Compreende-se, desse modo, também sob o ponto de vista existencial, minha crescente simpatia pelo problema da concreção no processo histórico-social, em geral, e no processo jurídico em particu­lar, o que começa a se delinear de maneira positiva em meu ensaio pioneiro (modéstia à parte) intitulado Concreção de fato, valor e nor­ma no D ireito Romano Clássico", o qual , segundo me é relatado por meu caro amigo Almiro Couto e Silva, que lhe ouviu as lições, em Heidelberg, era apresentado por Gerardo Broggini como uma das fon­tes da teoria da concreção jurídica.

Pois bem, foi em O D ireito C011W Experiência que surgiu, em 1968, plenamente desenvolvida a minha visão C017CTeta ou experien­ciaZ da realidade jurídica, superando de vez não somente o formalis­mo jurídico, cuja máxima expressão foi Hans Kelsen, mas também todas as modalidades de compreensão unilateral do mundo jurídico, em contraposição frontal às recentes pretensões do neopositivismo ou do neo-realismo jurídicos, que, através de caminhos paralelos,preten­diam reduzir o Direito ao meramente factual.

1968 foi um ano decisivo na história de minha vivência jurídica, repetindo 1940 no que se refere à elaboração de duas obras gemina­das, ou seja , Teoria Tridi:m,.onsv ional do Direito e O Direito como Ex­periência, ambas de Saraiva - Livreiros Editores. São livros que não podem ser compreendidos senão em essencial correlação, sendo o se­gundo, por assim dizer, continuação e especificação do primeiro como projeção no plano epistemológico das idéias gerais anteriormente fir­madas. Todavia, nem sempre se poderá estabelecer essa correlação em termos de gênero e espécie, porquanto o desenrolar da pesquisa implica, de per si, ir freqüentemente do genérico ao específico, e vice-versa. Vista no seu todo, a apontada correlação me parece, no entanto, plausível.

É, em suma, na presente obra que a correlação fático-axiológico­normativa se apresenta em sua concretitude. Esta põe-se no plano filosófico ou transcendental como momento da ontognoseologia jurí­dica e do historicismo axiológico - objeto da citada 1.a edição de Teoria Tridimensional do Direito -, mas se realiza como modalidade de estruturas sociais, ou modelos jnridicos no plano empírico da expe­riência do Direito, o que explica o título dado à obra.

Dessarte, à cornpreensão filosófica vem acrescentar-se a com­preensão sociológica, esta nas linhas da Sociologia estruturalista de

3. Trabalho publ icado na Revista da Faculdade de Direito da USP, va I. 49, 1954, e inserto, depois, na 1: edição de Horizontes do Direito e da História , 1956, págs. 58-RI.

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Talcott Parsons e Robert Merton, coincidentes , ali ás, em vários pon­tos, com as contribuiç6es renovadoras de Gilberto Freyre.

A teoria dos modelos jurídicos eu a esbocei, inicialmente, em co­municação escrita para o Congresso Internacional de Filosofia, reali­zado em Viena, em agosto de 1968, apresentando-se já elaborada em seus pontos capitais em O Direito como EX]J9)'iência.

Quando concordei em publicar a 4.a edição de Teoriu Tridimen ­sional do Direito (1986), resolvi acrescentar-lhe um longo estudo des­tinado a atualizá-Ia, oportunidade em que tratei com mais profundi­dade do papel desempenhado pela Lebellswelt (o mundo da vida co­mum) de inspiração husserliana na vida e morte dos modelos jurídi­cos, consoante será realçado logo mais.

O certo é que a presente obra constitui um momento essencial em minhas renovadas investigações, tendo representado ponto de par­tida para estudos posteriores, não só na esfera do Direito, mas tam­bém na tela da Filosofia Gerai, como o demonstra talvez a minha obra capital, Experiência e Cultura, recenteme!1te vertida para o francês 4. Nesse sentido, rogo ao benévolo lei tal' que estenda a este li­vro as referências que encontrar a um meu escrito de 1966, intitula­do "Fenomenologia, Ontognoseologia e Reflexão Crítico-Histórica", porquanto ele foi o embrião de Experiência e Cultura,

Apenas para completar a exposição dos momentos da teoria tri­dimensional do Direito, de seu Ensaio X sobre problemas de Herme­nêutica Jurídica resultaram minhas últimas pesquisas sobre os pres­supostos filosóficos e a natureza da interpretação do Direito, à luz do pensamento conjetural, tal como é exposto em Estudos de 11' iloso­fia e Ciência do Direito (1978) e NOl;~1 11'((se do Direito Moder ­no (1990).

É por todas essas razôes que, ao se di spor a Editora Saraiva a fazer a 2.a edição de O Direito como E;xperiência, julguei mais con­veniente limitar-me à revisão de lapsos da edição anterior , fazendo-a anteceder desta Nota Introdutória destinada a apontar os pontos que merecem correção ou complementos, à luz dos últimos desenvolvi ­mentos de minhas pesquisas. Ver-se-á que não teria sentido refundir algumas páginas de um livro que possui a sua dimensão histórica na evolução de meu pensamento. O cotejo desta Nota com o texto de 1968 servirá tanto para comprovar a evolução como .3 contínua revisão crítica e as retificações essenciais à investigação científica, a qual, conforme conhecido magistério de Karl Poppe!', se desenvolve segundo sucessivas tentativas e refu tações, o que não sign ifica que deva ser alterado o que ainda resiste à ação erosiva do tempo.

4. Cf. Expérience el Cu/une, Fondemelll d'1l11e Ih(oorie gélléra/e de I'exl'ériel1-ce, 1990, trad. de Giovanni DeIl'Anna, Editions Biére. Bordeaux, com prefácios de JEAN-MARC TRIGEAUD e CANDIDO MENDES.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA XIX

III

LóGICA JURíDICA FORMAL E LóGICA JURíDICA DIALÉTICA

~ 5, Por ocasião do III Congresso de Filosofia Social e Jurídica, ocorrido em São Paulo, cujos Anais foram publicados sob o título .Li­berdade, Participação, Comunidade" Roberto Vernengo, ilustre pro­fessor de Filosofia do Direito da Universidade de Buenos Aires, ofe­receu uma comunicação destinada a delinear a situação atual da Ló­gica Jurídica. Nesse trabalho R. Vernengo atribui à posição de Carlos Cossio e à minha, perante essa disciplina, mero valor de documentos históricos superados pelo rápido desenvolvimento dos estudos.

Ele pode ter razão quanto a Cassio, que reduzia a Lógica JUl'ídi­ca à Teoria Pura do Direito - o que é deveras inadmissível, muito embora Hans Kelsen tenha contribuído mais do que ninguém para uma visão autônoma e geral do "normativo" com base na categoria de dever-ser -, mas não penso que a crítica seja procedente com relação ao que afirmo nos parágrafos 8 e seguintes do Ensaio II deste livro (púgs. 65 usque 74).

Ou Vernengo tresleu o que escrevi, ou se deixou levar pela pai­xão neopositivista de não admitir outra Lógica além da Lógica For­mal, Simbólica, Matemática ou que melhor nome tenha, não admi­tindo, pai' prevenção, a Lógica Dialética ou Concreta.

Penso que as dúvidas por mim suscitadas, em 1968, sobre o al­cance da Lógica Jurídica, enquanto Lógica das estruturas proposicio­nais do Direito, ainda não foram de todo superadas, como o demons­t ra o inquietante diálogo travado entre Hans Kelsen e Ulrich Klug, que levou o Mestre da Teoria Pura às surpreendentes conclusões con­tidas em sua obra póstuma, 7'eoria Geral das Norm'J.s ".

§ 6. A Lógica Jurídica formal, tal como é hoje em dia enten­dida, tem uma história recente, adquirindo perfil mais nítido a par­tir dos estudos de Deôntica Jurídica estabelecidos com base nas decisivas contribuições sobre a teoria das normas de Von Wright, o qual em 1951, por sugestão de Broad, passou a usar o sintagma Deontic Logic como título de seu já clássico ensaio sobre ° sistema formal de lógica dos modos deônticos obrigatório, proibido ou per· mitido.

Como nos lembra Tecla Mazzarese, Norberto Bobbio, em 1962, em Diritto e Logica) já indagara da possibilidade de serem respon­didas pela Deônt ica Jurídica, enquanto memento da Lógica Jurídica, estas duas perguntas: a) "É possível, e em que condições, uma vá­lida inferência entre normas?"; b) "Quais são as características de

5. Cf. Edição do IN STITUTO BRASILEIRO DE FILOSOFIA, São Paulo, 1986. 6. ef., sobre o ass unl o, MIGUEL REAI.E - N o !·a Fase. do Direi10 i\1odemo,

São Pau lo, 1990, pág. 201 , no estudo in titulado "O terceiro Keisen" .

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xx MIGUEL REALE

um sistema jurídico e em que condições se pode falar de um orde­namento jurídico como sistema?" ' . Pois bem, são esses dois quesi­tos que Tecla Mazzarese, com base em análise da linguagem jurídica, considera ainda não resolvidos satisfatoriamente pela Deôntica Ju­rídica B.

Comparada com essa atual atitude dubitativa, não se poderá negar que, em 1968, eu revelava posição mais otimista perante a Deôntica Jurídica, da qual esperava, como se pode ler à pág. 68, "preciosas contribuições à determinação dos conceitos jurídicos, da estrutura da norma jurídica, do silogismo prático e dos nexos de inferência entre as proposições normativas, em geral, bem como à elucidação das figuras de qualificação jurídica e das condições in­dispensáveis à configuração do Direito como 'sistema' e 'ordena­mento' li.

Esclareço, no entanto, que, na mesma pág. 68, declaro ser "evidente que a Lógica Jurídica formal não pode deixar de fazer abstração do variável oonteúdo axiol6gico das regras de direito, assim como de sua mutável corulicionaZidade fática", o que não ex­cluía a possibilidade da formalização normativa chegar a levar em conta, vetorialmente, a existência da realidade factual ou valorativa do Direito no seu todo} sem imiscuir-se na infinita variabilidade dos fatos e valores. Neste ponto, confesso que fui surpreendido pelos recentíssimos trabalhos de fornwlização dual (a norma em função do valor) ou mesmo trina (a norma em função do fato e do valor) resultantes da aplicação ao mundo do Direito da Lógica Paracon­sistente, um de cujos fundadores é o grande lógico brasileiro Newton A. da Costa. Nem é demais lembrar que nessa tarefa pioneira co­labora por sinal também Roberto J. Vernengo, ao lado de Leila Zar­do Puga e outros. Quanto à formalização da teoria tridimensional, bastará referir-me ao estudo de Leila, que a analisa sob o prisma da Lógica Paraconsistente 9.

Como se vê, houve e continua a haver inegáveis progressos na tela lógico-jurídica, mas sem desmentido de minhas colocações ini­ciais do assunto quanto ao que, no Direito, transcende o aspecto pro posicional.

Todavia, o que me parece fora de contestação é que a Lógica Jurídica formal não cobre, nem pode cobrir, todos os momentos do processo normativo peculiar à experiência do Direito, quer no que se refere à gênese dos modelos jurídicos e suas mutações, por tratar­se de um sistema normativo dinâmico cheio de insurgências e recor­rências; quer no tocante aos problemas de validade e eficácia; quer

7. Diritto e Logica, 1962, págs. 25 e segs. 8. TECLA MAZZARESE, Logica Deolltica e /inguaggio giuridico, Pádua, 1989,

pág. 3 e passim. 9. Cf. LEILA Z. PUGA - "A Lógica deôntica e a Teoria Tridimensional do Di·

reito", em Revista dos Tribunais, 1988, vol. 634, págs. 36 e segs.

o DiREITO COMO EXPERIÊNCIA XXI

no concernente à sempre aberta captação hermenêutica de seus significados; quer quanto aos critérios de sua aplicação judicial, e, por fim, no que se refere às exigências lógicas que presidem a téc­nica da argumentação e de persuasão, objeto de conhecidos estudos de Perelman, Viehweg e Esser. Para esse amplíssimo e variegado campo da experiência jurídica é que, a meu ver, torna-se necessário recorrer a processos dialéticos, cuja variedade e amplitude ponho em realce em Experiência e Cultura. .

Não vejo razão, pois, para alterar o que escrevo, de págs. 70 a 74, sobre uma distinção fundamental entre Analítica e Dialética JurúlicaS) sobretudo depois que foi superado o monopólio marxista na matéria, reconhecendo-se outras modalidades de dialética, à cuja frente situo a dia/.étioa d,e cmnplementaridade como a mais própria ao mundo do Direito. Nem é de somenos salientar a correlação exis­tente entre essas duas ordens de método e de pesquisa, como assina­]0 na parte conclusiva do Ensaio UI.

IV

O PROBLEMÁTICO E O CONJETURAL NO DIREITO

§ 7. Tenho para mim que a evolução de meu pensamento não obedece a mutações bruscas, mas antes a uma demorada vivência dos problemas. É o que se pode notar quanto ao assunto tratado no Ensaio VI deste livro, onde me refiro aos estudos, em cuja modernidade é manifesta, sobre a natureza problemática ou dogmá­tica da Ciência do Direito, entendido, é claro, o termo "dogmático" em seu sentido técnico, isto é, como enunciação ela norma jurídica a ser seguida) em virtude de uma decisão do poder, que põe f im) lJelo menos provisoriamente) às opções espontâneas do processo nor­mativo.

Como explico, no mencionado Ensaio, o momento normativo do Direito - que pode ter início no âmbito da sociedade civil para, aos poucos, merecer a atenção do legislador ou dos órgãos jurisdi­cionais, para distinguirmos entre Civil Law e CCYrnmon Law - é uma das expressões mais significativas do processo geral de objetiva­ção) ou melhor, de objetivização de formas de sentir, pensar e que­rer, mediante as quais o homem se afirma como indivíduo ou como membro de uma coletividade.

Sem se converter em algo de objetivo ou de heterônomo, ou seja, em algo dotado por si mesmo de validade e eficácia, o ato hu­mano se esfuma ou se esvai, sem deixar sinal de si. A objetiviza­ção - que é o ato de tornar algo objetivo, distinto do sujeito cria­dor - , como penso ter demonstrado em vários escritos, mas sobre­tudo em Experiência e Cultura) é o ato nomotético fundante sem o qual as obras do homem não se transfeririam de geração a geração

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XXII M!GUEL REA LE

no processo civilizatório. É que, se um ato é dotado de per si de validade e eficácia, pelo menos como potencialidade, ele culmina em alguma forma objetiva, que pode ser tanto uma fórmula científica quanto um poema, tanto uma obra de arte quanto um enunciado normativo, uma regra destinada a disciplinar uma classe previsível de ações futuras.

Ao contrário da afirmação de N. Hartmann, que vê nas objeti ­vizações um ato de resfriamento, por assim dizer, do " espírito snb­jetivo", entendo que elas o potenciam, não apenas porque assegu­ram duração às suas criações, mas também porque permitem a in­tercomunicação e o confronto com as objetivizações oriundas dos demais homens, constituindo, assim, a ponte e a base do desenvol­vimento material e espiritual. Não há dúvida que as obras instaura­das, aquilo que Hartmann denomina hegelianamente "espírito obje­tivo", pode converter-se em fator de resistência ou de empecilho a novos atos institutivos, mas, em geral, ele opera como plataforma a partir da qual o homem se lança a novos vôos.

Através de múltiplas modalidades de compor·tamento (acordo de vontades no plano negociaI; reiterados modos de ser e de enten­der consolidados em usos e costumes, convergência de julgados de órgãos jurisdicionais e, por fim, a decisão do legislador) desenvol­ve--se a experiência normativa do Direito, a qual tende sempre a converter-se em parâmetros ou paradigmas, à cuja luz possam ser aferidos os contratos, obedecidos os costumes, cumpridas as sen­tenças e as leis.

§ 8. Ora, perante esses processos múltiplos e incessantes de "normativização da vida humana" há os que optam por um entendi­mento aberto, dando um sentido problemático até mesmo às soluções resultantes de um acordo de vontades privadas ou de uma decisão do poder público, cuja provisoriedade proclamam ; há os que, em campo oposto, enaltecem o valor primordial do decidido (fonte pri­meira de todos os tipos de "decisionismo") e atribuem mero valor preparatório a tudo aquilo que antecede a formulação da norma imperativa, e são os que conferem valor primordial à Dogmática Jnrídica; e, em terceiro lugar, figuram aqueles que não vêem con­traposição entre probZema e dogma jnrídico (entenda-se: norma ju­rídica obrigatória posta por ato de autoridade) e, por via de conse­qüência, entre problema e sistema, convictos de que este não supera aquele, pela simples razão de não se poder compreender o sistema com abstração de todos os problemas que lhe deram causa.

É claro que a cada uma dessas diretrizes fundamentais corres­pondem também três tipos de obrigatoriBdade jurídica, a qual é pu­ramente indicativa, segundo pensam os primeiros (natureza facul­tativa da norma jurídica, certificável em cada caso); enquanto é imperativa, no entendimento dos segundos, como expr3ssão do que­rido e decidido (natureza imperativa da norma jurídica, de per si ,

o DIR EITO COMO EXPERIÊNCIA XXlIl

erga omnes) ; sendo, para os que se alinham na terceira poslçao, uma obrigatoriedade desvinculada da vontade de quem põe a regula iuris, em virtude de seu conteúdo essencialmente axiológico, deven­do, pois , o dogma legal ser recebido, como e~crevo à pág. 134, "não como um conteúdo ordenado e rígido, mas como um sentido de ação que objetivamenü:- deve ser valorado e concretamente experiencia­do", podendo-se afirmar que "o poder queda, de certa forma, envol­vido pela norma que ele acaba de positivar", inserindo-se no con­texto normativo a que pôs termo em virtude de sua super ior opção.

~ 9. Pois bem, foi a meditação dessa complexa problemática que aos poucos me levou a analisar o pensamento problemático como tal, objeto de um pequeno livro, Verdade 3 Conjetura, que é de 1983, o qual influiu em Nova Fase do Direito Moderno, no que se refere à natureza conjetura I de categorias jurídicas fundamentais, como a de pessoa humana, a da obrigatoriedade da lei mesmo para os que a ignorem; a unidade e as lacunas dos sistemas e ordenamentos ju­rídicos.

É claro que, se fosse tratar, hoje em dia, dos temas ventilados no Ensaio VI, os analisaria mais diretamente à luz do "pensamento conjetural", muito embora já tivesse , em 1968, plena consciência do valor do "problemático" na vida social, em geral, e na jurídica em particula r, dado ° reconhecimento da radical historicidade do ser humano, ao qual é inerente o valor da liberdade, muito embora nenhuma responsabilidade tenha quanto à sua chegada onde e como no Mundo.

Ora, meus estudos sobre a conjetura, a partir sobretudo das referências de Kant ao pensamento problemático - ponto de sua doutrina bem pouco analisado -, chegaram a algumas conclusões que me permito aqui enumerar:

a) a conjetnra não se confunde nem com o quimérico nem com o arbitrário, mas corresponde antes a um jnízo de plausi­bilidade) fo rmulado em isonomia com a experiência) de tal modo que dura enquanto esta com ela se harmoniza;

b) a conjetura não corresponde a um juízo aleatório ou even­tual, mas nasce, ao contrá rio, da necessidade de atender a certos reclamos expel' iencia is que a ciência desconsidera por estarem além de suas possibilidades certificadoras ou veri­ficadoras;

c) a conjetura possui um statns epistemológico próprio, não se confundindo com a probab ilidad e, cujos dados numéricos são certificáveis ou previsíveis, nem com a analogia. que obedece a parâmetros racionais próprios, de procedência ou viabilidade;

d) a conjetura, não obstante a problematicidade que a envolve,

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XXIV MIGUEL REALE

alberga uma compreensão de sentido válida tanto no plano da Ciência como no da Metafísica;

e) a conjetura, na tela científica, às vezes opera como uma "suposição", uma "hipótese imaginária", ou uma "ficção", a partir da qual se pode chegar a formas de conhecimento verificáveis 10.

Penso eu que, com tais colocações do problema, superam-se mui­tas das razões da contraposição rigidamente firmada entre problema e sistema, em virtude do que neste há de conjetural; em última análi­se, um sistema é uma ordenação conjetural de problemas que visa tanto a compreendê-los como a possibilitar o advento de novos pro­blemas, assegurando a continuidade da ciência, a qual não tem ape­nas uma finalidade gnoseológica, mas também o fim ético de aper­feiçoamento humano.

No que tange à questão particular da obrigatoriedade objetiva do Direito, de que trata o Ensaio VI, o pensamento conjetural me parece ser de grande valia, pois a exigibilidade de sujeição à lei da­queles que a ignoram somente se legitima à luz de um postulado da razão prática jurídica, uma vez que admitir o contrário importaria no absurdo de subverter-se toda a ordem jurídica, sem a qual a so­ciedade pereceria. Ora, todo postulado, à luz da Epistemologia con­temporânea, é essencialmente um como se, um ais ob ou als if, admi­tido em razão do absurdo a que nos levaria a tese oposta, operando como "hipótese de trabalho", conforme feliz terminologia de Claude Bernard.

V

MODELOS DO DIREITO: MODELOS JURíDICOS E MODELOS DOGMATICOS

§ 10. Uma das partes fundamentais, e, a meu ver, mais OrIgi­

nais do presente livro refere-se à colocação da experiência jurídica em termos de "estruturas normativas" ou "modelos jurídicos".

É no Ensaio VII que procuro demonstrar que a vida do Direito não se desenvolve com referência a modelos abstmtos postos ab extra, por um ato de autoridade, mas sim como uma contínua "pro­vação" ou "experimentação" de modelos concretos, onde o formal necessariamente se casa ao conteúdo, sendo observáveis, nesse pro­cesso, avanços e recuos, ou, como diria Gilberto Freyre, surgências, insurgências e recorrências.

10. Sobre todos esses pontos, v. MIGUEL REALE - Ve rdade e Conje/lIra, Rio de Janeiro, 1983.

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o nIREITO COMO EXPERIÊNCIA XXV

É claro que, no plano puramente lógico, podemos conceber mo­delos jurídicos como idealídades de referência, operando como parã­metros ou paradigmas hermenêuticos ideais, mas não creio que na vida comum do Direito tais entes espectrais possam ter importância decisiva, por mais que a utopia possa interferir nos meandros da história. Preferi entrar em contato com a modelagem jurídica que a humanidade vem realizando desde a tomada de consciência de seu ser social ou de seu ser coletivo, do qual defluem pretensões e deve­res recíprocos entre os consociados.

Sempre me impressionou o fato de que o povo criador do Direito não foi um escravo da lei, como mandamento do Estado, mas antes um criador de fórrnulas ordenadoms no bojo da sociedade civil mes­ma, à medida que os fatos iam ditando e a necessidade ia exigindo soluções normativas, "factibus dictantibus ac necessitate exigente". Eram os jurisconsultos que forneciam aos litigantes a formula iuris que o pretor, armado de auctoritas (e podia ser leigo em Direito), convertia em norma iuris através de sua decisão fundada em crité­rios práticos de bom-senso.

Por iguais razões, tenho especial simpatia pelo Comrru:m Law, que não é "a lei comum", como se poderia supor, mas sim "o direito comum" que emerge das intencionalidades e comportamentos indivi­duais e coletivos, cuja juridicidade os tribunais vão consagrando.

Pois bem, ante essa visão concreta de modelos jurídicos elabo·· rados na imanência social, pareceu-me, num primeiro momento, que estes acabariam por substituir as tradicionais fontes do Direito, con­sideradas fontes exauridas, no § 9 do referido Ensaio. A esse respeito, houve duas alterações significativas em meu pensamento. Em pri­meiro lugar - como se pode verificar sobretudo em minhas Lições Preliminares de Di1'eito (l.a ed., 1973), onde se compendia grande parte de minha Teoria Geral do Direi to - , preferi conservar o termo fontes do direito para designar as categorias formais através das quais os rrwdelos jurIdicos se revelam, ou, por outras palavras. as formas tipificadoras da modelagem experimental do Direito.

Vistas a essa luz, fui levado a distinguir quatro formas de fontes do direito, a saber: a legal, a consuetudinária, a jurisdicional e a negociaI, não incluindo entre elas a doutrinária ou "o Direito dos juristas" (Juristenrecht).

§ 11. É que, consoante entendimento posterior, somente se pode falar em fonte do direito quando uma estrutura normativa é dotada de Poder de obrigar seus destinatários a cumprir o que nela se de­termina. No caso da lei, esse Poder é obviamente o Legislativo; no caso do direito costumeiro, é o Poder difuso correspondente ao con­substanciado em reiteradas e convergentes opções jurídicas objetivi­zadas; na hipótese do Direito jurisdicional, é o Poder Judiciário; e, finalmente, na hipótese das fontes negociais, temos a autonomia d':1 vontade, isto é, "o poder individual de ligar-se a outrem por um ato

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XXVI MIGUEL REALE

de vontade", pouco importando que seja um poder derivado, resul­tante da lei e por ela assegurado, porquanto o que releva é a natureza do liame e a atualização especifica da faculdade genericamente outor­gada pelo legislador.

Pois bem, são as fontes que põem i.n esse os modelos jUl'ídicos, os quais se apresentam como "estruturas normativas de fatos segun­do valores, instauradas em virtude de um ato concomitante de esco­lha e prescrição" " .

A diferença essencial entre umas e outras é que as fontes são retrospectivas, remontam às nascentes de que emergem os modelos jurídicos, enquanto estes são prospectivos, voltados para a realização futura dos objetivos que lhes deram nascimento. Resulta daí uma mudança radical no processo hermenêutica, que não fica retrospec­t ivamente apegado às fontes (à "intenção do legislador", ou à "in­tenção da lei", por exemplo), mas prospectivamente orientado no sentido dos fi.ns paradigmaticamente enunciados nos modelos jurí­dicos.

Costumo, a esse propósito, lembrar, como o notou Wolf Paul, que Kad Marx, assistindo às aulas de Savigny, criticou-o por inter­pretar o Direito remontando às suas nascentes, e não segundo o fluxo das águas do rio no qual o homem se situa navegando em seu barco. Eis aí uma verdade marxista que flutua não obstante o nau­frágio do socialismo real ...

Não será demais observar que nessa visão da experiência jurídi­ca a compreensão axiológica da vida do Direito se converte natural­mente em compreensão teleológica, mesmo porque, no meu entender, o fim não é senão o valor racionalmente reconhecido como objetivo da ação. É por isso que, enquanto o mundo sempre agitado e impre" visível dos valores - não obstante a existência de invariantes aX'ioló­gicas - desafia nossas forças intuitivas e racionais, o mundo dos fins resulta de uma filtragem racional daquilo que é valorado, im­portando numa opção intelectual por um dos caminhos possíveis: é essa a razão de ser da norma jurídica, a qual se põe sempre como um dado racional destinado a ser racionalmente interpretado, ainda que não possam e não devam ser olvidados os motivos axiológicos que lhe deram ser, mesmo quando tisnados de irracionalidade. O que cabe à razão é realizar o superamento das contradições inerentes ao mundo das estimativas, o que só é possível em termos de razãCJ concreta ou de razão dialética (na qual a razão argumentativa se insere) decidindo sobre os critérios que devem ser seguidos na apli ­cação da norma jurídica, na medida de sua elasticidade axiológica, até que surja a necessidade de sua revogação formal.

11. Cf. Lições Preliminares de Direito (I.' ed., 1973, e 19.' ed., 1991 ) cap o XV.

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o DIREITO CO M O EXPERI ÊNCIA XXVII

Essas considerações vêm reforçar o já dit o sobre a minha com­preensão concreta, por seu conteúdo (contenutística, diria um juris­ta peninsular ), dos modelos jurídicos, cuja absoluta positividade é necessário salienta r, para que se não confunda o modelo com um ente ideal, concebido abstratamente além da experiência.

Tudo isso implica nova compreensão da Hermenêutica Jurídica , já delineada nos Ensaios IX e X, numa visão de integralidade, ae mesnw tempo lógica, ax iológica e histórico-social, que só aparente­mente pode ser equiparada ao método histórico-evolutivo que mar cou o ponto mais avançado a que poderia chegar a Jurisprudência clássica, na passagem do plano dos conceitos para o plano dos inte­resses .

Como o problema dos modelos jurídicos é inseparável de sua exegese (a Hermenêutica é, penso eu, uma das partes fundamentais da Axiologia), peço que a leitura dos dois Ensaios supracitados seja completada pelo que escrevo sobre "Hermenêutica estrutural" em meu livro Estudos de Filosofia e CiênC'ia do Direito.

§ 12. Não haverá mal, todavia, em referir-me ao papel que o conceito de Lebenswelt (mundo da vida cornum) passou a desempe­nhar, a meu ver, na exegese dos modelos jurídicos, a fim de compreen­der-se melhor suas variações semãnticas até a sua revogação ou des­consti tuição.

A noção de Leben",welt, ou do mundo da vida comum, ao qual me refiro à pág. 40, segundo alguns remontaria à idéia de Common 8eme subtilmente elaborada em termos psicológicos pelos filósofos escoceses do Séc. XVIII. Husserl emprega-a, porém, em sentido de condição tra nscendental da existência do homem comum, que somos todos nós, em nossas relações sociais, donde ser essa idéia apresen­tada como fonte inspiradora da filosofia de Heidegger.

Por Lebenswelt, inspirando-me em Husserl, entendo o complexo das formas de ser, de pensar e de agir não c.at.egorizadas (isto é, não estadeadas em formas objetivas, como as das artes e das ciências) que condiciona, como consciência histórico-tra nscendental, a vida co­munitária e a vigência de suas valorações, muitas delas devidas ao refluxo ou reflexo das forrnas objetivas no plano da vivência coletiva. Não se trata, note-se bem, de um estágio larva r ou incipiente desti­nado a evoluir para formas categorizadas superiores, mas sim de uma condição existencial constante, a qual varia incessantemente de conteúdo, mas nunca deixa de existir como o grande envoZ'l'en te social, no qual acham-se imersos os indivíduos com suas obras e instituições. Poder -se-ia dizer que a Lebenswelt condiciona o mundo da cultura, no sentido antropológico desta palavra, se ela não fosse um dos seus elementos constitutivos, em correlação essencial e com­plementar com as refer idas formas categorizadas das ciências e das artes.

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XXVIII MIGUEL REALE

Ora, sendo o Direito uma das dimensões da vida humana, seus modelos jurídicos e dogmáticos estão sempre na dependência das mutações operadas na Lebenstvelt. O Direito, em suma, tanto no seu evolver como na sua hermenêutica, não pode deixar de ser influido pela Lebenswelt, assim como esta recebe também influxos a partir das estruturas jurídicas e das conquistas da Ciência do Direito. É o que procuro explicar na parte final da 4.a edição de Teoria Tridi­mensional do Direito, de 1986, cuja leitura seria complemento natu­ral do presente livro.

§ 13. Outro ponto que desejo realçar, a propósito do assunto desenvolvido no Ensaio VII, § 7, é uma alteração de natureza termi­nológica.

Após a publicação de Lições Preliminares de Direito, venho dando ao termo "Modelos do Direito" um sentido genérico que abran­ge duas espécies, a dos modelos jurídicos e a dos modelos dogmáti­cos. Neste livro, ao contrário, os modelos elaborados pela doutrina, isto é, pela Ciência do Direito, são impropriamente denominados "modelos do Direito" ou "modelos dogmáticos", motivo pelo qual se torna necessária uma releitura da pág. 163, atualizando-se a respec­tiva terminologia, ficando assente a seguinte divisão:

M. d l d " {a) modf3los jurídicos, dotados de for-o e os o D1.rm,to ça prescritiva'

(estruturas normativas ' da experiência jurídica) b) medelo.s dog~áticos, dotad?s de

força t1uilcatwa ou persuaswa.

A ciência dos juristas pode, em suma, elaborar modelos teóricos indispensáveis à compreensão dos modelos jurídicos, mas, além de não poder fazer abstração destes, tem por finalidade estabelecer o que os modelos jurídicos significam ou devem significar: em rela­ção aos modelos jurídicos, portanto, os modelos dogrnáticos repre­sentam uma metalinguagem jurídica: são, fundamentalmente, um discurso sobre modelos jurídicos, sua estrutura lógica e axiológica, suas variações semânticas e pragmáticas, e sua lacunosidade nos sistemas e subsistemas que compõem o ordenamento jurídico.

Por aí se vê que acentuo mais ainda as razões pelas quais não considero a doutrina uma fonte formal do Direito, visto como os modelos teóricos que ela constitui se acham desacompanhados de ga­rantia do Poder, sem cuja decisão não se instaura nenhum modelo jurídico como tal.

É claro que, no plano factual, a alta significação de uma tese doutrinária pode levar os tribunais a decidir em consonância com ela, preenchendo as lacunas dos modelos jurídicos legais e negociais, ou interpretando-os de maneira renovadora, mas, nesse caso, como no Common Law, o entendimento teórico ganha força prescritiva graças ao Poder Judiciário, provocando reformas no Poder Legisla­tivo.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA XXIX

Nesse entendimento, como aliás realço no § 15 do Ensaio VII, não diminuo, mas antes enalteço, a função dos modelos dogmáticos, cuja fínalidade é determinar: a) como as fontes podem produzir mo­delos jurídicos válidos; b) que é que esses modelos significam; c) como é que eles se correlacionam entre si para compor figuras , institutos, subsistemas e sistemas, tudo na unidade lógico-axiológica do orde­namento jurídico nacional. Se, efetivamente, a missão mais imediata dos juristas é determinar o que os modelos jurídicos signifícam, não é menos certo que, por razões de Política do Direito e pelo próprio evolver da Ciência Jurídica, cabe-lhes abrir primeiramente o caminho para a revogação dos modelos jurídicos tornados inadequados e sua substituição por outros mais correspondentes às necessidades ma­teriais e espirituais do povo.

Essa posição de vanguarda do Juristenrecht é incontestável, de­vendo-se reconhecer que os jurisconsultos brasileiros, de Ribas a Teixeira de Freitas, de Lafayette a Clóvis, de Rui ou Pedro Lessa a Pontes de Miranda, têm sabido corresponder a esse nobre mandato intelectual.

A irredutibilidade dos modelos dogmáticos às estruturas das fon­tes formais e dos modelos jurídicos, longe de cercear-lhes plena li­berdade investigadora, vai compondo, aos poucos, o horizonte teórico dentro do qual se desenrola o drama da experiência jurídica nacional.

Que missão poderia haver maior que essa?

VI

UMA ANTIGA CONVERSA AINDA ATUAL SOBRE O PRESENTE LIVRO

Editado, em 1968, O Direito como Experiência, provocou ele incontinenti a atenção dos cultores do Direito do País, com a publi­cação de artigos que enalteceram seus méritos, mas formularam crí­ticas e observações que me pareceram merecedores de resposta, a que dei o título de Conversa C01'n meus crítioos, tal como consta do fascículo 74 da Revista Brasileira de Filosofia, do segundo trimestre de 1969, págs. 231 e seguintes.

Os trabalhos a que me refiro nessa resposta - a qual, por sua atualidade, julgo de bom alvitre apresentar como complemento às considerações anteriores, conforme a rtigos constantes do mesmo fas .. cículo da RBF - foram de autoria dos saudosos amigos e colegas Leonardo Van Acker e Theophilo Cavalcanti Filho, que escreveram, respectivamente, sobre Experiência e epi~temologia jurídica e A re­volta contra o fornwli~mo jurídico e o problerna da experiência. Os demais artigos foram escritos por Renato Cirell Czerna - Funcio­nalidade históricú-C1..utural e antiformalismo; Irineu Strenger - Dia-

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xxx MIGUEL REALE

lética da experiência jurídica; e Tércio Sampaio Ferraz J r. - Algu­mas observações em tornada cientificidade do Direito segundo Mi­guel Reale.

Foi esse, sem sombra de dúvida, um momento que veio confir­mar a maturidade dos estudos de Filosofia do Direito no Brasil.

Eis a parte essencial do mencionado texto, atualizada apenas a sua ortografia:

Fundação da Ciência do Direito

"A colocação da cientificidade do Direito em termos de expe­riência resultou de exigências intrínsecas ao desenvolvimento da pesquisa, ditadas pela necessidade de atingir um conceito de Ciência Jurídica que seja tão concreto como concreto se me afigura o Di­reito na concretitude da experiência social e histórica.

Não vi razão para, como intróito do livro, relembrar os pressu­postos de minha posição ontognoseológica, preferindo reportar-me a trabalhos anteriores, a fim de concentrar a atenção do leitor no âmbito de sua projeção 'epistemológica'. Eis aqui um ponto, a meu ver, capital, este da EpistemOlógica como especificação do processo ontognoseológico.

Põe-se uma correlação essencial entre processo ontognoseológico e processo histórico-cultural, sem que, isto não obstante, um se re­duza ao outro. O realismo ontognoseológico é realismo na medida e enquanto a sUbjetividade transcendental outorga sentido ao real, em função de estruturas imanentes a este; e é ontognoseológico enquan­to o objeto só o é por sua essencial correlação à consciência mesma. A essa luz, a antinomia entre 'realismo' e 'idealismo' passa, por assim dizer, a um segundo plano, prevalecendo o sentido de unidade do pro­cesso em que a consciência e a realidade concretamente se correlacio­nam. Poder-se-ia mesmo dizer que a funcionalidade ent re os dois termos, o sujeito e o objeto, opera como síntese a priori condicio­nante de um processo cognoscitivo e, ao mesmo tempo, prático, mar­cado pelo sentido dialético de complementaridade.

Poder-se-ia dizer que no 'envolvente ontognoseológico' se suce­dem os momentos distintos de objetivação, não se podendo sequer considerar o dado empirico como sendo de todo independente do su­jeito cognoscente: mesmo aquilo que é percebido e captado como 'dado natural', num esforço metódico de despersonalização, não pode, enquanto objeto, deixar de se situar no âmbito ontognológico, o que torna impossível a absolutização da ciência como 'positividade', bem como torna precário todo formalismo 'a se stante'.

É dentro dessa compreensão integrante que o processo histórico­cultural assinala os momentos da objetivação cognoscitiva, revelan-

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA XXXI

do-se como 'experiência', na qual se insere a 'experiência do Direito' . Esta cOlTesponde, pois, a um caso particular e a um momento da objetivação progressiva do espírito humano enquanto instaura as 'es­truturas da ciência' , recortando-as no plano 'infinitamente determi­nável' daquilo que se supõe fora dele como 'natureza', isto é, como dado não consti tuído , mas oferecido à fonte espiritual doadora de sentido, para só então se apresentar como Objeto.

A esse ato fu ndamental de concreção e de 'con-críação' denomi­no 'ato objetivaI/ te' , que é o ato fundante da ciência, a qual só é pos­sível na medida em que a estrutura da 'expressão', intersubjetiva­mente comunicável, não é mera cópia, nem adequação extrínseca a algo, mas antes um modo necessário de ser de algo. Por outras pa­lavras, onde não há objetividade não há Ciência; e toda Ciência é 11

objetivação de algo 12.

Posta a questão nesses termos, pareceu-me que, sob o ângulo da tarefa que me havia proposto, - que era a de determinar a 'fun­dação da Ciência do Direito', - a questão primordial se resumia em saber qual o processo de 'objetivação' da experiência jurídica no quadro de uma concreta compreensão objetiva.

Para tal análise, comecei por propor-me o problema da 'experiên­cia ética em geral' , afrontando um tema que Kant deixara num ver­dadeiro beco sem saída. Teria sido mais fácil tomar o problema como resolvido , como o têm fe ito em geral os sociólogos, subentendendo soluções de caráter empírico, mas me pareceu que é nas obras dos neo-kantianos, de Cohen, Natorp e Cassirer, assim como nas medi­tações que se desenrolam de Husserl a Scheler, Hartmann e Hei­degger, que mais viva se faz senti r a necessidade de superar-se o restrito conceito de experiência de Kant, sem resultar afetada, mas antes integrada lu:t nova solução, a contribuição do mesmo J(ant re­lativamen te às condiçõ3s lógicas do saber científico.

Foi a essa luz que cheguei à conclusão da possibilidade de uma 'ciência do social' , em geral, pOr ser possível e, mais do que isto, imprescindível, a categorização autônoma de uma 'experiência de humano', complementarmente às 'experiências do natural'. O concei­to de 'causalidade rnotivacionaZ' , inspirada por Husserl, mas não integralmente correspondente ao seu ainda impreciso enunciado, jul­guei ser o capaz de dar-nos a compreensão da 'experiência ética' , e da jurídica em particular, como distinta e autônoma modalidade de experiência.

O passo sucessivo nessa análise, - que se desdobra ao longo dos Ensaios , constituindo a linha interna que os integra em unidade, -consistiu em ver a experiência jurídica como 'processus', valendo-me

12. Esses pontos sobre a objetivaçrio como momento ess;ncial do conhecimento científi co foram objeto de estudo especial em Experiência e Clt/tura. cit. (nota de 1992).

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XXXII MIGUEL REAlE

da conclusão a que já chegara em minha Filosofia do Direito, cuja segunda parte é toda dedicada à Ontognoseologia Jurídica, bem corno em outro livro, publicado corno preparatório do ora criticado (Teoriú TridimensionaL do Direito), de que a realidade jurídica se mostl'a, em sua estrutura, corno urna composição dialético-norrnativa de fa­tos e vaLor88.

Dessarte, o que se punha corno tarefa específica de urna Episte­mologia Jurídica, no contexto de meu pensamento, desdobrava-se naturalmente do bojo da Ontognoseologia Jurídica, corno sua proje­ção necessária, não podendo, pois, O Direito como Experiência ser compreendido senão corno continuação da Filosofia do Direito. Só não apareceu como 3.° volume do Curso, pelas razões aduzidas no Prefácio.

Pois bem, urna vez que me pareceu lícito reportar-me ao já ex­posto e desenvolvido em obras anteriores, quanto à dialética de com­plementaridade que governa a experiência ético-jurídica, assim corno a experiência histórico-cultural em geral, - o problema se transfe­ria para outro plano, talvez suscetível de ser resumido nesta pergunta audaciosa: 'Sendo o Direito uma experiência, como é que esta se objetivou no decurso do tempo?'

Eis aí, mais urna vez, a problemática da 'objetivação' posta no cerne do assunto, como bem o viu Renato Cirell Czerna, ao lembrar que uma das razões da discórdia do pensamento moderno é, de um lado, o desejo de colher a realidade em sua concreção, e, de outro, a tendência a reduzi-la a mera expressão lógico-analítica.

Sempre considerei sem razão de ser essa antinomia, empenhan­do-me em situar o problema da Ciência do Direito de tal modo que seja possível a sua compreensão analítica (e, por conseguinte, for­mal), sem prejuízo, mas antes em função de sua cornpreensão dialé­tica (e, por conseguinte, concreta).

Daí interessar-me antes o problema da experiência jurídica na sua graikJ..ção ôntica, distinguindo-a, permanente e concomitantemen­te, corno 'experiência jurídica pré-categorial' (forma imediata de ob­jetivação do processo jurídico-normativo) e 'experiência jurídica r:ientífico-positiva' (forma mediata ou reflexa daquela objetivação), a mostrar que a 'objetivação científica', lato senso, isto é, a objetiva­ção ontognoseológica não é privilégio do 'saber rigorof:o', próprio da Ciência positiva corno tal, mas implica e subentende o saber espon­tâneo, intuitivo, da imediatidade 'eu-mundo' que é o da LebensUJelt. É, no fundo, essa 'ímediatidade eu-mundo' o a priori condicionante de todas as estruturas reflexas do conhecimento científico no desen­volver do processo histórico-cultural, razão pela qual toda Ciência entra em 'crise existencial', - que pode não coincidir com a crise metodológica, relativa ao progresso técnico, - quando se desvincula das matrizes que inspiraram o seu sentido primordial de objetivação.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA XXXIII

Esta é sobretudo verdade que merece lembrada pelos cultores de Ciências tais corno o Direito, ficando manifesto que todo formalismo representa corno que urna traição às próprias origens.

Mas se a Ciência Jurídica deve fidelidade ao húmus axiológico, que mantém o verdor de suas frondes e produz a substância nutritiva de seus frutos, trata-se de urna árvore que antes de tudo deve ser preservada num campo de ordem e segurança, o que só se consegue através de um sistema de 'formas' protetoras, de um 'complexo de certeza' que vai desde o enunciado lógico das regras de conduta até à certificação jw·isprudencial das responsabilidades.

Corno é possível, então, conciliar valor e forma na condicionali­dade cambiante do fato histórico? Como optar pela 'forma' em pre­juízo do 'conteúdo existencial ', ou apegar-se liricamente a este até o ponto de perdê-lo? Eis aí o drama do Direito, que, no dizer expressi~ vo de Verdross, quanto mais afunda as suas raízes no mundo dos fatos mais alto projeta a sua ramada no céu dos ideais.

Direito e Lógica

Compreende-se agora por que fui levado a repropor um velho terna, o da 'estrutura' e da 'forma' (Gestalt) , partindo da intuição goethiana de urna forma repleta de conteúdo, a surgir de dentro da realidade mesma, numa corno que conversão objetivante, ou auto­reveladora.

Todo o diálogo que travo, de um lado, com os 'estruturalistas' , -que se iludem com a possibilidade de esquemas libertos do fluxo his­tórico, -, de outro lado, com os neo-positivistas que, no campo do Direito, se deixam encantar pela certeza aparentemente suficiente da linguagem rigorosa, toda essa permanente referência a diversos autores não é o resultado de uma atitude polêmica, nem marca um desejo fátuo de erudição e de novidades, mas nasce do deÜberado propósito de firmar e definir, dialeticamente, a posição própria em confronto com aquelas doutrinas que, com razão, postulam a 'forma', mas a esvaziam de seu sentido real, inseparável de sua integração no todo do processo histórico. Sob esse prisma, minha obra se situa, corno uma expressão da luta contra o formalismo jurídico, corno disse "Theóphilo Cavalcanti Filho, mas quero crer que já se situa num mo­mento ulterior, de balauço da luta já travada, em busca de uma síntese superadora, capaz de colher e assimilar as razões pelas quais o formalismo, vencido no plano da doutrina, a todo instante ressurge no plano da práxis.

Reivindicar o 'histórico' e o 'funcional' contra o meramente 'formal', sem perder os valores que locam a este, eis, a meu ver, a

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. '~\ ... XXXIV M I G U E L R E A L E

~l;~~:LProblemâtiCai,hodierna da Ciência do Direito, .. . . cimento: de três problemas complementares, a

~1':>:'" ,~

implicando o esclare­saber:

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o que há de 'lógico' no Direito?

o,' que há de 'formal' no Direito?

que há de 'funcional' no Direito?

Procurando responder a tais quesitos, fui levado a correlacionar Razão Analítica e Razão Dialética) vendo nesta a expressão do con­cretoem Sua funcionalidade e dinamismo. 'Razão objetivante', por outras palavras visto como nela e por ela o real se correlaciona in­cessantemente com o sujeito percipiente, o qual plasma as formas objetivas da explicação e da compreensão e põe, concomitantemente, os 'objetivos ' da práxis. É a Razão Dialética que funda a experiência segundo exigências lógicas que são, a bem ver, ontognoseológicas, desenvolvendo-se em 'momentos distintos de Objetivações', compa­ráveis, por assim dizer, a plataformas atingidas na escalada do saber e do fazer humano. É sobre essas 'plataformas objetivas' que opera a Razão Analitica, explorando e consolidando o resultado projetante da Razão Dialética, que não se exaure, no entanto, em qualquer das formas atingidas, integrando-as a todas na unidade substancial de seu processus. Não há, por conseguinte, que falar em contraposição ou em antinomia entre o funcional-histórico e o 'formal', a não ser em momentos de ajustamento necessário entre o ímpeto da caminha­da e a calculada pausa, sendo ambos os dois momentos necessários e complementares da Lógica concreta) a um tempo formal e funcional, predicativamente certa e teleologicamente operacional, como bem soube ver lrineu Strenger.

É dessa compreensão que resulta a colocação integral da Lógica Jurídica) sem reduzi-Ia à Lógica formal, ou, mais especificamente, à Deôntica Jurídica. Eis, a meu ver, o quadro abrangente da Lógica Jurídica:

Analítica Jurídica

Dialética Jurídica

{ S . ' t' { Sintática-Jurídica ,. emlO Ica '" . . Jurídica . Semantlca-Jundlca

Pragmá tica-J urídica Deôntica Jurídica

{ Dialética do discurso jurídico Dialética da experiência jurídica

A Teoria dos Modelos Jurídicos

Quem me acompanhou nesta especle de introspecção do autor, em face de sua obra, já deve ter percebido como surge, como conse­qüência natural da pesquisa, a idéia de modelo.

ti

o DIREfTO COMO EXPERIÊNCIA xxxv

Todo o estudo que faço da moderna 'teoria da estrutura' pare­ceu-me essencial para poder situar com rigor o problema particular da 'estrutw'a normativa', ou modelo.

É, com efeito, no conceito de 'modelo' que se pode encontrar reunidas, numa essencial complementaridade, a logicidade da certe­za formal e a funcionalidade instrumental de uma estrutura destina­da a ser 'operada' por advogados e juízes, por administradores e contribuintes do Fisco.

Note-se que não apresento o 'modelo jurídico' como um simples 'contexto teórico', numa espécie de esquema teorético em função da qual determinados fatos humanos se explicam, mas o concebo antes como algo de concreto, como 'f orma experimental', que nasce da experiência social e dEla se não separa. Dos 'modelos jurídicos', que são 'formas de vida', postas em função das opções decisórias do Poder (Poderes legiferante, jurisdicional, costumeiro e negociaI) se distinguem os 'modelos dogmáticos', estes sim 'teoréticos', mas nem por isso menos operacionais; seu operar se distingue por se destinar à operação dos 'fTIodelos jurídicos', esclarecendo o seu sentido, na concretítude da e;.xperiência histórica. Poder-se-ia distinguir os 'mo" delos jurídicos' dós 'modelos dogmáticos' dizendo que se distinguem entre si como 'linguagem' e 'metalinguagem', visto como os primeiros têm como objeto a conduta humana de caráter bilateral-atributivo, enquanto que os segundos se referem aos 'modelos jurídicos' em fun­ção dessa conduta. Com isto, penso eu, a 'vexata quaestio' sobre se a doutrina é ou não 'fonte' de Direito passa ao rol dos pseudoproble­mas. No fundo, a Ciência do Direito se processa graças à permanente interação de 'modelos jurídicos' e 'modelos dogmáticos', conferindo­se às estruturas normativas um sentído operacional, que se confunde com o da experiência jurídica.

" É a razão pela qual chego à conclusão, a met.i\rer fundamental, como bem o salienta Têrcio Sampaio Ferraz Júnior de que é mister pôr na base da Ciência Jurídica contemporânea, até agora concebida em termos de 'fontes', o conceito prospectivo e operacional de 'mo­delos', na complementaridade de suas duas expressões, a teorética e a prática, ou, para sermos mais precisos, 'teorético-prática' e 'práti­co-teorética'. É a razão pela qual não posso concordar com o con­ceito que Viehweg tem de 'sistema', que, por ser inhistórico ou está­tico, leva-o a recusar cientificidade ao Direito. É a mesma razão pela qual não posso aceitar a antinomia, de fundo ideológico, que o mesmo Autor põe entre uma 'dogmática de princípios jurídicos', -que seria própria do Ocidente, - e uma 'dogmática histórico-filosó­fica', que seria vigente nos Países comunistas. Sobre reduzir, unilate-' ralmente, toda compreensão dialética à 'dialética marxista', tal pon­to de vista exclui o que me parece essencial : a possibilidade de supe­rar·se a contraposição abstrata entre princípios jurídicos e processos históricos.

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XXXVI MIGUEL REALE

o mais que no meu livro se encontra, inclusive no que se refere às contínuas incursões pelos domínios da Teoria Geral do Direito, _ o que não deveria ter passado despercebido, - é uma conseqüência, ou o lógico desdobrar-se dos pressupostos assentes no propósito de uma compreensão integral do Direito e da Vida" (RBF) fase, 74).

Itanhaém, Páscoa de 1992

MIGUEL REALE PREFACIO DA La EDIÇÃO

o direito não é só expenencia, mas s6 pode ser compreen­dido como eX1Jeriência} cuja modalidade procuro determinar nas páginas dêste li'ln'o, no qua.l penso ter demonstmdo que não se trata de um problema ligado a razões históricas contingentes) mas sim de wna questão epi.stemológica primard'laZ.

Os C1ulaios ora rennidos inclnem-se} em, sua quase totalidade} no âmbito da Epistemologia Jurídica}' e o leitor} que tiver acom­lJanhado com benévola atenção o desenvolvimento de meus estudos} fàcilmentc compreenderá que êles 1"Cpresentam a continuação na­tuml da parte gemI .iá publicada de minha Filosofia do Direito, cujos temas volta1n, aqui 01~ ali, a ser focalizados, mas com diversa finalidade, tão certo como, no meu entender} a investigação epis­temológica marca uma p7'ojeção ou desdobramento das prévias formulações ontognoseológicas.

O fato de apresentarem-se os presentes trabalhos sob a fonna de ensaios distintos} quatro dêIes elaborados para atender a sim­pósios no estrangei1"O, não deve fazer perder de vista o essencial, que é a sua colocação numa linha dominante de pesquisa, tendo como fulcro o lJroblema da fwtdação da Jurisprudência ou Ciência do Direito como ciência. Na OTdenação dos trabalhos} podia ter mantido a tmdicional divisão em capítulos, tal a seqüência com que se desdobram" mas o tênno uensa'io" tem por finalidade accn­tnar a vivênr:ia e:r]Jeriencial dos l)J'oblemas} bem como o seu sentido programático.

Foi meu propósito inicial dar a estas investigações tLm C1lnho didático, a eJJcmplo do adotado naquela citada obra, mas as exi­gências da investigação prevaleceram no sentido de um estudo de caráter mais especializado e técnico} constituindo como que as bases neclOssfÍrias de uma possível eX1Josição futura. H á quem julgue serem os compêndios um ponto de partida: se o são para quem se i,nieia nos estudos, devem representar) para quem os Tedirlc, a matnridade OtL o ponto alto da investigação} poi,o;; .sàmente as idéias 7Dn{la e 7JTOfu,nrlamente meditadas logram atingir a sim­plicidade vcrdadeira, inconfundível com uma visão de· superfície.

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XXXVIII MIGUEL REALE

Restam} por certo) muitos e muitos aspectos da Epistemologia JU1"ídica a ser considerados} mas os aqu,i examinados bastarão para dar maior consistência e plenitude à teoria tridimensional do direito} dernonstrando a f ecundúlade de seus pressupostos no sentido de uma compreensão mais íntima entre filósofos e juristas} cada qual f iel às rcspecth'as áreas de estudo.

Se a publicação de um liv1"0 alberga vários motivos determi­nantes} há) no presente} também o de contribuir para o reconheci­lnento de que o Direito é uma das ciências fundamentais da expe­riência humana} numa época em que parece só haver olhos abertos e extasiados para a tecnologia} como se esta pudesse significar algo divorciada do problema ético essencial do homem.

São Paulo} Julho de 1968

MIGUEL REALE

F-nsaio /

o PROBLEMA DA EXPERIÊNCIA JURíDICA

SUMÁRIO: I - A crise da teoria da expenencia jurídica e a a tualidade do tema, II - As três perspectivas filosóficas funda­mentais da experiência juridica : • a) a posição imanente; b) li

posição transcendente; c) a posição transcendentaL III - A experiência ética na linha de Kant e dos neokantianos. IV - A

experiência ética a partir da fenomenologia.

I

A CRISE DA TEORIA DA EXPERffiNCIA JURíDICA E A ATUALIDADE DO TEMA

§ I. Desde o momento em que se alargou o conceito de "expe­riência" para nêle se incluir a esfera da ética, com mais clara consciência dos processos epistemológicos adequados à compreensão das realidades histórico-sociais e com a concomitante determinação ôntica de suas estruturas, abriram-se melhores perspectivas para o estudo do problema da "experiência jurídica", que já tende a atrair novamente a atenção de filósofos, juristas e sociólogos, rea­tando-se uma linha de estudos prematuramente abandonada, apesar dos resultados obtidos em alguns ensaios de real valia 1.

Vários fatôres terão contribuído para o abandono de um assunto de tão fundamental importância, e que já suscitara, desde o primeiro após-guerra, uma preciosa bibliografia 2 . Não

1. Sôbre o reaparecimento das teorias sôbre a expenencia jurídica vide o recente estudo de RECASÉNS SICHES, em Dianoia, n.9 XI, México, 1965, onde o leitor encontrará plenamente demonstrada a atualidade do tema, bem como a necessidade de sua reformuJação.

2. Só para me referir a trabalhos que cuidam especificamente da expe­riência jurídica, lembro, a título de exemplo: GIUSEPPE CAPOGRASSI - Ana.lisi dell'Esperienza Com1M!R, Roma, 1930; St1tdi suZI'Esperienza · Git~ridica, Roma, 1932; II Problema. della Seienza deZ Diritto, Roma, 1937; G. GURVITCH -UExpérienee Juridique et la Philosophie Plw'ali<;te du Droit, Paris, 1935; T. CASTIGLIA - UEsperienza GiJu·ridica, ed il Concetto di Stato, Turim, 1933; LUlGI BAGOLINI - Diritto e Scienza Giuridica nella Critica dei Concreto, Milão, 1942; G, P. HAESAERT - La Forme et le Fond du Juridique, Bruxelas. 1934 ; WIDAR CESARINI SFORZA - Oggettività e Astratezza nell'Esperienza Giu1'idica, (934) em ldee e Problemi di Filosofia Giw'idica, Milão, 1956,

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2 MIGUEL REALE

será demais uma referência, embora sumarIa, a tais motivos, mesmo porque a sua análise objetiva poderá talvez conduzir-nos a mais rigorosa colocação dos dados do problema.

Antes, porém, não posso deixar de notar que, não obstante o decréscimo de interêsse pela problemática da "experiência jurídica", êste têrmo nunca deixou de ser empregado por juristas de tôdas as orientações e países, o que poderia ser maliciosamente explicado como desamor ao rigor da linguagem, ou pela paradoxal e subja­cente influência de um conceito recebido inadvertidamente como de sentido pacificamente determinado, às vêzes no instante mesmo em que se proclamava a inutilidade de dedicar-lhe um instante sequer de atenção 3. Bastaria êsse fato singular do persistente uso do têrmo, para exigir-se a retomada do discurso que com êle se confunde.

Volvendo, porém, ao fio da análise que me proponho realizar, parece-me plausível apontar, como causa originária do compro­metimento do nosso tema, a falta de uma prévia indagação de ordem gnoseológica, destinada a discriminar os dois possíveis tipos de pesquisas da experiência jurídica, evidentemente complementa­res, mas nem por isto insuscetíveis de rigorosa distinção: a filo­sófica e a empírico-positiva. Em geral predominaram, neste ponto, duas tendências que não podiam senão empobrecer ou obscurecer os dados do problema: uma, no sentido de se fazer total abstração de quaisquer cogitações de caráter filosófico, ignorando-se, pura e simplesmente, tudo o que ultrapassasse os limites estritos das re­lações fenomênicas; uma outra, no sentido de se tratar, concomi­tantemente, dos aspectos filosóficos e científicos, quer por se partir do pressuposto de uma radical identidade entre Filosofia e Ciência, quer por se adotarem os princípios de uma doutrina, como a de Croce ou de Gentile, em cujos âmbitos a tarefa empírico-positiva se põe como "pseudo-ciência", ou conhecimento condicionado e segundo, particular e contingente.

É imprescindível, pois, para a boa ordem das pesquisas, reco­nhecer desde logo que a experiência jurídica se apresenta para o filósofo como um "objeto" não coincidente com o ângulo de apre­ciação do jurista como tal, pois êste, - qualquer que seja a sua formação filosófica -, deve situá-la num "campo de realidade"

págs. 17-70; VINCENZO PALAZZOLO - OOMiderazioni 8ullct Natura dell'Aziol1r.: e sul Oara.ttere dell'Esperienza Giuridicet, Pisa 1941. Quanto à situação atual do problema, v. ENRICO OPOCHER - "Esperienza Giuridica", na Enciclo­pedia del Diritto, XV, pág. 735 e Luis RECASÉNS SICI-IES - "La Experiencia Juridica", em Dianoia., fasc. cit., ambos com ampla bibliografia.

3. É de HEGEL esta nota irônica, iniciando a sua crítica ao empirismo de LoCRE: "Geralmente, quando se fala de experiência, não se entende com ela patavina ; e dela se fala, pois, como de coisa pacificamente notória". (v. Lezioni sulla Storia della Filosofia, trad. de Codignola ~ S l1nna, Florença, 1938, vaI. lU, 2, pág. 159).

() illHEITU COi\íO I': XPlcrn(;1':ClA 2.

necessürinl11enie circunscrito, e recebê-la como um dcu10 objetiva­ment e vúlido.

Como veremos, uma das questões mais delicadas com que se defronta o estudioso da experiência jurídica consiste exatamente em resolver se se trata de assunto que, por sua natureza, se situa também no [nnbi to da Jurísprudência (Ciência do Direito), isto é, em [unçüo da vigência e da eficácia dos ordenamentos jurídicos positivos, ou se equivale apenas a mais um "ponto de vista" sõbre o direito, significat ivo nos domínios da Filosofia, mas sem reper­cussüo efetiva no plano da ciência positiva.

É de excluir-se, penso eu, possa o assunto ser tratado tão-so­mente à luz de fatos históricos contingentes, como se daria, por exemplo, com a vinculação do conceito de "experiência jurídica" àqueles elementos de ordem doutrinária e fática que determinaram o aparecimento dos primeiros estudos sôbre a matéria. Por quais motivos, em verdade, haveriamos de configurar um tipo inamovível de "experiência jurídica", nos moldes do correspondente à realiza­çáo dos fins que os pesquisadores do primeiro após-guerra tiverem em vista, em sua luta contra o formalismo juridico ou a estatalidade do direito, em prol do pluralismo das fontes normativas? Nâo há dúvida que as primeiras expressões da "teoria da ea~periência jn­rídica." surgiram como resultado de poderosas transformações so­ciais, devidas sobretudo ao impacto da ciência e da técnica sôbre os processos econômicos e as formas do viver comum, a que corres­ponderam Filosofias mais aderentes à problemática da ação e do concreto , como o pragmatismo ou o intuicionismo; é exato que a atenção dos juristas foi despertada pelo direito espontâneamente revelado através do movimento sindical, à revelia do Estado e até mesmo em conflito com êle; é incontestável que a projeção dada aos estudos de Direito Processual assinalaram, a partir das últimas décadas do século passado, uma orientação mais dinâmica no sistema da Jurisprudência" assim como é inegável que a inadequaçào verifica­da entre as leis e os falos sociais suscitou o apêlo ao Direito Natural ou a soluções de conteúdo axiológico, mas tudo isto não significa que aquela teoria deva ficar jungida ao quadro histórico-cultural que inicialmente lhe deu causa.

Se houvesse tal vinculaçào, se estivéssemos irremediàvelmente ligados a uma configuração já definitivamente plasmada na tela da história, a "experiência jurídica" deixaria de ser um problema epistemológico fundamental, para valer como simples categoria histórica destinada à compreensão daquelas circunstâncias que, durante certo tempo, a converteram em tema de relêvo nos qua­drantes do Direito 4.

4. É dessa compreensão parti cul a r do problema que não se liberta intei­ramente ENIlICO OPOCHER, no belo ensaio que escreveu sôbre o assunto (El1ódopedia deL Diritto, loco ci.t.). Apesa r , porém, de vincular o conceito ele experiência jurídica a determinados pressupostos históricos, sendo levado

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4 MIGUEL REALE

Não há dúvida que a perquirição da gênese da teoria é indis­pensável, mas tão importante como a minuciosa análise dos fatôres e das doutrinas que formaram o quadro conceitual, ao ser ela pela primeira vez sistematizada, é indagar de suas razões mais profundas, de algo, em suma, que nos explique o porquê de seu constituir-se como um ponto de convergência para o qual tenderam concepções filosóficas, sociológicas e juridicas tão díspares e até mesmo con­trastantes.

Se, por outro lado, desponta novamente o interêsse pelo pro­blema da experiência jurídica, e se, mesmo com o eclipse da teoria, a sua expressão nuclear continuou sendo um valor positivo na lin­guagem comum do jurista, é sinal de que nos cabe renovar a pesquisa, numa análise que nos permita descer, de camada em ca­mada, até ao eidos da questão, captando o que nela possua validade universal na esfera da Jurisprudência.

Estou convencido, por conseguinte, de que qualquer investi­gação sôbre a experiência jurídica não pode partir a priori da preconcebida tese de sua vinculação a dado sistema de idéias e de aspirações, devendo-se, ao contrário, admitir-se, pelo menos como hipótese de trabalho, que o seu conceito, como tantos outros da história do Direito, é dêsses que, uma vez trazidos à luz da consciência teorética, emancipam-se dos motivos transeuntes que o revelaram, para passar a desempenhar uma função positiva e necessária nos domínios da ciência.

Não me iludo, evidentemente, com a possibilidade de um con­ceito unívoco de "experiência ,iurídica". tão avultado é o número das perspectivas filosóficas e ideológicas que a condicionam, mas não creio seja êsse motivo bastante para negar-se, de antemão, a possibilidade de uma construção sistemática do direito como expe­riência, como não o impediria o seu natural caráter problemático, por tratar-se de uma experiência axiológica, com todos os impre­vistos inerentes ao valor e à liberdade. O direito todo estaria em causa, se pudesse prevalecer essa antinomia abstrata entre o "pro­blemático" e o "sistemático", só admissível com base num rígido e equívoco conceito de sistema 5.

a excluir a possibilidade da "construção sistemática do direito como expe­riência", o mestre de Pádua conclui o seu trabalho afirmando que a colocação do assunto em têrmos problemáticos pode trazer relevante contribuição para a Filosofia e a Ciência do Direito, pelo menos em três pontos fundamentais: a) no tocante ao conceito de Filosofia do Direito e à sua legitimidade como Filosofia particular; b) sóbre a questão das relações entre histof.icidade e validade axiológica do direito, ou, se se preferir, entre o direito como fato histórico e o direito como valor; c) sóbre a questão do conceito de Ciência Jurídica e, em particular, da função reservada ao jur ista quanto à "cons­trução" de seu objeto (loe. eit., pág. 746).

5. Também a propósito do conceito de Dogmática Jurídica (v. infTa, págs. 123 e segs.) encontraremos essa falsa antítese entre "sistema" e "problema".

o DIIlf::ITO COMO f::XI'ERIÊNCIA 5

É essencial, por conseguinte, proceder-se ao estudo da questão numa atitude de objetividade fenomenológica, para verificar se efetivamente há no conceito de "experiência jurídica", ou, por outras palavras, no conceito do direito como experiência algo de universalmente válido para o jurista, ou se se trata apenas de um conceito, não apenas problemático, mas polêmico, peculiar às épocas ele transiçüo ou de crise de estrutura.

A investigação, conduzida com êsse espírito, exige, pois, que, primeiro, se procure determinar o "conceito de experiência jllrídica", com o rigor compatível com a índole das ciências culturais, para, depois, se indagar das razões que, no primeiro após-guerra, deram nascimento a uma dada forma de compreensão do assunto, que não coincide com a ora vigente, como esta poderá também não corres­ponder à exigida em futuras circunstâncias: tais mudanças de pers­pectivas valem antes como estímulo à captação das possíveis raízes condicionantes do problema.

§ 2. No parágrafo anterior apontei, como uma das razões da perda de interêsse pela teoria da experiência jurídica, a falta de mais rigorosa determinação de seus pressupostos gnoseológicos, espe­cialmente quanto à distinção entre a pesquisa do filósofo e a do ju­rista. Mas essa imprecisão de conceitos não foi menos acentuada no âmbito mesmo da ciência positiva.

Refiro-me sobretudo a dois equívocos paralelos, o dos juristas que acabaram por fazer uma identificação indevida entre direito e experiência jurídica, e o dos que pretenderam convertê-la em objeto exclusivo da Sociologia Jurídica, graças a cujas contribuições e di­retrizes caberia ao legislador elaborar as leis, assim como aos ju­risperitos a tarefa de interpretá-las e aplicú-las convenientemente. Experiencialismo jurídico (permitam-nos o neologismo) e sociolo­gismo foram as duas facêtas com que se apresentou a apontada orientação reducionista, oriunda do esquecimento ou desconheci­mento de que o conceito de experiência jurídica é bem mais amplo do que o determinado pelo jurista ou pelo sociólogo no campus de suas respectivas indagações: à luz da teoria tridimensional do direi to, penso ser possível esclarecer que o jurista aprecia a experiência jurídica no sentido vetorial do ato normativo, enquanto o sociólogo põe o problema no sentido vetorial da eficácia, a nenhum dêles de per si cabendo o monopólio de tal ordem de estudos, e sem que, por outro lado, em ambas as hipóteses, "direito" e "experiência juridica" se confundam.

Ainda, neste passo, impõe-se uma advertência quanto à com­plexidade e certa fluidez inerentes à matéria versada, pois, assim como não é possível repudiar a Filosofia do Direito de Hegel sob a alegação simplista de não ser obra de jurista, conhecedor dos mean­dros da Jurisprudência, ou a validade científica da produção de Savigny, por se reputarem sumários os seus pressupostos filosó-

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6 MIGUEL REALE

ficos, da mesma forma não haveria como pretender que todo so­ciólogo seja jurista e todo jurista seja sociólogo. São verdades óbvias, mas com freqüência nos esquecemos das conseqüências nelas implícitas, no momento em que nos referimos à experiência jurídica.

Uma conseqüência, por exemplo, a tirar-se dessa verdade prende-se à natureza mesma da Filosofia do Direito, que só uma acanhada compreensão da experiência jurídica poderá levar a iden­tificá-la com a Filosofia da Ciência Dogmática do Direito, como se o jurisfilósofo pudesse se desinteressar pela problemática socio­lógica ou psicológica, etc. que naquela experiência se contém. O posterior constituir-se, por exemplo, da Sociologia Jurídica implica, ao contrário, o imprescindível dever que tem o filósofo de transpor os limites tradicionais do Direito, visto apenas "sub specie norma­tivitatis", para inserir-se na totalidade e concretitude da experiên­cia jurídica, de cujo processo o momento dogmático-normativo é parte essencial, integrante e constitutivo, mas não até ao ponto de eliminar os demais fatôres, sem os quais, aliás, perderia êle a sua consistência ôntica e o seu significado axiológico.

§ 3. A terceira ordem de reparos, sempre com o propósito de vislumbrar as possíveis causas que levaram a se considerarem precipitadamente sem sentido ou superados os estudos sôbre a experiência jurídica, liga-se à amplitude mesma dêste tema, que se presta fàcilmente tanto a divagações como a observações frag­mentárias, desligadas umas das outras, sem aquela continuidade e sistematicidade indispensáveis a qualquer investigação ele cará­ter científico, máxime em se tratando de matéria que, por sua vastidão e riqueza ele perspectivas, exige a . cooperação de todns os que cuidam do direito, filósofos, juristas, sociólogos, historia­dores, antropólogos, psicólogos e politicólogos. A primeira fase dos estudos sôbre a experiência jurídica revela, ao contrário, co­mo que a "auto-suficiência" ele que se achava possuíelo cada inves­tigador, pouca ou nenhuma atenção dispensando certas pesquisas filosóficas - máxime quando desenvolvidas sob o influxo do idea­lismo de Croce e de Gentile - , aos resultaelos atingidos, por exem­plo, nos dominios fundamentais da Antropologia cultural ou da Sociologia.

Ê claro que o filósofo não pode ser infiel à natureza de sua especifica investigação, mas isto não quer dizer que possa fazer abstração das contribuições científico-positivas, a não ser que de antemão as considere fruto de "pseudo ciência", ou receie ver por elas contaminada a forma pura e absoluta ele seus pressupos­tos transcendentais, pôsto, elêsse modo, um antagonismo absurdo entre Filosofia e Ciência.

Faltou, por outro lado, a alguns autores a preocupação ue delimitar 0$ assuntos versados com os necessários apuro e rigor

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 7

de linguagem, a começar pela discriminação das diversas formas de experiência jurídica, em função das distintas modalidades do saber jurídico, sem ter havido sequer o cuidado preliminar de situar-se o Direito (= Ciência normativa do direitn) "perante" ou "na" experiência jurídica.

Em certos mestres pioneiros ou fundadores da teoria da ex­periência jurídica, como é o caso especial do mais profundo dêles, Giuseppe Capograssi, o estilo colorido, e às vêzes de tonalidade romântica, traduz como que o entusiasmo e o ímpeto polêmicos de quem se opõe à predominante visão lógico-normativa do di­reito, sendo os problemas por êle enunciados segundo intuições que se articulam e se sistematizam em virtude da capacidade ordenadora do autor, e não como resultado de uma clara fundação epistemológica. Frise-se, desde logo, que não recuso a Capograssi a elevida preocupação pelas questões condicionantes da experiência jurídica, mas não me parece que passe de mera constatação das dificuldades existentes a qualificação de ambigüidade por êle atri­buída à Ciência do Direito no mundo da cultura 6. Daí a necessi­dade de retomar-se a linha dessa e de outras contribuições valio­sas, para melhor compreensão da natureza do direito e do objeto da Jurisprudência.

II

AS TR.:f';S PERSPECTIVAS F1LOSóF1CAS FUNDAMENTAIS DA EXPERIf;NCIA JURíDICA

§ 4. Reconhecida a correlação existente entre a compreen­são filosófica e a científico-positiva da experiência jurídica, não será demais discriminar, logo no início dêste trabalho, as posições fundamentais que se delinearam perante o binômio Filosofia-Ex­periência, a partir de Kant. Não obstante o caráter propedêutico das noções que vão ser expostas a seguir, a confusão operada entre elas não foi causa menor do comprometimento das pesquisas em curso sôbre o nosso tema.

O conceito de "e;rperiência" é tão nuclear que põe, desde logo, o problema de sua relação com a investigação filosófica, e vice-versa, constituindo, por conseguinte, uma questão prévia que condiclona o conceito segundo de "experiência jurídica".

6. Cf. CAPOGRASSI - Il Problema della Scienza deZ DiTitto, cit., págs. 32 e segs. e 220 e segs. :f; inegável que CAPOGRASSI afirma a necessidade de um "método sintético" para a compreensão da experiência jurídica, mas êle não va i além de considerações genéricas sôbre a inadequação da abstração generalizante para a problemática dos valôres, devendo ser integrada por processos de "observação-implicação", aos qua is faz breves referências. (Cf. RoDOLFO BOZZI - Premesse allo Studio di Capograssi, Nápoles, 1965, págs. 52 e segs.).

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8 MIGUEL REAl.E

Pois bem, para os objetivos estritos destas pagmas introdu­tórias, se partirmos da já apontada correlação ou do binômio Filosofia-Experiência, poderemos discriminar pelo menos três ori­entações fundamentais possíveis, conforme nos si tuarmos na ou perante a experiência jurídica de uma forma imane.nte, transcen­dente ou transcendental, ao indagarmos de seu sentido, ou das razões de seu processus. Fixemos sucintamente tais posições:

a) a posição imanente

Se afirmo que jamais posso ir além do plano dos eventos históricos e considero os problemas jurídicos permanentemente inseridos nêle e só explicáveis segundo os valôres inerentes às relações que o constituem, assumo uma atitude filosófica de cunho imanente. Expressões de imanência jurídica são, por exemplo, o sociologismo ou o neo-empirismo jurídicos, que andam muitas vêzes conjugados, assentes ambos no pressup'Osto de que só os fatos marcam, necessàriamente, os horizontes do direito. Tudo o que se elabora no mundo jurídico, quer pelo legislador, quer pelos tribunais ou através dos usos e costumes, resulta, segundo tais doutrinas, das relações sociais mesmas, sendo, o mais das vêzes, as regras de direito explicadas indutivamente, segundo ne­xos de causalidade ou fwtcionalidade. Nesse complexo de idéias, o Direito Natural não passa de um conceito metajurídico, ou de um simples nome com o qual se procura dar ênfase e fôros de ciência a uma das possíveis tomadas de posição valorativa (e, como tais, consideradas puramente subjetivas e incertas) no processo da ex­periência jurídica.

Opera-se, nessa linha de pensamento, a redução do valor ao fato, do dever ser ao ser, visto como o valor não representa senão o resultado de um fenômeno psicológico, de ordem emocional ou volitiva, ou, tal como preferem dizer alguns, uma integração emo­cional-volitiva de sentimento e de desiderabilidade. O dever ser, sob êsse ângulo, equivale a uma diretriz possível do comporta­mento, como que uma resultante enucleada do seio dos próprios fatos: os valôres, dessarte, exerceriam função puramente indica­tiva e operacional, não ultrapassando o plano da mera sugestão tendente a facilitar ou determinar o advento de um dado resultado de ordem prática. Compreende-se, assim, a crítica de Benedetto Croce quando pondera ser o empirismo um pseudo-imanentismo, ou um imanentismo parcial, dada a implícita extrapolação do ele­mento fático, que passa a operar como pedra de toque ou de afe­rição da experiência mesma, sendo por sua vez o material essen­cial da própria experiência, num círculo vicioso manifesto.

Torna-se claro, todavia, que, enquadrada a experiência jurí­dica em tal contexto, ela equivale ao reconhecimento de que o direito só pode ser "experimentado" em função dos resultados atin-

U DIHEITO COMO EXPERlf:NCIA 9

gidos : como veremos, as diversas formas de instrumentalismo ju­ridico correspondem a êsse tipo de compreensão da experiência jurídica, em têrmos de cansalidade ou de funcionalidade, ad instar do que ocorre no campo das ciências físico-naturais.

Outra expressão do imanentismo jurídico, e de imanentismo integral, é a correspondente à posição de Hegel, para quem ,não há diferença ontológica entre realidade e pensamento do direito, por serem ambos momentos que, a seu ver, se dialetizam na uni­dade concreta do espírito, nada se pressupondo fora do processo de objetivação ética, sendo o sistema do direito "o reino da liber­dade realizada, o mundo do espírito expresso por si mesmo, como uma segunda natureza" 7.

É certo que Hegel ainda emprega o têrmo "Direito Natural" B,

mas em sentido bem diverso do até então prevalecente: em sua obra não há lugar para qualquer dualismo, como de um direito positivo subordinado a um outro, ideal e inhistórico; nem se con­cebe o ser distinto do dever ser, pressupondo-se um bem inatingível ou sem objetividade. Nesse sistema de idéias, o Direito Natural, ou se confunde com a Filosofia do Direito mesma, ou corresponde, na progressão imanente da eticidade, ao momento inicial e abstrato desta: é o "Direito Abstrato", isto é, o direito como liberdade imediata ainda indiscriminada, primeiro e fecundo mome.nto da objetivação do espírito, destinado a realizar-se ou a positivar-se em sua plenitude através das [armas sucessivas da sociedade civil e do Estado 9 . À luz dessa doutrina, - como o demonstraram sobe­jamente os estudos dos nco-idealistas italianos, aplicando idéias de Croce ou de Gentile -, opera-se uma identificação entre direito e experiência jurídica, resolvendo-se todo em si mesmo o fato his­tórico do jUB, com uma interpretação absolutizante, e, a meu ver, inadmissível, do verum ac factum convertuntu?' de Vico.

Sabe-se que, do tronco da doutrina hegeliana, desprende-se a teoria marxista do Díreito, também ela incompatível com qualquer

7. HEGEL _ Gl'undlinien der Phi.losophie des Rechts, Berlim, 1821, § 4, pago 14.

8. Os Lineamentos de Filosofia do Direi to, de HEGEL, ainda são enci­mados pela referência ao Direito Natural. mas só na aparência se trata de uma cont inuação dos tratados jusnaturaJistas, c ujo dualismo essencial entre real idade e ideal conflita com o idealismo abso luto. De qualquer forma, é bom recordar o duplo título completo da 1.' edição da obra hegPliana: Na­tWTechts 101(1 Staatswisscl1scJw.ft im Gnmelrisse II Gl'undlinicn eler P hiloso­TJhie dos Rechts, Berlim, 1821, um frontispício põsto ao lado do outro. quase a indicar a perplexa passagem do jusnatura l.ismo tradicional para urna nova e mais profunda compreensflo da positividade do direito.

9. Sõbre êsses aspectos do idealismo hegeliano, v. m eu ensaio "Direito Abstrato e Dialética da Positividade", em H ori·zontes do Direito e da Histórin, São Paulo, 1956, págs. 173-183. Para maiores esclarecimentos quanto às três posições aqui discriminadas, faç o remissão à minha Filosofia elo Direito, 4' ed., Sflo Paulo, 1966. Há uma 5,' ed. no prelo.

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10 MIGUEL HEALE

dualismo e.ntre Teaz.idade e valo?') ser e dever ser, os segundos têrmos dessas díades resultando dos primeiros em seu evolver histórico, por mais que, por sua vez, as chamadas "superestrutu­ras ideológicas" possam vir a condicionar as fases ulteriores do processo, atuando sôbre as infra-estruturas originais. É de notar-se, aliás, que, no Direito soviético, sob o impacto da gnoseologia de Lenine, os estudos da experiência jurídica pouco se distinguem das orientações empiricistas já indicadas, reduzidas as estruturas dia­léticas da experiência jurídica a meros esquemas operacionais em função dos planos políticos traçados pelos órgãos do Estado.

b) a posição transcendente

§ 5. Bem diversa é a pOSlçao daqueles autores segundo os quais, além dos fatos, num plano diverso do empírico e temporal, é necessário admitir alguns paradigmas ideais, certas exigências objetivas e imutáveis, à guisa das idéias de Platão; são modelos estáticos ou eternos, que não participam de nossas contingências histórico-sociais, a não ser quando nos reportamos a êles, pro­curando adequar àqueles arquétipos as expressões contingentes de nosso comportamento individual e coletivo.

A essa luz, tôda a atividade humana, tanto de ordem teorética como prática, desenvolvida pelo homem nos quadrantes da história, elaborando doutrinas e leis, aprimorando técnicas e incutindo nos indivíduos e nos povos o respeito e o amor pelo Direito, ou seja, todo o drama da experiência jurídica não representaria senão um esfôrço constante de adequação a modelos transcendentes de Justiça. Em função de como se situam e se compreendem os nexos de correspondência entre o Direito Histórico e o Direito Natural ou o "mundo dos valôres", variam as diversas perspectivas e teorias, até às formas mais recentes de compreensão da justiça como "rea­lidade em si", consoante o ontologismo axiológico de N. Hartmann, de influência marcante em certas áreas da cultura hispano-ame­ricana.

Mas, por mais que haja diferenças entre os adeptos dêsse tipo de Direito Natural ou de "paradigmas axiológico-jurídicos autô­nomos", não só distintos do Direito Positivo mas também dotados de validade própria, o que os acomuna é a crença na transcendên­cia da Justiça e dos demais valôres fundantes da experiência juri­dica, ora sendo concebidos como realidades ontológicas, 'Ora como expressões ou manifestações do Valor divino, fonte e fundamento de tôda a vida ética.

Essas formas de transcendência, ainda quando nelas o Direito Natural signifique apenas um reduzido número de princípios dire­tores da vida prática, importam no pressuposto de valôres jurídi­cos não vinculados à experiência histórica e que seriam antes con-

o DIREITO COi\!O ,;XPElllÊNCI A 11

elição ele sua legitimidade, com'O preceitos ou mandamentos eternos, albergando sempre as mesmas diretrizes essenciais de ação, de ['Orma abstrata e perfeita, não obstante a variabilidade natural de suas aplicações. O Direito Positivo, ao contrário, contingente e mutável, dependente da autoridade pública em função de critérios de conveniência e de 'Oportunidade, deveria representar, para ser moralmente válido, uma adequação necessária aos "institutos ideais elo Direito", ou, como se prefere dizer na linha do pensamento tomista, uma adequação aos princípios supremos da vida prática, válidos em si mesmos, das normas jurídicas positivas e de sua execução, segundo exigê.ncias de ordem lógica e de prudência política.

Dêsse modo, a verificação ou a "experiência" do direíto no plano empírico conter-se-ia dentro dos horizontes superiores e im­perativos da Justiça, expressão de uma harmonia e de uma ordem transcendentes 9' .

c) posição transcendental

§ 6. Segundo uma terceira poslçao, o direito não resulta do processo fático, nem lhe é imanente, mas, por outro lado, também é inconcebível como valor em si, desvinculado do processo histó­rico ou sem referibilidade à experiência, havendo em todo fenô­men'O jurídico dois aspectos a serem analisados, um quanto à sua gênese, outro quanto as suas condições de possibilidade e de va­lidade.

Ora, tôda vez que se pensa a experiência em geral, ou qual­quer tipo de experiência particular, em função de suas necessárias ({condú;ões a pri,ori de possibil'idade", sem se extrapolar essa funcionalidade, o~ seja, sem se entetizarem os seus nexos relacio­nais (como se as condições de possibilidade existissem em si e por si), configura-se uma te'Oria de cunho transcendental, na acepçã'O que êste têrmo passou a ter a partir de Kant.

Há impropriedade, a meu ver, quando se diz que, assim como "transcendente" se contrapõe a "imanente", "transcendental" se

9a. É claro que as discriminações constantes dos §§ 4 a 6 dêste Ensaio obedecem às linhas dominantes das principais diretrizes de pensamento, sem levar em conta variações ou composições mais ou menos ecléticas. No que se refere, por exemplo, ao Direito Natural, há au tores contemporâneos que sustentam uma concepção imanentista, preferindo apresentá-lo sub specie historiae e não sub spec1e aeternitatis, até o ponto de se ler, nas páginas da Givil!:à GattoZica (CXIV, 1963, n, pág. 329), que "os princípios do direito natural são imanentes na experiência jur ídica concreta; estão na história, não fora dela" (8. LERNER). Quanto ao superamento do "jusnaturalismo mcta-histórico", e ao "jusnaturalismo historicista", v. GUIDO FAss6 - La Legge della Ragione, Bolonha, 1964, págs. 200 e segs. e CARLO ANTONI - La RcstatLrazione del Diritto di Natura, Veneza, 1959.

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12 MIGUEL REAL,I';

contrapõe a "empírico". A rigor, transce.ndental e empmco são têrmos distintos, irredutíveis um ao outro, mas de tal macio impli­cados ou correlacionados entre si que se não compreendem fo ra de sua mútua dependência. Nesse ponto essencial coincidem tôdas as posições transcende.ntais, desde Kant até Husserl, e se "parva licet componere magnis", até às minhas modestas meditações ontog­noseológicas. As diferenças entre as diversas doutrinas transcen­dentais resultam de múltiplas razões, a começar pelo modo de se conceberem as "condições a prior'i de possibilidade", - que para Kant e os neokantianos traduzem meras exigências lógicas ou critérios de todo conhecimento, de valor puramente lógico-subje­tivo; mas que, para Husserl e outros, se bem que elas sempre se revelem no plano da subjetividade transcendental, referem-se intrn­cionaZmente ao real (a prior'i material) ou ao histórico) de maneira que resulta, assim, estendida a noção de aprioridade também ao que não é somente intelectual, fato êste que, consoante lembrado por Ferrater Mora, já fõra admitido por Hegel 10.

Além dessa, há outras diferenças entre os transcendentalistas no tocante à maneira de correlacionar as condições de possibili­dade com a experiê.ricia, daí resultando divergências relevantes quanto à noção mesma de experiência, inclusive, como veremos, para além de sua mera compreensã'O predicativa, renovando-se o conceito de transcendental.

Abstração feita, por 'Ora, dessas discrepâncias, bastará, para os propósitos limitados da discriminação que estam'Os fazendo, di­zer que, .na posição transcendental, para parafrasearm'Os expressões de Kant logo na página inicial da Crítica da Razüo Pura, "no tempo, todo conhecimento do Direito c'Omeça com a experiência, mas nem por isso deriva da experiência". Com tais palavras tor­na-se clara a distinção entre o ponto de vista genético e o lógico e o epistem'Ológico, na compreensão da experiência jurídica, nâo se devendo confundir o início (Anfang) com a origem (U1's]!rung) do conhecimento.

O direito é uma realidade histórico-cultural que se constitui e se desenvolve em função de exigências inilimináveis da vida hu­mana, cabendo indagar se êle é, como tal, suscetível de estud'O

10. Cf. FERRATER lVIORA - Diccionario de Filosofía, 4.' ed., I3uenos-Aires, 1965, t. I, a prioTi, pág. 25.

Relativamente às diversas formas de compreensão do conceito de a. priori e de tnov~cendental, temas que volta rão a ser focal izados no decorrer dêste e de outros ensaios dês te livro, cf. meu trabalho "Fenomenolog ia. Ontog­noseologia e Reflexão Crítico-Histórica", na Revista Brasileira ele Filosofia, 1966, fase. 62, págs. 161-20l.

De todo em todo descabida é a afinnação de NICOLA ABBAGNANO de que o têrmo tra nscendenta l teria caído em desuso, a não ser nas corrcn tes ligadas à fenomenologia husserliana... (Cf. Dizionario di Filosofiét, Turim, 1961, pág. 862, no verbete "trascendentale"l.

o DlTlEITO COMO EXPERI~NCIA 13

emplflco e de "experiência" e quais são as condições não apenas lógicas, mas éticas e históricas que tornam essa experiência pos­sível. Êste é, rig'Orosamente falando, o pr'Oblema da fundação filosófica do direit 'O como experiência, que é correlato ao da con­dicionalidade do direito como 'Objeto de ciência.

Relembl'adas essas noções básicas, quer parecer-me que ,nem sempre os estudios'Os da experiência jurídica souberam manter dis­tintos os dois plan'Os ele pesquisa, o filosófico e o jurídico; ou, então, deixaram de deter minar as necessárias correlações entre um e outro, de sorte a superar o grave divórcio reinante entre a Fil'Oso­fia do Direito e a Jurisprudência, ora reduzindo esta àquela, ora a pr imeira à segunda , daí resultando conclusões destituídas de significação para 'O filósofo ou para 'O jurista. No meu modo de ver, foi só com o já apon tado alargamento do conceito de t rans­cendental que se tornou possível a teoria integral da experiência jurídica, correlacionando-a , complementarmente, com a " realidade jurídica", mas sem reduzir um conceito a'O outro.

Pode-se dizer que o renovad'O interêsse que se nota pelo tema da experiência jurídica, no âmbito da Jurisprudência de nossos dias, - apesar da resistência que lhe opõem alguns juristas-soció­logos, que o consideram exclusivamente per tinente à Sociologia, ou de juristas apegados a uma compreensão puramente normativa do Direito - , é conseqüência de duas ordens de motivos:

a) dos estudos fenomenológicos que permitiram uma 11In-claçüo fil 'Osófica mais adequada da experiência no âmbito das ciên­cias h istórico-culturais;

lJ) em virtude de análoga tendência no sentido de ir-se até as coisas mesmas, prevalecente no âmbito da Teoria da cultura, da Sociologia 'Ou da Antropologia, retoma ndo-se as geniais intuições de Vico e as pioneiras c'Ontribuições epistem'Ológicas de \V. Dilthey sôbre as categorias próprias d'O "mundo histórico" e das ciências que o investigam.

lU

A EXPERIENCIA ÉTICA NA LINHA DE KANT E DOS NEOKANTIANOS

§ 7. Parece-me que é no âmbito ela Filosofia transcendental, considerada em seu pleno desenvolvimento e expansão, desde Kant até Husserl e seus atuais continuadores, que se pode enc'Ontrar uma base para a compreensão mais concreta e plena da experiência jurídica, liberta das preocupações reducionistas e setorizantes que foram, no passado, uma das características d'O empirismo positivis­ta e que, c'Omo se most rará em outros ensa ios dêste livro, vemos repetida nas t e'Or ias neopositivistas de noss'O tempo.

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14 MIGUEL REALE

Há, aliás, outra razão para remontar-se a Kant, pois foi em suas idéias que deitaram raízes as primeiras teorias que reivindi­caram a especificidade da experiência social e histórica, apesar da insuficiência de suas formulações, cujo superamento só se tornou possível, permitindo uma compreensão mais concreta e dinâmica da juridicidade, quando se reconheceu a insuficiência do transcen­dentalismo lógico-formal do pensador de Koenigsberg. É até certo ponto paradoxal que da corrente inicialmente mais infensa a qual­quer forma de "experiência" da vida ético-jurídica houvesse sur­gido, ou se desprendido, por contraste e como necessidade de su­perar as antinomias postas por Kant entre o plano teorético e o prático, uma linha de pesquisas sôbre o conteúdo axiológico da conduta ética ou a ética material dos valôres, sem se perder na rala trama dos fatos empíricos, mas antes conservando e poten­ciando duas exigências do pensamento crítico: a sua compreensão transcendental e o rigor epistemológico de seus enunciados.

É sabido que uma das contribuições fundamentais e decisivas de Kant consiste no reconhecimento da função ativa e constitu­tiva do espírito, enquanto dotado da faculdade de síntese ordena­dora dos dados sensíveis, para a determinação da experiência e a constituição fenomênica dos objetos, pondo em correlaçã'o neces­sária a "experiência possível" com as "condições lógicas de possi­bilidade" inerentes ao sujeito cognoscente, considerado de maneira universal, isto é, não como individualidade empírica, mas como "consciência em geral". Para ilustrar o modo como Kant situa o binômio "Transcendentalidade-Experiência") nada melhor do que lembrar dois textos, nos quais o assunto se acha compendiado de maneira exemplar:

a) "Chamo tm'nscendental) escreve êle, todo conhecimento que se ocupa não dos objetos, mas sim do modo de conhecimento dos objetos enquanto êste deve ser possível a priori";

b) "As condições de possibilidade da experiência em geral são, ao mesmo tempo, condições de possibilidade dos objetos da experiência) e têm, por co.nseguinte, validade objetiva em um juízo sintético a priori" Il.

Vê-se, por aí, como os dois problemas, o da transcendental e o da experiência, podem, em última análise, ser focalizados como sendo aspectos de um único problema, no sentido de que não se pode determinar qualquer objeto da experiência sem o referir às suas condições transcendentais de possibilidade, nem é concebível uma condição transcendentâl sem ser correlacionada, desde logo e necessàriamente, com a experiência possível.

11. Cf. KANT - Critica da Razão Pura, lI, Introd. VII, e "Analítica dos Princípios", L. lI, Capo lI, Secção lI, in fine. Na edição crítica de CASSIRER, da Kritik der Reinen llernunft, Berlim, 1912, págs. 49 e 153.

o DIREITO COMO EXPERIt!:NCIA 15

Limitando-me aos objetivos estritos destas pagmas introdu­tórias, o que me parece essencial, nessa colocação do problema gnoseoIógico, é o principio da função constitutiva, e náo mera­mente receptiva e reprodutora do espírito, com a correlata asser­ção de que a objetividade do conhecimento resulta de uma "cons­ciên~ia em geral" (iiberhaupt) a qual não deve ser entendida como sendo uma "consciência comum", distinta das consciências indivi­duais e superior a elas, mas antes indicando o que há de comum constítutivamente em cada homem como ser pensante. É na cor­relação entre a objet ividade da experiência possível e as condicio­nalidades a prioTi e constitutivas próprias do eu ]lur o ou da cons­ciência em geral que reside todo o fulcro do pensamento trans­cendental, cuja nervura, como Kant timbrava em assinalar, é dada pela " unidade si.ntética da apercepção) o ponto mais alto, ao qual se deve ligar túdo o uso do intelecto, tôda a lógica mesma, e, após esta, a Filosofia transcendental. Pode-se dizer que êsse poder é o intelecto mêsmo" 12.

Pois bem, se nessa descoberta de Kant há um núcleo fecundo de idéias renovadoras, marcando o superamento do ceticismo em­pírico, de um lado, e do dogmatismo racionalista, do outro, mister é reconhecer que a crítica posterior veio demonstrar, sobretudo à luz de novas exigências do saber' científico e das mutações so­fridas na concretitude da experiência ética, que o transcendenta­lismo kantiano continha lacunas e distorções que comprometiam os seus propósitos de fundação geral das ciências.

Nesse sentido, limito-me a assinalar dois pontos que mais me parecem negativos: ° primeiro refere-se à fratura ou "abismo" (para empregarmos aqui o substantivo usado por Kant no Pre­fácio à Crítica ([o Juízo) pôsto entre natureza e espírito) lei na­tural e liberdade, ser e dever ser, implicando uma separação radical e inadmissível C'ntre a experiência natural e a experiência ética e, por via de conseqüência, entre ciências naturais e ciências hu­manas; o segundo diz respeito não só ao caráter puramente lógico­-formal das condições transcendentais do conhecimento, como tam­bém ao artificialismo resultante da pretensão de prefigurar a priori uma tábua completa e exaustiva das formas e categorias, às quais deveriam se adequar todos os tipos de realidade possíveis 13.

12. Cf. !(ritik de)' R einen: Ventunfl, ed. cit., "Analítica dos Conceitos", 16, n.9 1.

13. CL, sôbre êsses dois pontos. 8S considerações por mim expendidas em um IX'queno estudo intitulado "Para um criticismo ontognoseológico", inserto em Horizontes do Direito e da História, São Paulo, 1956, págs. 334 e segs.

MF:IlJ.EAI J-PONTY (La St ructure dn OompoTtement, 5.' ed., Paris. 1%3, pflg. 185) observa que é próprio do kantismo "não admitir senão dois tipos de ex periênci as que sejam providas de uma estrutura (/, priori (a de um mundo de objetos externos p a dos estados do senso íntimo) e correlacionar com a

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16 MIG U E L REALE

§ 8. A rigor, no âmbito da filosofia de Kant só há lugar para a experiência natural, pois, como êle o afirma, na Primeira Intro­dução à Crítica do Juízo, - talvez as páginas em que o filósofo mais sente e vive a necessidade de superar a antítese existente, em seu sistema, entre a razão teórica e a razão prática - , lia liberdade não pode, em circunstância alguma, ser objeto de experiência", de tal modo ,que tudo o que resulta da vontade (Willlcür) como apli­cação prática, tudo, em sUlr.a, que seja fruto de atos voluntários "pertence ao reino das causas naturais". Por tais motivos, acres­centa êle, "como as proposições práticas se distinguem das teóricas pela sua fórmula, mas não por seu conteúdo, nenhum tipo especial de Filosofia é necessár io para o seu estudo; o que resulta da vontade, e existe como tal na natureza, "pertence à Filosofia teorética como conhecimento da natureza" 14.

Não cabe aqui, por certo, expor como dessa colocação do problema da experiência dos atos volitivos Kant infere um nôvo conceito de técnica) como elemento mediador comum, por analogia, tanto à técnica do homem (como no caso da obra de arte) come à técnica da natureza, como adequações da heterogeneidade de suas formas empíricas aos enlaces de suas formas lógicas possibilitantes. Bastará, todavia, acentuar que Kant, considerando os produtos da ação humana uma especial modalidade da "experiência natural", ao mesmo tempo que retrogradava, dessarte, à uma posição ante­r ior a Vico, - o qual já havia lançado as bases da nova ciência do "mundo humano", reclamando para ela categorias e métodos espe­cificos -, suscitava uma sér ie de problemas e de dificuldades, que seriam objeto de estudo por parte de quantos não se satisfizeram com ns correlações por êle postas entre natureza e liberdade, ou ainda, com a sua colocação do problema gnoscológico do Direito em têrmos de simples pensabilidade do dado jurídico, e não como estudo compreensivo das condições mesmas da experiência juridica.

Não era, aliás, só em relação a Vico que a posição kantiana representava um retrocesso, mas também em confronto com David Hume, que, além de ter atentado, com mais acuidade, para os fatôres

variedade dos conteúdos a postm'iori tôdas as outras espec ificaçõcs oa cxpp­riêncin, por exemplo, a consciência lingüística ou a consciênci a de outrem", Dessar tc, a "vida ética", ou seja, a "experiência ét ica" histôricnme nle obje­l,vada só pode ser vista a poste1"iori, com o experiência natu ral, m uito embora subordinada aos ditames Ct priori da vontade pura.

14. C f. KANT - ETste Ei111citungin die KTitik de1" Urteilskraft, voL VI ela Ed. Cass irer, Berlim, 1922, VoL V, pág. 180 (meus os grifas).

Importância fundamental, - sobretudo à vista da posterior Fil osofia da cultura --, deve-se atribuir à Primeira Int1"Odução escrita por KANT à Crítica [/0 Juízo, a qua l permaneceu quase ignorada a té a sua p rimeira publicação por E , CASSIRER, consoante admiràvelmen te saJ icntaoo por êstc <Jutor ['m s ua obra Knnf:s L eben und Lehre, publicada como s uplemento à ci tada ed ir;flo d as obras completas, vol. X L Na trad. castelhana de \ V. R oces, sob o título J(a.nl , V ida y DotTin((., México, 1948, v. sobretudo págs. 345 e segs ,

o D!I1F;ITO COMO EXPERIÊNCIA 17

psicológicos e econômicos geradores dos institutos jurídicos, re­conhecera a .necessidade de compreendê-los à luz de critérios pró­prios, consubstanciac1os em sua teoria do artifício ou do "conven­cionalismo" como fundamento psicológico da experiência social, nos seus dois aspectos, o jurídico e o político 15,

Não me parece possa haver dúvida quanto ao restrito conceito de experiência no sistema de Kant, aplicável, verdadeira ou pro­priamente, só no mundo da natureza: natuTCza e experiência, são conceitos que em seu sistema inseparàvelmente se correlacionam, implicando a existência de uma realidade explicável segundo leis necessárias 16.

Não é dito, entendamo-nos, que os resultados ou conseqüências dos imperativos éticos, os comportamentos morais ou jurídicos, não constituam matéria de experiência, no pensamento de Kant, mas sim que para êle se trata de experiência natural. Inspirando-se nessa linha de pensamento, Windelband ainda dirá, apesar de já assinalar o ponto crítico de passagem de uma ética formal para uma ética material de valôres, que a a tualização da liberdade, como norma inserida na vida psíquica do homem, se verifica segundo a "condicionalidade causal" própria das leis naturais 17.

Pode-se dizer que o grave e árduo problema legado por Kant a quantos se mantiveram fiéis aos pressupostos da Filosofia crí­tica, - sem enveredar pelo monismo hegeliano, com sacrifício dos valôres da subjetividade originária --, consistiu em superar a am­bigüidade de uma experiência que, nascida da liberdade, se punha como legalidade necessária no plano da temporalidade, o que só se tornou possível , penso eu, depois que, graças sobretudo a Henri Bergson, a li berdade deixou de ficar confinada no mundo da "coisa em· si" para atuar na concreta temporalidade, e, com os estudos fundamentais de Max Scheler, a experiência ética passou a ser entendida como cJ.:-periência de valôres 1S.

§ 9. É sabido que coube aos neol<antianos, a partir das últ i­mas décadas do século passado, sobretudo na esteira das Escolas de Baden e de Marburgo, retomar o problema dos fundamentos gno­seológicos das ciências culturais ou históricas, ao verificar-se a in­suficiência da compreensão positivista que, ao mesmo tempo que proclamava a gênese causal das regras ét icas e jurídicas, reduzia

15. Cf. BAGOLlNI - Espel'ienza Giuridi<:a e Poli t ica nel P ens iero di David H u,me, 2.' ed" T urim, 1966.

16. V, KANT - Pmlegõrnenos a T 6da Metafísica F'utttTa, §§ 25 e 26, Sôbre o assunto, consulte-se LEO L UGARINI - La Logi<:a Tmscendentale di Kant, Milã o-Messina , 1950, págs. 245 e segs,

17. Sôbre essa e outras questões ·conexas, v. o meu estudo "Liberdade e Valor" em Plu,1"alismo e L ibfrrdade, São Paulo, 1963. págs. 31 e segs,

18. Ibidem.

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18 MIGUEL REALE

paradoxalmente a Jurisprudência à análise das fontes formais do direito, convertendo-a, no fundo, em uma técnica de interpretação e de sistematização de textos legais ou dos atos normativos, rele­gando-se para a Ciência Política ou à Sociologia o problema do do ((sentido da experiência jnrídicaJJ como tal.

No que se refere aos marburguianos cabe observar que, desde Cohen a Cassirer, - o qual, aliás, transcende os limites da Escola, inserindo-se na Filosofia da cultura contemporânea - , dá-se o alar­gamento do conceito de experiência. Esta, no pensamento de H. Cohen mantém-se ainda estritamente limitada ao mundo da natu­reza, - com o que contorna, mas não supera a já referida ambigüi­dade de uma experiência ética subordinada à legalidade natural -, enquanto que Natorp e Cassirer timbram em estender o criticismo e os seus métodos a tôda a cultura humana, a tôdas as "formas de vida" 19.

Ê nessa linha de pesquisa que se situa o jusfilósofo da Escola, Rudolf Stammler, cuja obra teve por principal escopo determinar as formas lógicas condicionantes da experiência jurídica, ou a "pura legalidade" do direito. Talvez seja possível dizer-se que a via seguida por Stammler já se encontrava esboçada por Kant, com a sua distinção essencial entre imperativo ético, como um princípio a priori da razão pura prática, e imperativo técnico, que se refere às proposições práticas, as quais, "enquanto afirmam algo como existente devido à nossa vO.ntade, pertencem, - são palavras de Kant na já citada Primeira Introd'UÇão à Crítica do Juízo -, ao conhecimento natural e à parte teorética da Filosofia" , A êsse tipo de proposições, que êle denominara "imperativos problemáti­cos", na Fundação da Metafísica dos Costumes, Kant prefere qua­lificar, - para, diz êle, superar a contradição que naquela expressão se ocultava -, de "imperativos técnicos", .neste gênero de propo­sições distinguindo, - e a distinçã.o é de grande alcance - , a espécie dos imperativos pragmáticos.

Pondera Kant, - em uma nota, a meu ver fundamental, da citada Primeira Introd'UÇão -, ser necessário dar a tais impera­tivos o nome especial de pragmáticos, para diferenciá-los dos me­ramente técnicos, visto como configuram regras de p1'1.wência que comandam sob a condição de um fim efetiva e subjetivamente ne­cessário, isto é, a nossa própria felicidade. Além disso éles nao têm caráter puramente opcional, pois a êles subordinamos ta.nto nós mesmos como os demais homens. Ê a razão pela qual, em

19. Uma pen!'trante análise do conc!'ito de experiência no neokantismo marburguiano é feito por LEO LUGARINI no estudo "CrIticismo e Fondazione Soggettiva", em Il Pensiero, 1966, voI. XI, 1-2, págs. 77 e segs ., n . 3, págs. 158-$2 e vaI. XII, 1967, págs. 142 e segs. Quanto à posição de CASSlRER, v. a Introdução de CHARLES W. HENDEL à trad. inglêsa de Philosophie der sym­bolischen Formen (Yale Univ. Press, 1953), sobretudo págs, 21 e segs. do vaI. r.

?1

o DIREITO CO~lO EXPERlf:NCIA 19

tal caso, se impõe não apenas a especificação dos meios necessários à consecução ele um fim, como se dá nos imperativos técnicos comuns, mas também a elefinição elo fim como tal]o.

Ora, tôda a magnífica obra de Stammler poderia ser vista como um poderoso esfôrço no sentido de preencher a lacuna legada pelo pensamento kantiano também no campo do Direito, por falta ele determinação das condições a 1JJ'ioJ'i daquelas proposições prá­ticas cujo carúter nem opcional e nem puramente técnico o próprio Kant reconhecera, permanecendo, no entanto, o assunto em sus­penso, entre as tenazes de sua bifurcada compreensão da natureza e do espírito, Foi mérito inegável de Stammler ter pôsto o problema da experiência jurídica em têrmos de condicionalidade transcen­dental. elevando-se ao conceito de direito como "norma de cultura", mas t6da a sua doutrina padece ainda de uma concepção lógico­-formal que, no tocante ao mundo do direito, não vai além de uma abstrata relação entre for ma e conteúdo, de uma adequação ex­trínseca entre a logicidade de um querer autárquico e entrelaçante e a economicidade do que é juridicamente querido 21 .

Por outro Jado, como tem sido freqüentemente observado, o universal lógico do direito é apresentado pelos neokantianos, de maneira estática, como resultado de um processo de abstração, diferenciação e generalização, corno simples juízo lógico, esvaziado daquela função constittdiva que as categorias desempenham em relação a experiência, e que, como bem pondera Renato Treves. marca o valor do transcendentalismo kantiano 22 . :Êsse esvazia­mento do transcendental ainda mais se acentua na doutrina de Hans Kelsen, com a redução da norma de direito a um puro juízo lógico de caráter hipotético,

Um passo essencial à frente se deu com a Escola Sudocidental Alemã, pois, sob a influência da Windelband e de Rickert, consti· tuiu-se o cuZt1lralisrno jurídico de Lask e Radbruch, os quais, como se sabe, intercalaram entre o mundo da liberdade e o da natureza o mundo da cultUTa. , isto é, das realidades históricas constituídas pelo homem através do tempo, e compreensíveis, não segundo os juízos de ser ou juízos de 1iulor, mas segundo U,1ttízos referidos a valôres".

Se, no entanto, era assim claramente reconhecida a necessidade de se investigar a experiéncia jurídica como uma realidade autô-

20. V. KANT - ETste Einlei.t'll.n.gin die J(I'itik der Ul-teilskm/t, loco cit., pág. 183, n.· 1.

21. Sôbre a doutrina de STAMMLER, assim como relativamente a KEI~~EN c ao culturalismo de LASK, RADBRUCH, etc. peço vênia para remeter o leitor a meus livros Filo8ofio, do Direito, 4.' cd., cit., capítulos XX, XXIII e XXV e XXXII, e Fundamentos do Direito, cit., caps. IV e V, bem como à biblio­grafia nêlcs referida.

22. Cf. RENATO TREVES - Il Diritto come Relazion.e, Sa.ggio critico sul neokantismo contemporaneo, Turim, 1934, págs. 90 e segs.

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20 MIGUEL REALE

noma. - irredutível à mera explicação causal, ou a puros impe­rativos éticos - ; e se a categoria da "compreensão", sob o impulso decisivo das obras de Wilhelm Dilthey ou de Max Weber, vinha possibilitar mais seguro acesso aos domínios do "mundo histórico", não é menos certo que subsistia sempre uma essencial antinomia entre "natureza" e "liberdade", cuja dicotomia era pressuposta para admitir-se a mediação intercalar da "cultum".

No fundo, era sempre a concepção do transcendental em têrmos puramente formais que impedia uma visão mais concreta da expe­r iência jurídica, impossibilitando os neokantianos, - por mais que proclamassem as excelências da Filosofia dos valôres -, de com­preender que o elemento valor desempenha uma tríplice função, lógica, ôntica e deontológica, na constituição e desenvolvimento do mundo da cultura: os culturalistas neokantianos contentaram-se, ao contrário, em concebê-lo como um simples paradigma, pôsto ab extm do processo histórico, desempenhando mera função heur ís­tica ou de tábua de referência gnoseológica.

IV

A EXPERI11:NCIA ÉTICA A PARTIR DA FENOMENOLOGIA

§ 10. Coube, sem dúvida, a Husserl e, em um primeiro mo­mento, mais a Max Scheler, Nikolai Hartmann e Martin Heideg­ger do que ao fundador da fenomenologia, ampliar os horizontes da problemática existencial, abrangendo tanto as ciências da na­tureza como as do espírito, como decorrência de um conceito de "transcendental" capaz de condicionar e compreender tôdas as for­mas de realidade em tôda a sua concreção, num significativo re­tôrno às coisas mesmas.

Ao longo dêste livro, terei a oportunidade de ir dando realce às modificações essenciais operadas no binômio Filosofia-Experiência nos quadros da fenomenologia e da Filosofia da ciência contempo­rânea, mas será possível dizer-se que tôdas resultam de uma mudança de atitude perante a realidade, recebida como que "ingê­nuamente" para inserir-se criticamente numa consciente totalidade concreta.

Segundo Husserl, o nôvo conceito de transcendental, superada a posição kantiana, não traduz a mera busca de formas lógicas puras, mas sim "um retôrno às fontes últimas de t ôdas as for­mações cognoscitivas, da reflexão por parte do sujeito cognoscente sôbre si mesmo e sôbre tôda a sua vida cognoscitiva, na qual se definem, de conformidade com um fim, tôdas as formações cientí­f icas que valem para êle; na qual elas atuam como resultados e são e se tornam constantemente disponíveis", Não se trata, como se vê, de admitir-se a priori um eu pnro, como subjetividade orde-

o DIREITO COMO EXPERlf;NCIA 21

nadora do real ou mero "sujeito lógico", mas de remontar à fonte que se intitula "eu mesmo, com tôda a minha vida cognoscitiva real e possível, e, enfim, com a minha vida real e concreta", ao ego e ao mundo de que é êle consciente 23.

O que há de fecundo no pensamento husserliano, no concer­nente ao assunto que nos ocupa, é a não exclusão a priori de qualquer dado para a plena compreensão da realidade: não se contenta, por exemplo, com as formas lógicas condicionadoras das mais altas expressões do pensamento científico, esplendentes em seus enlaces e estruturas de pura racionalidade, por não lhe pare­cerem menos essenciais as formas pré-lógicas, as manifestações espontâneas e naturais do viver comum, ou da Lebenswelt, pondo-se, dêsse modo, o problema da aprioridnde mesma da relação eu-mundo.

Mas se assim é, se é mister não perder contacto com a fonte origi.nária da subjetividade, como fonte doadora de sentido, im­põe-se' penetrar, com êsse nôvo espírito, na concretitude da expe­riência histórico-cultural, até se atingirem os valôres que a con­dicionam e constituem 24.

Não se pode dizer que Husserl o tenha fe ito de maneira ple­namente satisfatória, com uma clara discriminação e.ntre o mundo da natureza e o das ciências do espírito, apesar de pretender ir além de Dilthey, cujos estudos apresenta como ponto decisivo na compreensão da realidade cultural 25.

23. HUSSERL - Lct Cl'is i deUe Scienze Eltropee e kt Fmwmenologia Trascendenl.ale, trad. de Enrico Filippini, 2.' ed., Milão. 1965, pág. 125; e Espericnza e Giudizio, trad. de Filippo Costa, Mlão, 1960, pág. 47, e Ideen zu einer reinen P h iinomenologie und Phiinomelogischen P hilosophie, l, lI, lU, E dição italiana aos cuidados de Enrico Filippini, Turim, 1965, sobre­t udo L. 11. Confor me observa ANDRÉ DE M URALT (La Conscience Transcen­dentale, Paris. 1958, págs. 150 e segs.) enquanto que, na r eflexão trànscen­dental kanti'll1a. lima vez atingido o "eu transcendental " , êste se põe de maneira im ediata, como pura forma lógica, válida em si independentemente de sua g('lleSe his tórica, isto é, de seu revelar-se por ocasião da experiência. na reflexão fe nom enológica o que se quer atingir é o "eu transcendental'· com tõda a vida real c concreta , como deflui do citado texto de H USSERL.

Deve-se. todavia, lembrar que. sendo o transcendental pa ra KANT lima "condi <,'iio de possibilirladC'''. nã o se pode olvidar como KANT entendC'u o problema da tCllIpo!'alidade própria da "npercepção transcendental". Ncss(' sen t ido. v. as p recisas ponderações de ERNESTO MAYZ VALLENILLA. demonstrando que o "('u t ra nscendental" para KANT não é a-temporal, mas simpl('smentc não exibe as mesm as earaeteristicas temporais do "cu empírico e real": a sua determinnção como permanente não define uma ausência a bsoluta de tempo. mns antes uma presença absoluta no meio do fluxo cambiante da consciência empí r ica. (E l Problema. de la N ada en Kant, Madri, 1965, págs. 81 e sC'gs. l.

24. Para m a is pormenorízado estudo de como me sit uo perante iI

doutrina h usscrlia na, v. o meu tra balh o Fenomenologia, OntognosGologia. G Refle.rfio Crí tico-Histórica, cit., na nota 10, pág. 12, supra.

25. Sôbre o papel de D ILTHEY na fenomenologia , v. HUSSF: RL. Id.ecl!. n. Secção IIl. "A const ituição do mundo espiritual" e o Apêndice XII. ~ U.

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22 MIGUEL [(EALt

Há, sem dúvida, elementos altamente positivos na especulação husserliana sôbre a "constituição do mundo espiritual", não se podendo dêles prescindir em qualquer indagação sôbre a experiên­cia ética ou jurídica, desde a sua concepção fundamental do eu concreto (chamemo-lo assim) ao qual corresponde o que êle deno­mina a "atitude pe1'sonalística", na qual nos situamos em nossa vida comum, quando conversamos, quando nos saudamos esten­dendo a mão, no amor e na repulsa, na meditação e na ação, quando estamos em uma referência recíproca, nos diálogos e nas objeções recíprocas; na qual estamos também quando consideramos as coisas como sendo o nosso ambiente circundante e não, como nas ciências da natureza, como uma natureza "objetiva". É a expe1'iência compreensiva da exístência do outro, na qual o outro também se põe como sujeito pessoal, em um "mundo de comunicação", sendo a pessoa centro dêsse mundo circundante, provido de significado espiritual 26.

A socialidade assim constituída graças a atos comunicativos de compreensão, como uma unidade superior de consciência entre pessoas, ou "o mundo das objetividades intersubjetivamente cons­tituídas", não pode ser "explicado" segundo leis naturais. Para Husserl não é a causalidade, mas sim a motivação a lei fundamental do mundo espiritual. A "causalidade motivacional", como êle a denomina, é a que governa a experiência cultural, numa trama de "estímulos", "interêsses" e "ocupações" entre o eu e o objeto in­tencional. Dessarte, escreve HusserI, quando, "na esfera das ciên­cias do espírito se diz que o historiador ou o sociólogo da cultura que­rem explicar os fatos das ciências do espírito, entende-se que êles querem estabelecer claramente as motivações, querem tornar com­preensível como é que os homens em questão chegaram a se com­portar de um modo ou de outro, que influxos receberam e quais exerceram, que é, em suma, que os induziu àquela comunhão de ações. Quando, pois, o estudioso, que se move no âmbito das ciências do espírito, fala de regras, de le'Ís que regem aquêles modos de comportamento, ou os modos de formaç.ão de certas configura­ções culturais, as causalidades, que em tais leis encontram, uma sua expressão geral, são coisas bem diversas das caw,alidades na-turais ( ...... ). Todos os modos de comportamento espiritual se ligam causalmente através de' relações motivacionais 21.

Na citada edição italiana, págs. 569 e segs. e 755 e scgs. e M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 77 (El Ser y Bl Tiempo, trad. casto de José Gaos, México Buenos-Aires, 1951, págs. 456 e segs.l.

26. HUSSERI, - ldeen, n, §§ 49 e 51 (págs. 579 e 587 da trad. ciL). 27. Sôbre êsses pontos, v. op. cit., loe. cit., § § 55 e 56. :É preciso ter

presente a distinção husserliana entre "causalidade natural" e "causalidade motivacional" quando êle considera tôdas as ciências causais, ou, em suas próprias palavras: "qualquer ciência do real, se quiser determinar realmente, c no sentido da 'validade objetiva , que é o mal, é uma ciência causalmente

o DiltEITO COi\lO EXPEmf: N CL\ 23

Propõe-se Husserl determinar melhor o tipo de experiência correspondente à "causalidade rnotivacional", para fundar as "ciên­cias do espirito", mas, não obstante a riqueza das sugestões co.n­tidas em Idecn II e lII, e mesmo em sua obra póstuma sôbre a crise da ciência européia, não se pode dizer que tenha logrado fazê-lo, ao oferecer-nos uma frágil distinção entre "experiência interna" e "experiência externa", procedendo desta as ciências da natureza, e daquela as ciências do espírito 28.

Considerando Husserl que as ciências do espírito "se baseiam sôbre a experiência inte1'1w, ou melhor sôbre a experiência feno­menológica", i.nterim·izando a experiência externa, não deixa bem claro quais os limites entre a análise "fenomenológica" ou filosó­fica da experiência cultural e a ciência dessa mesma experiência como realidade objetiva de ordem "pessoal", mas no plano temporal e histórico. Falta à indagação husserliana um mais atento exame da experiência compreensiva da existência do outro como experiência essencialmente axiológiea e histórica: o seu pensamento, mesmo nas suas derradeiras expressões, não se situa na radical compreensão do valor e da hi.stária como categorias essenciais à dimensão do homem, tal como foi pôs to à luz por Heidegger: "a análise da his­toricidade do ser do homem (Dasein) trata de mostrar que êste ente não é temporal por estar dentro da história, mas sim, ao con­trário, que só existe e pode existir histàricamente, por ser tempo­ral no fundo de seu ser" 29.

É certo que Husserl distingue entre a atitude do cientista da natureza, cego para os valôres, e a do cultor das ciências culturais, que não pode deixar de eX]Je1'ienciar as objetividades axiológieas e práticas, ou sej a de determiná-las "enquanto norma do experiencíar e como elemento do mundo circundante do sujeito experiente, ou então da comunidade experiente" 30, mas o que lhe escapa é a com­preensão da "objetividade" ou "positividade" peculiar à ciência que estuda tal experiência. Daí a sua tese de que as ciências culturais não são senão "uma das ciências da subjetividade", tor­nando-se dificil, não oestante tôdas as sutis considerações desenvol­vidas em Idccn lI, Apê'lldice, n, ~ 12, distinguir-se entre "ciência cultural" e "ciência eidética"; fica comprometido, em última análise,

C3_1Ilicatil,'(t" (illccn, IH, Capo l, ~ 1; trad. cit.. pág_ 787). Não há dúvida, porém, que a falta de uma cl",ra no(ão ela "objetividade cultural" torna ele certa forma imprecisa ou ambígua a posição de HUSSERL perante as ci[mcias espirituais.

28. Idecn, n, Apêndice XII, Ir, ~ Ir (cd. cit .. págs. 753 e segs.l. 29. V. Sein Ulul Zeit, trad. cit.. pág. 433. E ainda: "A exegese da 11; 5-

torícidadc elo Dusein apresenta-se, nssi m , no fundo, tão·sômente como uma análise mais concreta da ü'lTlporalidadc" (pág. 439).

30. 0 7)· ci t .. Apêndice, XII, * II (pág. 754). As palavras "expcricnciar" c "cxí1cri(~ nt e " se ilTlpõ('m para d is t in guir de "experimcntar" c "ex[X'rimen­tador", têrmos dema siado marcados de significado especif ico no domínio elas ciência s naturais.

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24 Ml~UEL REALE

todo o sentido axio16gico e histórico inerente à distinção de Dilthey entre "explicar" e "compreender", inadmissivelmente reduzidos a "explicar" e "descrever".

Não há, penso eu, no pensamento de Husserl plena compreensão de que as ciências culturais possuem uma "objetividade própria", de ordem axiol6gica e histórica. Talvez seja possível explicar-se essa insensibilidade husserliana para o "real axiológico e histórico" lembrando-se o seu desmedido apêgo à Psicologia, a qual, não obs­tante as suas conhecidas críticas a todo psicologismo no plano "fe­nomenológico", constitui, como persistente regra, o t ema central ou o fulcro de tôdas as suas pesquisas sôbre as ciências do espírito e a experiência ética.

Poder-se-ia dizer que Husser! supera os lindes da Psicologia para fundar as investigações lógicas e fenomenológicas, mas dela não se liberta no tocante a mais rigorosa compreensão das ciências histórico-culturais, inclusive por jamais ter tido a "experiência" dos respectivos problemas, em qualquer de seus ramos de aplicação.

Cumpre, pois, procurar determinar a realidade histórico-cul­tural, da qual a jurídica é uma das expressões mais relevantes, tendo-se em vista a sua constituição temporal-axiológica, sem perder de vista, mas antes mantendo vivos os prévios ensinamentos de Husserl sôbre a necessidade de ir às coisas mesmas, na experiência imediata, quer individual, quer social ou comunitária das motiva­ções que compõem o mundo do direito no quadro das "intencio.na­lidades objetivadas".

. Sem nos deixarmos seduzlr pelos que se iludem com o rigor apa~ rente de um estruturalismo, que acaba esvaziando o real de seu conteúdo vital para poder reduzi-lo a esquemas de puro intelectua­lismo abstrato, a via que se abre a uma ciência do concreto é a correlação funcional entre as realidades intuitivas ou espontâneas e as formas e estruturas correspondentes às objetivações históri­co-racionais das intencionalidades fundantes.

Nem é demais ponderar que essa aspiração de plenitude e concretitude, como adverte Marshall Mcluhan, é uma das caracte­rísticas de nosso tempo, uma conseqüência natural da tecnologia cibernética ,que contrapõe à técnica mecânica anterior, - frag­mentária, centralizadora e superficial, - a automação tecnológica essencialmente descentralizadora e integral 31 . Aliás, como se verá sobretudo nos Ensaios VII e VIII dêste livro, a moderna "teoria da informação" vem enriquecer a compreensão dos fenômenos sociais, infundindo ao culturalismo um sentido operacional que o põe em mais vivo contacto com a experiência.

31. Sõbre o impacto dos novos meios ou canais de comunicação sôhre a vida cultural, v. a obra básica de MARSHALL McLuHAN - Unde)'slundi)1!J Mediu: the extensions 01 man, 2.' ed" Nova Iork, 1964.

Ensaio 11

EXPERIÊNCIA JURÍDICA PRÉ-CATEGORIAL E OBJETIVAÇÃO CIENTÍFICA

SUMÁRlO: I - Concrctitude axiolõgica da expenencia jurid ica. II - P roblcmaticismo e tipicidade da experiência juridica. Sua natureza dialética, III - A experiência juridica pré-categorial. IV - A ordem imanente à experiência jurídica. V - A experiência

jurídica como objetivação cient ifica.

I

CONCRETITUDE AXIOLóGICA DA EXPERIÊNCIA JURíDICA

§ 1. À luz dos renovados conceitos de transcendental e de a pTiori, analisados no Ensaio anterior, parece-me que o problema da experiência ética em geral, e da experiência jurídica, em parti­cular, deve ser situado sôbre novas bases, para além de sua mera referência à subjetividade pura, entendida como simples tábua de formas e categorias lógicas, visto como implica também condições inelimináveis de ordem axiológica e histórica, como tais assumidas e reconhecidas pelo eu que sen te, pensa e quer. O transcendental, em última análise, abre-se à plenitude da experiência, tanto natural como ética, podendo-se dizer que a categoTia lógica de possibilidade passa a ser compreendida concretamente em função das categorias de finalidade e de temparalidade) nos planos da praxis e da história.

Não se cuida, porém, de renovar a tentativa de um empirismo integral, pois êste, sob a aparência de uma compreensão unitária e total, não colhe da realidade senão o que nela se mostra como enlaces causais, sem captar o sentido -que se alberga nos fatos, e sem referir os fatos à fonte originária doadora de sentido a tudo que existe, na concreta correlação entre o mt e o mundo, desde a espontaneidade natural da Lebenstuelt ou da vida comum, até às manifestações mais apuradas de objetivação espiritual, no plano da Arte, da Ciência ou da F ilosofia.

Essa exigência de unidade e de concreção é justamente apon­tada por Êmile Brchier como sendo "a origem da Filosofia con­temporânea", mais perceptível na obra de Husserl e de seus conti­nuadores, assim como .na Filosofia existencial, mas pode ser obser-

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2G MJGUI';L n<;ALG

vada em outras direções, como, por exemplo, na obra de Pantaleo CarabelIese, em cuja "crítica do concreto" se inspirou Luigi Bago­lini visando a atingir uma fundação crítica da experiência juri­dica I, ou então, nas diversas expressões do pragmatismo jurídico norte-americano 2.

Na concepção de Carabellese há, aliás, um aspecto que só mais tarde veio a ser pôsto em seu devido relêvo por Husscrl, que é a "historicidade" como uma das condições primordiais da experiên­cia, vista à luz de uma dialética de polaridade que, sob outros pres­supostos, me parece ser a única adequada à interpretação dos fatos culturais.

Se lembrarmos, outrossim, as contribuições fundamentais de N. Hartmann e Max Scheler pondo a problemática do valor no centro da experiência ética, - muito embora se possa discordar de sua Axiologia -, ou as pesquisas renovadoras de Dilthey, Weber, Spranger, Cassirer e tantos outros nos domínios da Filosofía da cultura, ao mesmo tempo que igual aspiração de concretitude passava a nortear a Sociologia e a Antropologia culturais, fácil é perceber como o conceito de transcendental se enriquecia de estru­turas outras que não as puramente lógicas, tendentes a se abrir ou' já abertas a uma compreensão dialética do concreto.

Ê claro que quando falo em transcendental refiro-me necessà­riamente a um e~L ou consciência comum) não no sentido, porém, de algo pôsto acima das consciências individuais, mas sim no sen­tido de que há algo universalmente idêntico em tóda consciência humana enquanto eu que pensa (lch denke). Uma coisa é, no entanto, admitir a "subjetividade" do transcendental, e outra bem diversa é afirmar que a subjetividade é condição transcendental de todo o real. É próprio da consciência, ao contrário, pelo caráter de intencionalidade que lhe é inerente, reconhecer como distinto de si o que ela assume em si mesma, o que equivale a dizer que, no ato de conhecer e de agir, não é o sujeito que, de maneira absoluta, põe e constitui as leis naturais ou as normas de ação. Se a r elação cognoscitiva e a relação volitiva só se dão na medida em que se conhece algo e se quer algo, está pressuposta a priori a correlação do que se conhece e se quer com o sujeito cognoscente e agente, cor­relação essa só tornada efetivamente possível no que denomino "processo ontognoseológico", no qual eu e objeto e en e objetivo se implicam e se condicionam, mantendo-se distintos mas comple­mentares.

Como se vê, o nóvo conceito de transcendental implica uma diversa noção de a p1'iori) que deixa de ser puramente formal, para

1. V. BAGOLlNI - Diritto e Scien;;a Giuridica della Critica dcl Concre to, ci t. . págs. 63 e segs. e passim, e Vi sioni della Giustizia e Senso Comune, Bolonha, 1968, págs. 107 e sr gs.

2. Para uma visão global. v. a cole tânea organizada pOI' TJ10MAS A. COWAN - The American JuTÍsprudenee Rcader, Nova-Iorque, 1956.

o DIfIEITO COMO E;O(PERltNCIA 27

passar a ser também a priori material. Ê esta uma questão que, como dizem os juristas, tem caráter prejudicial, pois é em função dela que melhor podem ser definidas as posições filosóficas funda­mentais.

Bem vistas as coisas, a posição ontognoseológica pretende si­t.uar-se numa linha superadora da antítese Kant-Hegel, no tocante à relação Transcendentalidade-Experiência, e, nesse sentido, cons­titui um prolongamento dos estudos fenomenológicos, pela verifi­cação de que, se é necessário superar o conceito formal do ({eu pen.so" k antiano, substituindo-o, - como o faz Heidegger, que se vale de teses de Husserl, - pela concreção de ((eu penso algo no mundo" 3, torna-se indispensável reconhecer a historicidade do eiL J'('1I80, sem que para tanto se acabe, paradoxalmente, por dissol­vê-lo, enquanto eu, na totalidade envolve.nte e opressiva do processe histórico.

Como lembra Mikel Dufrenne, 'O a priori em Kant é co.ncebido em função do dualismo; êle pertence à subjetividade que o impõe ao obje­to; é uma forma que determina o conteúdo sem se comprometer nêle, que torna a experiência possível sem ser ela mesma experiência. Em Hegel, ao contrário, não há necessidade de nada para fundar a experiência, porque a experiência se funda a si mesma: o a posteriori é, por seu turno, a priori. A experiência mesma é abso­luta porque ela é a experiência do absoluto, isto é, a experiência que o absoluto faz manifesta ndo-se como identidade de sujeito e de objeto 4.

Pois bem, em contraste com o dualismo abstrato de Kant e o monismo absoluto de Hegel, que supera a aporia só e.nquanto a destrói, o que se impõe é compreender a relação sujeito-objeto, ou transcendentalidade-expcriência, em sua concreta interrelação e funcionalidade; dêsse modo, nem o a priori se esvazia e se exaure numa Gnoseologia for mal; nem se destrói no ato mesmo em que Gnoseologia se converte em Ontologia; mas traduz antes a condição de uma prévia correlaçào necessàriamente subjetivo-objetiva, con­soante o que denomino o.ntognoseologia.

É; nesse contexto que se pode dizer que a aprioridade designa a estrutura dos objetos ao mesmo tempo que a correlata capacidade perceptiva do sujeito, atualizáveis uma e outra no processo his­tórico-cultural, emergentes da transcenc':!ntal relação eu-mundo, que as mantém essencialme.nte distintas e complementares.

Ora, como a aprioridade material condiciona a existência dos entes em geral, não tem sentido falar-se de experiência apenas com

3. Cf. H<;IDEGG8R - Sein und Zeit, ed. casto cit., págs. 367-69. Quanto à distinção husserliana entre Clt puro , como "sujeito puro de qualquer cogito na unidade de um fluxo de Erlebnisse" e o eu· pessoal, como unidade compreensiva do eu e do munrlo c ircundante, v . Ideen, lI, § 61 c Apêndice X (Dl. it., pá gs 664 e sego e 713 e segs.l.

4. MIKEL D UFUGNNE - La Notion d'''A Priori" , Paris, 1959, pág. 47.

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28 MIGU EL RÉALl':

relação. ao. plano. da natureza, assim co.mo. em identidade da expe­riência ética com a experiência natural, ou ,na redução de uma à outra, dada a diversidade das estruturas co.nstitutivas do.s objetos possíveis, a que correspo.ndem, no ensinamento de Husserl, onto­logias regionais materiais distintas) cada uma delas implicando um tipo adequado de ciência, com o seu "tipo de experiência" e os seus métodos próprios, sem prejuízo. de sua comum fundação transcendental, segundo normas de uma "noética geral" s,

Às diversas categorias de objetos, segundo Husserl, devem por essência corresponder diversas apreensões constitutivas e, por con­seguinte, também diversas formas fundamentais dos atos originá­rios ofertantes, pois, em tôdas as ciências o método é também de­terminado pela essência geral da objetividade 6,

Se a natureza 'ou o "dado natural" é inerente aos atos mesmos de conhecer e de querer, vê-se bem que a experiência histórica (e nela a experiência do direito) não é algo de intercalado entre o espírito e a natureza, mas antes a projeção englobante do primeiro sôbre a segunda, enquanto a chama a si e a torna sua, no ato mesmo em que a põe como distinta de si, numa sucessão. de atos de reconhecimento e de posse, na dialética aberta exigida tanto pela inexauribilidade dos valôres que o espírito projeta sôbre a natureza, convertendo-a indefinidamente em cultura, como pela ine­xauribilidade da natureza como objeto de conhecime.nto, o que re­vela, sob outro prisma, a essencial correlação e complementariedade existente entre natureza e espíríto, ciências naturais e ciências da cultura,

§ 2, Correlacio.nar a expenencia natural à expenencia ética, sem reduzir uma à outra, eis, a meu ver, a primordial condição para um conceito integral de experiência jurídica, reconhecendo-se a especificidade do mundo histórico-cultural pelo reconhecimento de que não é só graças a nota da "verificabilidade" que uma inves­tigação adquire a dignidade de ciência: ao lado das explicações causais ou analíticas, como se tem observado sobretudo a partir de Dilthey, põem-se as formas de compreensão segundo cnlaccs valo­rativos determináveis como objetivas conexões de sentido.

As proposições verificáveis, dependentes da possibilidade lógica da redução do real a esquemas e modelos racionais, é a mais segura e certa, sem dúvida, mas não a única forma de comuni.cação cntre os homens e de acesso à natureza: a esta é necessário também

5. Sôbre êsse problema essencial da fundação das cwncias com relação às distintas ontologias regionais, v. HUSSERL - Ideen, trad, eit. , especial­mente o Livro IH, ("La Fenomenologia e i Fondamenti delle Scienzc"). págs. 785 e segs, Anteriormente o problema fôra focalizado, sob ou tros fun­damentos, por N. HARTMANN com a sua teor ia das categorias es truturais do mundo da natureza e do espírito.

6. Op. cit., L. IH, §§ 5 e 6, págs. 805 e sego

" IlIIU;ITO CO~IO EX PERlf:NCíA :29

chegar através das vias cmocionais e volitivas, que permitem captar l' COlllpl'l'C'nelcr as co isns em suas "objetivas conexões de sentido".

Nil.o qlll~ devamos nos contentar com as intuições que nos püe!11 em imediat o contato com a problemática existencial, mas, assim como o espi rit o manipula e ordena o material sensível estru­turando o real no ato ela percepçüo, supera também o momento das intuições axiológicas elevando-se ao plano de uma raciona­lidade concreta de base cstimativa.

Ncssa tarcfa dc racionalizoçdo compreensiva ou de ordem axio­lógica, - divcrsa da mais comumcnte cstudada, isto é, da raciona­lizaçào de tipo c:nilicativo -, o cspírito tem a guíá-Io a faculdade elc síntcsc autoconscicntc que lhc pcrmitiu fundar o mundo da cultura, superando o disperso e o fragmentário dos dados das múl­tiplas e heterogêneas experiências, e continua possibilitandO o adve nto dc novas formas de vida.

Nada apreendemos nos domínios da arte , da religião, da eco­nomia ou do dircito, de tôdas as criações do homem, em suma, nem nos é possível interpretar a nossa faina histórica, no empenho de ajustar cada vez mais a natureza a nossos fins racionais de emancipaçüo ética, sem indagarmos dêsses mesmos fins, da "inten­cionalidade" do ato criador obietivada nas obras e nos bens cons­tituídos. Os bens culturais existem na medida e enquanto pos­suem um senti.do) ou, por outras palavras são enquanto devem sig­nificar algo para alguém) como meio de comunicação,

Partindo dessa observação inicial chego a algumas conclusões que, no seu todo, compõem o que denomino historicismo axiológico) dada a tripla função desempenhada pelo valor na história: a pri­meira é de caráter ontológico ou constitutivo) por ser êle o conteúdo significante dos bens culturais, os quais são some.nte enquanto valem e valem porque são ; a segunda é gnoseológica, uma vez que só através dêle podemos captar o sentido da experiência cultural; c a terceira é deontológica) visto como de cada valor se origina um dever ser suscctível de ser expresso racionalmente como um fim. Ora, a razão. dcssas funções primordiais, que equivalem a verda­deiros agentes motores da história, é dada, penso eu, pela fo.nte donde todos os valôres promanam, que é o espírito humano, o valm' originário) o único que se põe por si mesmo. Daí dizer que a pessoa é o valo1"-tonte de todos os valô1"es) visto ser o homem o único cnte quc, de maneira originária) é enquanto deve ser 7 .

Os bens e obras constituídos pelo homem apresentam também essa caractcrística, de serem enquanto devem ser, mas de maneira derivada, como reflexos que são do ser deontológico que os põe in esse. O homem, ao modelar o mundo histórico, modela-o à sua

7, Para outros aspectos dôsse tema, v. Plnra.lismo e Liberdade, cit .. especialmente às págs, 63 e segs. e T eoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1968.

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:lO li! ! (~ {l F. L Il E A l. F.

imagem e semelhança; ao objetivar em bens materiais e espirituais os ditames e projeções de sua intencionalidade instauradora, enri­quece e potencia a sua própria subjetividade, devendo a sua imagem ser encontrada nêle mesmo e nas coisas por êle próprio formadas, elaborando os dados da natureza.

Sendo essenciais as correlações entre a Antropologia, a Filoso­fia e a História, não devemos contentar-nos com o estudo descritivo ou funcional das relações existentes entre os bens culturais, colo­cando-nos perante a cultura como o físico se põe perante os "dados" da natureza. O culturalismo neutralista e positivista fica escravi­zado aos instrumentos, aos veículos e suportes de significados, sem compreendê-los autênticamente como "formas de vida", pois não se deve confundir a atitude "realista" ou "natural", inerente a tõda investigação científico-positiva, necessàriamente adstrita aos ho­rizontes empíricos de dada objetividade, com a tendência "natura­lista" que consiste em tratar os atos humanos como se fôssem "coisas", ou seja, como se fôssem cegos aos valôres e pudessem ser "explicados" tão-somente segundo nexos causais. Uma concepçãn culturalista, fiel aos seus pressupostos, jamais perde de vista a fonte espiritual da qual os bens históricos promanam, cuidando, ao contrário, permanentemente, de captar-lhes o significado graças à sua referência ao espírito demiurgo que as constitui, ao espírito, em suma, entendido como valor primordial que implica a liberdade instituidora dos ciclos culturais.

Seria, com efeito, incompleta a imagem do homem e da cultura se fixada com olvido de um valor correlato ao de pessoa: o de liberdade. Indo às raízes do problema, verificamos que liberdade e valor se implicam, pois, para que algo valha é preciso que o espírito possa optar entre o valioso e o desvalioso; e, ao mesmo tempo, para que a liberdade seja efetiva é mister que um valor seja o motivo constitutivo da ação. No fundo, se a liberdade é um valor essencial a todos os valôres, e se sem valôres não se con­cretiza a liberdade, ambos constituem uma díade incindível, cuja tensão dialétíca se confunde com a vida mesma do espírito. Po­der-se-ia dizer que o valor é o espírito como liberdade, e a liberdade é o espírito autoconsciente de sua própria valia R.

§ 3. Liberdade e valor são, pois, o espírito mesmo na pleni­tude de si e de suas formas, desde o momento originário instaurador do mais rudimentar dos bens de cultura até às mais altas determi­nações objetivas da espécie humana através da história, na pers­pectiva contínua de novas afirmações valiosas: é entre essas formas de realidade que se situa o direito, só autênticamente válido en­quanto efetivamente "experimentado" e vivido.

8, Sôbre a implicação "valor-liberdade" e seu significado para o con­ceito de p€ssoa, v, em Pluralism.o e Liberdade, a comunicação pOl' mim apresentada ao Congresso Internacional de Veneza, págs. 31 e segs. e 63 e segs.

(I !ll!\EITO CU~lO r:;Xf>BHI(;i\"Cf,\ ~ll

Pode-se dizer, pois, que pela sua própria natureza, o díreito se lksl ína ,\ experil-'l1cia e só se aperfeiçoa no cotejo permanente da l'Xl)l'rí(~'llci a correspondente ao seu ser axíológico, experiência essa que ni-lO se reduz a uma adequação extrínseca, a uma tábua de referências fúticas ou a paradigmas de valôres ideais, nem se resolve numa unidade incliferençada, mas conserva, como condição de seu próprio "expcriri", a dialeticidade problemática e aberta dos [atôres que nela e por ela se correlacíonam e se implicam, na unidade de um processo ao mesmo tempo fático, axiológico e nOT­mativo.

No fundo "direito como experiência" ou "experiência jurídica" significa "concl'etitude de valoração do direito", o qual não pode ser concebido ou construido como um objeto de contemplação, ou uma pura seqüência de esquemas lógicos através dos quais se per­ceba fluir, à distância, a corrente da experiência social, com todos os problemas a que com tais esquemas se pretendia dar resposta; as suas normas são deontologicamente inseparáveis do solo da expe­riência humana.

Cumpre, pois, pesquisar e aferir o direito como experiência jurídica concreta, isto é, como realidade histórico-cultural) enquanto atual e concretamente presente à consciência em geral, tanto em seu.'> a..~pcctos teoréticos como práticos, ou, por outras palavras, enquanto constitui o complexo de valorcu;ões e comportamentos que os homens realizam em seu viver comum, atribuindo-lhes um signifi.cado su.'>cetível de qualificação jurídica no plano teorético, e correlatamente, o valor efetivo das idéias, normas, instituições e providências técnicas vigentes em função daquela tomada de consciência teorética e dos fins humanos a que se destinam.

Poderia parecer que, dessarte, o direito e a experiência jurídica seriam uma só coisa, mas ela é antes a compreensão do "direito in acto", como efetividade de participação e de comportamentos, sendo, pois, essencial ao seu conceito a vivência atual do direito, a concreta correspondência das formas da juridicidade ao sentir e querer, ou às valorações da comunidade: trata-se, por conseguinte, de uma compreensão necessária do direito, enquanto êste não pode ser reduzido à simples vigência normativa ou a mero juízo lógico preceptivo, - que o mutilaria em sua essência -, mas deve ser interpretado como real processo de aferição dos fatos em suas cone,rões ob,ieti1:as de sentido.

II

PROBLEMA TI CISMO E TIPICIDADE DA EXPERIÊNCIA JURíDICA - SUA NATUREZA DIALÉTICA

§ 4. Concebida a expenencia do direito como um processo de concreção axiológico-normativa, já está implícita a sua exigência

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" 32 MIGl'EL I:"ALE

de unidade ou de totalidade, pois é sabido, - e ninguém melhor do que N. Hartmann soube pôr êsse ponto em evidência -, que os valôres se cOl'l'elacionam e se implicam, uns atuando sôbre os outros de maneira solidária.

,É a razão pela qual, sendo múltiplas as perspectivas segundo as quais se focaliza a realidade do direito, não podem deixar de variar as formas de sua experiência, conforme se tenha em vista, por exemplo, uma pesquisa de ordem sociológica ou jurídico-dog­mática, muito embora possa haver, como há, um campo comum de interêsse entre ambas.

Seria prematuro, todavia, tentar fazer a sistematização dos problemas da experiência jurídica, só possível com o amadureci­mento dos estudos. Prefiro, assim, formular diretivas ou hipóteses de trabalho, apresentando algumas "perguntas" que poderão merecer mais precisas respostas por parte dos diversos investigadores, cada qual sob o seu ângulo próprio.

A primeira categoria de problemas que, a meu ver, recebe mais adequado tratamento em virtude da compreensão do direito como experiência refere-se, preliminarmente, às tão discutidas relações de funcionalidade ou interdependência em que se encon­tra a experiência jurídica com as demais formas de experiência social. A colocação, por exemplo, das relações entre Direito e Economia em têrmos de "experiência" possibilita a análise do as­sunto segundo tôdas as suas perspectivas e implicações, sem ficar reduzida a uma das conhecidas interpretações de tipo reducionista, como a que a resolve em uma relação entre "forma" e "conteúdo", à maneira de Stammler (conseqüência, como vimos, de seu conceito de transcendental como pura forma a p?·iori) ou à maneira de Marx, entre "infra-estrutura" e "superestrutura" (conseqüência de sua unilateral compreensão da história).

Focalizada a referida questão sem os preconceitos setorizantes de que foi fértil a mentalidade eminentemente reducionista do sé­culo XIX, para se abranger, ao contrário, a totalidade das formas da experiência social, graças a um processo dialético que leve em conta a natureza plural e ao mesmo tempo unitária dos fenômenos históricos, as relações entre "forma" e "conteúdo", ou entre "infra­-estrutura" e "superestrutura" deixam de ser categorias rígidas e abstratas, para valerem como categorias históricas e concretas, tão certo como o que é forma ou infra-estrutura hic et nunc pode apresentar-se como conteúdo ou superestrutura sob outro ângulo temporal, ou em função de outras coordenadas do espaço social. No contexto de uma compreensão dialética plural 9, as categorias for-

9, Sôbre essa questão, v. em meu livro Pluralismo e Liberdnde, cit, o ensaio intitulado "Dialética dos meios e dos fins" e o já citado ensaio "OntognoseoJogia, Fenomenologia e Reflexão Crítico-Histórica", na Rev~~ta Bras. de Filosofia, fasc. 62, 1966.

o DIREITO COMO EXPERIf;NCIA 33

muladas por Stammler ou Marx passam, assim, a ter valor de hipóteses particulares de trabalho, mas nem por isso menos rele­vantes, como instrumentos euristicos propiciadores de resultados, sempre subordinados a uma visão final totalizadora dos dados ob­servados. A éste respeito, poder-se-iam lembrar as contribuições de Max Weber, El'l1st Cassirer, Giuseppe Capograssi e Georges Gurvitch que nos apontam o rumo certo para a colocação do problema economia-direito, assim como de 'Outros correlatos, em uma "totalidade de sentido", na concretitude dinâmica do processo cultural.

Há, porém, outro aspecto a considerar, pôsto em realce por um jurista cuja obra pode ser considerada exemplar no concernente à compreensão do direito como experiência histórico-axiológica, e em cuja doutrina as exigências de concreção jamais se divorciam do principio de certeza essencial à vida jurídica. Refiro-me a Tullio Ascarelli 10 1ue demonstra que o ordenamento jurídico se correla­ciona com o processo econômico, - como, de resto, com os demais fatos sociais segundo uma tipologia própria, ou, em suas pa­lavras: "Ã tipologia funcional do estudioso de economia, com re­lação às diversas influências sôbre a produção e a circulação da riqueza, o jurista deve contrapor uma tipologia estruttlral, de su­jeitos, de coisas e atos, tendo em vista a aplicabilidade de uma disciplina normativa, muito embora convicto da contínua tensão entre a tipologia individualizada e o diverso alcance de uma mesma estrutura típica nos casos concretos, e da conseqüente dinâmica no desenvolvimento do direito. A sabedoria do jurista consiste na sutil percepção de uma individualização tipológica, que, sendo consciente da tensão, torne suportável o seu custo social e o transforme em um útil fator de desenvolvimento" 11.

A experiência do direito, em suma, nunca se amolda e se reduz às diversas experiências sociais, pois, delas extrai o ((sentido normativo ao fato" , e não o conteúdo do fato em sua especificidade, como realidade econômica, psicológica, artística, etc.; a sua na­tureza tipológica e normativa, ou, se quiserem, a sua ((tipicidade normativa" converte em jurídico tudo o que se insere em seu processo. É a razão pela qual, como foi observado por Soler, quando o direito parece aproveitar conceitos psicológicos ou eco­nômicos, êle os assimila e os torna próprios, inserindo-os no sistema normativo, com uma acepção e um alcance de ordem jurídica, irredutível às ciências que os inspiraram 12.

10, ASCAR"LLI _ Problemi Giuridici, Milão, 1959; Problemas das So­ciedades Anónimas e Direito Comparwl0, São Paulo, 1945: Tem'ia Geral dos Títulos de Crédito, trad. de Nicolau Nazo, São Paulo, 1943.

11, ASCARELLI _ Problemi, Giuridici, cit., vol. l, pág. 63. . 12, SEBASTIAN SOLER _ Ley, Ilistol·ia y Libertad, Buenos-Aires, 1943,

pago 188.

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34 MIGUEL REALE

Essa ordenação individualizadora não se opera como simples processo de adaptação mecânica, nem se desenvolve segundo puros nexos lógicos, mas brota, ao contrário, de uma constante prova (e no verbo provar, mais do que no substantivo, se percebe o sentido da imediatidade da aferição axiológica 13) em contacto direto com os fatos, em função dos resultados considerados mais razoáveis ou racionáveis para atendimento do bem comum. Não é de estra­nhar-se, por conseguinte, que a Jurisprudência tenha se constituído como ciência autônoma graças à "experiência jurídica" dos romanos, Ufactis ipsis dictantibus ac necessitate exigente", segundo os instru­mentos lógicos, as categorias e as estruturas recebidas da cultura grega 14.

Donde se conclui que é inerente à experiência jurídica, de todos os tempos e lugares, a co-implicação de dois elementos inse­paráveis, a estrutura formal, (a tipologia, a que se refere Ascarelli) e a função normativa que resulta objetivamente de um processo complexo de valoração dos fatos, conforme será melhor ilustrado ao tratarmos do "tridimensionalismo jurídico concreto".

§ 5. Ninguém melhor do ,que Capograssi soube compreender o sentido totalizador e dramático da experiência jurídica, não só intuindo a necessidade de um "método sintético", a partir dos pres­supostos pré-categoriais da realidade do direito, mas também apre­sentando-a como "instrumento na totalidade orgânica da vida". É de tal modo nela patente "a interdependência de todos os elementos que parecem ser per se stanti, que ela apresenta a característica singular de "um uníssono profundo sob a trama contínua das discordâncias, o uníssono nascendo ao mesmo tempo que o dissenso, e êste sendo pôsto para ser resolvido" 15.

Como se vê, "experiência jurídica" e "compreensão unitária e problemática" são conceitos que se exigem reciprocamente, assis­tindo razão a Recaséns Siches quando, nas páginas sucintas mas

13. Provar é, ao mesmo tempo, experimentar, procurar, verificar c padecer, o que corresponde à complexidade das vias da experiência, muito além da faculdade puramente intelectiva. Para uma "análise" dos con­ceitos de experiências, v. HECTOR NERI CASTANEDA - "Consciousness and Behavior: Their Basic Connections", inserto na coletânea I ntentionality, Minds, and Perception, Detroit, 1967, págs. 147 e segs.

14. Sóbre o constituir-se da Jurisprudência romana como experiência, v. o meu ensaio "Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano Clássico", em Horizontes do Direito e de! História, São Paulo, 1956, págs. 58-81.

15. CAPOGRASSI - II Problema della Scienza deZ Düitto, cit., págs. 12 e segs. e 51 e segs. Acrescenta êle com sagacidade : "Põe-se a von­tade comum porque as vontades imediatas (dos indivíduos) discordam; mas se a discórdia nasce também e sobretudo a propósito do estabeleci­mento da vontade comum, nâo há discordância quanto à necess idade de pôr-se a vontade comum" (pãg. 51).

o DIIlEITO COMO EXPERIÊNCIA 35

penetrantes com que esclarece vários aspectos do tema ora tratado, diz que "se falamos de experiência é porque nos achamos ante algo dado" , concluindo que, sob êsse aspecto, ela é "um conjunt~ muito complexo, porém lmitário, de diversos dados, os quais estao reci­procamente entretecidos", dados êsses que são de dupla natureza, _ por serem "fatos de relações inter-humanas", carregadas "de referências a valorações" l6.

A experiência jurídica, porém, não corresponde apenas a uma fase ou momento final e decisivo de verificação de normas e de institutos jurídicos, - como se poderia pensar em têrmos de abstra­ção intelectualística -, porque ela, como processo concreto e tota­lizante, ao mesmo tempo que comprova atos normativos, pondo-os em prova, em função de objetivas conexões de sentido, vai também desvendando e gerando novas soluções normativas. É por isso que, com razão, Recaséns adverte que a experiência jurídica opera como fator ou como fonte na geração e no desenvolvimento do direito em têrmos gerais, e na produção das normas jurídicas de tôda espécie, - genéricas, particulares e individualizadas - ; e também como estímulo e diretriz orientadora na crítica estimativa e na filosofia dos valóres jurídicos 17.

Há, pois, na experiência jurídica uma permanente tensão dia­lética, que pode deixar atônitos. os que dela se achegam levados por antigos ensinamentos sôbre o ideal do direito como uma ordem imutável e formalmente certa, quando, na realidade, a vida jurídica, sendo uma renovada sucessão de estimativas e de opções, às vêzes dramáticas, é, ao mesmo tempo, estnaura e evento, esta­bilidade e movimento; é adequação ao fato particular, segundo motivos renovados de eqüidade e, concomitantemente, exigência universal de certeza, através da previsão garantida de classes de ações possíveis, capazes de assegurar planos de ação à liberdade de iniciativa; é problemática, como tudo que se liga às alternativas da liberdade e da justiça, mas necessàriamente se inclina a compor e ordenar em sínteses unitárias, ou em sistema o mais possível predeterminado, os conflitos de interêsse.

A complexidade da Jurisprudência resulta exatamente do fato de haver, como escrevi à página 83 da Teoria do Direito e do Estado, "em tôda sociedade duas ordens de aspirações permanentes, que só à custa de muitos esforços e sacrifícios se conciliam em um estado que se poderia classificar de equilíbrio i.nstável, pur ser sempre uma co.njugação de estabilidade e de ~novimento". Na expe­riência jurídica essa tensão reflete-se em tôda a sua fôrça, dado o contraste do problcmaticismo da liberdade e da justiça com as exigências ordenadoras da certeza.

16. Artigo em Dianoia, cit., pág. 34. 17. Ibidem ,

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36 MIGUEL REALE

§ 6. Pois bem, ante a verificação da antinomia posta entre a tipicidadeJ como nota ineliminável da experiência jurídica, por ser expressão do imperativo de certeza) - e as exigências da eqüidade como adequação ao particular/ ao reconhecer-se o cons­tante conflito que há na vida do direito entre o abstrato e o con­creto, e mais ainda, ao proclamar-se, consoante fórmula incisiva de Capograssi que <Ca experiência é vida e a ciência é abstração", é natural que tenha surgido a tentação de optar-se por uma das duas fôrças antitéticas; mergulharam uns, ardorosamente, no mar indefinido e revôlto do jus vivens (como o fizeram os pregadores de soluções puramente emocionais, iludidos com as virtudes do decisionismo eqüitativo) enquanto outros preferiram refugiar-se no céu dos esquemas abstratos de uma juridicidade axiomática : em ambos os casos, o que se perdeu foi o direito como experiência, visto esta não poder ser confundida com a atomização dos atos de­cisórios, nem com a dissolução nominalista dos conceitos, em duas posições que, no fundo, se equivalem.

O problema prévio e prejudicial, que se põe na raiz metodoló­gica de tôda e qualqller teoria da experiência jurídica consiste, ao contrário, em não fugir das aporias da vida do direito, que seria tão ridículo como fugir da história, mas reconhecer que elas lhe são conaturais e próprias, não havendo outro modo de compreen­dê-la senão em suas correlações e dinamicidade dialéticas.

Quando não se reconhece a dialeticidade essencial da experiên­cia jurídica (e dêste tema tratarei, especificamente, no Ensaio VII, §§ 6.ç e 7.ç ) e não se quer abandonar a tese da experiência jurídica, corre-se o risco de recorrer a meras justaposições entre natureza e vida, abstrato e concreto etc., proclamando-se a sua ambigüidade ou o seu caráter paradoxal, o que é ficar no limiar do problema epistemológico.

Se a realidade do direito é a de um processo histórico, pare­ce-me que somente graças a um processo dialético será possível compreender a experiência jurídica; e, como se trata de experiência de natureza axiológica, que participa da polaridade e da co-impli­cação essenciais aos valôres, tal dialética só pode ser, como veremos, a de complementariedade.

Dessarte, não será jamaís a Lógica Jurídica formal o instru­mento de análise apto a responder aos problemas da Jurisprudência.

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A EXPERIÊNCIA JURíDICA PRE-CATECORIAL

§ 7. Uma das intuições mais fecundas de Capograssi, cujo significado ganha grande atualidade se considerada à luz das últi-

o DII~ElTll COilIO EXI'EllIÊNCIA 37

mas indagações que levaram Husserl à sua teoria da Lebenswelt, é a relativa a uma experiência jurídica originária, anterior a tôda e qualquer elaboração conceitual, no estado espontâneo imediato e nüo reflexivo de experiência pré-categorial.

Deve-se, aliás, ponderar que coube a vários filósofos e soció­logos do direito, talvez como fruto da reação ao exacerbado for­malismo jurídico reinante, uma antecipada percepção da realidade jurídica subjacente, entendida como projeção imediata das fontes da vida, sob as denominações no fundo equivalentes de direito concreto, ":ill,~ v/vens", direito intuitivo, direito social, etc., retor­nando-se, assim, aos temas apenas esboçados no clima romântico da primeira fase da Escola Histórica, cujo conceito de Vol7csgeü"t foi logo absorvido pelos esquemas lógico-normativos da Escola da Exegese ou dos Pandectistas 18.

Muito embora o pensamento jurídico oficial não tivesse dado maior atenção a êsses apelos no sentido de captar-se o direito, por assim dizer, cm "estado nascente", preferindo considerar os movi­mentos elo Direito Livre ou da Livre Pesquisa do Direito uma ventania romântica a sacudir passageiramente os quadrantes da Jurisprudência, - êles na realidade atendiam a exigências dura­douras e profundas, correspondentes à correlata transformação que, tanto no plano dos fatos como no das idéias, vinha se operando nas estruturas da sociedade contemporânea.

Trata-se ele fatos por demais notórios para que se imponham maiores considerações. Ê essencial, todavia, observar que se.. devem em um primeiro momento, mais a juristas ou a sociólogos do di­reito, - como os nomes de Holmes e Cardozo, Cény e Duguit, Ehrlich e Heck, Carnelutti e Ascarclli e tantos outros o demons­tram -, do que a filósofos pràpriamente ditos, as análises e ati­tudes mais decisivas no sentido de se inserir a problemática jurídica .na experiência social, consoante a tão discutida advertência de WendeI Holmes logo no início de sua obra clássica sôbre o Common Law : "A vida do direito não tem sido lógica; tem sido expe­riência" 19.

18. Poder-se-ia dizer que é na primeira fase do pensamento de s..~. VIGNY, bem como no famoso ensaio de KlRCHMANN que. no âmbito da Ciência Juridica moderna, se proclama a necessidade de não perder o ju­rista contacto com a experiência. Aludirei, no texto, às razões que dete r­minaram o abandono dessa orientação.

19. V. HOLMES - Common Lmu, Bostan, 1938, pág. 1. De HOLMES, além da Common Law, - cujo aparecimento em 1881. constituiu "um dos marcos na revolta contra o formalismo", como bem pondera MORTON \VIllTE (Socia.l Thou.ght in Ameri.ca., The Revolt against FOl'mali,'l1J1" Boston, 1963, pág. 59) - deve ser lembrado o seu estudo The Path of the Law, de 1897, no qual, partindo da conhecida afirmação de que o direito não é senão a profecia daquilo que os tribunais efe tivamente vão decidir, põe o pro­blema da Ciência do Direito em têrrnos de experiência, entendida, aliás,

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38 MIGUEL RE A LE

Abstração feita do mal ,que representou para o filósofo do direito o ter-se perdido em puras abstrações, olvidando que lhe cabe, acima de tudo, a compreensão do real em sua inteireza e concretitude, mister é uma referência, embora sumária, às razões determinantes da indifere.nça dos juristas pela aferição de seus esquemas normativos no plano da vida real, isto é, em relação com os comportamentos efetivos dos executores e dos destinatários das regras de direito.

Seria errôneo e injusto pensar que os mestres da Escola da Exegese, da Pandectística ou da Escola Analítica inglêsa tivessem desamor ou desinterêsse pelos problemas da efetividade do direito em função das infra-estruturas econômico-sociais, isolando-se no ilusório culto dos valôres lógicos inerentes ao sistema dos preceitos legais ou jurisdicionais vigentes.

Examinado o problema nas coordenadas culturais do século XIX, é preciso, ao contrário, reconhecer que o apêgo às soluções lógico-normativas, ou ao que se convencionou denominar Juris­prudência conceitual) representava, então, a atitude "normal" re­clamada pelas circunstâncias, tal a convicção reinante de que, além de os novos códigos e as estruturas normativas vigentes corres­ponderem à realidade subjacente, a função jurídica do Estado devia conter-se dentro dos princípios indeclináveis de certeza e segura,11ça) em um sistema de regras concebido como sendo em si mesmo pleno, lógica e eticamente sem lacunas. Dessarte, ao interpretar e aplicar as leis ou os precedentes judiciais, o jurista de tradição roma.nística ou do common law estava convicto de que não constituía abandono da experiência '0 ato de explicar ou de­clarar, com todo rigor lógico, os mandamentos previstos no âmbito das "possibilidades normativas", postas pelo legislador ou pelos precedentes jurisdicionais.

E, efetivamente, até e enquanto os acontecimentos sociais, sob o impacto das novas conquistas da técnica e da ciência, não assu­miram novos rumos, impondo o superamento do individualismo econômico e das categorias juridicas fundadas na autonomia da vontade, não se sentiu a necéssidade de examinar-se o direito em têrmos de experiência; esta era como ,que considerada implicita­mente atendida no ato de executar-se o comando jurídico de acôrdo com as circunstâncias ocorrentes, não se vislumbrando entre norma e fato um conflito essencial.

Sabem-no todos que, quando se tornou manifesta a "revolta dos fatos contra os códigos" desvaneceu-se a ilusão de uma pre-

com as limitações próprias de sua compreensão empirico-pragmática dos fatos sociais, sob a influência direta de WILLIAM JAMES e CIMHLES PElRCE.

Sôbre o pecado mortal da Filosofia Jurídica acadêmica, -- que con­siste na perda de contacto com a experiência do direito -, cf. RECASÉNS SICHES - Nueva Fllosofía de la lnterpretación deI Derecho, México, 1959.

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() DIHEITO C()~IO EXPEIUÊNCIA 39

sumida harmonia entre a vida e o sistema consagrado das normas jurídicas, torna.ndo-se imperioso o apêIo aos olvidados elementos da experiência, numa nova e surpreendente percepção das infra­-estruturas sociais.

Porém, se o constituir-se de uma "teoria da experiência jurí­dica" se deveu, nas primeiras décadas do século, aos fatôres mate­riais e ideais operantes na conjuntura histórica da crise do "direito burguês", como reação a'O apêgo desmedido da Jurisprudência a certezas formais e a critérios abstratos de juridicidade, seria grave equívoco, como já ponderei, absolutizar-se aquela fase his­tórica, para ligar-se, irremediàvelmente, a teoria da experiência jurídica ao complexo de objetivos particulares que então se tiveram em vista.

§ 8. Além dos motivos histórico-culturais apontados nos pará­grafos anteriores como causa da pouca ou nenhuma atenção dis­pensada à vivência concreta do direito pela Jurisprudência concei­tual, é de lembrar-se outro fator, de ordem doutrinária, ligado à tendência de se apreciarem sempre os fatos sociais segundo critérios evolucionista.s inspirados na doutrina de H. Spencer e seus conti­nuadores.

A idéia de que todos os acontecimentos sociais obedecem a um processo evolutivo crescente, a partir de dados originários de caráter provisório, integrados e superados no decorrer da história, graças ao constituir-se de formas cada vez mais altas de organi­zação social, não era de molde a suscitar interêsse pelos elementos espontâneos e imediatos da vida jurídica, para reconhecer a sua validade própria e a sua função constante, não obstante as objetiva­ções da ciência.

Dêsse modo, o preconceito evolucionista e o desmedido aprêço pelas soluções da abstração generalizadora, conjugavam-se para lançar no olvido o valor do particular ou do cotidiano, sendo essa atitude epistemológica ainda mais acentuada nos países em que se deu o predominio de doutrinas idealistas neo-hegeJianas, sob cujo influxo a experiência jurídica só podia ser concebida como expressão de uma objetivação espiritual totaJizante, na qual o valor do singular ficava irremediàvelmente submerso.

Ora, se há algo ·que diferencia e caracteriza o atual renasci­mento da teoria da experiência jurídica, é o firme propósito de "ir às coisa.s mesmas") sem desde logo situá-las numa presumida sucessão de eve.ntos, segundo razões imanentes de evolução ou de progresso. Essa orientação resulta de várias correntes do pen­samento contemporâneo, desde o intuicionismo de Bergson à feno­menologia de Husserl, em cujos quadros o problema adquire maior consistência cientifica, pelo superamento da antinomia abstrata pôsto pelo pensador de UÉvolution Créatrice entre inteligência e intuição.

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40 MIGUEL ltE:ALE

Tendo como fulcro a doutrina da consclencia inte.ncional, tor­na-se possível, - tal como veremos nos ensaios dêste livro -, colocar sôbre novas bases o problema da experiência em geral, e das experiências moral e jurídica, em particular, superando-se tanto o conhecimento empírico-descritivo destas, - sem sacrifício, pois, de seu essencial conteúdo axiológico -, quanto o intuicionismo in­fenso às formas ordenadoras da razão, evitando-se, dêsse modo, a perda do rigor exigido em tôda tarefa científica. Por outro lado, a compreensão fenomenológica, ou, como prefiro dizer, o.ntogno­seológica, ao mesmo tempo que possibilita a recepção integral dos dados do real, reconhecendo o a priO'ri material que condiciona o ato cognoscitivo, evita a redução das objetivações culturais a me­ros epifenômenos de uma infra-estrutura, de natureza econômica, por exemplo, tal como o prete.nde o materialismo histórico.

O delicado e fundamental problema epistemológico com que se defronta o estudioso das ciências sociais consiste exatamente em não mutilar a realidade humana, seduzido pela ilusória cons­trução de explicações de tipo quantitativo ou causal, e, ao mesmo tempo, não se perder no mare magnum das intuições particulares, fragme.ntárias e heterogêneas, tentado pelo desejo de imergir-se no concreto, mas com olvido dos valôres do rigor e da objetividade. Ê antes o sentido objetivo e crítico da realidade, acompanhado do propósito de sua compreensão inteiriça e integral, pela recepção e a percepção de cada um e de todos os seus elementos, à luz do respectivo significado singular, originário e próprio, que deve ca­racterizar a tarefa da Sociologia e da Jurisprudência.

Equivocam-se, pois, aquêles que recebem a teoria husserliana da Lebenswelt como uma nova imersão romântica e irracional nos meandros de uma realidade subjacente, movediça e fugidia, susce­tível de só ser captada através de intuições atomizadas e incertas. A doutrina da Lebenswelt, do "mundo da vida" , - e que melhor fôra chamar da "vida ou existência comum" - , obedece a pressu­postos críticos relativos às condições humanas de possibilidade, das quais cada forma de experiência emerge, segundo os fins que lhe são peculiares 20.

Foi grande mérito de Capograssi, - que, embora ,não se jactasse de filósofo do direito, foi dos que mais abriram trilhas inéditas ao pensamento jusfilosófico da Itália, na primeira metade do século -, dedicar todo um capítulo de sua obra à «experiência jurídica 't,'ÍSta antes da elaboração da ciência", procurando colhê r

20. Sôbre minha poslçao perante a teoria da LebenSUJelt v. o meu citado estudo Ontognoseologia., Fenomenologia e Reflexão Crítico-Histórica. Quanto ao conceito de LebensweZt, v. os estudos de J. GAOS, L. LANDGREBE, E. PACI e J. EILD no volume coletivo SymposÍlUm 30bre la Noción Husser­liaoo de la Lebenswelt, México, 1963; cf .. também, E . FACI - Funzioni deITe Scienze e Sígnificato dell'uomo, Milão, 1963.

o DIREITO cO~IO EXPERI~NCIA 41

as ordenações das vontades "tais como nascem pnr si , espontânea­mente, do concreto da ação" 21.

A sua viva descrição do "mundo da ação" ou "da vontade ad extra", - no qual as ações intersubjetivamente se ordenam, com salvaguarda e "ocultamento" do que há de singular e de intocável em cada subjetividade pessoal - , apresenta vários aspectos posi­tivos, como êste de captar, nas matrizes originárias da vida social, a natureza do direito como "experiência na qual a ação aparece na sua veste puramente prática e voluntária e, por conseguinte, descolorida de tôdas as côres do concreto; mas é a experiência na qual, exatamente em virtude dessa redução, o mundo todo da personalidade e da ação fica assegurado: é dêsse modo que se tor­nam possíveis tanto a vida mesma da personalidade única, em sua originalidade, como o surgimento da ação na sua inconfundível unidade" 22 .

Já na experiência jurídica espontânea e imediata revelam-se, por conseguinte, como momentos de uma única realidade, a orde­nação objet'iva das vontades e a preservação das subjetividades intocáveis, que a razão reflexa concretizará na temática comple­mentar do direito objetivo e do direito subjetivo, em função de múltiplas exigências e esquemas lógicos segundo a multiplicidade das vigências ideológicas e das técnicas da melhor adequação dos meios aos fins 23.

IV

A ORDEM IMANENTE À EXPERmNCIA JURíDICA

§ 9. Mas, se ,na obra de Capograssi, Gurvitch e outros, ga­nha realce o problema da experiência jurídica imediata, não é menos certo que essas pesquisas se ressentem de um desvio oca­sionado pelo já apontado preconceito de considerar os elementos

21. Cf. CAPOGRASSI - II Problema delZa Scienza deZ Diritto, cit., págs. 37 e segs.

22. Op. cit., pág. 49. Peço vênia para lembrar, a esta altura, o estudo que em minha Teori.a do Direito e do Estado, São Paulo, L' ed" 1940. dediquei às formas incipientes de juridicidade positiva, a que denominei "representações jurídicas", vendo-as como "germens ou esboços de normas jurídicas positivas" (ed. cit., pág, 80) . Embora já as visse como "dados da experiência jurídica", o ponto de vista "evolutivo" ou genético não me permitiu vê-las em sua integridade. Seria êrro, todavia, extremar-se o alcance do pensamento espontâneo ou da "experiência jurídica imediata" até o ponto de perder-se de vista o significado das objetivações científicas como expressão fundamental da intencionalidade humana, sacrificando-se. des­consoladamente, as realidades vivas por seus esquemas abstratos, ou. então, contrapondo-se, intelectual1sticamente, as estruturas da ciência às da rea ­lidade.

23. Sôbre o problema da preservação da subjetivi.dad.e como expressão da "moral do direito", v. infra, Ensaio XI, "Experiência moral e experiência jurídica", págs. 262 e segs.

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elementares da vida social como sendo não só obscuros e confli­tantes, mas também "larvares", isto é, não significativos em si mesmos, mas tão-somente enquanto momento inicial e necessário de um processo evolutivo.

Não resta dúvida que as ações que compõem a experiência social imediata, como o demonstra a análise fenomenológica, apre­sentam-se como algo de fluido ou de difuso, mas lhes é inerente uma tendência fundamental à ordem, no sentido de uma compo­sição harmônica de fôrças. No âmbito da consciência comum surgem a todo instante e se renovam modalidades de ação e de conduta como "condutas jurídicas", segundo plexos axiológicos e enlaces normativos, vividos em sua espontânea imediatidade, sem se subordinarem a critérios ou a categorias da ciência, e sem, por outro lado, representarem meros reflexos ou elaborações incons­cientes de prévias tipificações científicas, difusas imperceptivel­mente nas tramas dos hábitos e costumes sociais.

Talvez por influência de uma compreensão romântica, que remonta à teoria do Volksgeist, e depois exacerbada pelas filoso­fias intuicionistas, sobretudo na linha do pensamento bergsoniano, tem-se exagerado o caráter difuso e fugidio das experiências infra­-estruturais, não se dando a devida atenção ao que nelas já se manifesta como ordenação «in fieri", ou como forma.s iniciais de objetivação.

Nesse sentido, Georg Lukács dá-nos preciosos esclarecimentos, na primeira parte de sua Estética, na qual, após observar que, "até o presente, a teoria do conhecimento se tem preocupado muito pouco com o pensamento vulgar e cotidiano", focaliza ° problema da «cotidianeidade" à luz da teoria marxista, demonstrando que, se a vida cotidiana não conhece objetivações tão cerradas como a ciência e a arte, isto não significa que careça totalmente de objetivações 24.

Como bem observa Lukács, entre as objetivações da experiên­cia cotidiana e as formas reflexas cada vez mais refinadas da ciência e da arte há uma diferença de grau. Isto, no entanto, não pode ser entendido, como parece ser em parte o caso dêsse teórico do marxismo, no sentido de um superamento progressivo da experiência precategorial na unidade da evolução histórica, pois o constituir-se heterônomo das objetivações científicas ou das ins­tituições sociais e jurídicas não põe têrmo às experiências imedia­tas, devendo-se reconhecer, ao contrário, que ambas as formas coexistem, se complementam e se dialetizam.

É preciso, aliás, não esquecer que, focalizada em sua totali­dade, ou em sua plena concreção, a experiência precategorial do

24. Cf. Ãsthetik, l Teil. na trad. castelhana de Manuel Sacristán, Esté­tica, l , La peculiaridad de lo Estético, 1. Ouestiones preliminares e de prin­cipio, Barcelona-México, 1966, pág. 39.

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viver comnm é a base comum e global de tôdas as formas de objetivação cultural, isto é, a fundàção existencial que condiciona tôdas as realizações de ordem científica, artística ou institucional, podendo-se dizer que estas se integram e se desenvolvem em razão dela, tudo como expressão da correlação transcendental eu-mundo. Não fôra a vinculação material e direta que liga as raízes aos ramos, às fôlhas, às flôres e aos frutos, a imagem da árvore, apli­cada por Descartes à compreensão da Filosofia, seria a mais ade­quada a figurar as relações existentes entre as "formas culturais" e o húmus condicionante da Lebenswelt.

Ao falar, pois, em "ordenação in fieri" da experiência não penso em um processo evolutivo unitário, cujo último elo, de conformidade com o realizar-se da síntese hegeliana ou marxista, superaria todos os momentos anteriores, suprimindo-os como tais no ato de integrá-los em si. Como será melhor explanado no parágrafo seguinte, penso, ao contrári'O, que o "imediato" e o "particular" são fatôres constantes da experiência histórica, de tal sorte que as objetivações ou ordenações das "experiências ime­diatas" ocorrem incessantemente, como "processos singulares" de­vidos a motivos variáveis no espaço e no tempo, muito embora se contenham todos no âmbito global do processo ontognoseológico, que, no fundo, nã'O é senão o processo mesmo da história e da cultura. É certo, outrossim, que algumas modalidades de expe­riência evoluem, passando de estádios elementares para formas ulteriores racionalizadas, mas outras há que se mantêm como tais, insuscetíveis de categorização científica, o que demonstra a insu­ficiência de tôdas as teorias que têm procurado simplificar a expe­riência jurídica, seja subordinando-a a um único fator, seja redu­zindo-a a um desenvolvimento unilinear e englobante.

O que importa, por ora, é assinalar a irremediável contradição de se pensarem os dados da ação· imediata como algo de irracional ou a-racional, e, ao mesmo tempo, considerá-los suscetíveis de pos­terior ordenação racional. Essa aporia levou alguns autores a se conformarem com o caráter ambígu'O ou paradoxal da Ciência do Direito, enquanto outros penderam no sentido de recusar caráter científico à Jurisprudência, convertendo-a numa arte fundada em intuições práticas, ou, então, acabaram por eliminar qualquer valor do imediato ou do espontâneo que não fôsse racionalizável, desde que não traduzisse uma adequação da matéria à forma.

O estudo fenomenológico da ação ou datconduta demonstra que, qualquer que seja o grau ou a forma de sua explicitação, implica sempre uma direção intencional para algo, segundo certo fim e certa ordem. É essa uma verdade que os mais recentes estu­dos da Antropologia têm põsto em luz, mostrando os exageros da antiga teoria do totemismo, elaborada s'Ob o influxo de idéias evo­lucionistas, a partir do pressuposto de uma mentalidade pré-lógica,

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quando, na realidade a vida humana, inclusive a "primitiva" é "uma experiência carregada de exata e precisa significação" 25,

Como o demonstram as pesquisas renovadoras de Lévi Strauss, e de outros que procuram firmar as bases da Antropologia como uma "ciência do concreto", é necessário abandonar as errôneas concepções da linguagem do selvagem como "linguagem abstrata" , ou sôbre o pensamento do selvagem como simples produto de fa­bulação, quando, na realidade, a vida dos chamados "primitivos" revela um «apetite de conhecimento objetivo".

Em lugar de falar-se em "pensamento do selvagem", deve estudar-se o "pensamento selvagem", isto é, ainda não subordinado a esquemas reflexivos, verificando-se que, se o referido "apetite de conhecimento objetivo" é raramente dirigido para realidades do mesmo nível daquelas a que se liga a ciência moderna, nem por isso deixa de implicar demarches intelectuais e métodos de observação a ela comparáveis.

Lévi-Strauss está de acôrdo com Simpson, um dos mestres da moderna Taxonomia, quando nos diz que "o postulado funda­mental da ciência é o de que a natureza mesma é ordenada", fa­zendo esta observação essencial : "Ora, essa exigência de ordem está na base do pensamento que nós denominamos primitivo, mas apenas e tão-sàmente por estar na base de todo pensamento . .. " 26,

25. São palavras de HANDY e PUKUI, citadas por LÉVI-STRAUSS - La Pensée Sauvage, Paris, 1962, pág. 4. Dêste mestre da Etnologia contem­porânea, V., outrossim, Totémisme Aujourd'hui, Paris, 1962 ; Anthropologie Strnctumle, Paris, 1958; Le Grut et lc Guit, Paris, 1964 c Du MieI aux Gcndres, Paris, 1966.

Consoante resulta do até agora exposto, se me parecem de gr ande alcance as contribuições da Antropologia no sentido de corrigir certos exageros da compreensão ainda dominante na primeira metade do século, quanto à natureza puramente mítica e a-lógica do pensamento primitivo; e se é mister reconhecer o que já há de objetivo e de positivo na chamada "mentalidade primitiva", como um dado inerente à intencionalidade humana, não resultam convincentes certas conclusões que identificam tôdas as formas de penSaI', esvaziando-as de seu sentido histórico e progressivo, tudo se reduzindo a mera articulação formal de estruturas. Quanto aos exageros da "metafí­sica estruturalista", cf. a s considerações expendidas por GEORGES GUSDORF em Les Sciences de l'Hrnnme sont-elles des Sciences Huma,ines?, SITas­bourg, 1.967, págs. 119 e segs. N o tocante à historicidade da vida psiquica, v. J. H. VAN DER BERG - Metablética (Psicologia Histórica), trad. de Van der Water, São Paulo, 1965.

26, L~VI-STRAUSS - La Pensée Sauvage, cit., págs. 16 e segs. Cf. SIMPSON G. G. - PrincipIes of Animal Taxonomy, N. York, 1961, págs. 5 e segs. N a mesma ordem de idéias, L. STRAUSS critica a "fabulação" do totemismo alógico, ou a concepção da m agia como uma forma tímida c balbuciante da ciência. Diz êle que estaríamos impedidos de compreender o pensamento mágico se pretendêssemos reduzi-lo a um momento, ou 11

uma etapa, da evolução técnica e científica: "Sombra antecipando-se ao corpo, ela é, em certo sentido, t ão completa como êle, tão acabada e coe­rente, na sua imaterialidade, como o corpo sólido por ela apenas precedido. O pensamento mágico não é um início, um eomêço, um esbôço. a parte de

o DIREITO COMO EXPERIF:NCIA ~5

A meu ver, essa eXlgencia de ordem, ínsita ao pensamento, liga-se à natureza mesma do espírito, que se põe e se define como intcncionalidade e poder de síntese e liberdade, e, por conseguinte, como autoconsciência ordenadora ,que dá sentido ao real na me­dida em que dêlc recebe o material de experiência, no qual como que dorme o esbôço de suas objetivações, possibilitando a concria­ção e a concreção das formas culturais.

Ora, a apontada "exigência de ordem" deve estar na base do pensamento dos filós'ofos, sociólogos e juristas ao tratarem da experiência jurídica pré-categorial, máxime em sendo o direito a experiência social em que prevalece por excelência o valor da ordem e da segurança. O direito é, na realidade, uma expressão natural da ordem do pensamento como ordem das vontades coexis­tentes, o que se manifesta em tôdas as formas da experiência jurí­dica , até se aperfeiçoar, graças às categorizações da ciência, como reali.zação ordenada e garantida da convivência humana segundo vaZôrcs de altcridade,

§ 10. Do exposto resulta que a expenencia jurídica pré-ca­tegorial é uma constante na história do direito, não desaparecendo nem pcrdendo importância com o constituir-se das formas de co­nhecimento cientifico, a partir da Jurisprudência.

Antes de serem elaboradas as primeiras e rudimentares "c a­tegorizações" jurídicas, que iriam adquirir feição autônoma e bem definida com o Direito Romano, pode dizer-se que tudo era expe­r iência social comum indiferençada, confundindo-se religião moral e dircito num complexo de comportamentos insuscetíveis de rigo­rosa qualificação, Mesmo, porém, naquele estágio primitivo não deixava de haver objetivações, pois, consoante lembra Lukács, "a vida humana, o seu pensamento, o seu sentimento, a sua prática e a sua reflexão são inimagináveis sem objetivação", tanto mais que "as formas básicas da vida humana, o trabalho e a linguagem,

um todo ai nda não realizado; ela forma um sistema bem articulado ; inde­pendente, sou tal aspecto, dêsse outro sistema que constitui a ciência, salvo a analogia formal que os aproxima e que faz do p rimeiro uma espécie de expressão me tafórica do seg undo" (op. cit., pág. 21).

Talvez haja exagêro nessa revelação de estrutura:; lógicas do "pensa­mento selvagem", ou no olvido de seu significado na seqÜência do processo histórico-cultural, passando-se de extremo a extremo, da "ílogieidade totê­mica" para "o estruturalismo racional" . ..

O que se podc inferir, com certa segurança, dêsse conflito de pontos de vista , é que o pensamento, no seu estado natural ou espontâneo ("selva­gem") já alberga estruturas de inegável validade lógica . Não se esqueçam, a propósito dêstc assunto, as subtis e inovadoras análises de MERLEAU-PONTY sôbre a "percepç[w selvagem", como meio de r etôrno ao imediato, "ao mundo vertical, ao vivido" (cf. Le Visible ct l'Invisible, Paris, 1964, págs. 223 e segs. e 265 e segs.).

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46 MIGUEL REALE

têm, essencialmente, sob muitos aspectos, o caráter de objetivações. O trabalho não pode produzir-se senão como ato teleológico" 27.

Estas observações, de fundamental importância, vêm escla­recer e valorizar uma das teses marxistas de maior alcance para a compreensão das formas culturais, merecendo lembradas as pe­netrantes observações de Merleau-Ponty ao confrontar três tipos de ordens, a física, a vital e a humana, mostrando como é o tm­balho, - tomado êste têrmo em sentido hegeliano, para designar o conjunto das atividades mediante as quais o homem transforma a natureza, - é o trabalho humano que inaugura uma terceira dia­lética, projetando, entre o homem e os estímulos físico-químicos o mundo da cultura, abrangendo desde os chamados "objetos de uso" ou utensílios até a linguagem e as formas da arte 28.

É de relevância essa conexão entre o trabalho e a linguagem e o mundo cultural, como resultado da prévia compreensão da­quele como "ato teleológico". Nesse sentido, a passagem de Das Kapital, invocada por Lukács, é deveras decisiva, valendo a pena transcrevê-la, inclusive para dissipar certas interpretações dema-

. siado estreitas do "materialismo histórico": "Supomos o trabalho, adverte Marx, numa forma que pertence

exclusivamente a·o homem. Uma aranha realiza operações que se parecem com as de um tecelão, e uma abelha pode fazer rubori­zar, pela construção de seus alvéolos, a mais de um arquiteto humano. Porém, o que desde logo distingue o pior dos arquitetos da melhor das abelhas é que o primeiro já construiu a colmeia em sua cabeça antes de executá-la em cêra. No final do processo do tra­balho produz-se um resultado que já existia no comêço do mesmo, na representação do trabalhador, ou seja, idealmente. O traba­lhador não opera apenas uma transformação formal do natural; atua, ademais, os seus fins no natural, fim que êle conhece, que determina o tipo e o modo de seu fazer, como uma lei, e ao qual tem de submeter a sua vontade" 29.

Há, nesse passo, o reconhecimento de que o trabalho é ele­mentopositivo e fundamental, como ato teleológico de objetivação segundo fins que subordinam a si o processo natural, constituindo o "fator fundamental da vida cotidiana e de seu pensamento, ou seja, do reflexo da realidade objetiva na cotidianeidade" 30.

27. LUKÁCS, op. cit., pág. 39. 28. MERLEAU-PONTY - La Structure du Gomportement, cit ., págs. 175

e sego 29. MARX - Das Ka.pital, Hamburgo, 1914, l, pág. 140, apud LUKÁCS,

loco cito (meus os grifos). 30. LUKÁCS - op. cit., pág. 40. O que não se entende, positivamente, é

como essa complexa tarefa de "objetivação" possa ser singelamente expli­cada. recusando-se a produtividade do sujeito e reduzindo-se as categorias a meros reflexos da realidade objetiva mesma, t al como o pretende o mate­rialismo dialético. (loc. cit., pág. 57)

() Hlla:J'ru t"O;\-lO EXl'C;Hl~:~l'IA 47

Abstração feita do problema prevlO da fundação espiritual elo trabalho, C01110 expl'essüo primordial que é da qualidade essen­cial do espil'ilo enquanto poder de síntese ordenador dos dados da e:-.:pel'iêncin j media ta , - o que demonstra a insuficiência do ma­teriali smo histórico -, parece-me de grande alcance' a tese mar­xista que põe cm evidência a ordem conatural à experiência pré­-categorial como deconência de ser o trabalho, desde as suas for­mas mais rudimentares, uma experiência espontânea e irrenun­ciúvel ele subordinação da .na tureza aos planos e intencionalidades da cspécic humana; bem como a correla ta afirmação de que a emancipação ética não pode ser concebida como tarefa de subje­tividades isoladas, mas envolve antes, digamos assim, "o homem e a sua circunstüncia", o hornen1 e os seus condicionamentos sociais e econômicos, na totalidade de sua experiência pessoal e comuni­tária.

V

A EXPERIÊNCIA JURíDICA COMO OBJETIVAÇÃO CIENTíFICA

§ 11. A inclinação natural do pensamento para a ordem, discernível no plano da experiência imediata e espontânea, atinge .na experiência científica a sua forma mais objetiva e perfeita, a tal ponto que somos fàcilmente levados a olvidar a primeira, redu­zindo-a a uma fo rma incipiente e preparatória, como seria a da magia perante a ciência, nos quadros da antiga Antropologia.

Na realidade, a experiência jurídica pré-categorial e a expe­ri ência jurídica científica coexistem e se correlacionam, mais do que o pe.nsamento mágico com o científico, pois é no mundo da vida comum que está imersa a atividade do legislador e a do jurista, e é dela que ambas recebem .valor e significado. De nada valeria, em verdade, uma Jurisprudência esplendente na harmonia de seus institutas e figuras, de seus esquemas e modelos, se em conflito com ela fluí sse a vida co tidiana, e a máquina da Justiça resolvesse, impassível e friamente, os seus problemas do procedi­mento. por motivos de pura economia operacio.nal, deixando sem resposta as perguntas elo homem comum, quanto ao conteúdo e à substância de seus interêsses vitais.

Até que ponto, aliás, - vem-me à mente indagá-lo - , já não construímos uma portentosa maquinaria jurídica, cujas ,necessi­dades de funcionamento se sobrepõem às necessidades existenciais da homem para que foram concebidas? Até que ponto o amor das fórmulas e dos mitos, especialmente em assuntos de processo, não se resolve apenas .na solução de problemas do aparelho ou da máquina, deixando em suspenso, ou truncando-os irremediàvelmen­te, o plano dos valôres éticos e materiais objeto das lides? Quan-

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48 MIGUf:L REALf:

tas demandas, resolvidas sumana e preliminarmente, por motivos formais de procedimento, não alienam da Justiça o problema do homem?

Bastam essas perguntas para verificar-se como o assunto do direito como experiência científica anda indissoluvelmente ligado com o da experiência espontânea, não se podendo sequer dizer que esta seja a sombra do corpo da ciência, para empregarmos a invo­cada imagem de Lévi-Strauss, devendo antes ser ambas concebidas como aspectos complementares de uma única realidade 31 .

Na relação entre experiência pré-categorial e experiência-cien­tífica do Direito está implícita uma série de problemas, tais como os da relação entre forma e conteúdo, ou entre o todo e as partes, tornando-se impossível uma resposta satisfatória quando se abso­lutízam tais conceitos, abstraindo-os do processo concreto e dinâ­mico que é a vida do direito, experiência sempre aberta à incidên­cia de novas atualizações valorativas que convertem o conteúdo de hoje na forma condicíonante de amanhã, ou fazem com que um fator, até ontem secundário ou esquecido, dê colorido e ritmo à totalidade da experiência.

Se Hegel exagera quando nos diz que "ser é ser pensado", não devemos olvidar que a razão tem isto de terrível que ela converte em seu objeto e, por conseguinte, em racional, tudo aquilo em que toca, como se o real só assim se tornasse pleno e concreto. Muito embora se repila a identidade de pensamento e ser, seria absurdo rejeitar-se o valor da razão como instrumento culminante e decisivo na objetivação das formas culturais.

Se improcede afirmar-seque a experiência comum nos deixa no limbo das intuições fragmentárias e contraditórias, pois já vi­mos que há sempre certa ordem ínsita em tôdas as modalidades de ação, - tMa valoração implicando a postulação de fins, tôda Axiologia pondo uma Teleologia -, não se deve esquecer que a experiência jurídica, por ser fruto de uma exigência fundamental de ordem, envolve sempre certa medida ou proporção, isto é, uma ratio, que nutra coisa esta palavra não significa, em suas raízes, senão cálculo, conta, método, regra, desenho, causa.

Ora, se no plano da experiência natural a razão assume em si e ordena, segundos leis e princípios seus, o material da intuição

31. Não me parece plausível dizer-se que a "experiência jurídica é um estádio epistemológico anterior ao conhecimento totalmente compreensivo, porém conhecimento enquanto episteme, ou seja, enquanto constúncia, dis­tância do objeto jurídico em relação a nós" (SANCHEZ Df: LA TOIlIlE - En Torno a la Cieneia Jurídica, 1962, pág. 67), Quer no tocante à Sociologia Jurídica, quer quanto à Jurisprudência, as respectivas elaborações consti­tuem elementos integrantes da experiência jurídíca e nela e por ela se aferem, mesmo porque, como bem pondera o citado autor, "a experiência jurídica depende da conexão entre relação intersubjetiva e função juridica dentro da sociedade global", caracterizando-se a investigação atual por "considerar o vivo como um todo" (loc. cit.; cf., outrossim, SociologIa deZ Derecho, cit., págs. 23 e segs.l .

l) Dll~EITO CO:\IO EXí'EiUÊ.!'\ CIA 49

sensíl .·f:'l . explicitanrlo a ordem pressuposta da natureza, do mesmo modo, nos domínios das ciências da cultura, a razão compreende e ordena o material da intu ição a.Tiológica, emergente da práxis, dando-nos o sent ido concreto do todo.

A essa luz podemos afi rmar, com Ernst Cassirer, que "a crítica ela razfto torna-se a crítica da cultura". Ela "procura com­preenclel' e demonstrar como cada conteúdo de cultura, tão logo seja mais que mero conteúdo isolado, tão logo seja situado em um principio universal de [armas, pressupõe um ato original do espí­rito humano" 32.

Acrescenta Cassirer que tõclas as formas de cultura, lingua­gem, conhecimento científico, arte, religião, direito, obedecem a um projeto comum, determinado pelo fim comum de transformar o mundo passivo das meras impressões, no qual o espírito parece à primeira vista aprisionado, em um mundo que é pura expTessão do espil'Íto human'O 33.

Feito o desconto dessa redução, de inspiração kantiana, das formas culturais a meras produções do espírito, - o que me parece tão unilateral COn10 considerá-las resultados imanentes da causali­dade natural, 'Ou puros reflexos de uma ordem de coisas já dada, _ o essencial é reconhecer que tôdas as expressõeS da cultura, como sínteses ontognoseológicas, isto é, subjetivo-nbjetivas e teó­rico-práticas -, se atualizam no concreto da experiência histórica, segundo uma dialética de complementariedade; e obedecem a um 1)rojelo comum da espécie humana, como projeção do valor univer­sal da r:~essoa, que é o val'Or-fonte ele todos os valôres, e tornada possível pel a subjetividade transcendental doadora de sentido, vi­sando a subordinar a natureza a seus fins, através de formas que constituem renovadas tentativas de compor e harmo.nizar o espírito e o mundo.

§ 12. Poderia parecer que à medida que se processam e se apuram as objetivações, dá-se o alheamento do espírito em relação ao mundo, assim como o divórcio da experiência cotidiana. ~sse é, sem dúvida, o pecadO mortal da ciência, a qual corre sempre o risco de encanta r-se com as suas categorias lógico-formais, conver­tendo-as em realidades absolutas, seccionadas as raízes que a pren­dem ao fecundante húmus da vida comum.

O estudo que Husserl realizou, com genial acuidade, focali ­zando a crise das ciências naturais, desde Galileu aos nossos dias, pondo à mostra a sua perda de significado para o homem, à medída que as suas conquistas iam sendo concebidas como válidas em si e de per si, poderia ser repetida no âmbito da Ciência do Direito,

32. E . CASSIIlEIl - The Philosophy 0/ SymboU.c F'orms, trad. de Ralph Mannheim, Londres, 1953, vaI. l, pág. 80.

33. CASSIIlER - op. cit., pág. 81.

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50 MIGUEL REALE

e com mais razã'O para alarme, visto tratar-se de uma ciência do homem.

É claro que a advertência husserliana não pode ser recebida como uma condenação ingênua ou pseudo-romântica às construções da razão abstrativa e generalizadora, pois só na aparência o homem de ciência se aparta do real na medida em que êle capta as leis que o governam e traduz os fenõmenos em expressões matemáti­cas. O problema da crise da ciência não é o de sua gênese ou do instrumental lógico de seus conhecimentos, mas sim o da "perda de sentido" do mundo circundante em que ela se situa, ou por outras palavras, resulta de considerá-la "uma totalidade", quando é apenas "uma parte" no todo da cultura.

Seria, por conseguinte, ridículo pretender diminuir o valor das categorias lógicas com que a Escola da Exegese ou os Pan­dectistas enriqueceram a Jurisprudência, dando-lhe uma estrutura e uma economia técnica de formas, que constituem ponto inamo­vível de partida para a renovação da Dogmática Jurídica, recla­mada por uma sociedade plural num Estado a serviço do bem­-estar social e da justiça concreta.

O que importa é não olvidar que as objetivações científicas do Direito - incompreensíveis sem referência às formas espontâneas de ordenação inerentes ao viver comum, - são por sua vez ingre­dientes da experiência jurídica, filtrando-se as suas soluções tipo­lógicas, muitas vêzes, até às camadas subjacentes da vida cotidiana, para determinarem novas exigências normativas.

Dizer, porém, como é que se dá êsse processo de objetivação científica, como é que se articula com a experiência imediata, e como pode e deve ser o direito aferido como experiência, seria antecipar algumas das pesquisas que constituem a razão de se" dêste livro. O primeiro trabalho a fazer-se será o levantamento das diversas estruturas cognoscitivas constituídas em função dos aspectos fundamentais da realidade histórico-social do Direito, o que será objeto do Ensaio seguinte.

Ensaio 111

ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS DO CONHECIMENTO JURíDICO

SUMÁIUO ; I - A experiência jurldica sob os prismas transccn­dcntn! e empírico-positivo. II -- Espécies de pesquisas positivas elo direito. IH - Lógica jurídica e Lógica jurídica formal. IV

- Analítica e Dialética jurídicas.

I

A EXPERlf;NCIA JURíDICA SOB OS PRISMAS TRANSCENDENTAL E EMPíRICO-POSITIVO

§ 1. Há problemas na Filosofia que, com o volver dos anos, voltam a atrair a atenção dos estudiosos, quando já haviam sido postos de lado como pseudoprobIemas ou como questões de so­menos importância. Um dêsses temas é o da divisão da Filosofia do Direito, conexo com outro de maior amplitude, qual seja o de determinar e, possivelmente, classificar, as diversas ciê.ncias que têm a experiência jurídica como seu objeto.

Múltiplas razões explicam êsse renovar-se da pesquisa sôbre uma questão que tinha sido relativamente descuidada, como se se tratasse de um problema secundário, isto depois de já ter sido pôsto no primeiro plano da problemática filosófico-jurídica, na época em que prevalecia a preocupação positivista de oferecer-nos uma "classificação geral das ciências". É claro que as exigências pedagógicas implicam sempre a necessidade de uma discriminação dos campos de estudo, assim como uma discriminação de pesquisas não pode deixar de existir, pelo menos implícita, em qualquer ordem especulativa, mas o que se nota, hoje em dia, é, digamos assim, a atualidade do tema, a sua projeção ou valorização crescente. Resulta esta do desenvolvimento atingido pelas indagações da Teoria Geral do Direito, da Sociologia Jurídica, da Psicologia Jurídica, etc., e do florescimento mesmo das múltiplas escolas e doutrinas que têm caracterizado a Filosofia do Direito no decorrer de nosso século, fato já apontado como um dos sintomas ou indícios da crise de nosso tempo.

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52 MIGUEL REALE

Quando um filósofo do Direito, como Norberto Bobbio, chega a afirmar que, pràticamente, não existe tratado de Filosofia do Direito que o não seja, em maior ou menor parte, também de Teoria Geral do Direito, ou de matéria considerada como tal pelos juristas; e que, da mesma forma, não há tratado de Teoria Ge!al que não o seja de Filosofia do Direito, ou pelo menos de questoes assim consideradas pelos filósofos I; quando um mestre como Julius Stone nos apresenta a Jurisprudência como a ciência global do Di­reito, uma verdadeira ciência omnibus} na qual três diversos âmbi­tos de pesquisas se justapõem, desdobrando-se em análises subor­dinadas, figurando a Teoria da Justiça no mesmo plano da Juris­prudência Sociológica ou da Jurisprudência Analítica 2; quando a Sociologia do Direito, padecendo do mal próprio a tôdas as ciências novas, varia de autor para autor o campo de seus objetivos, mister é que nos capacitemos da necessidade de pôr um pouco de ordem em nossos domínios, o que é, sem dúvida, um dos objetivos do trabalho científico.

Em uma importante nota de seus Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito} a propósito da divisão da Metafisica dos Cos­tumes, põe Kant em realce a dificuldade inerente a tôda divisão dêsse tipo, escrevendo:

"A dedução da divisão de um sistema, isto é, a prova tanto de sua integridade como de sua continuidade, ou dessa qualidade que nos permite passar sem salto (divisio per saltum) do conceito divi­dido aos membros da divisão em tôda a série das subdivisões, é uma das condições mais difíceis a satisfazer por quem constrói um sistema. Há também certa dificuldade em determinar o conceito fundamental dividido, na divisão do justo e do injusto (aut fas aut nefas): é o ato do livre arbítrio (Es ist der Akt der freien Wilkur uberhaupt). Da mesma forma, os mestres de Ontologia começam a distinguir entre ser e não ser, sem se aperceberem que já apre­sentam os membros de uma divisão, à qual falta ainda o conceito dividido, que não pode ser outro senão o de Objeto em geral" 3.

Muito embora a natureza mesma da realidade jurídica importe em correlações e interdependências entre setores científicos apa­rentemente estanques, tornando injustificados quaisquer cortes ine­xoráveis nos distintos campos de pesquisa do direito, não será errôneo dizer que muitas das confusões reinantes podem ser supe­radas se partirmos de uma rigorosa análise dos elementos da juridicidade. Essa "descrição objetiva" do direito só pode ser ri-

1. BOBBIO, Studi Bulia Teoria Generale deZ Diritto, 1955, pág. 28.

2. STONE, The Province a.nd Function of Law, 2.' ed., 1950, págs. 19 e segs.

3. KANT, Metaphysische Anfcmgsgründe der Rechtslehre, ed. Cassirer, vol. VII, pág. 18, n.' 1.

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 53

gorosamente realizada mediante o emprêgo do método fenomeno­lógico} que nos permite afirmar que todo fenômeno jurídico se reduz a um fato (econômico, geográfico, demográfico, etc.), orde­nado, norrnatívarnente} segundo determinados valôres.

Para o conhecimento integral do direito, quer de um ponto de vista estático, quer de um ponto de vista dinâmico, é indispen­sável, porém, que a descrição fenomenológica do direito se eleve ao plano da compreensão histórica. Nesse sentido, entendo que a pesquisa fenomenológica não deve se infletir, afinal, .na subjetivi­dade transcendental, visando aos "conteúdos intencionais da cons­ciência" e culminando, assim, numa experiência reflexa ligada ao eu puro ou à subjetividade transcendental, à maneira de Husserl, mas, ao contrário, não pode deixar de se mfletír no desenvolvi­mento histórico das idéias ou da cultura. Em verdade, as doutri­nas e os sistemas juridicos assinalam, através de seu encadeamento histórico total, a compreensão da subjetividade universal da espécie humana no concernente aos problemas do direito tais· como vêm sendo vividos no decurso do tempo, como parte do projeto comum a que aludi à página 49.

Dêsse modo, como a experiência histórica do direito coincide com a "objetivação histórica das intencionalidades constituintes do direito", nenhuma descrição objetiva da realidade jurídica atual, tal como se nos oferece no plano da consciência, poderá deixar de refletir-se no desenvolvimento histórico das idéias, neste se inse­rindo como momento necessário, e só assim logrando plenitude de significado 4.

§ 2. Ora, essa análise, ao mesmo tempo fenomenológica e histórico-axiológica do dimito} leva-nos a discriminar na realidade jurídica três dimensões, mais do que elementos, que representam qualidades essenciais a tôda experiência jurídica e que denomino fato} valor e norma. O direito é, com efeito, "uma realidade his­tórico-cultural tridimensional de natureza bilateral-atributiva", ou seja, uma realidade espiritual (não natural, nem puramente psíqui­ca, ou técnico-normativa, etc.) na qual e peja qual se concretizam historicamente certos valôres} de sorte que as relações intersubje­tivas são sempre ordenadas segundo sistemas de regras que repre­sentam "sínteses históricas de fatos e de valôres".

Fato} valor e norma são, por conseguinte, elementos ou di­mensões da experiência jurídica, o que não só é reconhecido, de uma forma ou de outra, por jurisfiJósofos filiados às mais diversas correntes doutrinárias, como Emil Lask, Gustav Radbruch, Wilhelm Sauer, Roscoe Pound, Julius Stone, Paul Roubier, Jerome HalI,

4. Sõbre essa correlação que faço entre análise fenomenológica e re­flexão histórica, v. o estudo "Ontognoscologia, fenomenologia e reflexão critico-histórica" que publiquei no fase. 62 da Revista BrasileiJ'{j, de Filosofia, 1966, págs. 161-201.

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34 MIGUEL REALE

flecaséns Siches, Luigi Bagolini, Carlos Cossio, Cabral de Moncada, Sduardo GarCÍa Maynez e Legaz y Lacambra, mas também por lquêles que, como Kelsen, embora considerando metajurídicos os ~studos sôbre o Direito como fato social ou como justiça, nem por lSSO ignoram a possibilidade de "três ordens fundamentais e dis­tintas de pesquisas" 5.

Isto pôsto, é preciso, desde logo, distinguir entre o tratamento filosófico e o científico-positivo da realidade jurídica. Como Hus­,erl nos esclarece, · a atitude natural da ciência é sempre realista, no sentido de que não reduz, nem subordina a realidade a condi­;;ões subjetivas, nem faz da correlação sujeito-objeto um problema essencial e prévio6• Ao contrário, a Ciência Positiva, como ciên­cia de realidades, parte do pressuposto metodológico da autonomia do objeto, como dado empírico, cujas leis procura explicar. O mesmo ocorre .no domínio da Ciência Jurídica, o que torna com­preensível a. natural tendência do jurista, enquanto tal, no sentido de acolher com mais simpatia as interpretações filosófico-positivas do direito, aquelas, isto é, que não põem qualquer distinção essen­cial entre Ciência e Filosofia. Sob êsse prisma, já foi dito com razão que o "positivismo jurídico" · é o "lugar geométrico" da men­talidade do técnico · ou prático do direito.

Já é diverso o plano em que, a meu ver, deve colocar-se o filósofo, ao converter a . própria Ciência positiva em um de seus problemas, e ao' apreciar a realidade jurídica em sua conexão essen­cial com o sujeito cognoscente. Uma indagação do objeto, que ponha entre parênteses a sua referência ao sujeito, para conside­rá-lo metodologicamente ab extra} é, repito, a atitude natural e inevitável do conhecimento positivo. Em Filosofia, ao contrário, não é admissível aextrapolaçilo do objeto, necessàriamente corre­lacionado com o sujeito cognoscente, ambos exigindo-se recipro­camente no processo ontognoseológico, o qual é em si uno e con­creto. A rigor, mesmo o positivista, para chegar à sua conclusão de monismo metodológico, não pode deixar de partir de uma ati­tude crítica que ponha em dúvida, ou em crise, a "atitude na­tural" do conhecimento, indagando da condicionalidade do objeto pejo sujeito, ou vice-versa. Essa atitude crítica é peculiar à Filo­sofia, uma de cujas pesquisas se refere aos supostos ou pressupos­tos das ciências, devendo, em tal caso, se denominar t1'anscendental, expressão coma qual se reconhece a contribuição decisiva de Kant na reformulação do problema gnoseológico, embora não signifique

5. Para a compreensão da minha teoria em confronto com as demais doutrinas t ridimensionalistas, implícitas ou explícitas, v. os meus livros Teo­ria Tridimen~ional do Direito, São P aulo, 1968 e Filosofia do Direito, 4.' ed., cit., págs. 433 e segs.

6. V. HUSSERL, Idées Directrices plJlW Une Phénoménologie, trad. de Paul Ricoeur, 4.' ed., págs. 32 e segs.

" DWEITll CO~IO EXPER1ÊNCIA 55

uma adesão ao seu apriorisll1o formal que, como já disse, não se harmoniza com a concretitude elo pensamento contemporâneo.

Feita essa discriminação entre o plano positivo e o transcen­dental, o primeiro problema, ou melhor, a primeira série de pro­blemas que se impõe à análise, diz respeito à consistência mesma da realidade jurídica e sua correlativa determinação conceitual.

Essa Parte Geral, prévia, corresponde nos planos filosófico e positivo, respectivamente, às ordens de pesquisas que denomino Ontognoseologia Jurídica e Teoria Geral do Direito) de conformi­dade com o quadro anexo 7.

A Ontognoscologia Jurídica é a parte geral da Filosofia do Direito destinada a indagar das condições subjetivas e objetivas da experiência jurídica. Estuda, por conseguinte, o direito a parte subjecti e a parte objecti, dada a essencial correlação que, necessà­riamente existe entre sujeito e objeto do conhecimento, os quais estão entre si numa funcionalidade dialética de implicação e pola­ridade. Donde resulta que não é possível determinar-se o conceito do direito sem se determinar ao mesmo tempo a sua consistência: trata-se de problemas correlatos, que correspondem a uma unidade de ordem, o que exclui a possibilidade de um conceito puramente formal do direito, assim como a sua reduç.ão a um fato puro.

Graças ao método que denomino "crítico-histórico", - por­que correlaciona os dados da análise fe.nomenológica com o pro­cessus do direito no plano da história -, torna-se, no meu modo de ver, possível determinar que o direito é essencial e dialetica­mente tridimensional.

§ 3. Concebido o direito como tato, como valor e como nor~ ma, a Ontognoseologia Jurídica se discrimina, ou melhor, se desen­volve em três subdivisões de estudos: a Deontologia Jurídica estuda o direito segundo seus pressupostos axiológicosj a Culturologia Jurídica estuda o direito segundo seus pressupostos ônticos}' e a Epistemologia Jurídica ou Teoria transcendental da Ciência do Direito estuda o direito segundo seus pressupostos lógicos. Tais partes especiais .não são domínios estanques: constituem, antes, momentos que se integram necessàriamente na global visão ontog­noseológica e dialética do direito 8.

Paralelamente a êsse desdobrar-se de perspectivas no plano transcendental, e como seu necessário complemento, põe-se, 'como veremos melhor no ensaio seguinte, o problema da Teoria Geral do

7. Dada a importância fundamental do assunto, destino um Ensaio especial (págs. 75 e segs.) para o estudo das relações entre a Filosofia e a Teoria Geral do Direito.

S. Sôbre essas discriminações, v. minha Filosofia e Direito, 4.' ed., cit., págs. 266 e segs. Quanto à posição da EpistemOlogia Jurídica no âmbito da Ontognoseologia, v. infra, págs. 84 e segs.

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Direito, que é uma forma de conhecimento positivo determinado no plano mesmo da experiência jurídica, em função de suas condições espácio-temporais. Dêsse modo, enquanto a Ontognoseologia Ju­rídíca nos fOl'l1ece conceitos universais, válidos para 'todo e qualquer direito possível (nisto consiste exatamente o caráter de sua trans­cendentalidade. como condição universal das experiências possíveis), a Teoria Geral do Direito, como estudo empírico que é, tem como preferência necessária determinados sistemas jurídicos positivos, ge­ralmente integrados no mesmo ciclo de cultura, e elabora conceitos que possuem validac2 genérica e contingente.

Não é fácil, nem aconselhável, traçar uma fronteira rígida entre a Fi'losofia do Direito e a Teoria Geral do Direito 9, notada­mente no que se refere, por exemplo, à Epistemologia Jurídica, mas isto não impede que se faça a necessária distinção entre os "pressupostos transcendentais" da experiência jurídica e certos princípios que, por mais genéricos que sejam, não perdem o seu caráter empírico.

É inconcebível uma Tenl'Ía Geral do Direito destacada de um contexto histórico determinado, pois ela nos dá os principiosgerais que informam o saber jurídico correspondente às diretrizes e estruturas de ordenamentos jurídicos em vigor em certa épo­ca. O problema, por exemplo, das fontes ou o', da interpre­tação do direito são estudados tanto pela Filosnfia do Direito como pela Teoria Geral do Direito, mas segundo dois ângulos distintos, embora complementares. A Epistemologia Jurídica aprecia os problemas das fontes ou do ZJTocesso interZJretativo do direito como condições transcendentais làgicamente prévias a tôda e qualquer experiência jurídica possível, passada ou futura; a Teoria Geral do Direito, ao contrário, indaga das fontes e dos processos inter­pretativos vigentes em nossa época, discriminando-lhes as formas, as modalidades, os limites e as funções nos quadros do ordena­mento jurídico pátrio, em confronto com os dos países de correlato sistema cultural, assim como pode desenvolver tais estudos em função, por exemplo, dos ordenamentos jurídicos do Egito ou de Roma.

É claro, todavia, que a Epistemologia Jurídica e a Teoria Geral do Direito são domínios de conhecimento que se exigem reciprocamente, formando, - do ponto de vista expositivo e peda­gógico -, pràticamente um campo complementar de pesquisas, o

9. Fácil é perceber que emprego sempre o têrmo "Te01'ia Geral do Direito" em seu sentido especifico, para indicar um campo autônomo e de­finido de pesquisa do direito, distinto do da Filosofia Jurídica. Às vêzes aquêle têrmo é usado. por motivos didáticos, para Significar uma visão globa l da experiência jurídica, abrangendo aspectos filosóficos, eientíficos e técnicos, o que só pode ser feito sem olvido da acepção específica e própria.

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que não se deve estranhar, dada a natureza da matéria' e peja razão fundamental que quando falo em "condições transcendentais do direito" não me refiro a algo transcendente, desligado ou su­perior à experiência, mas, sim, a algo que só do ponto de vista lógico ou axiológico se põe antes da experiência, como condição de .sua possibilidade.

Ê óbvio que tôdas estas minhas distinções dependem da irre­dutibilidade que, a meu ver, existe entre a Ciência e a Filosofia, parecendo-me que, para serem coerentes consigo mesmos, os adep­tos do monismo gnoseológico, que concebem a Filosofia como uma versão qualquer do conhecimento científico, deviam identificar tout court a Filosofia do Direito com a Teoria Geral do Direito.

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ESPÉCIES DE PESQUISAS POSITIVAS DO DIREITO

§ 4. Como ainda resulta do quadro supra, pág. 56, é pos­sível discriminar, no plano empírico, tres ramos especiais de pes­quisas, que se ligam, respectivamente, à problemática do fato ju­rídico (p. ex.: Sociologia Jurídica e História do Direito); à pro­blemática das regras de direito (Ciência Jurídica ou Jurispru­dência) e à problemática dos valóres jurídicos (Política Jurídica).

Põe-se aqui uma questão que requer exame todo especial. Em geral, os autores que concordam em discriminar no direito os tres citados elementos (fato, valor e norma), são levados a considerar cada um desses fatôres isoladamente, transformando-os em objetos de três ciências distintas. À primeira vista, poder-se-ia tirar tal conclusão, como ocorre nas doutrinas que considero "tri­dimensionais abstratas", mas com sacrifício da unidade existente na experiência Jurídica.

Seria mais cômodo dizer, com efeito, que a Sociologia Jurídica cuida do direito como fato e a Ciência do Direito dêle se ocupa como norma, se não surgisse, imediatamente, a dificuldade lógica de conceituar-se uma Ciência Jurídica cujos juízos ou proposições não estejam referidos sempre a dado sistema de normas, ou seja, a normas consideradas jurídicas e que, como tais, envolvem uma referência necessária a dadas situações de fato e a dada ordem de valôres consagrados positivamente no ordenamento vigente. O mesmo se diga da Sociologia Jurídica, a qual seria apenas Sociologia se o fato social, objeto de sua indagação, não envolvesse uma ne­cessária referência a normas e valôres de natureza jurídica 10.

10. Coincidindo com êsse meu ponto de vista, v. RECASÉNS SICHES, Tratcuio General de Fi108of ia deZ Derecho, 1959. págs. 160-164.

o DIREITO COMO EXPERlltNCIA 59

Em suma, a minha tese é a de que fato, valor e norma são dimensões essenciais do direito, o qual é, dêsse modo, insuscetível de ser partido em fatias, sob pena de comprometer-se a natureza especificamente jurídica da pesquisa.

Não basta descobrir no direito três elementos, ou fatôres, nem mesmo considerá-los "dimensões" distintas de uma única reali­dade, porque a tridimensionalidade jurídica pode assumir feições diversas, desde um tipo estático e abstrato a um outro dinâmico e concreto. Ao primeiro tipo pertencem as doutrinas que decompõem a experiência do direito, por abstração, nos t rês campos ou facetas acima discriminados, destinando-se cada um dêles a uma Ciência diversa: a norma seria o objeto da Jurisprudência Dogmática ou, conforme a terminologia anglo-saxônia, da Jurisprudência Analí­tica; o fato seria estudado pela Sociologia ou Psicologia Jurídica, etc.; e, por fim, o valor do Direito seria objeto da Teoria da Justiça ou Axiologia Jurídica e, no plano empírico e imediato, da Política do Direito.

Em contraposição a essa discriminação abstrata, penso que qualquer conhecimento do direito é necessàriamente tridimensio­nal, e que, em cada ciência particular, o que se verifica é a orien­tação do estudo em função de um dos três elementos apontados, distinguindo-se pelo sentido de seu desenvolvimento respectivo, de conformidade com o sentido vetorial de cada tipo fundame.ntal de pesquisa, a saber:

Fato ~ Valor ~ Norma Valor ~ Norma ~ Fato Norma ~ Fato ~ Valor

(vigência) (eficácia) (fundamento)

Cabe notar que essa compreensão dialética dos elementos que compõem a experiência jurídica resulta da natureza dialética do próprio direito, como realidade 'ou fato histórico-cultural, con~ soante terei oportunidade de esclarecer em diversos tópicos dêste livro!l. Tudo que o homem constitui, valendo-se de dados da natureza, para satisfazer a certos fins) adquire existência objetiva, não podendo êsse tipo de realidade ser concebido ou interpretado sem se levar em conta a concretitude ou a complementariedade dos elementos que o integram. O mesmo ocorre no caso do direito.

Trata-se, como se vê, de uma unidade de processo, podendo e devendo cada um dos momentos da experiência jurídica ser objeto de estudo, em correlação ou implicação com os demais, já que nenhum dêles poderia ter "qualificação jurídica" erradicado ou abstraído que fôsse daquela totalidade a que pertence.

11. v., especialmente, os Ensaios VII e VIII.

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Assim sendo, embora o direito seja sempre uma ordenação 1wrmatíva da realidade social segumdo certos valôres, ou, o que vem a dar no mesmo, umareaUdaàe social normativamente orde­nada em função de experiências a$iológicas, é possível considerá-lo objeto de três ordens fundamentais de estudos, das quais a Ciência do Direito, a Política do Direito e a Sociologia Jurídica são as expressões mais relevantes.

Não se trata, evidentemente, de uma solução eclética, como poderia parecer aos menos avisados . ou aos críticos superficiais, mas de uma solução que se caracteriza exatamente pelo supera­mento de posições abstratas ou transistemáticas, tanto assim que culmina num normativismo jurídico concreto, no qual fatos e va­lôres se implicam dialeticamente.

Há duas verdades correlatas a serem preservadas. De um lado, torna-se necessário firmar que os pontos de vista do sociólogo ou do filósofo não podem coincidir com o do jurista, sob pena de tudo se comprometer numa unidade amorfa e indiferençada.

Por outro lado, se a tridimensional idade é da essência mesma do direito, compreendido como experiência social e histórica, aquê­les três pontos de vista distintos sôbre o direito não podem fazer abstração de uma qualidade intrínseca à própria juridicidade, mas, ao contrário, devem determiná-la e expressá-la de modos diversos, segundo as três direções de pesquisa acima apontadas.

§ 5. Firmados tais pressupostos, procuremos verificar, em linhas gerais, como é que, na compreensão dialética do direito, se apresenta cada um de seus momentos ou fatôres, a fim de deter­minarmos o objeto de cada uma das disciplinas juridicas funda­mentais, bem como . das exigências metodológicas que lhes cor­respondem.

É inegável que, do ponto de vista da pesquisa de caráter cien­tífico, é o momento regulativo ou normativo da experiência jurídica aquêle que tem sido alvo de estudos mais ordenados e objetivos, oferecendo um cabedal de categorias conceituais e de processos técnico-lingüísticos do mais alto alcance, apesar das divergências e contrastes que a sua vivência e aplicação suscitam no decorrer da história. Êsse é o aspecto sôbre o qual o jurista concentra a sua atenção, a tal ponto que, se há exagêro na identificação do direito à regula juris, baldadas e infrutíferas têm sido tôdas as tentativas de esvaziar a Jurisprudência de sua essencial normati­vidade.

A Jurisprudência ou Ciência do Direito é dialética e concre­tamente normativa, assim como o jurista, como tal, só pode pensar S1lb specie regulativa, subordinando fatos e valorações à medida integrante que se cohtém nas regras de direito. Cada norma jurí­dica, considerada em si mesma, constitui uma integração racional de fatos e valôres, tal como se aperfeiçoa graças à mediação do

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llodcl', o qual lhe assegura vlgencia .nas conjunturas espácio-tem­porais. (~uando o poder social ou o poder estatal, em virtude de seu ato decisório, aperfeiçoa o nascimento de uma norma costu­meira ou legal, uma certa ordem de valôres resulta consagrada, tomando-se obrigatória : a norma não é, assim, um "objeto ideal", mas uma realidade cultural, inseparável das circunstâncias de fato e do complexo de estimativas que condicionam o seu surgir e o seu desenvolvimento, a sua vigência e, à luz desta, a sua eficácia.

A norma juridica não pode, porém, ser pensada como um im'entál'io de atos passados: a sua destinação é reger atos futuros, o que demonstra não poder ser estudada segundo os padrões das ciências .naturais. Não disciplina, de outro lado, os fatos futuros como um esquema estático: ela não pode deixar de sofrer o impacto de novos e imprevistos eventos e valôres, cuja superveniência implica uma nova compreensão normativa, liberta do formalismo que caracterizou a Jurisprudência conceitual.

Não cabe aqui estudar o que denomino nrn'mativismo jurídico concreto 12, correspondente à concepção tridimensional especifica e concreta, mas as considerações acima bastam para demonstrar em que sentido considero normativa a Ciência do Direito: sua normatividade não a converte em uma Lógica Juridica formal, porque envolve permanente referência aos fatos e valôres de que pro mana, assim como aos fatos e valôres a que '. tende. Esta colo­cação do problema é fecunda, a meu ver, em conseqüências prá­ticas. notadamente no que se refere à interpretação e à aplicação do direito,C'omo a seu tempo se verá.

§ 6. Pois bem, se a Ciência Jurídica é normativa, como di­reção dominante e essencial da pesquisa, já a Sociologia Jurídica se desenvolve no sentido do fato jurídico, ou, pnr melhor dizer, ela é dominada pelo elemento de eficácia ou de. efetividade do direito ("faticidade do direito") . O sociólogo do direito não pode analisar um fato qualquer como sendo jurídico a não ser mediante refe­rências a valôres e a regras : se assim não fôsse, o seu estudo seria sociológico, e não sociológico-jurídico.

Para o sociólogo do direito, com efeito, o punctum salicns do processo dialético da positividade jurídica é representado, não pelo elemento regulativo, mas sim pelo factum da conduta, cuja com­preensão reclama, todavia, a referência aos outros dois fatôres, a fim de que se possa falar em fato especificamente jur'ídico, e não em fato genericamente social: é a tridimensionalidade que explica e legitima a autonomia de uma Sociologia Jurídica no âmbito da Sociologia Geral.

Quando se afirma que a Sociologia Jurídica tem por objeto o estudo do direito como fato social, ou segl,lndo os efetivos compor-

12. Cf. infra, o Ensaio intitulado VII sôbre a vida e a gênese dos modelos jurídicos (págs. 187 e segs.) , bem como o meu livro Teoria Tridimensional do Dimito, cito

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tamentos coletivos, não se está dizendo outra coisa, mas sem clara consciência teorética.. Com efeito, um fato social só pode ser con­siderado jurídico por apresentar algo de especifico: a especificidade do · factum, juridicum decorre de sua qualificação normativa, . de nexos de imputabilidade, e de sua correspondência a interêsse e valôres, que . se reconhecem merecedores de garantia específica. Se se fizesse total abstração dêsses "elementos de referência". perder-se-ia a nota específica da juridicídade.

Não é, pnis, certo dizer que ao sociólogo só interessa a efeti­vidade ou a eficácia do direito) v. g., o direito como conduta empi­ricamente observável : a eficácia, por mais que seja dominante na compreensão do sociólogo, envolve uma correlação necessária com a vigência (qualidade técnico-formal da norma jurídica) e com o fundamento (qualidade axiológica da norma jurídica) 13.

Não se trata, porém, de simples questão de grau - embora evidentemente haja uma diferença também quantitativa - , mas antes de uma diferença ' de momentos na captação do processo de positivação jurídica, ou de ((realizabilidade normativa de valóres)}.

Embora nosso estudo não tenha, por ora, em vista senão fixar as notas caracterizadoras de cada tipo de pesquisa científico-posi­tiva do direito, vale a pena salientar que a Sociologia Jurídica não é uma "ciência natural" como poderia parecer à vista de seu prevalecente interêsse pelo elemento fático. O fato de que cuida o sociólogo do ' direito é, porém, um fato cuja qualificação jurídica implica essencial referência a uma ordem de valôres e de normas.

A meu ver, aliás, a Sociologia já é de per si uma ciência his­tórico-cultural, e, " como tal, compreensiva (e não causal-explicativa) o que se torna ainda . mais evidente quando se estuda qualquer das Sociologias especiais, '" como a do direito, da arte ou da economia, cujos objetos são. produtos históricos, realidades constituídas pelo trabalho cria,dor da espécie humana.

Se, como veremos mais pormenorizadamente, em ensaio pró­prio, a Jurisprudência é uma ciência "compreensivo-normativa" 14,

13. :f:sse plexo de referibilidades normativas é reconhecido expressa­mente por G. GURV1TCH quando diz que a Sociologia Jurídica procede a partir de esquemas simbólicos jurídicos prefixados, como direito organizado, procedimentos e sanções, até chegar a símbolos jurídicos prôpriamente ditos, como regras flexíveis e direito espontâneo. (Cf. Introduction à la Sociologie du Droit, Paris, págs.47 e segs.). É exatamente em virtude dessas e de outras conexões entre Jurisprudência e Sociologia Jurídica que, como ve­remos, ambas se subordinam a uma mesma Teoria Geral do Direito, de cujo âmbito deriva, por especificação, a Teoria Dogmática do Direito (cf. infra, págs. 88. e .segs.J.

14. Cf. infra, págs. 111 e segs. Cf., outrossim, F ilosofia do Direito, 4.' ed., cit ., págs. 227 e segs. Sôbre as relações entre Jurisprudência e Sociologia Jurídica, sob o prisma desta disQiplina, v. ANGEL SANCHEZ DE LA TORRE - Sociologia deZ Derecho, Madri, 1965, págs. 17 e segs.; e EVÁRISTO DE MORAIS FILHO - O Problema de uma Sociologia de Direito, Rio, 1950.

O DIREITO COMO EXPERJeNCIA 63

a Sociologia Jurídica deve ser situada entre as clencias "puramente compreensivas", visto como as leis que determina, como "conexões de sentido", não desempenham uma função regulativa, não se des­tinam a reger atos futuros, em virtude da opção feita pela obriga­toriedade de "certo sentido".

§ 7. Ê deveras significativo, - como demonstração do esva­ziamento axiológico a que o naturalismo do século XIX submeteu as ciências sociais - , o fato de se ter perdido a noção de que o direito pode e deve ser estudado cientificamente também sob o prisma do valor: tal ordem de estudos corresponde à Política do Direito.

Frise-se, desde logo, que não me refiro à Filosofia Política, enquanto referida ao direito, mas sim a uma pesquisa de natureza empírico-positiva, que se situa no mesmo plano da Jurisprudência e da Sociologia Jurídica. Pode-se dizer, aliás, que a Política do Direito representa a conexão entre a Ciência Política e a Ciência do Direito, como penso ter demonstrado em estudo sôbre as formas do conhecimento político, constante de minha Teoria do Direito e do Estado. É na Política do Direito, que se analisam as "conveniên­cias axiológicas", em função das quais o poder é levado a optar, por exemplo, por um determinado projeto de lei, eliminando da esfera da normatividade jurídica tôdas as outras soluções propostas. A necessidade de reexaminar a problemática da Política Jurídica, como uma ciência centrada na "prudência das valorações concre­tas", parece-me cada vez mais evidente, diante das funções do Estado que, no plano legislativo, assumem caráter eminentemente técnico 15.

O cultor da Política do Direito ou Política Legislativa, que procura a vivÊmcia dos valôres nas conjunturas e contingências espácio-temporais, a fim de eleger a regra de direito mais oportuna e necessária, em função dos interêsses atuais da comunidade, põe a nota tónica no momento da valoração. O legislador ou o teórico da Política do Direito não analisa, porém, valôres no plano trans­cendental, mas, sim, valorações na órbita empírico-positiva, rea­lizando um trabalho de aferição de diretivas axiológicas em função do possível político.

Com isto se previne o equívoco de pensar que seja sempre de caráter filosófico-jurídico tôda e qualquer consideração do fato ju­r ídico sob prisma axiológico. Uma coísa é o estudo dos valôres como "condições transcendentais" da experiência jurídica (plano

15. Sôbre a Política. do Dire ito, no seu duplo aspecto deontOlógicO e técnico, v. o estudo de ROUlllER às págs. 150 e segs. de Travaux de la Semaine lnternat ionale de Droit, P aris. 1954. Para maiores esclarecimentos v. MIGUEL REALE, T eoria do Direito e do Estado, 2.' ed., São P aulo, 1960, págs. 335 e scgs.

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de pesquisa do filósofo do direito); outra coisa é a indagação das valorações atuais, ou seja, da vivência psicológico-social de valôres na condicionalidade empírica em que o legislador deve se colocar como intérprete das aspirações coletivas (plano de pesquisa do político do direito).

Os problemas da Política do Direito, como se depreende do exposto, correspondem, principalmente, aos formulados de lege te­renda, assim como a Ciência do Direito se desenvolve sobretudo de lege lata) pela interpretação, construção e sistematização das re­gras jurídicas vigentes, sem que esta complexa tarefa seja confinada à mera análise da linguagem do legislador.

A tarefa da Política do Direito, ponto de interseção do saber jurídico com o saber político, tem sido, infelizmente, excluída da cogitação científica, tornando-se cada vez mais necessário resta­belecer uma tradição de estudos que uma concepção positivista de­masiado estreita pensou poder substituir pelas Sociologias Jurídica e Política. Estas, na realidade, fornecem dados e elementos com os quais, em conexão com outros fatôres de ordem psicológica, econômica, etc., o legislador deve orientar-se no ato da emanação da regra jurídica, segundo exigências axiológicas de prudência, de oportunidade e de conveniência, tais como se configuram nas di­versas conjunturas históricas e mesológicas.

O que motivou o descrédito da antiga Teoria da Legislação, nos moldes das obras clássicas de Bentham ou de Filangieri, foi o seu caráter abstrato iluminístico 'Ou moralizante, dada a carência de conhecimentos psicológicos, sociológicos e econômicos sôbre os fatos condicionadores da ação legislativa, como, por exemplo, sôbre a opinião pública, as ideologias, os grupos de pressão, bem como a falta do sentido de síntese que deve possuir quem, no plano da praxis, não cuida genericamente dos valôres, mas, sim, da proble­mática dos meios e dos fins, no âmbito de uma determinada con­vivência e nas coordenadas de uma singular situação histórica.

Se, como escrevi alhures, 'o fim é, no fundo, o valor enquanto reconhecido racionalmente como motivo de conduta, a Política do Direito assinala o momento teleológico que prepara e exige a opção por determinada solução legislativa, com exclusão ou preterição de outras vias possíveis, o que tudo implica o estudo objetivo da cor­relação entre os meios idôneos e os fins reclamados pela coleti­vidade.

Não há, pois, como confundir o plano filosófico do valor, visto com condicionalidade transcendental da experiência ética em sua universalidade, com o plano científico-positivo das condicionalidades empíricas, a que se subordinam processos concretos de valoraç'ão, o que quer dizer, de conexões teleológicas que tecem a trama da positividade jurídica,

o rH/:EITO COMO r-;XPEfll(;NCIA 6:)

III

LóGICA JURíDICA E LóGICA JURíDICA FORMAL

§ 8. Dir-se-ia que, nos quadros de uma compreensão do direito como experiência, não resta lugar para a Lógica Jurídica formal. l'\ão procede tal conclusão.

É evidente que, pôstoo problema da experiência do direito no centro da Epistemologia Juridica, não há como confundir a Lógica Jurídica com a Lógica Juridica formal, mesmo porque a norma de direito, como expressão de um processo histórico-cultu­ral, não pode ser rec'.uzida a uma simples proposição lógica, elimi­nando-se o seu conteúdo fático-axiológico. Como se verá, uma coisa é fazer-se abstração dêste conteúdo para indagar-se da estru­tura IógÍC'o-formal ele uma regra de direito; outra coisa é confundi-la, sumàriamente, com os seus valôres proposicionais ou lógico-sintá­ticos.

Antes, porém, de tecer breves considerações sôbre esta ma­téria, duas observações desde logo se impõem. Em primeiro lugar, seria fonte de graves erros conceber-se a Lógica Jurídica como um dos ramos ela Filosofia do Direito, sem se levar em conta a distinção dos planos de pesquisa, reiteradas vêzes assinalada neste estudo, o transcendental e o empiric'o-positivo. Em função da Epistemologia Jurídica, - entendida como especificação da Ontog­noseologia ou Lógica transcendental, ou seja, como teoria das primordiais condições lógicas da Jurisprudência -, é que se põe a Lógica Jurídica no plano da ciência positiva. Quando se falar, por conseguinte, em Lógica Jurídica deverá entender-se a expressão no sentido de um campo de investigação situado integralmente no âmbito da Teoria Geral do Direito e da experiência jurídica, cujos fundamentos ou pressupostos ontognoseológicos nos são dados, to­davia, pela Lógica-Jurídica transcendental, que melhor será deno­minar, pura e simplesmente, Epistemologia Jurídica (cf. figura de pág, 56).

É claro que nem sempre será possível traçar uma nítida linha divisória entre a Epistemologia Jurídica e a Lógica Juridica, mas tal fato .não deve causar estranheza, máxime se se partir da conside­ração, a meu ver fundamental, de que o conhecimento é um "pro­cessus", que se desenvolve a partir das já apontadas "condições transcendentais de possibilidade", visando a determinar, através de objetivações e especificações racionais progressivas, a· integralidade da experiência, correspondente a cada "ontologia regional", cons­tituindo-se, assim, os diversos ramos em que se discrimina e nã'O cessa de se discriminar o saber positivo. ~e processo de objeti­vação cognoscitiva, correspondente ao conjunto . ou sistema das

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"ciências particulares", realiza-se graças às duas formas primor­diais de objetivação cognoscitiva, - pertinentes, respectivamente, às condições formais e às condições subjetivo-objetivas do conhe­cimento -, que são a Lógica formal e a Metodologia.

Trata-se de duas esferas de investigações distintas, embora es­sencialmente correlatas, devendo-se evitar a denominação de "Ló­gica aplicada" às vêzes dada à Metodologia, para não pensá-la em têrmos de mera aplicação subordinada e segunda de estruturas ló­gico-formais, quando o certo é que ela, não obstante a sua necessária adequação às formas lógicas, desenvolve-se de maneira autônoma, constituindo as suas próprias estruturas e instrumentos de pesquisa em função do conteúdo peculiar a cada campo de experiência possível. Poder-se-ia talvez invocar a antiga denominação de Ló­gica material, com os devidos cuidados e ressalvas, apenas para tornar claro qual é o âmbito de "objetivação cognoscitiva" re­presentado pela· Lógica como ciência positiva, em seu conjunto.

Por aí se vê que, por via de conseqüência, a Lógica Jurídica deve abranger tanto os aspectos formais como os funcionais da experiência jurídica, sendo estas duas ordens de pesquisa subordi­nadas ao prévio estudo epistemológico sôbre as suas condições transcendentais de p'Ossibilidade.

Além dessa observação, quanto à ubiquação dos estudos ló­gico-jurídicos, cabe ainda ponderar que a Lógica Jurídica não pode ser estudada apenas em função da Jurisprudência, pois o seu estudo se impõe com referência a tôdas as formas de conhecimento da experiência jurídica, havendo aspectos diversos a considerar sob o prisma sociológico, histórico ou dogmático. As investigações ló­gico-jurídicas possuem por certo maior relêvo na órbita da Ciência do Direito,- e sob êsse ângulo elas têm-se desenvolvido quase que exclusivamente-, mas isto não deve induzir os cultores da Lógica Jurídica anão tomar conhecimento das exigências peculiares, por exemplo, à Sociologia Jurídica. A ponderação ora feita corres­ponde, aliás, à já apontada necessidade de alargar-se o conceito de Teoria Geral do Direito, assunto que melhor será analisado no Ensaio IV dêste livro, de modo a não ficar circunscrita às investi­gações que se operam nos quadrantes exclusivos da Jurisprudência.

§ 9. Ainda reina a maior discrepância entre os cultores da Lógica Jurídica no co.ncernente à extensão de seu objeto ou aos seus títulos de "ciência autônoma". Parece-me ainda arriscado, a esta altura de pesquisas que se desenvolvem em ritmo acelerado, dentro. e fo.ra dos domínios da Lógica Simbólica, pretender delimitar co.m rigor o. campo. próprio da Lógica Jurídica, mas não me parece haver dúvida quanto. à necessidade de se lhe conferir uma tarefa mais ampla do. que a de elaborar meros cálculos proposicionais, que podem satisfazer aos lógico.s puros, mas têm alcance relativo

o DIREITO COMO EXPERIÊNCiA 67

para o jurista chamado. a interpretar e aplicar as normas jurídicas numa experiência concreta 16.

Não que eu repute de somenos o papel da Lógica Jurídica formal, pois, com a consideração da norma jurídica co.mo um bem ou objeto cultural de sl~porte ideal (uma pro.posição normativa, graças à qual se fixa e se comunica um de~'Cr ser de conduta) co ipso se reconhece a necessidade de estudar-se a forma ou a estru­tura lógica do direito, de per si, como um de seus aspectos funda­mentais: o que me parece inadmissível é tão.-somente julgar que a Lógica Jurídica se exaura na pesquisa de seus elemento.s lógico-lin­gÜÍstico.S 17.

Parece-me que, para se compreender, co.m o devido. rigor, o objeto. de Lógica Jurídica formal torna-se necessário lembrar, con­soante tenho salientado em meus escrito.S, - que to.do. o.bjeto cul­tural é constituído de um suporte e de um significado, podendo aquêle corresponder a um objeto ideal, como acontece no. caso das normas jurídicas. Ao contrário do que geralmente se expõe no.s domínios da Culturologia, nas pegadas dos ensinamentos de Ernst Cassirer, - para quem o suporte de um bem cultural só pode ser de ordem real ou psicológica -, penso que se deve admitir uma terceira hipótese, da qual a norma jurídica é exemplo caracterís­tico, isto é, a de bens culturais constituídos pela ligação ou ade­rência de um significado axiológico a um suporte ideal.

16. Não são apenas os partidários de uma "Lógica do concreto", como. p. ex., CHAIM PERELMAN (v. "Logique Formelle, Logique Juridique", em Logique et Ana.lysB, 3, 1960, págs. 226 e 230) que não admitem possa a Lógica Jurídica, enquanto Lógica formal, constituir uma ciência especial, mas também logicistas como ULRICH KLUG, segundo o qual a Lógica Formal seria "a Lógica rmra ou teorética,", e a Lógica Jurídica uma "Lógica prá­tica". (Cf. Juristische Logik, 3.' ed., Berlim, Heidelberg, Nova-Iorque, 1966, pág. 7). Em sentido contrário: KALINOWSKI - "De la Specificité de la Logique Juridique", em ATChives de Philosophie du Droft, t. XI. págs. 7 e segs. e E . GARcfA MAYNEZ - La Lógica del Raciocínio Jurídico. México, 1964.

Quanto ao "alto custo teórico" de complicados algoritmos para resul­tados de minguado alcance, também são coincidentes as reservas de alguns especialistas da Lógica Jurídica e de jurisfilósofos. Cf. , por exemplo. NOR­BERTO BOBBlO - "Diritto e Logica", na Riv. lnternazionale di Filosofia dei Diritio, 1962, I-lU, pág. 42 e GIUSEPPE LUMIA - 1l Diritto tra le Due Cul­ture, Milão, 1966, pág. 134.

17. Sôbre essa compreensão da norma jurídica com um bem cultural de suporte ideal, - ponto em que diVirjo de quantos só concebem a cultura como formada de objetos de suporte natural, físico ou psíquico -. v. minha Filosofia do Direito, cit., págs. 203 e seg., 272, 338, 499 e segs., onde delimito o âmbito da Lógica Jurídica formal, reconhecendo não só a sua autonomia como o seu significado primordial no campo dos estudos.

Só por equívoco pôde SíLVlO DE MACEDO declarar, em sua LÓ.'1ica Ju­rídica, Maceió, 1966, pág. 138, que eu teria subestimado "o papel da Lógica na explicação dos mecanismos da vida jurídica" . ..

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68 MIGUEL REALE

Na realidade, tôda norma jurídica compõe-se de dois elemen­tos: de uma proposição ou juízo lógico (o supedâneo ou veículo através do qual se enuncia um dever ser) e da correlação fático­-axiológica determinante dêsse enunciado, o que se verifica, aliás, em tôdas as formas de atos normativos de conteúdo ético.

Que é que pode ser formalizado na "norma jltrídica." e quais são os limites dessa formalização? Como situar, no plano elas relações lógicas, a norma moral ou a norma juridica enquanto pro­posições dotadas de sentido, às quais é inerente a vetoriaJielade de um caminho a ser seguido? Eis aí problemas nucleares com que se defrontam tanto a Semiótica Jurídica quanto a Deôntica Jurídica, expressão relevante da Lógica Deôntica ou da Lógica Normativa, talvez a esfera mais promissora das investigações lógico-formais da experiência jurídica.

É evidente que a Lógica Jurídica formal não pode deixar de fazer abstração do variável conteúdo axiológico das regras de direito, assim como de sua mutável cond'icioJ1alidade fática) mas tem sido fonte de graves equívocos identificar norma com proposiçâo nOT­

'mativa, como o faz, por exemplo, Georges Kalinowski, para quem "a norma é uma regra de conduta que não é nem um imperativo, nem um juízo de valor", mas apenas e tão-somente uma estrutura proposicionalI8• Não creio que, para a análise dos valores sintá­ticos ou semânticos da linguagem do Direito (Scmiótica Jurídica), ou para determinar as relações de inferência entre as normas de direito 'ou a tipicidade dos "raciocínios normativos" (Deôntica J1L­rídica) se deva imprescindivelmente reduzir a norma ao seu su­porte proposicional, relegando-se para um estranho estudo "a-ló­gico" ou "extra-lógico" a consideração dos problemas que mais diretamente interessam ao jurista 19.

Por outro lado, se a Lógica Jurídica, sobretudo em sua ex­pressão deôntica, pode trazer preciosas contribuições à determi­naç.ão dos conceitos jurídicos, da estrutura da norma juridica, do silogismo prático e dos nexos de inferência entre as proposições normativas, em geral, bem como à elucidação das figuras de quali­ficação jurídica e das condições indispensáveis à configuração do direito como "sistema" e "ordenamento", - e, com isto, através de técnicas mais aperfeiçoadas do pensamento lógico, possibilitar ao cultor da Jurisprudência "uma penetração racional mais profunda

18. KALINOWSKI - Introduction à la Logique Juridique, Paris, 1965, págs. 82 e segs.

19. Sôbre as funções da Semiótica e da Deôntica Jurídicas, já é imensa a bibliografia. Para uma visão de conjunto, v., além da citada obra de KALINOWSKI, as relacionadas por AMEDEO G. CONTE na Riv. lntenUtzionale di Filosofia del Diritto, 1961, págs. 119-144, e o volume XI dos Archives de Philosophie du Droit dedicado ao assunto. Cf. infra, págs. 173 e scgs. e 209 e segs.

20. r. TAMMELO - Sketch for a Symbolú; Juristic Logic, 1955, pãgs. 304 e segs.

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na expenencia jurídica" 20 - , seria er rôneo alargar o seu objeto além de seus limites naturais, convertendo-a em um abst rato suce­dâneo ela Teoria Geral do üireito ou da Epistemologia Jurídica.

A Lógica Jurídica encontra-se, em verdade, exposta a dois riscos igualmente comprometedores, o de se estiolar em cálculos proposicionais cada vez mais divorciados da vida do advogado ou do juiz, ou, então, de converter-se em um conglomerado de noções difusas, de mistma com categorias filosóficas e dogmático-jurídicas. A Lógica Jurídica não pode ser um vaso adiMoro capaz de receber, indiferentemente, tudo o que se queira pôr nela; e, se tem títulos para ser mais do que mera aplicação da Lógica formal, a especifici­dade de sua tarefa deve ser claramente delimitada no âmbito da experiência jurídica, em correlação com os demais campos de pesquisa do direito.

Pois bem, se as investigações até agora desenvolvidas nesse setor já nos autorizam a reconhecer que elas não podem ficar circunscritas à análise dos elementos lingüístico-formais, torna-se imprescindível dar' mais clara razão da chamada "Lógica do con­creto", que, se uns têm reputad'O a "substancial" ou a mais relevante, por se referir à destinação prática da Jurisprudência, outros tim­bram em relegá-Ia a uma posição acessória ou complementar, con­ferindo-lhe, repito, uma paradoxal natureza "a-lógica" ou "ex­tra-lógica" .

Antes de examinar êsse aspecto fundamental, não será demais advertir que a Lógica Jurídica não pode ser um fim em si, no sentido de converter-se em tarefa para lógicos puros, inteiramente alheios à problemática do Direito, até porque, como nota Perelman, mesmo "as análises e as formalizações que a Lógica Deôntica nos apresenta, e que nos esclarecem sobre certos usos p·ossíveis dos operadores deõnticos, aplicam-se a t odos os enunciados que com­portam elementos prescritivos, e não apenas aos enunciados jurí­dicos" 21. Embora considere que tal fato não exclui que a especi­ficidade da experiência jurídica comporte tratamentos lógicos pró­prios, o certo é que não terá sentido falar-se em Lógica Jurídica tão-somente em virtude de ser o material da análise extraído de preceitos jurídicos e não ele preceitos morais "Ou religiosos. O que assegul'a especificidade à Lógica Jurídica é o sentido vetorial a que já me referi nas púginas anteriores como inerente à experiência jurídica em seus nexos de atributividade.

Essa mesma ordem de considerações deve prevenir-nos contra o exagêro 'Oposto ao do "neutralismo lógico", consistente, digamos assim, na total "juridicizaçào" da Lógica Jurídica, privando-a de seu caráter instru'tnental e propedéutico da Teoria Geral do Direito

21. C. PEIlELMAN - "TI,aisonnement Juridique et Logiquc Juricliquc", em Archires de PhiIosophie rin Droit. 1966, t. XI. pág. 2. Cf.. Olltross;m. do mesmo autor "Qu'es t-ce que la logique juridique?". no Jou/"nd eles Tri­bu.nau,T, 9-3-968, págs. 161 e scgs.

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70 MIGUEL REALlI:

ou da DogmátiCa Jurídica: ao ler certos autores, empolgados com a "novidade" da Lógica Jurídica, estaria esta fadada a absorver em si a atividade tôda do jurista, até agora desenvolvida nas esferas da Dogmática Juridica ou da Ciência do Direito ...

Importa, por conseguinte, reconhecer que a tarefa própria da LógiCa Jurídica não é a de penetrar no conteúdo da experiência juridica, mas antes a de permitir condições mais técnicas e seguras para que a Ciência do Direito possa fazê-lo e, ao fazê-lo, seja dado ao jurista elaborar com mais rigor os princípios e as estruturas que governam a experiência jurídica como sistema normativo, isto é, a Dogmática Jurídica, consoante acepção dada a êste têrmo nos parágrafos anteriores, o que melhor -será explanado no Ensaio VI.

IV

ANALíTICA E DIALETICA JURíDICAS

§ 10. Reconhecida, pois, a insuficiêncía da Lógica formal para a compreensão da experiência jurídiCa, e não podendo esta deixar de ser e studada com o possível rigor lógico, o delicado pro­blema que se nos antolha é exatamente o de determinar o que se deva entender por Lógica Jurídica concreta.

Em geral, verifica-se serem duas as questões que mais têm preocupado os estudiosos, a da aplicação das normas aos casos con­cretos, com · o prévio estudo de sua interpretação ou do processo hermenêutica 22, -e a teoria do "discurso jurídico", notadamente dos elementos lógicos ' que presidem à técnica de argumentação e de ,persuasão 23. -

Pois bem, se tais assuntos são inegàvelmente substanciais na vida da Jurisprudência, penso que o seu estudo não exclui, mas antes pressupõe o da nomogênese jurídica, isto é, a consideração dos aspectos lógicos do ' direito in fieriJ sem o qual a práxis jurídica quedaria sem sentido. Com razão Merleau-Ponty adverte que "o que define O ' homem não é a capacidade de criar uma segunda natureza, - econômica, social, cultural - , _além da natureza bio­lógica, mas principalmente a de superar as estruturas criadas para criar outras". Por isso, acrescenta o pensador francês, a dialética da ordem humana é ambígua, pois "ela se manifesta, antes, pelas

22_ Nessa linha predominante de interêsse desenvolve-se, p. ex., o pen­samento de E.GARCIA MAYl'o'EZ em suas três obras complementares (Lógica deI Juicio Jurídico, Lógica deI Concepto Jurídico e Lógica deI Raciocínio Jurídico, Mpxico, 1955, 1959 e 1964) assim como o de KARL ENGISCH (v. nota 29, infra) ambos conciliando tais estudos com os de Lógica formal.

23. É o sentido predominante da obra de VIEHWEG, PERELMAN e ESSER. os quais pràticamente reduzem a Lógica Jurídica. m.utatis mutandis, ao pensa­mento tópico-retórico, ou seja, a uma "técnica de pensar por problemas". como diz o primeiro (v. nota 29 infra) _

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 71

estruturas sociais ou culturais que ela faz aparecer e nas quais se aprisiona. Mas os seus objetos de uso e os seus objetos culturais não seriam o que são se a atividade que os faz aparecer não tivesse também o sentido de negá-los e de superá-los" 24.

Já se vê que, no meu entender, a chamada Lógica do concreto não pode, por sua vez, reduzir-se a uma teoria da argumentação ou do discurso persuasivo, sendo esta antes uma conseqüência da dialeticidade da experiência jurídica, em correlação com a qual deve ser pãsto também o problema da Lógica Jurídica formal, pelos motivos a seguir aduzidos.

Não só, por conseguinte, não me parece plausível a alternativa que, vez por outra, se levanta entre a "Lógica Jurídica do concreto" e a "Lógica Jurídica formal", como se fôsse imperioso optar por uma delas, mas é imprescindível rever-se o conceito da primeira, que tem sido vista como Lógica material (a Sachlogik de Karl Engisch, p. ex.) como Tópica (Viehweg) como Lógica do razoável (Recaséns Siches) como Teoria da Argumentação o-u Retórica (Pe­relman) etc., quando importa penetrar mais a fundo no problema, a partir da razão pela qual o lógico não pode deixar de levar em conta as "exigências axiológicas" e as "estruturas fáticas" da reali­dade jurídica, isto é, da natureza dialética e problemática da expe~ riência jurídica.

Analítica Jurídica e Dialética Jurídica constituem, a meu ver, as duas partes fundamentais da Lógica Jurídica, correspondendo, respectivamente, à "razão analítica" e à "razão dialética" que, como tem sido justamente observado em outros planos das ciências culturais, como nos da Sociologia e da Antropologia, longe de se contraporem, se exigem e se completam 25.

Como foi ponderado por Gurvitch, é necessário superar a pre­venção existente em certos círculos quanto à compreensão, não apenas filosófica, mas também científica dos fenômenos culturais em têrmos d-ialétícos, sem os preconceitos e reservas talvez resul~ tantes da carga ideológica unida à dialética de tipo hegeliano ou marxista 26. Tal prevenção tenderá a desaparecer, penso eu, por

24_ M. MERLEAU-PONTY - La Structure dou Comportement, 5.' ed., cit., págs. 189 e sego

25. Nesse sentido, v_, especialmente GEORGES GURVITCH - Dialect-ique et Sociologie, Paris, 1962 e CLAUDE LÉVI-STRAUSS - La Pensée Sauvage, cit. , págs. 324 e segs.; ANGEL SANCHEZ DE LA TORRE - Sociologia dei Derecho, cit., págs. 242 e segs.; MORRIS R. CoHEN - Reason and Law, 1950, Pa88im.

26. Essa prevenção ideológica é transparente, por exemplo, na resposta dada por T. VIBHWEG à pergunta do A1'chive8 de Philo8CYphie du D1'Oit sôbre a aplicabilidade, em Lógica Jurídica, da "Dialética", no sentido moderno hegeliano e marxista dessa palavra: "não é utilizável do ponto de vista jurídico senão quando se aceita a concepção do mundo que ela pressupõe" (Rev. cit., t. XI, pág. 209). :É pena, aliás, ' que o referido questionário tenha se limitado a indagar apenas da contribuição de um tipo de dialética, a h egeliano-marxista.

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72 MIGUEL REALE

duas razões: primeiro, ao reconhecer-se que a dialética hegeliana ou marxista não é senão uma das dialéticas possíveis e a menos adequada, a meu ver, à compreensão da experiência jurídica; e, em segundo lugar, se se levar em conta que também nos domínios das Ciências positivas eminentes cientistas e filósofos da Ciência, como Niels Bohr, Louis de Broglie, Philipp Frank, Gaston Bache­lard e F. Gonseth, sentem a necessidade de recorrer a um nôvo tipo de dialética, a de complementariedade, para explicar problemas in­suscetíveis de solução em têrmos de Lógica axiomática 27.

Felizmente, parece que mesmo entre filósofos do Direito e juristas já vai se dissipando essa resistência à compreensão dialética, cuja importância não escapou à sensibilidade de Michel VilIey ao escrever: "Ao lado da Lógica formal, que ocupa um lugar evidente em nossa vida jurídica presente, pedimos que se preste atenção a esta Lógica dialética, que nos parece preencher de fato a função mais substancial" 28.

Não devemos, porém, pensar que tal papel de relêvo só esteja reservado à dialética tópica ou retórica, no sentido aristotélico da palavra, de inegável alcance no tocante à teoria da argumentação prática, demonstTativa ou peTsuasiva 29, pois, como me parece re­sultar dos estudos reunidos neste livro, aquêle tipo de dialética, no fundo, não representa senão um dos aspectos da dialética da com­plementariedade ou de implicação-polaridade aplicada à experiência jurídica, vista necessàriamente como experiência fático-axiológico­·normativa.

Se, em verdade, a experiência jurídica não fôsse em si mesma dialética , não seria possível interpretá-la dialéticamente, a não ser que o processo dialético se reduzisse a uma construção artificial e

27. Para uma vIsao do estado atual dos estudos dia léticos nos quadros la Ciência pos itiva e da Filosofia contemporânea, e a respectiva bibliografia, '. meu t rabalho "Ontognoseologia, Fenomenologia e Reflexão Critico-His­órica", separata da Revista Brasileira de Filosofia, 1962, fasc. 62, § 4, págs. 176-185. Cf. GASTON BACHELARD - L e Nouvel Esprit Scientifique, Paris, 1.9G6, 9.' ed. e MERLEAU-PONTY - Le Visible et l'Invi,sible. PaJ'is, 19tH. sobre­udo págs. 124-130 sôbre a "dialética sem síntese". Quanto à aplicação de 'dialética de complementariedade", no Direito, v. infra, Ensaio VII, § 6.· e <:nsaio VIII.

28. MICHEL VILLEY - Al'chives, cit. , t. XI, pág. XV. 29. Cf. entre outros, CHAIM PERELMAN - Justice et Raison, Bruxelas,

963; Études Philosophiques, Bruxelas, 1965; T. VIEHWEG - Topik und furisprudenz, Mônaco, 3.' ed., 1965 (trad. italiana citada, Milã o, 1962); KARL ~NGISCH - Introdução ao Pe1Ulamento Jurídico, trad. de J . Baptista Machado, , isboa, 1964; LogiscJw Studien zur Gesetzesanwendung, Heidelberg, 2.' ed., 960; GARciA MAYNEZ - Lógica deZ Raciocínio Jurídico, ci t .; J. ESSER -'rincipio y Norma, trad. esp. , Barcelona, 1961. Sôbre a nova R etórica, V. ~. PERELMAN e L. OLBRECHTS-TYTECA - Traité de Z'Argumenta t ion, Bru­:elas, 1958. Quanto à "Lógica del razo1Wble", de L. RECAS~NS SrcHEs, V.

{ueva F'ilosofía de la I nterpretación deZ Derecho, México, 1956.

o DJr.EITO COMO EXPERIÊNCIA 73

cerebrina, quando, na realidade a argumentação ou a tópica jurídicas chegam a resultados "plausíveis" , "prováveis", "razoáveis" ou "con­vincentes", como pretendem os que subordinam tais processos a um tratamento lógico adequado, exatamente porque êles encontram correspondência na est rutura da práxis juridica, ou, como diz Vit­todo Frosini , porque se verifica "uma correspondência Ísomórfica entre a expericllcia vivida e a consciência reflexa" 30.

§ 11. A redução, que aqui se faz, da Lógica do concreto ou da Tópica jurídica aos têrmos de uma Dialética Jurídica não exclui, tal como já foi observado, mas antes exige uma Analítica Jurídica, palavra com a qual designo os estudos semióticos e deônticos rela­tivos à expericncia juridica.

A êsse propósito, cabem algumas observações prelimina res, para dar a razão peIa qual a razão analítica e a razão dialética se exigem e se completam no âmbito da Jurisprudência.

Como melhor será analisado nos Ensaios sôbre a "Dogmática Juridica" e o "Normativismo jurídico concreto", a experiência ex­pressa-se, histôl'icamente, a través de sucessivas e contínuas aobje­tit'ações normativas", as quais compõem o equilíbrio possível e ra­zoável de asoluções nonnativo.s" que, de conformidade com as di­versas mutações e conjunturas históricas, integram em unidade dinâmica as exigências fáticas e a:riológico8, próprias de uma socie- . dade que, consoante se tem dito com sabedoria, precisa ser estável, mas não pode ser estática.

Apreciando êsse aspecto da experiência histórica, diz Claude Lévi-Strauss que a razão dialét ica, que é sempre constituinte, cor­responde aos perpétuos esforços que a razão analítica deve fazer para reformar-se, se pretender dar conta da linguagem, da sociedade e do pensamento, de tal sorte que a distinção entre elas não se funda senão sôbre o afastamento temporário que separa a razão analítica da inteligência da vida 31.

No desenvolvimen to dessa função constituinte, o papel da razão cliah;tica, segundo Lévi-Strauss, é pôr as ciências humanas na posse ele uma realidade que t ão-somente ela é capaz de lhes for­necer, consistindo, porém, o esfôrço propriamente científico em decompó-Ia e depois recompô-Ia, seguindo um outro plano: de certo modo tôda a razão é dialética, aparecendo como a razão ana­lítica em marcha 32.

Embora focalizando o problema dialético sob outro prisma, parece-me que, efetivamente, o processo dialético atinge sucessivos

30. V. FROSINI - La Slndlum deZ Dirit to, Clt., pàg. 36. 31. LÉvI-STnAuss - L a Pens(;e S(!Uvage, págs. 325 e 326. 32. Ibidem, págs. 331 c scgs.

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estágios de objetivação (digamos assim) que representam formas, ou melhor, ({estruturas objetivadas" ou ({sistema de significações", inseparáveis geneticamente do processo constituinte, mas que podem e devem ser objeto de "decomposição e recomposição" pela razão analítica, tal como, em se tratando da experiência jurídica, é feito sob ângulos diversos, pela Lógica Jurídica formal e pela Dogmática Jurídica, na medida e enquanto ambas se destinam a captar, sob ângulos diversos, o sentido de uma experiência humana estadeada em um "sistema normativo" ou "ordenamento jurídico".

É graças a essa correlação entre a "estrutura da práxis" e 'Os seus "modos de compreensão" que, repito, a Analítica Jurídica e a Dialética Jurídica se desenvolvem em uníssono, não passando de produto inteIectualístico a antinomia que entre uma e outra se queira suscitar 33.

33. No Ensaio VII, sobretudo no § 6.", e no Ensaio VIII, examinarei, de maneira mais direta, a experiência jurídica à luz da "dialética de comple-111entariedade".

Ensaio IV

FILOSOFIA JURíDICA, TEORIA GERAL DO DIREITO E DOGMÁTICA JURíDICA

SUMÁRIO: I - A Filosofia Jurídica e o papel da Jurisprudência - A crise do Direito. II - Ontognoseologia e Epistemologia Jurídicas. IH - A Teoria Geral do Direito como teoria positiva

de tôdas as formas de experiência jurídica.

I

A FILOSOFIA JURíDICA E O PAPEL DA JURISPRUD:ê:NCIA - A CRISE DO DIREITO

§ I. Tôda pretensão de apresentar a Ciência do Direito in­dependente de quaisquer pressupostos filosóficos, ou os subentende inadvertidamente, ou se resolve num equívoco agnosticismo filosó­fico que já equivale a uma contraditória tomada de posição espe­culativa.

Essa ponderação vem-me à mente sempre que se cuida de traçar uma linha demarcatória rígida entre a Filosofia do Direito e a Teo­ria Geral do Direito, concebendo-se esta como algo de pleno e vá­lido em si e por si, com total abstração, não só dos vaIôres metafí· sicos ou da cosmovisão que cada jurisfilósofo necessàriamente pos­sui, mas também dos principios condicionadores de qualquer tipo de conhecimento dotado de rigor e de certeza.

É nesse equÍvoco que me parece incidir, por exemplo, Werner Goldschmidt, ao distinguir entre uma "Filosofia do Direito Maior" e uma "Filosofia do Direito Menor", coincidente esta com a Teoria Geral do Direito, identificada, por sinal, com a modalidade abstrata de "teoria tridimensional do direito" por êle exposta, a qual, a seu ver, representaria a única "teoria tridimensional" válida ... 1

1. Cf. WERNER GoLDSCHMIDT - "Das SeinsolJen in der juristischen Welt gemass der trialischer Theorie", em Archiv tür Rechts und Bozialphilosophie, 1965, págs. 148 e segs.; "A teoria tridimensional do mundo jurídico", Revista

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Parece-me insustentável aquela discriminação no plano filosó­fico, pois, qualquer que seja a teoria tridimensional esposada, -e há várias espécies de tridimensionalismo, como o demonstrei em obra recente - , ela corresponderá sempre a uma tomada de posi­ção filosófica de maior amplitude no plano das idéias gerais. Nada ilustra tão bem êste ponto como o cotejo do tridimensionalismo de Recaséns Siches com o meu, devido às posições filosóficas que nos separam, não obstante coincidirmos no reconhecimento de que não pode haver direito, nem estudo sôbre o direito, que não seja necessàriamente tridimensional' .

Segundo Goldschmidt, a Filosofia jurídica menor, cujo nome tradicional seria o de "Introdução ao Direito", construiria o mundo jurídico como uma. totalidade "servindo-se de conceitos tomados por empréstimo de diversos sistemas filosóficos, sem se preocupar com a compatibilidade dêstes entre si (siC), examinando meramente a coerência interna de si mesma". Tal tipo de Filosofia jurídica distinguir-se-ia por "não estar vinculada a nenhuma Filosofia", situando-se no vestíbulo dos estudos do direito, como simples análise de sua estrutura. Acrescenta êle que "a teoria tridimensional do mundo jurídico (inclusive a por êle mesmo exposta, entendamo-nos) é a Filosofia jurídica menor, para a qual convergem tôdas as cor­tentes jusfilosóficas menores contemporâneas" 3 .

Já a "Filosofia jurídica maior", cujos modelos seriam dados por Santo Tomás, Kant, Fichte ou Hegel, seria a Filosofia jurídica própriamentedita, destinando-se a "coroar a carreira universitária"; sua nota característica seria dada por sua essencial adaptação às exigências de um sistema filosófico geral 4.

Forense, Rio de Janeiro, 1964, vol. 208, págs. 27 e segs., e Der Aufbau der Juristischell Welt, Wiesbaden, 1963, págs. 23 e segs.; "EI deber ser en la teoría tridimensional dei mundo jurídico", em La Ley, Buenos-Aires, dezembro, 1963.

2. Cf. RECASÉNS SICHES - Tratado General de Filosofía dei Derecho, México, 1959, págs. 157 e segs. e "La Experiencia Jurídica", em Dialloia, México, 1965, Ano XI, págs. 32 e segs.

3. Cf. Revista Fore/lSe, loco cit., pág. 27. 4. Ibidem. Segundo GOLDSCHMIDT, todas as chamadas teorias tr id imensionais,

desde LAsK até nossos dias (com a inclusão, aliás, inadmissível de DEL VECCHIO e KANTORowlCZ entre os tridimensionalistas) não passariam de "meras concepções" (1) sem lograrem se converter em verdadeiras teorias. A razão dessa "Írustração" seria explicável pelo fato de só haver uma Ciência Dogmática do Direito plena­mente constituída, permitindo a adequada elaboração jurisfilosófica tão-somente da Ilorma, em contraste com as notórias deficiências ou lacunas da Sociologia jurídica e da Teoria da Jus.tiça (Dikeologia) ainda não capazes de elucidarem devidamente o papel dos outros dois elementos, o fato e o valor, no mundo jurídico. Tais con­siderações evidenciam que GOLDSCHMlDT permanece apegado a uma concepção abstrata do tridimensionalismo, uma vez que êste não seria mais que a composição de resultados de análises de elementos destacados da experiência jurídica, que

o DIREITO COMO EXPERli!:NCIA 77

Sôbre não ser aceitável a redução da teoria tridimensional ao plano da "Teoria Geral do Direito", e muito menos ao da "Prope­dêutica Jurídica", entra pelos olhos a contradição de uma Filosofia juridica "não filosófica", ou reduzidamente filosófica e, como tal, "menor", mero conglomcmdo de noções selecionadas para os fins estritos de uma introdução ao estudo do direito. Se se pode, hoje em dia, considerar prevalecente a tese contrária à apresentação da Filosofia do direito como uma Filosofia especial) que dizer de uma tese que, fazendo tabula r<Uia de uma fecunda tradição de estudos, pretende convertê-la em estranha súmula de noções hauridas em sistemas contraditórios?

§ 2. Não resta dúvida que à meditação filosófica sôbre o direito se pode chegar por diversos caminhos, havendo os que, como Platão, Aristóteles, Santo Tomás, Kant, Hegel, Bergson 'Ou Gentile, em dado momento essencial de suas meditações filosóficas, propõem-se a problemática do direito e da justiça, assim como há os que percorrem direção inversa, indo da Ciência do Direito para a Filosofia, como o fizeram Duguit e Gény, Carnelutti e Santi Ro­mano, Wendell Holmes e Benjamin Cardoso, Clóvis Beviláqua e Pontes de Miranda; assim como há também aquêles (e são prà­priamente os jurisfilósofos) que, preocupados desde o inicio com a implicação essencial entre Filosofia e Direito, em vittude do sen­tido de universalidade inerente a êste, desde logo situam o pro­blema da experiência jurídica em função de seus pressupostos trans­cendentais. Nem faltam, por outro lado, os que se despedem do Direito para se embrenharem em outras selvas da Filosofia, con­servando, todavia, em seus escritos a marca indelével de Papiniano.

é e não pode deixar de ser una e concreta, como se acentuará em cada um dos estudos que se vão ler.

Por outro lado, se a teoria tridimensional só pudesse se constituir quando já aperfeiçoadas ou maduras a Sociologia jurídica e a Teoria da Just iça (que, diga-se de passagem, é a parte fundamental, mas não a única da A-'(iologia ou Deontologia jurídica) seria uma tarefa indefinidamente adiável, pois, não creio que as eontribuições de GoLDSCHMIDT em sua D ikeologia possam ter o condão de pôr têrmo aos renovados e perenes contrastes que, desde que a história é história, assinalam as divergêneias doutrinárias sôbre o que é justo ou injusto... Além do mais, é sabido que são as categorias mesmas da Ciêneia Dogmática do Direito que estão em crise, com a conseqüente crise do "eonceito de norma", tornando-se visível todo o artifieialismo da tese de GoLDSCHMIDT, sem se falar na sua desarrazoada pretensão de que só agora, graças aos seus estudos, é que se poderia eonsiderar a teoria tridi­mensional do direito definitivamente constituída... (Cf. Archiv, cit., págs. 151 e segs.l.

Há na posição do referido autor uma confusão de planos, entre o da Filosofia e o da Ciêneia do Direito, como se a problemátiea axiológica do direito fôsse sempre de aIeance filosófico. (Sôbre essa confusão de âmbitos de pesquisa, cf. supra, págs. 63 e segs.l.

A redução por êle feita do tridimensionalismo ao eampo da "propedêutica jurídica" prende-se, por sinal, a uma distinção curiosa entre "Filosofia do Direito" e "Filosofia filosófica do Direito", que mereceu justos reparos críticos de G. KAWNOWSKI, em Archives de Phflosophie du Dl'oit) 1965, voI. X, pág. 350.

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78 MIGUEL REALE

"', t: Quando, ' 'todavia, alguém converte o direito em tema filosó­fico, - : qualquer que possa ser a origem ou a motivação dessa atitude-, enão surge uma Filosofia especial, de maior ou de me­nor tomo: é sempre a Filosofia mesma, com a totalidade complexa de ' suas inquietações e de seus problemas, que se concentra ou se verticaliza no sentido de algo que se impôs ao espíríto como "assun­to filosófico", em virtude de sua intrínseca e essencial universa­lidade.

O filósofo do direito é, por conseguinte, filósofo e não jurista, como é filósofo quem indaga do significado transcendental da arte ou da religião, sem ser necessàriamente artista ou religioso. Mas se tiver senso de arte, de religião ou de juridicidade, seu olhar será mais penetrante, desvendando com autenticidade aspectos inéditos da realidade , observada.

Ê a razão pela qual o problema da .. experiência jurídica não se contém todo no, âmbito das ciências pDsitivas do Direito, a não ser que se . reduza a pesquisa filosófica à científica, consoante o proclamava o . cientificismo dominante nas primeiras décadas do século, ou, então, se confira ao filósofo do Direito, como o preten­dem certos neopositivistas contemporâne'Os, apenas a tarefa de analisar e tornar clara a linguagem do jurista para escoimá-Ia de pseudo-problemas .. , Assim sendo, se nestas páginas pretendo estudar a experiência

jurídica enquanto assunto de Filosofia do Direito, é sinal que, a meu ver, o ponto de vista do filósofo não coincide com o do juris­perito ou o do sociólogo, muito embora êstes e aquêle se condicio­nem reciprocamente, numa relação lógico-dialética que pode ser ~À"pressa em têrmos de implicação e complementariedade.

A:o contrário daqueles que confinam a Filosofia do Direito a 1m só ângulo ou perspectiva, gnoseológica ou ética, penso que ela não é senão a própria Filosofia, com tôda a riqueza de sua proble­nática, na medida e enquanto endereçada ao estudo das condições 'lniversais da experiência jurídica, para esclarecimento de sua gê­nese, estrutura e finalidade, bem como do significado dessa expe­riência mesma em função de suas condições possibilitantes, o que luer dizer dos valôres da consciência em geral em seu projetar-se histórico.

De certo modo, tõda a problemática filosófica pode refletir-se 10S domínios da experiência jurídica, a qual pode e deve ser estu­jada segundo as múltiplas e renovadas perspectivas que a exis­tência social implica, em seu processo histórico incessante de ga­rantia ordenada e comum para tôdas as formas de vida que em ,eu seio se constituem e se desenvolvem 5.

5. :É assim que G. RAOBRUCH nos apresenta uma d1tica do Direito, uma &Jstética do Direito ou uma Filosofia Religiosa do Direito. (Cf. Rechtsphilo­J(}phie, 4.' ed., Stuttgart, 1950, pãgs. 93 e segs., 191 e segs. e 205 e segs.).

o DIRF:ITO COMO EXPEllIBNCIA 79

A essa luz, poder-se-ia afirmar que a Filosofia assume a deno­minação de Filosofia do Direito no momento em que o seu objeto de compreensão é o direito como experiência dotada de significado universal, visto não poder ser pertinente ao âmbito filosófico senão aquilo que é universal ou tenha sentido de universalidade. O homem pode, por certo, filosofar sôbre o ocasional ouo fortuito, mas desde que o "acaso" se ponha como fato recorrente ou ineli­minávcl da experiência humana. Quando as nossas asserções não possuem um "sentido de universalidade", pelo menos com'O ten­tàmen, isto é, quando não traduzem o constante e perseverante esfôrço de compreensão do fundamento e do sentido do 1·eal, trans­cendend'O o plano das meras generalizações empírico-positivas, para corresponder a exigências conaturais ao ser do homem, não temos proposições de caráter filosófico, mas sim de cunho científico, se atendidos, é claro, os requisitos metódicos de rigor compatíveis com a realidade estudada. Daí poder-se dizer, desde que a expres­são não fique vinculada às teses aristotélico-tomistas, que a Ciência se circunscreve aos generalia, buscando a Filosofia, ao ' contrário, atingir os universalia.

O mal é que o filósofo do Direito às vêzesé levado a confundir "exigência de universalidade" com indiferença para com os pro­blemas particulares que compõem a trama viva da experiência social, perdendo-se, dessarte, em abstrações infe~undas.

§ 3. Foi isso exatamente que ocorreu, - c'Onsoante obser­vação feita por Recaséns Siches -, com grande número de juris­filósofos a partir do século passado, quando vieram, pouco a pouco, perdendo contacto com os Problemas políticos, em geral, e com a problemática forense, em particular, isto é, com o direito vivido dia a dia por legisladores, juizes e advogados, acabando por se isolarem numa "Filosofia jurídica acadêmica" 6,

Segundo o antigo mestre de Madri, que hoje dá a sua pre­ciosa colaboração à Faculdade Nacional Autônoma do México, essa fuga à realidade social e histórica. assim como o insulamento dos jurisfilósofos em esquemas convencionais, teve a grave conse­qüênCia de privar a Filosofia do Direito da função diretora outrora exercida pelos pensadores do direito sôbre o evolver da experiência jurídica, tal como se comprovaria com a simples lembrança de nomes como os de Aristóteles, Cícero, Hobbes, Locke, Rousseau, Kant ou Hegel, com a ação positiva dos jurisconsultos romanos, dos glosadores na Idade Média ou dos comentaristas cultos no início da época moderna.

A múltiplos fatôres se deve ligar, penso eu, essa perda de substância histórica de que ainda padece a Jurisprudência, mas

6. Sôbre o "academismo" jurisfilosófico, cf. as penetrantes críticas de RECASt-NS SICHES em Nueva Filosofía de la lntel'pretación deZ Derecho, México, 1956, cap, I,

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80 MIGUEL REALE

não se pode negar que, em grande parte, tal responsabilidade toca aos jurisconsultos mesmos, desde 'O instante em que êles:

a) se acomodaram numa posição restrita e secundária de analistas e sistematizadores de um direito posto por outrem, sem situarem a tarefa da Jurisprudência em função da totalidade da experiência jurídica, excluindo-a, indevidamente, do momento es­sencial representado pela legislação. Sinal dessa crise é o des­crédito da Teoria da Legislação ou da Politica do Direito, a cujas fontes já se procura em boa hora remontar;

b) se afastaram cada vez mais da vivência dos institutos jurídicos, só possível em correlação com os fatos e valôres sociais em seu perene evolver, para se contentarem com tímidos retoques na Jurisprudência conceitual, com vagas invocações de fórmulas sôbre a "socialização do direito" ou o "dirigismo contratual";

c) não atualizaram as suas categorias lógicas de modo a atender às novas exigências do mundo contemporâneo, a tal ponto que ainda persistem em aplicar os esquemas de uma Dogmática Jurídica, inspirada pelo antigo Estado liberal individualista, mas incompatível com o Estado da justiça social e das tarefas culturais reclamadas pelas fôrças criadoras do trabalho;

d) e, acima de tudo, olvidaram que a Jurisprudência surgiu e se alimenta da confiança depositada na vontade ordenadora, no poder de síntese superadora inerente à concepção humanística do jus.

Não .nos iludamos, todavia, com a eventualidade de uma re­conquista de prestígio por parte dos jurisconsultos, pois, além de não ter havido jamais a liderança social, cuja perda se deplora, -pois Kant, Rousseau, Hegel, etc. não influiram sôbre a história como juristas, que não eram, mas sim como filósofos ou teóricos da Política -, a própria estrutura plural da sociedade contem­porânea, dia a dia mais discriminada em círculos autônomos de interêsses e de aplicações científicas diversificadas, é incompatível com a a tribuição do destino humano à responsabilidade desta ou daquela categoria social.

Houve, por certo, épocas em que os jurisconsultos mereceram põsto de maior relêvo no cenário histórico, como hoje muitos o conferem aos cultores da Nova Física, aos construtores e opera­dores de engenhos atômicos ou de astronaves, mas há muito de ilusório em tais primados num mundo cada vez mais plural e, concomitantemente, cada vez mais solidário e uno, por invenciveis razões de complementariedade.

Por outro lado, consoante oportuna observação de Tullio As­carelli, quando se fala tanto em "crise do Direito", esquece-se quase

() DIREITO COlllO EXPElnÊNCIA 81

sempre que, ao contrário de uma especIe de diminuição de impor­tância do Direito, o que se vem notanào nos últimos tempos é o ala rgnmento cada vez maior do campo por êle disciplinado; e, se "crise do Direito" existe, resulta das lacunas e desconformidades da ordem legal existente em confronto com uma sociedade cada vez mais caractcrizada pela produção em massa destinada à massa dos consumidores.

Nunca, em verdade, - como tem acontecido desde o advento do E.,tado de cultura. O~! do bem-estar social - , se recorreu tanto ao Direito para converter-se em experiências jurídicas as mais diversas experiências humanas, pondo-se problemas dos ma is de­licados, a começar pela imperativa urgência de atualizar os cànones da Jurisprudência. Se é, porém, ilusório o problema de prestigio, razões há de sobra para se preocuparem os juristas quando uma classe ou categoria social perde consciência de seus deveres e prer­rogativas, transferindo a outrem o cuidado de problemas que espe­cificamente lhe comretem. Foi o que se deu com os juristas, progressivamente acantoados na tarefa secundária de comentar textos legais, compondo sistemas técnico-formais sôbre as bases de preceitos postos à sua inteira revelia e, além do mais, recebidos como se fôssem comandos cuja linguagem lhes coubesse religiosa­mente decIfrar. Perdeu-se, dêsse modo, o sentido criador da Ciência do Direito, a cujos cultores não cabe por certo a tarefa exclusiva de elaborar leis, mas cuia presença se deve fazer notar desde as origens da nomogênese ju rídica, inclusive porque, feitas ou não por juristas, são êstes que acabam sendo responsáveis pela sua adequada aplicação 7.

Ora , foi o positivismo jurídico, com o seu desmedido apêgo à letra c!a lei e a sua acanhada compreensão da mens legis, identi­ficada com a presum ida "intenção de legislador", _ tudo como decorrência de seu paradoxal e mutilado conceito de "realidade" _, que cont ribuiu decisivamente para confinar a Jurisprudência entre os muros ela Hermenêutica juridica. e de uma Hermenêutica subor­dinada a cânones de exegese verbal estrita, r ompidos os laços com os conteúdos vitai s da experiência humana. Nessa obra erosiva das funçôes primordiais elo Direito, os positivistas não faziam mais do que dar corpo à profeCia de Augusto Com te que, confiante nas conquistas iluminísticas e salvadoras das ciê.ncias positivas, anun­cim'a a morte dos "fazedores de leis", a serem substituídos, na condução dos negócios do Estado, pelos "descobridores das leis" imanentes no desenvolvimento natural das sociedades 8.

7. Cf. in M1GUEL RE"1LE, Pluralismo e Liberdade, cit., às págs. 259 e segs., o ensaio: "Missão liberal do advogado".

8. Sôbre a repercussão dessa profecia no Brasil e o conflito dos positi­vistas com os mestres de Direito no século passado, Y. MIGUEL REALE _ Filosofia em. 3'10 Paulo. 1962, págs. 91 e segs.

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82 MIGUEL REALE

Daí o florescer da Escola da Exegese e de movimentos para­lelos, confundindo-se a ciência com o código, a linguagem da ciência jurídica com a linguagem do legislador 9.

§ 4. Pois bem, se há algo que me parece válido em tôdas as correntes tridimensionalistas ou que ao tridimensionalismo se reportam, é exatamente o esfôrço no sentido de uma Jurisprudência concreta, a fím de superarmos o divórcio alarmante, que ainda perdura, entre a Filosofia do Direito e a Ciência do Direito, de tal modo que os filósofos digam algo que tenha significação para o jurista, e o dito pelo jurista seja levado na devida conta pelo filósofo, e ambos possam significar algo para o destino do homem.

É que as tedrias tridimensionais, apesar de suas variantes, re­pousam sôbre um cerne de verificações, que não constitui o fruto de construções cerebrinas, mas reflete apenas a realidade ou a con­sistência mesma do direito, consistência essa tornada manifesta em seus três fatôres componentes, quer pela análise fenomenológica da "experiência jurídica", quer pela convergência conceitual que naturalmente veio se produzindo na história das doutrinas mais re­presentativas de nosso tempo, tal como foi pôsto em realce por Josef L. Kunz, em conhecido ensaio "0.

Sendo, pois, a tridimensionalidade da essência do direito, nada de estranhável que essa nota característica seja considerada tanto pelo filósofo do direito como pelo teórico do direito: de certo modo, é a tridimensionalidade o ponto comum de interceção ou de cor­relação existente entre as distintas indagações que têm o direito como objeto, permitindo, pois, o superamento artificialmente levan­tado entre Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito, que devem ser distintas como esferas autônomas de pesquisa, para se com­pletarem reciprocamente, e não para se contraporem de manei­ra abstrata, uma a se defender da outra como numa ação demar­catória . ..

O transcendental não é o reino das formas puras ou dos arqué­tipos eternos; é antes algo de que nos damos conta no processar-se da experiência, mas que, t razido à luz da consciência teorética,

9. Essa redução do papel do jurista torna-se explícita nesta assertiva de NORBERTO BOBBIO: "Pode-se dizer que a pesquisa do jurista, na sua parte funda­mentai e sobretudo no seu aspecto crítico, se resolve numa análise da linguagem do legislador" (Teoria deJla Scienza Giuridica, Turim, 1950, pág. 218. &se esva­ziamento da Ciência Jurídica, reduzida à análise da linguagem do legislador, que seria o seu "objeto principal", e tudo a pretexto de só assim se poder salvar o caráter científico do Direito, corresponde bem ao espírito do neopositivismo, que se compraz em eliminar problemas como fórmula expedita de resolvê-los, . .

lO. Cf. JOSEF L. KUNZ - "Zur Problematik der Rechtsphilosophie um die MiUe des swanzigsten Iahrhunderts, em Os/err. Zeirschrift filr offenrliches Reel/t, Viena, vol. IV, 1.0, 1951, traduzido por Genésio de Almeida Moura para a Revista da FaCilIdade de Direito da USP, 1951, vo l. XLVI, págs. 5 e segs.

o DIREITO COMO EXPERI!l;NCIA 83

desde logo se põe como condição prévia, sob o ponto de vista lógico-transcendental (= ontognoseológico) da experiência mesma: em se tratando de experiência natural, temos as condições lógico­-transcendenta'isque explicam a validade das leis que expressam as relações causais ou funcionais de caráter fático; em se tratando de experiência social ou histórica, temos as condições axiológico­-transcendentais que nos dão a compreensão das conexões de sen­tido que constituem e nos revelam os fenôme.nos de ordem ética.

Enquanto filosofamos sôbre o direito, por conseguinte, perma­necemos no plano transcendental, não se desprendendo o tridimen­sionalismo de suas matrizes intencionais e constitutivas, isto é, do espírito como fonte da qual tôdas as criações culturais promanam e a que permanecem essencialmente vinculadas: daí a essencial vinculação entre o tridimensionalismo, tal como o entendo, e os processos ontognoseológico e histórico-cultural, à cuja luz a Juris­prudência pode ser vista e compreendida no desempenho de uma tarefa essencial para o destino do homem, que consiste em ga­rantir as objetivações culturais, com a salvaguarda dos valôres da SUbjetividade.

Pois bem, quando a experiência jurídica, cuja consistência tridimensional previamente se determinou em sede filosófica, _ passa a ser objeto de outra ordem de indagações, no plano empí­rico-positivo da Teoria Geral do Direito, nem por isso a pesquisa deixa de ser tridimensional, pelo fato óbvio de que o objeto em estudo (o direito) não perdeu, nem poderia perder, a sua essencial contextura, em ambas as hipóteses a experiência jurídica conti­nuando a ser tridimensional.

Cabe, a esta altura, salientar que, a meu ver, entre a Filo­sofia e a Ciência se opera um processo de progressivas objetivações, no sentido de se atingirem cada vez mais definidas particulariza­ções do real, à medida que o pensamento se desenvolve desde o plano das condições transcendentais ou ontognoseológicas até às condições empírico-positivas (as formais da Lógica; e as instru­mentais, da Metodologia). Dessarte, não há um salto do transcen­dental da Filosofia para o "experiencial" da Ciência, exatamente porque aquêle só é pensável em função de experiência possível lI.

Como já foi anteriormente explicado, dou ao têrmo "transcen­dental" uma acepção bem mais ampla do que a de Kant, não só por abranger constitutivamente a esfera da "experiência ética", como também por superar a concepção meramente formal das categorías esquematizadas e pré-classificadas do criticismo kantiano e neo-

11. V. MIGUEL REALE - Filosotkt do Direito, 4.' ed., cit" págs. 25 e segs, O uso do têrmo "expcriencial" se impõe dado a acepção correlata estrita das palavras "expcrimentaçã'O" e "experimental": "experimental" está para "experiencial" como a espécie está para o gênero.

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84 MIGUEL REALE

kantiano, reconhecendo-lhes, ao contrário, além da função gnoseo­lógica, uma função constitutiva ou instauradora tanto no dOl1Úni'O teorético como ,no da práxis 12.

II

ONTOGNOSEOLOGIA E EPISTEMOLOGIA JURíDICAS

§ 5. A discriminação, ora mais uma vez salientada, entre os pontos de vista complementares do filósofo e do jurista auxi­lia-nos, penso eu, a determmar com mais rigor a posição da Teoria Geral do Direito perante a Epistemologia Jurídica, que é a parte da Filosofia do Direito que com ela mais diretamente se corre­laciona.

Como já tive a oportunidade de afirmar, a Teoria Geral do Direito, - da qual, como veremos, a Dogmática Jurídica é a expressão ou a especificação mais relevante - , não pode ser concebida senão como o estudo sistemático do direito em sua uni­dade e desenvolvimento, como realidade histórica subordinada a exigências e finalidades espácio-temporais mutáveis, assim como a pressupostos lógicos universa.is, cuja determinação é tarefa da Epistemologia Jurídica. Aquêle estudo, de cunho necessàriamente empírico, caracteriza-se por sua ímediata e constante correlação com as mutações operadas no plano da práxis, ou na experiência jurídica, variando os seus princípios gerais, como categorias gene­ralizantes que são, de coriformidade com o seu condicionamento histórico.

-' A Epistemologia Jurídica, como momento da indagação filosófico-jurídica, - ou, mais precisamente, como desdobramento da Ontognoseologia Jurídica -, elabora a teoria lógico-trans­cendental do Direito, isto é, aquela investigação, de caráter trans­cendental, que o jurisfilósofo realiza para determinar os conceitos universais que logicamente condicionam o constituir-se e o desen­volver-se, não desta ou daquela experiência jurídica particular, mas sim de qualquer experiência jurídica possível.

Como pormenorizada mente exponho em minha Filosofia do Direito, e já foi enunciado no Ensaio IrI dêste livro (págs. 255 e segs.) fiã-- pesquisa filosófica do jus' deve começar, necessària­mente/ por uma parte geral destinada a determinar a consistência da realidade jurídica e as suas correlatas notas conceituais, sendo, dêsse modo, analisado o direito a parte objecti e a parte subjecti.

12, Sôbre o sentido do " transcendental" na última fase do pensamento de HI'SSERL. v. as considerações expendidas no Ensaio inicial dês te lÍ\'ro,

o DII\EITO COMO EXPEltltNCIA 85

A êsse estudo prevlO denomino, como já disse, Ontognoseologia Jurídica, por me parecer impossível deixar de considerar, conco­mitantemente, no plano transcendental, os aspectos 'pntico e lógico de tôdas as realidades culturais, que, sendo, como são, produtos da atividade espiritual segundo os valôres condicionantes da con­vivência humana, se caracterizam por serem "realidades dialéti­cas", nos quais o subjetivo e o objetivo necessàriamente se pola­rizam e se co-implicam, dada a impossibilidade de reduzir-se qual­quer dêsses dois fatôres ao outro, ou de conceber-se qualquer dêles sem o outro, resultando dessa tensão dois aspectos complementares de um único processo 13.

Poder-se-ia dizer, - e o "símile" tem as mesmas raízes - , que entre aquêles dois têrmos ocorre o mesmo que foi assinalado por Hans Freyer entre "relações de vida" e "conexões de sentido", ou por outras palavras, entre "vida" e "sentido" como dimensões da realidade espiritual: "Sua diferença só pode ser pensada dia­leticamente, isto é, de maneira tal que em ambos os momentos se encontre contida a unidade do todo e. sem embargo, se mantenha entre êles a clara contraposição" 14. Em ambos os casos, mais do que contraposição, o que há é uma "implicação" segundo um pro­cesso dialético de polaridade, que, consoante explicação anterior, é essencial à compreensão de todo o "mundo da cultura".

A Ontognoseologia Jurídica, tendo pnr fim determinar a fun­dação cognoscitiva do Direito, em sua integralidade, indaga de sua consistência "ôntica" e da correlata estrutura "lógica", isto é, dos pressupostos universais, ao mesmo tempo subjetivos e objetivos da realidade jurídica.

Se nos situarmos sob o ângulo do objeto, veremos o direito como uma realidade , ontológica, ou melhor"ôntica, cuja consis­tência nos cabe indagar. Trata-se, em suma, de responder, em um crescendo. a esta série de perguntas: Em que consiste mate­rialmente o direito? Qual a estrutura objetiva da realidade jurí­dica e a sua situação no mundo da cultura? Quais os seus ele­mentos componentes? Como tais elementos se põem em relação uns com os outros? Que é que marca a unidade dessa realidade que temos na conta de jurídica? Que é que, em suma. nessa rea­lidade a torna intrinsecamente "compreensível" como jurídica?

Pois bem, situado objetivamente o direito no âmbito rias l'en­]idades humanas e determinada a' estrutura de seu objeto, bem

13, Sôbre minha pOSlçao concernente à teoria geral do conhecimento. v. meu ensilio "Ontognoseologia. Fenomenologia e Reflexão Crítjco-H;~tórjca", nt) f;]sc, 62 d" Revi8t(7 Bmsileira dq Filosofia . J966, e, quanto ;lO probkmil d" "Ontol!noseologia Jurídica". cf. Filo.,o/0. do Direito, 4' ed., clt, pág<;, 15 (' scgs,; 97 e segs. e 266 e segs,

14. Cf. HAxs FREYr;P., lA Socir;lr;!7Ía, Cie1fda de Ir( P-'!rdí&lri, tr;;d, df' F, Ayala , Buenos-Aires, 1944, pág. 31).

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86 MIGUEL REALE

como' as leis de sua ' conexão, cabe-nos volver a nós mesmos, inda­gando como aquela realidade se representa em nosso espírito como conceito, ou, mais rigorosamente, como aquela realidade se torna plena ou se aperfeiçoa i enquanto conceito. Caber-nos-á, em suma, determinar o "ente"do direito e o seu "conceito", numa implicação unitária de pesquisa. O problema que se põe, de início, por con­seguinte, não "é o de uma definição do direito enunciada como algo de vazio e sem conteúdo, como mera e pura forma, porquanto implica a realidade à qual se refere, ou que menciona de maneira necessária e universal, assim como essa realidade é, filosOfica­mente, impensável sem referência ao eu que a pensa.

A Ontognoseologia Jurídica, como parte geral da Filosofia do Direito, ,reveste-se" assim" do caráter de , uma teoria fundamen­taP5, não só por"abranger a tarefa de determinar a natureza da realidade jurídica, 'em confronto com a experiência moral e as demais expressões ! da vida ética, como a de esclarecer os meios de compreensão correspondentes aos seus diversos extratos ou aspectos" considerados de maneira distinta em função uns dos ou­tros, isto .é, em, sentido de concreta complementariedade.

Aparecerão,' dêssemodo,em tôda: a sua unilateralidade e insuficiência,' quer : os' eSforços dos ' empiristas buscando nos fatos contingentes ; um 'conceito de direito como produto de simples ge­neralização provisória; quer a , dosaprioristas que nos brindam conceitos universais de. direito, mas puramente formais, cujos es­quemas abstratos "alguns dêles afinal amenizam, introduzindo-lhes conotações éticas, 'a fim de não , se verem nas obrigações de con­siderar "jurídicos'" também os ordenamentos das associações ilí­citas . ..

Na indagação ontognoseo16gica, em suma, procura-se receber o direito tal comoêle é, no âmbito do processo cognoscitivo, ou da correlação' sujeito-objeto, evitando-se apreciá-lo unilateralmente, seja como um "dado natural", já perfeito e acabado, pronto para. ser decalcado' pelo jurista; seja como "dado' ideal", pura expressão formal e adiáfora, capaz ' de conferir cunho de "juridicidade" a conduta humana, que " poderá "ser ' de natureza econômica, religiosa, estética, etc., mas nunca jurídica: o que marca a atitude ontogno­seológica é o propósito de receber ' a experiência tal como ela se apresenta, sem quaisquer desvios ou mutilações resultantes da acei­tação prévia , e implícita de dada forma de compreensão do fenô­meno social e humano. Somente graças a essa ' atitude metódica, que tenho preferido denominar crítico-histórica, partindo das der­radeiras contribuições fundamentais de HusserI, é que o direito poderá ser compreendido em tooa a sua concreção e plenitude.

15, 'Ir: assim que RECASÉNS SICHES denomina a parte geral da Filosofia do Direito. acolhendo a divisão exposta no texto (Cf. Tratado GeneraZ de Filosofía deZ Derecho, cit., págs. 160 e segs.).

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 87

Uma vez revelada a natureza do direito tal como se apresenta em sua totalidade e concreção, impõe-se, a seguir, distingui-lo das demais formas de vida social, em uma análise em profundidade do problema da conduta ou do comportamento, que nos fará com­preender a U estrutura tridimensional normativa" peculiar ao mun­do do direito, em confronto com as experiências histórico-culturais que apresentam, de maneira diversa, a característica comum da tridimensionalidade.

iA Ontognoseología Jurídíca é, pois, o estudo correlato da rea­lidade jurídica e de sua compreensão conceitual, na unidade inte­grante de seus elementos constitutivos (valor) norma e fato) impli­cando perspectivas prevalecentemente éticas, lógicas ou histórico­-culturais.

Dai o posterior desenvolvimento da pesquisa em três partes especiais, destinadas ao estudo, sempre no plano filosófico, é óbvio, de cada um dos aspectos da experiência jurídica, de conformidade com o seguinte esquema:

DIVISÃO DA FILOSOFIA DO DIREITO

Parte Geral

P",,, E'l"d,i, I -Ontognoseologia Jurídica

Epistemologia Jurídica, ou Doutrina da ' Ciência do Di­reito (problema da vigência e da função normativa do direito) ;

Deontologia Jurídica, ou Doutrinas dos valôres éticos do direito (problema do fundamento do ' direito);

Oulturologia Jurídica, ou Doutrina do sentido da história do direito (problema da eficácia do direito).

§ 6. Considerada nesse contexto, a Epistemologia Jurídica é a teoria crítica da Jurisprudência ou da Ciência do Direito, não constituirido senão uma determi.nação maior dus pressupostos da experiência jurídica, a partir das contribuições firmadas previa­mente na Parte Geral. Assim é que, se nesta se estabelece ser o direito uma "realidade histórico-cultural de caráter normativo", a Epistemologia Jurídica se funda nesse conceito para alcançar tais ou quais conclusões quanto ao objeto, por exemplo, da Ciência Jurídica (para saber se esta se reduz a um sistema de normas, a uma rêde de relações fáticas, ou à própria conduta humana en­quanto intersubjetivamente qualificada, etc.) ou quanto à natu­reza do sabe'r iuríd'ico, as suas estruturas e funcionalidades lógicas especificas.

É, com efeito, tarefa do epistemólogo, e não do teórico do Direito, fixar as condições primeiras em que se apóia a certeza dos juízos formulados pelo jurista, esclarecendo os requisitos de coe­rência e rigor dos institutos e sistemas.

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88 MIGUEL l!E ALE

A Epistemologia Jurídica recebe, por conseguinte, da Ontogno­seologia Jurídica o cOIlIceito de Direito, que é a categoria primor­ifu:I!, segundo a qual se poderão determinar as demais, como, por ~xemplo, as de sujeito de direito) de direito subjetivo, de relação furídica, crime, culpa, dolo, etc., isto é, aquelas que Recaséns Si­ches muito adequadamente considera "categorias regionais" da juridicidade 16. Por aí se vê como a Epistemologia Jurídica é uma projeção imediata, ou um desdobramento da Ontognoseologia Ju­rídica, no sentido de achegarmo-nos cada vez mais às estruturas objetivantes da experiência do Direito.

In

A TEORIA GERAL DO DIREITO COMO TEORIA POSITIVA DE TôDAS AS FORMAS DA EXPERD!:NCIA JURíDICA

§ 7. A determinação da situação do direito no mundo his­tórico é um dos capítulos fundamentais e mais complexos da Fi­losofia jurídica, só podendo tal determinação resultar da colocação ontognoseológica, isto é, concreta e global do problema da expe­riência jurídica, que se põe como forma autônoma e definida da experiência cultural, apesar de suas naturais correlações com as demais formas de cultura.

Poderíamos dizer . que, assim como um dos princípios diretores da Física teórica é. o de que o universo forma um todo solidário) também vale igual princípio na esfera histórico-cultural. Por essa razão, a distinção do· domínio jurídico, como objeto de uma Ciência positiva, implica a necessidade de se terem sempre presentes as funcionalidades e diferenças existentes entre os elementos ou fa­tôres que compõem o 'mundo histórico.

Compreende-se, pois, a diferença entre o ponto de vista do filósofo do direito e o do jurista na consideração do fenômeno jurídico, pois o segundo não pode deixar de considerá-lo ab extra, como algo pôsto ou positivado na experiência, segundo conexões de sentido objetivamente determináveis, tudo devendo fazer o jurista para reduzir o coeficiente subjetivo como fator de indeterminação na compreensão da realidade observada.

A Ciência do Direito ou Jurispruãencia caracteriza-se, assim, como uma ordem de conhecimento que não pode deixar de pres­supor os preceitos e as diretrizes normativas como já dados ou postos perante o intérprete (administrador, advogado ou juiz) co-

16. Luís RECASÉNS SICHES - Vida Humana, Sociedad y Derecho, México, 1945 e "Adiciones" à sua trad. das Lezioni di Filosofia deZ Diritto de DEL VECCHIO, Barcelona, 1930, vaI. lI.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 89

mo algo que se deve apreender ou reproduzir em suas significações objetivas, de conformidade com os princípios que informam a ex­periência jurídica a fim de determinar-se o âmbito da conduta lícita ou as conseqüências resultantes da violação das normas reveladas ou reconhecidas no processo de positivação jurídica, a que é ine­rente o elemento decisório ou opcional do poder.

A Filosofia do Direito, ao contrário, em lugat' de partir das normas jurídicas como seu pressuposto básico, volve sempre à fonte primordial de onde aquêles ditarnes de ação necessàríamente emergem, ou seja, não observa a experiência jurídica de fora, como pertinente a um dado ou a um objeto cultural per se stante, mas sim referida à SUbjetiVidade; a Ciência do Direito, em suma, muito embora não possa prescindir dos pressupostos transcendentais, con­centra-se na pesquisa da experiência jurídica como obj3tivação 1WT­

mativa de correlações fático-axiológioos, que possui princípios e leis próprias, os quais à Teoria Geral do Direito compete determi­nar. Sob certo prisma, a posição ontognoseológica coincide com a atitude positivista e empírica, enquanto analisa a experiência como um fato que se desenvolve objetivamente, ab extra, mas não fica confinada a uma explicação descritiva e quantitativa do fato, nem olvida que êste só tem significado real em sua conexâo com o todo. Sob êsse ângulo, poder-se-ia dizer que a Ontognoseologia visa a uma compreensão integral da experiência, com positividade sem positivismo.

O díreito, com efeito, não é uma coisa, como uma árvore ou uma rocha, que () espírito capta e põe como "estruturas ,distintas de si", mas é um momento da atividade espiritual mesma, obje­tivada em relações sociais, sem se distinguir, a não ser por abstra­ção,do espírito que o percebe e conceitualmente o ordena. Daí di­zermos que o espírito, na especulação filosófica, dobrq-se sôbre si mesmo e torna a encontrar-se com o foco de tôdas as projeções práticas e volitivas, cuja trama compõe a convivência social, para indagar do porquê da experiênCia jurídica e não de como ela se processa; na pesquisa de ordem cientifica, ao contrário, a mente se restringe à consideração da realidade jurídica como "algo de objetivado", de conformidade com as conclusões previamente assen­tes no plano epistemOlógico.

Poder-se~ia dizer que o teórico do direito, enquanto cultor de uma forma de saber positivo, faz àbstração das fontes últimas con­dicionadoras da experiência jurídica, para recebê-la como um dado, algo que não pode deixar de ser considerado como "existente aí", perante o pesquisador, com as suas estruturas e conexões objetiva­mente válidas.

Dessarte, a experiência jurídica, enquanto estudada pela Teo­ria Geral do Direito, é posta epistemologicamente como algo de extrapolado em relação ao sujeito cognoscente, visto ser a atitude

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realista ,a única natural e própria do cientista como tal: na raiz de. tôda investigação científico-positiva, por mais que o cientista disso não se aperceba, há a aceitação hipotética do objeto de estu­do "como se" fôsse algo existente e válido em si e por si, cobrindo ab • extra dado ."campo" de pel'quirição. Cabe ao filósofo, todavia, manter a conexão dêsse "campo delimitado" com a sistemática geral, porque só assim poderá haver vàlidamente ciência, consoante nos adverte Husserl: "De ciência simpliciter só se pode falar quando, no âmbito da totalidade incindível da Filosofia universal, se delineia uma articulação da tarefa universal e, por conseguinte, uma ciência em si conclusa, em cuja tarefa especifica, cumprida progressivamente, se manifesta a tarefa universal enquanto fun­dação originária mente viva da sistemática" 17.

Enquanto o filósofo do direito, repito, jamais cessa de referir a experiência jurídica às suas fontes transcendentais condicionan­tes, das quais pro mana o seu processo, em sua consistência tridi­mensional, já o teórico do direito se dedica a examinar as expres­sões e significações desta nas experiências históricas particulares, diversas segundo circunstâncias de lugar ou de tempo. Admitir essa base objetiva como co natural à tarefa do jurista não equivale, todavia, a desprendê-lo dos pressupostos filosóficos que condicio­nam o seu operar: ao contrário, a sua capacidade de captação das objetividades empíricas será tanto mais extensa e profunda quanto mais tiver, a iluminá-la e dirigi-la, a consciência da fundação da experiência jurídica, na qual a Ciência do Direito mesma se insere como um de seus elementos integrantes. ' Não é, pois, a experiência jurídica em si e em sua identidade, - pois essa é a tarefa do filósofo - , mas sim ', a experiência jurídica como realidade histó­rica e, por conseguinte, objetivada espácio-temporalmente que in­teressa ao teórico do ' direito, consoante se depreende desta clara ponderação husserliana: "Nas ciências do espírito o homem não é tratado como realidade idêntica; o seu ser-em-si não pode ser determinado objetivamente. As ciências do espírito têm como tema o homem como ser histórico, o homem que decide e age subjetivamente no seu mundo circundante" 18.

§ 8. Ora, sendo a experiência jurídica objeto de pesquisas científicas distintas, como a do jurista, do sociólogo, do etnólogo ou do historiador, parece-me que já é tempo de se corrigir um equívoco ainda persistente, que é o de se tratar da Teoria Geral do Direito como se ela fôsse monopólio do jurista, fato êste só admissível até e enquanto a Jurisprudência ocupava sozinha todo o campo científico da experiência jurídica. No estado atual de desenvolvimento das pesquisas, quando já se acham, mais ou me-

17, V, HUSSERL - La Crisi delle Scienze Europee, cit., pág. 237. 18. HlisSERL, ob, cit., pág, 316,

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nos constituídas outras ordens de conhecimento posítivo do direito, impossível seria não reconhecer que tôdas devem se subordinar a um conjunto de princípios e noções comuns, fundadas na expe­riência jurídica e expressões dela, formando um sistema categorial que outra coisa nã:o é senão a Teoria Geral do Direito como a teoria positiva da experiência jurídica, aplicável aos diversos cam­pos do saber jurídico em que aquela experiência se discrimina.

Isto pôsto, poder-se-iam distinguir, sob o prisma do jurista, um sentido lato e outro estrito de Teoria Geral do Direito, o segundo coincidindo, ponto por ponto, com a Dogmática Jurí­dica, a qual é, em verdade, a aplicação, ou melhor, a especificação da Teoria Geral do Direito no âmbito próprio da Ciência do Di­reito ou Jurisprudência, podendo ser considerada a teoria nor­mativo-positiva da experiência jurídica, visto ser esta focalizada como e enquanto "ordenamento jurídico", isto é, em função do complexo de interêsses e de valôres concretizados ou positivados na dinámica das "normas" e das "situações normadas", em recí­proco condicionamento. Se não houvesse várias formas de saber jurídico, e se uma delas não se caracterizasse em função do mo­mento de normatividade como seu momento próprio e culminante, - e é ela que toca ao jurista como tal - , não haveria distinção possível entre Teoria Geral do Direito e Dogmática Jurídica, as quais só se distinguem enquanto a espécie se distingue do gênero. Tal verdade é demonstrada, aliás, pelos baldados esforços de quan­tos, - sem terem atentado para a diferença de âmbito aqui posta em relêvo - , têm tentado inutilmente traçar limites entre um e outro campo de estudo, apelando para uma abstrata e intelectua­lística distinção entre finalidades "teorética" e "prática", como veremos a seguir.

Para a plena elucidação dos problemas postos pela Dogmática Jurídica, a começar pelo seu próprio conceito, é mister, porém, determinar, previamente, com o possível rigor, a natureza e o objeto da Jurisprudência, o que será o assunto dos dois ensaios seguintes.

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NATUREZA E OBJETO DA CIÊNCIA DO DIREITO

SUMÁRIO: I - Direçõe8 fundamentais. II - O direito como realidade "a se" de caráter normativo. III - O neopositivismo jurídico. IV - O direito como fato. V - Rumo à compreensão integral do Direito. VI - A Jurisprudência como ciência his-

tórico-cultural compreensivo-nonnativa.

I

DIREÇÕES FUNDAMENTAIS

§ L Momento decisivo na reformulação da problemática ju­rídica contemporânea deu-se no fim do século passado, quando a pergunta sôbre o objeto da Ciência do Direito deixou de ser rela­tiva ao problema das fontes formais do direíto para converter-se no estudo mais amplo do substractum social e histórico que as condiciona, passando-se, assim, dos problemas de mera estrutura formal para os de conteúdo.

François Gény situou admíràvelmente a questão ao lembrar que a pergunta sôbre o objeto da Ciência Jurídica não teria alter­nativa na obra, por exemplo, de Laurent, visto como entre os adeptos da Escola da Exegese e os Pandectistas prevalecia o en­tendimento de que os juristas têm como objeto de estudo os códigos ou o sistema das leis, ao passo que, acrescenta o mestre francês, as fontes formais não devem ser consideradas mais do que modos contingentes de expressão de uma realidade perma­nente, pondo-se, por conseguinte, a necessidade de nova pesquisa sôbre a essência da norma de direito 1.

Pode-se dizer que, desde êsse momento, o maior empenho da Epistemologia Jurídica se concentra na rigorosa determinação do objeto da Jurisprudência, oscilando entre os extremos do di­reito concebido como puro fato ou como pura norma, ou, para situarmos a questão em outros têrmos, entre o entendimento da Ciência Jurídica como "pesquisa da efetividade das relações jurí-

1. F. GÉNY - Science et Technique en D1'Oit Privé Posit{t, I , pág. 41.

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dicas", ou então como simples "análise da linguagem do legis­lador".

Note-se, todavia, que um ponto pode desde logo ser conside­rado definitivamente assente nos quadros tanto da Filosofia Ju­rídica como nos da Ciência do Direito: ainda mesmo quando se conceba a juridicidade em têrmos normativos, a norma jurídica deixa de confundir-se com a lei, nos ordenamentos de tradição romanística, ou com o "precedente jurisdicional", no sistema do "Common Law", para apresentar, ao contrário, uma validade ló­gico-preceptiva · extensiva a todos os dominios da experiência ju­rídica. Expressão exemplar dêsse superamento da anterior iden­tificação da "teoria normativa" com a "teoria legal", temo-la na doutrina de Kelsen e Merkl sôbre a ordenação gradativa das normas jurídicas, desde a "norma fundamental", que condiciona transcendentalmente o sistema de preceitos vigentes, até às "nor­mas particulares" enunciadas pelas sentenças ou estipuladas nos contratos. Ao mesmo tempo, opera-se um correspondente e pa­ralelo alargamento do conceito de fato, que perde, aos poucos, a sua rígida expressão causal, para embeber-se de exigências valo­rativas, tal como o demonstra a teoria do fato-normati1Jo, que veio sendo desenvolvida desde Petrazyki e G. Jellinek até G. Gurvitch e vários juristas de formação sociológica.

Parece-me claro que êsses dois fenômenos correlatos estavam já a indicara. necessidade de uma compreensão mais concreta da experiência · jurídica, o que só se tornou possível quando, à luz de um terceiro conceito, o de rolor, se reconheceu o caráter não anti­tético, mas · antes ' complementar e integrante dos outros dois ele­mentos constitutivos do direito, o fato e a norma.

Frise-se que. tôdas essas colocações da Jurisprudência envolvem ou subentendem . uma atitude correlata nos planos da Ciência Po­lítica, tão certo como não pode haver concepção do Direito divor­ciada do modo. de conceber-se a entidade estatal. Direito e Estado são realidades que se dialetizam segundo um nexo de complernen­tariedade,correspondente, em última análise, à que liga o licitum ao debere. Quando se perde a noção dêsse vínculo, que concomi­tantemente distingue e correlaciona o jurídico e o político, incide-se no equívoco, ou de se identificar o Estado com o Direito, ou de se contrapor um ao outro: a nota de complementariedade não é nem a unidade, nem a oposição, abstratamente consideradas, mas sim a essencial correlação entre elementos um ao outro irredutíveis.

Creio, pois, que entre o exagêro daqueles que confundem o Estado com a própria realidade social e nos apresentam o direito como simples tegumento ou capa protetora das relações de convi­vência, e o exagêro daqueles que fazem abstração da experiência social, para só apreciar o mundo jurídico como um mundo puro de normas, se põe uma posição de justo equilíbrio, ligada à doutrina histórico-cultural do Estado e do Direito.

o DII!EITO COMO EXPERlftNCIA 95

Não me refiro apenas à concepção culturalista do neo-idea­lismo, que já tive ocasião de expor e criticar em outros livros 2,

mas também, e mais propriamente, ao cultnralismo ontognoseolá­gico que não alimenta a vã esperança de alcançar a parte subjecti uma noção universal do direito, nem tampouco ignora que as nor­mas jurídicas, embora suscetíveis de formulação abstrata, corres­pondem sempre a realidades objetivas e se constituem partindo de um substracturn de ordem sociológica, o qual, em última análise, se integra em um proces!lo de normatividade concreta.

A luz _ dêste sucinto esbôço histórico, será lícito afirmar-se que as múltiplas direções que se observam no fecundo renascimento das especulações filosófico-jurídicas contemporâneas podem, até certo ponto, ser reduzidas a três direções fundamentais: a técnico­-jurídica) a empírico-sociológica e a histórico-cultural.

II

O DIREITO COMO REALIDADE <tA SE" DE CARÁTER NORMATIVO

§ 2. Com o qualificativo genenco de "corrente técnico-ju­rídica", não designo aqui uma escola particular, : tal como a que prevaleceu em determinados campos do Direito, sob o influxo das idéias de Binding ou Jellinek, mas tôdas as teorias que, de uma forma ou de outra, coincidem na aceitação destas quatro asserções correlatas: a de que o Direito constitui uma realidade autônoma, irredutível à estudada pela Moral, pela Sociologia, ou por qualquer outra ciência do homem; que aquela realidade se distingue das de­mais por sua específica e primordial natureza normativa; que, por conseguinte, a Ciência Jurídica deve encontrar no âmbito de sua experiência mesma os seus critérios de validade ética; assim como não pode se valer senão de seus próprios e inconfundíveis recursos metodológicos de natureza eminentemente lógico-dedutiva. Inde­pendência da realidade, do sentido e do método, seriam qualidades inerentes ao saber e ao proceder do jurista como tal, quaisquer que possam ser as naturais correlações do Direito com outras ex­pressões da vida social.

Dentro dêsse quadro geral, prevalece a convicção de que a Jurisprudência deve manter-se alheia a qualquer tipo de investi­gação de caráter axiológico, a fim de não ver comprometida a sua autonomia ou neutralidade científica, por não se perceber que uma coisa é, penso eu, compreender uma realidade social "sob

2. Vide MIGUEL REALE - Funda.mentos do Direito, São Paulo, 1940, capo IV e, posteriormente, em Filosofia do Di?'eito, 4.' ed., cit., págs. 449 e segs.

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prismas de valor" (O que corresponde ao verbo valorar). isto é, segundo suas objetivas conexões do sentido, e outra coisa é pretender subordinar a realidade social a uma prévia tomada de posição axio­lógica. Foi o temor desta infiltração de "critérios subjetivos" no domínio da Ciência do Direito que levou os técnico-jurídicos a uma extremada e rígida atitude metodológica, cega para o mundo dos valôres, preferindo que o Direito se estadeasse, em sua rigorosa objetividade lógico-racional, como um sistema de regras ordenadas segundo um encadeamento de competências suscetíveis de precisa determinação conceitual. Não perceberam, todavia, que, com a pretendida eliminação dos elementos axiológicos e fáticos, estavam se contentando com uma ilusória ou pseudo-objetividade, pois o sistema normativo ficava reduzido, na prática, a um instrumental técnico suscetível de servir a funções operacionais variáveis, segundo o requerido ou o impôsto por aquêles fatôres mesmos que êles haviam querido excluir do campo do Direito, à medida que novas circunstâncias fáticas ou novas exigências éticas vinham dar sentido atual ao "corpo autônomo das normas".

Tal orientação se expressa de maneira mais coerente e rigorosa na Teoria do direito puro de Hans Kelsen, que representa o ponto culminante de uma longa série de estudos desenvolvidos no sentido de salvaguardar · O· saber do jurista como saber autônomo, bastante de per si, não apenas quanto às suas formas expressionais e às suas categorias lógicas específicas, mas também com relação ao seu conteúdo. Nessa linha de pensamento, o Direito possui a sua Ló­gica e a sua Ética próprias, irredutíveis a padrões ou a esquemas válidos em outros campos de ordenação da conduta social, repu­tando-se "moralmente licito", sob o prisma do Direito, aquilo que deve ser segundo seus enlaces normativos. Daí a concepção da Jurisprudência como uma lógica ou uma técnica,tendo como valor fundante, embora às vêzes de maneira implícita, o princípio da certeza.

Por motivos bem compreensíveis, tal doutrina não encontrou adeptos entusiastas no setor do Direito privado, no qual se contém grande parte da questão social, como observou sàbiamente Gian­turco, pois os civilistas, na época em que mais se projetava o normativismo kelseniano, já haviam vencido uma dura batalha contra o "legalismo" da Escola da Exegese, recolocando a lei em perene contacto com as transformações sociais.

Agora que p'Ossuímos perspectivas históricas suficientes a uma análise mais objetiva e serena do assunto, já se pode observar que, apesar de divergências que pareciam de fundo, a Escola da Exe­gese, a antiga Escola Técnico-Jurídica e a Teoria Pura do Direito assinalam momentos distintos de uma mesma linha de pensamento jurídico, caracterizada pela trota essencial do que se poderia deno­minar "normativismo técnico-dogmático". Já foi dito com razão que a doutrina de Kelsen é a doutrina tradicional do positivismo

o DIREITO COMO EXPDIU~NCIA 97

jurídico, depurada dos elementos metajuríd icos que a contamina­vam, e com mais rigorosa colocação teorética de seus pressupostos. O que dá colorido próprio à corrente técnico-jurídica, no sentido amplo que estou aqui atribuindo a êste têrmo, é o corte radical feito entre a tarefa da Legislação e a da Jurisprudência ou Ciência do Direito, reservada esta exclusivamente à fase pós-legislativa, para a interpretação e a sistematização do direito pôsto, ou positivo, abstração feita tanto de suas causas ou fatôres econômico-sociais, como de suas exigências ou fins ético-políticos.

Não se deve esquecer a repercussão do tecnicismo norma ti­vista ,no campn da Teoria do Estado ou na tela do Direito Público, especialmente na do Direito das Gentes, como tive ocasião de ana­lisar em um de meus livros 3. Para os objetivos dêste ensaio, contudo, me parece bastante relembrar o que essa orientação re­presentou no setor do Direito Penal, inclusive porque, nessa esfera do Direito tão densa de problemática axiológica, mais se fazem notar os exageros neutralistas de autores como Arturo Rocco, Man­zini e Massari 4. Segundo êstes tratadistas não é, de maneira algu­ma, inútil o estudo das causas das relações jurídicas ou do crime, nem condenável a observação da realidade social e dos fins da convi­vência quando da feitura das normas. Entendem, porém, que aquêle estudo e , esta observação não constituem objeto da Ciência Jurídica como tal, mas de ciências perfeitamente distintas, como seriam a Sociologia, a Criminologia ou a Política stricto sensu. Os juristas devem ficar adst ritos à sua tarefa própria, representada pelo estudo sistemático e objetivo do direito vigente, sendo certo,

3. Sôbre essas questões v. MIGUEL REALE - Teorm do Direito e do Estado, São Paulo, 2.' ed., 1963, págs. 192 e segs.

4. MANZINI, por exemplo, distinguia cuidadosamente, "a doutrina da criminalidade, descrita no seu estado atual, na história, nos elementos cau­sais, na eficácia da reação coletiva que encontra, e na sua profilaxia social" e o Direito Penal, que seria "a ciência de normas imperativas, que nada têm de eomum eom as leis naturais e soeiais, nem se propõe a descrever fatos ou relações, nem a estudar relações de causalidade soeial". Tl'attato di Diritto Penale Italmno, Turim, 1920, l, pág. 11. É inegável o aleance desta distinção, desde que se não queira levantar uma barreira entre uma e outra ciência, eomo demonstrarei no decorrer dêste estudo. (Cf. GIUSEPPE BEITIOL - Diritto Penale, Pádua, 1966, Parte Generale, págs. 40 e segs.l.

Note-se como MANZINI ainda se mantém fiel à doutrina im.perativísta do direi to ; a tendêneia do teenicismo desenvolveu-se, ao contrário, no sentido do progressivo abandono da concepção do direito como eomando, para apre­sentá-Ia, primeiro eomo "imperativo hipotético" e, finalmente, como simples juízo indieativo. A última expressão dêsse afastamento das originárias fontes voluntaristas do direito, é-nos dada pelos autores que reduzem o objeto do Direito a mera téenica lingüística a partir dos elementos proposicionais enun­ciados pelo legislador.

Aliás, coloeada a questão em têrmos de pura análise fonnal, KELSEN mesmo passa a ser considerado adepto do impeJ"atit'ismo jurídico em virtude de sua compreensão da forma jurídica como um "juizo de dever Ser"... É assim que o situa, por exemplo, ULRICH KLUG.

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concluem êles, que o direito ou é norma, ou não sabem o que seja. O que outros 'consideram direito como jato social) ou denominam direito natural) são simplesmente fatos sociais ou exigências éticas, dados ou valências de que o estadista se serve para promulgar o direito. É · só -então que começaria a incumbência da Ciência do Direito, cujo objeto único seria compreender e aplicar a norma jurídica na plenitude de sua fôrça lógica, segundo critérios de necessidade lógica inerente ao ordenamento, e não em função de fatôres metajurídicos.

É devido a essa posição metodológica que, por exemplo, Man­zini chegava à conclusão de que a lei penal deve ser aplicada em tôda a sua compreensão, quer beneficie, quer prejudique ao réu. Nem mesmo nos casos de dúvida, nota Noé Azevedo, manda êle concluir a favor do imputado. "Na dúvida, deve-se escolher a in­terpretação . que parece mais conforme ao objeto jurídico da lei, e não a mais favorável ao indiciado. A regra in dubbio pro reo) refe­re-se à prova e não à interpretação" s.

m O NEO-POSITIVISMO JURIDICO

§ 3. Uma variante da corrente tecnicista, inclusive pelo seu marcante empiricismo, pode ser encontrada em certas teorias neo­positivistas contemporâneas, inspiradas, não no fisicalismo, mas na chamada ' "análise da linguagem".

Em geral, êsses autores empenham-se em salvaguardar oca­ráter científico da Jurisprudência, não encontrando outro caminho senão o de atribuir-lhe a tarefa de elucidar os enunciados norma­tivos vigentes, segundo uma ordem de coerência lógica interna, ba­seada nos "dados'" ou "pressupostos" contidos nas normas de direito emanadas pelo legislador competente. _

É nessa ordem de idéias que se situa, por exemplo, a teoria de Norberto Bobbio. Muito embora declare que o Direito não pode ser considerado mera "ciência formal", - e isto por lhe pa­recer inerente a tôda proposição ou norma jurídica o problema do conteúdo, cuja abstração a esvaziaría de sentido -, o mestre de Turim acaba por fazer uma distinção, insustentável a meu ver no plano epistemológico, - entre a estrutura normativa e o conteúdo do direito. Pensa êle ser p'Ossível o estudo daquela independente­mente de seus conteúdos particulares, sociais, econômicos, etc., isto é, com abstração das chamadas "figuras de qualificação da expe­riência jurídica" 6.

5. V. Noé AzEVEDO - As Garantias da Liberdade Individual em Face das Tendências Penais, São Paulo, 1936, pág. 93.

6. Cf. NORBERTO BoBBIO - TeorüJ, della Scienza Giuridica, Turim, 1950, págs. 152 e segs., e passim. Para uma exposição dessa teoria, V. ASTÉRIO CAMPOS - O Pensannento Jurfdico de Norberto Bobbio, São Paulo, 1966.

I

O DIREITO COMO EXPERrtNCIA 99

Assim desvinculadas de suas aplicações práticas, as estruturas normativas constituiriam o objeto da Teoria Geral do Direito; -de outro lado, a Jurisprudê.ncia, ou Ciência do Direito propriamente dita, reduzir-se-ia ao estudo dos diversos conteúdos das regras ju­rídicas. Eis, pois, a Teoria Geral do Direito como teoria formal do direito; e a Ciência do Direito, ao contrário, como estudo dos conteúdos das normas, só possível mediante uma rigorosa análise da linguagem do legislador. Dentro dês se contexto Bobbio acaba voltando a uma superada e frágil identificação entre verba e mens legis) sob a alegação de que o âmbito de cada pesquisa científica não pode jamais ultrapassar os horizontes de suas formas expres­sionais, o que é uma verdade, desde que se não confunda, como acontece na referida doutrina, a norma jurídica como uma simples proposição ou fórmula lógica esvaziada de seu conteúdo 7.

Tendo Bobbio excluído, com base em argumentos que não cabe aqui analisar, a possibilidade de se apresentar a Jurisprudência como ciêncía espiritual "Ou ciência histórica, e não querendo êle recusar-lhe, todavia, o caráter científico, preferiu contentar-se com a sua caracterização segundo os apequenados têrmos do conven­cionalismo neopositivista, de conf"Ormidade com o qual será licito falar-se em ciê.ncia tôda vez que uma pesquisa puder ser formulada em linguagem rigorosa, num sistema coerente de enunciados co­municáveis intersubjetivamente, a partir de certos pressupostos ou proposições convencionais ou protocolares. Isto pôsto, as normas postas pelo legislador constituiriam o embasame.nto lógico condi­cionante do discurso jurídico, o qual, desde que expresso de ma­neira rigorosa, sem deturpação dos valôres verbais ou lógico-sin­táticos da lei, teria a categoria e a dignidade de um discurso cien­tífico.

Se considerarmos que essa admissão das normas legais como um pressuposto insuscetível de verificação analítica ou empírica, já representa a implícita aceitação delas como algo valioso em si mesmo, - constituindo, assim, uma opção de inegável natureza axiológica -, parece-me que se reveJa insuficiente a construção teórica de Bobbio, cuja apresentação simplificada das questões su­bentende problemas a rigor inelimináveis. Aliás, é o próprio Bobbio que, após ter cuidadosamente distinguido entre forma e conteúdo) destinado aquela à Teoria Geral do Direito e esta à Jurisprudência, acaba por reconhecer que "a pesquisa completa do Direito deve resultar da síntese (sic) de ambas as disciplinas, tanto da formal quanto da relativa aos conteúdos" 8 . Tão relativa é, em verdade, a distinção entre forma e conteúdo, máxime em se tratando da expe­riência social ou jurídica, que qualquer distinção baseada em tal

7. Sôbre êsses e outros pontos, v. as penetrantes críticas de VIRGILlO GIORGIANNI - N eopositivismo e Scienza del Diritto, Roma, 1956, págs. 271 e segs. e passim.

8. V. Boamo - Teoria della Scienza Giuridica, cit., pág. 167,

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critério bem pouco contribui para a soluçã'O do problema, assistindo razão a Luigi Bagolini quando adverte que "se se prescinde de uma visão histórica e culturalistana natureza dos conceitos jurídicos, defrontamo-nos, sem dúvida, com dificuldades insuperáveis" 9.

§ 4. Numa linha de pensamento sub'Ordinada aos pressupostos da Filosofia da linguagem e em função da experiência jurídica do common law, situam-se os estudos de H. L. A. Hart, professor da Universidade de Oxford, o qual retoma e desenvolve os estudos da Escola Analítica de Austin e, sob o influxo das contribuições de

, Bryce, Kocourek, Kelsen, Holmes, etc., visa a reafirmar o caráter . autônomo da Jurisprudência, especialmente no tocante às suas relações com a Moral 10.

Para os fins estritos dêste estudo, o que me parece digno de menção, na doutrina . de Hart, é, além de sua preocupação de rigor terminológico tendente a depurar ' o Direito de pseudo-pro­blemas, - o que, não raro, o leva a conclusões de irrecusável no­minalismo, considerando os têrmos jurídicos fundamentais susce­tíveis de descrição de caráter operacional, mas não de definição lógica - , é o seu reiterado propósito de apresentar o Direito como uma realidade a se, a qual, apesar de não se achar claramente determinada em sua obra, se põe, em última análise, como um sis­tema de regras cujo cumprimento deixou de ser opcional, para ser obrigatório.

Nessa concepção que talvez se pudesse qualificar de "norma­tivismo operacional", não estamos tão longe, como parece, do último Kelsen, ou seja, da Teoria pura do Direito já dobrada às exigências do commonlaw, quando o antigo mestre vienense se i.nclina a aban­donar os · originários pressupostos neokantianos de sua concepção transcendelltal da experiência jurídica, para dar ao seu conceito de norma certa.referibilidade fática de caráter operacional, na qual é perceptível '" a . influência neopositivista.

Hart, poder~se-ia dizer, coincide com Kelsen enquanto e na medida em que~ êste coincide com Austin, não só quanto ao pro­pósito de excIuirdo Direito todos os elementos que intrinsecamente não se situem no . sistema jurídico existente, e existente em razão de duas condições mínimas que o tornam Jano-bifro,nte: de um lado, a obediência do homem comum às "regras primárias" que dispõem sôbre a conduta dos indivíduos; de outro, a obediência dos agentes d'O Estado às "regras secundárias", assim chamadas por terem como objeto as primeiras, e se destinarem a interpre­tá-las, determiná-las, garanti-las, substituí-las, etc. 11

9. V. L. BAGOLINI - Re1J. Int. di Filosofia del Diritto, 1963, vaI. XL, fasc. T, pãg. 16.

10. Cf., sobretudo, H. L. A. HART - The CCYnCept 01 Law, Oxford, 1961; Contri.buti all'Analisi deZ Diritto, traduzidos e ordenados por Vittorio Frosini, Milão, 1964.

11, Cf, HART - The Concept oI Law, cit., pâgs. 113 e segs.

o DIREITO COMO EXI'ERIENCIA 101

No seu modo de ver, o Direito existente, nessa co-presença ou entrelaçamento de normas primárias e secundárias, não depende de uma norma fundamental transcendental, que o legitime, nem de um comando despsicologizado (que equivaleria à noção de um sobrinho sem tio, .. ) mas se baseia no reconhecimento externo do fato de que um certo modo de comportamento é geralmente aceito, na prática, como uma norma. A sua existência é matéria de fato 12.

Mas há um outro fato a que Hart alude e que, na realidade, faz-nos ver como os próprios adeptos de uma orientação marcada­mente técnico-jurídica não podem deixar de dar atenção aos aspec­tos axiológicos da experiência juridica. Refiro-me à tese do jus­filósofo britânico sôbre o que êle qualifica de ((conteúdo mínimo do Direito Natural", no qual Direito e Moral coincidem: a exis­tência de algo em comum entre todos os homens, de princípios de conduta universalmente reconhecidos que têm uma base em ver­dades elementares relativas aos sêres humanos, suas naturais cir­cunstâncias e suas aspirações 13,

Abstração feita da análise dessa colocação do problema, o certo é que na doutrina de Hart, como na de tantos outros afirmadores da autonomia lógico-normativa do Direito, pretensamente indife­rentes ao seu conteúdo estimativo, os aspectos fáticos e axiológicos acabam por reaparecerem entrelaçados c'Om os normativos, como uma exigência que brota da natureza mesma do Direito. Tal veri­ficação permite-me antecipar a conclusão destas notas de estudo, no sentido de que só graças à compreensão tridimensional da expe­riência juridica se consegue determinar o Direito como ciência per se stante, sem a mutilar, privando-a de elementos essenciais, e sem se cavarem abismos entre ela e os demais ordenamentos da conduta humana.

IV

O DIREITO COMO FATO

§ 5. Ao lado da orientação doutrinária até agora examinada, desenvolve-se, com fôrça paralela, uma Dutra corrente de pensa-

12. .. ... an external statement of the fact that a certain mode of be-haviour was generally accepted as a standard in practice. ( ... ..... . ... . . ) Its existence is a matter of fact". Op. cit., pãg. 107. Percebe-se que, em última análise, HART renova no âmbito do neopositivismo. dando-lhe uma feição hipotético-operacional, a conhecida doutrina de BIERLING sôbre o "reconhecimento" como fundamento social do Direito. Sôbre a dupla inter­pretação dada ao pensamento de BIERLING, urna de alcance filosófico, outra de cunho sociológico, v. MIGUEL REALE - Fundamentos do Dire ito, cit., págs. 14 e segs.

13. Op. cit., págs. 189 e segs. Cf . Contributi, cit., págs. 83 e segs. "Tanto no caso de direitos especiais como no de direitos gera is. o seu reco­nhecimento, no dizer de HART, compor ta sempre o reconhecimento do ign(ll direito de todos os homens de serem livres" (pág. 104) .

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mento, que também reúne nomes dos mais ilustres como Duguit, Ehrlich, Alf-Ross . ou Olivecrona, exacerbando-se em certas atitudes extremadas do neo-realismo norte-americarro.

Não obstante as divergências' e peculiaridades das respectivas teorias, a maioria . dêsses autores está acorde em reconhecer a impossibilidade de estudar-se o direito como simples coordenação de normas, como sistema de cânones normativos nos quadros de uma Jurisprudência "dogmática", fundada no princípio da autori­dade do Estado. O Direito tem sim autonomia, mas é autônomo como ramo ou capítulo da Sociologia, não tem valor sem conexão com os dados que o sociÓlogo apresenta. Não há juristas pt~ros, porque só pode haver juristas-sociólogos. Nem haveria como ima­ginar uma ciência de normas sem a conceber, prévia e principal­mente, como ciência do conteúdo das normas.

O direito . é, antes de mais nada, dizem êles, fato social, reali­dade psicológica e social em perene transformação, de modo que as normas não subsistem, nem são possíveis, sem a realidade de que resultam como conclusões necessárias que se impõem a todos, tanto aos governantes como aos . governados.

No entender dos sociologistas, tomado êste tema em acepção muito lata, querer saber o que é o direito como preceito ou regra implica em . verificar, previamente, como é que o direito surge, como se elabora nos recessos da co.nsciência coletiva, ou como se constitui graças à massa dos espíritos, e ainda como tais e quais condições objetivas puderam dar nascimento a uma regra de con­duta e exigiram, .pela pressão da convicção generalizada, que um poder se organizasse para prever e prover o seu respeito, a sua garantia e a sua atualização.

A análise das normas, a apreciação sistemática das regras que lõgicamente se concatenam nos códigos, é técnica que acompanha a ciência e se subordina ' a ela, não podendo haver nada de mais artificial do que colocar uma ciência, que estuda o direito como fenômeno social, ao lado de uma outra que estudaria o direito como fenômeno jurídico, ou seja, como preceito, comando, ou diretriz de conduta.

Esta separação seria possível, continuam os juristas-sociólogos, se a regra jurídica fôsse uma criação da mente, e pudesse ser obtida mediante simples dedução a partir de alguns princípios evi­dentes, axi'omáticos ou mesmo convencionais. Mas esta idéia não pode encontrar hoje cultores, acrescentam êles, desde que se de­monstrou ser o direito um fato social, em função do qual as normas de direito são elaboradas, não havendo diferença essencial entre uma lei física e uma lei jurídica a não ser quanto ao respectivo grau de rigor e de previsibilidade: são ambas pertinentes ao mundo do se/', e não ao do dever ser, salvo se se der a esta expressão um sentido de pura referência vetorial e de ordem lógica.

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 103

Nessa ordem de idéias, chegam tais autores à conclusão -embora nem sempre a exponham claramente - de que a Juris­prudência corresponde a um capítulo da Sociologia, entendida esta como ciência natural, distinguindo-se como um dos ramos da pes­quisa social apenas pela índole de seus processos e pela técnica que lhe é peculiar, ou seja, pelo ângulo visual sob o qual são foca­lizados os problemas da sociedade.

Mais importante, porém, do que essas classificações teóricas é verificar como os próprios juristas sentiram necessidade de pro­ceder à revisão de sistema de categorias lógicas dominantes na Dogmática Jurídica durante o período de incontrastável predomínio da burguesia liberal. É sabido como, nas últimas décadas do século passado, em virtude das mutações operadas tanto no plano dos fatos como no das idéias, foram se revelando insuficientes a compreensão lógico-dedutiva e a hermenêutica do direito dominantes na Escola da Exegese e entre os pandectistas, cedendo a Jurisprudência dos conceitos lugar a diversas formas de Jurisprudência dos interêsses, a qual, em última análise, pode ser vista como um prolongamento das motivações pragmáticas que haviam caracterizado a derradeira fase da obra de Jhering.

Ao me referir às diversas formas da Jurisprudência dos inte­rêsses, quero dizer que a "Interessenjurispruderrz" da Escola de Tubinga, com Philipp Heck e Max Rümelin à frente, encontra aná­logas manifestações de pensamento em outros países europeuS e americanos, traduzindo a geral insatisfação pelo legalismo que, plasmado nas matrizes do Código de Napoleão, se mantivera válido e bastante até e enquanto soluções rrormativas, expressas sob a forma de lei, haviam correspondido às infra-estruturas econômicas de uma sociedade individualista, adversa em princípio ao inter-vencionismo estatal.

A preocupação pela experiência jurídica, vista como uma trama de interêsses em conflito, culminava na conclusão essencial de que a norma de direito, longe de ser uma construção lógica a se stante, da qual se possam e se devam inferir comandos para a disciplina de tôda a vida social, é antes um esquema prático cujo significado só se atinge remontando-se ao plano dos interêsses que determinaram as opções do legislador.

Poder-se-á dizer que, na tdade "comando-interêsse-conceito", aceita por Heck, é o segundo têrmo que dá significado ou conteúdo 3:0 preceito normativo, assim como permite e exige a compreensão do segundo como sendo o resultado de uma "construção classifica­dora", ou instrumento de ação indispensável ao jurista, nos limites prefixados pelo âmbito da regra promulgada. De qualquer modo, por mais que apelem a elementos fáticos, os juristas de Tubinga não ultrapassam os quadros de uma envolvente compreensão nor­mativa, procurando evitar ou superar aquelas posições que, corri

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104 MIGUEL REALE

mais rigor conseqüencial, haviam sido assumidas por sociólogos do direito, ou por juristas empenhados no conhecido movimento

. do Direito Livre, com o primado da Sociologia Juridica sôbre a Jurisprudência.

Se, com efeito, se parte do conceito positivista da ciência, for~ çoso· é concluir que a única "ciência" do Direito, em sentido ver­dadeiro e próprio, é a Sociologia Jurídica, a qual estuda os fatos sociais que estão na base do jus, ficando a Dogmática Jurídica reduzida a um conjunto de noções técnicas. Foi essa a posição assumida com admirável coerência por Eugênio Ehrlich, o qual, em sua ((Fundação da Sociologia do Direito", de 1913, sustenta ser esta a ciência autônoma do Direito, destinada não a escopos práticos, mas ao conhecimento puro, "não tratando de palavras, mas sim de fatos" 14.

Tenho · para mim que, assim como Kelsen é o representante mais rigorosamente conseqüente na corrente do normativismo ju~ rídico, papel paralelo desempenha Ehrlich no campo do sociolo­gismo .. jurídico, segundo o qual o que importa primordialmente para uma compreensão científica do Direito são as "normas de conduta", entendidas não como regras abstratas declaradas pelo legislador, mas sim como meras expressões das relações sociais mesmas, dos usos e costumes, das relações de posse e de domínio, das declarações ·múltiplas de vontade, de todos os atos, em suma, que compõem á trama do viver jurídico. Isto pôsto, o papel da "verdadeira" Ciência do Direito consiste em descobrir as "fôrças motrizes das instituições · jurídicas", visando captar o .direito ante- . rior e subjacente às "abstrações normativas" e às decisões do juiz, isto é, o direito como "ordenamento de vida", em seu processo histórico-social, ao qual devem se subordinar a interpretação e as construções da doutrina, e, o que é essencial, as decisões dos ma­gistrados.

Ora, consoante observa · Larenz, fazendo côro às críticas fun~ damentais suscitadas pelas idéias de Ehrlich, se êste teve o mérito inegável de, com a sua visão s'Ociológica, realizar uma necessária e significativa integração da visão normativista do Direito, não é menos certo que a sua compreensão da Sociologia em têrmos de

14. V. KARL LARENZ, Storia deZ Metodo nella Scienza Giuridica (L' parte de Metlwdenlehre der Rechtswissenchaft, Berlim-Gõttingen. Heidelberg, 1960) ed. italiana aos cuidados de Sérgio Ventura, Milão, 1966, pág. 87; FRANCESCO OLGIATI -Il Concetto di Giuridicità nella Scienza Moderna deZ Diritto, 2.' ed., Milão, 1950, págs. 321 e segs.; e GEORGES GURVITCH - Le Temps Present et l' Idée du Droit Social, Paris, 1931, págs. 264 e segs.

No Brasil, já no fim do século passado, PEDRO LESSA contrapunha à Dogmática, como arte, uma nova Ciência do Direito, de base indutiva e de caráter sociológico. (Cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, cit., págs. 281 e segs.) Não é demais realçar essa intuição do antigo mestre da Faculdade de Direito de São Paulo.

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meras relações causais não lhe permitiu reconhecer que a Juris­prudência não cuida dos fatos como tais, mas apenas enquanto albergam um significado normativo .

Na realidade, a prevalecer o entendimento de Ehrlich e de quantos concebem naturallsticamente os fatos do Direito, ° resul­tado necessário e inexorável é a redução da Jurisprudência a um capítulo da Sociologia, convertido o jurista em mero operador de esquemas e modelos postos à sua disposição pelo sociólogo.

§ 6. Em última análise, é essa a conseqüência que, sob outros fundamentos, marca tanto 'os liames como as diferenças exístentes entre a Escola do Direito Livre e o neo-realismo norte~ -americano ou as posições assumidas pela chamada Escola esca..'1~ dinava.

É evidente que, nesta sucinta evocação de teorias, chaman­do à colação alguns exemplos mais expressivos das diretrizes fundamentais, o que me move é a verificação, não só das dificul­dades em que se enredam tôdas as interpretações unilaterais ou setorizadas da experiência jurídica, cuja realidade concreta é mu­tilada por aquêles mesmos que mais falam em seu nome, mas também a observação de que, de uma for ma ou de outra, as três dimensões essenciais do Direito acabam por se imp'OI'em à análise, ocasionando distorções ou concessões finais àqueles que haviam ardorosamente proclamado a essencialidade exclusiva do fato ou da norma no mundo do Direito.

Nesse sentido, são deveras eloqüentes as contribuições da esco­la escandinava, de Axel Hãgerstrõm, Wilhelm Lündstedt e Kart Olivecrona, que não são sociólogos, mas sim juristas empenhados em determinar o significado das regras de direito em função dos comportamentos que lhes correspondem.

Segundo Olivecrona, tôda norma jurídica tem por fim "influir sôbre a ação das pessoas", sendo êsse o propósito do legislador ao prefigurar "imaginativamente", um quadro ou modêlo da conduta desejada : a aplicação da lei consiste em utilizar essas ações imagi~ nárias como modelos de conduta, tôda vez que surgirem na vida real ações a êles correspondentes 15. Nessa linha de idéias, o con­teúdo das normas jurídicas é definido como "idéias de ações ima~ ginárias a serem cumpridas (por exemplo, por juízes) em situa-

15. As palavras "imaginação" e "imaginário" têm na obra de OLlVE­CRONA (v. Law as Fact, Londres, 1939) um significado especial, que se poderia interpretar como sendo indicador de uma hipótese assumida a título opera­cional, algo assim como as ficções lógico-convencionais a que recorrem certos filósofos das ciências para conceituar as leis naturais. Trata-se, porém, de conceitos fluidos e imprecisos, que nos deixam em suspenso entre o de "fíctio" e o de "convenção lingü istica", sendo êsse, a meu ver, uma das graves falhas do pensamento de OLIVECRONA. Para uma crítica penetrante da posição dêste jusfilósofo e a de ALF Ross. V. LUlGI BACOLINI - Visioni della Giustizia e Senso Comune, cit. , págs. 399 e segs.

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ções imaginárias" . . Apesar, porém, de ser propósito do legislador "influir" sôbre o comportamento individual, é da essência mesma das normas, diz Olivecrona, que estas não contenham referência alguma a valôres: operam diretamente sôbre a vontade como ima­ginários "imperativos independentes", ou seja, como «causa da forma .de proceder do povo em determinados aspectos", sendo a "ordem" dada em razão delas um ato de caráter sugestivo.

As normas jurídicas não são, contudo, "predições", quer se­jam consideradas atos do legislador ou atos do juiz, pois o legis­lador pretende, com elas, regular a ação dos magistrados; e o magistrado, quando profere uma sentença, determinando direitos, não constitui os modelos normativos, mas age com referibilidade a êles.

§ 7. Não obstante, porém, essa crítica a uma das colocações essenciais do · "realismo" norte-americano de Karl N. LlewelIyn, Jerome Frank, Max Radin e de quantos reduzem o Direito a uma técnica operacional de resultados pragmáticos, parece-me que es­tamos ante uma divergência que não destrói o ponto de vista comum sôbre a essencial compreensão do direito como fato: en­quanto, porém, o direito, na teoria de Karl Olivecrona se apresenta como "organização da fôrça", com a conseqüência deveras expres­siva de que o· temor da sanção é o motivo essencial da conduta jurídica, já entre os realistas norte-americanos prevalece a tese de que o direito outra coísa não é senão o fato mesmo do compor­tamento dos "operadores" e até mesmo dos "partícipes" da expe­riência jurídica como ato decisório.

Nesta concepção instrumentalista do Direito, é pôsto em real­ce, em contraste·· com qualquer concepção de tipo normativo, a precedência do ato de escolher em confronto com os esquemas abstratos,ou seja, sôbre as possíveis alternati'vas que se oferecem à decisão do juiz no ato de exarninar as normas : o ato de decidir não resulta de normas aplicáveis obrigatoriamente, em razão de sua exclusiva correspondência lógica à espécie examinada, mas é antes constituída pela e.scolha ou opção do julgador, entre várias alternativas. O juiz, em suma, no ato de escolher a diretriz nor­mativa possível in concreto, só pode fazê-lo em função dos resul­tados ou dos efeitos que, enquanto homem, considerar convenientes em cada caso, em virtude da prévia qualificação por êle dada à hipótese sub judice. Há nessa operação, por conseguinte, um ato prévio de qualificação do fato e de escolha de efeitos que pressupõe outro fato: a individualidade do juiz e o seu comportamento, e, mais ainda, o complexo de fatôres psicológicos, éticos, econômicos, etc. que condicionam aquêle comportamento. Dêsse modo, como adverte Giovanni TarelIo, a argumentação do juiz não parte de premissas normativas acolhidas pelo "operador", mas sim dos re­sultados (fatos e não normas), dos efeitos empíricos por êle dese-

o DIREITO COMO EXPEnIENCIA 107

jados, havendo, em tôda decisão judicial, uma relação de meio a fim, sendo aquêle a interpretação e êste o resultado preferido 16.

Consoante bem pondera Recaséns Siches, mister é distinguir entre a contribuição positiva dos realistas, ao levarem até as úl­timas conseqüências a crítica ao formalismo normativista, so­bretudo em matéria de hermenêutica jurídica, - já desenvolvida com superior equilíbrio por mestres como Holmes, pound ou Car­dozo -, e a frágil construção que êles nos brindam e que, por seu caráter fragmentário e unilateral, não chega a constituir uma teoria básica do Direito 17.

Abstração feita, porém, dos exageros dêsse movimento, que congrega elementos tão díspares, o certo é que nêle duas verdades se evidenciam: em primeiro lugar, a insuficiência do elemento normativo; e, em segundo lugar, a ênfase dada ao elemento opcio­nal. ou ao ato de escolha do juiz, que implica uma tornada de po­sição valorativa perante o evento sôbre que versa a demanda judicial. As análises dos realistas americanos tiveram o grande mérito de revelar quão complexo é o fato nos domínios da expe­riência jurídica, e como o problema da "qualificação do fato" im­plica referências normativas e opÇões valorativas, numa interação insuscetível de ser reduzida a enlaces sil'ogísticos. Se o realismo exagera a natureza operacional do direito, pondo o "operador" aci­ma do processo de que é partícipe, - até o ponto de · dizer-se que o juiz se decide antes em favor de uma tese e depois procura a norma justificadora da decisão tomada -, parece-me que no seu apêlo ao direito que efetivamente se vive e na sua desconfiança pelas soluções de pura logicidade formal, está implícita a intuição de que é necessário abranger a experiência jurídica na totalidade de seus aspectos. Não será exagêro dizer-se que o realismo norte­-americano, na sua unilateral posição de empirismo radical, 'OCulta uma angústia incontida de totalidade.

V

RUMO À COMPREENSÃO INTEGRAL DO DIREITO

§ 8. A não ser nas suas poslçoes mais extremadas, nunca se mantiveram rigorosamente fiéis aos seus princípios as três correntes de pensamento que acabei de recordar em largos traços.

16. Sôbre a fundamental importância do ato de escolha ante um leque de alternativas, como elemento de compreensão da experiência jurídica pelos realistas norte-americanos, v. TARELLO - IZ Realismo Giuridico Americano, Milão, 1962, pág. 161 e segs. e passitm. Sôbre as características gerais do realismo norte-americano, especialmente com r eferência a JEROME FRANK, V. THEóFlLO CAVALCANTI FILHO - O Problema, da Segurança no Direito, São Paulo, 1964, Capítulos IX e X .

17. Cf. L. RECASÉNS SICHES _ Panorama, del Pensamie11,to Juridico e11, el Siglo XX, México, 1963, t. lI, capitulo 33, págs. 619 e segs.

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108 MIGUEL REALE

Se C'ompulsarmos as obras jurídicas dos "normativistas", veri­ficamos que, a todo instante, considerações de ordem social e ética penetram, às escondidas, em sua argumentação para dar colorido ou conteúdo , às interpretações da lei. Para alguns trata-se talvez de uma questão de palavras, pois não deixam de estudar o subs­tractum sociológico quando interpretam os dispositivos legais, só que fazem questão cerrada de notar que estão tratando da matéria "não como juristas, mas como sociólogos".

Por outro lado, os que não C'ompreendem o direito senão como fenômeno social, não podem deixar de reconhecer, em suas obras, que a norma - por mais que seja evidente a sua conexão com os fins ético-sociais da convivência e com elementos econômicos, possui também um valor lógico, tem, como dizem os técnicos, uma /órçalógica, ou uma validade lógico-sintática que exige uma determinada solução, e não outra, para a qualificação devida e r igorosa dos fatos concretos. Sobremodo expressiva, sob êsse ponto de vista é, ' como' vimos, a posição da Escola escandinava ou do realismo ' norte-americano, que, fiéis ao seu empirismo radical, procuram interpretar o direito como puro fato e, isto não obstante, exageram os aspectos imaginativos ou ficcionalistas dos institutos jurídicos, ou o seu momento valorativo e opcional, isto é, o que há de "construído" ou "técnico" (correspondente à forma ou nor­ma), 'ou, então, os fatôres axiológicos da experiência jurídica co­mo tal.

Foi notando essas insuficiências e contradições das explicações unilaterais do Direito que eminentes juristas contemporâneos pro­curaram colocar o problema jurídico no plexo de suas relações, depois de observar, com grande sabedoria, que tudo está em se saber distinguir sem separar. O direito é fenômeno social e é norma, ou; como diz Santi Romano, é "ordenamento". Não há relação social alguma que não apresente elementos de juridicidade, segtuldo o velho brocardo, ubi sOC'Íetas ibi jus, mas por outro lado, não é menos verdade que não existem relações jurídicas sem substractum social e, então, se disse: ubi jus, ibí societa8.

Gény, que é uma grande expressão de equilíbrio na Ciência do Direito, escreveu que o jurista deve observar o "donné" e o "c'Oustruit" e, sôbre esta distinção, assentou êle uma outra (que não nos parece igualmente aceitável) entre Ciência e Técnica do Direito, · pois, a distinção entre dado e construído só pode ter um valor relativo, implicando ambos uma parte de ciência e uma parte de técnica 18. De qualquer forma, Gény se rebelou contra soluções

18. Cf. G~NY - Science et Technique en Droit Privé Positif, especial­mente vol. n, págs. 160 e segs. Referindo-se à distinção de G~NY. escreve RIPERT: "Parece bem artificial essa distinção, porque o dado não tem existência real que seja exterior ao espírito do construtor" (GEORGES RIPERT - A Regra Moral nas Obrigações Oivis, trad. de Osório de Oliveira, São Paulo, 1937, pág. 31).

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setorizadas e, em contraposição a certas teorias que exageravam o valor da efetividade ou eficácia no Direito, em detrimento dos problemas relativos à vigência ou validade técnico-fo't'Tnal, soube êle compreender a necessidade de correlacionar êsses dois elemen­tos, procurando uma linha de equilíbrio entre êles.

Não lhe foi dado, todavia, superar os elementos do "dado" e do "construído", a fim de atingir a unidade integrante do jus. Daí o caráter extrínseco, de justapOSição mais do que de síntese, que a Ciência e a Técnica assumem em sua doutrina.

Uma .das tentativas mais vigorosas no sentido de reconstruir-se a unidade no Direito surgiu, logo depois, com a concepção institu­cional do Direito, quer segundo as diretrizes de Hauriou e seus continuadores, ·quer na linha de Santi Romano e dos mestres ita­lianos que elaboraram, com grande penetração, os conceitos da "experiência jurídica" e de "ordenamento jurídico" como objeto da Jurisprudência, pondo ao vivo a C'omplementariedade existente entre fatos de organização e de conduta e idéia do direito, em função de cujo adimplemento aquêles fatos se qualificam como jurídicos.

O institucionalismo, que f'Oi, a princípio, uma explicação par­cial do mundo jurídico, relativa tão-somente à vida dos grupos (sindicatos, associações, fundações, etc.) e a certas situações eco­nômico-sociais unitárias que se atualizam como podêres distintos e autônomos (a propriedade, por exemplo), o institucionalismo converteu-se em verdadeira teoria geral do direito.

O próprio Renard, que mais se ligara à orientação predomi­nantemente grupalista de Hauriou, acabou por reconhecer a ne­cessidade de alargar o alcance e o objetivo do instituci'Onalismo, como já havia sido feito por J . Delos desde 1931. Aliás, o antigo mestre de Nancy atribui a Delos o mérito de ter notado, em primeiro lugar, que a instituição estava destinada "à elargir sa base, à cesse r d'être une piece distinctive de la philosophie du droit pour se muer en une théorie générale du droit" 19.

§ 9. Criticando o cunho sociológico que certas vêzes é acen­tuado por alguns institucionalistas, observa-se com razão que nã'O é possível sacrificar os dois elementos essenciais do Direito, isto é, a estrtdt~ra formal e a função normativa, o que significa que ao elemento fático é necessário acrescentar os de ordem lóg'ica e deontológica.

A primeira conclusão que resulta desta colocação do problema é o reconhecimento da impossibilidade de conceber-se o direito co­mo produto ou decorrência de um complexo de "causas" empírica­mente determináveis, visto como o fato como tal não gera o direito,

19. Cf. RENARD - La Philosophie de l'Institution, Paris, 1939, pág. 249.

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devendo-se 'a Kant averdade de que do ser não é possível passar-se ao dever<ser;> Não é menos verdade, todavia, que o criticismo transcendental se estiolou num dualismo irredutível, cavando um abismo entre'>"experiência natural" e "imperativo ético", entre natureza e liberdade) pondo uma antinomia entre realidade e ideal, direito como fato e direito como valor, cuja solução tem sido e continua sendo a mais árdua tarefa do pensamento contemporâneo, após ,a dialética. reducionista de Hegel, que valeu mais como reve­lação e supressão do que como superame.nto do problema.

Numa tentativa de síntese dialética entre valor e realidade, poder-se-ia afirmar que o jurídico não é nada mais do que o social que recebeu uma forma) em virtude da intervenção do poder axiolàgicarnente determinado. Na mesma linha de pensamento, conclui Giuseppe Capograssi, em sua penetrante análise da natu­reza da Ciência do Direito, que esta não. tem por objeto "a lei como tal, mas a lei como parte saliente e . momento essencial (mas momento)., de uma realidade orgânica e unitária que se pode denominar: .ordenamento , jurídico" 20.

Focalizando essa crescente preocupação dos juristas pelos pro­blemas da "experiência" social e histórica, como objeto da Ciência do Direito, F. Lopez de Onate observa, com razão, que o mesmo desejo de concretitude se manifesta em tôdas as tendências da Filosofia do Direito contemporâneo, abstração feita da diversidade das escolas, pois tanto os idealistas como os empiristas repelem, cada vez mais, a .concepção do Direito ,como simples estrutura lógico-formal 21.

Consoante o já citado Lopez de Onate, efetuou-se uma passa­gem do estudo da ' norma jurídica, anteriormente concebida como algo destacado do processo que lhe deu origem, para o estudo da atividade espiritual, social e histórica, do qual a norma não é senão um momento tendente à revelação do "direito concreto".

~ a razão pela qual, ao lado da concepção do Direito como instituição, como ordenamento, ou como experiência jurídica, de­senvolvem-se, concomitantemente, outras doutrinas que concen­tram a sua atenção sôbre a problemática do "comportamento" ou da "conduta", como o fazem Carlos Cossio e Jerome Hall, ou põem a tônica nas exigências da "razão vital", como o acentua Ricaséns Siches. '

Era deveras estranho que, sendo a Ciência Jurídica concebida como um estudo das "ordens de conduta", o jurista tivesse dispen­sado tão pouco cuidado à determinação conceitual da conduta como

20. G. CAPOGRASSI - Il Problema deUa Scienza del Diritto, Roma, 1937, pág. 9.

21. V. LoPEZ DE ON'ATE - Oompendio di Filosofia deZ Diritto, Milão, 1944, págs. 33 e segs.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 111

t al, indagando da sua estrutura e significação no conjunto da ati­vidade espiri tual. A essa luz, como reação epistemológica, é até certo ponto compreensível a redução que Cossio pretende fazer do direito à conduta, volatizando o elemento normativo;

O estudo do direito como conduta, quer em têrmos empíricos, à maneira dos realistas americanos, ou segundo o tridimensinnalis­mo de Jerome Hall, ou ainda de conformidade com os pressupostos da teoria ego lógica de Carlos Cossio, representa mais uma demons­tração de que a Ciência Jurídica tem como objeto algo de irredu­tível a simples estruturas formais. Nessas duas or ientações pre­valece, todavia, a preocupação de converter a "conduta jurídica" em algo a se, como se ela, enquanto conduta jurídica, pudesse ser distinta do processo fático-axiológico-normativo, sem o qual me parece impensável a experiência do direito.

VI

A JURISPRUDÊNCIA COMO CffiNCIA HISTóRICO-CULTURAL COMPREENSIVO-NORMATIVA

§ 10. Não obstante o alto valor das contribuições ora lem­bradas, ao lado de outras que traduzem análogo anseio de um "direito concreto", parece-me que, para uma compreensão mais r igorosa e plena do fenômeno jurídico, torna-se necessário não só reconhecer a tríplice ordem de fatôres que constituem a experiência jurídica, mas também determinar a razão e o sentido de suas correlações. É o que penso seja possível fazer-se à luz da teoria tridimensional do direito, tal como a compreendo, ou seja, de ma­neira concreta e dinâmica, consoante o exige a compreensão his­tórico-cultural do direito.

A teoria tridimensional integra-se, com efeito, nos amplos quadros do historicismo contemporâneo, desde que não se entenda por historicismo apenas a teoria que pretende explicar tudo na história, de conformidade com leis imanentes ao seu processo, mas se abranjam, com aquêle têrmo, também as doutrinas que reconhecem ser essencial a dimensão histórica, sem a converter, todavia, em razão ou medida da atividade humana, da qual o direito é uma das expressões fundamentais, inclusive por ser a estrutura primordial e até mesmo rudimentar da sociedade, gra­ças à qual se tornaram possíveis as diversas e mais altas formas de vida, assegurado e garantido o florescer de outras originais manifestações do espírito.

O direito é, pois, uma espécie de experiência cultural, isto é, uma realidade que resulta da natureza social e histórica do ho-

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112 MIGUEL REALE

mem 22, O que exige nêle se considere, concomitantemente, tanto o que é natural como o que é construído} as contribuições criado­ras, que consciente e voluntàriamente se integraram e continuam se integrando nos sistemas jurídico-políticos. Daí se apresentar sempre como síntese ou integração de "ser" e de "dever ser", de fatos e valôres, quer em experiências particulares, quer na expe­riência global dos ordenamentos objetivados na história.

Como é impossível compreender-se qualquer tipo de conduta humana sem referibilidade a um sistema de valôres, torna-se ne­cessário determinar as notas distintivas da experiência jurídica, no quadro genérico da experiência social, como aquela experiência que se caracteriza por se terem estabelecido, historicamente, rela­ções de h'Omem para homem com exígibilidade bilateral de fazer ou de não fazer alguma cousa, num todo de garantida coexistência.

Ora, o emprêgo do têrmo experiência no campo de uma ciên­cia ética, como é o direito, já revela, por si só, o abandono do dualismo kantiano, de conformidade com o qual só se poderia falar, a rigor, de experiência em se tratando do mundo da natureza e de sua explicação 23. Distinta, porém, da experiência natural (con­dicionada por pressupostos lógico-transcendentais) há uma outra forma de experiência, cujas condições de possibilidade são os va­lôres} podendo-se considerar experiência cultural tôda experiência subordinada a pressupostos Q.'ciológicos. Uma das contribuições positivas da Filosofia contemporânea constituiu, exatamente, em procurar esclarecer, especialmente desde Dilthey, o tipo .de uma nova ciência, já vislumbrada por Vico, e fundada no nôvo tipo de experiência que acabamos de configurar, ou seja, caracterizada por uma metodologia própria e segundo categorias que lhe são peculiares.

:f::sse tipo de ciência é, como tôda ciência positiva, uma ciência de realidades, só que de realidade histórico-cultural} na qual os elementos fáticos e as diretrizes ideais se compõem normativamente na unidade de um processus. Realidade, por conseguinte, cuja es-

22. Não se deve pensar que, no reconhecimento de que há uma "natu­reza humana", já esteja implícita uma colocação "jusnaturalista" do direito. O jusnaturalismo surge quando do conceito de "natureza humana", - por se lhe terem conferido tais e quais atributos originários -, se infere um dado conceito de direito. . Quando, ao contrário, se reconhece a essencial histo­ricidade do ser do homem, sem que a cultura se reduza à natureza, só por equívoco se pode falar em jusnaturalismo.

23. Não há dúvida que, em complemento natural à Crítica da Razão Prática, na qual se determinam t ranscendentalmente os imperativos éticos, KANT dedica sua atenção às conseqüências de seu adimplemento ou violação, o que constitui objeto da Metafísica dos costumes. nas suas duas partes complementares, mas, como tem sido justamente observado, a experiência ética apresenta-se, na doutrina de KANT, como experiência derivada ou segunda, pressupondo um dado "inexperienciável", que é o dever como ex­pressão da vontade pura, sendo estudada, em última análise, como experiência natural. Nesse sent ido, v. Ensaio l, supra.

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o DIREITO COMO EXPERleNCIA 113

sência é O processo mesmo em que os três apontados fatôres se co-implicam e se desenvolvem.

Do exposto se ver ifica como o culturalismo, tal como o entendo, distingue-se das posições abstratas do neokantísmo, no qual natu­reza e valor ainda não se dialetizam, apesar de sua essencial com­plementariedade. Quando Lask, Radbruch e seus continuadores se limitam a intercalar a cultura entre a natureza e o va1or, dão-nos uma abstrata e falha noção da realidade cultural, na qual se inte­gra,m, ao contrário, em progressão dialética, os objetos naturais e os objetos valiosos, à medida que a espécie humana, em sua faina histórica, vai ampliando o campo de seus objetos de conhecimento e de seus objetivos ético-existenciais.

Natureza e espírito não se excluem, como o demonstram as expressões de seus co.ntactos e condicionamentos recíprocos, as esferas cada vez mais amplas das "objetivações espirítuais" nos quadrantes da história, nas quais e pelas quais o espírito, que não é senão poder de síntese com liberdade e autoconsciência, vai instituindo formas de vida, polindo e apurando atitudes, edificando instituições e realizando obras, sempre tendo a nature7..a como a base inamovível "originária" de sua atividade criadora.

O reconhecimento dos vínculos dialéticos que prendem a na­tureza ao espírito, e vice-versa, no âmbito das realidades culturais, é essencfal à compreensão do direito, assim como das demais ciên­cias humanas (a História e a Sociologia, inclusive) como "ciências histórico-culturais". Sem aquela dialetização aberta, - visto nun­ca se concluir a cognoscibilidade da natureza, nem jamais se exau­rirem as fontes do espírito, de que promanam os valôres -, sem aquela complementariedade dinâmica, ou se esquematiza a cultura de maneira extrínseca e formal, como se fôsse uma linha de refe­rência entre dois mundos paradoxalmente incomunicáveis (tal co­mo se deu no culturalismo da Escola Sudocidental alemã) 'ou, então não se vai além de uma justaposição no plano metodológico.

§ 11. Dispenso-me de relembrar aqui as limitações do cultu­ralismo neokantiano, apontadas por m~m em outras obras 24, para focalimr a elucidativa colocação do problema feita por um ne'Opo­sitivista, inconformado com os horizontes habitualmente aceitos por seus companheiros de empiricismo jurídico. Refiro-me, mais uma vez, a Norberto Bobbio, não só pelo valor intrínseco de seus escritos, como também porque nêles permanecem vivas e atuantes certas exigências basilares do pensamento contemporâneo, em conflito com as estruturas de sua doutrina jurídica, que êle pre­tenderia ver enxuta e rigorosa, obediente a diretrizes lógico-lin-

24. Cf. especialmente, F'undanwntos do Direito, cit., págs. 180 e segs., F'ilosofia do Direito, 4.' ed., cit., pãgs. 449 e segs. e Teoria, Tridimensional do Direito, cit., págs. 37 e segs.

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IH MIGUEL REALE

güísticas, purificadas de tôda e qualquer interferência axiológica irracional ou inverificável.

Pois bem, segundo Bobbio, a Jurisprudência nã'O pode ser con­siderada nem uma ciê.ncia natural, nem uma ciência histórica, porque só pode ser uma coisa e outra. E histórica, pondera êle com tôda razão, por não ser explicativa, mas sim interpretativa; e é natural, porque é generalizante, e não individualizadora. A pesquisa do jurista, acrescenta, não é separadamente uma ciência histórica e, depois, também uma ciência natural, mas é, ao mesmo tempo) uma coisa e outra) uma vez que os dois aspectos, o da compreensão e o da generalização, são incindíveis, formando am­bos, um com o outro, os momentos essenciais da Ciência Jurídica 25 .

Nessa ordem de idéias, afirma Bobbio que a pesquisa do ju­rista, enquanto destinada ao estudo de um produto do espírito humano, pertence à família das assim chamadas ciências espiri­tuais, de sorte que o seu objeto não pertence ao mundo da natu­reza, mas sim ao da cultura, sendo tal produto espiritual ou cultural, no seu modo de ver, formado por um complexo de regras de com­portamento ou proposições normativas. Por outro lado, a inves­tigação do jurista se funda, em última análise, sôbre a experiência, que dá sentido às normas do direito, de modo que, por êsse prisma, ela pertence à família das ciências empíricas: é que a pesquisa do jurista é hist6rica quanto ao modo de acesso até ao objeto (que é a interpretação) e é de tipo natnralístico, quanto ao fim proposto, que é elaborar conceitos gerais e construir um sistema completo de conceitos jurídicos (generalização e sistematicidade).

Com base nessas considerações, Bobbio pensa poder definir a Jurisprudência como "uma pesquisa das proposições normativas jurídicas, fundada sôbre a experiência, com o escopo de compreen­der o seu significado e de construir o seu sistema" 26.

Abstração feita da discutível e rígida distinção entre ciências generalizadoras ou nomotéticas e ciências ideográficas ou indivi­dualizadoras, proposta por Windelband e Rickert para caracterizar, respectivamente, as ciências naturais e as históricas; e sem entrar na análise da definição de Jurisprudência proposta por Bobbio, vale a pena notar que êle reconhece ser o direito um objeto cultu­ral. Talvez cause estranheza que não tenha, coerentemente, tam­bém reconhecido ser a Jurisprudência uma ciência histórico-cul­tural, mas é que êle não pôde ou não quis admitir, - por estar apegado a uma abstrata tenria da cultura - , que só uma ciência cultural atende ao duplo requisito de ser histórica e concomitan­temente natural. Para chegar, porém, a tal conclusão, teria sido imprescindível abandonar de vez;

25. BOBBlO, Teoria della Scienza Giuridica, cit., pãg. 128. 26. Cf. BOBBIO - op. cit., págs. 200 e segs.

o DIHEITO COMO EXPERlIlNCIA 115

a) a falsa noção de que a cultnra seja algo de contraposto à natureza, quando, efetivamente, esta se encontra na base da­quela 27;

b) a distinção abstrata entre clencia histórica do particular e ciência natural do genérico; quando a "compreensão" é tanto modo de acesso à experiência de um valor singular como de sua sistematização em uma ordem racional.

§ 12. A esta altura, põe-se um problema de máxima impor­tância, para a caracterização da Jurisprudência, que é o reco­nhecimento de que uma pesquisa não deixa de ser de ordem cien­tífica só por ser de natureza axiológica, ou por se basear a sua sistematização racional em pressupostos de valor.

E bem mais generalizado do que se pensa o equívoco de re­,putar-se privativa da investigação filosófica qualquer estudo refe­rido a valôres, apesar de serem os filósofos, na realidade, os herdeiros de um tema que, pelo menos na sua versão atual, teve origem no seio das ciências econômicas, cabendo a Marx o mérito de tê-lo projetado na esfera da problemática existencial, como penso ter demonstrado em ensaios insertos em Pluralismo e Li­berdade 28.

A simples lembrança de que a Economia Política já pôde ser apresentada como sendo lia ciência do valor" devia prevenir-nos contra o grave engano de confundir a problemática filosófica do valor com a problemática de uma experiência que assume tais ou quais características em virtude de ser referida a valôres, ou de integrar valorações em seu processlls.

Por outro lado, é contraditório aceitar a categoria do com­preender ou interpretar (o Verstehen, tal como o empregam Dil­they, Weber, Radbruch, Husserl, Spranger, etc.) para situar as ciências da cultura, em contraposição ao explicar, próprio das ciências da natureza, e depois recusar dignidade científica àquelas investigações a pretexto de envolverem referências axiológicas. Se "compreender", no sentido acima referido, significa "ver algo em suas conexões de sentido", ou "situar algo em função de um complexo convergente de valorações". é deveras absurdo que se aceite aquêle modo de acesso às realidades culturais de nomine e se lhe recuse qualificação científica .. .

27. Cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 4.' ed., cit., págs. 216 e segs. Lembre-se a advertência de SPRANGER: "Tôda cultura radica no seio da natureza e no complexo vital condicionado por ela" (En.sayos sobre la Cultnra, trad. de Amalia H. R aggio, Buenos-Aires, 1947, pá gs. 45 e segs.).

28. Cf. M IGUEL REALE - Plttralismo e Liberdade, São Paulo, 1963. págs. 21 e segs. e 189 e segs .• e "Die Problematik von Recht und Staat in e iner geteiIten Welt" , em Archiv fiir Rechts-und Sozialphilosophie, (AR,SPl, 1965, 41, págs. 227 e segs.

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É claro que também a Filosofia aplica a categoria da com­preensão onde quer que se ponha a problemática axiológica, mas ela compreende os valôres em si mesmos, em seus nexos inter­subjetivos e em suas projeções históricas, tomando-as sempre como condição transcendental da experiência histórica possível. Já o ângulo ou a perspectiva da compreensão, dentro do campus das ciências culturais, é outro: não se opera no plano transcendental, mas no plano empírico das valmações, das exigências valorativas concretas segundo circunstâncias variáveis de lugar e de tempo 29.

As ciências culturais, em suma, são ciências de Tealidade, o que não significa devam ser cegas para os valôres. O que se dá é que, sendo elas ciências positivas, não interpretam o fato social referindo-o à subjetividade transcendental, mas sim como algo dado ou pôsto epistemologicamente ab extra, em relação à pessoa do pesquisador, atendida tôda a condicionalidade espácio­-temporal que delimita a sua capacidade cognoscitiva. Ora, se nas ciências naturais, o objeto é de tal ordem que se torna possível a relativa "despersonalização" do sujeito cognoscente, até o ponto de se preferir substituí-lo por dados e resultados estadeados em máquinas e computadores, - e nesse campo mesmo não é total­mente eliminável a perspectiva do pesquisador -, já nas ciências culturais "a valoração" é um ingrediente, digamos assim, do pró­prio objeto observado. Tal valoração, todavia, não se resume ou se reduz a um ponto de vista pessoal isolado do intérprete, como se fôra fruto de mero capricho ou de opção fortuita, porque cons­titui uma forma de entendimento estimativo graças ao qual o intérprete deve procurar, intencional e deliberadamente, em muitos casos, pôr-se em co.nsonância com a tábua de valôres vigentes na comunidade a que pertence, como acontece na hipótese de inter­pretação das normas jurídicas.

É claro que, dada a apontada interferência estimativa por parte do pesquisador, não podem as ciências culturais ostentar grau de certeza comparável ao apurado nas ciências naturais, onde é possível a contrasteação dos resultados mediante processos de verificação objetiva de ordem analítica ou empírica, mas, - a não ser que a priori se idealize um protótipo de ciência, segundo o presumido modêlo da Física ou da Matemática -, aquela cir-

29. Muito embora mereça ser salientada a orientação seguida por ANGE­LO FALZEA no estudo minucioso que dedicou ao problema da "eficâcia" sob o prisma da Dogmâtica Jurídica, remontando aos pressupostos filosóficos do assunto, -- e é de grande alcance ter reconhecido que o tratamento axiológico da matéria não a subtrai, só por isso, do plano positivo -, notam-se certa ambigüidade terminológica e imprecisão de conceitos exatamente por não ter devidamente atentado aos aspectos diferenciais entre "valor" e "valora­ção". Da! a sua vaga noção de "efeito juridico" como sendo "cada valor jurídico condicionado". (Cf. na Enciclopedia Giuridica, Ed. Giuffré, 1965, val. XIV, o verbete "Efficacia Giuridica", pâgs. 432 e segs.).

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 117

cunstância não é bastante para se negar a teoreticidade das valo­rações metodicamente determinadas e a cientificidade das pesqui­sas histórico-culturais,

Como se vê, é preciso não confundir a atitude valorativa com a mera apreciação subjetiva da realidade social. Como tenho rei­teradas vêzes salientado, "valorar é interpretar segundo prismas de valor", ou, por outras palavras, equivale a "situar ou deter­minar algo em função de suas objetivas conexões de sentido", o que demonstra o caráter objetivo de tôda valoração realizada no plano das ciências culturais, muito embora nestas o ideal da "neu­tralidade científica", entendido como despersonalização do observa­dor, ofereça maiores dificuldades do que no campo das ciências físico-matemáticas, em cujo âmbito, aliás, se reconhece também certo fator de indeterminação devido ao coeficiente pessoal do pes­quisador e às condições em que se desenvolve a análise 30,

Tudo está em reconhecer-se que .não há um modêlo único de ciência, impondo-se, ao contrário, uma multiplicidade de métodos ou de vias de acesso ao real, inclusive no tocante às formas de "compreensão", que não são as mesmas para o sociólogo e para o jurista, cuja tarefa, como veremos, é inseparável do momento essencial da normatividade.

§ 13, Reconhecida a possibilidade de uma expenencia ética ou axiol6gica, marcada pelas sucessivas tomadas de posição do espírito perante a natureza e pela ininterrupta produção de obje­tos culturais, como fruto do poder de síntese e de liberdade que caracterizam a con,sciência humana, - claro resulta que o direito não é senão uma expressão da experiência social e histórica, um dos produtus espirituais de base, cuja dramaticidade espelha e re­flete aspectos essenciais à imagem total do homem.

Em Pluralismo e Liberdade, procurei fixar as conexões essen­ciais entre a Antropologia, a Axiologia e a História, mostrando como o homem, em razão de sua natureza espiritual, isto é, em virtude de sua capacidade de compor em sínteses superadoras os produtos da experiência, se põe, no plano da temporalidade. como valor-fonte ou valor fundante de atitudes e de bens, colorindo axiologicamente o mundo da natureza que o cerca, e convertendo, qual nôvo rei Midas, em valôres (= significações humanas) tudo

30. li; só com naturais "prudências" que se pode falar em "neutralidade" em qualquer domínio cientifico. Não procedem, pelo visto, as dúvidas sus­citadas por A. L. MACHADO NETO (Problemas Filosóficos das Giênci<ls H-unUL­nas, BrasiJia, 1956, pâgs. 65 e segs.) quanto à minha posição relativamente à "neutralidade", necessâria às ciências culturais, e que êle justamente re­clama. (Cf" aliás, minha Filosofia do Direito, 4.' ed., cit., pâgs. 216 e segs.),

Sôbre ti. validade científica dos "juízos de valor", v. EDGAR BODENHEIMER - Treatis9 on Justice, Nova-Iorque, 1967, págs. 44 e segs,

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118 MIGUEL REALE

aquilo em que toca, tangido pela febre de criação e de superamento que é a outra vertente de sua finitude e de sua carência.

É no quadro dessa experiência histórica que se insere a expe­riência jurídica, mas isto equivale apenas a enunciar os dados da questão, a começar pelo reconhecimento de que também as demais formas de atividade humana envolvem sempre três aspectos ou momentos que se complementam e se exigem reciprocamente, visto c.omo há nelas sempre a i11.tencionalidade de algo válido determi­nando a ação idônea para a obtenção de um resultado.

Não cabe, nos limites dêste estudo, analisar como e por que tôdas as formas de conduta são necessàriamente tridimensionais, mesmo porque não faria senão repetir as considerações expendidas sôbre a teoria da conduta, em minha Filosofia do Direito, onde penso ter demonstrado que a experiência jurídica se distingue das demais experiências sociais, - a religiosa, a moral, a econômica, a estética, etc. -, pela nota de bilateralidade atributiva, que traduz o obstinado e renovado esfôrço do homem através da história, no sentido de dar a cada um o que é seu e ao todo o que é do todo 31•

Reportando-me, por conseguinte, ao exposto nas aludidas pá­ginas, posso dizer que a experiência jurídica é a experiência social e histórica enquanto os comportamentos dos indivíduos e dos gru­pos se ordenam normativamente segundo valôres éticos de con­vivência, . a cujo respeito devem se subordinar as partes e o todo, segundo uma objetiva distribuiçã:o garantida de podêres e deveres.

É preciso, em verdade, ter-se sempre presente a distinção es­sencial entre a "conduta jurídica" e as demais modalidades de conduta social, pois aquela não visa à realização de um valor ou de um fim que, de maneira particular, a singularize, como se dá, por exemplo, com a arte em relação ao belo; com a religião rela­tivamente ao santo; com a ciência positiva no tocante ao rigor da verdade verificável; da economia no concernente ao útil-vital, etc. O direito se caracteriza antes por estar indistintamente a serviço de todos ·· os valôres, para que todos os valôres concomitante e garantidamente valham. Daí ter eu escrito que a justiça é o valor franciscano, cuja função é bem servir a todos e a cada um, como instrumento de harmonia social e de paz, na intemerata salvaguarda das subjetividades intocáveis, sobretudo nos momentos de aviltamento ou de guerra, quando parecem entrar em eclipse os valôres do belo, do bem e da verdade 32.

31. Quanto à "trídimensionalidade" como qualidade genérica da condu­ta e à "bilateral idade-atribut iva" como diferença espec!fica da conduta jurídica, v. minha Filosofia do Direito, 4.' ed. , cit., págs. 341 e segs., e págs. 591 e segs. De acôrdo com êsse meu ponto de vista. v. CABRAL DE MONCADA, F ilosofia. do Direito e do Estado, cit. , voI. lI, págs. 127 e segs. e 288 e segs.

32. Sôbre êsse tema, v . meu trabalho "De Dignitate Jurisprudentiae", em Horizontes do Direito e da, História, São Paulo, 1956, págs. 285 e segs.

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Ô DIREITO COMO EXPERI~NCIA 119

Se há algo, pois, de essencial à experlencia jurídica não é a particularidade de um fim próprio, mas antes o iniliminável obje­tivo da realização ordenada de todos os fins que os homens possam se propor, segundo êsse valor comum de infra-estrutura que é a justiça. .

É a razão pela qual o direito nãn pode ser reduzido à conduta como tal, confundindo-se com a ação dirigida para algo que a determina e a torna o que é : só poderá ser vista como conduta enquanto momento inserido na coexistência de tôdas as condutas possíveis. Daí dever-se dizer que o direito é antes a coexistência social ordenada segundo o valor de justiça que assegura a cada conduta particular o seu campo de desenvolvimento próprio na harmonia do desenvolvimento global.

É inerente, pois, à noção de experiência jurídica o conceito de ordenação, de medida, de regra ou norma, no duplo apontado aspecto, de salvaguarda do particular enquanto concomitante sal­vaguarda do todo. Não há, em suma, experiência jurídica ou direito sem o momento essencial da normatividade, que é o mo­mento em que cada conduta deixa de ser analisada apenas . em função do que ela é e representa, em si e de per si, para receber a forma e a garantia que lhe cabe no todo social: é só em 'razão dêsse fim de coordenação geral da coexistência que o direito cuida dos comportamentos do cientista, do sacerdote, do artista, do po­lítico, etc.

Essa experiência normativa, enquanto se objetiva em coman­dos, ou melhor, em diretrizes de conduta, e enquanto, por conse­guinte, se ordena e se estrutura segundo um sistema atributivo e coerente de competência, de podêres, de faculdades, obrigações e deveres, constitui o campo próprio de pesquisa do jurista: é o que poderíamos denominar (( ordenarnento jurídico", consoante ex­pressão. consagrada, desde que se reconheça a sua complexa e multiforme realidade histórico-cultural.

O "ordenamento jurídico" é, em suma, a experiência jurídica tôda sub specie norrnativitatis, isto é, integrada concretamente em uma unidade orgânica de conexões de sentido e de suas correspon­dentes formas de comportamento, não sendo o "sistema legal" senão uma expressão dessa totalidade de sentido.

§ 14. Se.ndo assim, a pesquisa do jurista, histórico-cultural como é, vale-se da compreensão para, através de dados axiológicos, captar o "sentido normativo" dos fatos, e, nesse ponto, se distingue da pesquisa do sociólogo, o qual não vai além do plano da mera verificação das conexões de sentido: a do jurista, ao contrário, é necessàriamente compreensivo-normativa e não puralnente com­pr eensiva.

A natureza "compreensivo-normativa" da Jurisprudência de­corre da necessidade que o jurista, enquanto jurista, tem de optar,

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120 MIeUEL REAL!>

em cada' momento de aplicação normativa, segundo o sentido vetorial inere.ntea' cada experiência axiológica; assim como, de início, teve de optar o legislador no instante originário da emanação da norma de direito, elegendo uma dentre as múltiplas soluções possíveis.

Se, nos domínios da Sociologia Jurídica, não se busca senão compreender as conexões de sentido do fato social enquanto subor­dinado a esquemas axiológico-normativos, a fim de se determinarem as leis de estrutum e de condicionalidade empírica do direito (o que a torna uma ciência puramente compreensiva) a tal ponto que alguns autores se equivocam equiparando-a a uma ciência empí­rico-natural) 33 o .. . mesmo não acontece na Política do Direito e na Jurisprudência que se constituem como ciências compreensivo­-normativas, ou seja, como estudos de um ordenamento no seu duplo significado lógico e deontológíco: como sistema coerente de proposições lógicas e como sistema de diretrizes destinadas a di­rigir os · comportamentos sociais.

; ~ . - .

Por · outro lado, o jurista procura se elevar à sistematizaçã'O racional das diretrizes resultantes das tomadas de posição axioló­gicas, isto é, ao ordenamento jurídico, que é, repito, a expressão normativa da experiência jurídica. A Jurisprudência ou Ciência Dogmática do Direito é, assim, a ciência histórico-cultural que tem como objeto a experiência social na medida e enquanto esta nor­mativamente se desenvolve em função de fatos e valôres, para assegurar, de maneira bilateral-atributiva, a realização ordenada da .convivência humana 34.

Objeto da · Ciência Jurídica não é, por conseguinte, o complexo de significados contidos na linguagem do legislador, porque êsse não é senão um dos momentos, de fundamental importância, sem dúvida, mas sempre momento da experiência · jurídica, pressupondo, quando mais não fôsse, a qualificação legitimadora do ato de inter­pretar e do objeto interpretável, tudo no âmbito do ordenamento onde aquela linguagem se revela juridicamente significante.

:É a razão pela qual me parece lícito e necessário afirmar que o objeto da Ciência Jurídica nunca pode ser uma ou mais normas erradicadas do contexto histórico-social, que lhes dá vigência, efi­cácia e fundamento, - as frês asas com que se projeta a expe-

33. ::f':sse é ° caso, por exemplo, de NORBERTO BOBBIO, para quem "a ciência empíríca que estuda naturalisticamente (isto é, com o método próprio das ciências naturais) a experiéncia histórica ... é a Sociologia" (v. Teoria della Scienza Giuridica, cit., pág. 15).

34. Sôbre a nota de "bilateralidade atributiva " como essencial à expe­riência jurídica, v. MIGUEL REALE, Filosofia do Direito, 4.' ed., cit., págs. 590 e segs. Quanto ao valor transcendental da altm'ida<ie, para fundação ria experiência jurídica, v. LUIGI BAOOLINI, Diritto e Scienza Giuridica nella Crí­tica del Concreto, cit., págs. 49 e segs.

o DIREITO COMO EXPERltNCIA 121

nencia do direito na história 35 -r, mas deve ser antes visto como o complexo das normas em função das sittwções normadas) ou seja, como a experiência jurídica mesma enquanto se tonla plenamente objetiva como ordenamento jurídico.

O "ordenamento jurídico", que se não confunde com o mero sistema das regras de direito em vigor, é, pois, a experiência jurídica mesma na medida e enquanto se objetiva e se expressa num sistema de normas, realizando-se através .destas uma inces­sante integração de fatos segundo valôres.

Desde a "experiência jurídica pré-categorial", a que já me referi 36, vista hipoteticamente em projeção histórica, até às mais desenvolvidas formas atuais da experiência jurídica, ordenada cien­tificamente em uma gradação racional de conceitos, regras, insti­tutos e sistemas, fácil é perceber como a atividade do legislador e do jurista, assim como o aprimoramento mesmo da consciência jurídica comum, veio constituindo um todo complexo de objetiva­ções normativas, a que corresponde uma multiplicidade de situações subjetivas: é a experiência jttrídica como ordenamento racional e objetivo, no qual e pelo qual se estadeiam, como afirmações do ser do homem, as projeções históricas de suas intencionalidades.

:É para essa objetivação normativa que volve fundamental­mente a atenção do jurista, visando à atualização garantida dos valôres que nela se consagram e tais como nela· se consagram. Já o "político do direito" ou o legislador, olhos atentos para a experiência jurídica em geral, cuidam de aperfeiçoar o ordena­mento em vigor, para adequá-lo às novas exigências da sociedade. É dessa dupla compreensão normativa, "de lege lata ac de lege ferenda" que se alimenta e se enriquece o saber do jurista.

35. Talvez seja oportuno observar que essa imagem é-me inspirada por MAX MAYER quando diz que aquelas três formas ou expressões de "validade do direito" esvoaçam, como pássaros assustados, de um campo a outro do direito. " (Cf. Filosofia do Direito, ed. cit., págs. 507 e segs., e MIGUEL REALE, Fundamentos do Direito, São Paulo, 1940, págs. 171 e segs.) No seu relati­vismo não podia êsse mestre do culturalismo neokantista nem sequer se propor o problema da possível "direção" dêsse vôo. A meu ver, tal vôo, por mnis variaria e variável que seja, para ser jurídico, não pode jamais ultrapassar os horizontes da Justiça, traçados pela projeção irradiante do valor fundamental da pessoa humana.

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Ensaio VI

ClENCIA DO DIREITO E DOGMÁTICA JURÍDICA

SUMÁRIO: I - Os dois momentos da pesquisa juridica. II -Momento normativo e momento dogmático. III - Sistema e

problema. IV - Problemática do "dogma" jurídico.

I

OS DOIS MOMENTOS DA PESQUISA JURIDICA

§ 1. Não é de mero interêsse acadêmico o problema concer­nente à posição da Dogmática Jurídica em confronto com a Ciên­cia do Direito, constituindo, ao contrário, um dos assuntos mais merecedores de atenção por parte dos cultores da Epistemologia Jurídica, inclusive para se pôr côbro às profundas discrepâncias terminológicas e conceituais que separam os juristas, ou, - quan­do mais não seja, - para nos dannos conta das perspectivas determinantes de muitos antagonismos. Já é meio caminho anda­do no sentido da objetividade científica poder-se compreender a razão de conclusões divergentes, graças à sua redução a originárias discriminações terminológicas.

É deveras sintomático que o conceito de Dogmática Jurídica tenha se convertido num dos mais problemáticos e polêmicos da Epistemologia Jurídica contemporânea, mas tais contrastes, - a começar pela conveniência ou não de manter-se ainda aquela tradicional denominação, - traduzem apenas a crise por que passa a Ciência do Direito quanto à elaboração das estruturas normati­vas que devem corresponder à sociedade contemporânea e ao "Es­tado da Justiça social".

Abstração feita de discrepâncias de menor relêvo, penso sejam fundamentalmente quatro as posições atribuíveis à Dogmática Ju­rídica, em confronto com a Jurisprudência, a saber:

a) há os que, pura e simplesmente, a repudiam, conside­rando-a correspondente a uma fase superada da Ciência do Di­reito, quando ainda prevalecia uma compreensão não problemática e aberta da experiência jurídica;

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124 MIGUEL REALE

b) há os que reduzem o seu conceito, convertendo-a em Arte ou Técnica Jurídica, mantendo-se a antiga denominação ape­nas pelo reconhecimento de que os "processos técnicos-operacionais" do jurista se subordinam, necessàriamente, a quadros normativos predeterminados, ou à "linguagem do legislador";

c) há os que, ao contrário, a largam o seu conceito, identi­ficando-a com a Ciência do Direito, a tal ponto que dizer Juris­prudência equivaleria a dizer Ciência dogmática do Direito.

d) e há, finalmente, a possibilidade de concebê-la como mo­mento culminante da Ciência do Direito, enquanto esta determina e sistematiza os conceitos necessários à compreensão dos modelos normativos -que ' estruturam a experiência jurídica, bem como indaga das condições de realização dêsses modelos nos diversos campos em que se desenvolve a atividade do advogado e do juiz I.

Reconheço que a discriminação supra é por demais esquemática e que cada uma das posições apontadas comporta variantes e par­ticularidades de singular alcance, como teremos a oportunidade de ir apontando ao longo dêste trabalho, pois nem sempre as mesmas conclusões se subordinam a idênticos pressupostos doutrinários.

Da atitude negativista cuidarei em parágrafo autônomo do presente ensaio, parecendo-me deva dar preferência à colocação do problema feita por aquêles que, procurando se achegar às cha­madas ciências naturais, distinguem entre Ciência do Direito e Dogmática Jurídica, considerando a primeira em têrmos de relações fáticas, de tipo sociológico; e reputando a segunda uma arte ou uma simples técnica . .

"A Dogmática Jurídica", dizia por exemplo, Pedr'O Lessa, mestre da geração · positivista no Brasil, "encerra um conjunt'O de preceitos, f'Ormulados para a realização de fins determinados; é a explanaçã'O de uma arte. Confundi-la com a ciência importa desc'O­nhecer um dos mais vulgares elementos de lógica". Caracterizando a Ciência Jurídica c'Om'O aquela que "tem por objeto o conjunt'O orgânico das condições de vida e desenvolviment'O d'O indivíduo e da sociedade, dependentes da vontade humana e que é necessário sejam garantidas pela fôrça coercitiva d'O Estado", concluía o citado pro­fessor dizendo que "as leis devem ser formuladas de acôrdo com a teoria científica do Direit'O" 2.

1. Quanto à acepção que dou à palavra "rrwdêlo", v. infra, Ensaio VII, onde a correlação entre os conceitos de estrutura, rrwdêlo e jurl{'ão é analisada em 'seus pontos capitais. Para melhor compreensão do objeto dêste Ensaio, bastará, por ora, ter presente qUe "o modêlo juridico é uma, estrutura de tipo norma,tivo que objetiva uma classe de comportamentos futuros" .

2. PEDRO LESSA - Estudos de Filosofia do Direito, 1911, págs. 46 e segs. Sôbre a posição do mestre da Faculdade de Direito paulista, v. meu livro Filosofia em São Paulo, cit., págs. 117 e segs.

o DIIlJ;;I'l'O COMO EXPERIÊNCIA 125

Na mesma ordem de idéias, outro ilustre jurista pátri'o, Pontes de Miranda que pretende dar cunho essencialmente científico-natu­ralista às ~uas pesquisas, depois de afirmar que "para a ciência do Direito o que importa é o Sein) 'O ser, e não o Sollen, 'O dever ser", declara que "tOOa a preocupação do cientista do Direito deve ser a objetividade, a análise dos fatos, a investigaçã'O das relações sociais", e que na Ciência do Direit'O - inconfundível com a Dogmática Jurídica, que seria a pesquisa dos preceit'Os e principi'Os em funcão de sua discriminação ou significaçã'O lógicas - deve primar -o método indutivo das ciências naturais, reservando-se à dedução um papel posterior e secundário" 3.

Por êstes dois exemplos verifica-se que, quando se concebe a Jurisprudência como "uma ciência de fatos ou de relações sociais", a Dogmática Jurídica se põe, ou como arte ou como técnica, ou com'O pesquisa de preceitos e de princípios lógicos em funçã'O dos diversos campos da indagação fática.

Pode ocorrer, todavia, que se chegue a análogo resultado sem se conferir à Ciência do Direito a .determinaçã'O de princípios por via indutiva. E 'O que ocorre, p'Or exemplo, quando se atribui à Teoria Geral d'O Direito a tarefa de elaborar as "estruturas nor­mativas" do direito, conferindo-se, ao c'Ontrári'O, à Dogmática Ju­rídica a tarefa auxiliar ou complementar de interpretação e aplica­ção daquelas estruturas, "a partir da linguagem do legislador". Em tais circunstâncias, muito embora ainda se fale em Ciência do Di­reito, é esta mesma que já se reduz a uma técnica.

De modo geral, tôdas as doutrinas que pretendem explicar a experiência jurídica segundo m'Odelos inspirados nas ciências na­turais ou mesmo em racionalizações de tipo matemático, acabam concebendo a Dogmática jurídica em têrmos instrumentalistas ou operacionais, como simples técnica, ou teoria complementar, disci­plinadora da mais idônea e eficiente aplicação dos modelos jurí­dicos oferecidos pelo legislador.

§ 2. Quando, ao contrário, dá-se ênfase à natureza precep­tíva, lógica ou ética, da Ciência do Direito, - reservando-se âo sociólogo a tarefa de estudar como é que o direito é e se desenvolve como fato social, - afirma-se a tendência no sentido da identifi­cação, pura e simples, da Jurisprudência com a Dogmática Jurí­dica, ou, pelo menos no da sua íntima e essencial correlação.

Entre os escritores filiados à Escola Técnica jurídica ou à Teoria Pura do Direíto, p{)r exemplo, encontra-se mais ou menos pronunciada a identificação entre a Ciência Jurídica e a D'Ogmá­tica Jurídica, dizendo êles, em resumo, que a Ciência Jurídica, -

3. PONTES DE MIRANDA - Sistema, de Ciência Positiva do D ireito, Rio, 1922, vol. l, págs. 474 e 481.

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126 MIGUEL REALE

na acepção rigorosa desta expressão, é a Clencia dogmática e sistemática do · direito, tal como resulta dos enunciados normativos, realizando-se através de três tempos: a interpretação, a construção e a sistematização.

Compreende-se bem esta posição especial em virtude da dis­tinção feita entre o direito como fato social e o direito como norma. No primeiro caso, o fato jurídico constitui objeto da Teoria Social do Direito (Jellinek), da História do Direito (Sommer), da Socio­logia Jurídica, etc.

A Ciência Jurídica propriamente dita não deveria cogitar, por conseguinte, da série causal dos fatos jurídicos, ou de seus valôres determinantes, mas tão-somente do direito enquanto sistema lógico de normas de direito.

Por outras palavras, a Ciência Jurídica ocupar-se-ia tão-so­mente com a ordem jUTídica positiva, na medida e enquanto con­substanciada num sistema coercitivo de normas, ficando o seu cam­po de pesquisa circunscrito ao direito objetivo em vigor, ao que deve ser como expressão do direito positivo, heteronomamente vá­lido per se, e não ao que deve ser eticamente "in abstracto"; ao constituído e não ao constituendo. Segundo tal doutrina, portanto, a Ciência Jurídica por excelência é a Dogmática Jurídica, a qual sempre pressupõe, de maneira imediata, um 'Ordenamento jurídico, não só por ser êste recebido como um dado ou pressuposto impres­cindível a seus enunciados e sistematizações lógicas, mas também por ser-lhe conferido um valor ético autônomo, insuscetível de ser visto como simples aplicação de normas de outra ordem, tais como as morais ou religiosas.

Com essa orientação se afina a Escola Analítica anglo-ame­ricana, na qual,< - antecipando-se a algumas cortantes distinções kelsenianas entre os campos do "jurídico" e do "metajurídico", -já se afirmava, com John Austin, não sÓ a diferença entre o ponto de vista da Moral e do Direito ("uma lei, no dizer dos partidários de Austin, ainda que injusta, nem por isso deixa de ser lei") mas também entre a Legislação e a Ciência Jurídica: à primeira e tão-somente a ela, deveria caber a análise da conveniência moral ou política dos preceitos legais, visando achegá-los às exigências da justiça; à segunda competiria, ao contrário, receber o direito positivo "como um puro fato" para dêle objetivamente serem infe­ridas as suas conseqüências. No âmbito do "Common Law", Roscoe Pound expunha bem a rígida linha demarcatória posta pela Ana­lyticaZ School: ((lawwas for courts, morals were for legislators; legal pre-eepts were for jurispTudence, moral principles were for ethics" 4. É claro que, segundo tal concepção, a Dogmática Jurídica,

4. RoSCOE POUND - Law and Morals, 2." ed., Londres, 1926, pág. 44, Cf. J. C. GRAY - The Nature and Sources of the Law, 2.' ed., N. York, 1948, págs. 90 e segs.

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o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 127

identificada com a Ciência do Direito, punha o sistema legal como um todo em si pleno e concluso, tanto sob ° prisma lógico, como sob o ângulo ético, de t al modo que ao jurista ficava reservada a tarefa estrita de interpretar, sistematizar e aplicar a norma esta­belecida por via de autoridade. Daí a denominação de "Dogmátka" por se fundar em preceitos postos graças aos ditames de uma autoridade hwnana superior) anàlogamente aos da Teologia, postos ou revelados por Deus.

Essa maneira de ver, a única aliás compatível com qualquer modalidade de formalismo jurídico, - e na qual, como veremos, há um elemento essencial a ser preservado, - encontrou número avultado de adeptos, até mesmo no meio de culturalistas, como é o caso de Gustav Radbruch. Para o eminente mestre alemão a verdadeira e característica Ciência Jurídica continua sendo essen­cialmente sistemática e dogmática, "a Ciência do sentido objetivo do direito, ou de qualquer ordem jurídica positiva". A seu ver, teria ela as seguintes características:

l.ç - o seu objeto é constituído pela ordem Juridica positiva. pelo direito positivo;

2.Q - não se ocupa com a vida do direito; ocupa-se com as normas jurídicas, e não com outros fat'Os que possam interessar ao mundo do direito; .

3. Q - é uma ciência do sentido objetivo e não do sentido sub­jetivo do direito 5.

§ 3. Parece-me haver exagêro de parte a parte, tanto entre os que identificam a Ciência Jurídica com a Dogmática Jurídica, quanto entre os que atribuem à Dogmática um pape] secundário, de mera aplicação de elementos fornecidos pela pesquisa científica dos fatos jurídicos. A concepção da Dogmática Jurídica como uma "arte" ou uma "técnica" complementar impede-nos a compreensão de seu verdadeiro objeto, sendo tão errônea como a teoria que a identifica com a Ciência do Direito, reduzindo o âmbito desta ao momento da normatividade.

Cumpre distinguir, com efeito, dois momentos na pesquisa científica do direito, um em conexão ou continuidade lógica com 'O outro, tão certo como, em se tratando da experiência jurídica, os conceitos de estrutura, de rnodêlo e de função se exigem reciproca­mente: há o momento abstrativo de determinação dos pri,ncípios e estruturas, em razão dos quais os modelos jurídiCOS são pensados em unidade sistemática, com sentido geral de realizabilidade; e há o conseqüente momento de atualização funcional daqueles modelos,

5. RADBRUCH - Filosofia do Direito, trad. de Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, págs. 158 e segs.

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128 MIGUEL REALE

mediante técnicas e processos destinados a interpretá-los e aplicá­-los nos distintos campos de s'ua incidência.

Êsses dois momentos - o de abstração conceitual e o técnico ou operacional - , só podem ser separados por abstração, pois, na realidade, tão intimamente se ligam que não há interpretação e aplicação de um texto particular de lei que não implique o sentido da totalidade do ordenamento, nem apreciação de um fato que ju­ridicamente não se resolva em sua qualificação, em função da tipicidade normativa que lhe corresponde. Eis por que dou um sentido relativo à distinção de Gény entre o "dado" e o "cons­truído", nem posso concordar com Karl Olivecrona quando exagera o elemento "imaginário" ou "ficcionista" do direito, apesar de pre­tender estudá-lo como "simples fato". O I'construído" ou o "ima­ginário", que se revela no mundo jurídico, não equivale a "ima­ginoso" ou a !'arbitrário", pois a estrutura formal e normativa, inerente ao direito, . corresponde necessàriamente a um complexo de exigências axiológicas e de condicionalidades fáticas, cuja incessante evolução e correlação coincidem com o co.nteúdo mesmo das nor­mas de direito, vinculando necessàriamente a Técnica Jurídica a essas dimensões inilimináveis da experiência.

Parece-me, pois, assistir razão àqueles que reconhecem serem as estruturas 'lógicas do direito correlatas de estruturas 6nticas, ou em outras palavras, que tôda solução normativa, - embora não resulte, nem possa resultar, automática e objetivamente, de meros dados empíricos, - enc'ontra-se como que prefigurada ou premo 1-dada, em seus lineamentos gerais, no seio da experiência. Não basta dizer que há sempre um "dado empírico", do qual o legislador deva partir, como é óbvio, para formular a norma disciplinadora de cada tipo ou classe de conduta possível, devendo-se reconhecer que em t6da ação · social relevante já é inerente certa estrutura típica, à qual correspon.de um leque de soltuções normativas possí­!leis, delimitando, pelomeno8 tendencialmente, a decisão eficaz do (egislador. Poder-se-ia dizer que a norma é condicionada por um "quid", que resulta da "natureza das coisas", da "lógica interna dos fatos", do "imane,nte sentido axiológico da experiência", o que, no fundo, não quer significar senão a existência na práxis de estruturas válidas como (ta priori" material das construções teórico-práticas do legislador e do jurista 6.

6. Da vasta bibliografia existente sôbre a "natureza daji coisas" no Direito lembro, como sínteses exemplares das doutrinas fundamentais, os estudos de WERNER MAIHOFER - "Droit naturel et nature des choses", no Archiv Nr Rechts-und Sozialphilosophie, 1965, LI, 2/3, págs, 233 e segs., e de MICHEL VILLEY - "Historique de la nature des choses", nos Archives de Philosophie du Droit, 1965, X, págs. 267 e segs. Foram ambos escritos para () colóquio realizado em Toulouse, sôbre o tema em questão, em setembro de 1964. Deixo aqui consignados meus agradecimentos ao doyen G, MARTY pelo convite que me fêz para participar do certame, tendo sido impedido

o DIREITO COMO EXPERltNCIA 129

Assim sendo, a Ciência Jurídica tem como ponto de partida o mundo dos fatos, mas não para dêles inferir ((efeitos normativos", _ o que seria aplicar a indução no Direito segundo critérios vá­lidos na condicionalidade própria das ciências naturais - mas sim para captar o sentido normativo dos fatos, tarefa só possível me­diante a análise fenomenológica a partir do enlace básico fato-valor, em função do qual se estrutura o <'tmodêlo normativo".

Embora as valorações não possam, em suma, ser consideradas independentes dos fatos, pois há sempre uma série de condições como "substractum" dos preceitos jurídicos, parece-me fora de dúvida a impossibilidade de passar-se do mundo dos fatos ao mundo do dever ser do direito. A norma jurídica não resulta diretamente dos fatos, como tais, porquanto depende da atitude espiritual as­sumida pela sociedade em relação aos fatos por ela valorados, dêsse ato axiológico resultando uma escolha ou opção, uma atitude de adesão ou de repulsa que se traduz em enunciados preceptivos con­sagradores da escolha feita. Os fatos, por conseguinte, podem ser considerados uma condição essencial à gênese da· regra de direito, como é condição não menos essencial a existência de valôres, os quais atuam sôbre a psique humana determinando a eleição de uma dada forma de organização ou de conduta, como sendo me­recedora de garantia específica : a rigor, no mundo do direito não há que falar em f ato que se não correlacione com um ou mais va16res, tal a correlação existente entre êsses dois elementos, cuja síntese se processa segundo uma ordem normativa 7.

de preparar, em tempo oportuno, o prometido trabalho sôbre a natureza das coisas na Filosofia do Direito latino-americana, em virtude de, como Secre­tário da Justiça do Estado de São Paulo, ver-me absorvido pelas tarefas resultantes da revolução de 31 de março.

O renascimento do interêsse atual pelo problema é, como se sabe, devido sobretudo ao pequeno ensaio de G. RADBRUCH - Die Natur der Sache aIs juT'is­tische Denkform, 1948, traduzido para o castelhano, com elucidativa intro­dução de ERNESTO GARZÓN V ALD}l;S, Córdoba, 1963.

Para uma compreensão global do assunto, v. ALESSANDRO BARATTA "Natura deI fatto e diritto naturale", na Rw. Int. FiZ, deZ Dil'itto, 1959, fasc. II-III, págs. 177 e segs.

Não é demais acentuar que se equivocam quantos confundem a teoria da "natureza das coisas" com a do "direito natural"', pois não faltam autores para os quais aquela expressão traduz um sentido imanente ao fenômeno jurídico, em sua positividade, sem qualquer referência a valôres ideais Oll

transcendentes. Volverei ao assunto, ao tratar da experiência jurídica como sistema de estruturas e modelos. (Cf. Ensaios XI e XII infra),

7. Daí o equívoco do antigo positivismo jurídico ao afirmar, como no caso de BRUGI, que "no vasto domínio da Jurisorudência, os fatos são a gênese das normas jurídicas". Introduzione alie Scienze Giur idiche e SociaH, Flo­rença, 1891, pág, 16. Quem admite que do fato puro e simples se origina o direito, não pode deixar de aceitar as conclusões de ESPINOSA sôbre o "di­rei~o natural" que têm os peixes maiores de comer os menores, chegando, aSSlm, à destruição do próprio direito. Cf. PEKELIS, II Dirltto corrt.e Volo1ttà Qostante, Pádua, 1931, pág, 78.

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§ 4. Como já foi dito, a normatividade é da essência da experiência jurídica, representando as regras de direito a possível e necessária composição das fôrças fático-axiológicas atuantes em cada época histórica, e, mais particularmente, em cada campo de conduta social, de tal S'orte que, uma vez posta a norma, esta cons­titui o horizonte de validade e de eficácia dos atos compreendidos no seu enunciado. Não é, pois, a Ciência do Direito a teoria da conduta como tal, mas dêsse complexo unitário formado pela inte­gração de fatos e valôres em renovadas sínteses normativas, o que tudo demonstra ser a realidade do direito essencialmente histórica ou de processU8.

Pois bem, se a Teoria Geral do Direito tem por 'Objeto tôdas as formas de conduta humana dotadas de qualificação jurídica, a Dogmática Jurídica, como especificação daquela ordem de pes­quisas, indaga da conduta humana "sub specie normativitatis", isto é, enquanto e na medida em que ela é qualificável em função de preceitos normativos vigentes, isto é, em função dos "modelos jurí­dicos" consagrados no ordenamento em vigor.

É essencial distinguir, nesta ordem de estudos, - 'o que nem sempre se faz com o devido rigor, - entre a qualificação jurídica antes e depois de formulada e vigente a regra de direito.

Assim, quando se diz que um tato recebe a qualificação jurídica (valor jurídico) que lhe é conferida por uma norma em vigor, o problema é resolvido "ex post norma"} isto é, sob a perspectiva da regra já posta, o que equivale a dizer, do ponto de vista da Dog­mática Jurídica, cujos raciocínios se desenvolvem tendo o ordena­mento jurídico como "lugar geométrico" da validade de seus juízos.

Quando, ao contrário, se aprecia a experiência jurídica sob o aspecto genético, ou seja, como série de fatos e valorações que cul­mina na estatuição de uma norma de direito, a qUalificação jurí­dica antecede à norma e nela se objetiva: essa perspectiva, que é a pertinente à "nomogênese jurídica", constitui objeto de estudo da Filosofia do Direito e da Política Jurídica, bem como da Teoria Geral do Direito, cada uma delas sob seu respectivo prisma.

Interessa, por certo, à Dogmática Jurídica o momento nomo­genético, por suas implicações com o ato interpretativo, como ve­remos, de maneira especial, no Ensaio VIII, mas não como seu pro­blema próprio: ela colhe, por assim dizer, a experiência juridica após declarada e posta a norma na unidade do ordenamento, espe­cificando, dêsse modo os resultados já alcançados ao nível da Teoria Geral do Direito.

A Dogmática Jurídica, portanto, deve ser entendida como espe­cificação da Teoria Geral do Direito, correspondente ao momento em que a experiência jurídica se põe como efetivo sistema jurídico, enquanto, por conseguinte, o fato social se subordina a esquemas ou modelos normativos em função de valorações já positivadas no todo do ordenamento. A Dogmática Jurídica ou Teoria Dogmática

o DIHEITO COMO EXPERI ÊN CIA 131

do Direito equivale, em suma, à teoria do direito como ordena­mento "in acto", implicando a unidade daqueles dois aspectos dis­criminados no início dêste parágrafo, isto é, o da elaboração dos princípios compreensivos do ordenamento, e o da sua atualização como experiência concreta: nesse contexto, a Dogmática Jurídica evidentemente não se exaure na tarefa, embora relevantíssima e decisiva, de interpretação, construção e sistematização dos modelos jurídicos, ou na análise de todos os processos que integram a Técnica Jurídica, porque implica e pressupõe a determinação de seus prin­cípios constitutivos, na condicionalidade do ordenamento vigente, tudo, aliás, sem perda de contacto, tal como foi tantas vêzes acen­tuado neste livro, _ com os pressupostos transcendentais ou filo-sóficos da experiência jurídica.

A natureza compreensivo-i/lormativa da Jurisprudência revela bem como os dois apontados momentos necessária e unitàriamente se integram, sendo o primeiro destinado a ordenar o fato social segundo "modelos normativos", isto é, em razão das conexões de sentido ou dos imperativos axiológicos dominantes no seio de uma comunidade, em dada conjuntura espácio-temporal, consoante de­terminado peja Política do Direito e peja Teoria Geral do Direito; o segundo destinado a aplicar os "modelos normativos", em tôda a sua projeção lógica e axiológica, mantida a sua permanente cor­relação com os fatos e valôres, em função dos quais os mesmos têm vida.

II

MOMENTO NORMATIVO E MOMENTO DOGMNTICO

§ 5. A exposição feita nos parágrafos anteriores significa que tôdas as formas de experiência jurídica têm sempre e invarià­velmente um momento .normativo, momento êste que aos olhos do jurista, isto é, do especialista responsável pela prática do Direito, se põe como momento dogrnático, visto não poder êle prescindir dos modelos e estruturas postos por atos de autoridade. Eis uma questão que exige maiores esclarecimentos.

Cabe ponderar, desde logo, que têm sido frustradas ou mar-ginais tôdas as tentativas de desvincular 'O Direito de seu caráter imperativo ou obrigatório, muito embora o lavor crítico tenha logrado o resultado altamente positivo de libertar a imperatividade jurídica de sua feição voluntarista, de manifesto e antigo feitio antropomórfico. À medida que se acentua, através da história, a despersonalização ou a objetivação do Poder, o Direito vai também perdendo, concomitante e progressivamente, a sua expressão de comando, ligada aos primórdios da experiência jurídica. Para não dar senão um exemplo dessa despersonalização progressiva da im­pel'atividade, bastará pensar nas mutações operadas em matéria de Hermenêutica Jurídica, a qual, de busca inicial "da vontade do monarca ou da ordenação do rei", passou a ser procura da "intenção

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132 MIGUEL REALE

do legislador", convertendo-se depois em interpretação da "vontade objetiva da lei", para, já agora, se pôr como indagação do sentido de uma norma no c'Ontexto do ordenamento.

Não obstante êsse e outros exemplos, seria, todavia, temerário afirmar-se que o processo de objetivação do Poder e do Direito já tenha atingido a sua fase culminante, ou que algum dia possa vir a ser considerado concluso. Fácil seria demonstrar que a vida jurídica oferece, a todo instante, períodos de retôrno ou de re~ trocesso a formas inferiores do «direito-comando", jungido direta e concretamente ao querer empírico de um chefe, assim como não faitariam provas da persistência, como uma realidade da qual não se dão conta os cultores da Jurisprudência, da sempre viva com­prensão popular do direito como um conjunto de puros manda~ mentos de autoridade.

Um jusfilósofo contemporâneo, Pietro Piovani, em estudo sub­til, no qual pretende demonstrar o superamento da Dogmática Jtt­rídica, pelo advento da Problemática Jurídica, refere-se, com ironia, ao "complexo do Sinai", para indicar a compreensão do direito em têrmos de ditame do legislador 8 .

Certo é, porém, que se a imperatividade se expurga cada vez mais de seus resíduos animistas, nem por isso ela desaparece do cenário jurídico, para dar lugar a meras relações objetivas, ad in~tar dos nexos discerníveis no mundo da natureza, dotados de mero cunho indicativo, ou de pura funcionalidade técnica e operacional. A despsicologização do poder e da imperatividade, digamos assim, é um fato inegável, mas não me parece possível, pelo menos a esta altura da evolução histórica, compreender-se a experiência jurídica como um fenômeno espontâneo de realização de fôrças imanentes, suscetiveis de estadeamento quantitativo e matemático. Nem, por outro lado, se poderá crer, com desabusado otimismo, que o su­ceder-se das leis e dos regulamentos seja o fruto da intrínseca projeção dos valôres de justiça, sem a interferência decisória e de­cisiva do Poder.

Miguram-se-me ilusórias, não passando de concepções intelec­tualísticas e abstratas, que não raro ocultam ou subentendem mo­tivos ideológicos de um idealismo ingênuo, os esfôrços até agora despendidos para apresentar-nos a nornogênese jurídica como um lírico auto-revelar-se de uma "idéia de direito", como se esta se atualizasse Objetivamente, em si e de per si, dispensada tôda e qualquer interferência de atos opcionais de autoridade, quer seja esta representada pelos órgãos do Estado, que emanam as leis, quer se manifeste através de reiteradas e constantes opções anônimas, tais como as que põem in esse as regras costumeiras.

8. PIOVANI - "Dommatica, Teoria Generale e Filosofia deI Diritto", na Riv. lnt. di Fil. deZ Diritto, 1963, fase. l, pág. 41.

o DIREITO COMO EXPERleNCIA 133

A meu ver, o constituir-se de uma regra de direito pressupõe sempre um ato de escolha e de decisão, (singular, ou coletivo; anônimo ou de um órgão determinado), cujo efeito é a obrigatorie­dade de uma dada via ou diretriz de ação dentre as múltiplas vias e diretrizes possíveis, no quadro das implicações fático-axiológicas próprias de cada conjuntura histórica 9.

Se um plexo de valorações confere a um ou a mais fatos so­ciais uma significação relevante, econômica ou ética, de tal modo que se reconheça ser necessário respeitá-la como um bem social, munindo-a de meios idôneos e adequados à sua preservação, não há como contestar a correlação essencial ou a íntima complemen­tariedade existente entre a sanção, como ato decisório que declara a regra, e a sanção, como forma específica de sua garantia. É em razão dêsse duplo aspecto da sanção que o momento normativo se converte em iniIiminável momento dogmático, que é o momento de certificação do estado atual do direito. Ê nessa ordem de idéias que Enrico Paresce concebe a Dogmática Jurídica como "a auto­consciência da experiência jurídica em um momento dado", na condicionalidade normativa do ordenamento, visto "não apenas como complexo de normas instrumentais, de critérios de qualificação jurídica, mas também como complexo de casos típicos materiais (fatt ispecie materiali) destinados a'O tecido conectivo da ação" 10.

Só mesmo quem se afasta da viva experiência jur ídica pode iludir-se com processos de espontânea e objetiva revelação do di­reito, ou de sua automática e constante atualização. Se é êrro, em suma, conceber a imperatividade jurídica em têrmos volun­taristas, não o é menos olvidar a significação do Poder no processo histórico de objetivação dos valôres jurídicos.

Em mais de uma passagem dêste livro tenho salientado a im­portância do fenômeno da objetivação como um dos esteios sôbre que se funda a vida social, possibilitando a aquisição, a conservação e a transmissibilidade dos valôres. Não fôsse o homem capaz de projetar, para fora de si, em obras e serviços, conferindo-lhes como que existência autônoma, os produtos e os resultados de sua inten­cionalidade criadora, não haveria sequer possibilidade de história, e cada geração se estiolaria, que digo eu?, cada grupo de homens

9. Sôbre a nomogênese jurídica cf. o exposto no § 3.· e segs. do Ensaio VIII, infra, bem como o estudo que dediquei ao assunto, sob o título "O poder na democracia - Direito e poder e sua correlação", publicado nos Eaaays in Bonor of Roscoe Pound, 1962, págs. 238 e segs., inserto depois em Pluralismo e Liberdade, São Paulo, 1963, págs. 207 e segs. Cf. também Filosofia do Direito , 4.' ed., cit., §§ 204 e 207, págs. 474-478 e 489-494. Peço vênia para acentuar a remissão a essas páginas, pois se trata de um dos pontos capitais à compreensão da experiência jurídica, que é, ao mesmo tempo, "experiência do poder".

10. PARESCE - "Dogmatica Giuridica", na Endclopedia deZ Dintto, 1964, vol. XIII, págs. 690 e segs.

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se exauriria em atos de absoluta gratuidade. Nem haveria que falar em subjetividade) pois esta, na plenitude de seu significado, implica a consciência de algo pôsto como objeto da "intencionali­dade", a começar pela presença que cada sujeito tem do próprio corpo, imediata e primeira tomada de consciência que o espírito faz de si próprio na sua trajetória de intersubjetividade e comunicabi­!idade.

Ora, é no processo universal de objetivação do espírito que devem ser situadas as formas de objetivação do direito, não sendo a imperatividade jurídica) isto é, a heterônoma determinação axio­lógica das regras de direito) mais do que uma exigência daquele processo de objetivação total, que implica a existência de instru­mentos estruturais de garantia para os bens já objetivados e de preservação da liberdade requerida para serem objetivados novos bens: a imperatividade do direito, vista em têrmos histórico-axioló­gicos, não é um "complexo", de que devamos nos corrigir, mas antes uma das componentes relevantes do viver social, tão certo como o repúdio do poder é a inconsciência da liberdade.

Essencial é reconhecer, por outro lado, que, se a experiência jurídica não prescinde do poder, os homens se tornam cada vez mais conscientes dos riscos que êle comporta, sendo legítimo o sistema de precauções tendente a evitar abusos e desvios de autori­dade. Uma das principais formas de seguro contra os desmandos do poder consiste em não acolher as suas opções normativas como atos isolados, mas sim como elos ou momentos, cujo significado é inseparável do sentido geral do ordenamento. Não raro êsse en­quadramentonormativo basta, por si só, para aparar arestas vivas, neutralizar excessos, acomodar gritantes irregularidades, com a recondução do preceito excepcional ao leito normal das soluções normativas regulares, graças ao fino lavor da exegese construtiva e sistemática. Ao receber-se, pois, o dogma legal, não como um conteúdo ordenado e rígido, mas como um sentido de ação que objetivamente deve ser valorado e concretamente experie.nciado, pode-se dizer que o poder queda, de certa forma, envolvido pela norma que êle acaba de positivar: no instante mesmo em que, graças à interferência do poder, se dá a objetivação de uma regra de di­reito, esta se insere no contexto normativo já vigente, subordinan­do-se a uma totalidade de sentido que a transcende.

Na realidade, o enquadramento de cada norma jurídica num sistema é, ao mesmo tempo, uma exigência lógica e deontológica: lógica) porque não seria possível o estudo cie.ntífico da experiência jurídica, se as soluções normativas particulares não se compusessem em unidade, refletindo, na substância de suas relações preceptivas, os enlaces de solidariedade conaturais ao mundo dosvalôres que elas expressam, podendo-se dizer que a sistemática das normas jurídicas corresponde, no fundo, a urna exigência de unidade própria do espírito que as institui; e deontológica) porque a legitimidade de

o DIREITO COMO EXPERIENCIA 135

cada preceito jurídico pro mana tanto dos valôres, cuja salvaguarda se visa em cada caso concreto, como também e principalmente do valor global do ordenamento) que, considerado no seu todo con­gruente, é expressão das aspirações comuns do povo, do plexo atual das valorações coletivas) ora referido ao "espírito do povo", ora à "consciência coletiva", ora ao "espírito objetivo", ou à "vontade da nação", expressões tôdas que, não obstante as suas divergências, coincidem em assinalar a eminência transpessoal e obrigatória de certos tipos de conduta

In SISTEMA E PROBLEMA

§ 6. A colocação do conceito de imperatividade em têrmos de "objetivação hístórico-axiológica", ligado ao momento dogmático da nomogênese jurídica, - com superamento, por conseguinte, dos quadros do racionalismo formalista e do psicologismo voluntarista, - abre-nos, penso eu, a possibilidade de desfazer os pseudo-proble­mas postos por aquêles que, por afirmarem o caráter problemático da experiência jurídica, recusam-lhe sistematicidade, o que equivale a dizer, cientificidade; ou então contrapõem Problemática Jurídica a Dogmática Jurídica.

Em obra, na qual com razão dá realce ao caráter tópico ou problemático do Direito, Theodor Viehweg chega a uma conclusão, que me parece inaceitável, quanto à impossibilidade de compreen­der-se a Jurisprudência como unidade lógico-sistemática, a tal ponto que os chamados princípios gerais de direito não passariam de topoi, de meros critérios diretivos de conduta, de valor prático, mas não de valor lógico, no sentido rigoroso dêste têrmo 11.

11. V. THEOOOR VIEHWEG - Topik und Jurisprudenz, Munchen, 1953. As remissões a esta obra são tôdas com base na tradução italiana de GlULlANO GRIFO, cito Na mesma linha de pensamento situa-se J. ESSER, para quem Ué o problema, e não o sistema em sentido racional, que constitui o centro de gravidade do pensamento jurídico", de tal modo que, sôbre a base dos problemas singulares, constituir-se-ia, de maneira cada vez mais prevalecente, uma casuística de topoi, isto é, de princípios como elementos dinâmicos, ou pontos de vista firmados por estimativas concretas. (Cf. J. ESSER - Principio y Norma, trad. espanhola, 1961, págs. 23 e segs.) .

Se uma compreensáo dessa natureza é discutível até mesmo no âmbito do C01nmon Law, onde a Jurisprudência cada vez mais se liberta do plano dos "cases-law" para elevar-se ao mundo dos princípios, - consoante adver­tência de ROSCOE POUND - de que "o direito é experiência desenvolvida pela razão e razão testada pela experiência", estando a parte vital dêle nos princípios e náo nas regras, - que dizer da experiência jurídica própria de um país, como o Brasil, que passou do regime das ordenações para o dos códigos, procurando sempre preservar a unidade sistemática do direito, através de recursos como o de revista, com uma prática já significativa no tocante ao contrôle jurisdicional da constitucionalidade das leis, se­gundo as diretrizes finais do Supremo Tribunal Federal?

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136 MIGUEL REALE

Acentuando o caráter não axiomático dos juízos jurídicos, por serem formulados tão-somente com base em expressões concretas e variáveis do problema da justiça} Viehweg não só condena a Dog­mática Jurídica de natureza lógico-dedutiva, con'espondente à cha­mada "Jurisprudência conceitual", mas, indo além das conclusões a que chegara a "Jurisprudência dos interêsses", nega cientificidade à Jurisprudência, em geral, por considerá-la carecedora de unidade sistemática.

Viehweg invoca, em abono de sua tese, as contribuições de Nicolai Hartmann que, atualizando a técnica do pensar problerrui­tico} desenvolvida por Aristóteles na Tópica e no III Livro da lvletafísica} segundo o estilo de pensamento dos retóricos e dos sofistas, teria exposto, de maneira eficaz, "o contraste entre pensar problemàticamente e pensar sistemàticamente" 12. Reconhece o mencionado jusfilósofo que "subsistem implicações essenciais entre problema e sistema", mas, em última análise, é o primeiro têrmo que, a seu ver, se põe como único vínculo constante da pesquisa, desempenhando as sistematizações um papel secundário, fragmen­tário e provisório: procedendo-se de um problema, diz êle, chega-se a uma pluralidade de sistemas, sem se demonstrar a sua compati­bilidade em um único sistema compreensivo. Dessarte, a vida do Direito não seria suscetível de ordenação sistemática, só compor­tando um ((repertório de pontos de vista)}} ou um ((catálogo elástico 'te topoi JJ ) ou seja, de juízos normativos formulados para atender a problemas concretos, que a Hermenêutica Jurídica (como parte da rópica JU7'ídica) teria a possibilidade de ir adaptando às novas ~ircunstâncias, em formas sempre atuais de compreensão, segundo 1 dialética discursiva ou persuasiva de tipo aristotélico 13.

Não me parece que a posição de Viehweg corresponda plena­nente à de Hartmann, que não contrapõe tão rigidamente sistema 1 problema. Se Hartmann, com efeito, repele o tipo de raciocínio, jue, partindo de um sistema (pãsto ab extra como abstrata unidade ógico-dedutiva) condiciona a priori a impostação dos problemas, - por outro lado, assenta as bases de um pensar problemático ou (porético, de cujo próprio desenvolvimento interno vai se consti­uindo o sistema.

"Dá-se com o sistema, adverte Hartmann, o que se dá com o fonto de vista : êle não deve ser concebido de antemão, mas deve 'esultar da essência mesma das coisas. Quem fixa para si, a priori) Im sistema encontra-se na impossibilidade de focalizar imparcial­nente os problemas; quem vai às coisas com um sistema diante

12. Op. cit., pág. 32. VIEHWEG reporta-se ao estudo de HARTMANN _ liesseits von ldealismus ulld Realismus (Aquém do Idealismo e do Rea­smo) em "Kant-Studien", vol. XXX (1924), pâgs. 160 e segs.

13. Op. cit., pâgs. 32-46. Sôbre a dialética persuasiva ou retórica, v. s considerações por mim expendidas supra, no Ensaio IH, § § 8 e segs.

o DIREITO COMO EXPERl!,': NCIA 137

dos olhos, para êle a pesquisa é supérflua. Não nos é dado prevenir contra as exigências de um sistema: elas se imporão sempre muito cedo.

"Seguindo rigorosamente as coisas, uma pesquisa será condu­zida de modo concêntrico no sentido do sistema. A sistemática natural não sai da cabeça do filósofo, mas ela está escondida nos problemas filosóficos mesmos" 14.

Eis aí verdades válidas tanto para a sistemática filosófica como para a científica, notadamente no âmbito das investigações histó­rico-culturais. Podemos dizer que uma sistemática de tipo abstTato e externo} na atual compreensão das ciências do real, cede lugar a uma sistemática concreta e interna} que resulta da lógica mesma das coisas; e, em segundo lugar, que problema e sistema} longe de se contraporem, necessária e logicamente se implicam, segundo o principio de complementariedade já analisado em outras passagens dêste livro 15.

A diretriz acima exposta coincide, até certo ponto, com o pensamento de Enrico Paresce, para quem o caráter problemático da experiência jurídica não exclui, mas antes, põe a exigência de sua sistematização, a qual se realiza, não por fôrça de um Espírito universal, à maneira de Hegel, mas em virtude de um "processo objetivo de historização do sistema normativo", graças aos atos de qualificação jurídica de quantos participam daquela experiência, legisladores, juízes e operadores do direito. Através dessas ativi­dades múltiplas, constitui-se a ((totalidade autoconsciente do di7-eito) como conjunto de formas e estruturas despersonalizadas e objetiva­das, referidas a um sujeito anônimo, sobreordenado" , estando, no entanto, tal conhecimento total do direito sempre em atraso em relação aos modelos jurídicos exigidos pelas novas emergências de valôres, o que faz com que "o sistema} como conhecimento total permaneça sempre um problema para a ação". Daí concluir Paresce que a experiência jurídica, que, no seu entender, não é senão o aspecto ativo da vida do direito ("o modo concreto mediante o qual emergem os valôres jurídicos e se põem como modelos para a ação dos indivíduos, e é também a ação dêstes enquanto, atualizando-os

14. N. HARTMANN _ Les Principes d'une Métaphysique de la Connais­sance, trad. de Raymond Vancourt, Paris. 1945, pâgs. 46 e segs. Para uma penetrante aplicação das teses hartmannianas nos domínios da experiência juridica, V. o livro de LLAMBlAS AzEVEDO - Eidetica Y Aporetica deI De­recito, 2.' ed., Buenos-Aires. 1958. (l.' ed. de 1940) onde se vê que Aporética e Eidétiea se ligam por um "interno vínculo". LLAMBlAS não se propõe. de maneira especial, o exame da díade "problema-sistema", mas a solução positiva está implícita em sua compreensão do Direito eomo "sistema de disposições a serviço dos valõres da comunidade" (op. cit., pág. 105).

15. Refiro-me apenas ao conceito de sistema nas ciências do real. sem excluir. é claro, a possibilidade de sua compreensão como unidade lógico­-dedutiva em outros campos do conhecimento.

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138 MIGUEL REALE

concretamente, os torna vigentes e os modifica") se nutre de uma dialética circular assim expressa: sistema-problema-sistema 16.

No âmbito da dialética de complementariedade, que leva em conta a pluralidade das perspectivas, o problema e o sistema recipro­camente se exigem, pois o segundo só existe em função do primeiro, e êste só adquire significado na medida e enquanto se compõe fun­cionalmente em um complexo sistemático. A contraposição siste­ma-problema é tão abstrata e irrelevante como o análogo contraste entre estrutura e função.

Tudo está em reconhecer, com Gaston Bachelard, acorde com o estado atual de saber científico, entendido como "tarefa de obje­tivação progressiva", que, efetivamente, "não há fenômenos sim­ples; o fenômeno é um tecido de relações. Não há natureza simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há idéia simples, porquanto, como bem observou Dupréel, ela deve ser inserida, para ser compreendida, em um sistema complexo de pensamentos e de experiências" 17.

Essa interconexão entre parte e todo, entre problema e sistema, meio e fim, estrutura e função etc., demonstra a impossibilidade de compreender-se uma experiência, como a do Direito, segundo um catálogo ou repertório de conhecimentos empíricos, cabendo aqui relembrar duas outras idéias fundamentais, também enunciadas por Bachelard 18, no plano das ciências naturais, mas cuja validade, penso eu, é ainda mais manifesta nos domínios das ciências histó­rico-culturais : 1.9, a de que a realidade se desenvolve segundo uma dialética de complementariedade, graças à correlação ou implicação de elementos heterogêneos, opostos, mas não contraditórios; 2.Q , a de que a experiência faz corpo com a definição do ser; tôda defini­ção é uma experiência; tôda definição de um conceito é funcional.

16. PARESCE, loco cit., págs. 688 e sego Lembra P ARESCE, a propósito de sua posição, esta ponderação de N. HARTMANN: "O pensamento siste­mático de hoje segue outro caminho. Não é mais pensamento-sistema. O pensamento problema não é assistemático. Mira também êle a uma visão compreensiva. A sua meta deve sempre reluzir, à sua frente, como sistema" (Sistemati,'J{;he Philosophíe in eigener Darstellung, na trad. it. sob o título Filosofia Sistemática, Milão, 1943, págs. 115 e segs).

17. G. BACHELARD - Le Nouvel .Esprit Scíentifique, 9.' ed., Paris, 1966, págs. 148 e 169.

18. Cf. op. cit., págs. 14 e segs. e 45 e segs. Segundo BACHELARD, entre os novos princípios epistemológicos da Filosofia científica contem­porânea, dever-se-ia incluir "a idéia de que os caracteres complementares devem ser inscritos na essência do ser. em ruptura com a tácita crença de que o ser é sempre o signo da unidade ( ........ ) . Conviria, pois, fundar uma ontologia do complementar menos àsperamente dialética que a metafísica do contraditório". (Zoe. cit.). Cf. as considerações expen­didas supra, no .Ensaio I .

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o DIREITO COMO EXPERl~NCIA 139

Essa noção de ((conceito funcional", excludente de tôdas as tentativas de atomização do conhecimento, liga-se a outra idéia não menos essencial que é a da solidariedade funcional das leis, tal como foi visto por Merleau Ponty, ao referir-se às leis físicas. Entre a experiência e as leis fisicas, escreve êle, não cabe supor uma "cor­respondência pontual", como se pudessem ser tomadas uma a uma, independente de suas conexões e interdependências, ou como se a noçã'O de "série causal", constitutiva dos fenômenos naturais, se resolvesse em relações lineares, e não em função da solidariedade geral dos fenômenos: "o que se verifica, rigorosamente falando, não é jamais uma lei, mas um sistema de leis complementares" 19.

Com mais razão impõe-se reconhecer que as normas jttrídicas, que são conceitos ou modelos ético-funcionais da experiência jurí~ dica, não são objetos catalogáveis segundo um saber tópico ou aporético, que se baste a si próprio, porque cada uma delas, e, mais ainda, - como veremos melhor nos Ensaios dedicados ao problema da Hermenêutica jurídica, - a interpretação de cada uma delas implica a totalidade do ordenamento, numa unidade ob­jetiva e sistemática de significados.

IV

PROBLEMÁTICA DO "DOGMA" JURíDICO

§ 6. À primeira vista, poderá parecer paradoxal o título que encima 'O presente parágrafo, mas a estranheza resulta de uma falsa compreensão da Dogmática Jurídica, como se o prévio e necessário reconhecimento das normas positivadas pelo legislador ou pelo órgão competente (lex prima facie valet) impusesse ao aplicador do direito a aceitação passiva dos enunciados normativos, e não houvesse, n'O ato de interpretá-los, certa margem de discrição va­lorativa.

Na realidade, a aplicação de uma regra de direito envolve uma sucessão de problemas e de opções, não raro objeto de inúmeras controvérsias, pois:

1.9 ) é mister, de início, verificar se a norma é válida, por situar-se na ordem lógica das competências peculiares a cada ordenamento, o que demonstra, por si só, o equívoco da redução do Direito a um catálogo de topoi;

2.9 ) captar, a seguir, o sentido objetivo da regra, correlacio­nando o seu conteúdo com os dos demais preceitos vi­gentes;

19. M. MERLEAU-PONTY - La Structure du Comportement, 5.' ed., cit.. pá'!. 150.

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140 MIGUEL REALE

3.\') verificar se a norma em aprêço é a correspondente à espécie de fato) que se queira qualificar juridicamente, o que implica o sempre delicado ' problema da "compreen­são típica do fato" em função da subsunç;ão normativa 20.

Quando se diz, por conseguinte, que o trabalho do jurista como tal é "dogmático" não se quer senão afirmar que a Ciência do Direito não pode prescindir de modelos normativos postos heterô­nomamente, e cuja validade só pode ser contestada em virtude de algum vício de forma, por incompetência do órgão emanador da regra, ou preterição de requisitos essenciais, de conformidade com o estatuído nos preceitos supremos da Constituição.

Como observa Karl Engisch, os comandos e proibições do direito têm as suas raizes nas chamadas normas de valoração) mas "a valoração só se torna genuína regra jurídica ao armar-se com um imperativo. Com simples normas de valoração não poderia o Direito exercer o domínio que lhe compete sôbre a vida dos homens em comunidade" 21. Daí reconhecer Engisch que as normas jurídicas são, no seu conteúdo essencial, imperativos, mas, acentuo eu, impe­rativos de natureza axiológica, insuscetíveis de serem reduzidos a meras "manifestações de vontade", pois estas pressupõem sempre um plexo de valorações que condiciona as decisões do legislador.

Êste ponto afigura-se-me de suma importância, pois a Dog­mática Jurídica implica o problema do poder, sendo a experiência jurídica inseparável da experiência do poder.

O mesmo problematicismo, que cerca a nomogênese jurídica, lateja no bôjo da regra jurídica positivada. Entre os dois aspectos, o genético e o. lógico-dogmático há uma intima e natural funciona­lidade, o que · se explica por tratar-se de experiência axiológica, marcada pelo contraste das aprovações e reprovações, adesões e repulsas.

Não cabe aqui a análise de todos os aspectos da nomogênese jurídica, - assunto de Teoria Geral do Direito, de Política Jurídica e de Sociologia do Direito, - devendo o jusfilósofo limitar-se a pôr em relêvo a essencial correlação existente entre o Direito e o Poder, e o valor dessa correlação no tocante à irrenunciável natureza "dogmática" do Direito, mostrando como se dá a "jurÚ':fação do Poder' no processo nomogenético, e como se mantém aberta, não obstante a interferência decisória do Poder, a problemática das regras positivas 22.

20. Sõbre êsses três momentos, v. infra, o exposto em matéria de interpretação do direito (Ensaio X) .

21. K. ENGISCH - Introdução ao Pensamento Jurídico, trad. porto cit., págs. 35 e segs.

22. Sõbre a correlação "Direito-Poder", v. o já lembrado na nota 9 supra. No plano da Teoria Geral do Direito, tal assunto foi objeto de

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA j41

Vem daí, dessa polarização entre Direito e Poder uma das ra­zões do sentido tensional da experiência jurídica, que põe, no mesmo ato, o "dogma" da norma jurídica e o "problema" de seu conteúdo. Assiste razão, pois, a Cesarini Sforza, quando pondera que a "a dogmaticidade é a fôrça e a fraqueza da Jurisprudência: a fôrça, porque sem a dogmatização dos modelos jurídicos não se poderia falar de estabilidade e de certeza do direito; a fraqueza, porque o dogmatismo dos modelos jurídicos não pode deixar de entravar, em certo momento (muito embora em momentos diversos) o curso his­tórico das vontades humanas qui semper in infinitum decurrunt" 2 ••

Como foi argutamente dito por alguém, - prossegue Cesarini Sfol'za, em página primorosa que me não furto ao prazer de invo­car, - o direito deve ser estável, mas não pode ser imóvel, "sendo essa exatamente a mola vital do direito, a sua vivente problemá­tica, ou melhor, o seu paradoxo: ter a sua razão de ser, diríamos mesmo, a sua própria justificação histórica, na estabilidade e na certeza dos seus modelos de ação e, ao mesmo tempo, não poder subtrair-se a um destino de mobilidade e de incerteza: achar-se na impossibilidade de resolver o próprio problema e, ao mesmo tempo, não poder deixar de formulá-lo" .

O antigo mestre de Roma, procurando determinar a razão ulti­ma dêsse contraste entre a realidade concreta e "os modelos que pretendem imobilizá-la €m sistemas racionais de estrutura necessà­r iamente abstrata", atinge o ponto culminante de sua análise quando adverte que o citado "paradoxo" corresponde ao que há de verda­deiramente essencial à espiritualidade humana, "como ininterrupto processo circular entre o impulso criador, subjetividade operante, opus operans, e o seu decair no OpUB operatum, pelo qual o impulso subjetivo se anula na realidade objetiva do fato, daquilo que já foi fe·ito. Ora, a distinção entre opus operans e opus operatum é pura­mente abstrata, pois aquêle círculo não se rompe em ponto algum, nem em qualquer momento de seu movimento, de sorte que só por abstração se poderá pensar numa de suas partes ou segmentos, mas não imobilizá-lo efetivamente" 24.

Há talvez excessiva ênfase no predomínio do ato sôbre o fa to, na página supra lembrada, como se o segundo elemento ti­vesse mero valor residual, e pudesse ser visto ap€nas como deca­dência ou "resfriamento" do espírito criador nas obras ou bens

estudos especiais em minha Teoria do Direito c do Estado, 2.a ed., cit., cuja última partc é tôda dedicada a mostrar como se verifica a "jurisfação do poder" no processo histórico-cultural.

23. V. C ESARINI SFORZA - "Dommatica, Teoria Generale e Filosofia dei Diritto", em Vccchic e Nuove Pagine di Filosofia, Storia e Diritto, Milão, 1967, vol. 1. pág. 412.

24. Ibidem, pág. 4 13.

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142 MIGUEL ReALe

objetivados) quando, na realidade, exatamente em virtude da apon­tada unidade concreta da vida espiritual, os dois apontados fatô res se correlacionam e se potenciam, através do processo histórico­-cultural, cada nova projeção objetiva (opus operatum) desafiando e condicionando o Op1lS operans da espécie humana, no seu con­tínuo e perene auto-revelar-se.

O essencial é reconhecer que a experiência jurídica é uma forma dessa experiência universal, e que a Jurisprudência, sendo, ao mesmo tempo, expressão de ordem e de progresso) de certeza e de justiça, é "exigência de sistema" 25 e de "validades dogmá­ticas", sem prejuízo de sua intrínseca problematicidade.

§ 7. Já disse que a experiência do poder é inseparável da experiência do direito e que êste não se objetiva em fórmulas normativas sem um ato decisório.

Isto não quer dizer, todavia, que se possa ou se deva optar por um decisionismo irracional, só por reconhecer-se a ilusão do normativismo, entendido como puro processo lógico ou ético, a fluir por si mesmo isento das impurezas da fôrça.

Como penso ter demonstrado, desde 1940, em Teoria do Di­reito e do Estado, a natureza axiológica da experiência jurídica desfaz o equívoco dos que concebem as normas jurídicas como resultado de mera "manifestação de vontade", revelando tôda a complexidade do processo nomogenético, no qual o Poder se insere como um momento essencial, iniliminável, mas momento condicio­nado à sua funcionalidade com os demais fatôres e fases da posi­tivação do direito.

É que na experiência do direito, como, de resto, em tôda a ação humana, - e sôbre esta matéria já me alonguei bastante nos § § 9 elO do Ensaio II dêste livro, - há uma intrínseca exi­gência de racionalidade) o que, no caso especial da experiência jurídica, se traduz no aparecimento da "norma de direito" como "modêlo racional . de conduta" e no constituir-se do ordenamento jurídico como "sistema" orgânico de modelos e de ações.

25. MORRIS R. COHEN refere-se, a propósito da Ciência do Direito, a "the demand lar system!', tal como é lembrado por PIETRO PlOVANI, o qual, no entanto, apesar de reconhecer a "sistematicidade" como caracte­rística inerente à Jurisprudência, e de mostrar que não se trata de "siste­ma de conceitos", mas sim de "sistem.a de ações", pretende substituir a Dogmática pela Problemática Jurídica (Cf. Rev. Int. de Fil. deI Diritto, 1963, fase. I, págs. 67 e segs. e, mais minuciosamente o ensaio "Mobilità. sismaticità, istituzionalità della lingua e deI diritto" , em La FilOBofia deI Diritto come Scienza Filosolica, Milão, 1963, esp. págs. 153 e segs.l. Penso, ao contrário, que uma nova e concreta compreensão do que seja "sistema" pode implicar um nôvo conceito de Dogmática Jurídica, mas não a sua substituição, dada a essencial correlação entre direito e poder no processo de objetivação normativa.

o DIREITO COMO EXPERIÊ:NCIA 143

É deveras surpreendente essa postulação de racionalidade se se pensa no que há de irracional na gênese das regras de direito, que nem sempre são o fru to de decisões tomadas segundo uma clara linha de motivos determinantes.

A "impureza", digamos assim, da nomogênese jurídica, quando focalizada à luz crua da razão, tem sido posta em evidência por juristas e sociólogos. Pitirim Sorokin chega mesmo a afirmar que "muitas leis emergem por via de ensaios e erros, sem qualquer raciocínio sistemático, sem qualquer plano consciente ou um pro­pósito racíonal. Uma multidão de normas legais baseia-se em superstições opostas à razão, em erros opostos ao conhecimento; em ignorância oposta à experiência real" 26.

Ainda que se não possa excluir a hipótese de leis elaboradas como atos racionais em seus propósitos e em sua forma, limitando­-se a autoridade a sancionar um preceito de cristalina validade ética e de não menor conveniência prática, - impossível seria con­testar os resíduos de irracionalidade, de capricho ou de paixão, que não raro inconscientemente se aninham ou dolosamente se ocultam na obra dos legisladores. Dessarte, ao lado de criações legislativas de cunho intelectual, outras há carecedoras de cons­ciência de sua destinação nomogenética, surgindo o direito, em tais casos, no dizer de Michel Virally, "como uma obra coletiva, resultante de uma multidão desordenada de atos individuais, cujos autores não viram claramente, e talvez nem sequer suspeitaram do papel desempenhado em sua elaboração" 27 • .

Dever-se-ia, porve.ntura, concluir, à vista dêsses fatos que a vida do direito é insuscetível de ordenação racional ou sistemática? Os estudiosos superficiais do problema são fàcilmente levados a tal conclusão, mas é exatamente aqui que se põe, em sua pleni­tude, a ((razão do direito".

É ·que, consoante lembrei em Pluralismo e IAberdade, anali­sando as relações entre poder e racionalidade, quaisquer que possam ter sido as causas determinantes da opção normativa, e por mais irracionalmente que ela se conclua, há um fato. irrecusável, denso de significado: uma vez posta a regra de direito,esta surge, incon­tinenti, sub specie rationis) não podendo deixar de ser considerada uma ordenação racional", "quaedam rationi.s ordinatio", como di­zia Santo Tomás 28.

Nem se diga que se trata de mero artifício ou ficção, com que se pretende salvar a racionalidade submersa no mar das con­tradições, porque a «tensão racional" do direito é própria de seu processo de objetivação histórica: a despeito de todos os obstá-

26. V. SOROKIN - "The Organized Group Institution and Law-Norms", em Interpretations of Modern Legal Philosophies, Essays in Honor 01 Ros­coe Pou,nd, Nova-Iorque. 1947, pág. 670.

27. MICHEL VIRALLY - La Pensée Juridique, cit., pâg. 6. 28. V. Pluralismo e Liberdade, cit.) pág. 216.

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144 MIGUEL REALE

culos e distorções, que se lhe opõem, aquela exigência de raciona­lidade resulta da aspiração constante dos indivíduos e das socie­dades, no sentido de compor, em unidade, certeza e segurança, estabilidade e movimento, ordem e justiça, o que explica seja a experiência jurídica uma renovada tentativa, um sempre indômito propósito de neutralizar abusos e de descobrir, na pior das leis, algo de útil e proveitoso ao desenvolvimento dos valôres humanos.

Há uma astúcia da razão jurídica governando, em sua subs­tância, as relações sociais; traduzindo o impulso dialético ordenado r da experiência jurídica, como implicação de fatos e de valôres em normas, cuja interpretação se procura determinar em consonância com as exigências do conjunto do ordenamento, no qual se espelha o estado atual da consciência ético-juridica de um povo. Não será exagêro dizer-se que o direito é uma imediata e natural exigência da razão, quase a razão como natureza, na sua original postulação de ordem.

O fato, pois, de muitas normas jurídicas serem o produto de motivações irracionais não exclui que a experiência juridica, no seu todo, possa e deva ser compreendida como um processo dialé­tico aberto, como é o de complementariedade, que, ao mesmo tempo que estabelece nexos de implicações e.ntre os atos contrários, re­vela a aparência das contradições.

Ninguém melhor do que Max Weber soube demonstrar a compatibilidade que há entre a racionalidade final dos comporta­mentos humanos e a irracionalidade de sua gênese. Como é lem­brado por Paul Kecskemeti, aquêle sociólogo exímio, nos seus estudos relativos aos contrastes entre formas racionais e irracio­nais de conduta, revelou quantos modos e técnicas de comporta­mento racional resultam, geneticamente, de antecedentes irracio­nais. Só que os sistemas sociais racionais, a seu ver, emerg'em não por serem concebidos por pensadores adstritos a exigências racionais, mas porque certa constelação de fatôres racionais 'Os favorece. Muito embora não haja um plano ou pensamento pre­sidindo à história, pondera ainda Max Weber, uma direção é to­davia discernível partindo do irracional no sentido da racionali­dade 29. No Ensaio II dêste volume, vimos, todavia, que o prevale­cimento final da razão obedece a algo de inerente à estrutura mesma do pensamento, em seu estado original ou "selvagem", a uma primordial exigência humana de ordem, e não à interferência de imprevistos fatôres racionais emergentes no horizonte histórico.

É o motivo pelo qual cada norma legal deve ser captada em sua significação racional objetiva, tanto mais desligada da inten-

29. Cf. PAUL KECSKEMETI - Meaning, Communication and Value, Chicago. 1952, pág. 228. Cf. MAX WEBER - Wirtschatt und Gesellschaft, 1952 (trad. castelhana, Economía Y Sociedad, México, 1944) . :f; no vol. lII, destinado à Socw/,ogict do Direito, que WEBER propõe-se o problema da "racionalização do direito" (págs. 27 e segs. e 144 e segs.).

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 145

ção original do legislador quanto mais esta se revelar irracional, e, como tal, destoante do querer real da comunidade, expresso no complexo congruente das normas e das situações normadas, das classes abstratas de ações possíveis e das concretas atualizações dos modelos normativos.

Em uma compreensão histórico-axiológica da experiência ju­rídica, por conseguinte, a objetivação dogmática é um ponto ina­movível de partida, mas não uma solução imposta aos destinatários das normas e aos seus intérpretes como um ditame de conteúdo indiscutível: ao contrário, as estruturas ou os modelos normativos conservam a sua intrínseca problematicidade, como teremos ocasião de examinar no Ensaio seguinte, inclusive, porque a realidade social, da qual os "dogmas jurídicos" são elementos, é essencial­mente histórica.

Se o momento dogmático do direito não possui validade a se, mas como elo de um sistema institucional, como melhor resultará do seu estudo em função das estruturas e modelos que compõem a experiência jurídica, convém lembrar que também não pode ser considerado mera fase de aplicação prática, destituída de valor teorético próprio.

A articulação dos elementos .normativos, tal como é realizada pela Dogmática Jurídica, segundo nexos teleológicos, não é tarefa segunda, de pura aplicação técnica, pondo-se antes no âmago da Ciência do Direito mesma, acorde com a apontada exigência de ordem e de racionalização inerente a tôda modalidade de conduta social, mas que atinge a sua máxima expressão no âmbito dos comportamentos intersubjetivos, de cuja tecitura e composição se constitui o mundo do direito.

A Dogmática Jurídica deve, em suma, ser compreendida como o momento culminante da Jurisprudência, ou seja, da Ciência do Direito na plenitude de sua existência, como horizonte de sua obje­tividade, e o horizonte não se põe jamais como limite definitivo, mas é linha móvel a projetar-se sempre à frente do observador em marcha.

Sem essa referência perene aos motivos inspiradores e deter­minantes da experiência juridica, como experiência humana, e, por conseguinte, histórico-axiológica, a Dogmática Jurídica, como tôdas as Dogmáticas particulares, arrisca-se a perder-se naquele "desvio de sentido" a que se refere Karl Jaspers, convertendo-se em mero "limite da ciência" 30, em lugar de ser, como deve ser, uma reite­rada tomada de consciência da atual situação social dos problemas jurídicos tal como se acha objetivada ou modelada na totalidade do ordenamento.

30. Cf. KARL JASPERS - F-ilosofia, trad. de Fernando Vela, Madri, 1958, vol. I, págs. 183 e segs.

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Ensaio VII

ESTRUTURAS E MODELOS DA EXPERIÊNCIA JURíDICA - O PROBLEMA DAS FONTES

DO DIREITO

SUMÁRIO: I - Do conceito de estrutura na Sociologia e na Jurisprudência. II _. O conceito de estrutura no plano filo­sófico e no científico-positivo. III - Natureza dos modelos jurídicos. IV - A teoria dos modelos jurídicos e das fontes formais. V - Ciência do Direito e Teoria da Comunicação.

VI - Espécies de modelos jurídicos e sua correlação.

I

DO CONCEITO DE ESTRUTURA NA SOCIOLOGIA E NA JURISPRUDÊNCIA

§ 1. Os conceitos de estrutura e de modêlo vêm sendo apli­cados com freqüência pelos cultores do Direito, mas geralmente como quem lança mão de uma imagem útil à ilustração de um pensamento, sem adequada e prévia indagação sôbre o seu alcance nos domínios da Ciência do Direito, como instrumentos de com· preensão mais rigorosa da complexa experiência jurídica de nosso tempo.

São ainda raros, senão raríssimos, os trabalhos dedicados a tão relevante tema, nem sempre tratado com uma rigorosa distin­ção entre o plano filosófico e o científico, e sem se perceber que, pelo menos nos domínios das ciências jurídicas, a teoria das estru­turas culmina necessiiriamente numa teoria dos modelos) enten­didos como "estndum,s normat·ivasn •

Como todo modêlo é necessàriamente uma estrutura - a tal ponto que. sob o prisma puramente descritivo, não haveria como diferenciá-los, - penso seja mais conveniente começar por uma referência, embora necessàriamente breve, ao que o conceito de estrutura tem representado nos estudos sociológicos e jurídicos.

A categoria de estrutura, como acentuei no Ensaio II in­serto neste volume. desemoenha papel tão relevante na Filosofia, na Psicologia, na Lingüística, na Antropologia, na Sociologia, na Ciência Política e na Economia contemporâneas, que custa crer

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a qual não experiência

tenha ainda reduzida aplicação na Ciência do Direito, pode deixar, é claro, de adaptá-la às peculiaridades da social objeto de sua investigação 1.

Não cabe, por certo, nos limites do presente trabalho, cotejar as principais teorias baseadas na noção de estrutura, nem tam­pouco discutir as teses que pretendem erigir o estrut1ualismo em corrente filosófica, de rígida objetividade, às vêzes numa ingênua atitude anti-histórica. Ao contrário do que sustentam certos es­truturalistas, o conceito de estrutura só possui sentido real na me­dida e enquanto se correlaciona com a história e se põe como uma de suas formas expressionais concretas. A querela "estrutura­lismoxhistoricismo" não passa de um contraste episódico, tradu­zindo as perplexidades dos que vacilam entre duas posições abs­tratas, a do iluminismo militante e a do geometrismo absenteísta, quando a tarefa que se põe aos pensadores contemporâneos é bem outra, delineando-se como uma busca de positividade sem positi­vismo) e de historicidade sem absolutização da história) superan-

1. Talvez terá sido CESARINI SFORZA o primeiro jusfilósofo a sa lientar, em um estudo de 1918, que não teve a devida continuidade, a importância dos conceitos de estrutura e de função, concebendo-os como "unum et idem no fenômeno jurídico concreto", em cuja evolução ambos "mantém o seu correlativo significado" (Cf. "Senso e Condizione deI progresso nella Scienza deI Diritto", na Rwwta Italiana di Sociologia, fase. 3-4, O1'a inserto em Vecchie e Nuove pagine di Filosofia, Storia e Diritto, Milão, 1967, t. I, sobretudo págs. 137 e segs.). Em 1959, CESARINI voltou ao assunto em um breve trabalho, "Regola, norma e struttura sociale", op. cit., págs. 375 e segs.

Em época mais recente, o assunto vem sendo reproposto, sob outras perspectivas filosóficas ou sociológicas. Cf. VITTORIO FROSINI - "11 con­cetto di struttura e la cultura giuridica contemporanea", na Riv. Intern. di FiZ. deZ Diritto, XXXVI, 1959, págs. 167 e segs.; do mesmo autor, La St1'l~ttura deZ Diritto, Milão, 1966; NICOS AR. POULANTZAS - Nature des Choses et Droit (Essai 8ur la dialectique du fait et de la valenr) , Paris, 1965, notadamente págs. 93 e segs. e págs. 213-223; e J. VON KEMPSKI "Pensa­mentos sôbre uma teoria estrutural do direito", em Archiv fiil' Rechts und SoziaZphilosophie, 1957, págs. 471 e segs.; ANGEL SANCHEZ DE LA TORnE _ SociologIa deI Derecho, 1965, cit., págs. 211 e segs. e 317 e scgs.; BASTlDE et alii _ Sen.s et Usages du Terme Structnr6 dans les Sciences HU'nw.ines et Socia/es, Paris, 1962, com um estudo de J. CARBONNIER sôbre "Lcs struc­tures en droit privé" e outro de A. MATHIOn sôbre "Le mot stl'ucturc en droit public". Cf., outrossim, SAVATIER - "Realisme et idelisme en droit, civil d'aujourd'hui: structures matérielles et structures juridiques, em FJtu­des Ripert, Paris, 1950, págs. 75 e segs., P. R. DAVID, Perspecti-vas de dos filosofías deI derecho integrativas: Hall y Reale, nos "Anais do III Con­gresso Nacional de Filosofia", 1959, págs. 256-263. Cf. também minha Filosofia do Direito, 4.' ed., cit., págs. 469 e segs.; LEGAZ Y LACAMBRA -Filosofia deI Derecho, 2.' ed., 1961, págs. 245 e segs. e 456 e segs. ; RECASÉNS SICHES _ Tratado General de Filosofía deI Derecho, México, 1959, págs. 72 e segs. e 97 e segs.; LAUREANO LANDABURU - EI Delito como Estn~t1<ra, Rev. de Derecho Penal - Buenos-Aires, 1945; VITTORIO PASINI - Vi ta e Forma nella Realtà deZ Diritto, Milão, 1964 e KARL LARENZ - Metodologia de la Ciencia deI Derecho, trad. de E. Gimbernat Ordeig, Barcelona 1966 págs. 348-364. ' ,

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do-se de vez a mentalidade reducionista do século XIX z. Parece­-me que a noção de estnttura, desvencilhada de certos estereótipos ideológicos, como, por exemplo, do que persiste em distinguir entre infra-estrutura e supeTestTuturas, no âmbito de uma concepção unilinear da história, poderia ser conceito-chave no sentido de uma concreta compreensão da realidade social e histórica 3.

O conceito de estrutura como "forma histórica concreta" pode soar algo contraditório, tão inveterado é o vêzo de contrapor-se a forma ao conteúdo, concebida aquela como uma "fôrma" destinada a ser preenchida com elementos que se lhe acrescentem de fora. De igual vício de análise padece a absolutização de determinada infra-estrutura particular (a econômica, por exemplo) convertida em base condicionadora de múltiplas superestruturas, quando, na realidade, as estruturas histórico-sociais, por sua própria natureza, se correlacionam e se co-implicam, prevalecendo ora umas, ora outras, nos diversos ciclos da experiência humana,

É claro que me refiro, neste passo, apenas às estruturas his­tórico-sociais, abstração feita de outros tipos de estrutura, de cunho matemático ou mecânico, que põem, por assim dizer, os dados do problema ab extTa, na sua materialidade construtiva ou na sua relacionalidade formal, e não a partir da fôrça íntima constitutiva das formas estruturais da vida social. Cabe, em verdade, reco­nhecer que há diversas acepções do têrmo estrutura, o qual, re­presentando como que cortes verticais na realidade e expressando a multiplicidade de suas formas, não pode deixar de corresponder às peculiaridades ônticas de cada campo de pesquisa. Assim é que, ao lado · do conceito lógico-matemático de estrutura, no qual prevalece a noção de sistema de relações entre elementos numa ordem formal de validez) temos a estrutura de tipo arquitetônico, no sentido de composição de formas e volumes num todo harmânio e funcional; a estnttura mecânica, na qual prepondera o caráter de operabilidade material dos elementos integrados em unidade funcional; o conceito de estrutura elaborado pelos psicólogos para indicar a prévia natureza unitária dos fatos psíquicos como formas condicionadoras da integração dos elementos part'iculm'es num todo de relação. Bastam tais exemplos para verificar-se que, não obs-

2. Aqui, a questão não pode ficar senão enunciada, pois será objeto oe meu livro Ontognoseologia e Positi·vidade, em preparo. Cf. , no entanto, "Ontognoseologia, Fenomenologia e Reflexão Critico-Histórica", na Rev, Bl'o<;. de Filosofia, 1966, fase. 62, cit.

3. A subordinação das chamadas superestruturas à infra-est1'ldura eco, nômica equivale a esvaziar o conceito de estrutura do que nêle há de mais significativo e concreto. É essa orientação que, a meu ver, compromete as pesquisas altamente valiosas de POULANTZAS, na obra supra; citada. Quanto à historicidade e concreção das estruturas sociais, v. JUL1AN MARIAS - A Est1'lttura. Social, trad. de Diva R. de Toledo Piza, São Paulo, s. d., págs. 54-81. Cf., as considerações expendidas por GILBERTO FREYRE na apresen­tação dêsse livro.

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tante as variações existentes, há um conjunto de conotações co­muns ao emprêgo da palavra estrutura, não tendo cabimento a pretensão de certos especialistas no sentido de converter o con­ceito de estrutura, válido nos domínios de sua ciência, em modêlo a ser seguido nos demais.

De maneira geral, poder-se-ia dizer que o conceito de estru­tura alberga dois significados fundamentais, correspondentes, res­pectivamente, aos têrmos alemães Struktur e Gestalt 4. O primeiro denota uma unidade decomponível de elementos correlacionados mecânicamente para fins operacionais ou, então, entidades inter­pretativas de axiomas e teoremas; já o segundo quer antes signi­ficar uma unidade polarizada no sentido de um valor constitutivo que dá, uno in acto, forma e vida a um todo irredutível às partes componentes, entre si inseparáveis. Esta segunda acepção não representa, aliás, uma novidade revolucionária no campo do pen­samento, pois fácil será perceber os liames que a prendem a antigas raízes, como, por exemplo, às do organicismo inspirado nas ciências biológicas, às formas de compreensão histórica inspiradas em He­gelou Marx, ou, em tempos mais recentes, às do institucionalismo, mas tais semelhanças não devem fazer esquecer um ponto essen­cial, que é a colocação atual do problema no plano epistemológico, visando a desvencilhar a categoria de estrutura dos preconceitos que impediam a sua utilização como instrumento objetivo de com­preensão da experiência social, superadas tôdas as espécies de re­ducionismo de ordem econômica, psicológica, lingüística ou lógico--matemática.

§ 2. Limitando-nos ao estudo do tipo de estrutura aplicável na esfera das ciências humanas, talvez um breve escôrço histórico sôbre as transformações operadas no pensamento sociológico po­derá auxiliar-nos a mais precisa colocação do assunto.

Fazendo um confronto entre a Sociologia do século XIX e a atuaIS, Pitirim A. Sorokin observa que naquela predominava a concepção linear das transformações sócio-culturais, de manifesto caráter reducionista, em virtude da ênfase dada a êste ou àquele outro fator particular, a partir do qual se pretendia traçar a linha evolutiva e predeterminada dos acontecimentos históricos. Daí as diversas tentativas de reduzir a dinâmica social a uma passagem

4. Cf. FROSINI, na Rev. Int. Fil. deI D iritto, cit., pág. 168. Segundo êste jusfiJósofo italiano, o pensamento atual reelabora duas idéias fecundas de GoETHE, a de est7'ut1~ra (Gestalt) e a de função. É necessário acres­centar outro conceito goethiano fundamental, de polaridade, não em têrmos de "identidade dos contrários", mas sim no sentido de sua "complemcntarie­dade".

5. V. PIRITIM A. SOROKIN - Dynannique socio-culturelle et évolution-nisme, em La Sociologie a!b XXe Siecle, publicado por G. GURVITCH, e W. E. MooRE, Paris, 1947, págs. 96 e segs. Cf.. também, T. B. BOTTOMORE _ Introdução à Sociologio:, trad. de Waltensir Dutra, Rio, 1965, págs. 36 e segs. , e 198 e segs.

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gradual e progressiva, por exemplo, da comunidade (Gemeinschaft) para a sociedade (Gesellschaft) como na teoria de Ferdinand Ton­nies; da solidariedade mecânÃca para a orgân~ca (Durkheim e L. Duguit); de uma organizaçào social simples e homogênea para outras cada vez mais complexas e heterogêneas (Spencer e Durk­heim); do institu.cional para o ccntratual, ou de uma ordem imposta e coercitiva, de tipo físico, a uma de caráter teleológico e conven­cional (Henri Maine e Lester Ward); de um sistema de raças pU1'aS para uma forma final e decade.nte de mestiçagem (Gobi­neau); do regime de castas e de classes para "o dissolvente pre­domínio das massas, segundo a lei da entropia social" de L. Wi­niarsky, etc., etc. Adverte Sorokin que também Karl Marx, com o seu vaticínio sôbre a hecatombe capitalista e o trânsito para uma sociedade sem classes, situa-se no âmbito da "obsessão linear" que reinou na passada centúria 6.

Ora, tôdas essas e outras concepções monocórdicas revelaram­-se inviáveis, não só pelas contradições em que se envolveram os seus próprios autores, levados a admitir, mais tarde ou mais cedo, a intercorrência de outros fatôres autônomos, mas também à vista de fatos eloqüentes que vieram desmentir frontalmente tôdas as formas de generalização setorizada. Foi, pois, com apoio em da­dos lógicos e históricos, que os sociólogos novecentistas se incli­naram, cada vez mais, no sentido de converter aquelas concepções lineares em "tipos de transformações possíveis", insuscetíveis, po­rém, de operar no "vácuo social", isto é, com a eliminação de tôdas as demais tendências fundamentais que também atuam, de modo autônomo, na vida do homem e da sociedade 7. Por tais razões, o pens;lmento social veio se norteando rumo ao tratamento sistemático dos fatos sociais, desde a determinação de tipos ideais, de conformidade com os ensinamentos exemplares de Max Weber, até às pesquisas de "campos sociais" definidos, tendo como norma começar pela caracterização da situação como um todo dinâmico, caracteriza.do pela interdepe.ndência de suas partes e o sentido pros­pectivo de sua estrutura histórica. Dêsse modo, a sucessividade unilinear cedeu passo a uma compreensão plural dos comporta­mentos humanos, não só com a discriminação de mÚltiplas áreas e distintos ciclos de cultura (Spengler, Toynbee, Sorokin, Dani­levsky, etc.) mas também pelo reconhecime.nto de ritmos, oscila­ções, flutuações, periodicidades, Teversibilidades, etc. ·que nêles

6. V. SOROKIN, loco cito Já em o Estado Moderno, São Paulo, 1934, faço análoga observação sôbre o "reducionismo" sociológico e historiográ­fico próprio da mentalidade oitocentista.

7. SOROKIN, loco cito Cf. do mesmo autor, Las Filosofías Sociales de Nuestra Epoca de G1isis (El hombre frente a la crisis) trad. de Eloy Terron, Madri, 1954, págs. 140 e segs., e MIGUEL REALE - Plumlismo e Liberdade, cit. , págs. 76 e segs. Fundamental para a apreciação do assun­to, continua scndo a obra de FELIX lüuFMANN - Metodologia de las Gien­cius Sodales, trad. de Eugenio Imaz, México, 1946, págs. 285 e segs.

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atuam, compondo uma trama complexa na qual os conceitos de integração e desintegração, crise, diferenciação, contratualidade, mobilidade, estrutura e superestrutura, etc. , adquirem um sentido funcional e operacional, e não de pura determinação lógico-formal.

Há, em suma, uma prevalecente preocupação pelo estudo con­vergente de todos os fatôres atuantes no âmbito de cada campo de realidade social, sem preferências ou exclusivismos aprioristi­cos, marcando uma orientação que, em meu livro PlU1-alismo e Liberdade) qualifiquei como sendo "exigência de totalidade can­ereta))) a qual implica sempre a correlação ou a interdependência funcional dos elementos participantes, dando lugar a uma unidade irredutível a qualquer dêles ou à soma dêles, mas, também, impen­sável com abstração dêles.

§ 3. É no quadro dêsse contexto histórico que se situam as mais significativas contribuições de uma Sociologia cancreta ou estrutural) de Mannheim a Ginsberg, de Kurth Lewin a Gilberto Freyre e MacIver, de Parsons a Merto.n.

Segundo Parsons, para quem o estado de maturidade de uma ciência é dado por sua teoria sistemática) cabe ao sociólogo com­preender os fatos sociais em seus quadros de referência (frames of references) e em sua estrutura. "Fenômenos relacionados entre si de maneira significativa, constituindo um sistema, acham-se intrinsecamente ligados no plano estrutural. Éste fato parece ser inerente ao quadro mais geral de referências do próprio conheci­mento empírico, o que implica o papel fundamental do conceito de sistema pressuposto neste estudo. A estrutura é o aspecto está­tico do modo descritivo de tratamento de um sistema. Do ponto de vista estrutural, um sistema compõe-se de unidades) de subsis­temas que existem independentemente em potência, e de suas re­lações estruturais recíprocas" 8. Tais quadros de referências e categorias estruturais destinam-se a resolver os problemas da aná­lise dinâmica, objetivo principal da pesquisa científica, pela "ex­plicação causal" e a "predição de acontecimentos futuros" e, con­comitantemente, pela aquisição de um conhecimento analítico generalizado, ou de leis aplicáveis a um número indefinido de casos específicos, a partir de dados de fato apropriados. Dêsse modo, acrescenta Parsons, o conceito de estrutura importa no de função) cujo papel crucial é fornecer o critério e a importância dos fatôres dinâmicos e dos processos, no interior do sistema : "a idéia de função , escreve êle, implica o conceito do sistema empí­rico como um esquenw em movimento. A sua estrutura é cons-

8. Cf. TALCOTT PARSONS - "La théorie soCiologique systématique et ses perspeetives" , em La Sociologie au XXe Siecle, cit., pág. 41 e segs. ("The Present Position and Prospects of Systematic Theory in Sociology", em PARSONS - Essays in Sociological Theory, Pure and Applied, Glencoe, IIlinois, 1949, págs. 212 e segs.).

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titulda por um sistema de modelos determinados que a observação empírica revela como tendentes a ser conser1Jados) dentro de certos limites, ou, segundo uma Interpretação mais dinâmica como ten­dentes a se desenvolver segundo um modêlo empirica~ente cons­tante (por exemplo: o modêlo de crescimento de um organismo jovem) 9.

De conformidade com essa teoria estrutural-funcional dos sis­temas sociais, a ação integra-se em um sistema normativo teleo­lógico, ou melhor, .num sistema voluntarista de coordenadas: dando lugar a institUição de modelos que, diz Parsons, "indicam a direção desejável da ação, sob a forma de fins e standords de comporta­mentos". Mas, acrescenta êle, "um sistema social é, antes de tudo, um sistema de ação, isto é, de comportamento humano motivado, e não um sistema de modelos culturais" !o.

Parsons concebe, por conseguinte, a estrutura social como "um conjunto de relações cristalizadas em modelos relativamente estáveis", ou, por outras palavras, como "um sistema de relações­-modelos entre agentes capazes de desempenhar papéis uns em relação aos outros".

Os indivíduos que se situam no âmbito de uma estrutura social absorvem, uns mais, outros menos, os standards ou esquemas de ação esperados ou desejados no seio de seu grupo, de tal modo que tais modelos se tornam fôrças efetivas e atuantes no compor­tamento de cada um, independentemente de sanções externas. Constituem-se, assim, "sistemas de expectativas normativas", com diversos graus de eficácia, até às de tipo mais estável e solidário, dotadas de uma "base de legitimidade", admitida ou reconhecida pelos participantes, como se dá com as instituições) ou modelos institucionais. Daí o caráter normativo ou voluntarista atribuído à Sociologia, concebida como ((a ciência das instituições) ou) mais especificamente, como t~ma ciência de estrutt~m institucional))) sen­do as instituições ((elementos da estrutura social que encarnam melhor os modelos de integração habitual de um sistema de ação)) li.

9. Loc. cit., pág. 49.

10. Para maiores desenvolvimentos, cf. de PAHSONS - Structure of Social Aotion, Harvard University, 1949, capitulos XIV-XVII e Social StmctuTe and Personality, Harvard University, 1964. Significativa, indu-o s ive pela correlação de seu pensamento com a teoria dos tipos ideais, é a introdução de PARSONS à tradução inglésa da obra de MAX IVEBEI! _ Wirtschaft und Gesellschaft. O estudo dos fatos sociais em têrmos estru­turais -, com exceção do estrutu;ra.lismo francês, que, sob certos aspectos, retoma superadas concepções unilineares, como, por exemplo, a de entropia histórica fatal preconizada por LÉVI STRAUSS, - não é incompa tível , mas, ao contrário, se concilia plenamente Com a teoria compreensiva ou signifi­cativa de DILTHEY e WEBEI!, da qual é como que uma derivação e aper­feiçoamento.

11. Loc. cit., págs. 62-68. Quanto à correlação entre as "estruturas institucionais" e o processo de integração, peço vênia para remeter o leitor a o que exponho em T€O'ria do Direito e do Estado, cit., I Parte.

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São de grande alcance as contribuições de Parsons, assim co­mo as correlatas de Merton 12, ambos infundindo caráter mais positivo à tipologia weberiana, convertendo-a em teoria de cunho operacional, em função de dados empíricos cientificamente coligi­dos, mas não me parece que possa a Sociologia ser considerada ((ciência normativa)), a não ser em sentido impróprio, só pelo fato de estudar estruturas sociais que envolvem diretivas de conduta, ou instituições, as quais, por si mesmas, atuam como modelos, influindo no comportamento de quantos delas participem.

O fato de poder ser normativo, isto é, dotado de sent ido de obrigatoriedade, o sistema de comportamentos humanos motivados, _ objeto de estudo da Sociologia, - não converte esta em uma "ciência normativa" , no sentido próprio dêste têrmo, que implica a indagação dos modelos de ação enquanto tais, isto é, enquanto tidos e havidos corno obrigatórios) e em funçâo das conseqüências resultantes de seu adimplemento ou de sua violação. Na realidade, uma coisa é estudar fatos sociais dotados de sentido normativo (e o próprio Parsons, como vimos, é o primeiro a reconhecer que a tarefa da Sociologia consiste principalmente na pesquisa dos com­portamentos motivados, e não no estudo de um sistema de modelos culturais) e outra coisa é indagar do sentido normativo dos fatos para, através de um processo de opção valorativa) culminante num ato decisório, declarar a obrigatoriedade de dado «sentido de ação)) como necessário à comunidade. É nisso que a pesquisa do soció­logo difere da do jurista 13. :É por tais razões que prefiro dizer que a Sociologia é ciência compreensiva, ao passo que o Direito é compreensivo-normativà, conforme já exposto . no § § 10 e segs. do EnsaioV. .

II

O CONCEITO DE ESTRUTURA NO PLANO FILOSóFICO E . NO CIENTíFICO-POSITIVO

§ 4. Nas pagmas anteriores, já tive a oportunidade de lem­brar algumas noções firmadas no campo das ciências sociais reI a-

12. Cf. MERToN - Social Theory and Social Stmcture, Columbia Uni­versity, 1956; MORRIS GINSBERG - Reason and Unreason in Society, Har­vard Uno Press, 1948.

Para um apanhado compreensivo das "teorias sistemáticas", v. FILlPPO BARBANO - Teoria e Ricerca nella Sociologia Contemporanea, Milão, 1955; SALUSTIANO DEL CAMPO - La Sociologia Cientifica Contemporanea, 1962; JosÉ MEDINA ECHAVARR!A - Sociología-Teoría y TéC1~ica, México, 1941, págs. 140 e segs.; RECASÉNS SrCHEs - Tratado General de Sociologia, México, 1960, 3.' ed., págs. 75 e segs., T. B. BOTTOMORE - Intr odução à Sociologia, cit. , capo 7 e PAULO DOURADO DE GUSMÃO - Teorias Sociológicas, 2.' ed., Rio , 1968, págs. 173 e segs.

13. Em estudo intitulado "The law as social control", na cole tânea organizada por WILLIAM E . EVAN - Law and Sociology, Nova-Iorque, 1962, págs. 56 e segs., TALCOTT PARSONS reconhece que "o Direito não é uma

o DmEITO COMO EXPERIÊNCIA 155

tivamente ao conceito de estrutura, mostrando como o problema é pôsto no plano empírico-positivo, notadamente no da Sociologia.

l<': preciso, todavia, indagar das condições transcendentais de possibilidade das estruturas sociais, ou, por outras palavras, das razões primeiras em virtude das quais a vida social se ordena segundo esquemas e modelos plurivalentes, dotados de objetividade de sentido) até mesmo nas formas mais rudimentares da convi­vência humana, sem se falar no problema sempre aberto da possí­vel sistematização dos fatos sociais segundo leis de validade uni­versal, o que, no fundo, envolve a existência mesma da Filosofia da História.

Limitando-me ao primeiro aspecto da questão, por mais ati­nente à Epistemologia Juridica, parece-me que o caráter esque­mático ou estrutural da vida humana, longe de reduzir-se a um jôgo de esquemas vazios, reflete, em tôda a sua potencialidade, a natureza da consciência humana na sua dupla função intencional e objetivante.

Não fôsse a consciência humana uma consciência intencional de ordem, - o que revela que o senso estético, o lógico e o prag­mático estão ligados por uma identidade de raízes, - não houvesse no homem, até mesmo nos estádios mais incipientes da cultura, uma natural predisposição para "dar sentido" ao que entra no círculo de suas atividades, não teria sido constituído o "mundo cultural", que é um universo de intencionalidades objetivadas.

Já cuidei dêsse assunto no Ensaio preambular desta obra, mas desponta aqui um problema que merece breve referência, o da compreensão plu1'ivalente da intencionalidade, superadora do as­pecto prevalecentemente descritivo que Husserl e seus seguidores têm pôs to em realce no trato desta matéria.

A meu ver, a intencionalidade da consciência implica três valências que se compõem em uma estrutura indecomponfvel (Ges­taZt) que se projeta e se reflete nas estruturas histórico-culturais, vinculadas como são sempre à fonte da subjetividade outorgadora de sentido. A primeira valência é a que tem sido posta em realce pela fenomenologia, em sua acepção gnoseoZógica, descritiva da relação sujeito-objeto, ou do nexo noesis-noema; a segunda refe­re-se ao ato valitivo-constitutillo inerente ao conhecimento, que "põe algo", como correlato de ((conhecer algo"; a terceira é a va-

categoria descritiva do comportamento efetivo e concreto, mas se refere antes a modelos, normas e regras aplicáveis aos atos e papéis das pessoas e das coletividades. O Direito é um aspecto da estrutura social, mas situado em um nivel particular, que deve ser cuidadosamente especificado. Segundo determinada terminologia sociológica, poder ia chamá-lo um fenô· meno inst itucional. J1;le cuida de modelos norma tivos (it deals with ?'lor­mathJe patterns) aos quais se aplicam várias espécies de sanção". Como veremos, os modelos jurídicos não podem ser concebidos como modelos contrapostos às "estruturas concretas" estudadas pelo sociólogo, como se poderia inferir do texto ora lembrado.

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lência axiológica ou sign.ificativa de algo conhecido e pôsto pelo espírito, implicando, no caso das estruturas sociais, o sentido deontológico de sua legitimidade. O aspecto axiológico do pro­blema representa o cerne de tôda a Ética material de valôres de Max Scheler.

Em virtude de ser a estrutura intencional da consciência, a'O mesmo tempo, cognoscitiva, constitutiva e deontológica, o homem foi e é capaz de fundar o mundo da cultura, dando nascimento às estruturas sqciais e históricas, que são tanto um repositório vivo e atuante de intencionalidades, como a cristalização de intenciona­lidades que parecem perdidas no tempo, não se sabendo jamais com segurança se podem ou não ser outra vez trazidas ao palpitar do "ato histórico presente".

É ainda a apontada trivalência da «estrutura intencional" 14

da consciência que explica a tridimensionalidade de tôdas as espé­cies de "bens culturais", os quais pressupõem sempre a constitui­ção de algo compreensivo de um valor segundo certa proporção ou medida (lei, forma ou norma) consoante penso tê-lo demo.ns­trado em minha Filosofia do Direito, nos capítulos destinados à "fenomenologia da ação e da conduta".

Assim como uma estátua é uma estrutura, na qual os três elementos, _ o material empregado pelo artista, a sua intencio­nalidade estética criadora e a forma alcançada, - compõem um todo válido em si e por si, de tal modo que o sentido objetivado se confunde com a sua fôrça interior constitutiva, o mesmo se poderá dizer de tôdas as estruturas sociais, quer das originárias (chamo assim as que surgem no nível imediato do ato constitu­tivo) quer das derivadas, que resultam da composição de estruturas pré-formadas, até o aparecimento de "constelações estruturais", das quais o ordenamento jurídico é exemplo dos mais expressivos. Visto sob êsse ângulo, o direito é um todo de significações orde­nadas em sistema, uma significativa macroestrutura social, histà­ricamente composta de estruturas e subestruturas ordenadoras de comportamentos intersubjetivos.

§ 5. Pois bem, sendo cada estrutura social um "todo de significações", determinado pela polarização de uma valoração­-matriz, compreende-se a impossibilidade de compreendê-la em têr­mos de mera causalidade, ou de puras relações formais, como o pretendem certos defensores exacerbados do estruturalismo, que sacrificam a concretitude do real aos seus esquemas reducionistas. Ao contrário do que pretendem tais autores, o conceito de estru­tura, no âmbito das ciências sociais, é inseparável de sua com-

14. CARNAP emprega o têrmo "estrutU/Ta intencional" mas no nível da análise semântica, para designar sentenças intencionalmente isomórficas (Cf. RUDOl.F' CARNAP _ Meaning and Necessity - A Study in Semantics and Modal Logic, 4.' ed., Chicago e Londres, 1964, págs. 56 e segs.)

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o DIREITO COMO EXP'ERlÊNCIA 157

preensão axiológica, isto é, do elemento significativo ou compreen­sivo pôsto em realce na linha Di1they-Weber 15.

A estrutura dos fenômenos sociais apresenta, com efeito, ca­racterísticas inconfundíveis com as dos fenômenos físicos e bioló­gicos, de tal sorte que ao conceito de "causalidade sócio-cultural" devem corresponder métodos, princípios e técnicas diferentes d'Os aplicáveis naqueles 'Outros d'Omíni'Os do c'Onhecimento. Já foi lem­brado ,neste livro 'O c'Onceit'O husserliano de «causalidade motiva­cional", que c'Orresp'Onde, em linhas gerais, ao que na corrente Dilthey-Max Weber se estabelece quand'O se fala em relações fun­dadas em c'Onexões de sentido 'Ou em significações tipológicas, 'Ou ao ,que Maclver designa como relação entre "estimações dinâmicas coletivas", ou ainda à teoria de Sorokin sôbre "relações ao mesmo tempo referidas às significações e à causalidade" 16.

A êsse m'Od'O de pensar c'Orresp'Onde, substancialmente a po­siçã'O de Merleau Ponty, que, após distinguir com admirável pene­tração as estruturas d'Os mundos físico e bi'Ológico, salienta as peculiaridades das estruturas do mundo human'O. A tôdas essas três ordens é comum o c'Onceito de forma, como um "conjunto de fôrças em estado de equilíbrio 'Ou de mudança constante, de tal modo que nenhuma lei seja formulável para cada parte tomada de per si, e cada vetor seja determinado em grandeza e em direção por t'Od'Os os outr'Os" 17, mas, isto não obstante, na 'Ordem psíquica a causa e o efeito não são dec'OmponÍveis em elementos reais que se c'Orrespo.ndam um a um. Na ordem psíquica, além da possibili­dade de produçã'O de novas estruturas, graças à fôrça projetante do trabalho, - o qual inaugura uma "terceira dialética", inter­pondo, entre as coisas percebidas e 'o h'Omem, o mundo dos objetos

15. Tal fato é reconhecido inclusive por autores que dão ênfase ao tratamento matemático dos problemas sociais. (Cf.. neste sentido, RAY­MONO BOUOON - L'AnaJ,yse Mathema,tique des Faits Sociaux, Paris, 1967, págs. 27 e segs,) que, recusando embora à "compreensão" dús fatos sociais o estatuto de um método específico, exclui se possa ignorar a significaçã,o dêles. A seu ver, é DURKHEIM o autor que dá à "compreensão" o trata­mento epistemológico mais conveniente. Segundo BOUDON. considerado sob o prisma da "teoria compreensiva", ÉMIl.E DURKHEIM estaria bem mais pró­ximo de WEBlêR, do que o enunciam os historiadores da Sociologia (op. cit., pág. 416). A doutrina sociológica de DUIlKHEIM pressupõe, efetivamente, uma compreensão estrut1tral e significativa da sociedade.

16. Cf. SOIlOKIN. loco cit., págs. 118 e segs. Sôbre o conceito de comp!"eensão de Dilthey-Weber, cf. RAYMOND AIlON - La Sociologie Alle­mande Contemporaine, 2,- ed., Paris, 1950, págs. 109 e segs.; GEORGES GURVITCH - Les Tendances ActueUes de la Philo8ophie Allemo,nde, Paris, 1930; V. KAUFMANN - op. cit., págs. 199 e segs. e MEDINA ECHAVARRIA, op. cit., págs. 66 e segs. Quanto à "compreensão" das regras de direito, com referência ao pensamento posterior de JASPERS, ROTHACKEIl, BOl.I.NOW, v. a já citada obra de KARI. ENGISCH - Introdução ao Pensamento Jwidico, págs. 136 e segs.

17. V. MERl.EAU PONTY - La Structure du Comportement, cit, pág. 147.

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158 MIGUEL REI\LE

de uso (Gebrauchsobjekte) na terminologia de Husserl) e os obje­tos culturais) - deve-se notar que a ação do homem é irredutível a uma simples relação exterior de meio a fim.

Segundo Merleau Ponty, é impossível tratar a ação humana como "uma outra solução dos problemas que o instinto resolve", segundo relações extrínsecas de estímulos e respostas, de meios a fins: "a análise dos fins da ação e de seus meios é substituída pela de seu sentido imanente e de sua estrutura interior" 18. O homem, sem dúvida, veste-se para proteger-se do frio, mas o ato de . vestir-se torna-se a arte do vestuário e também o ato do pudor , revelando-se, assim, uma nova atitude para consigo mesmo e para com os outros. Só os home,ns percebem que estão nus. É impos­sível, pois, descrever o advento da ação e da percepção humanas reconduzindo-as à dialética vital do organismo e de seu meio, ainda que modificado pelas contribuições de uma causalidade sociológica; nesse domínio 'O pensamento causal não é indispensável, podendo-se falar outra linguagem, em têrmos de uma "estruturação (Gestal­tung) N eugestaltung) progressiva e desco.ntínua do comportamento", como "um conjunto significativo para uma consciência que o con­sidera". Donde a conclusão fundamental superadora de tôdas as concepções unilineares: ((como o complexo de F'reud) a estrutura econômica não é senão um dos objetos de uma consciência tmns­cendental)) 19.

Como se tem afirmado que essa concepção estrutural-funcional da realidade é incompatível com o conceito de finalidade) cabe ainda esclarecer ' que não o é quando se abandona a noção de f im) enquanto meta predeterminada e extrinsecamente imposta à subjetividade, para concebê-lo como projeção da intencionalidade no momento concreto da ação.

É de suma importância o entendimento da ação como expres­são, ao mesmo tempo, . de causa e de fim) não como eleme,ntos sobrepostos, mas antes como fatôres interrelacionados, tal como resulta sobretudo dos estudos de N. Hartmann, demonstrando não só que, na atualização dos fins, os meios funcionam como causas e os fins tomam a forma de efeitos, como também que o processo teleológico depe.nde do causal: não poderia existir ação, cuja estru­tura é sempre teleológica, se o mundo não fôsse causalmente de­terminado. Por outro lado, sublinha Hartmann, não há antítese entre o mundo, assim ontologicamente considerado, e a liberdade da vontade 20.

18, Op. cit" pág. 188, 19. Op. cit.) págs, 192 e segs. e 237 e segs. 20. Cf. N. HARTMANN - Ethics, trad. de J. H . Muirhead, Londres, 1950,

voI. lII, págs. 77 e segs. No tocante aos conceitos de função e de /iluzlulcule, para saber-se em

que acepções o primeiro implica o segundo, v. o que escreve J, PIAGET na

o 1)lIa:lTO ('0;\10 EXPt:I:if:i\:CIA 1:;9

§ G. As considerações expendidas no parágrafo anterior re­ferem-se ao plano filosófico, que conecta indissoluvelmente as estruturas sociais à sua fonte originária, isto é, à plurivalência da consciência intencional, mas é claro que não é êsse o nivel no qual operam os historiadores, os sociólogos ou os juristas. Êstes recebem as estrutul'as ob,ietivadas coniO realidades a se) e as ma­nipulam como dados empíricos oferecidos à sua análise e teorização.

Nesse plano, que poderia ser considerado "segundo", apenas sob a perspectiva de sua fundação subjetiva originária, o problema ela estrutura dos comportamentos sociais é pôsto em função de dados empíricos, cujas conexões de sentido ficam necessàriamente cit'cunscritas a um campo particular de observação.

Seria absurdo, porém, que no plano ela experiência não se concretizassem as valências percebidas como condições transcen­dentais de tôdas as espécies possíveis de "estrutura social".

Analisando-se, com efeito, as conclusões obtidas pelas diversas ciências sociais, no tocante ao problema das "estruturas" que se constituem no plano histórico-cultura!, verifica-se que nelas se reencontram, in concreto) os mesmos característicos fundamentais discer,níveis na unidade p'Olivalente da consciência intencional, po­dendo dizer-se que há um isomorfismo entre a estrutura da cons­ciência transcendental e as estmturas psíquicas e sociais.

Como já foi advertido no início dêste Ensaio, as diversas categorias de estrutura no plano experiencial pressupõem uma base de característicos comuns, os quais resultam da estrutura da consciência intencional, que é o foco de emergência de tôdas as realizações históricas, condicionando, não obstante a diversidade das criações do espírito humano, a unidade da cultura e da ciência.

Pois bem, como conclusão de tudo o que foi relembrado, e tendo-se presente que o fenômeno cultural pressupõe sempre inter­subjetividade e comunicação) poder-se-ia dizer que o conceito de estrutura social oferece diversas perspectivas que não se excluem, mas antes se compõem num "tipo-ideal", ou "eonceito operacional", como;

coletânea intitulada Epistemologie Génétique et Recherche Psychologiqne, Paris, 1957, estudo lI, § 5, após observar que "a noção de finalidade encerra, de uma parte, três significações sôbre as quais todos os 'autores _ fina­lis tas ou anti finalistas - deveriam, a nosso ver, estar de acôrdo: 1 ) utilidade funcional; 2) adaptação; 3) antecipação ou regulação nntec; ­parlora; e, de outro lado, uma quarta significação que pode estar ou não unida às três primeiras, dando lugar ao debate : 4) finalidade ou plano preestabelecido",

Com relação à "estrutura teleológica", v, a s penetrantes observações de RC;CASI~NS SrcHEs - Tratado GeneraZ de FilosoNa deZ Derecho, cit. , págs, 75-77, afirmando que, se o esquema meio-fim pode ser mental men te concebido sob a forma cClusa-efeito, não se deve olvidar que o primeiro pressupõe esta outra estrutura : rnotÍ'tJo-fim. O fim só se põe como conse­qüência de um motivo e êste afunda as suas raízes na existência humana,

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160 MIGUEL REALE

a) unidade históricamente integrada, na qual os elementos componentes só logram plenitude de significado referidas ao todo, cuja significação é irredutível a cada um ou à soma daqueles elementos;

b) unidade polarizada no sentido de um valor ou idéia matriz que atua como sua íntima fôrça constitutiva e razão de sua forma, na qual as atividades diferençadas se correlacionam e se complementam, segundo índices variáveis de duração e continuidade;

c) unidade vetorial e tensional, de tal modo que a mudança de sentido dos elementos componentes envolve a do todo, e vice-versa;

d) unidade de caráter funcioru;U, como instrumento essencial de comunicação, inseparável, por conseguinte, de suas con­dições de realizabilidade;

e) unUku1e situacional, isto é, correlacionável com outras es­truturas atuantes no mesmo contexto histórico, dando lugar à formação de estruturas englobantes, sem prejuízo das funções que lhe forem imanentes e próprias.

TotalUku1e plural, complernentariedade, historicidade, vetoriali­dade, tensionalidade e durabilidade, eis ai os elementos mais rele­vantes discerníveis, em maior ou menor grau, nas estruturas sociais, abstração feita das peculiaridades de seUs diversos tipos, em função das distintas esferas de atividade e de pesquisa.

A simples enumeração dos característicos supra apontados está a demonstrar que, a rigor, as estruturas socwis são as institlúções fundamentais de uma sociedade, a qual, compreendida no seu todo pluridimensional,também pode ser vista como uma estrutura. Des­sarte, nem tôdas as relaçÕ€s sociais são estruturas sociais, mas tô­das se estruturam em função delas, distinguindo-se as sociedades abertas pela pluralidade de suas formas de vida, as quais podem se converter em estruturas sociai,s propriamente ditas, assim como essas entidades, por sua vez, podem sofrer, por assim dizer, a alte­ração em seu status em confronto com as demais, numa correlação funcional ou homóloga, para empregarmos expressão de Lévi Strauss. O conceito de estrutura, como unidade pluridimensional de elemen .. tos interrelacionados, cobre todo o campo do social, desde as estru .. turas sociais, propriamente ditas, nas quais a Gestalt se apresenta na plenitude de suas valências, até às relações sociais aparentemente destituidas de qualquer senso imanente de ordem.

Como se vê, ao contrário do que afirma Parsons, em cuja doutrina ainda subsiste um dualismo entre estrutura e fum,;ão, que reflete a antiga colocação do problema feito por Augusto Comte em têrmos de estática social e dinâmica histórica, mister é

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 161

tomar as estruturas sociais na historicidade funcional que lhes é imanente.

No tocante ao Direito, então, as estruturas do comportamento humano assumem uma feição histórico-funcional inconfundivel, em . virtude de sua polarização no sentido da normatividade, a tal ponto que conceitos como os de "instituição" ou de "institucional", por exemplo, válidos para o sociólogo, sofrem necessária variação se­mântica para cOlTesponderem à experiência do jurista.

lU

NATUREZA DOS MODELOS JURIDICOS

§ 7. N o campo da expenencia jurídica, focalizada sob \) prisma que mais interessa à Política do Direito e à Jurisprudência, as "estruturas sociais" apresentam-se sob a forma de estruturas normativas, ou "sistemas de modelos", sendo cada modêlo dotado de uma especial estrutura de natureza tridimensional. A análise das significações dêsses modelos, de sua linguagem específica, bem como do papel e das funções que os mesmos desempenham como elementos compone.ntes das estruturas normativas fundamentais, integradas, por sua vez, no macromodêlo do ordenamento jurídico, eis o objeto primordial da Dogmática Jurídica 21.

Consoante já acentuei, o emprêgo da palavra modêlo vai-se tornando cada vez mais freqüente na linguagem dos juristas, como algo de familiar, que vem ao encontro de exigências conaturais à Jurisprudência, mas sem uma clara colocação do problema em

21. Sôbre o assunto, além do escrito de CESARINI SFORZA, citado no Ensaio anterior, cf. MICHEL VIRALLY - "Le phénomene juridique", em ReV'ue du Droit Public et de la Science Politique, 1966, n.~ 1. págs. 14 e segs.; AMSELEK - Méthode Phénomélwlogique et Théorie du Dmit, Paris. 1964, págs. 66 e segs., os quais não se propõem, todavia, o problema de uma "teoria dos 'modelos juridicos". Segundo me parece, nem mesmo MORllls COHEN se ocupou do assunto, apesar de ter destinado à "teoria dos modelos", em geral. todo o capítulo 7.- de sua obra An Introduction to Logic and Scientific Method, escrita em colaboração com E. NAGEL. Nova­Iorque. 1934. Para uma bibliografia atualizada sôbre a teoria dos modelos. The Encyclopedia, of Philosophy, o verbête "Model and analogy in science", de autoria de MARY HESSE (voI. 5, págs. 354 e segs.) e o de LEoN HENKIN sôbre "System,8, formal and models of formal system", Com referência às ciências sociais, mas em sentido lógico-matemático, v. a obra de RAYl\10ND BOUDON - L'Analyse Mathematique MS F'aits Sociaux, cito A aplicação de estudos dessa natureza no campo do Direito seria talvez mais proveitosa que certos cálculos infecundos da Lógica Jurídica formal.

Para uma compreensão dos modelos no âmbito da cultura soviética, v. ADAM SCHAFF - Introduction to SelrUlntics, Pergamon Press, Varsóvia, 1962, trad. de Olgicrd Wojtasiewicz. pág, 50.

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confronto com o de estrutura em geral, o que se explica, em parte, pelo uso indiscriminado dos dois têrmos em obras de Sociologia.

A compreensão das estruturas sociais como sistemas de mo­delos, no plano da Dogmática Jurídica, resulta da observação, fundamental à teoria tridimensional específica, de que, do ponto de vista da J urisprudência, cada solução normativa positivada re­lJresenta o superamento de uma tensão fático-axiológica, numa estrutura que, ao mesmo tempo que torna objetiva a certeza do direito, garante situações e formas de agir aos elementos que dela participem, preservando-se o valor de cada un1 dêles e o do todo.

As estruturas sociais, quando focalizadas sob o pri$ma dogmá­tico-juridico, põem-se, em suma, como estruturas normativas, de tal sorte que a experiência social, que para o sociólogo se configura como um sistema de estruturas, apresenta-se aos olhos do jurista na objetividade do sentido normativo que lhes é imanente, isto é, enquanto sistema de modelos.

Poder-se-ia dizer que a compreensão da experiência juridica em têrmos de modelos é de uma estrutura normativa que ordena f atos segundo valôres, numa qualificação t ipológica de comporta­mentos futuros, a que se ligam determinadas conseqüências.

Quando as conseqüências assim prefiguradas não são apenas enunciadas, mas queridas na forma enunciada, isto é, quando a previsão da conduta típica exprime uma volição, resultante de um processo de escolha, feita por quem tenha competência para deci­dir-se por uma dentre as várias soluções normativas compatíveis com a estrutura social examinada, temos os modelos jurídicos pro­priamente ditos. Os atos volitivos são a mola impulsiva do direito, o qual nasce da intenção ou do propósito de satisfazer a valôres e interêsses, exigindo, para o seu aperfeiçoamento, a convergência de atos decisórios capazes de dar fôrça e garantia a determinada forma típica de comportamento. Os modelos jurídicos surgiram nos pri­mórdios da civilização, no seio das primeiras experiências precate­goriais, antes, pois, · do homem ter-se dado conta da logicidade ine­rente às suas rudimentares ordenações da conduta. Nada de estra­nhável que, nas fases iniciais da civilização, o milagre da forma e a sedução dos modelos se tenham impôsto ao homem como algo de válido em si mesmo, verificando-se o paradoxo de uma subordinação aos ritos jurídicos tanto mais acentuada quanto menos percebido o seu significado real. Foi só com o processar-se da civilizaç.ão que a humanidade tornou objeto de ciência as formas plasmadoras da ação, adquirindo, paulatinamente, consciência do que representa, como instrumento de liberdade, a conversão dos ri tuais jurídicos em formas operacionais e em técnicas de formalização. Talvez se possa dizer que a história do Direito assinala uma libertação das formas abstratas opressivas, graças à compreensão do sentido con~ ereto da forma (Gestalt).

o DIREITO COMO EXPEflltNC!,' 163

Em verdade, à medida que a humanidade veio aprimorando os seus processos culturais, os modelos foram perdendo o seu primi­tivo sentido sacral, e tendem cada vez mais a se livrar de sua feição material de "comando", para se enquadrarem num contexto teórico, à cuja luz as prescrições jurídicas adquirem objetividade transpessoal, correlacionando-se entre si harmõnicamente como ex­pressões dos vaJôres comuns de convivência. P ois bem, tais "con­textos teóricos", que envolvem os modelos jurídicos, constituem os "modelos do Direito" isto é, da Ciência Dogmática do Direito, ou, pura e s implesmente, os modelos dognuíticos 22. Há nestes, sem dúvida, certa opção ou preferência, mas de outra ordem, resultante que é da aferição objetiva dos elementos analisados; nesse nível, a previsão dos comportamentos típicos e de seus efeitos não culmina num ato volitivo, mas corresponde antes a uma atitude intencional­mente compreensiva e teorética.

Modelos jurídicos são, em suma, os que surgem na exper iência jurídica como estruturação volitiva do sentido normativo dos fatos sociais; nwdelos do D ireito ou dogmáticos são estruturas teoréticas, referidas aos modelos jurídicos, cujo valor êles procuram captar e atualizar em sua plenitude. Em ambas as hípóteses, todavia, -por mais que se distingam os objetivos que os põem in esse, - há uma nota comum, que é a natur eza operacional própria dos instru­mentos de vida e convivência humana, governando tanto a inten­cionalidade volitiva dos modelos jurídicos como a intencionalidade teorético-compreensiva dos modelos dogmáticos.

Por outras palavras, os modelos jurídicos se estruturam graças à integração de fatos e valôres segundo normas postas em virtude de um ato concomitante de escolha e de prescrição (ato decisório), o que, como veremos, pode ser tanto do legislador ou do juiz, como resultar das opções costumeiras, ou de estipulações fundadas na autonomia da vontade. J á os modelos dogmáticos são os elabora­dos no âmbito da Ciência do Direito como estruturas teórico-com­preensivas do significado dos modelos jurídicos e de suas condições de vigência e de eficácia na sistemática do ordenamento jurídico.

§ 8. Em páginas anteriores, tive a oportunidade de examinar o confronto feito por Talcott P arsons entre o nível de pesquisa do sociólogo e o do jurista, entendendo êle que êste não desenvolve "categorias descritivas dos efetivos comportamentos concretos", mas se preocupa com "modelos dêsses comportamentos", o que poderia. ser interpretado, errôneamente, como r ecusa de concreção à Ju­risprudência.

22. Essa distinção entre "modelos jurídiéos", como entidades histó­r ico-culturais concretas, e "nwdelos do Direito, ou dogmátiéos" só em parte corresponde à fe ita entre "linguagem do jurista" e "linguagem do Direito" , a que se r eferem certos cultores da Lógica Jurídica (Cf. KALINOWSKI -op. cit., págs. 53 e segs. l.

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Não há dúvida que tanto a Política do Direito, que cuida mais da nomogênese jurídica de lege ferenda} como a Jurisprudência, que se preocupa mais com a aplicação do direito (de lege lata) não se contentam com a mera descrição dos comportamentos sociais, pois ambas visam a determinar o que nêles pode e deve ser racio­nalmente qualificado em têrmos de conduta típica. O modêlo nor­mativo significa} dêsse modo} o resultado de uma "qualificação ti­pol6gica"} isto é} de um ato abstrativo que pressupõe a existência de dados de fato e de valor suscetíveis de enquadramento pluriu­nitário 23•

A tipificação normativa não é, por conseguinte, uma obra cerebrina ou imaginosa, fruto de um querer arbitrário, mas sim o resultado de uma análise positiva de dados empíricos, análise essa que culmina sempre num ato decisório, na eleição de uma dentre duas ou mais soluções possíveis, tal como será examinado melhor no Ensaio seguinte, relativo à nomogênese jurídica e à vida dos modelos do direito.

Por ora, parece-me necessário esclarecer algo de essencial aos modelos jurídicos em confronto com outras modalidades de estru­tura. Já foi dito que as estruturas sociais se constituem em virtude de uma fôrça íntima e própria, e não como conseqüência de sua adequação extrínseca a um fim preestabelecido} pôsto ab extra} consoante o pretende o finalismo abstrato. As realidades estru­turais são inseparáveis de sua vis construtiva e expansiva, pois, em última análise, com ela fazem corpo, sendo como são as suas "formas concretas",

No caso particular do direito, é a implicação dialética de fôrças efetivas, de natureza fática e axiológica, que engendra a estrutura normativa, como já tive a oportunidade de dizer, mas há uma particularidade digna de nota: a normatividade jurídica marca sempre um momento de racionalidade volitiva} de equacionamento de fatos segundo valôres) numa necessária conversão do axiol6gico em teleol6gico, Trata-se, porém, de um finalismo concreto, que se projeta ou se expande da íntima estrutura da aç.ão, podendo-se dizer que o fim não é senão a veste ·racional do valor, isto é, o valor enquanto reconhecido como motivo determinante da ação. Nesse sentido particular será lícito afirmar que o modêlo jurídico é de natureza teleológica, sem que isto Signifique que sejam os modelos jurídicos engendrados para corresponder· a pretensos "fins ou modelos ideais" existentes fora da experiência concreta, como protótipos ou arquétipos inhistóricos.

23. Nesse sentido, no âmbito da Ciência Polí t ica , escreve GIUSEPPE MARCHELLO, em La Teoria dello Stato como Libertà, Milão, 1965, pág. 37, que o trabalho científico se resolve numa qualificação típica (ou tipoJó­gica) dos dados da experiência progressivamente elaborados e sistemati­zi'ldos com técnica rigorosa.

o DIREITO COMO EXPERlflNCIA 1G3

Nada deve ser mais imerso no fluxo vital da expenencia do que a modelagem do direito, muito embora a sua forma ou estru­tura só seja possível com a abstração e o sacrifício do secundário e do residual, preservando-se as linhas essenciais da ação} num tra­balho rigoroso e delicado de qualificação tipológica) que representa o cerne da pesquisa científica. Não há que falar, porém, em afas­tamento ou em perda do real concreto como característico dos modelos jurídicos, pois, se algumas vêzes, êles são o fruto de atos arbitrários de autoridade, não é menos certo que, em tais casos, ou têm vigência formal temporária, ou não chegam a se converter em elementos operacionais} carecendo de adequada eficácia no plano da ação. As soluções normativas, não fundadas na experiência, não são modelos jurídicos} no sentido rigoroso dêste têrmo, que implica, em consonância com a estrutura tridimensional do direito, a correspondente correlação entre fundamento) vigência e efetividade ou eficácia 24.

Além disso, mesmo quando as snluções normatívas surgem divorciadas da realidade, a tendência natural do jurista, no ato de interpretá-las, é no sentido de reconduzi-Ias ao leito da experiência, recuperando-se, a través da exegese e da aplicação prudente, os olvi­dados valôres de realizabilidade concreta.

Elaborar um modêIo jurídico é, por conseguinte, um trabalho de aferição de dados da experiência para a determinação de um tipo de comportamento não só possivel, mas considerado necessário à convivência humana. Há, por certo, na instauração de um mo­dêlo jurídico, um ato volitivo superador dos nexos causais, para conferir valor paradigmático a uma dada estrutura normativa, que, dêsse modo, não fica jungida ao plano das relações empíricas, o que explica tenha Hume falado em ({artifício)} e Olivecrona em «i1naginoso)} a propósito das regras jurídicas. O que há, pnrém, é uma tomada de posição} de fundo necessàríamente axiológico e volitivo, perante a realidade social e em função dela, de tal modo que entre o modêlo jurídico} preferido ou reconhecido, e a expe­riência deve haver uma correspondência isomórfica, como condição de seu êxito Gp6'racional, ou de sua efetividade. De certo modo, por presumir-se que o modêlo jurídico corresponda a um conjunto mo­tivacional fundado na análise objetiva dos fatos sociais, como para­digma de comportal1wntos· normalmente p1·et-'isíveis} proclama-se, entre outras razões, a obrigatoriedade universal do direito, não se admitindo, em regra, a ignorantia juris como excusa de seu não adimplemento.

Isto pôsto, se é indispensável que o paradigma normativo seja isomórfico em relação à eh-periência social, e que como tal se man-

24. Sôbre a correlação "fundamento-vigência-eficácia", cf. minha Filo­sofia do Direito, 4.' ed., cit., págs. 506-531 e Teoria Tridimens0nal do Direito, cit., págs. 28-36.

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tenha através das mutações operadas nela, compreende-se a exi­gência metodológica de uma qualificação tipológica da conduta hu­mana, segundo critérios cada vez mais objetivos e seguros.

A qualificação e a tipiciclade têm sido analisadas separada­mente, quando, na realidade, são aspectos inseparáveis da pesquisa cie.ntífica do direito Na. Tem-se dado mais ênfase à primeira no cam­po do Direito Internacional Privado, no qual as normas jurídicas em conflito figuram como dados para uma qualificação de sobredireito, o que lhe dá um cunho de metalinguagem jurídica. Em tal hipótese, com efeito, a qualificação versa sôbre modelos legais de sistemas jurídicos distintos, modelos êsses que não só surgiram em virtude de uma qualificação tipológica própria, mas também pressupõem problemas de qualificação intra-sistemática em cotejo com a per­tinente a outros sistema. Poder-se-ia, pois, dizer que, visto como um todo, o Direito Internacional Privado opera como um meta­modêlo jurídico, tendo como objeto significações de modelos in­tersistemáticos em conflito, o que reclama uma convergência de análises tipológicas.

Da mesma forma, nos domínios do Direito Penal tem-se cuidado mais da tipicidade, no plano fático, mas ela implica, necessàriamente, um problema de qualificação normativa, sob pena de perder-se o seu sentido concreto, o que demonstra que o processo de qualifica­ção-tipológica é essencial à gênese e à compreensão de todo e qualquer modêlo jurídico.

Se, em suma, o pesquisador do direito não fica jungido à "descritiva do fato concreto", nem por isso se pode pensar nos modelos jurídicos como algo de desligado da experiência, pois, consoante já observei, tôda estrutura normativa, enquanto unidade integrante e superadora de uma tensão fático-axiológica, é forjada na experiência e vive em função dela. Há, em suma, na distinção de Parsons o preconceito positivista de só considerar concreto o que se põe como fato , quando a concreção deve ser antes entendida em têrmos de correlação dos elementos na unidade f7tncionaZ da estrutura. A esta nova luz, os modelos jurídicos são "concretos" na medida e enquanto a normatividade nêles abstratamente expres­sa se correlaciona necessàriamente com fatos e valôres, que são as outras duas dimensões estruturais do direito: são, em suma,

modelos operacionais, e não meros esquemas ideais. Não são, porém, apenas os sociólogos que se inclinam a ver os

modelos jurídicos em têrmos de abstração formal, mas até mesmo juristas, como Michel Virally, empenhados em compreender o di­reito na totalidade de suas dimensões. A seu ver, "o modêlo não

24a. Nesse sentido. v. KARL LARENZ - Metodologia de kt Giencia dei Derecho, cit., que reconhece "o valor cognoscitivo do tipo"; "a contemplnção

t ipológica, escreve êle, torna possivel, sobretudo, o conhecimento dns di/e­Tenças estruturais das distintas relações típica.~ da vida, daí extraindo con­clusões para a interpretação e o desenvolvimento do Direito" (pág. 359).

o IJIRElTll CO~IO EXPERIÊN('lA 167

é construído a partir do real concreto, do fenômeno, mas de uma representação intelectual dêsse fenômeno; êle é uma abstração" ,o.

Nada mais contrário à idéia de modêlo do que a de uma abs­tração não fundada no real concreto. É inegável que há uma dife­rença essencia l entre a qualificação tipificadora e sistemática dos fatos sociais feita pelo jurista e a elaborada pelo sociólogo, pois, enquanto êste descreve o que é, o jurista supera o momento des­critivo dos fatos, pela sua necessária refel'ibilidade a um modêlo pôsto, verbi gratia, pelo legislador, a fim de disciplinar uma classe de ações futuras em têrmos do que deve se/'. Isto não obstante, nem o legislador, ao pôr o modêlo legal, optando por uma dentre as possiveis qualificações tipológicas consentidas pelos dados de fato, nem o jurista, depois, no ato de interpretar e executaI' a lei, podem desvincular a est:rutw'a normativa do fluxo da experiência.

Conceber os modelos jurídicos como puras abstrações, não per­manentemente referidas à realidade que essencialmente expressam, redunda em privá-los de uma de suas qualidades primordiais, que consiste em correlacionar o memento abstrativo da estatuição voli­tiva da regra com o dogmático de sua compreensão, permitindo seja superado o entendimento da Dogmática Jurídica em têrmos de mera aplicação prática. O conceito de modêlo implica, de per si, a articula­ção dos pressupostos teoréticos com a atualização da experiência, em térmos operacionais, tão certo como estrutura e função são con­ceitos que necessàriamente se exigem e se completam.

IV

A TEORIA DOS MODELOS .JURíDICOS E A DAS FONTES FORMAIS

§ 9. No parágrafo 4. 0 do Ensaio anterior, fiz referência às duas maneiras distintas e complementares de apreciar a regra de direito, seguncto seja analisada do ponto de vista de sua gênese ou de sua validade, tendo o primeiro problema como centro a Política do Direito, e o segundo a Ciência do Direito ou Jurisprudência. A mesma distinção estende-se à problemática dos modelos jurídicos em geral, abrindo novas perspectivas para a teoria das fontes d'.) direito, que está a exigi r uma reformulação conceitual de fundo, a fim de passar a corresponder não só às novas estruturas e interêsses da sociedade contemporânea , como às exigências de unidade me­todológica da Ciência. É possível mesmo que, com o amadureci­mento dos estudos, a teoria dos modelos venha a substituir, par­cialmente, a antiga teoria das "fontes formais", que é uma fonte

25. VlRAl.LY - Ar ti ~o na Rev. SII(1rlJ dtada. pág. 15. Quanto à poslçao dêsse juris ta fra ncês nos Quadros do tridimensionalismo. v. meu livro Teoria TridilJlellSionnl do Direito, cit., págs. 49 e sego

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exaurida, prêsa ainda aos pressupostos de uma experiência jurídica subordinada ao direito como criaç.ão ou declaraç.ão do Estado, com a preeminência absorvente, ou da lei ou da decisão judicial, con­forme se considere o assunto à luz da tradição romanística, ou no plano do Common Law.

Uma das vantagens técnicas inegáveis da compreensão da experiência jurídica em têrmos de modelos é o superamento da distinção sempre ambígua entre "fonte material" e "fonte formal" do direito. O estudo da primeira tem sido pôsto em três níveis distintos, ora no da Filosofia do Direito, significando o fundamento, isto é, a idéia ou o valor que dá legitimidade ética à regra jurídica; ora tem sido focalizado em têrmos sociológicos, com referência às estruturas e fatos sociais determinantes do surgimento da norma e de sua eficácia; e, por fim, tem sido conduzido no plano dogmático, em função da autoridade que emana a regra. A rigor, dever-se-ia conservar a designação de fonte de direito apenas para esta terceira hipótese, pois, sob o prisma dogmático-jurídico, é o ato dccisório do poder que aperfeiçoa o processo nomogenético. A teoria das fontes ficaria, dêsse modo, circunscrita ao estudo das condi.çõcs de validade requeridas pelas diversas formas de produção, alteração e revogação das regras de direito -que compõem os modelos jurídicos, isto é, teria por objeto o estudo dos rrrocessos válidos de elaboração das normas legais, jurisdicionais e consuetudinárias, de que se com­põem os modelos jurídicos.

Quanto, porém, à "forma" de que se reveste a determinação do poder, a expressão "fon te formal" é de todo inadequada, inclusive porque implica uma desvinculação do direito de suas raízes experien­ciais, como se a sua forma (GcstaU) se resolvesse em simples téc­nica expressional, numa veste aplicada ao conteúdo significativo do direito, ou em pura análise da linguagem do Direito.

SOme.nte a interpretação da realidade juridica em têrmos de estruturas-modelos, compreendidos em seu valor próprio e em função da totalidade do ordenamento, poderá abranger, em tôda a sua diversificação dinâmica, as múltiplas modalidades de determinação ou de revelação jurídicas conaturais à moderna sociedade plural. Talvez pareça estranha tal aassertiva, quando a imagem do­minante é a de um Estado cada vez mais avassalador, que não deixa campo livre a composições jurídicas autônomas. Quem não se contenta, porém, com a aparência dos fenômenos e busca cap­tá-los em seus lineamentos essenciais, observa que o fato inegável do progressivo aumento das tarefas estatais desenvolve-se pari passu com outros dois fatos não menos relevantes : o constituir-se de po­derosos organismos e instituições de ordem privada, tanto .no plano econômico, como no científico, artístico ou recreativo, expressões múltiplas da autonomia da vontade, atuante na modelagem de es­quemas jurídicos, que disciplinam o comportamento ele numerosos e vastos círculos sociais fora da órbita de ação do Estado; e, de

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outro lado, o desmembramento da ação do poder público, que, para atender a inamovíveis fins de eficiência e de rigor técnico, cada vez mais se achega aos modelos empresariais, através da expansão do Direito autárquico (entidades paraestatais, autarquias, socieda­des de economia mista, emprêsas públicas, autonomias administrati­vas e contábeis, etc.) como também dá aos atos administrativos formas e soluções hauridas na tela do direito privado 26.

Dessa trama complexa de relações resulta um quadro norma­tivo polivalente que continua, por certo, a ter como horizonte os ditames da lei, do costume e da jurisdição, mas só por desmedido apêgo a idéias estereotipadas poder-se-á contestar quão distante permanece aquêle horizonte para as pessoas que se acham vin­culadas a estruturas jurídicas imediatas e prementes, no seu modo de ser e de agir cotidianos, sem sequer se darem conta das "fontes primordiais", às quais se acham formalmente ligados os seus atos, através dos imperceptíveis fios da vigência normaUva.

Não creio seja necessário salientar, como uma das caracterís­ticas da experiência jurídica hodierna, a multiplicidade dos focos geradores de entes jurídicos, aos quais os indivíduos e as coletivi­dades espontâneamente conformam os próprios atos, sem sequer se proporem o problema de sua legitimidade. É a forma de vida atual que suscita e exige, ao lado dos modelos tradicionais, criações imprevistas no plano negociaI, engendrando uma multiplicidade de "contratos inominados", demonstrando, como salienta Messineo, que "os institutos jurídicos têm, o mais das vêzes, o seu germe, não na fantasia dos juristas, ou do assim chamado legislador, mas sim na capacidade inventiva prática dos próprios interessados, recebendo geralmente uma disciplina costumeira, antes que a legislação dela se apodere" 27.

Através do poder negocial, por exemplo, instauram-se quadros normativos que, pela estabilidade e o sentido de continuidade de que se revestem, assumem feição institucional, subordinando-se as pessoas aos seus preceitos, sem os examinar um a um, mas através de um ato de adc8'ão a uma estrutU1'a típica. Agimos, em suma, em razão de modelos operacionais, alargando-se e dinamizando-se

26. Sôbre êsses pl"Oblemas, v. meu livro Revogação e Amüamento do Ato Administrativo, Rio, 1967.

27. Cf. FRANCESCO MESSINEO, na Enciclopedia deI Diritto, vol. X, pág. 100 (verbete: "contratto innominato"). Observa ORLANDO GOMES que a causa detenninante das obrigações não é a lei, mas sim os fatos e situa­ções que a lei considera idôneos para suscitar o comportamento típico do devedor (Cs. Transfonnações Gerais do Direito das Obrigações, São Paulo, 1967), Melhor será dizer que fatos e situações dão nascimento a "modelos jurídicos" , de significação autônoma, no contexto da validade legal.

Também no plano internacional ocorre o mesmo fenômeno, onde as relações privadas se r egem, muitas vêzes, segundo estruturas jurídicas con­cebidas à margem do Direito estatal. Nêste sentido. v. PHlLIPPE FOUCHARD - L'Arbitrage Commercwl International, Paris, 1965.

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o-'campo do normativo, que se projeta desde a eminência da lei até às mais particularizadas estipulações de ordem contratual.

Quando, por conseguinte, Rans Kelsen prolongou a linha essen­cial do "legalismo" da Escola de Exegese e dos Pandectistas, am­pliando o conceito de norma para este_ndê-Io até o nível das esti­pulações privadas, com a sua conhecida distinção entre normas jurídicas gerais e individualizadas) compreendeu bem o apontado fenômeno da multiplicação e discriminação dos focos normativos Mas, ao pretender salvar a unidade lógica do sistema jurídico através da ucom,preensão escalonada das normas de direito)}} da Stufenbau inspirada por Merkl, a sua teoria redundou no empobrecimento do significado dos esquemas normativos periféricos, bem como no da sua autônoma operabilidade, visto o predomínio englobante do moruismo norrnativo} preservado à custa da realidade social con­creta. Por sinal que foi para salvaguardar as distintas expressões da realidade jurídica que, em campo oposto, situou-se a corrente do plurarismo jurídico, assumindo vários graus, desde o institu­cionalismo comedido de um Rauriou ou de um Santi Romano até à eÃ1:remada · afirmação de Gurvítch sôbre a equivalência das múl­tiplas fontes do direito, segundo "fatos-normativos" reveladores do jtts mvens} graças a atos primordiais de intuição de tipo emo­cional 28•

Ora, a indagação do direito como experiência possibilita o superamento das apontadas antinomias, demonstrando que a irre­cusável multiplicidade dos centros reguladores dos comportamentos individuais e coletivos, tão característica de nossa época, pelo menos nos países de constituição democrática (pois, em última análise, quem diz democracia, diz pluralidade de soluções políticas e jurí­dicas) longe de excluir, antes exige a sua articulação em um sistema complementar, não segundo uma unidade formal, - determinada por meras referências de pura subsunção lógica, - mas sim pelo reconhecimento de diversos graus de positividade jurídica} corres­pondentes aos modelos jurídicos que a vida real vai elaborando, em função de um complexo variegado de fatôres, com distintos índices de obrigatoriedade} assim como com diversificadas áreas de incidência.

Como a positividade do direito é marcada pela correlação essen­cial entre vigência e eficácia} cumpre, sem dúvida, reconhecer que há um máximo de positividade} a qual corresponde à ordem jurídica estatal} caracterizada tanto pela originalidade de sua competência como pela coação incondicionada inerente aos seus preceitos. Em função dêsse macromodêlo} distribuem-se, porém, outros centros de

28. Sôbre os contrastes entre o monismo e o pluralismo jurídicos, v. minha Teoria do Direito e do Estado, 2.' ed., cit., Ir Parte. No tocante ao reflexo dessa antítese na problemática das fontes do direito, é ainda significativo o confronto das doutrinas constantes do volume Le Probleme des Sources du Droit Positif} Paris, 1934.

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projeção normativa, dotados de competência derivada, com variável poder para a garantida imposição de suas determinações, e não menos variáveis "campos de eficácia". É por tais motivos que, ao invés de uma escala de validade normativa, o que há é efetiva gradação da positividade jurídica} como uma das notas caracterís­ticas do processo de Objetivação do direito no contexto da realidade histórico-cultural: o escalonamento lógico das regras de direito, no âmbito do ordenamento vigente, elevando-se desde as normas de caráter privado até às de eminência constitucional, não é senão o reflexo do processo de discriminação e de integração próprio da vida estrutural-funcional do direito 29.

Como se vê, as chamadas "fontes formais" do direito não são senão formas típicas de objetivação da experiência jurídica, cada uma delas dotada de uma determinada estrutu,ra} com um reper­tório ou programa de ações possíveis, a que se ligam também determinadas conseqüências. Daí dever-se falar, com mais rigor, em modelos jurídicos} cujo estudo, repito, afigura-se-me do mais alto alcance.

Não há nada de estranhável nesta colocação do problema, pois, se a objetivação normativa é essencial à experiência jurídica, não se podendo conceber direito, em lugar ou tempo algum, desprovido de objetivação} as formas que esta assume são, todavia, categorias históricas variáveis e contingentes. Quando se fala em Direito Objetivo, a qualificação de "objetivo" é, em última análise, redun· dante.

Não cabe, por certo, à Epistemologia Jurídica o estudo empí­rico dos modelos, - tarefa da Teoria Geral do Díreito, especial­mente enquanto Dogmática Jurídica, - mas sim a indagação de sua natureza e das condições transcendentais ou universais de sua realização no plano histórico, assim como compete à Culturologia Jurídica a pesquisa do valor das "leis de tendência" que nos per­mitam compreender a sua evolução, o seu progresso, ou as suas mutações e crises, em função de distintos ciclos e áreas culturais. O filósofo do Direito não pode, porém, permanecer indiferente às razões que determinaram, por exemplo, o primado dos modelos ju. risdicionais sôbre os legais, no mundo anglo-americano, em con­traste com a experiência legalista de molde rf)manístico, sendo na-

29. A teoria da gradação da positividade jurídica, enunciada em tê r­mos gerais por GIORGIO DEL VECCHIO, em seus Saggi intorno allo Stato, Homa, 1935, foi por mim amplamente desenvolvida em minha T eoria do Direito e do Estado, cit., em correlação com os processos de integração social e de jurisfação do poder, constituindo um dos pontos capitais de minha compreensão da experiência jurídica como tema de Teoria Gerril do Direito. Cf. outrossim, a II P arte de Pluralismo e Liberdade, cito A generosa atenção dispensada aos meus escritos sôbre a tridimensionalidade do di reito tem deixado em segundo plano a importância daquele assunto, que põe em tão manifesta a rticulação as indagações do sociólogo e do jurista, mostrando que a Teoria Geral do Direito deve ser comum a ambos (Cf. Ensaio IV, supra) .

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turalmente levado a converter 08 dados históricos e sociológicos em motivo de meditação própria, inserta no sen tido total da cultura humana.

§ 10. Pois bem, ante o quadro complexo das "formas do Jireito",debuxado em largos traços no parágrafo anterior, pare­~e-me que a teoria dos modelos vem trazer uma contribuição de­feras significativa, permitindo ao jurista desvencilhar-se de cate­~orias lógicas inadequadas, a começar, como vimos, pela sempre :ormentosa distinção entre "fontes materiais" e "fontes formais", ~omo se se referissem a duas realidades ontologicamente distintas, e lão a dois aspectos, ou melhor, a dois momentos de uma única ·ealidade. No fundo, trata-se de uma pseudodistinção, resultante le um pseudoproblema, pois não posso compreender como seja pos­:ível saber qual é o significado de uma chamada "fonte formal" :em ter presente a "fonte material" ou a estrutura social corres­londente, ou seja, ° complexo de causas e motivos determinantes lo aparecimento das normas de direito. Com a colocação do pro­)lema em têrmos de modelos jurídicos, a referibilidade operacional lOS dados de experiência, isto é, aos motivos determinantes da 'strutura normativa, faz, ao contrário, corpo com sua própria sig­tificação.

A adoção do conceito de modêlo não traduz, pois, apenas uma Iteração de ordem terminológica, - muito embora o emprêgo de êrmos mais rigorosos e adequados já represente um valor positivo, m prol da elegantía juris) o que quer dizer da dignidade científica ia Direito, - visto como a noção de ((fonte formal" liga-se à idéia :e produção, ou emanação de comandos jurídicos, que permanecem ,nacrônicamente vinculados aos propósitos do "legislador", en­uanto o conceito de ((modêlo" nos põe perante um momento utônomo da vida do direito, quando a experiência jurídica se xpande ou se projeta em formas objetivadas ou positivas) consubs­'1nciando-se em esquemas ou estruturas racionais, nas quais Os lementos da estrutura social são focalizados segundo um repertório u classe de comportamentos válidos numa totalidade de sentido. :om a passagem, . em suma, da teoria das fontes formais para a ?oria dos modelos jur'ídicos pode-se dizer que a perspectiva evo­lcionista e genética, predominante na compreensão das ciências o século XIX, cede passo à compreensão operacional que distingue saber cientifico hodierno como instrumento de vida e de convi­

ência humana. Liberta-se, por outro lado, a Dogmática Jurídica de sua rígida

inculação ao princípio da divisão dos podêres, que governa tôdas s construções da Escola da Exegese, com efeitos que, por fôrça e inércia, ainda se percebem até mesmo em teorias infensas ao ntigo formalismo legal.

Poder-se-á dizer, como remate destas considerações, que o orteeito de fonte jurídica é retrospectivo) enquanto o de modêlo

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 173

jurídico é prospectivo; - na teoria das fontes prevalece o aspecto técnico-formal da vigência das norma.~) ao passo que na dos mo­delos predomina o seu caráter operacional, em função da eficácia dos comportamentos; a primeira ordena-se segundo 1tma escala li­near e hierárquica, que desce da lei até à cláusula negociaI, en­quanto, à luz da segunda, constituem-se e movem-se os modelos jUTÍdicos, os quais se ordenam) de maneira plural, na esfera do modêlo legal, êste sempre em expansão, compondo todos) em con­junto, o macromodêlo do ordenamento)' - na teoria das fontes, as normas legais fixam os limites da validade formal das fontes se­cundárias) enqu,anto)na teoria dos modelos) o significado dos mo­delos legais é potenciado pelo das normas snbordinadas e vice-versa, ocorrendo as mutações do sentido de um e de outros em uma cor­relação fu,ncional; a teoria dos modelos, em suma, expressa a expe­riência jurídica em tóda sua concreção e dinamicidade, atendendo, além do mais) à dupla exigência do saber científico de operabilidade e comunicação.

V

CIÊNCIA DO DIREITO E TEORIA DA COMUNICAÇÃO

§ 11. 1!::sse último ponto é da máxima importância, pois, como pondera W. Mays, uma linguagem não arraigada nos fatos não pode ter valor como instrumento de comunicação 30, e a linguagem do Direito deve satisfazer aos pressupostos da comunicabilidade, visto como os seus paradigmas podem ter como destinatários tanto os órgãos do Estado como os particulares, ou ambos.

A colocação da experiência jurídica em têrmos de modelos dá relêvo aos problemas de Semântica Jurídica 31, e, de maneira mais geral, correlaciona a Ciência do Direito, de maneira mais adequada, com a Teoria da Comunicação.

Não é demais recordar que as funções desempenhadas pela linguagem do Direito podem ser divididas em pragmáticas) referentes às relações existentes entre as expressões e os homens que as em­pregam; semânticas, as atinentes aos significados e às alterações do significado das expressões, isto é, ao estudo de seu "processo significativo"; e sintáticas) concernentes às relações ou à composição dos signos entre si, abstração feita de seus significados. Essas funções, no seu conjunto, constituem o objeto da Semiótica Jurídica) cujas investigações, como observa George Kalinowski, estão apenas em vias de se formar 32.

30. Cf. do estudo de W. MAYS sôbre a "Lógica e a linguagem em Carnap", § 3, em Epistemologie Génétique et RecheTche Psychologique, cito

31. V. Ensaio seguinte e o já exposto no Ensaio UI sôbre a Lógica JUTÍdica e seus problemas.

32. KALINOWSKI - IntToduction a la Logique Juridique, cit., pág. 52. Mutati.s mutandis, a distinção supra estende-se à linguagem dos juristas.

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Pondera o citado autor que, dentre as funções pragmáticas, as mais importantes são as de expressão e as de comunicação, estas mais propriamente desempenhadas pela "linguagem da Ciência do Direito", enquanto à expressão caberia papel mais relevante na "linguagem do jurista", como, por exemplo, na de um advogado empenhado em transmitir um estado emocional. Na realidade, porém, a expressão não é senão um elemento da comunicação, um aspecto implicando o outro.

Abstração feita de tais problemas particulares, que ultrapassam os limites da Epistemologia Jurídica, parece-me intuitiva a impor­tâneia do assunto nos domínios da Legislação e da Jurisprudência, apesar da quase nenhuma atenção até agora dispensada por legis­ladores e juristas aos estudos que se desenvolvem, hoje em dia, sôbre o fenômeno fundamental da comunicação, quer seja consi­derado em seus aspectos lingüísticos, ,quer em suas expressões exis­tenciais, consoante oportuna distinção de Ferrater Mora 33.

No entanto, a Dogmática Jurídica propõe-se, a todo instante, assuntos envolvendo problemas e categorias amplamente debatidos no âmbito da Teoria da Comunicação ou da Cibernética. Para não dar senão um exemplo, lembraria uma questão que suscitou, em tempos recentes, vivas polêmicas sôbre os "destinatários das normas jurídicas", entendendo uns ser o povo em geral; e outros, os órgãos do Estado, sem se falar nas soluções intermédias e nas múltiplas variantes assumidas pelas duas diretrizes principais. Eis aí um caso típico de indagação jurídica que evitaria a formulação de pseudoproblemas, posta que fôsse a matéria em têrmos de modelos jurídicos e de processos de comunicação que se correlacionam e complementam 34.

Ninguém melhor do que Karl Jaspers soube sublinhar a im­portância primordial da comunicação, a partir da afirmação radical de que "para ser genuinamente verdadeira, a verdade tem de ser

Sôbre semântica e comunicação, à luz da teoria marxista, mas com observações válidas para uma compreensão menos formal ou mais integral do assunto, cf. ADAM SCHAFF - Introduction to Semantics, cit" notada­mente capítulos 1 .. e 4.9 da II Parte, sôbre os aspectos filosóficos do pro­cesso de comunicação e a função comunicativa da linguagem.

33. FERRATER MORA, verbête "comunicaciôn", em seu Dkôonario de FiloBolia, 5.' ed., 1965, t. l, pág. 317, com uma bibliografia atualizada sôbre a "teoria da inform ação". Cf. BAGOLINI - "La comunicazione so­ciale nel contrasto delle visioni deI mondo", na Riv. lnt. di Filosofia deZ Diritt", 1960, págs. 399-408, depois inserto em Visioni deZ/a Gustizia e Senso Gmmme, cit., págs. 323 e segs. e MARSHALL MCLUIlAN - Understallding Me­dia, cito

34. Onde há intersubjetividade há comunicação e, por consegui nte, alguém a quem a comunicação se destina. A questão dos "destinatários das normas juridicas" não pode, porconseguinte, ser considerada um pseu­doproblema, como querem KELSEN e SANTI ROMANO. (Cf., respectivamente, Teoria General del Estado, trad. de Legaz y Lacambra, 1934, pá g. 71 e Framrnenti di un Dizionario Gituri.dico, Milão, 1947, págs. 135 e segs.). As

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comunicável". Nós somos o que somos, diz êle, apenas através da comunhão de entendimentos mutuamente conscientes 35.

Dessas duas colocações infere Jaspers a sua conheeida tese de que os homens, - ao contrário dos outros animais, que constroem comunidades nas quais vivem imersos, segundo estruturas inhistó­ricas jungidas à lei natural estrita, - constituem comunidades em mudança contínua e potencial, segundo estruturas históricas abertas, cujos comêço e fim não são visíveis, comunidades nas quais a co­municação das existências empíricas, das conscíências e dos espí­ritos se concretiza como comunhão de pessoas, capacitadas de que o lugar que lhes cabe só tem o seu sentido próprio enquanto partí­cipes de um todo.

Essa correlação jasperiana entre estrutura e comunicação, no plano existencial, vemo-la expressa, sob outro ângulo, por A. J. Ayer. Observa êste representante do positivismo lógico que não me é possível garantir que o "sofrimento", que uma outra pessoa me diz estar padecendo, corresponda, em tudo e por tudo, ao que ente.ndo por aquela palavra; nem tampouco me é dado afirmar haja coinci­dêncía entre o que ela e eu designamos com a mesma palavra "ver­dade". Isto não obstante, eu posso observar que aplicamos aquelas palavras nas mesmas ocasiões, e que a classificação dos objetos como "verdes" coincide com a minha, e que o signo com que ela expressa o seu sofrimento me parece apropriado, e isto é tudo o que se requer para a comunicaçã'O. Não importa saber em que a experiência alheia consiste efetivamente, em si mesma, mas sim verificar que "a estrutura de nossos respectivos mundos é suficien­temente igual para mim, habilitando-me a concidir na informação que ela me dá. Ê sàmente neste sentido que nós temos uma lingua­gem comum; nós temos, por assim dizer, a mesma tela que cada um de nós pinta a seu modo. Resulta daí que, se há proposições, c'Omo as proposições das ciências, dotadas de sentido intersubjetivo, elas devem ser interpretadas como descrições de estrutura" 36 .

criticas desses dois mpstres só proeedem contra o imperativismo jurídico em têrmos de "comandos", sem atingir, todavia, a doutrina da imperativi­da de entend ida como expressão da objetividade de uma esh'tttura norma­tiva de conteúdo (w;iológieo. Aliás, KELSEN exclui o referido problema do ámbito do Direito, fiel aos pressupostos de sua "teoria pura". considerando-o metajurídico "pertencente a uma esfera distinta da nonnativa" (loc. eit.).

35. Cf. JASPERS - Rect80n and Existenz, trad. de Williarn Earle, 10.' ed., Nova-Iorque, 1967, págs. 77 e segs., dedicadas ao tema "verdade como comunicabilidade". Cf. ainda de JASPERS - Filosofia, trad. castelhana citada, págs. 451-521. LUlGI BAGOLINI, tendo em vista a r elevâ ncia do fenômeno da comunicação, põe a comltnicctbilidctde e o diálogo como b<lse da comprccnsfto do poder. (V. Mito, Potare e Dialogo, Bolonha, 1967, págs. 54 c segs.).

36. Cf. A. J. Aym - Introdução à coletânea por êle organizada sob o título Logical Positi.vism, Nova-Iorque, 1959, pág. 19. :ê; relevante, outros­sim, a obse rvação feita por AYER, logo a seguir, quanto à improcedênCia da distinção que às vêzes se pretende fazer entre cst1'ut1tra e conteúdo.

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Tais asserções de Jaspers e de Ayer são válidas, a meu ver, nos domínios da Ciência do Direito, cujas proposições, de sentido ne­cessàriamente intersubjetivo, devem ser interpretadas em sua fun­cionalidade estrutural, inseparável de seu contexto significativo, o que nos previne contra o já apontado equívoco de conceber os mo­delos jurídicos como puras abstrações formais.

Poderia alguém, todavia, ser tentado a conceber as normas jurídicas como simples proposições informativas) destituídas de im­peratividade. Já foi dito, por exemplo, que o Direito não determina obrigatoriamente ao devedor que pague uma letra de câmbio, mas apenas "informa" e prevê que, se não fôr satisfeito o débito, poderá haver protesto do título, penhora de bens, requerimento de falência, etc. Êste é, porém, um modo unilateral de considerar-se a "comu­nicação" normativa. Esta, na sua inteireza e concretitude, sig­nifica que o Direito já considerou a estrutura do comportamento em aprêço, e que, considerada a questão na sua qualificação tipo­lógica, é declarada juridicamente obrigatório, isto é, jurIdicamente conforme ao Direito, o pagamento do título, no dia de seu venci­mento, ressalvada ao devedor a alternativa de recusar-se a fazê-l'o, não por inexistir obrigação (como equivocamente se afirma) , mas sim em virtude do caráter bivalente de tôda obrigação jurídica, como "comunicação de um dever a um ser livre". Na regra jurí­dica está, pois, inerente a informação da Uexistêrwia de uma opção a.riolÓgica havida como essencial a uma conduta típica") coincidindo, no exemplo acima lembrado, tanto o legislador como o credor e o devedor na representação da mesma "estrutura jurídica", e é o quanto basta para reconhecer-se a imperatividade do direito) isto é, a obrigatoriedade objetiva do direito em razão de sua intrínseca estrutura axiológica. RefiTo-me) como se vê) à imperatividade axio­lógica) que não deve ser confundida com a do superado imperati­vismo voluntarista) que pressupõe antropomorficamente um comando emanado de uma autoridade superior, ou do Estado, concebido como autoridade personalizada.

A necessidade de tomar-se o modêlo jurídico na totalidade de seu significado deve prevenir-nos também contra qualquer tentativa de reduzir-se a experiência jurídica a Um mecanismo de comporta­mentos sociais, explicável, mais cedo ou mais tarde, como um puro sistema de feed-back e de relês. Se não se pode a pTiori excluir a aplicação de cálculos cibernéticos na tela do Direito, - sobretudo naqueles campos, como o do Direito Tributário, onde o aspecto quantitativo e numérico é mais relevante; e se é possível esperar da aplicação de computadores informações valiosas ,quanto à análise dos dados da vida jurídica, como, por exemplo, os fornecidos pelas decisões dos Tribunais, não creio possa a aplicação dos modelos jurídicos deixar de ter como base essencial as vias da compreensão estimativa) graças a um complexo de processos insuscetíveis de ser reduzidos a um sistema de "modelos matemáticos" 'ou de meras inferências dedutivas, muito embora o entendimento dos modelos

o DIREITO COMO EXPERl~NCIA 177

jurídicos em têrmos operacionais, como vem proposto neste livro, possa se enriquecer com a linguagem cibernética 37.

§ 12. O já exposto demonstra que uma Teoria dos modelos jurídicos deve ser elaborada em plena e concreta co.nsonância com a realidade a que se destina. O assunto ultrapassa, pnr certo, os lindes da Epistemologia Jurídica, pois cabe à Teoria Geral do Di­reito analisar, pormenorizadamente, as diversas formas segundo as quais se opera a modelagem da experiência jurídica, - estudo êste que se põe no horizonte de minhas cogitações futuras, - sendo ta­refa da Filosofia do Direito, todavia, o estudo da ,natureza do "mo­dêlo jurídico" e suas implicações metodológicas.

Vale ponderar, desde logo, que quando se concebe o modêlo jurídico como simples resultado de um processo abstrativo ou eidé­tico, corre-se o risco de fazer ressurgir, sob nova veste, o antigo formalismo jurídico 38. Assim como na Metodologia das ciências a "teoria dos modelos" passa por uma crítica fecunda , inclusive pela verificação de sua necessária adequação a cada tipo de experiência, dada a correlação inerente aos conceitos de "estrutura" e de "fun­ção", caberá à Teoria Geral do Direito dedicar atenção especial ao problema, elaborando a UteoTia dos nwdelos jUTíd-icosJ)) que não podem ser, como já disse, os de tipo lógico-matemático, nem os de "réplica analógica" de uma experiência subordinada a leis causais. Uma teoria dos modelos jurídicos, esclarecedora de sua estrutura normativa, de seu tipo de predição) e da natural elasticidade de seus elementos compone.ntes, parece-me uma das tarefas mais elegantes e urgentes do saber jurídico atual.

Ao falar-se em modêlo, no âmbito da Ciência do Direito, não se deve, pois, pensar numa pura e estática abstração intelectual, de tipo lógico formal, mas sim em algo que implica, de per si, a projeção dos compnrtamentos intersubjetivos referíveis à prefigu­ração normativa positivada, com a correlação necessária entre norma

37, Sôbre a aplicação dos "modelos matemáticos" na s ciências sociais, v" além da já citada obra de RAYMOND BOUDON, capo VIII e passim, PAUL Kf~CSKEMETI - Meaning, Cornm1w.ication and Value, ci t., págs. 218 e segs. ; KENETH ARROW, "Mathematical m odels in the social sciences", em The Policy Science, Stanford University Press, 1951.

No concernente à Cibernética jurídica, v. ULRICH KLUG - Elektronische Datenverarbeitungsmaschinen in Recht, nos "Festschrift für Hermann Jahr­reiss", págs. 189 e segs. e VITTORIO FROSINI - Cibenwtica, Diritto e Società, Milão, 1968.

38. É o que se pode observar, por exemplo. na concepção dos modelos jurídicos que nos dá PAUL AMSELEK, Methode PhénoménoZogique et Théorie du D1'Oit, cit. , págs. 67 e segs., na qual o "modêlo" é apenas o "esquema" ou "medida" do valor ou do dever ser da proposição normativa. A seu ver, o dever ser não é mais que "uma expressão gramatical. sintática, cômoda, pela qual se quer expressar, de maneira imaginosa, a natureza e a função de modêlo, de instrumento de avaliação da proPosição norma­t iva" .. (pág. 70), No fundo modêlo reduz-se a módlüo, a mero padrão de medida axiológica, de alcance eurís tico limitado,

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178 MIGUEL REALE

e situação ' normada, sentido e efetividade de sentido, o que põe em realce a sua conotação ética.

Essa comprensão funcional dos modelos jurídicos, a bem ver, lança as suas raízes nos primórdios da Jurisprudência, quando os jurisconsultos romanos compuseram as diretrizes éticas, compro­vadas na praxis) com os ensinamentos da Lógica de Aristóteles e dos estóicos, oferecendo-nos definitivos exemplos de categorização da experiência jurídica) numa coordenação lúcida de gêneros, espé­cies, tipos, figuras e ficções 39. Desde então, pode-se dizer que a vida do direito realiza avant la lettre) uma esplêndida e constante teoria de modelos) implícita na construção dos institutos jurídicos e no fino lavor de qualificação dos comportamentos individuais e sociais típicos.

Que fizeram, na realidade, os legisladores e juristas, séculos a fio, senão plasmar, em estruturas normativas, renovadas porções ou momentos da vida humana? E , na prática, que tem sido a ativi­dade dos advogados e dos juízes senão um permanente cotejo entre situações concretas e os modelos objetivados nos códigos e nas leis, nos precedentes jurisprudenciais, nas cláusulas dos testamentos e dos atos negociais? Assiste, por conseguinte, razão a Thomas A. Cowan quando, entre as vantagens que resultariam para o sociólogo de uma convivência maior com o jurista, aponta a experiência dêste na construção, interpretação e aplicação de "modelos sociais", além do "imenso reservatório de jttízos de valor sôbre o comportamento humano na história do direito mesma e no seu presente corpo de regras e decisões empíricas" 40.

Foi talvez a imagem imperfeita do direito em têrmos de co­mandos que impediu a teorização explícita da poderosa modelagem ?"acionaI da cond:uta humana, que com êle se confunde, represen­tando um dos aspectos basilares de todo o processo de objetivação h istórico-cultural. Preferiu-se, ao contrário, focalizá-lo segundo o prisma da autoridade emanadora ou consagrad'Ora das regras jurí­dicas, nos quadros de uma teoria que atenta para as fontes) e não para o projeto e o projetar-se da experiência do direito como tal nos quadrantes da história.

No âmbito da experiência jurídica são múltiplas as questões a ser examinadas quanto à gênese dos modelos, à sua vida e aos processos de compreensão de seus repertórios, tal como se verá nos

39, Cf. o meu estudo "Concreção de fato, valor e norma no Direito Romano Clássico", inserto em Horizontes do Direito e da HUitória, São Paulo, 1956, págs, 58-81, no qual focalizo "o trabalho admirãvel de tipifi­cação normativa realizado pelos jurisconsultos romanos, na qual a rigidez aparente das estruturas formais se casava à plasticidade funcional dos fins visados". Como tem sido demonstrado por eminentes r omanistas, cujos estudos lembro no mencionado trabalho. a obra dos pretores não poderia ser compreendida sem os modelos normativos concisamente enunciados pelos jurisconsultos romanos,

40. COWAN - "What Law can do for Social Science", na citada cole­tânea Law and Sociology, págs. 94 e segs.

o DIREITO COMO EXPERI ÊNCIA lí9

Ensaios seguintes, mas é mister focalizar alguns problemas preli­minares.

Costuma-se dizer ,que a lei é "obra do legislador", dando-se, assim, ênfase ao ato decisório, mas, na realidade, todo modêlo legal envolve uma série de fatôres, uns estudados pela Política do Direito, quando indaga, por exemplo, do significado da opinião pública) dos efeitos dos grupos de pressão ou e:Kpõe a técnica de legislar; outros fatôres são de ordem sociológica, econômica, psicológica, lingüís­tica, etc., o que tudo demonstra que a tarefa de legislar é de ordem arquitetônica) ou de síntese.

A mesma convergência integrante de dtOS verifica-se, em escala maior ou menor, na constituição dos demais modelos jurídicos, pois êles, considerados no seu conjunto, cobrem tôda a vida social, o que não significa que absorvam em si tôda a vida social: ao contrário, o âmbito do não jurídico abrange tôdas as formas de vida, em função das quais o direito existe, como instrumento essencial de garantia. Os modelos jurídicos têm, pois, o significado das formas de vida a que servem, não podendo ser convertidos em fins de si mesmos. Valem, tudo somado, em função e em razão do "não jurídico" 41 .

VI

ESPÉCIES DE MODELOS JURIDICOS E SUA CORRELAÇÃO

§ 13. Os limites do presente trabalho não comportam uma discriminação exaustiva e muito menos uma claSSificação, ainda que em caráter provisório, das diversas espécies de modelos jurí­dicos, mesmo porque, consoante já assinalado, o assunto é, pro­priamente, de Teoria Geral do Direito.

Tal pesquisa deve, a meu ver, ser conduzida a partir das contribuições da Dogmática Jurídica sôbre a teoria das fontes for­mais, com os desenvolvimentos que lhe deu Hans Kelsen, e tendo-se presentes os subsídios que nos propiciam as recentes análises da linguagem do Direito, sempre em necessária correlação com os fatos e valôres que se integram em todo modêlo jurídico.

A primeira distinção que me parece necessário fazer refere-se à intenção ol)jetivada no ato da formulação do modêlo jurídico. Já foi dito que todo modêlo jurídico depende de uma tomada de posição perante os dados empíricos examinados, importando sempre um processo abstrativo e seletivo destinado a captar o sentido nor­mativo dos fatos. Consoante observado no início do § 7 do presente Ensaio, essa atividade normativa pode ligar-se a duas atitudes di­versas: uma é a ele ,quem conclui por dada solução normativa, con­siderada tipicamente adequada à tensão fático-axiológica em exame, enunciando e qtterendo tal solução num ato cognoscitivo que cul-

41, Sôbre o contraste das teorias que estendem ou não o direito a tôdas as fonnas de vida social, \7, K, ENGISCH - El Ambito deI Non Jurl­dica, trad. de Ernesto Garzon Valdés, Córdoba, 1960.

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180 MIGUEL REALE

mina em um ato volitivo. Daí ser pôsto o modêlo de maneira obje­tiva como prescrição de uma diretriz a ser seguida (modêlo jurídico).

A outra atitude é a de quem se limita a formular proposições normativas, sem qualquer propósito de influir sôbre a conduta dos p'Ossíveis destinatários, abrangidos por seus enunciados: a sua função exaure-se no nível teorético da compreensão objetiva dos significados de uma dada situação típica, ou de um modêlo pres­critivo já vigente. Neste caso temos, como já disse, os mo dê los teoréticos ou dogmáticos) que são, fundamentalmente, "estruturas teóricas" , às quais cabe, de maneira primordial, a função interpre­tativa dos mencionados modelos prescritivos) bem como dos pro­cessos de sua aplicação eficiente e justa 42.

Temos, dêsse modo, duas classes fundamentais de modelos, os jurídicos e os dogmáticos) cada uma delas suscetível de ser dividida em diversas espécies, segundo distintos pontos de vista.

Assim é que os modelos jurídicos podem assumir diferentes significados, de conformidade com a regra ou o conjunto de regras que os informam, pois bem raramente um modêlo jurídico se reduz a uma mônada axiológico-normativa. No mais das vêzes, os modelos jurídicos são estruturas complexas, nas .quais se articulam e se sis­tematizam múltiplos preceitos, polarizados n'o sentido de um valor ou idéia fulcro. Pode um modêlo jurídico corresponder a uma só norma de direito) mas não é dito que esta se reduza a uma única proposição normativa, pois, a meu ver, ela significa a conjunção polar de pelo menos dois juízos, enunciados para prever o adim­plemento da prescrição ou a sua infração) segundo o seguinte esquema:

Se A, deve ser B Se não A, deve ser C.

O fato de considerá-los prescritivos não deve induzir a pensar os modelos jurídicos como expressões de comandos vinculatórios da ação. "Prescrever" é enunciar uma diretriz objetiva, isto é, posta de maneira heterônoma em relação ao querer dos destinatá­rios da prescrição, mas esta pode assumir diversos significados, como, por exemplo, o impositivo, que vincula o destinatário a um único esquema de conduta; o interpretativo) que determina o sig­nificado obrigatoriamente atribuível a um dispositivo legal; o pro­gramático que abre um leque de possibilidades de ação segundo um plano traçado de maneira genérica ; o dispositivo) que prevê uma solução típica, aplicável na hipótese de não ter sido prevista outra

42. Sôbre o conceito de "modêlo t eórico" nas clencias em geral, v. o eitado trabalho de MARY HESSE em The EncyclopedÚl 01 Phil080phy, voI. 5, págs, 355 e segs. Quanto às relações entre modêlo e teoria, v, LEONlDAS HEGENBERG - Lógica Simbólica, São Paulo, 1966. pág. 319 e segs,

Recebendo os "modelos jurídicos" como objeto de sua pesquisa, em função das estruturas sociais. o jurista elabora a Dogmática Jurídica como um sistema de modelos teóricos. Tendo-se · presente que são estruturas históricas e modelos o objeto de estudo do Direito, compare-se a posição

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 181

pelos interessados, ou ser inviável a via por êles escolhida, etc. Ora, conforme a natureza das proposições normativas que compõem um modêlo jurídico) pode êste assumir 'Os característicos acima lem­brados, apresentando-se como imperativos ou cogentes, disposi­tivos, etc.

Como já ponderei, muitas vêzes, os modelos jurídicos, sobretudo os correspondentes às estruturas institucionais, são entidades com­plexas, em cujo âmbito se coordenam regras de diversas categorias, cogentes e fechadas umas, dispositivas 'Ou abertas outras, o ,que de­monstra a impossibilidade de converter os modelos jurídicos em entidades rígidas, quando, ao contrário, é-lhes natural e própria a plasticidade diversificada das estruturas sociais que normativamente expressam.

A classe dos modelos jurídicos, aos quais, como vimos, é ine­rente a volição de 7tm comportamento alheio) pode ainda distinguir-se em função da posição de quem emana o ato volitivo, e do caráter genérico ou individualizado do destinatário da volição. A primeira hipótese ocorre ,quando o modêlo jurídico é pôsto por um órgão superior ou eminente, em confronto com o querer dos destina­tários, isto é, por uma fonte de direito, no sentido específico que no § 9 do presente Ensaio foi atribuído a êste têrmo: é em tal contexto que se situam os modelos legais) os jurisdicionais e os consuetudinários} cujas prescrições não podem deixar de refletir a natureza das fontes de que promanam, por ser êsse um dos ele­mentos de referência essenciais à compreensão da dinâmica nor­mativa (Cf. Ensaio seguinte).

Consoante já tive a oportunidade de salientar, a vida social contemporânea, ao lado dos modelos jurídicos oficiais supra lem­brados, ostenta um sem-número de modelos jurídicos privados) fruto de atos volitivos particulares) numa gama surpreendente de soluções normativas, que vão desde as estruturas co.ntratuais sina­lagmáticas tradicionais até aos mais complexos e imprevistos sis­temas obrigacionais, que envolvem em sua tela relações das mais relevantes de ordem civil ou comercial. Não obstante a vinculação de tais modelos privados aos paradigmas e ao crescente "dirigismo" dos órgãos do Estado, é vastíssimo o campo reservado à «autonomia da vontade») a qual só por mero formalismo se poderá considerar simples criação do direito estatal, quando, na realidade, representa um elemento que se põe pela natureza mesma das coisas, por serem os homens como tais, e não as entidades coletivas, a base e a razão de ser da experiência jurídica. A autonomia da vontade é a qua­lificação da vontade enquanto fôrça geradora de modelos jurídicos

do cientista da na tureza para quem "em têrmos simples, clencia é a ativi­dade que faz observações do mundo fisico, procurando explicá-las e rela­cioná-Ias, criando assim generalizações que são chamadas modelos ou teo­rias" (v, E . RUSSEL HARDWICK - Qutmica, trad, bras., São Paulo, 1967, pãg. 8),

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extra-estatais, sendo o chamado "poder negocial" uma de suas expressões mais relevantes 42 • •

§ 14. A visualização do problema obrigacional à luz da teoria dos modelos permitir-nos-á desfazer alguns graves equívocos ou alguns falsos problemas, como, por exemplo, a contraposição que às vêzes se levanta entre contrato e inst'ituição, olvidando-se até mesmo que esta pode nascer da,quela como expressão do sentido normativo das estruturas institucionais estudadas pela Sociologia no nível descritivo que lhe é próprio. Dizer que, em nossos dias, certos tipos de contrato se institucional'izaram, e que, uma vez operada a sua parcial desvinculação das intenções primordiais dos contratantes, atuam como se fóssem estruturas não volitivas, é reconhecer a multiplicidade indefinida dos "modelos jurídicos pri­vados" como estruturas normativas que devem ser estudadas em si mesmas, nos valôres que lhes são imanentes, o que não significa, porém, que o plano das intencionalidades possa ser olvidado pelo intérprete ou pelo aplicador daquelas formas jurídicas.

Eis aí, apenas em esbôç'o, algumas considerações preliminares, necessàriamente vagas, que me sugere o problema da especificação dos modelos jurídicos, limitando-me a aludir a outra distinção fun­damental, sob outro ponto de vista, quanto ao seu repertório, em modelos abertos e modelos fechados, que caberá à doutrina de­terminar.

§ 15. A esta altura impõem-se algumas breves referências pa­ra demonstrar como a colocação do problema das "fontes formais" em têrmos de "modelos jurídicos" permite compreensão melhor de algumas questões controvertidas, como, por exemplo, as relativas ao papel da doutrina na vida do direito; ao preenchimento das lacunas da ordem legal; ou ao significado e alcance da analogia em confronto com os processos hermenêuticos.

Os modelos dogmáticos, ao contrário da tarefa quase residual que lhes é conferida, em virtude de ser o assunto focalizado retros­pectivamente em razão da autoridade emanadora dos chamados "comandos legais", passa a desempenhar a sua função primordial na experiência jurídica, quer fornecendo as estruturas lógico-nor­mativas indispensáveis ao atendimento das inevitáveis lacunas e deficiências verificadas no sistema das regras vigentes, - hipótese em que êles adquirem caráter prescritivo, graças à recepção de seus paradigmas pelo Poder Judiciário, - quer propiciando diretrizes para mais reto entendimento dos demais modelos. O trabalho científico insere-se, dêsse modo, como valor autônomo, nos quadros da Jurisprudência, espelhando, aliás, o fato inegável da "autoridade dos jurisconsultos" na solução concreta dos conflitos de interêsse, como se poderá comprovar com o exame das decisões jurisdicionais

42a. O papel da autonomia da vontade no mundo atual é posto em realce por IRINEU STRENGER em sua obra Da Autonomia da Vontade em Direi to Internacional Privado, São P aulo, 1967.

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U DIRBITO COMO EXPElUENCIA 183

fundadas nos ensinamentos de mestres consagrados do Direito, tanto mais ponderáveis quanto mais "abertos" os modelos legais, ou quanto mais remotamente situada no tempo a sua formulação OrIgmarIa. Em matéria do Direito Comercial, por exemplo, é visível êsse recurso a modelos dogmáticos para suprir ou completar os vazios resultantes da vigência de um Código promulgado em 1850, quando bem outras eram as estruturas sócio-eco.nômicas do país.

Por outro lado, se analisarmos o que ocorre com a aplicação da analogia para preenchimento das lacunas da lei, verificaremos que o trabalho do advogado ou do juiz consiste em construir um modêlo teórico de fôrça prescritiva, resultante da existência de um modêlo legal suscetivel de ser tomado como paradigma, segundo razões lógicas bastantes de similitude, o que pressupõe certo grau de relevante homologia entre as estruturas sociais postas em con­fronto . Resulta daí a clara distinção entre o modêlo analógico, -que é um "outro modêlo", - e a interpretação extensiva, a qual, em última análise, não é senão a recepção de um só modêlo em tôda a elasticidade lógico-pragmática de seu repertório.

§ 16. Se é múltipla e complexa a categorização dos modelos jurídicos, não o é menos a sua gênese, infensa a qualquer com­preensão unilinear. Um modêlo j1trisdicional, por exemplo, só apa­rentemente resulta apenas da decisão dos Tribunais, porque esta pressupõe, quase sempre, a elaboração doutrinária, os modelos dog­máticos com que os teóricos dn direito, que não é dito não possam ser os próprios juízes, procuram compreender e sistematizar os da­dos da experiência, captando, por exemplo, o sentido normativo das instituições sociais, para além do nível descritivo a que se atém o sociólogo, ou resolvendo a qualificação dêste ou daquele modêlo como sendo, por exemplo, cogente ou dispositivo, qualificação essa variável no plano histórico.

No fundo, a feitura de todo modêlo juridico é o resultado de um trabalho de equipe, como sói ser o trabalho científico, por mais que o investigador se projete, pela genialidade de suas contribuições originais, fazendo esquecer, por instantes, o patrimônio de saber anônimo que condiciona o seu trabalho e o de seus precursores.

Outras vêzes, os modelos jurídicos guardam, de maneira mais visível, o signo da fôrça anônima do povo. Refiro-me aos modelos jurídicos costumeiros, fruto de opções de desconhecida paternidade, expressando a experiência do direito em sua tipicidade imediata. Mesmo nessa hipótese, todavia, mister é que o mo dê lo jurídico se torne objetivo, isto é, seja trazido ao plano da certeza jurídica, através de múltiplos procedimentos de convicção ou de prova, va­riáveis segundo os diversos sistemas de direito, as épocas e os lu­gares. Ainda aqui os modelos dogmâ.ticos ou doutrinários desem­penham um papel relevante, estabelecendo os critérios de aferição dos modelos jurídicos consuetudinários, o que demonstra como

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184 MIGUEL REALE

opera no vazio a discussão interminável travada para saber se a doutrina é ou não é fonte de direito .. .

Focalizado o problema segundo meros liames de vigência, só a lei é "fonte formal" do direito, nos países de tradição romanística, porque tôdas as demais só possuem validade segunda, de adequação ou conformidade ao modêlo legal. Mas se, ao contrário, a questão é posta no plano da experiência jurídica concreta, o modêlo legal muitas vêzes não é senão a consagração formal (e quantas vêzes tardia!) de um modêlo jurisdicional, costumeiro, dognuítico 01t ne­gociaI.

Por outro lado, no momento da manipulação de um modêlo jurídico, torna-se necessário recorrer a outros, para interpretá-lo e aplicá-lo: são, mais uma vez, os modelos dognuíticos que decidem do caminho a seguir, oferecendo as bases da solução jurídica mais adequada à previsão-t'ipo.

Além disso, freqüentes são as hipóteses em que o modêlo legal ou é omisso ou faz remissão a comportamentos típicos, confiando à prudente discrição do juiz a sua configuração in concreto. No primeiro caso, cabe à Dogmática Jurídica a tarefa de construir modelos destinados a preencher as lacunas verificadas; no segundo, compete-lhe a missão de determinar os "modelos de conduta" cor­relacionados com a previsão genérica do legislador. É o que ocorre especialmente no caso dos chamados standards, que se põem como ponte de passagem entre o modêlo legal e o caso concreto, pela concepção de "um tipo médio de conduta social correta", em função da qual caberá ao juiz julgar a hipótese ocorrente 43. Os standards são modelos instrumentais, fundamentalmente empíricos e plásticos, como os que determinam, segundo variáveis de lugar e de tempo, o que se deverá entender, em tais ou quais circunstâncias, por "boa-fé", "bons costumes", "dedicação ao trabalho", "abuso de con­fiança", "aproveitamento devido da terra", etc., etc.

Acresce que, sendo tôda estrutura normativa a composição racional de uma tensão fático-axiológica, a tipicidade é bivalente, como as duas faces da moeda: dessarte, não raro a aplicação rigo­rosa do modêlo pressupõe um problema de tipicidade fática em consonância com a tipicidade conceitual, fato êste mais sentido na esfera do Direito Penal, C'omo decorrência do principio de certeza para tutela da liberdade, mas extensível, mutatis mntandis, a ou­tros planos da experiência jurídica. Quando se afirma que não há crime sem tipicidade, o que, no fundo, se está a exigir é a rigorosa correspondência do comportamento examinado, tanto ao "tipo de conduta" como ao "tipo de crime" previstos no modêlo legal. A tipicidade f ática é, sem dúvida, um dos elementos essencias à estru­tura do delito, mas não é pensável sem correlaç.ão com a antijuridi-

43. MARCELO. STATI - Le Standa,rd Jwidique, Paris, 1927, páf(s. 45 I' passim. Cf. RüSCOE POUND -- Jurisprudence, St. Paul, Minn., 1959, vol. lI, págs. 127 e segs., 242 e segs.

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o VIIlEITO COMO EXPEfUÊNCIA 185

cidade e a cuZpalJiz.idade que integram o modêlo normativo; a com­preensão concreta da conduta delituosa resulta de sua subordinação à totalidade do modêlo penal 4'.

Donde se conclui ,que, de conformidade com os valôres a que servem, ora os modelos jurídicos são modelos cerrados, ou categore­máticos, com preciso e inextensível repertório de significados, como são os do Direito Penal (nullwn c/'imen, nulla poena sine lege) , ou os do Direito Processual ,no concernente, por exemplo, aos tipos de recurso; ora são modelos abertos) como os sincategorenuíticos. É preciso notar, porém, que mesmo os modelos cerrados, se não podem sofrer acréscimo em seu repertório, nem por isso deixam de sofrer variações semânticas, através do projetar-se de sua estrutura no tempo, comportando, assim, um maior ou menor grau de elasticidade.

Sustentam os nco-realistas norte-americanos que a regra de direito é uma prediç.ão da sentença do juiz, mas essa é uma visão demasiado acanhada e utilitariata da função dos modelos jurídicos, pois tanto os atos dos destinatários das normas como os de seus aplicadores se contêm no âmbito da estrutura normativa, numa íntima e necessária correlação, o que permite que a petição inicial de uma demanda possa ser o modêlo da sentença favorável. Na realidade tanto o advogado como o juiz são operadores de modelos jurídicos, sendo talvez possível aplicú-se, em certos casos, a "teoria dos jogos" à arte do advogado pôsto diante das alternativas de uma lide 45.

Em tôda a teoria dos modelos jurídicos está sempre presente a noção de planejamento on de projeto) que engloba e supera a idéia de predição. "Projetar é planejar", escreve Russel L. Ackoff; ou seja, o planejamento é o procedimento correspondente a tomar de­cisões antes de surgida a situação face à qual a decisão deva ser efetivada. É um processo de antecipação deliberada, orientada para colocar sob o contrôle uma situação cujo surgimento se espera ( .... . ... .. ). O modêlo arquitetônico é uma representação sim-bólica de tôdas as decisões tomadas ao projetar-se um edifício _ uma representação que exibe a interrelação entre o conjunto dessas

44. Limitando-me à indicação dos autores nacionais que mais têm dado atenção ao problema da tipicidade no Direito Penal, v. ANíBAL BRUNO

DiJ'eito P enal, Parte Geral, 2.' ed ., Rio de Janeiro, 1959, t. l, págs. 324 e segs.; Jost FR/WERICO MARQUES - TTatado de Direito Penal, 2,- ed" São Paulo, 1965, vaI. n, págs. 64 e segs. Para uma compreensão a tualizada do Direito Civil , em termos tipológicos e estruturais, v. CLOVIS V. DO COUTO E SILVA - A Obrigação como Processo, Porto Alegre, 1964, págs. 9 e segs. e passirn.

45. :E;sse aspecto do problema não escapou á argúcia de P lERO CALA­MANDIlE, apreciando "o processo como jô.qo", título de um dos seus Studi sul Processo Ci,vile, P ádua, ] 957, págs, 43-71.

Cf., outrossim, em KARL LARENZ. Metodologia de la Ciencia del Derecho, cit., págs. 348 e scgs" as considerações expendidas sôbre "o tipo estrutural jurídico como figura de sentido referido à realidade", com a distinção entre t ipos abertos e cC1Ta-do8.

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186 MIGUEL REALE

decisões. O modêlo torna possível, portanto, uma avaliação global do plano em seu todo" 46,

Anàlogamente, é, realidade à vista, que ° legislador deve com­por o seu modêlo, assim como, ao nível das atividades privadas, é observando todos os fatos e circunstâncias e todos os interêsses em conflito, que o homem de emprêsa deve planejar ° seu modêIo ne­gociaI. Quanto mais progride, em suma, a sociedade, mais as suas atividades se articulam e se ordenam através de planejamentos, mais se estruturam os modelos jurídicos, que representam uma das mais preciosas técnicas de domínio do homem sôbre si mesmo, de auto­modelagem da experiência humana no sentido de sua perfectibi­!idade ética.

Esta referência final ao problema do planejamento põe em realce um ponto dos mais relevantes, que é a exemplariedade dos modelos, tanto dos jurídicos, como dos dogmáticos. Na realidade, como o salientou Montesquieu, ao acentuar a função pedagógica da lei, o Direito não se limita a refletir, passivamente, estas estru­turas sociais, já definitivamente objetivadas e eficazes, mas, muitas vêzes, surpreende nos fatos sociais o sentido normativo ainda em vias de afirmação ou só em esbôço na trama dos interêsses. Num ato racional de antecipação às linhas do processo empírico, o le­gislador ou o jurista projetam · no futuro as suas soluções norma­tivas, acelerando ou impedindo a ocorrência de determinadas con­sequencias. Ainda aqui é do mais alto significado o papel dos modelos dogmáticos, abrindo caminhos para o futuro, assim como podem operar como fôrças conservadoras ou rotineiras, entravando ° isomorfismo que deve sempre ser procurado entre os modelos jurídicos e a experiência social concreta.

Como resulta do exposto, os modelos jurídicos, assim como os modelos dogmáticos não são construções cerebrinas e arbitrarias, mas correspondem às estruturas de sentido imanentes à experiência jurídica, permitindo, inclusive, seja posta com mais rigor a tor ­mentosa questão das lacunas do direito, que só existem efetiva­mente em função da unidade de sentido do ordenamento 47.

Nessa tarefa ingente de adequações dos modelos à vida, devem o legislador e o jurista proceder com a prudência que brota do senso concreto das possibilidades humanas, segundo a mesma di­retriz que, no dizer de Schrodinger, deve orientar os investigadores da natureza: adquirir um claro sentido daquilo que é irrelevante em nossos novos modelos e esquemas, antes de confiar em sua direção com mais equanimidade e confiança 48.

46. RUSSEL L. ACKOFF - Planejamento de Pesquisa Social, trad. de Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. São P aulo, 1967. pág. 7.

47. Embora sob ângulO demasiado restrito. KARL LARENZ reconhece serem os modelos teóricos "meios para a compreensão da conexão de sentido ima­nente ao Direito Positivo", pondo em realce a sua historicidade. (Cf. Allgemei­ner T eil des Deutschen Bürgerlichen Rechts, Mônaco, 1967. págs. 54 e segs.) .

48. ERWIN C. SCHRÕDINGER - Science Theory and Man, Nova-Iorque, 1957, págs. 164 e sego

Ensaio VIII

GÊNESE E VIDA DOS MODELOS JURÍDICOS

(A crise do normativismo jurídico e a eXlgencia de uma normatividade concreta) *

SUMÁRIO: I Nomogênese e o Direito.

- Duas especles de normativismo jurídico. II­jurídica. III - O nexo fático-axiológico. O fato

IV - P roblemas de Semântica Jurídica. V­O tempo no Direito.

I

DUAS ESPÉCIES DE NORMATIVISMO JURIDICO

§ 1. O problema da normatividade como elemento essencial da experiência jurídica é dos que mais têm suscitado distinções radicais na Filosofia do Direito contemporânea. Isto não obstante, talvez assista razão a Karl Olivercrona quando assevera que, inex­plicàvelmente, se tem atribuído pouca importância a uma precisa determinação do conceito de norma I, .

Se, de um lado, a Escola do Direito Puro de Hans Kelsen reduz o direito a um sistema escalonado de regras, segundo uma estrita exigência formal, de outro lado, há, como vimos, jusfi­lósofos que o concebem precipuamente como fato social ou conduta, imanentemente jurídicas, quer sejam êstes têrmos empregados em­plricamente, à maneira dos "juristas sociólogos", quer segundo um enfoque transcendental ou axiolÓgico. Entre êsses dois extre­mos, do direito-norma e do direito-conduta; entre a racionalidade abstrata, correspondente à primeira concepção, e a extremada exi­gência de concreçã'O revelada na segunda, desenvolve-se uma série variegada de posições doutrinárias, as quais correspondem às duas

* Sob êsse título, o prE'sente trabalho foi publicado no volume E studios Jurídico-Sociales, Homenaje a.l Profeso/' Luis LEGAZ y LACAMBRA, Univ. de Santiago de ComposteJa i 1960, vol. I. págs. 187 e segs. Inteiramente revisto e completado em função dos demais ensaios reunidos neste livro.

1. "L'imperativo della legge", "separata" da revista Jus, Dezembro, 1954. fase. IV, pág. 542.

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tendências que atuam poderosamente na evolução do direito: uma tendência no sentido do primado da ordem e da certeza, ou da objetividade racional, muito embora com sacrifício do diversificado conteúdo das múltiplas expressões da vida social; uma outra, preo­cupada com o conteúdo social do direito, até ao ponto de só con­fiar nas vias intuitivas ou a-raCÍ'onais, correndo, assim, o risco de afrontar o incerto e o mutável, na esperança de captar em sua plenitude, o fluxo do jns mvens.

Não resta dúvida que, em nossa época, como reflexo da crise de valôres que se opera na civilização do Ocidente, inclusive pelO impacto da ciência sôbre a sociedade, alargando as bases de par­ticipação humana aos "bens de vida" proporcionados pela técnica, há inegável desajuste ou conflito entre as condições existenciais e as normas jurídicas vigentes. A chamada "crise do Direito", que não é senão um aspecto relevante da crise-geral da cultura contemporânea, . apresenta, a meu ver, um grave sintoma, que é a perda de confiança nas soZnções normativas, ou por outras pa­lavras, o crescente predomínio do emocional ou do intuitivo sôbre a exigência fundamental de racionalidade que me parece essencial ao estudo científico-positivo da Jurisprudência, comprometendo a concepção democrática do direito, impensável com abstração dos valôres de certeza e de segurança.

Seria, evidentemente, absurdo, a esta altura do século, pre­tender fazer tábula rasa das preciosas contribuições dos mestres da Jurisprudência sociológica ou do Sociologismo jurídico, como Eugen Ehrlich, Leon Duguit ou Roscoe Pound; dos novos rumos apontados para a exegese e a aplicação do direito, pela escola da "Livre investigação" de François Gény, ou do movimento do "Di­reito livre"; dos ensi.namentos de Oliver Wandell Holmes sôbre a "vida real do direito" .em cotejo com as estruturas lógico-formais; dos reclamos em prol de uma "Jurisprudência dos interêsses", ou, mais recentemente, de uma "Jurisprudência axiológica"; da pene­trante análise dos motivos determinantes da vida jurídica, feita pelos mentores do "realismo americano", assim como da viva pos­tulação de Recasé.ns Siches, no sentido de uma "Lógica do humano e do razoável", sem falar em muitas outras manifestações do propósito comum de trazer corajosamente à plena consciência do jurista as fôrças-vivas que atuam no bôjo da experiência histórica do direito.

O problema que me proponho é bem outro. Como se infere dos estudos anteriores, longe de repelir as críticas movidas à Jurisprudência conceitual, o que me pergunto é se tais críticas atingem tôdas as formas de normativismo jurídico ou se, ao con­trário, não são elas procedentes apenas com referência a uma concepção particular de normatividade, à que se poderia chamar "normatividade jurídica abstrata» . No fundo, tal reconhecimento é feito por alguns dos fautores da revisão crítica da Jurisprudência

o DIREITO COMO EXPERltNCIA 189

tradicional, mas nem sempre envolvendo o problema essencial de um nôvo conceito de norma, mais correspondente às exigências de concretitude reclamada pelo Direito contemporâneo.

A contraposição ou a antítese , às vêzes afirmada, entre a "normatividade jurídica" e a "vida real do direito", só terá sentido enquanto nos conservarmos apegados a um conceito abstrato de norma, concebida como simples "juízo lógico", diversamente qua­lificado como sendo de natureza hipotética, disjuntiva, conjunti­va, etc.

A norma jurídica é sim um juízo lógico} mas é bem mais do que isto: o enlace lógico-normativo, a meu ver, não é senão o modo de significar uma realidade humana distinta, com o sentido do valor ou dos valôres que lhe correspondem ou, por outras palavras, o juízo lógico é um "supOlie ideal", graças ao qual uma dada porção da experiêncía humana é qualificada especificamente como "experiência jurídica" 2.

Conceber a norma juridica como simples "proposição norma­tiva", - exceção feita para os objetivos restritos da Lógica Ju­rídica formal, que evidentemente não cuida senão de um aspecto da normatividade, - equivale, em primeiro lugar, a conceber a Jurisprudência como uma ciência só formalmente normativa e, de outro, em admitir que uma proposição normativa possa ser "jurídica" sem se referir necessàriamente às condições "fático-axio­lógicas", objeto de sua significação.

Devemos, ao contrário, dizer, sem fôrça de expressão, que o dirdto é a norma e mais a situação normada} e que, a rigor, esta distinção mesma deve ser entendida com cautela, pois a norma, somente graças a um esfôrço abstrativo, isto é, somente enquanto proposição lógica, poderá ser concebida sem envolver a realidade por ela significada. O direito é, em suma, intrinsecamente norma­tivo. É a razão pela qual, apesar de tôdas as restrições que têm sido feitas ao normativismo jurídico, os chamados juristas práticos, os advogados e os juízes, mantêm-se, em geral, fiéis a uma atitude normativista, vendo nas regras de direito, não apenas um enun­ciado de ordem lógica, mas também a exigência moral de um comportamento ao qual se ligam previamente certas conseqüências, enunciadas, às vêzes, genericamente, mas suscetíveis de serem de­terminadas in concreto> segundo a justa aspiração de uma adequa­ção cada vez maior entre a norma e cada caso ocorrente.

Acresce que até mesmo os jusfilósofos de formação antinor­mativista acabam renovando todos os problemas postos pela nor­matividade, quando às voltas com questões relativas à interpre­tação e à aplicação do direito.

2. Sôbre a compreensão do "juízo lógico-normativo" como "suporte ideal" de um valor jurídico, v. minha Filosofia do Direito, 4.' ed.. cit., 5, págs. 203 e segs. e as ponderações desenvolvidas supra no Ensaio lII, § 9.

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o maior equívoco, que me parece existir, por conseguinte, nesta matéria, consiste em pensar a normatividade em têrmos de generalidade abstrata. Poderíamos dizer que, à luz do normativis­mo formalista, - contra o qual se volveram as críticas acima lembradas, .cada norma jurídica significaria:

a) o · modêIo lógico de uma classe ou tipo de comportamentos possíveis;

b) dotado de sentido em si concluso; c) destinado à qualificação dos comportamentos intersubje­

tivos correspondentes ao seu enunciado; d) ligado, retrospectivamente, tal modêlo, aos pressupostos

fáticos e axiológicos que condicionaram a "intenção" do legislador mas não, prospectivamente, aos novos fatos e valôres emergentes da experiência jurídica.

Acorde com tal concepção, uma vez emanada a regra pelo legislador, ou consagrada que seja pela jurisdição ou pelo costume, ela passa a valer objetivamente como entidade lógica per se stante. Julga-se que será suficiente interpretá-la em sua significação for­mal plena, ou em seu sentido objetivo, como pretenderam os adep­tos da chamada "hermenêutica objetiva", para que uma norma jurídica, mediante um simples procedimento de subsunção lógica, possa qualificar os fatos particulares enquadráveis na órbita de sua incidência.

Pensada, assim, a norma como um dado abstrato, ou por ou­tras palavras, como um modêlo lógico-formal, do qual devam de­fluir dedutivamente conseqüências adaptáveis às infinitas vicissi­tudes da vida social, foi fácil demonstrar o equívoco da alegada plenitude lógica do sistema das normas de direito, máxime com a crescente ruptura verificada entre a realidade social e econômica e as estruturas jurídico-normativas, as leis, os regulamentos, os precedentes judiciais, as instituições, as normas costumeiras, etc. A vida real e concreta irrompeu violentamente, pondo à mostra a inanidade de conceber-se as sentenças ou as decisões administra­tivas como meros silogismos, nos quais a norma juridica funcio­naria como premissa maior de uma conclusão inevitável, ou como profecia ou predição daquilo que os tribunais haveriam de decidir. Esta é hoje uma observação que representa um ponto quase pací­fico entre os filósofos do Direito, e que tende a ganhar também terreno entre os mestres de Direito Processual.

§ 2. O que me parece, no entanto, excessivo é inferir-se, das críticas acima apontadas, a condenação a tôda e qualquer espécie de normativismo jurídico, sem as restringir ao campo do norma­t ivismo formal ou abstrato. Não valerão tais críticas, com efeito, se ao contrário, concebermos a norma jurídica como :

o DIREITO COMO EKPERIÊNCIA 191

a) o modêlO-operaci.onal de uma classe ou tipo de com. portamentos possíveis;

b) dotado de sentido válido no conjunto do ordenamento ju­rídico;

c) implicando a qualificação e a obrigatoriedade dos com­portamentos que lhe corresponderem;

d) em função dos fatos e dos valôres que o condicionaram originàriamente;

e) bem como dos novos fatos e valôres emergentes da expe­riência jurídica.

Na concepção do normativismo abstrato, o sentido da regra jurídica apresenta-se per se stante, de maneira que, por mera inferência lógica, a ela deveriam se conformar as diversas reali­dades particulares: a norma, como tal, seria o têrmo final, o mo­mento lógico conclusivo de um processo em si mesmo cerrado e logicamente imutável, até e enquanto outro enunciado lógico não viesse substituí-lo, pela via normativa da revogação formal. Ema­nada a norma e enquanto esta se mantém em vigência, o que pode ocorrer são acontecimentos correspondentes ou não ao es­quema previsto: a juridicidade ou não da hipótese examinada de­correrá, por isto, do ajuste ou do desajuste entre o evento concreto e o que está enunciado na regra, in abstracto.

Na teoria do normativismo concreto) ao contrário, a norma jurídica não é concebida como simples estrutura lógico-formal, equiparável à das leis físico-matemáticas, mas é antes um modêlo ético-funcional que, intrínseca e necessàriamente, prevê e envolve o'momento futuro de uma ação vetorial e prospectiva concreta. Daí ser necessário distinguir-se:

1) entre o "juízo-lógico",. (o suporte ideal mediante o qual se expressa algo) e o "valor" expresso pelo juízo: suporte lógico e valor formam, em seu conjunto unitário, a norma jurídica, que, dêsse modo, não pode ser reduzida a um de seus dois elementos componentes.

2) entre a validade da j'norma juridica", examinada em si mesma, - qual se fôra um anel destacado de uma corrente, ou uma conta desligada do rosário, - e a sua validade inserida no complexo do sistema ou do ordenamento.

Consoante já foi exposto anteriormente, a Lógica Jurídica não tem por fim dar resposta às múltiplas e sempre renovadas exi­gências da Ciência Jurídica: ela esclarece rigorosamente a estru­tura do juízo de "dever ser" ou da proposição normativa, mas não o seu repertório: não envolve, nem poderia envolver, o mo­mento decisivo da normatividade, que é o da sua atualização como conduta, isto é, como comportamento do juiz, do administrador, dos indivíduos, e dos grupos a que ela se destina.

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192 MIGUEL REALE

li

NOMOGÊNESE JURíDICA

§ 3. Isto pôsto, dadas as conexões existentes entre "nor­matividade" e "realizabilidade" (e um mestre brasileiro, João Mendes Júnior, não se cansava de lembrar, invocando Jhering, que não há norma jurídica sem realizabilidade) torna-se necessá­rio partir da "nomogênese jurídica", pois, analisando-se como a regra de direito surge e se constitui, muito se esclarece no tocante à sua interpretação e aplicação. Vale aqui lembrar a lição de Vico quanto à necessidade de estudar-se nos fatos humanos a "forma de seu nascimento", já que «verum ac factum convertuntur".

Já fiz breve alusão à nomogênese jurídica como a uma das fases essenciais da eX1)€riência jurídica, e o assunto é de tal mag­nitude que está a exigir a cooperação de todos os especialistas do direito, nos diversos domínios de sua pesquisa, mesmo porque foi somente após o desenvolvimento da Sociologia Jurídica e dos renovados estudos de Política do Direito que o trato da matéria assumiu contornos mais precisos.

É claro que o problema da origem do direito sempre preocupou aos cultores do direito, como o revelam as contribuições da Escola Histórica, acentuando a fôrça do elemento consuetudinário numa trama de volições anônimas, destinadas ao reconhecimento final do legislador, ou as obras dos autores que não perderam de vista o papel criador da vontade no processo nOm'ogenético, ou, ainda, as diversas doutrinas que procuraram compreender a gênese do direito em têrmos de luta de classes, de composição de interêsses econômicos, de influências geográficas, demográficas, raciais, etc.

No panorama do saber juridico contemporâneo, infenso a re­duções precipitadas, não raro resultantes de deformações ideoló· gicas, o problema começa, porém, a ser situado de maneira mais objetiva, seme preconceitos que impeçam a apreciação conjunta e complementar dos fatôres que atuam no bôjo da experiência ju-rídica. . '

Reconhece-se, em suma, quão absurdo seria querer circuns­crever, a priori) a um limitado número de fatôres determinantes a complexa e mutável gama de motivos geradores de uma norma de direito, assim como não se tem receio de admitir que, ao lado de fatôres racionais, operam fôrças de tipo irracional, pela carga de afetividade ou de passionalidade que pode chegar a contaminá­.la, desviando-a de sua função essencial de estruturação prudente e harmônica de valôres e interêsses 3.

Tôda norma jurídica corresponde ao momento culminante de uma multiplicidade às vêzes considerável de fatôres, os quais po­dem ser conglobados, de modo geral, em duas categorias, 'Ou

3. Sôbre esta matéria, além do já exposto supra, no Ensaio VI, págs. 131 e segs., v. Plurali8mo e Liberdade, cit., II Parte, notadamente págs. 207 e segs.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 193

"dimensões", a de ordem axiológica e a de ordem fática 4. Po­demos distinguir, em primeiro lugar, um "complexo de exigências axiológicas", que dá lugar a uma nova ,norma, alterando ou subs­tituindo as normas já existentes ; tal "complexo de exigências axio­lógicas" não opera in abstracto, é óbvio, mas condicionado por um "complexo de circunstâncias fáti cas": é dessa correlação fático­-axio!ógica que se origina a norma ou um «cmnple;J;o-de-normas".

As exigências axiológicas, como já acentuei , podem ser as mais diversas, distribuindo-se atravÉs de uma escala de tendências de ordem espiritual, moral, intelectual, econômica, etc. Além do mais, através da história, e em função do meio social em que o direito é vivido, as condições fáticas igualmente variam com maior ou menor intensidade e extensão. Entre fato (ou "complexo de situações fáticas") e valor (ou "complexo de exigências axioló­gicas") existe uma permanente tensão. Às vêzes, chega a haver aberto contraste, o que tudo se torna sobremaneira perturbador quando se pensa que os mesmos valôres podem dar lugar a reações psicológicas ou a "experiências estimativas" contrastantes ou opostas.

É claro que, diante de um contraste .ou conflito entre valôres e fatos, ou mesmo diante de um conflito entre múltiplas atitudes estimativas possíveis com relação a um único valor, que esteja historicamente incidindo em dado meio social, nem tôdas as vias podem preponderar juridicamente. Nada mais incompativel com o direito do que a incerteza, a carência de uma diretriz segura: o direito responde, de maneira primordial, ao desejo espontâneo que o homem tem de fugir à dúvida, mais pungente no plainO moral da ação do que no plano intelectual da especulação pura. De resto, já observei ser inerente ao "pensamento selvagem", em geral, do selvagem inclusive, um apetite natural de ordem 5.

É êsse dado fundamental de experiência que explica o reno­vado apêIo à ordem que marca o processo histórico, o que não significa, todavia, que o homem porfie sempre em perseverar no status quo} escravo de um "conservantismo congênito". Muitas vêzes ocorre que a exigência de ordem implica antes a mudança e a reformulação do sistema legal vigente do que a sua imprudente e ilusória perpetuação. Equivocam-se, pois, os que confundem

4, "Dimensão" significa, por conseguinte, um complexo de fatôres da mesma natureza , Em sentido paralelo, escreve RAYMOND B OUDON que, sob a rubrica de a!uilise dimensional, não fazemos senão dar um outro nome à operação usual mediante a qual somos levados, tanto na vida quotidiana como no trabalho científico, a subsumir uma multidão de caracteres par­tieulares sob um pequeno número de conceitos gerais. Segundo BOUDON, a "análise fatorial" pode ser considerada uma forma particular da análise dimensional. (Cf. L'Analyse Ma,thématique des Faits Sociaux, P aris, 1967, págs, 12 e segs., e 205 e segsJ.

5. Cf. Ensaio Ir, supra, a respeito dos mais recentes estudos de Antro­pologia. Dizer que o pensamento tende à ordem não quer dizer. porém, que a ação obedeça a estruturas ônticas prévias a qualquer valoração,

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o imperativo de ordem com o conservantismo sistemático, cego às mutações operadas na comunidade. A história aponta-nos casos em que, paradoxalmente, os pseudo-revolucionários arvoravam a bandeira do passado, enquanto os partidários realistas da ordem abriam corajosamente os caminhos do futuro. De uma forma ou de outra, o certo é que o homem não pode viver sel11 ordem, con­fluindo, mais t arde ou mais cedo, para o leito de uma "solução normativa" .

Em face de uma situação imprevista, como, por exemplo, uma guerra ou uma revolução, se as normas jurídicas se revelam insu­ficientes, novas vias disciplinadoras do comportamento social são escolhidas prontamente, sem maior demora. Ora, o que ocorre nesses casos extremos, quando exíguo é o tempo exigido para a maturação normativa, verifica-se tõda vez que uma norma jurí­dica surge: pode haver estudo e meditação, maior ou menor possi­bilidade de escolha, mas, em dado momento, é mister não se pro­telar a opção. Uma opção se impõe, e tôda vez que se escolhe uma via, sacrificam-se todos os demais caminhos possíveis. Den­tre os vários projetos de lei em debate em um parlamento, por exemplo, a respeito de um dado assunto, por mais que se pro­crastine, chega o momento do fiat lex) átimo culminante de uma decisão. É êste o momento decisório e decisivo do Poder.

Poder-se-ia expressar tal processo genético, recorrendo-se à se­guinte representação gráfica :

ESTRUTURA DA NOMOGflNESE .JUlUDICA

Complexo fá tico Figura n.p J

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Nessa figura se observam vários ralOS luminosos, - que cor­respondem aos possíveis sentidos vetoriais das exigênciaB axiolági­cas (V), - incidindo sôbre o prisma multifacetado dos tatos sociais)

o DIIU:lTO COMO EXPEIUtNCIA 19"

econômicos, t écnicos, jurídicos já vigentes, etc. (F). O resultado é a sua refração em um leque de soluções ou proposições norma­t ivas, uma das quais apenas se converterá em nova norma jnrídica (N) graças à interferência decisória do Poder (P).

Se, por exemplo, no Congresso se discutir nôvo projeto de lei sôbl'e reforma agrária, fácil é perceber como a atitude dos sena­dores e deputados dependerá do esquema fático-axiológico que ca­da um dêles elaborar em função de um complexo conjunto de elementos, desde a análise crítica dos efeitos da lei em vigor (o direito positivo vigente é um dos dados de fato dos quais parte o legislador para a feitura da nova lei) até às convicções doutri­nárias ou os pressupostos ideológicos em matéria de política eco­nômica, sem se falar no plano mais imediato dos interêsses pes­soais ou familiares.

É evidente que, em tais circunstâncias o ponto de vista de um comunista não coincide com o de um liberal clássico, ou de um socialista, mas, no nível das composições fáticas, podem co­munistas, socialist as ou democratas cristãos convir numa solução de compromisso, dando fôrça de modêlo jurídico a uma dentre as várias soluções normativas lógicamente viáveis. Escolhida, aliás, uma linha mestra comum, não faltarão divergências de outra ordem, consubstanciadas em substitutivos ao projeto de lei, por motivos formais, ou representadas por emendas, subemendas, etc., espe­lhando-se nessa gama de proposições parlamentares a multiplici­dade de variantes de uma estrutura jurídica in fieri. Ê só o ato decisório, final, por conseguinte, -que põe têrmo ao flutuar das te.nsões fático-axiológicas, permitindo que a norma de direito se aperfeiçoe como modêlo vigente.

Como se vê, é a co-participação opcional da autoridade (seja ela a de um órgão legislativo ou judicante definido, ou ainda a expressão das volições convergentes do corpo social) que converte em norma, armando-a de sanção, uma dentre as muitas vias nor­mativas possíveis.

§ 4. Esclarecer as grandes leis de tendências sociais que porventura presidam ao processo fático-axiológico da nomogênese jurídica e de seu desenvolvimento como componente do mundo cultural, constitui tarefa a ser cuidada notadamente pela Socio­logia Jurídica, com base na observação direta dos fatos sociais, com os subsídios da Psicologia Social, da Política do Direito, da História do Direito, etc.

Focalizada a questão sob o prisma da Filos·ofia do Direito, parece-me, no entanto, possível discriminar algumas teses funda­mentais sôbre tão relevante assunto, que põe em evidência a ne­cessidade essencial da análise do Poder na compreensão da origem e do desenvolvimento da norma jurídica :

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196

a)

b)

c)

MIGUEL REALE

A "nomogênese" jurídica pode ser compreendida como momento de um processo total, o qual, englobando obje­tivamente cada experiência normativa particular, dar-Ihe­-ia sentido concreto (concepção do tipo hegeliano, que pressupõe a objetividade de uma idéia, cujo desenvolvi­mento dialético daria nascimento às experiências parti­culares, válidas t ão-somente porque e enquanto inseridas no processo histórico total).

A tese oposta de cunho relativista, e até mesmo cético, da "nomogênese jurídica" como simples resultado de va­riáveis decisões do Poder, ou então, como expressão de fatôres sociais diversos no espaço e no tempo, insusce­tíveis de compreensão unitária: cada experiência norma­tiva constituiria um mundo a se) distinto ou desligado dos demais, só podendo ser estudado em função de suas pe­culiares circunstãncias.

A tese que não reduz a nomogênese jurídica à atualização de um valor prévio e absoluto, visto reconhecer a espe­cificidade de cada momento normativo, mas também não erradica a êste do processo total da experiência do direito: o aparecimento de uma no.rma de direito, co.mo momento. de uma experiência estimativa, participa da "solidarieda­de ínsita" ao mundo dos valôres; e, por ser uma expe­riência humana, prende-se sempre ao foco irradiante de todos os "valôres", que é "o próprio homem visto como valor".

As três teorias acima distintas - às quais corresponc1em múl­tiplas colocações subordinadas ou derivadas, - r efletem-se, de ma­neira permanente e decisiva, em tôda a problemática jurídica, por mais que se queira delas abstrair, a pretexto de fuga de questões metafísicas, apontadas simplisticamente como sendo "sem ;entido.".

Po.rque, na realidade, aquelas estruturas teóricas condicionam três pOSições fundamentais diversas:

a) quanto ao. mo.do de se conceber o papel ou a função do. Po.der em geral na no.mogênese jurídica, ou seja, no ato de ser posta in esse a norma de direito;

b) quanto ao Poder, Co.nsiderado já no momento da inter­pretação. e aplicação da norma vigente;

c) e, finalmente, com referência à ,questão nuclear da jus­tiça de cada decisão singularmente cosíderada.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 197

Em que pese a crítica irônica que algumas vêzes se move às soluções intermédias, mesmo quando signifiquem o superamento de teses supostamente contraditórias, - como se tôda atitude de centro represe.ntasse um estado de vacilaçã'o espiritual! - penso que, no concernente ao papel do Poder na gênese das regras de direito, revelam-se abstratas e falhas as duas teorias contrapostas, quer a que teme enfrentar a "face de Górgona do Poder" (para empregarmos as palavras reveladoras do temor kelseniano) , quer a que exacerba o decisionismo da autoridade estatal. Posta a questão na concretitude da experiência histórico-cultural, verifica­-se que não surge norma jurídica sem ato decisório) mas também inexiste ato decisório absoluto, não condicionado, em maior ou menor grau, por um quadro de possibilidades normativas. Se será exagêro afirmar-se que o Poder não passa de momento subordinado ao processo de objetivação normativa, não resta dúvida que não há Poder que não seja de certo modo condicionado pelo "plexo fático-axiológico" de cada campo de relações sociais. Mesmo nas sociedades sujeitas a regimes arbitrários, o ato de emanar normas de direito implica certa limitação do Poder, o qual não raro acaba involuntàriamente vinculado à estrutura nascida de sua decisão unilateral. O direito é de tal natureza que os seus liames sutil­mente envolvem a fôrça que o instaura.

No Estado de Direito, caracterizado por sistemas cada vez mais prudentes e eficazes de fiscalização do Poder, a discrição do legislado.r contém-se dentro de determinados limites Ce a aplica­ção da teoria do desvio de poder para contrôle judicial da legiti­midade do.s atos legislativos é bem uma prova dessa salutar com­preensão) mas é inegável que lhe resta sempre um amplo campo de escolha, segundo. critérios de co.nveniência ou de o.portunidade, insuscetíveis de contrasteação jurisdicional.

É certo, todavia, que por mais que possam prevalecer fatôres irracio.nais no ato decisório) a regra de direito se apresenta, aos o.lhos do jurista, como um dado que lhe cabe analisar corno elo de um sistema) à luz do. princípio da racio.nalidade substancial do ordenamento jurídico, e, também, co.mo. momento de tlm processo dialét,ico de co.mposição de interesses em conflito: a no.rma jurídica particular, em suma, não obstante a possível impureza de sua gênese, subordina-se à dupla e correlata exigência de sistematici­dade e de dialeticidade inerente à experiência jurídica como. um todo.

A necessidade da compreensão estrutural da no.rma jurídica resulta, po.r o.utro lado., da verificação de que não há solução normativa que não esteja vinculada a uma dada "cosmovisão ju.

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rídica", isto é, a um conjunto de pressupostos ideológicos ou prn­gramáticos, como a seguir será analisado.

§ 5. Vejamos, sumàriamente, quais as conseqüências de or­dem geral que, na vida do direito, isto é, no plano da vigência e da eficácia das normas jurídicas, defluem, logicamente, de cada uma das três doutrinas fundamentais sôbre a nomogênese jurídíca, tais como foram discriminadas no parágrafo anterior.

Se, com manifesto otimismo, se crê que cada norma não cons­titui senão o elo expressivo de um valor absoluto, o Poder passa a ser tratado como algo de imanente ao próprio processo da juri­di cidade. Uma estranha e inexplicável fôrça presidiria ao pro­cesso histórico do direito : cada experiência particular valeria po­sitivamente, abstração feita de sua validade intrínseca, porque seria momento necessário na sucessão dos eventos, sucessão esta governada por um valor absoluto e envolvente, de tal modo que o que "é" corresponderia sempre ao que "deve ser". Dêsse modo, a interferência do Poder, dando fôrça a uma norma e repelindo outras normas possíveis, seria, ipso facto, um ato de racionalidade absoluta. As conseqüências de ordem prática desta primeira con­cepção são fàcilmente compreensíveis, quer se pense no direito como a atualização dos valôres dominantes de uma classe, como se proclama na doutrina marxista, quer se apresente como a expressão objetiva dos valôres da raça ou do Estado, a cujos insondáveis desígnios estariam confiados os homens e as coisas. Por via de conseqüência, interpretar uma norma jurídica qual­quer seria sempre realizar uma sondagem na finalidade suprema que lhe dá legitimidade, para acolher-se a solução compatível com o programa político em vigor, ficando em um plano subordinado os valôres das pessoas e dos grupos naturais, assim como as muta­ções operadas nos quadrantes da história. Em última análise, os modelos jurídicos já estariam como que prefigurados em um ma­cromodêlo cerrado de valor absoluto.

Se passarmos a considerar a segunda posição, chegaremos, se quisermos ser corajosamente coerentes, à conclusão relativista de Gustav Radbruch quando nos diz que, não se conseguindo saber o que é o "justo", e sendo relativos e variáveis os valôres da justiça, torna-se necessário que alguém, armado de fôrça, defina e decida, em cada caso, acêrca do "jurídico" 6 . O máximo que se poderá fazer, para evitar-se o arbítrio da decisão (arbítrio de um só, ou arbítrio de muitos, pouco importa) é considerar a nomogê­nese cada vez mais, realisticamente, como um problema técnico. Assentado que esteja o programa de vida preferido por uma comu­nidade (no sentido da democracia individualista, da democracia

6. RADBRUCH - Filosofia do DireitQ, trad. port. , São Paulo, 1937, págs. 137 e segs. :É sabido que, com a sua teoria da "natureza das coisas", RADBIlUCH atenuou o seu relativismo, (v. supra, pág. 129, nota 6) .

i ,

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 199

social, ou do coletivismo, segundo fatôres de natureza metajurídica) o Poder, que converte uma "regra possível" em uma "norma efe­tiva". dando origem a um modêlo jLirídico, deveria agir segundo as diversas circunstâncias, aplicando critérios e métodos objetiva­mente científicos em função dos fins gerais e dos meios idôneos. Como diz Roubier, a Política Jurídica cederia, então, lugar à Técnica Jurídica, vista essencialmente como a "ciência dos meios destinada a tornar assimilável pelo corpo social o fim visado" 7.

Se assim é, uma vez posta a regra, como se caracteriza a tarefa do administrador ou do juiz, que devem interpretar e aplicar os modelos jurídicos? Não há uma resposta uniforme entre os juristas que se situam nessa linha de pensamento, pois uns acen­tuam o poder de decidir do intérprete, estendendo ao plano da aplicação da norma os mesmos critérios de indagação sociológica que, a seu ver, devem presidir à sua feitura; enquanto outros se contentam com os processos técnico-científicos de elaboração das regras de direito, concluindo que ao jurista cabe aplicá-las com o mesmo rigor com que um físico obedece às leis naturais. Des­sarte, temos, de um lado, os exageros do "Direito livre", como uma conseqüência previsível do relativismo jurídico; do outro, te­mos a redução do "dever ser" ao "ser", das normas jurídicas a leis físico-naturais, como no fisicalismo jurídico de Pontes de Mi­randa, que não admite possa o direito ser compreendido em seu contexto axiológico, expelindo a eqüidade do mundo do Direito co­mo um resquício de animismo .. .

Não há dúvida que na linha de pensamento supra examinada há o mérito inegável de se querer plasmar os modelos jurídicos em função da experiência social, mas nada justifica o olvido da correlação ,que deve necessàriamente existir entre as soluções par­ticulares e as exigências do todo social, tais como estas vão se objetivando, teleologicamente, no processo cultural, como expres­são, digamos assim, da razão histórica. Mister é reconhecer, ou­trossim, que a criação dos modelos jurídicos não pode resultar da simples aferição técnica dos fatos sociais, nem ser, por outro lado, fruto de mera decisão, mas deve expressar antes a composi­ção superadora dos interêsses em jôgo, atendida a íntima correlação das funções e fínalidades do Direito. O que nos revela a expe­riência histórica do direito, não obstante os avanços e recuos que se alternam no tempo, é um desejo premente de harmonia entre liberdade e segurança, um renovado esfôrço de implicação entre o particular e o geral, entre os valôres de estabilidade e os de progresso, sem se perder jamais de vista o significado de cada estrutura social, como unidade vetorial dotada de elementos distin­tamente correlacionados entre si e com o todo. Daí o supera-

7. Cf. Travaux de la Semaine Internationale du Droit, Paris, 1950, pâgs. 150 e segs.

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mento, que)'" na ; terceira poslçao, : se "pretende realizar, quer da atitude dogmática ' que pressupõe . um modêlo absoluto a dirigir deantemão .a ; experiênciajurídica, quer da relativista que acaba subordinando as soluções jurídicas à ' eminência discricionária do poder, 'ainda'!que:'; a ' pretexto 'de adequação à "causalidade" dos fatos sociais; ' ' É 'nessa tarefa superadora de visões unilaterais e setorizadasquese revela a "prudência" de uma forma de saber que, desde a intuição sintomática de suas origens, se denomina " J urisprudência.':.

É preciso,';em' verdade, não olvidar que, na nomogênese jurí­dica, oPoder'represantasempre um momento de livre escolha, um coeficiente éde ' discriçionariedade,por mais preciosos que sejam os subsídios fornecidos <pela política do Direito, pela Sociologia Ju­rídica, pela Eçonomia, por tôdas as Ciências que digam respeito à hipótesea :ser>:regulada. Isto sucede,' quer o Direito se desenvolva principalmenténo: plano legislativo, como nos países de tradição romanística, quer resulte da atividade jurisdicional, como acontece nos países:do }'common law";quero 'Poder atue através de órgãos definidos" (Parlamentos, Tribunais, etc.) ' ou corresponda à fôrça difusa nocorpo 'social, como se ' dá eom as normas jurídicas consue­tudinárias; hiBótese em que' o "ato decisório" é o produto de opções anônimasqllet se'( rT?;tem e ~e ' conjugam' através do tempo.

NãoV~odênd~~. a nor:majurídica Particljlar ser co.nsiderada a expressão '<de:~um'} valor objetivo supremo; nem tampouco a . ex­pressão g~nérica de um saber científico verificável em cada hipó­tese; i mas ~send9 >;:l.ntes "'uma composição prudente de exigências fá­tico,axiológicas;'resultante da " subordinação dos dados sociológicos,

. econômicos,~ psicológicos,::etc.' a prudentes critérios de oportunidade e de ' co.nyeniência;\ impóe-seaconclusão de 'que a norma jurídica nãopode 'ser :vista ' comoummodêlológico definitivo : é um modêlo ético-funcional/ sujeito à prudência exigida pelo conjunto das ' cir­cunstâncias" ftitico-axiológicas ' em que se acham situados os seus destinatários.C ·' · '~l. :

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ONEXO ':FATICO-AXIOLóGICO - O FATO E O DIREITO :~,. -:~Y?i,_-;::)i'j:r5,~>'-r' <~~-~t,~,~,- ,:~ -'_i ' ~ ,' "" . ' .,' "", ,, ._," ,""'" . .

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§6 . . ~\lfiX~l11os,\ por ';1,lm . instante, ,êsse ponto essencial, mesmo porqueêl~ , nºs {~sclarece o sentido danormatividade, inserida em um proce,sso'",histót:ico-cultural, que, pela sua própria estrutura, não pode .dei:x,ar ,de apresentar.secomo ;· ~'processo de implicação-po­larida~e"" '. eJ:n ;virtude. de .sua natureza , axiolÓgica.

A normatividade, como já foi dito em Ensaios anteriores, é o momento conclusivo do processo de objetivação inerente à expe­riência jurídica, podendo-se dizer que nenhuma relação social poderá

~

i I

o DIREITO COMO EXPERIeNCIA 201

ser jurídica se não atingir a fase da significaçãopreceptiva. É preciso situar bem a questão, pois, muitas vêzes, confunde-se o que é culminante, no âmbito de um processo particular, com o que é decisivo de maneira geral, absolutizando-se, dessa forma, o valor da norma como tal.

A rigor, não se pode dizer que haja fator dominante numa expe­riência social de natureza dialética, como é a jurídica, que sempre se mantém una e concreta na diversidade de seus momentos, em virtude da complementariedade de seus elementos componentes. De maneira relativa, porém, pode-se dizer que, para o jurista enquanto jurista, o momento culminante é o n01'mat-ívo: a norma jurídica não será, con­tudo, integralmente compreendida se reduzida ao seu aspecto formal de proposição lógica (embora possa e deva ser estudada, como vimos no Ensaio IIl, pela Lógica Jurídica formal), pois ela envolve, neces­sária e concomitantemente, uma referência tensional aos dados de fato e às exigências axiol6gicas que lhe deram vida, assim como às inter­correntes ou sucessivas implicações fático-axiológicas capazes de al­terar-lhe o significado. Essa a razão pela qual o normativismo ju­rídico, compatível com a concepção tridimensional do direito, só pode ser um normativismo concreto) e ' não' um normativismo abstrato e fO'rmal 8. ,,,

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Aos olhos do jurista o direito se póeprevrueccrltementecomo norma) mas esta não pode deixar de sereonsiderada,uma,realidade essencialmente histórica, consoante é , próprio .: Çle ''' tôda,sas·; estru­turas sociais. Cada norma jurídica" significa . aqu(!lasolução .... ou composição tensional que, no âmbito ' de certaconjlmtura históri­co-social, é possível atingir-se entre exigências '.' axiol6gicas ' (pres- · ." sões políticas ou ideológicas, interêsses de ordem econômica, ;'va- ' lorações jurídicas, morais, religiosas, etc.) e um dado complexo de fatos, isto é, tôdas as condições, CÍrcunstânciase realidades já existentes no ato em que a norma surge. "

Desnecessário é repetir que a regra jurídica " não brota dos fatos empíricos graças a um processus de revelação imanente, como ocorre com as leis físico-naturais explicativas ' dos ' fenômenos, as quais são, no fundo, como já foi dito com acêrto, "o retrato sin­tético do fato". As normas jurídicas, longe de serem mero reflexo daquilo que no fato já se contém) envolvem uma tomada de posição opcional e constitutiva por parte de quem a emana ou positiva, à vista do fato e segundo critérios de valor irredutíveis ao plano da faticidade ou a uma pressuposta finalidade imanente ' à ação. A norma é, pois, síntese superadora que significa,nãoumdireito

8. A compreensão tridimensional da norma jurídica não é incompatível, é claro, com a determinação da estrutura e dos valôres peculiares à propo­sição normativa. Sôbre os limites da Lógk;aJurídica, cfr. mIm, Ensaio lII, § 9.

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ideal ou mais perfeito, mas apenas o direito positivo ou lJo8itivâuel, em função de valorações prevalecentes em dado meio social e his­tórico 9.

As considerações supra são bastantes para demonstrar que, numa compree.nsão dialética da experiência juridica, o fato jamais é um pretenso "fato puro originário" , como um dado bruto recebido ab extra, mas significa aqu,ilo que já existe num dado contexto his­tórico. A essa luz, no ato de ser estruturado um modêlo jurídico, os modelos já positivados atuam como fato em relação ao consti­tuendo: por outras palavras, de lege ferenda, lex lata é fato condi-

cionante. Mesmo fora da esfera jurídica, onde a tipicidade estimativa

do fato é mais perceptível, tem-se reco.nhecido, tanto no plano da Filosofia geral como no da Filosofia da Ciência, que o fato como tal é uma abstração 10. Tudo que digo sôbre algo só posso dizê-lo segundo certo ponto de vista, e, como o fato pode ser objeto de múltiplas perspectivas (uma lesão corporal dolosa é fato biológico para o médico; é notícia para o repórter, e é fato jurídico para o Ministério Público) pode-se dizer que o fato é uma porção do real à qual se refere um conjunto de qualificações, ou sob outro prisma, é a base de um complexo convergente de significações, que pressupõem um eidos, isto é, uma "essência", inconfundivel com o "fato" como tal ll .

Assim sendo, nem mesmo os dados naturais são fatos brutos para o Direito, pois, no ato mesmo de sua inserção no mundo jurídico, já recebem uma qualificação conceitual, convertendo-se os nexos causais, que os determinam, em nexos de uma compreensão

9. Friso, mais uma vez, que êsse enfoque axiológico não priva a pes­quisa de seu caráter científico-positivo, convertendo-a em investigação de ordem filosófica. 'É preciso superar de vez o equívoco reinante, em certos círculos, no sentido de considerar filosófico um estudo pelo simples fa to de submeter a realidade à categoria do valor. Sôbre a d istinção dos dois planos da pesquisa axiológica, o filosófico ou transcendental e o empírico-positivo, v. minha Filosofia do Direito, 4.' ed. , cit., Capítulos XII-XV.

Quanto à importância basilar do conceito de valor nas ciências human~s, v. GUNNAR MYRDAL - O Valor em Teoria Social, trad. de Oraey Nogueira . São Paulo, 1965, onde é acolhida esta afirmação de Loms WmTlI: "S(,111 valoração não temos interêsse, nem sentido de importância ou signif icaçflO, e, conseqüentemente, nenhum objeto" (pág. 1021, EVARISTO DE MORAIS FILHO - O Valor em Teoria Social, Rio, 1959 e A. L. MACHADO NETO - IlItí'oiluçtio à Ciência do Direito, São Paulo, 1960, l, págs. 65 e segs.

10. Sóbre êsse ponto, reporto-me ao que escrevi em O E8tcldo Mode)'no , São Paulo, 3.' ed., 1935, págs. 42 e segs., com referência às nnálises de VAHlNGER, POINCARÉ, LE Roy e EUCLIDES DA CUNHA sóbre o conceito de fa to nos domínios da ciência, como fato sempre relativo a um sistema teó rico.

11. Cf. HUSSERL - ldeen, cit. l , § 2; §§ 8-12. Segundo MAX Scm;um, "fa tos puros" seriam apenas os "fa tos fenomenológicos", primários, origi­nários, prévios a tooa interpretação e construção da ciência, isto é, aos "fatos científicos" (Cf. FERRATER MORA - Diccional'io de Filosofia, cit., I. pág. 810, "hecho") .

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 203

ao mesmo tempo causal e motivacional, funcional e teleológica. O jurista, em suma, ultrapassa o plano empírico da faticidade causal para captar o seu sentido, ou a sua necessária dimensão axiológica, traba lho êsse que o fi lósofo do direito leva mais adiante até atingir as condições transcendentais de validade.

Em virtude da íntima ligação existente entre fato e valor, ad­verte Ginsberg, numa fórmula feliz, que "quanto mais profundo o conhecimento dos fatos, maior é a chance de crescente penetração na natureza dos valôres" 12 .

Não me parece, por consegu1nte, aceitável a posição dos auto­res que dão à palavra fato, - quando empregada, e.ntendamo-nos, em expressões como "fato normativo", ou no contexto da teoria tridimensional do direito, - um sentido naturalístico, relativo a algo situado no passado e explicável segundo meros nexos causais. Sob o prisma da norma em elaboração, fato significa tanto o dado de natureza ou um acontecimento independente da vontade humana, como os eventos e realizações resultantes dela, (os objetos histó­rico-cnlt?~rais) inclusive os modelos jurídicos enquanto já positi­vados, isto é, enquanto já feitos pelo homem.

Dessarte, considerada a questão sob o prisma da normatividade in fieri, o direito positivo é também um dos elementos que compõem o fato objeto de novas valoraçõcs, te.ndentes a culminar em novos modelos ju,rídicos: sob êsse ângulo particular, é lícito dizer-se que o fato opera como elemento negativo, na medida e enquanto é passado e, tendendo a perseverar em seu statu,s, entra em conflito com o direito em elaboração no bôjo da experiência social. Numa compreensão dialética, em suma, tudo o que se positiva ou se obje­tiva (o fato), ao mesmo tempo que representa uma afirmação e uma conquista do homem, já assinala a carência de algo, pondo, mais tarde ou mais cedo, a perspectiva de um nôvo Uqu,e fazer") num enlace fático-axiológico que se renoya através da história. A norma

12. MOR RIS GINSBlmG - EssaJ/s in Sociology and Social Philosophy, Mel­bourne, 1956, vol. l, pág. 21. Cf. EDGAR BODENHEIMER - Treatise 011 Ju.stice, Nova-Iorque, 1967. pá gs. 50 e segs. Analisando a relação fato-valor no plano jurídico, BIAGIO DE GrovANNI acertadamente escreve que a categoria do "fato jurídico" exerce uma função dinâmica no interno de uma estrutura, "na qual fato e valor constituem os pólos distintos e necessários de uma recor­rente dialética" (Fatto e Valu.tazione 1wlla I 'eoria deZ Negozio Giu,ridíco, Nápoles, 1958, pág. 23J.

A êsse respeito, cabe aqui lembrar uma penetrante passagem de Gumo CALOGERO, dístinguindo entre fato físico e fato ju,rídico, aquêle uma realidade "observada"; êste, uma realidade "operada": "um é um fato da natureza, o outro um fato da vontade; um é um fato que é somente fato, o outro é um fa to que é também um ato; um é um factwrn, que não pressupõe nenhum facieneZ,um, o outro, um tactu,m que nasceu de um faciendum, pois não teria oeorrido se um factor não o houvesse sentido como facieruium" (La Logica deI Giudice e il SUA) Controllo in Cassazione, Pádua, 1937, pág. 125).

Cf. minha Filosofia do Direito, 4.' ed. cit. , págs. 495 e segs.

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jurídica, integrando aquêles dois elementos, não pode, por conse­guinte, ser jamais uma solução definitiva, mas é antes marcada pelO sentido da provisoriedaele, consoante penetrante ponderação de Ben­jamim Cardoso: "As normas e os princípios existentes podem indi­car-nos a nossa situação prese.nte, o nosso comportamento, a nossa latitude e longitude. A estalagem em que nos abrigamos durante a noite não é, porém, o fim da jornada. O direito, assim como o viajante, deve estar pronto para o amanhã. Ele deve ter um prin­cípio de evolução" 13.

§ 7. No parágrafo anterior, foi analisado o significado e o papel do fato no processo dialético da experiência jurídica, sendo necessário apreciar o problema em um outro nível, o dos modelos jurídicos enquanto referidos aos fatos suscetíveis de ser por êles qualificados. Trata-se do problema do "fato e do direito" no âmbito da Dogmática Jurídica.

Ora, a tensão fático-axiológica, que se percebe na raiz do pro­cesso nomogenético, reflete-se, como não podia deixar de ser, no plano da aferição normativa dos fatos, isto é, de todo evento susce­tível de qualificação jurídica e, por conseguinte, de gerar efeitos de direito, tenha ou não havido intenção de produzi-los como tais.

Relativamente a tais eventos, ,que constituem o material sôbre que versa a prova de uma demanda judicial, usa-se o têrmo fatos, o que é certo, mas não é certo que se lhe dê uma acepção natura­lística, como se se tratasse de algo redutível a meros nexos causais. Até mesmo um jusfilósofo como Karl Engisch, tão imbuído da na­tureza compreensiva ou estimativa do direito, se deixa influenciar pela imagem fisicalista do fato, quando afirma: "Ao falar dos fatos temos em vista acontecimentos, circunstâncias, relações objetos e estados, todos êles situados no passado, espácio-temporalmente ou mesmo só temporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepção interna ou externa e ordenados segundo leis na-tm'ais" 14.

Esta última afirmação parece-me duvidosa, a não ser que se to­me a expressão "leis naturais" em sentido lato, pois os acontecimentos humanos, como já tive a oportunidade de salientar em diversas pas­sagens dêste livro, resultam de causas e fins, fins e motivos, segundo o que Husserl denomina causalidade motivacional, pondo a motiva­ção como lei fundamental do mundo espiritual. Afirma com razão Husserl que, "quando o estudioso, que se move no âmbito das ciên­cias do espírito, fala de regras, de leis, que regem os modos de

13. The Growth of the Law, Yale University, Press, 1948, págs. 19 e segs. 14. K . ENGISCH - Introdução ao Pensamento Jurídico, trad. cit., pág. 72,

com remissão aos seus Logische Studien zur Gesetzesanwendung, 3.' ed., 1963, págs. 37 e segs.

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comportamento ou os modos de formação de certas configurações culturais, as ca'usalidades, que em tais leis encontram uma sua ex­pressão geral, são coisas bem diversas das causalidades naturais" 15.

Na realidade, quando o juiz examina qualquer fato trazido ao seu conhecimento, seja êle de natureza civil ou penal, como por exemplo, a recusa do devedor a pagar uma letra de câmbio, ou o furto por êle feito do comprovante da dívida, há em ambos os casos, duas perspectivas distintas, mas intimamente conjugadas: a da ve­rificação da ocorrência, como um dado objetivamente certo; e a do sentido que lhe é próprio. No ato de certificar-me de um fato, de certa forma já o qualifico, reconhecendo-o e incluindo-o em uma conduta típica: num segundo momento, essa qualificação típica, feita ao nível imediato da causalidade motivacional, é referida à qualificação abstrata contida no modêlo jurídico, podendo tornar-se ou não uma "qualificação normativa", da qual deflui co ipso a imputação ao autor da responsabilidade pelas conseqüências juri­dicas emergentes do fato.

É claro que, na certificação do fato, deve-se recorrer a proces­sos e técnicas que pressupõem o determinismo das leis naturais, mas êsse enlace causal não exclui, mas antes exige, o exame da intencionalidade que o acompanha e lhe dá sentido, o que não sig­nifica que só por isso deixe o mesmo de ser objetivo, situado delimi­tadamente no tempo.

O que ocorre é que, muitas vêzes, a percepção do fato na sua manifestação imediata (Fulano atirou em Beltrano) é bastante como base de fato para um inquérito policial, muito embora possa não sê-lo para a instauração de um processo judicial, mas mesmo aquêle dado de fato elementar é fato significativo de algo, correlacionável à possível lesão de um valor, como é o da integridade física da vitima.

Há, pois, no conceito de f ato, capaz de interessar ao Direito, sempre uma nota ele tipicidade, pelo menos embrionária, nota essa que é de natureza axiológica. Aliás, o citado Engisch reconhece que "a subsunção de uma situação de fato concreta e real a um conceito pode ser entendida como enquadramento desta situação de fato, do caso, na classe dos casos designados pelo conceito jurídico ou pela hipótese abstrata da regra jurídica" 16.

15. Cf. HUSSERL - Ideen, lI, trad. cit., Capo 2, §§ 54 e segs., págs. 607 e segs.

16. Op. cit., pág. 79. A palavra alemã Tatbestand, que, ao pé da letra, significa "situação dos fatos" ou "estado das coisas", e que os italianos traduzem por fattispecie, indica, pois, não o fato bruto, mas sim o "tipo de faio" ou o "jato-tipo" previsto na norma de direito como pressuposto lógico da incidência do preceito ou dispositivo. Daí preferir traduzir Tatbestand por fato-tipo ou pressuposto fático. A expressão "snporte fático", adotada por PONTES DE MIRANDA, pode ser aceita, desde que depurada da com-

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A rigor, é a já apontada qualificação do fato ao nível imediato da causalidade motivacional que torna possível a síntese ou inte­gração normativa: a tipicidade opera) por conseguinte) como ele­mento de mediação entre o nexo fato-valor e a solução representada pela norma de direito.

Por outro lado, se o caso concreto, como, por exemplo, o submetido a um magistrado, não fôsse suscetível de qualificação tipológica, seria lõgicamente inadmissível a sua subsunção ao mo­dêlo jurídico: sem certa correspondência isomórfica e homóloga entre o evento real e o modêlo, graças à pauta axiológica comum que funcionalmente os liga, seria inviável a qualificação normativa do primeiro, com as conseqüências que defluem dêsse ato quaJifi­cador 17.

A necessidade da compreensão axiológica do tato como con­dição de subsunção normativa tem sido reconhecida por juristas como Tullio Ascarelli , o qual, após dizer que a norma jurídica repousa sempre sôbre valorações, declara inexistir, por exemplo, um contraste entre norma jurídica e fato econômico) como se fôs­sem dados contrapostos, assim como não existe jamais "um pro­blema de direta adequação da norma ao fato": o problema é, a bem ver, "o da relação entre uma norma, histôricamente posta, e as valorações e volições atuais" 18.

Tem sido também pôsto em realce pelos juristas o equívoco de pensar, como adverte R. Savatier, que as coisas nuas, na sua ver­dade natural, seriam mais simples que os conceitos jurídicos que as envolvem. "Bem ao contrário, foi justamente most rado que o fim dos conceitos jurídicos não é o de complicar, mas sim o de sirnplificar as coisas. Formular categorias, meio inicial e necessário do trabalho do jurista, é, com efeito, produzir uma simplificação voluntária aos caprichos espontâneos e diversos da realidade". Dêsse modo, querer, sistemàticamente, que o simples dado real imediato substitua a construção jurídica seria arruinar a praticabilidade do direito, complicando-o ao infinito 19,

preensão fisicaJista do Direito, segundo a qual "o mundo jurídico com­põe-se de fatos jurídicos" . "Para uso nosso, escreve o ilustre juriscon­sulto. fazemos modelos de fatos, inclusive de fatos jurídicos, para que o quadro jurídico descreva o mundo jurídico, engastando-o no mundo total". ('Tratado de Direito Pritvado, Rio, 1954, Parte Geral, t. I, pág. 5).

17. Sôbre as conseqüências dessa colocação do problema no tocante à impossibilidade de reduzir-se a sentença a um silogismo, v. infra, Ensaio X.

18. ASCARELLI - Problemi Giurúiíci, cit., t. I, pág. 70. Neste mesmo volume de ASCARELLI, v. o ensaio intitulado "Tipologia della rea1tà, disciplina normativa e titoli di credito", às págs. 185 e segs., sobretudo no tocante ao problema supra lembrado da ordenação tipológica da realidade social, que, como disse, condiciona a integração normativa.

19. Cf. R. SAVATIER - "Réalisme et Idéalisme en Droit Civil", em Le Droit Privé Français au Milieu du XXc. Siecle, estudos em homenagem

o DIREITO COMO EXPERIÉNCIA 207

Na reaJidade, "a sobrecarga teórica que os juristas impõem aos fatos", para empregarmos expressões de Savatier, são. condições de apreensão do fato como fa to suscetível de qualificação jurídica, inseparável que é a "estrutura do fato" de sua "estrutura cate­goria!",

Pode-se concluir, por conseguinte, que fato, para o Direito, no momento dogmático de sua qualificação normativa, não é algo "determinado segundo leis naturais", consoante a imagem fisicalista que prevalece, por exemplo, em tôda a obra jurídica de Pontes de Miranda; isto é, não é algo pôsto ab eJ:tra) como uma coisa que "entre", em dado momento, a fazer parte do mundo do direito, mas já é fato dotado de sentido) dêsse mesmo sentido que se obje­tivou, abstratamente, na estrutura do modêlo jurídico.

Há, porém, Ina colocação naturalística do fato um aspecto po­sitivo a ser assinalado: é a sua consideração retrospectiva, no pas­sado, como um dado que foi o. que foi, ou, em linguagem mais adequada, que só pode significar aquilo. que lhe corresponde corno acontecimento concluso) a ser objetivamente analisado em sua imu­tável configuração espácio-temporal: o fato é o já feito (o não pa­gamento de uma letra de câmbio, por exemplo, em tais ou quais épocas e circunstâncias) no quadro de sua inalterável causalidade motivacional. Nesse sentido, o jurista deve colocar-se perante o fato com a mesma intencionalidade reprodutiva que dirige o cultor das ciências naturais, ao querer "retratar o fato", no instante em que se concluiu.

Por mais, porém, que o jurista se empenhe em despersonali­zar-se, procurando captar e reproduzir o fato 8gb judice) tal como na realidade se deu, nem por isso o fato. deixa de ser uma "estrutura significativa", ou seja, um fato a ser valomdo. nos limites de .uma situação espácio-fernporal conclusa. A dificuldade consiste exata­mente nesse ponto: em dever-se captar o fato naquele particular instante em que se verificou a incidência normativa, geradora da imputabilidade, a despeito de tratar-se de "momento" de uma rea­lidade histórica cambiante. Note-se, aliás, que o fato implica e absorve em si todos os fatos anteriores que se ponham diretamente camo seu ingrediente motivacional, sem o que a sua configuração resultaria mutilada. Já os fatos outros, que se seguirem ao fato "sub judice») poderão, sem dúvida, influir na sua qualificação nor­mativa final, mas não podem interferir em sua retratação espácio­-temporal básica. Dir-se-ia que o fato é um Ufmgmento de tempo») cuja história se quer reproduzir, não para efeitos de interpretação

a GEORGES RIPERT, Paris, 1950, t. l, págs. 82 e segs. SAVATIER reporta-se, nesse passo, às obras de GÉNY - Science et Technique en Droit Privé Po­sitiJ, IH, ns. 189 e 207; DABIN -- La Techniqlle et l'Élaboration d1i Droit Posi tif, págs. 116 e segs., e ROUBIER - Théorie Générale du Droít, pág. 10.

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histórica, mas de compreen.são normativa, a qual, como veremos no parágrafo 10 dêste Ensaio, implica o seu sentido temporal.

No conhecimento de todo fato humatno mister é, com efeito, compreendê-lo (no sentido .que Dilthey e os mestres alemães dão ao têrmo verstehen) isto é apreendê-lo em suas objetivas conexões de sentido, numa totalidade concomitantemente intencional e moti­vacionaI20. O fato que interessa ao Direito é o evento real, na plenitude de seu significado, o que envolve tanto o exame de seus enlaces causais como o plano mais profundo das motivações.

Dada a tensão existente entre fato e valor, compreende-se bem a dificuldade em que se enredam os juristas que pretendem reduzir as sentenças a meros silogismos, pondo o fato como premissa menor: a determinação do fato é sempre o resultado de um processo maior ou menor de qualificação, que envolve certo grau de "tipicidade fática" para que se torne possível o ato de "subsunção nOTmativa".

Como, por outro lado, a tensão fático-axiológica se integra no modêlo normativo, compreende-se bem quão delicada é a tarefa de traçar limites entre "questões de fato" e "questões do direito", para atender às exigências da vida jurídica, a fim de saber-se, por exemplo, o que seja direito em tese, para cabimento ou não de recurso à instância superior, abstração feita do fato objeto da lide.

Enquatnto se situar tal problema com base numa distinção rí­gida entre "juízo de realidade" e "juízo de valor", - como se ao segundo e só a êle correspondesse a quaestio jUTÍ8, - não será possível chegar-se a um resultado satisfatório. A bem ver, a questâo de fato pode implicar tanto juízos de realidade como juízos de valor, mas se distingue por ficar circunscrita ao exame dos ele­mentos indispensáveis para determinar a tipicidade descritiva ou compreensiva do evento, no seu corte espácio-temporal, como rea­lidade configurada ao nível de suas causas e motivos, abstração feita do significado do modêlo segundo o qual se deve qualificar o mesmo evento: a qtwestio juris refere-se, porém, - e isto aumenta a complexidade do assunto, - tanto ao significado do modêlo ju­rídico como à sua correspondência ao f ato-tipo, no qual, com base na prova dos autos, se quis enquadrar o caso sub jndice. Significado do modêlo em si, e a sua adequação lógica ao fato-tipo invocado como mediação lógica entre o modêlo e o fato concreto, eis os dois pro­blemas que, a meu ver, compendiam uma "questão de direito" : a ",questão de fato" fica, ao contrário, ao nível da verificação dos elementos que in concreto permitem ou não considerar o fato con-

20. Essa é a crítica que se pode mover à pretensão de DURKHEIM quando quer tratar os fatos sociais como se fôssem "coisas", o que vale mais como princípio de isenção metodológica do que como equivalência da pesquisa do físico à do cultor das ciências sociais. (Neste sentido, v. P. VlRTON _ Os Dinami.'lmos Sociais, trad. cit .. pág. 36).

o DIHEITO COi\1O EXPERIÊNCIA 209

ereto adequado ao fato-tipo configurado no modêlo jurídico. Em suma, tanto é "questão de direito" saber quais as conseqüências significadas por uma norma de direito, admi tida para disciplinar uma dada situação de fato, a respeito de cujos dados existenciais não contendem as partes, - como o é, também, o problema da correspondência dessa qualificação tipológica ao modêlo jurídico que se pretende aplicar para dirimir o litígio: a "questão de fato", ao contrário, versa sôbre a existência ou não de elementos proba­tórios adequados e suficientes para a mencionada qualificação. Por onde se vê como a ti71icidade, também no momento da aplicação da norma, exerce aquela função mediadora) a que já me referi, entre o fato e o modêlo jurídico.

Questões de fato e questões de direito acham-se, pois, intima­mente correlacionadas, só sendo possível discriminá-las, distinguin­do-se entre fa.to e fato-típico) para além de uma distinção entre "juí7.Ü de realidade" e "juizo de valor", mesmo porque, como pondera Engisch, "tais ou quais juízos de valor podem se transformar em verificações de fato, notadamente quando êles invocam concep­ções que existem de fato" 21 .

IV

PROBLEMAS DE SEMÂNTICA JURIDICA

§ 8. Assente o caráter dialético da r ealidade jurídica através de sucessivas objetivações normativas) já está aberto o caminho para a compreensão de como se desenvolve a vida de cada modêlo j1LTídico, uma vez concluido o processo que o positivou.

Com o advento de um modêlo jurídico capaz de compor em unidade lógico-operacional o campo de tensão fático-valorativa cor­respondente ao seu repertório, seríamos tentados a imobilizar o modêlo atingido, concentrando sôbre êle a atenção exclusiva do jurista, mas, consoante uma feliz advertência de Vincenzo Gueli, cstamos pcrante "uma atividade que se desenvolve em um campo intensamente magnético" 22 de tal modo que a estrutura normativa não pode ser desvinculada do conjunto de elementos fáticos e axio­lógicos dos quais emerge.

Na realidade, após a emanação da norma, prosseguem as expe­riências ax iológicas, operando-se mutações maiores ou menores na tábua dos valôres, ou na sua incidência sôbre as relações sociais e,

2L Cf. ENGISCH, no estudo "Le fait et le droit en droit allemand" na coletânea Le F'ait et le Droit, Études de Logique Juridique, Bruxelas, 1961, pág. 35. Vide no mesmo volume as considerações de CI-!. PERELMAN sôbrc a impossibilidade de haver fatos puros (págs. 269 e segs.l.

22. v. GUELI - "Rcaltà e Iogica deI diritto", na Riv. Trim. di Diritto Pubblico, 1954, IV, pág. 375.

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210 MIGUEL REALE

concomitantemente, verificam-se alterações contínuas nas situações fáticas. Dessarte, é mister reconhecer que a norma jurídica per­manece sempre em estado tensionaZ: a sua realizabilidade implica uma contínua referência vetorial às conexões fático-axiológicas já vividas, bem como às novas conexões fát ico-axiológicas inerentes ao devir histórico.

Em suma, de conformidade com a teoria tridimensional dia­lético-integrante do direito) cada norma de direito :

1) assinala um momento conclusivo) mas em um dado campo, visto achar-se inserida em um processu,s sempre aberto à su­perveniência de novos fatos e novas valorações;

2) nãn tem significação em si mesma, como uma expressão ma­temática, ou seja, abstraída da experiência (1íormativismo abstrato), mas vale na funcionalidade dos momentos que con­dicionam a sua eficácia (normativismo concreto);

3) envolve uma prévia tomada de posição opcional, ou seja, uma decisão por parte do poder, quer se trate de um órgão consti­tucionalmente predisposto à emanação das regras ele direito, quer se trate do poder difuso no corpo social, como acontece na hipótese das normas jurídicas consuetudinárias;

4) não pode ser interpretada e aplicada como simples proposição lógica: sua estrutura lógico-formal é suporte de significações estimativas, e pressupõe permanente referibilidade ao plano fático;

5) é dotada de peculiar tendência a permanecer válida, segundo a lei de sobrevivência ou economia das formas e das estruturas, que é uma das características da experiência jurídica;

6) possui certa elasi'icidade, capaz de atender, em maior ou menor grau, às variações fático-axiológicas. Quando tal elasticidade torna-se incompatível com as mutações processadas no meio social, impõe-se a revogação ou a derrogação da norma por outra mais adequada à estrutura social.

Tais asserções equivalem a dizer que a norma jurídica pode sofrer profundas alterações semânticas, não obstante a inalterabi­lidade formal de seu enunciado, ou a permanência intocável de sua roupagem verbal : a Semântica jurídica, ou seja, o estudo das mutações do sentido temporal das regras de direito, é a demons­tração cabal de sua natureza integrante e dialética, constituindo uma pesquisa do mais alto alcance.

A apontada provisoriedade de tôda norma de direito não deve, todavia, ser entendida formalisticamente, para significar o fato óbvio de que não há normas jurídicas que não possam ou não devam, mais cedo ou mais tarde, ser substituídas por outras mais adequadas à evolução social, ou então, para indicar que as suas palavras podem

o DIREITO COMO EXPERliíNCIA 211

assumir um significado não previsto pelo legislador, o que seria uma "verdade lapalissiana", cnnsoante justa ponderação de Larenz.

O problema nuclear já foi entrevisto, no século passado, por juristas como Bincling, \Vach e Kohler, com os aplausos de quantos, na Il<~Jia ou na França, lançaram as bases da chamada "hermenêu­tica objetiva", segundo a qual o significado juridicamente determi-1íantc de uma regra jurídica não é o pensado por seu autor, mas "um significado objetivo imanente à lei, que deve ser descoberto imlependentemente daquele", como uma totalidade lógica objetiva 23.

Torna-se, porém, necessárin, ir além da colocação do problema em têrmos de pura "objetividade lógica", pelo reconhecimento de que só uma interpretação de tipo histór·ico-cultural (inconfundível com a histórico-filológica, adstrita à descoberta do sentido atribuído à norma pelo legislador) é capaz de compreender os modelos jurí­dicos na plenitude de sua significação objetiva, como experiência concreta (Cf. os dois Ensaios seguintes).

O que se deve antes entender é que todo modêlo jurídico, sem que sofra qualquer alteração de ordem formal, isto é, embora man­tendo extrlnsecameníe a sua roupagem verbal, pode sofrer alte­rações em sua estruh~ra e em seu repertório) em virtude de mu­danças operadas em qualquer das "dimensões" do direito, isto é:

1) pela superveniência de certas normas) que, sem revogar as já existentes, em dado campo do direito, têm como conseqüência a alteração do seu significado, visto como a interpretação é sempre de uma norma situada no sistema;

2) pela alteração verificada na tábua dos valôres da comunidade, a tal ponto que um mesmo artigo de lei, não obstante a imu­tabilidade de seus têrmos, adquire significados diversos no fluir do tempo.

3) pelo advento de imprevistas condições técnicas) com mudanças no plano fático, que restringem ou alargam o âmbito de inci­dência do modêlo normativo.

§ 9. Não é demais lembrar alguns exemplos de alteração substancial sofrida por certos dispositivos legais, não obstante a inalterabilidade de sua vigência formal.

Estão aí, em primeiro lugar, tôdas as mutações por que passou o velho Código Civil Francês em matéria de responsabilidade ex­tracontratual, .notadamente a partir das últimas décadas do século passado, ,quando os Tribunais, como nota Georges Ripert, foram

23. Cf. KARL LARENZ - Storia del Metodo nella, Scienza Giu,rüiica, cit.. págs. 40 c segs.; c CARLOS MAXIMILIANO - H ermenêu,tica e Aplicação do Direito, cit. , § § 50 e segs.

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212 MIGUEL REALE

cedendo aos reclamos da doutrina, aceitando as "construções téc­nicas" que esta oferecia aos textos imutáveis, em função de ele­mentos supervenientes e imprevistos no convívio social. As normas aparentemente eram as mesmas, mas, na realidade, passavam por alterações semânticas tão profundas que teriam provocado justi­ficadas revoltas nos mentores da Escola da Exegese.

No Brasil, para não citar senão dois casos dos mais expressivos, pense-se nos nobres recursos de exegese da jurisprudência pátria para salvaguardar os direitos hereditários do cônjuge supérstite que, segundo o sistema do Código Civil de 1916, estaria, no rigor do texto, sujeito à sua lei pessoal, consagradora do regime de se­paração de bens, acarretando situações de summa inj1tria num país aberto às correntes imigratórias, transferindo-se para parentes re­motos do de cujus um patrimônio constituído graças aos esforços e sacrifícíos comuns do casal: a admissão de uma sociedade de fato entre os cônjuges foi o modêlo dogmático ao qual a Justiça deu fôrça prescritiva, a fim de pôr a estrutura normativa em consonân­cia com as exigências éticas e econômicas imanentes à realização do direito. É na mesma linha .que se situam os arestos mais re­centes de nossos Tribunais salvaguardando os direitos da concubina que tenha vivido, more uxorio) ao lado do companheiro, amparan­do-o na edificação de um patrimônio representativo do trabalho comum.

Em ambas as hipóteses, além da mutação operada na com­preensão da lei para além de seus enlaces formais, nota-se a inserção de um elemento nôvo condicionando o juízo normativo, a categoria do trabalho como fator primordial na geração da riqueza. Não é preciso sublinhar que ambas as soluções jurisprudenciais ora lem­bradas não seriam compreensíveis se não tivesse havido uma alteração relevante na estT'Utura social da família, determinando novas aferições no plano das estimativas.

Pelas mesmas razões tornou-se desnecessária qualquer reforma no Código Civil para que o instituto do pátrio poder perdesse o seu significado originário, próprio de uma sociedade de cunho patriar­cal, organizada com base em círculos familiares autônomos, cen­trados nas decisões soberanas de seu chefe, para co:nverter-se em pátrio dever) isto é, a expressão de uma estrutura fundonal pola­rizada no sentido do bem primordial da prole, com o pacífico reconhecimento de que os valôres comunitários primam sôbre as formas de querer desvinculadas dos interêsses da c'Oletividade.

Em matéria contratual repete-se o mesmo fenômeno. Enquan­to se proclamou o primado da "autonomia da vontade" como índice de uma civilização de tipo individualista - nã'O houve possibilidade de encontrar nos textos de nossa lei civil guarida para as soluções que, agora, em outro clima espiritual, cada vez mais se acentuam. Sendo hoje bem diversos os esquemas orde:nadores de nossa vida

o DIREITO COMO EXPERIf:NCIA 213

econômica, já prevalecem soluções marcadas pelas eXlgencías da justiça concreta, como as que se ligam às teorias do dirigismo con­tratual, da cláusula rebus sic stantibus, da "correção monetária" ainda mesmo quando não estipulada, etc., etc.

Um aspecto relevante dessa influência das conjunturas axio­lógicas sôbre o sentido real do Direito resulta do fato de caber, em geral, à doutrina, quali.f'icar os preceitos jurídicos, para conferir­-lhes a natureza de normas cogentes ou dispositivas, dessa qualifi­cação derivando profundas conseqüências de ordem prática. O artigo 924 do Código Civil, por exemplo, segundo o qual, "quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcio­nalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimple­mento", foi, durante largo tempo, considerado jus dispositivnrn, reconhecendo-se a validade da cláusula contratual que previsse a co­brança da multa por inteiro, qualquer que fôsse o prazo decorrido. A seguir, quando o princípio da autonomia da vontade passou a ser considerado nos seus razoáveis limites. despido de suas prerroga­tivas quase soberanas, a jurisprudência de nossos Tribunais veio se consolidando no sentido de conferir fôrça cogente ao mencionado dispositivo legal, preservada a faculdade eminente do juiz, a des­peito de quaisquer estipulações de ordem privada.

§ 10. Não é diverso o fenômeno, quando analisado segundo a dimensão normativa do Direito. No concernente, com efeito, às variações semânticas dependentes da promulgação de novas nor­mas jurídicas, os exemplos também se multiplicam, revelando, di­gamos assim, como os modelos jurídicos registram as mutações de significado correspondentes à inserção de novos elementos no sistema. Trata-se, aliás, de fato pôsto em realce, há muito tempo, pela sutil percepção dos jurisconsultos, como é o caso de nosso eminente Teixeira de Freitas que, após ponderar que "o sistema inteiro de nm código depende mttitas vêzes de uma só disposição", focalizava o problema da revogação implícita das leis "por se tor­narem incompatíveis com as bases da Carta Constitucional", sa­lientando existirem outras, "inutilizadas ou modificadas, só por efeito das leis novas" 2.i.

Certas leis fundamentais, como, por exemplo, a Legislação trabalhista ou a Reforma agrária, por representarem modelos de significação geral, quando não revogaram os preceitos do Código

24. TErxElIlA nE FRF;ITAS - COllBolidação das Leis Civis, 3.' ed .. Rio. 1876. págs. XXXIII e LIX. A intuição genial do maior de nossos civilistas encontra ressonância atual nas palavras de PATRICE LEVEL: "a transfor­mação de um único elemento da ordem jurídica faz dela, contudo, uma ordem nova ( .... ) A substituição de uma regea jurídica por outra atinl!e a oedem jurídica no seu conjunto" (Essai 81~r les Conflits de Loi dWIB le Temps, Paris, 1959. págs. 5 e sel!S. Apu.d J. BAPTISTA MACHADO, no prefÁdo à IntrOdução ao Pensamento Jurf4ico, de KARL ENGISCH, cit. , pág. XXVIII, n.' 41).

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214 MIGUEL REALE

. Civil, em matéria de locação de serviços, de parceria rural ou de locação de prédios rústicos, infundiram-lhes sentido diverso e atual, impondo a reelaboração dos modelos dogmáticos, assim di­tando novos caminhos à Jurisprudência.

A interação dos significados não se verifica apenas no interior de um ordenamento, mas, também no plano internacional. "Muito curioso e instrutivo é, sob êste aspecto, escreve J. B. Machado, o fato de o efeito limitador da ordem pública duma convenção inter­nacional não incidir apenas sôbre as relações entre os ordenamentos jurídicos dos Estados partes na convenção, mas afetar o próprio sentido e alcance geral da exceção de ordem pública internacional de cada Estado contratante" 25. .

Outro fenômeno semântico de relêvo é o que Tullio Ascarelli denomina "qualificação jurídica", mas que constitui verdadeira "migração normativa"} isto é, o deslocamento de uma norma ou de um instituto de um para outro setor jurídico. Tal fenômeno, escreve Caiani, verifica-se quando a objetiva modificação estrutu­raI das relações sociais subjacentes põe o intérprete na necessidade de deslocar a norma ou o instituto, de determinada categoria, à qual pertenciam, para outra diversa que se revele mais adequada à sua aplicação em um momento sucessivo. Dêsse modo, uma nor­ma, posta originàriamente no âmbito do direito civil, pode em um segundo momento, ser melhor compreendida segundo um perfil comercialístico; assim como pode também suceder a migração de uma norma do campo do Direito substancial para o do direito processual, ou vice-versa 26. É nesse trabalho que, segundo Asca­reIli, o jurista se revela mais sensível às orientações gerais de seu ambiente, tornando-se seu intérprete e partícipe, de tal modo que no resultado de sua qualificação confluem as diretri7.és gerais de sua época, e, por conseguinte, também as suas inclinações e va­lorações 27.

Ainda ao nível das expressões normativas, cabe frisar que, à medida que se acentua a defasagem entre o modêlo jurídico e as

25. Loc. cit., J. BAPTISTA MACHADO reporta-se a V. VrsCHER - Die Rechts­vergleichenden Tatbestiinde in IPR, Basiléia, 1953. págs. 121 e segs. ; e EOOARDQ VrTTA, in Rév. Critique de D.I.P., t. LIV (965), pág. 274.

26. LUIGI CAIANI - I Giudizi di VaZare nell'lnterpl'eta.zione Giu.ridica, Pádua. 1954, pág. 234, nota 29. Observe-se que o fenômeno da migração n01-­mativa se dá no processo dos significados. como assunto de Semântica, a qual, consoante a clássica enumeração de M. BI!EAL, investiga como é que palavras, de início providas de certo sentido, estendem êsse sentido ou o contraem, transferem-no de um grupo de noções para outro. elevam ou diminuem o seu valor. (Cf. Essai de Sémantiqu.e, Science eles Significations, Paris, 1904, pág. 99),

27. Cf. ASCAREI,LI "Funzioni economiche e istituti giurirlici nella tecnica dell'ínterpretazione", in Saggi Giu.l'idid. Milão. 1949. págs. 73 e segs. cr , ainda, de ASCARELL! - problemi Giu.l'idici, cit. , t. I.

o DIREITO COlvlO EXPERIENCIA 215

mutações operadas na sociedade, dá-se um fenômeno que . a Dog­mática conceitual pretende ignorar, o do progressivo eclipse das normas jurídicas inadequadas, .que vão se evanescendo, como luzes que se apagam, caindo em desuso e permanecendo esquecidas, até que o legislador delas se lembre para a providência revocatória tardia ou desnecessária. Tal fato ocorre graças a um delicado processo teorético de envolvimento ou de "encapsulamento" da nor­ma imprestável, consistente sobretudo em engendrar novas quali­ficações jurídicas e no enquadramento do preceito na totalidade do ordenamento.

Por outro lado, enquanto há normas que perdem fôrça coerci­tiva e se evanescem, outras há que, i.nstituídas para disciplinar reduzido campo de relações sociais, adquirem significado impre­visto, convertidas em instrumentos adequados à disciplina de fatos nem sequer pressentidos pelo legislador, o que demonstra a aplica­bilidade da lei de Wundt, sôbre a "heterogeneidade dos fins", nos do­mínios da Semântica jurídica.

§ 11. Pois bem, as mutações de significado que acabamos de exemplificar, em função das dimensões axiológica e normativa, ocor­rem também no tocante à dimensão fática. Não é mister lembrar como as transformações operadas no mundo da técnica, sobretudo com relação ao fato econômico, acarretam mudanças substanciais no sentido das regras jurídicas vigentes, cuja conseqüência prin­cipal é a reconstrução dogmática do Upressttposto-fático" (Tatbes­tand, fattispecie) para que a norma continue ou possa ter ade­quada aplicação. Assim, pode o intérprete ser levado a invocar a "norma A." (destinada a disciplinar o ((fato-tipo X") a fim de dar solução normativa a um "[ato-tipo Y"} não em virtude de "integração" analógica, - que constitui hipótese diversa, - mas sim porque X passou a significar Y, ou também Y} como conse­qüência de alterações de ordem fática.

Essa reconstrução do f ato-tipo importa, consoante pondera Ascal'elli, na intervenção do intérprete, com as suas vaIorações, com os seus juízos de valor, com os seus "princípios", que, como vetores, o guiam na sua tarefa compreensiva, permitindo-lhe uma real função criadora, mantendo-se, co.ntudo, fiel a um critério de co.ntinuicJade 28.

Para não dar senão dois exemplos, é indiscutível que as alte­rações verificadas na técnica edilicia, com as atuais edificações de estrutura metálica ou de cimento armado, vieram dar nôvo sentido às normas do Código Civil destinadas a definir as respon­sabilidades do construtor nos co.ntratos de empreitada ou os limi­tes do uso normal do prédio pelos locatários; assim como os novos sistemas de transportes de passageiros obrigam o intérprete a

28. Problemi GiUl'idici, cit., pág. 195.

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216 MIGUEL REALE

adaptar as antigas normas às exigências emergentes da responsa­bilidade objetiva 29.

§ 12. Os exemplos lembrados neste Ensaio estão, pois, a de­monstrar que a revogação de uma lei tão-somente por outra lei é uma verdade no plano formal da vigência, mas não no domínio con­creto da eficácia das regras de direito, pois o que importa não são os sigJnos do modêl0 jurídico, mas a sua real significação.

Em suma, mudanças de ordem axiológica, fática ou normativa podem implicar alterações semânticas que dão nascimento, em última análise, a uma norma nova quanto a seu conteúdo, o que se torna ainda mais evidente em se tratando de standards jurídicos que permitem a configuração da hipótese normativa à luz da na­tureza e das circunstâncias do caso, ou segundo critérios que pos­sibilit am ampla margem de estimativa.

Poderíamos dizer, em suma, que os modelos jurídicos, inte­grativos de fatos e valôres, uma vez postos em vigor, atuam sôbre o meio social, suscitando novos processos axiológicos ou assumindo dimensões axiológicas diversas, pela intercorrência de fatos impre­visíveis. No decurso do tempo, o modêlo vive em um processo dialético, que possui eficácia nos limites da elasticidade de sua vigência: quando o índice máximo de adaptação é atingido, põe-se, com urgência, o problema de sua revogação formal, ou seja, da estruturação de outros modelos. Nem faltam exemplos de soluções obtidas graças a modelos jurídicos elaborados pela doutrina e pela jurisprudência, antecipando-se criadoramente à ação insuficiente ou tardia dos legisladores, contornando-se os empecilhos das nor­mas legais esclerosadas através do instrumento tão sutil quão prudente da fie tio juris J em cujo emprêgo se distinguiram os juris­consultos romanos.

Isto pôs to, poder-se-ia representar o processo evolutivo da significação de um modêlo jurídico (N), em função de fatos (F) e de valôres (V) de conformidade com a seguinte estrutura:

ESTRUTURA DAS· MUTAÇOES SEMANTICAS DE UM MODP:LO JURlDICO

Vl~Nl/V2~N/V3~N3 /V~Nn F'/~f2/ ~F3/ -----.\p/ 29. Inúmeras são as causas que os doutrinadores apontam para justi­

ficar a expansão revolucionária da responsabilidade extra contratual, diz ALVINO LIMA, que aponta as de natureza material, como as que decorrem dos novos inventos mecânicos, fontes inexauríveis de acidentes, cuja causa ou culpa não se pode provar. (Cf. ALVINO LIMA - C'ulpa e Risco, São Paulo, 1960, págs, 15 e segs.). t

I

o DIREITO COlIJO EXPERlitNclA 217

A norma juridica, por conseguinte, vive inserida na concreçã'O do processo histórico, representando sempre um instrumento, quan­do não racionnl, pelo menos ra.zoável (a rigor, o razoável é o racional na concretitude da experiência humana, com tôdas as suas deficiências e limitações) atuando, por isso mesmo, como uma ponte fle xível e elástica destinada à perene composição de fatos segundo valôres e de valôres entre si. Há, pois, no ato de se reconhecer ou de se emanar uma regra de direito, sempre o delibe­rado propósito de racionalização da conduta, isto é, de subordina­ção dos comportamentos futuros a padrões de justiça, por mais que nela sejam discerníveis os traços dos fatôres a-racionais que determinaram a sua formulação. A teleologia da norma de direito é, clêsse modo, imanente à sua natureza axiológica, não sendo senão o desdobramento natural e necessário de um ou mais va­lôres reconhecidos racionalmente como medida e motivo de con­duta. Não é, aliás, por mera coincidência, mas antes por refletir o fundo de um problema primordial, que "ratio" quer dizer, con­comitantemente, razão, medida (ração) e justiça, o que demonstra a precariedade de todo teleologismo jurídico abstrato, desvincula­do do processo histórico-cultural da experiência do direito.

Pois bem, nessa renovada adaptação evolutiva da norma jurí­dica aos fatos e valôres, enquanto ela se mantém em vigor, deve ser respeitado o coeficiente de sua elasticidade natural. Ã norma jurídica corresponde sempre certo horizonte intransponível de vi­gência e eficácia, dentro do qual é mister que se mantenha o intérprete, sob pena de se comprometer o valor de certeza, que é essencial ao direito.

Dir-se-á que a "certeza do direito" só é possível pela subor­dinação estrita do juiz à lei. Já se chegou mesmo a dizer que há quebra de certeza, ,quer se trate de um aplicador do Direito con­vertido em instrumento de um valor absoluto (classe, raça, etc.); quer pretenda agir em nome de supostas verdades cientificas, livre e rigorosamente atingidas; ou procure o juiz atender, com pru­dência, aos dados que a ciência revela sôbre os elementos fáticos , bem como às exigências aicas de sua consciência, no ato de inter­pretar as normas em vigor. Não há como não reconhecer o absurdo dessa equiparação, fruto de uma compreensão estática do Direito. A certeza, que êste reclama, não é a dos movimentos calculados de um robot, mas a que resulta do sentido objetivo dos fatos, segundo os, valôres consagrados nos modelos jurídicos. Os valôres, por conseguinte, dos quais o juiz ou o administrador devem ser intérpretes, não süo os de sua convicção singular ou os de sua predileção individual, mas sim os valôres vigentes na comunidade. Maio r segurança seria absurdo pretender, na escala da experiência humana, ainda que o coeficiente pessoal do juiz interfira na com­posiçiío do modêlo de direito aplicável, mesmo porque, no Estado de Direito, - e é essa uma garantia ,que nos vem da Revolução

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218 MIGUEL REALE

Francesa, - a uduplicidade da jurisdição" tem o efeito de aproxi­mar a compreensão dos modelos jurídicos daquele sentido objetivo e razoável que, ultrapassando a pessoa do legislador e a do intér­prete, é comum aos que emanam as regras e àqueles a que elas se destinam.

v O TEMPO NO DIREITO

§ 13. À vista do exposto nas paglllas anteriores, poderá pa­recer que o tempo represente a quarta dimensão do direito, mas essa afirmação revela-se improcedente ao pensar-se que a tempo­ralidade é inerente a qualquer dos três fatôres ou dimensões que estruturam o fenômeno jurídico.

Quando, porém, se fala na "estrutura tridimensional do di­rei to", neste conceito já está implícita a nota essencial da tempo­ralidade, pois é inconcebível uma estrutura social estática, desvin­culada do processo histórico: o direito, como a realidade social tôda da qual participa, é, fundame.ntalmente, uma estrutura t rid i­mensional e histórica, distinguindo-se das demais por possuir uma nota específica, que é a biZateralidade atr ibut'iva inerente a tôdas as formas de ordenação jurídica da conduta humana. Essas três características essenciais de tridimensional'idade, temporalidade e bilateralidade-atribHtiva, penso estarem sintetizadas quando concei­tuo o Direito como realidade histórica-ctüturaZ tridimensional de nattlreza bilateral atributiva 3o,

À vista dessas três notas essenciais à juridicidade, poder-se-ia ousadamente pensar numa "metatridimensi'Onalidade" mas esta não representaria senão uma correlação abstrata de perspectivas. A temporalidade e a forma bilateral-atributiva das ordenações jurí­dicas dão-se na concretitude da estrutura tridimensional da expe­riência jurídica.

O que importa é, por conseguinte, reconhecer que o tempo entranha a vida tôda do Direito, visto não poder ês te ser concebido como uma estrutura estática : a sua vida é a projeção de suas signi­ficações no tempo. Por outras palavras, há uma ligação tão íntima entre a existência do direito, como estrutura significante, e a circunstancialidade histórica daquilo que é significado, que não seria exagêro concluir que, no âmbito da Ciência Jurídica, o tempo se reduz a um problema de significação.

Já vimos que, a começar das mais elementares questões de fato, o jurista só pode falar em fato enquanto algo seja objeto de

30, CC minha Filosofia do Direito, 4.' ed., pág, 604.

o DIREITO COMO EXPERl~NCJA 219

qualificação jurídica, isto é, enquanto algo já tenha tido, tenha ou possa ter significação no tempo.

Por sua vez, todos os valôres, por sua própria natureza, só são pensáveis em relação à história, pois seriam meras "aparências de valor" se jamais se convertessem em momento da experiência humana; mas deixariam igualmente de .operar como valôres, se se exaurissem definitivamente no plano dos fatos , esvaziados de sua historicidade, o que equivale a dizer, de suas alternativas pro­blemáticas. Não haveria justiça, por exemplo, se não houvesse homens justos e sentenças justas, mas a totalidade dos atos justos não equivale a tôda a just iça, nem haveria mais que falar em justiça se não houvesse mais possibilidade de realizá-la em novas sentenças; donde se eonc1ui que os valôres referem-se necessària­me.nte à experiência histórica, mas sempre a transcendem 31 .

Ora, se o fato e o valor do direito só se concebem em função do tempo, o mesmo ocorre com o conceito de norma jurídica, cuja função normal é disciplinar atos futuros, dada a correlação essen­cial existente entre vigência e eficácia, em que, em última análise, consiste a positividade do direito 32.

Na realidade, os três aspectos ora examinados reduzem-se a uma questão única: à da temporalidade do direito, quer se focalize um modêlo jurídico particular, quer se estude a totalidade do ordenamento, pois, as relações sociais só são jurídicas enquanto processo hi,~t6rico ordenado semwdo valôres realizáveis em têrmos de inteTsubjetividade ou, de bilateralidade at1·ibntiva. N o mundo do direito, de certo ponto de vista, tudo é história: o êrto consiste em absolutizar êsse ponto de vista, confundindo-se o direito his­tórico com todo o direito, esquecendo-se, assim, que o fato his­tórico não teria s ignificado se não houvesse sempre história por fazer.

De resto, consoante já foi anteriormente lembrado, quando se fala em di'rnensão, nos domínios das ciências sociais, aquêle têrmo significa um "fator" ou um {(complexo de fatôres", isto é, indica os elementos que compõem uma estrutura e permitem o exercício de uma função, ou seja, uma atividade ou tarefa temporalmente programada.

Nesse sentido, as palavras fato, valo'/' e norma sintetizam um conjunto de fatôres , cujo significado varia no tempo e só no tempo podem operar, o que demonstra que a temporalidade não é uma

31. Sôbre minha compreensão histórico-cultural dos valôres, v, Filosofia do Dimito, cit., págs. 183 e segs.

32, Dispenso-me de focalizar aqui êsse problema fundamental, pedindo vênia para reportar-me ao que escrevi em Filosofw. do Direito, 4, ' edição cit., págs, 515 e segs" sôbre a positividade do direito como correlação entre v igência e eficácia.

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dimensão a mais do direito, mas condição de tôda elas, de tal modo que nada se pode dizer sôbre o direito que não dependa do tempo ou a êle não se refira.

§ 14. Se examinarmos o que se passa na vida do direito, verificaremos que ela se desenvolve em função de dois conceitos distintos de tempo. Um é o tempo cronológico, mensurável se­gundo escalas convencionais, como quando os artigos 368 e 369 do Código Civil declaram que "ninguém pode adotar, sendo casado, senão decorridos cinco anos após o casamento", e que "o adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho que o adotado": em tais casos, o tempo equivale a períodos certos segundo dados objetivos suscetíveis de verificação.

Já é outro o significado do tempo quando se pensa nos men­cionados artigos 368 e 369, indagando de sua vigêmcia e eficácia, para saber, por exemplo, como os mesmos se constituíram e se tornaram válidos em dado momento; como é que aquêles preceitos, estabelecidos em 1916, continuaram a vigir ininterruptamente até hoje, sendo cumpridos ou descumpridos; e, outrossim, como, no futuro, poderão perder a atual vigência, sem prejuízo da validade das adoções licitamente constituídas nêsse meio tempo, e qual a sorte das que, formalmente ilícitas, adquiriram licitude por de­curso de tempD: trata-se, evidentemente, de um outro conceito de tempo, do tempo concreta da experiência j1lrídica, em função da vigência dos preceitos e de sua eficácia no plano dos comporta­mentos humanos.

O "tempo da experiência jurídica" não pode ser comparado ao tempo igual, ou homogêneo, próprio dos fatos naturais, isto é, ao tempo que, em última análise, equivale a um outro modo de ser do espaço, como série de momentos ou intervalos correspondp.ntes a uma duração contida entre um têrmo inicial e outro final.

O tempo próprio do Direito é fundamentalmente existencial, tomado êste· têrmo para indicar uma forma de duração inconce­bível sem referência ao plano das C'onsciências e dos comporta­mentos, isto é, com abstração dos atos através dos quais a vigência normativa se converte em efetivos momentos de vida 33. Talvez

33. Os estudos sôbre o tempo no Direito, desenvolvidos sob a inspiração da Filosofia existencial de HElDEGGER, têm revelado aspectos inéditos da questão, mas pecam, em geral, pela vagueidade dos conceiios, incompatível como uma experiência, como a jurídica, marcada pela exigéncia de deter­minação (Cf. GERHARDT HUSSERL - Recht und Welt, Franldurt, 1955), Sôbre a compreensão do tema sob o prisma "egológico-exisl,encial" vide o sugestivo livro de LORENZO CARNELLl - - Tern.po y Derecho, Buenos-Aires, 1952, que chega a conclusões, a meu ver, inaceitáveis pela fratura que opera na expe­riência jurídica, visto considerar q ue U o Direito é presente, o fato é passado. O presente, afirma êle, é Tempo existencial. Não há existência, não há tempo senão no presente. Se o Direito é presente, como asseveramos, só pode sê-Ia na existência que o está constituindo" . (pág. 188).

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o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 221

se possa conceber o tempo do Direito como a trajet6ria da vigência e da eficácia do direito, ou, por outras palavras, como um concreto processo de vigências significativas) pois, tôda vez que um modêlo jurídico entra em vigor, tal fato representa uma mudança no sen­tido do ordenamento, uma diversa maneira de interpretar os atos futuros; e, tôda vez que um comportamento particular cOlTesponde à significação objetivada no modêlo jurídico, êle adquire um sen­tido diverso no tempo.

O problema põe-se, desde logo, segundo duas perspectivas dis­tintas, que se correlacionam na concreção do presente: uma é a da significação do direito que foi válido no passado e pode continuar valendo agora, não obstante a alteração operada no modêlo jurídico aplicável ao "fato-tipo" correspondente (sobrevivência das formas temporais); a outra é a da significação a ser dada aos compor­tamentos no fuhu'o (antecipação temporal das significações).

Não é de hoje que as dificuldades inerentes a êsse problema têm sido salientadas pelos juristas, muito embora o assunto esteja, atualmente, merecendo mais cuidadoso estudo, sob múltiplas ins­pirações de ordem filosófica e sociológica 34,

Segundo Jean Ray - dos primeiros a focalizar a natureza e o papel do tempo no Direito, sob o ângulo filosófico, - o que interessa ao jurista não é o que possa haver nêle de homogêneo e de indiferençado, mas sim as diferenciações que êle comporta, a começar por aquela que, a seu ver, constitui a natureza mesma do tempo no pensamento jurídico: a diferença irredutível de quaii­dade, e até mesmo a oposição, entre o passado e o futuro, entre a regra que já estêve e a que está agora em vigor, significando, não uma separação absoluta, mas a descontinuidade do tempo jurídico. Tôda promulgação de lei implica certa ruptura com o passado, o

34. Para uma bibliografia atualizada sôbre a matéria, no âmbito da Ciência Jurídica e da Filosofia do Direito, v. BAGOLINI - Mito, Potere e Dialogo, cit., sobre tudo págs. 28 e segs. e 97 e 5egs. Além das obras de GILBERTO Fllr,Y11E (Ordem e Progresso, Rio, 1959, l, págs. XXIII e sego e 62 c seg., e Vida Forma. e Lar, Rio, 19(2) e das minhas sôbre a temporalídade concreta própria das ciências humanas (v. Filosofia do Direito, 4.' cd., cit., págs. 524 e segs., e Plu.ralismo e Liberdade, cit., págs. 273 e segs.) lembrados por J3AGOI,INI, cabe recordar os estudos que sôbre o "tempo social" vêm sendo desenvolvidos no Brasil por PONTES DE MIRANDA (Sociologia Geral, Rio, 1929), MARIO LINS, DJAClR MEN~;ZES (O Princípio de Simetria e os Problemas Econômicos, Rio, 1939) e PINTO FERREIRA (Sociologia, Rio, 1955, vol. I, págs. 123 e segs.), com contribuições que, sob alguns aspectos, se me afi­guram pioneiras. Enquanto na posição de GILBERTO FREYRE prevalece a compreensão existencial do tempo (existencial, U:tto sensu, conforme se dc­precnde de sua introdução à citada obra de JULlAN MARIAS - A EstJ'lttuTa Soc ia.l) os quatro autores sUi[)'ra citados situam o problema em têrrnos de estrutura e de dinâmica sociais à maneira de SOROKIN e de MERTON. Sôbre o conceito de "tempo social" na Sociologia atual, v. PAULO DOURADO DE GUSMÃO - Manu.al de Sociologia., Rio, 1967, págs. 154 e segs.

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222 M IG UE L llEALE

comêço de um tempo nôvo. Daí as dificuldades inerentes ao pro­blema da retroatividade das leis 35.

O direito é essencialmente uma determinação do futuro pelo passado; há aí quase uma tautologia, pondera Ray, mas dêsse fato resulta encontrar-nos no intervalo que separa o completamente aca­bado do ainda inexistente. Ora, como o verbo ser não é apto a expressar o movimento e a atividade, e como nenhuma norma jurídica pode ser plenamente compreendida sem ser em função do tempo, é mister reconhecer, ao lado da Lógica do ser, a Lógica do devir, a única que nos permitirá perceber o papel essencial do tempo em tôda a estrutura lógica do Direito, e admiti-lo como "um elemento formal do pensamento".

Fazendo alusão à importância lógica da teoria dos conjuntos e das classes, procura Ray atingir um conceito concreto de tempo, no mundo do Direito, em função do conjunto de suas condições e conseqüências: o tempo, a seu ver, não é apenas o quadro dos eventos, dos momentos, mas a base de uma articulação do pensa­mento «dans le successit», redundélindo na determinação de certos períodos segundo tais ou quais caracteres jurídicos, períodos êsses que são juridicamente qualificados ou servem de base a qualifi-

- 36 caçoes .

Há duas idéias fundamentais nessa exposição : a da desconti­múdade do tempo jurídico, e a da sua relação com o problema da qualificação dos períodos. O que escapou a Ray foi observar mais claramente que tais aspectos só são possíveis por ser o tempo, no Direito, uma trajetória de valorações ou de ((concretas durações de significados", em função do conjunto variável de fa­tôres que determinam o constituir-se das diversas estruturas nor­mativas, bem como a sua vigência e eficácia.

Não se pode, a rigor, falar em sucessão de significados, pois o tempo jurídico acusa avanços e recuos, contrastes e contradições entre fases contíguas e remotas, revivescências e eclipses de quali­ficações jurídicas, interações e interpenetrações de formas tempo­rais. Como diz Julian Marias, o tempo histórico não é um continuo homogêneu; possui qualidade; mais ainda, consiste em sua qualifi-

35. Cf. JEAN RAY - Essai sur lei Structnre Logique du Code C ivil F'mn­çais, Paris, 1926, ca po IV, secção l, "Du rôle de la notion du temps", págs. 146 e segs. T rata-se de obr a quase esquecida, mas, que, segundo m e parece. mereceria maior atenção por parte dos cultores de Filosofia do Direito e de Lógica Jurídica, inclusive por ter o seu a utor estudado as proposições jurídicas como " proposições modais", eom base nos ensinamentos de R ANDE­LET (Theorie Logique des Propositions Modales, P aris, 1861) e de L. BRUNSCll­VIGG - La Modalité d1L Jtlgement, P aris, 1897, correlacionando-a s com os problemas da ação e do t empo. (Op. cit., págs. 52 e passinn). Cf., sôbre o assunto, à luz da nova Lógica, ARTHUll N. PRIOR - Time m ui Modali ty, Ox[ord, 1957.

36. Op. cit., págs. 68 e segs.; 101-103; 156 e segs. e Apêndice J.

() DIREITO Co.MO EXPERI ENCIA 223

cação, e esta, e não outra coisa, é a condição histórica. Porém, tampouco esta qualificação é contínua, isto é, simplesmente gradual, mas apresenta descontinuidades ou articulações"" .

Pode-se dizer do tempo jurídico o que Sorokin e Merton afir­mam do tempo social: "expressa a mudança ou movimento dos fe­nômenos em térmos de outros fenômenos sociais tomados como pon­tos de referência" ".

Já podemos, a esta altura, embora a título provlsono e para fi ns metodológicos de ordenação das pesquisas, procurar superar o plano das generalidades, para dizer que o tempo jurídico apresenta algumas notas características, em virtude de

a) ser um tempo qualitativo, relativo à duração de certas sig­nificações sociais vigentes em períodos históricos variáveis;

b) de sua correlação ou art'icult!ção com os fatôres todos que operam na dinâmica social, sendo, pois, um modo essen­cial de ser da estrutura do Direi to;

c) de sua descontinuidade, pois nem sempre existe uma in­teira ligação ou dependência entre os modelos jurídicos que se substituem na experiência jurídica;

d) da interpenetração das formas temporais, em níveis histó­ricos diversos, no duplo sentido de projeção das significa­ções passadas sôbre o futuro e da sobrevivência das formas temporais passadas. Na realidade, nada se perde integral­mente no tempo jurídico: o que se conclui como expressão de uma significação vigente no passado, perdura no presen­te, não como conseqüência das ressalvas do "direito adqui­rido" feitas pelo arbítrio do legislador, mas por ser a quela sobrevivência da "natureza do tempo jurídico";

e) da já apontada antecipação de significações futuras, que explica a subordinação do comportamento presente a uma predeterminação passada, não em têrmos de vinculação de urna vontade individ1w l ao querido na lei ou no con­tra to (imperativismo voluntarista ou decisionista) mas

37 . JULlAN MARIAS - A Eslm/tlra Social, ciL, pág. 48. 38 . Cf. PINTO F ERREIRA - Sociologia, ci t. I, pág. 125. Quanto ao conceito

de "espaço-tempo" na corrente sociológica que se prende a PONTES DE MIRANDA, V., naquela obra, todo o capítulo XVI destinado a "espaciologia social" . O "espaço­tempo social e as relações sociais" , escreve P INTO F ERREIRA , à guisa de conclusão, "formam assim uma unidade dialética, onde se travam relações mútuas e funcionais de dependência . Os fatos sociais se desenvolvem de confor midade com a estru tura espácio·temporal da sociedade e os campos de socialificação possuem um ritmo próprio, a que se submete a totalidade dos processos sociais".

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224 MIGUEL llEALE

sim como qualificação de um comportamento à luz de uma antecipada qualificação axiológica (imperativismo axiológico) .

Nem é demais ponderar que, com isto, não caímos no relati­vismo jurídico, pois, por mais que variem as formas temporais do Direito, elas, na sua pluralidade diversificada, expressam, como já acentuei em diversas passagens dêste livro, uma constante, qne é o valor da pessoa como fonte que condiciona, transcendental­mente, todo o processo histórico 39.

Luigi Bagolini, 'que tem trazido preciosa contribuição à elu­cidação do problema elo tempo no Direito, empresta grande impor­tância à "interpenetração das formas temporais", por parecer-lhe que só graças a ela se podem interpretar, de maneira eficaz, situa­ções em que o passado prevalece sôbre o presente, ou dar a razão pela qual o querido no passado (no ato, por exemplo, de emanar-se uma norma) vincula uma vontade presente, ou ainda para estabe­lecer-se uma relação mais concreta entre ser e dever ser. Segundo o citado mestre de Bolonha, a,quela interpenetração é possível por­que referida à consciência concreta do tempo, isto é, ao Utem1Jo consciencial", que abrange o conhecimento do passado, a consciên­cia sensível e imediata do presente, a vontade do futuro 40.

A meu ver, como a consciência intencional constitui a fonte outorgadora de significado a tudo o que entra no círculo de nossa existência, podemos considerar o "tempo consciencial", como sendo o foco primordial do tempo cultural e histórico, do qual o tempo jurídico é uma das formas, mas, no plano empírico-positivo da experiência jurídica, o tempo jurídico consiste, mais pràpriamente, na trajetória das qualificações e dos significados que a consciência humana vai realizando, dando lugar a "durações ou vigências sig­nificativas" que se sucedem ou se alternam, em função das múlti­plas e variáveis condições e circunstâncias próprias de nosso modo de ser na sociedade e no mundo.

Não será demais observar que, quando emprego o termo "du­ração", faço-o para salientar que o "tempo jurídico" não é neces­sàriamente sucessivo ou linear, podendo comportar tanto a inter­penetração como a simultaneidade das formas e fases. Nesse sentido, é possível que a Cibernética venha abrir novas perspectivas à compreensão do tempo social e histórico, . pois. consoante nos declara Marshall McLuhan, a sincronização instantânea de nume­rosas operações. própria da automação, tornou sem sentido o mo­dêlo mecânico das operações em seqüência linear 41. Como se vê,

39. Sôbre o que denomino "historicismo axiológico" , v. meu livro Teoria Tridimensional do Direito, cit. capítulo IV.

40. Cf. BAGOLINI - Visioni della Gitl,Stizia e Senso Co'mune, cit., págs, 91-124,

41, MARSHALL McLuHAN - Undestanting Media, cit., págs. 301 e scgs.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 225

o tempo vai perdendo a sua "continuidade espacial", atentando-se mais para o sincrônico, o simultâneo ou o interrelacionado.

Assim como McLuhan escreve que os objetos não se situam no espaço, mas geram o seu próprio espaço 42, poder-se-ia dizer que cada experiência juridica gera o seu próprio tempo, como "duração sig.nifica tiva".

A vida elos modelos jurídicos obedece a essa temporalidade concreta, através do contínuo renovar-se ou refazer-se das soluções normativas, isto é, das cstruturas periódicas de significados vi­gentes na comunidade, bem como das variações semânticas, que ocorrem no âmbito e duração particular ele cada vigência signifi­cativa.

Daí as descontinuidades e rupturas elo tempo jurídico; as suas flutuaçõcs ciclicas, as suas interpenetrações e recessos; a desigual­elade de seu ritmo, não apenas ele época para época, mas, num mesmo ciclo ele vigência, de região para região dentro de um mes­mo País, com trágicos desequilíbrios na compreensão e aplicação das mesmas regras de direito, em virtude das defasagens culturais ; o seu desdobrar-se em múltiplos níveis e frentes móveis, segundo dife­renciações nos extratos e estruturas socia is ; elaí, em suma, as har­monias e os conflitos que marcam o "tempo do direito", como expressão concreta da existência e da coexistência humanas 43.

42, Loc, cito 43, O assunto, como se vê, além dos aspectos epistemológicos enun­

ciados neste Ensaio, alarga-se para o campo da Culturolagia. Jurídica, como um de seus assuntos fundamentais.

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Ensaio IX

COLOCAÇÃO DO PROBLEMA FILOSÓFICO DA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO C·)

SUMÁRIO: I - Do divórcio entre o filósofo do Direito e o jurista. II - A perspectiva do filósofo no processo hermenêutico.

I

DO DIVóRCIO ENTRE O FILóSOFO DO DIREITO E O JURISTA

§ 1. Seja-me lícito, preliminarmente, pôr em relêvo a aguda sensibilidade histórica e jurídica dos promotores do VII Congresso Nacional de Filosofia do Direito, reunido em Roma, por nos pro­piciarem a oportunidade de discutir, concomitantemente, dois pro­blemas fundamentais, como o da interpretação e aplicação do di­reito e o do poder. A escolha oportuna dêsses dois temas me parece significar não só a necessidade por todos sentida de uma conexão mais íntima e viva entre a pesquisa filosófica e a pesquisa dogmática nos domínios da Hermenêutica jurídica, mas também a essencial correlação existente entre o problema da interpretação e o do poder, quando põsto o primeiro em têrmos de experiência jurídica.

A primeira vista poderá parecer até certo ponto estranha esta dupla aspiraçào no sentido, de um lado, de assegurar efetiva con­tinuidade entre a tarefa do filósofo e a do jurista como tal, - e, por conseguinte , que as indagações do primeiro sejam pressupostos da atividade do segundo -, e, do outro, que se queira uma com­pree.nsão mais concreta da problemática interpretativa. Parece­-me, porém, que essas duas posições são válidas, ou melhor, que são válidas na medida em que se correlacionam e se exigem reci­procamente, não sendo possível uma concreta forma de interpre­tação jurídica, sem uma fundação filosófica que a condicione e a

(*) !:ste trabalho, escrito especialmente para o Congresso Nacional de Filosofia do Direito, realizado em Roma, em novembro de 1965 (Cf. Riv. lnt. di Filosofi.a del Diritto, 1966, fase. IH) é como que uma introdução ao Ensa io seguinte.

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228 MIGUEL REALE

situa numa compreensão integral da sociedade e do direito. Não será demais sublinhar, todavia, que, por mais que se apertem os liames entre a indagação filosófica, a política e a dogmática, jamais deverá esta perder as suas categorias e exigências lógicas próprias, como, de resto, já foi ponderado, há mais de quatro décadas, por Cesarini Sforza objetando a Kantorowicz, contra a intromissão de critérios filosóficos na Ciência do direito e vice-versa.

A dific.uldade do problema consiste exatamente em estabelecer uma fundação filosófica da qual resulte o autônomo desenvolvimen­to da interpretação jurídica como tarefa científico-positiva, esta nas­cendo daquela, sem perda de contacto com o complexo das relações sociais, isto é, com aquilo que, com a sua sempre viva compreensão dos Problemas humanos, Vittorio Scialoja considerava "o direito fundamental, emanação imediata das fôrças sociais ordenadas".

Não resta dúvida que é no campo da interpretação jurídica que, hoje em dia, se nota uma preocupação maior por parte dos juristas práticos relativamente às cogitações desenvolvidas no setor filosófico-jur ídico, não sendo possível atribuir tal situação aos mé­ritos exclusivos desta ou daquela escola, sendo antes a conseqüên­cia de múltiplos fatôres, inerentes às mutações operadas, a partir do fim do século passado, nas estruturas mesmas da realidade so­cial, com a natural exigência de novas formas de objetivação do di­reito e de sua adequada compreensão.

Tal interêsse não nos deve, porém, fazer esquecer que, até mesmo no âmbito da Hermenêutica jurídica, são ainda limitados os influxos da especulação filosófica sôbre o comportamento dos advogados, dos administradores ou dos juízes, por mais que a todo instante se renovem e se proclamem os atos de aprêço teórico e de reverência doutrinária para com as excelências da obra desenvol­vida nos quadrantes da Filosofia Jurídica. A análise, aliás, dêsse contraste já seria, só por si, razão bastante para aconselhar-nos a fazer um balanço de posições e de resultados, a fim de sabermos se o que há a mudar é a atitude do filósofo do direito ou a do jurista, ou de ambos. Estou convencido de que êste é o caminho que se impõe, nada sendo tão sintomático da crise que vivemos como o divórcio real existente entre Filosofia e Ciência do direito, sobretu­do quando se põe o problema da crise da Jurisprudência, não no sentido menor de suas deficiências técnico-operacionais, - ainda não ajustadas aos complexos fáticos e axiológicos do mundo atual, mas sim no sentido mais amplo firmado por Husserl, - e que envol­ve o primeiro -, de uma carência de significado das ciências para a existência humana.

§ 2. Dir-se-á que durante dezenas de anos, em pleno flo­rescer da "Escola da exegese", os juristas fizeram abstração de pressupostos filosóficos, e nem por isso deixaram de construir um

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o DIREITO COMO EXPER1Ji:NCU 229

imponente sistema categorial, permitindo respostas plausíveis e relativamente justas para as indagações surgidas do conflito dos interêsses. Na realidade, porém, a Jurisprudência conceitual do século XIX se firmou e se desenvolveu sem maiores contrastes, por pressupor uma concepção do homem e do mundo na qual a todos era dado situar as suas convicções, nelas encontrando, como disse Francisco Romero, uma razão para viver e para morrer. Não havia, pois, um divórcio entre Filosofia e Direito, mas antes uma implícita e tácita correspondência, de tal modo que tanto o legis­lador, no ato de emanar a norma legal, como o intérprete, no momento de interpretá-la, eram expressões de um mesmo espírito, ou, por outras palavras, se sentiam ambos partícipes de uma igual "situação no mundo", segundo uma linha dé continuidade exis­tencial.

Assim sendo, apesar do aparente vazio especulativo, que pa­recia prevalecer nos quadros da Dogmática jurídica, os processos de interpretação repousavam sôbre uma tábua comum de valôres vigentes, pressupondo uma fundação existencial e histórica, cujos horizontes delimitavam, e, ao mesmo tempo, legitimavam a tarefa da Hermenêutica jurídica. Pode-se dizer que, em última análise, o legislador e o intérprete, se moviam no âmbito da mesma visão liberal do mundo e da vida, concentrada prevalecentemente sôbre os valôres de certeza e de segurança, consagrados num direito obje­tivado em fórmulas normativas o mais possível precisas e completas. Daquela identidade de fundação existencial resultava a natural tendência de considerar as fórmulas normativas em si mesmas, como realidades por si bastantes, desvinculadas, pois, do complexo fático-axiológico condicionador da nomogênese jurídica. Dêsse mo­do, a obra do intérprete podia se desenvolver sôbre um plano de "objetividade formal", e até mesmo "formalizada", põsto entre parêntesis, - não com intenção crítica, mas por simples e espon­tânea adequação pragmática -, a natureza problemática e aberta correspondente a tôda solução normativa. A interpretação podia ser concebida como sendo o momento conclusivo do direito enten­dido na sua auto-integrante unidade sistemática.

É dispensável tecer aqui considerações sôbre o que significou 'O movimento da Libre recherche du droit ou do Freies Recht, através dos quais os juristas, muitas vêzes considerados pouco sensíveis às mutações históricas, na realidade se anteciparam, de certo modo, às respostas propriamente políticas depois suscitadas pela crise estrutural que ainda caracteriza a cultura de nosso tempo. Basta apenas notar que é com aquela comoção interna, partida do âmago da Ciência do Direito, que a teoria da interpretação se abre a influências filosóficas, sociológicas e políticas, não para

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230 MIGUEL REALE

deixar de ser jurídica, mas sim para ser juridicamente posta em novos têrmos.

Na realidade, se uma nova compreensão da teoria do direito surge com F. Gény, Ehrlich, Stammler ou Kantorowicz, não é menos certo que, focalizado o problema sob o ângulo da Ciência jurídica, o que acaba por prevalecer é antes uma compreensão do direito positivo de tipo sociológico, em substituição à compreerJ,São anterior de tipo lógico-dedutivo, como no-lo demonstram as con­tribuições da Jurisprudência dos interêsses, na Alemanha, do So­ciologismo jurídico, na França, e as correntes pragmatistas que denominaram, de Holmes a Pound, o cenário da Jurisprudência norte-americana. É claro que estou empregando, neste passo, o têrmo "sociológico" em seu sentido lato, para indicar tôdas as formas de compreensão do processo interpretativo em função de seu conteúdo social, não como elemento metajurídico, mas sim como algo de coincidente com a eficácia mesma do direito.

Na Itália, não é demais lembrá-lo, dada a reduzida repercussão da &>ciologia no período que medeia as duas grandes guerras, como decotrência sobretudo do predomínio da filosofia idealista, a teoria da interpretação se desenvolveu em duplo sentido, quer acentuando a «politicidade" do ato interpretativo, quer sublinhando a sua natu­reza filosófica. Por mais que se possa dissentir das colocações entãq desenvolvidas, nunca será demais pôr em relêvo as contri­buiçqes que, sob o influxo do historicismo de Croce e do atuaHsmo de Gentile, lançaram forte luz sôbre os pressupostos filosóficos da problemática interpretativa, até ao ponto de pretender-se apre­sentá-la, consoante proclamava, por exemplo, Max Ascoli, como indagação "de natureza genuinamente filosófica", isto sem olvidar­mos as contribuições de mestres, como Giorgio Del Vecchio que, fora do âmbito idealista, acentuavam, com singular acuidade, os princípios transcendentais da tarefa interpretativa.

Importante é ainda assinalar que não eram apenas filósofos do direito, como Cesarini Sforza, Battaglia, Cammarata ou Maggio­re, que assumiam tal posição, mas também juristas, sendo-me grato lembrar, nesse se.ntido, o nome de Tul1io Ascarel1i tão ligado à minha Faculdade de Direito de São Paulo, cujas aulas guardam ainda a lembrança de suas admiráveis lições, nas quais a concretitude do processo interpretativo ecoa a fôrça de suas convicções filosóficas.

Não é por acaso, pois, mas por intrínseco e natural desdobra­mentode pesquisas, que a teoria da interpretação na Itália se caracteriza pela preocupação filosófica de seus pressupostos, con­soante a orientação exemplar que nos dá a obra renovadora de Emílio Betti e de sua escola.

II [)11~ElTll (,Oi\JO \,;XP!::!{lf;NCIA

Il

A PEHSI'ECTIVA DO FILóSOFO NO PROCESSO I -IERMENÊUTICO

231

§ 3. Será por certo sempre árduo delimitar rigorosamente os campos da Filosofia do Direito e da Teoria Geral do Direito, inclusive no concernente à interpretação das normas jurídicas, apa­rentemente suscetíveis de mera análise lógico-formal, mas elas, enquanto objetos de interpretação, implicam uma referência ine­vitável a fatos e valôl'es, quer aos ligados originàriamente à sua gênese e objetivação, quer aos fatos e valôres supervenientes, cuja correlação dialética se confunde com o processo mesmo da norma­tividade. É, aliás, devido à funcionalidade existente entre norma e "situação normada", em virtude da mediação do ato interpretativo e das contribuições criadoras dêste, que o ordenamento jurídico me parece deva ser compreendido à luz de um ((normativismo concreto", através de sucessivas integrações normativas pe fatos e valôres.

O transcender-se da norma para além de seu suporte lógico­-proposicional, êsse seu necessário dirigir-se para algo em razão de alguém, em que consiste a dialeticidade da interpretação ~ aplica­ção do direito, demonstra que a indagação filosófica do ato inter­pretativo não pode ficar circunscrita aos aspectos gnoseológicos da questão, para saber-se, por exemplo, qual a natureza do juízo interpretativo, mas deve necessàriamente considerar também os seus aspectos "ontológicos" visando à compreensão integral dos fatôres condicionantes daquele juízo. De resto, seria absurdo não reconhecer que a técnica de interpretar depende do conceito que se tenha do objeto interpretável, a tal ponto que seria plausível correlacionar o problema ontológico do direito com o gnoseológico de sua interpretação nestes têrmos: "dize-me que espécie de rea­lidade te parece ser o direito, e eu direi como o interpretas".

Não basta, em verdade, concluir, como me parece certo, que os juízos interpretativos sejam de natureza axiológica, - o que não significa, diga-se de passagem, que por tal motivo, sejam care­cedores de validade científica -, pois o reconhecimento da natu­reza valorativa daquele ato envolve 'O necessário estudo de sua fundação transcendental, a começar pela fenomenologia do ato interpretativo em geral, como forma típica de conhecimento das "intencionalida:des objetivadas", isto é, das realidades que consti· tuem o objeto das ciências histórico-culturais; assim como do ato interpretativo próprio do jurista como tal, com as características que lhe são peculiares.

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232 MIGUEL REALE

Seria ir muito além dos limites desta comunicação desenvolver o que julgo serem as notas que, no seu todo, se põem como fun­dação da Hermenêutica jurídica. Adstrinjo-me, pois, a lembrar:

a) a essencial correlação entre "ato normativo" e "ato inter­pretativo", implicando sempre a necessária natureza deon­tológica da compreensão jurídica} ou seja, com exclusão daquela que se poderia chamar atitude de gratuidade ou de indiferença prática no âmbito da interpretação jurídica, a qual é sempre compreensão de uma norma na previsão e expectativa de uma ação possível;

b) a conseqüente naturez.a racional do ato interpretativo, que converte exigências axiológicas em determinações teleoló­gicas, numa adequação ordenada de meios a fins;

c) a impossibilidade de se fazer abstração do caráter impera­tivo da norma jurídica objeto de interpretação, desde que se liberte, todavia, o conceito de imperatividade de sua veste voluntarista e antropomórfica, para com aquêle têrmo indi­car a fôrça social obrigatória resultante da obJetividade dos valôres expressos e sancionados em dado momento histó­rico;

d) a natureza axiológica do ato interpretativo e sua conse­qüente condicionalidade histórico-social;

e) a natureza unitária do processo hermenêutico, que deve levar em conta tanto a "intencionalidade" inicial da lei como as mutações operadas em virtude de supervenientes fatos e valorações; .

f) o seu caráter problemátICo como expressão da "li berdade situacional ou circunstancial", própria do intérprete, cuja atividade é criadora dentro da fidelidade devida ao "dese-nho intencional" objetivado na norma de direito; .

g) o reconhecimento de que a interpretação atualiza e renova o nexo normativo, integrando fatos segundo valôres, a par­tir da projeção histórica inerente ao processo nomogenético;

h) a natureza dinâmica e elástica do "desenho intencional" que se contém na norma jurídica, cujas diretrizes de com­portamento devem ser concebidas com abandono de qual­quer explicação de tipo psicologístico, etc.;

i) e, por fim, o sentido existencial que reconduz cada ato interpretativo às suas fontes universais de valoração, à "consciência concreta" que constitui o mundo do direito.

Só mesmo graças a essa ampla compreensão é que poderemos satisfazer, penso eu, às duas condições lembradas no início desta

o DIREITO CO~~O EXPERltNCIA 233

comunicação, ou seja, a uma fundação filosófica que ponha e legi­time a objetividade da autônoma tarefa científico-positiva do intér­prete do direito, sem o desvincular de sua condição de ser situado na existência, sendo o seu mundo uma iníliminável componente na compreensão dos homens e das realidades culturais constituídas pelos homens a serviço dos homens.

§ 4. Dir-se-á que algumas ou quase tôdas as características acima lembradas, a título de exemplo, já foram discriminadas e amplamente elucidadas na história recente das idéias jurídicas, através de diversas e conhecidas teorias sôbre a interpretação do direito, sem qualquer recurso à fenomenologia, fiel ou não às posi­ções husserlianas, mas seria deveras estranho que a análise fenome­nológica viesse a dissentir da totalidade das formas de compreensão de uma realidade cultural que, no dizer preciso de Ingarden, é sem­pre uma "intersubjetividade intencional". A rigor os dois caminhos se completam, o da análise fenomenológica e o da reflexão histórica, ou "histórico-axiológica", como prefere dizer Husserl no intróito de sua obra sôbre a crise das ciências européias.

A convergência de resultados vale, aliás, como elemento a mais de convicção para quem concorda com N. Hartmann quando nos diz que a fenomenologia é um método preparatório de resultados importantes e indispensáveis quando não absorve a totalidade da filosofia, renunciando à visão de conjunto.

O certo é que, mais do que nunca, é mister avançarmos até às raízes do problema, para estabelecer a indispensável conexão entre o filósofo e ü jurista. E se amanhã vier a ser restabeleci da uma situação análoga à da metade do século passado, com um sistema de direito em harmonia com a tábua de valôres dominantes, · poderá talvez o jurista olvidar todo êste "background" que a crise descor­tinou ante seus olhos atônitos. O filósofo do direito continuará, po·· rém, fiel à sua tarefa de pesquisador de raízes, cumprindo lembrar que, se o môcho de Minerva só levanta o vôo ao entardecer, não teme o filósofo, também, como as procelárias, o cinzento dos tempos bor­rascosos.

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Ensaio X

PROBLEMAS DE HERMENEUTICA JURÍDICA (O)

SUMÁRIO: I - A interpretação como tema de Filosofia e de Teoria Geral do Direito. II - A Hermenêutica Jurídica como ciência positiva. III - F enomenologia do ato interpretativo e objetividade. IV - O intérprete perante as intencionalidades objetivadas. V - Ato interpretativo e norma jurídica. VI­Imperatividade e interpretação. VII - Natureza axiológica do ato interpretativo e sua condicionalidade histórica. VIII - Logicidade concreta do ato interpretativo como exigência de objetivação racional. IX - Plenitude do ordenamento jurídico e pluralismo

metódico. X - Interpretação e integração normativa.

I

A INTERPRETAÇÃO COMO TEMA DE FILOSOFIA E DE TEORIA GERAL· DO DIREITO

§ 1. Se até hoje se discute sôbre a possibilidade de uma rigorosa distinção entre os campos de estudos da Filosofia e da Teoria Geral do Direito, é especialmente nos domínios da Herme­nêutica jurídica que o problema se apresenta mais vivo, possibi­litando algumas conclusões que talvez possam contribuir para o melhor esclarecimento das tarefas peculiares ao filósofo do direito como tal.

A interpretação de algo envolve, necessàriamente, a preVia determinação da região ôntica em que algo se situa, ou seja, envolve a estrutura objetiva daquilo que se põe como matéria de com­preensão.

Assim sendo, se todo processo de exegese pressupõe ou implica a análise da estrutura ou natUreza daquilo que se quer interpretar, a pergunta sôbre "como se interpreta uma norma jurídica?" im­plica, quer se queira, quer não, esta outra fundamental: "que espécie de realidade é a norma jurídica?"

Tal correlação tem sido sentida pelos mais penetrantes estu­diosos da teoria da interpretação, bastando lembrar, a título de exemplo altamente elucidativo, a obra de Emilio Betti, Teoria

(*) Publicado na Itália, sob o título "I presupposti filosofici della interpretazione", nos Scritti in mermoria di W. CESARINI SFORZA, Milão, 1968.

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236 MIGUEL REALE

Generale della Interpretazione) cujo primeiro volume é quase todo dedicado a uma tomada de posição perante a problemática gnoseo­lógica, ou, como prefiro dizer, "ontognoseológica", visando à com­preensão dos pressupostos da teoria hermenêutica com base nas contribuições especulativas, por exemplo, de E. Husserl, N. Hart­mann e W. M. Urban, muito embora seja seu propósito permanecer nos quadros de uma pesquisa de ordem estritamente científica 1.

Dir-se-á que a correlação "objeto-ato interpretativo" não é senão um aspecto particular da correlação "objeto-sujeito", mas é exatamente dessa verdade fundamental que não raro se olvidam quantos enveredam pela esfera da interpretação jurídica, dando como resolvidos, quando não os ignoram, os pressupostos filosó­ficos dos argumentos que desenvolvem. Ter presente aquela cor­relação é, pois, uma exigência de ordem gnoseológica, da qual se infere o limitado alcance de qualquer teoria que pretenda situar a exegese num plano estritamente empírico-positivo, isto é, como tema todo inserido nos quadros da Dogmática jurídica.

Em suma, para dizer como se deve interpretar uma n:orma de direito, deve-se preliminarmente assumir posição perante o pro­blema do ser mesmo do direito. É indiscutível que as respostas dadas sôbre a natureza da interpretação, seu alcance e modalidades, variarão necessàriamente se o intérprete conceber o direito, por exemplo, apenas como um "sistema de proposições normativas", uma "ordenação de comandos", um "fato-normativo", um "puro--fato", etc.

O reconhecimento de tal correlação, aparentemente banal, é grave de conseqüências, pois suscita uma questão prejudicial, que é a de saber se é possível uma teoria da interpretação jurídica que seja válida para a ciência positiva do direito como tal; ou, se pelo menos há na teoria da interpretação uma base comum sus­cetível de ser aceita pelos intérpretes do direito, abstração feita de suas divergências de ordem filosófica, isto é, com abstração de

1. Cf. EMILIO BETTI - Teoria Generale della Interpretazione, Milão, 1955. BETTI pretende fixar uma teoria geral hermenêutica "sôbre o terreno fenomenológico da ciência (bei den Sachen selbst) sem se filiar a qualquer sistema filosófico particular". mas, na realidade, as teses do ilustre mestre da Universidade de Roma, sob tantos aspectos originalíssimas, não só ultra­passam os quadros da ciência positiva, situando-se no plano filosófico, como também permanecem vinculadas à sua tomada de posição perante a pro­blemática gnoseológica, na qual se refletem influxos da metodologia husser­liana e do historicismo neo·hegeliano. Um dos objetivos destas notas é verificar, à vista dêsse e de outros exemplOS, se há possibilidade de uma "teoria positiva da hermenêutica", válida com abstração das particulares e diversas posições especulativas. Ainda sob êsse ângulo merece lembrada a bela monografia de LUIGI CAlANI - I Giudizi di Valore nell'Interpretazione Giuridica, Pádua, 1954, na qual se reconhece que "em última análise, o intérprete não pode se manter numa atitude de indiferença científica no tocante aos problemas de valor que a natureza e a estrutura mesma do pr{)prio objeto comportam" (op. cit., pág. 177).

o DmEITO COMO EXPERIÊNCIA 237

seus diversos e contrastantes pontos de vista sôbre a experiência jurídica, a começar por saber se esta constitui mesmo uma "ex­periência" .

Como se verá, parece-me insustentável o propósito de uma teoria da interpretação cega para o mundo dos valôres e dos fins e, mais ainda, alheia ou i.ndiferente à problemática filosófica, assim como julgo inadmissível o relativismo daqueles que fazem depen­der a teoria da interpretação do flutuar ou suceder-se das ideolo­gias; algo há, penso eu, condicionando os processos hermenêuticos, não obstante as mutações inevitáveis dos ambientes culturais, capaz de propiciar uma base de entendimento e de comunicabili­dade, integrando-se, em complementariedade dinâmica, os pontos de vista do filósofo, do teórico e do dogmático do direito.

II

A HERMENf:UTICA JURIDICA COMO CIÊNCIA POSITIVA

§ 2. Modo expedito de contornar o problema ora proposto consistirá em afirmar que para0 jurista, enquanto jurista, não haveria aqui senão um pseudoproblema, visto como a interpre­tação só poderá ser da proposição normativa, tal como ela se apresenta com os seus significados próprios, para cujo entendi­mento haveria processos técnicos apropriados e relativamente se­guros, quer se considere a regra de direito um simples enunciado de relações entre fatos (tese fisicalista) ou mero enunciado de re­lações lingüístico-formais (tese analítica) pois ambas essas posi­ções coincidem na mesma atitude a-valorativa.

Segundo tais modos de ver, o que se passou antes da formu­lação proposicional normativa não é matéria de Ciência do Direito, mas sim de Sociologia Jurídica ou da Política do Direito: à pri­meira destas caber ia indagar das condições ou das infra-estruturas sociais explicativas da vigência e eficácia do esquema normativo adotado ou aceito pelo Estado; à segunda competiria a análise das exigências axiológicas ou, mais especialmente, das razões de con­veniência ou oportunidade que culminaram em dada nomogênese jurídica, dentro do contexto de propósitos ou programas de govêrno e em função da ideologia dominante, O jurista, êste receberia. a "norma feita}), como um dado a ser inserido no sistema de tôdas as normas já em vigor, a fim de interpretá-la, tal como é) como momento necessário à sua aplicação.

Se boa ou má a regra emanada pelo Poder competente, se opor­tuna ou não, seria assunto também metajurídico, suscetível de estudo na tela da Política do Direito ou da Filosofia do Direito: a interpretação do direito, em última análise, começaria a partir de

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.238 MIGUEl.. REAI..E

dados ou proposições cujo significado deve ser captado, por inteiro, na sua validade objetiva autônoma, no âmbito do ordenamento jurídico do Estado.

Posta a questão nesses têrmos, a problemática interpretativa fica tôda transferida para a esfera empírico-positiva da Teoria Geral do Direito, em cuj'o âmbito deveriam ser discutidos os processos técnicos de determinação das diretrizes de conduta discerníveis na estrutura formal das proposições normativas. As indigações filo­sófico-jurídicas sôbre o conteúdo ético das normas e sua funciona­lidade psicológlco-social, permaneceriam num plano diverso, de mo­do a ficar salvo e garantido um "sistema positivo de critérios" reclamado pelas exigências da vida prática e a realizabilidade do direito.

Parece-me, porém, que tal modo de argumentar envolve um círculo vicioso, por se querer eliminar a problemática filosófica com base em uma tomada de posição sub-repticiamente filosófica. Em verdade, tôda a argumentação acima exposta se funda no pressuposto de poder ser concebida a norma jurídica como algo "a se stante", uma forma ou estrutura dotada de validade autônoma, suscetível de expressar a "totalidade de seu significado" com abs­tração dos fatos e valôres de que se originou, assim como de fatos e valôres supervenientes.

Poderá ser cômodo convencionar-se, para fins técnico-cientí­ficos e na medida de exigências operacionais, que as normas devam ser consideradas como ponto inicial de partida, mas isto esconde a supressão de problemas de ordem filosófica, atinentes tanto à natureza da norma de direito como tal, como à "fenomenologia do ato interpretativo".

Em conclusão, 'O campus comum da Hermenêutica 2 jurídica, tal como se configura na doutrina acima lembrada, não é senão o resultado de uma supressão de problemas, que depois, malgrado os propósitos de estrita positividade de seus autores, acabam por reaparecer no momento da discussão dos diversos processos e vias a serem seguidos pelo intérprete em face da experiência jurídica concreta.

2. Como já resulta das considerações anteriores, parece-me destituída de significado a antiga distinção entre "hermenêutica", como conjunto de processos ou regras de interpretação, e esta como aplicação daquela. Tra­ta-se de uma distinção de escolasticismo abstrato que não atende à natu­reza necessàriamente concreta do ato interpretativo, inseparável dos meios dialeticamente ordenados à consecução dos fins. Quanto às particularidades da hermenêutica jurídica em confronto com a exegese em geral, v. HEI..MUT CoING _ Die Juristischen Auslegungsmethoden und die Lehre der Allgemei-nen Hermeneutik, Colônia, 1959.

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA

IH

FENOMENOLOGIA DO ATO INTERPRETATIVO E OBJETIVIDADE

239

§ 3. Penso que na pOSlçao ora examinada há um valor posi­tivo, a ser levado em conta, que é o reconhecimento de que o jurista não pode prescindir de certas bases comuns para a com­preensão do direito, sem o que todo o destino do direito como realidade humana ficaria comprometido; mas não me parece que a solução aventada salvaguarde outro valor não menos fundamental, que é a necessidade de ser captado, de maneira efetiva e integral, tudo aquilo que as normas jurídicas representam como instrumento de vida, como formas de composição entre complexos valorativos e fáticos vividos pela comunidade a que se destinam.

Daí a necessidade de buscar-se por outras vias a "almejada positividade", sem se resolver sumàriamente o problema pela mera supressão de seus dados. O positivismo quase sempre realiza o paradoxo de contentar-se com uma parte da realidade, em virtude de uma deficiente compreensão do que seja "objetivo" e "positivo", em se tratando de realidades histórico-culturais, cuja "objetividade" exige categorias adequadas à sua compreensão.

Nesse sentido, parece-me que o ponto de partida aconselhável será o da análise fenomenológica do "ato interpretativo", pondo-se, por conseguinte, o problema da "fenomenologia da interpretação" como tal, e não no sentido positivista de um process'U.':l genético ou de evolução histórica.

Tal atitude correlaciona-se, por outro lado, com a aceitação de outra tese husserliana, relativa à ({atitude natural" necessària­mente ((objetivistaJJ , ou {(realista" do sujeito cognoscente enquanto "homem de ciência", ao pôr-se perante dado "campo de objetos", cujas relações peculiares quer esclarecer e expressar mediante leis, as quais, não podem deixar, porém, de respeitar as leis "pertinentes à essência da objetividade em geral" 3.

3. Segundo HUSSERI.. essa "atitude natural" - à qual corresponde um conhecimento que começa com a experiência e nesta permanece, dentro dos limites do "mundo concebido como a soma dos objetos de uma experiência possível e de um con hecimento possível por experiência", - não é própria só das "ciências naturais", mas também das "ciências do espirito", muito embora possam representar tipos distintos de eiências (Cf. HUSSERI.. - ldées Direc­trices pcnw une Phénomé'IWlogie; trad. de Paul Ricouer, 4.' ed., págs. 14-34 e 188 e segs.L O direito, como os demais produtos da civilização, é uma das "objetividades individuais que se constituem por meio de funções axio­lógicas e práticas da consciência" (op. cit., pág. 188). Sôbre a compreensão da "reflexão fenomenológica" em têrmos de "intencional idade histórico-axio­lógica" , v. MIGUEl.. REALE - Filosofia do Direito, 4.' ed., págs. 318 e segs.

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240 MIGUEL I':EIILE

A rigor, certeza científica e objetividade são têrmos que se condicionam e se implicam. Se algo não é suscetível de ser põsto ou reconhecido como existente "ab extra", ou pelo menos "como se" o fôsse, não há possibilidade de conhecimento científico. Embora sob 'Outro ângulo, parece-me coincidir com o aqui exposto o ponto de vista de Widar Cesarini Sforza quando afirma que o conheci­mento científico é sempre "contemplante il suo oggetto daI di fuori" 4.

'"-:~ Para o jurista enquanto jurista, o direito objetivamente é) afttmação esta que em nada atinge 'O concomitante reconhecimento de que o ser do direito implica sempre um dever ser) ou, por outras palaV'ras, não contradiz a tese relativa à natureza axiológica da realidade jurídica como tal.

Procedendo-se à análise fenomenológica do ato interp1'etativo) resulta que o objeto da interpretação aparece necessàriamente como algo de distinto da pessoa do intérprete, abstração feita das múlti­plas e variáveis convicções que o mesmo possa ter a respeito do papel representado por sua subjetividade no plano do conhecimento, das diversas posições teóricas, em suma, relativamente à essência ou à gênese do conhecimento.

O dualismo. ou até mesmo a contraposição sujeito-objeto é um pressuposto do ato interpretativo, que nunca se resolve numa "in­trospecção", num "estar em si", visto que se dirige sempre a algo logicamente pôsto como "distinto de si", Não me posso interpretar a mim mesmo, porque jamais posso ser diverso de mim mesmo: analiso-me e me exprimo, mas, a rigor, não me "interpreto" no sentido próprio dêste têrmo. A interpretaçã'o é sempre um mo­mento de intersubjetividade: o meu ato interpretativo procurando captar e trazer a mim o ato de outrem) não para -que eu mesmo signifique, mas para que eu me apodere de um significado objeti­vamente válido.

O fato inconteste de que, ao interpretar uma sinfonia de Beethoven ou um poema, eu me enriqueça, isto é, de que todo ato de interpretação representa um acréscimo de meu ser significante,

4. Cf. CESARINI SFORZA - Guida allo Studio de/la Filosofia deI Diritto, 2.' ed., Roma, 1946, pág. 7. Não me parece, todavia, que tal colocação da pesqUisa científica implique em conceber-se a filosofia como um ·conheci­mento "daI di dentrd' (Ibidem), numa discriminação essencial absoluta entre filosofia e ciência, conforme o sujeito cognoscente se situe no "mundo objeti­vo" para estudar um "objeto dado", ou então ponha "em evidência a ativi­dade espiritual que cria, - sem jamais se exaurir, - aquela real idade objetiva", tal como pretende o mestre de Roma em sua Filosofia deI Diritto, Milão, 1958, pág. 4. Consoante t enho repetidamente expo!?to, a atividade espiritual não "cria" as realidades objetivas, mas as constitui com base em algo que se lhe oferece como distinto dela, no ato mesmo em que a cons­ciência "intencionalmente" se projeta para fora de si. Sôbre a natureza "ontognoseológica" da " reflexão fenomenológica", v. Filosofia do Direito, 4.' éd.,loc. cito

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 241

não conflita com a validade objetiva daquilo que transita pela minha subjetividade como condição "sine qua non" da captação de seu sentido próprio. De outro lado, a validade daquilo que se interpreta não deixa, também, de ser objetiva pelo fato de verifi­carmos que o intérprete, - executor musical, jurista ou ator, _ não pode deixar de se inserir, com a riqueza ou a pobreza de seus recursos pessoais, no âmago do processo de compreensão e repro­dução daquilo que foi pensado e querido por outrem. Donde se há de concluir que a objetividade de algo representa o primeiro pressuposto de qualquer ato interpretativo, mesmo quando (estaria tentado a dizer: "especialmente quando") o intérprete não se limi­ta a reproduzir algo, mas, de certa forma, contribui também para constitUÍ-lo em seus valôres expressivos 5.

A afirmação elementar de que só se interpreta aquilo que de algum modo se objetivou, seja em normas jurídicas, em notas mu­sicais, numa tela, em gestos, etc., põe bem em evidência a co-impli­cação existente entre o ato de interpretar e a forma ou tipicidade pela qual algo se apresenta como objetivo.

Nos domínios da experiência jurídica, por exemplo, só se tornou possível um "conhecimento científico" na medida em que o processo normativo, para empregarmos expressões de Cesarini Sforza, fêz "tornar-se objeto uma açã:o, destacando-a daquela que seria a sua viva realidade, isto é, do desenvolvimento de uma von­tade subjetiva", razão pela qual "a ação considerada pela norma é sempre tomada na sua tipicidade) o que quer dizer, não na sua individualidade e imediatidade (immediatezza) mas incluída em um tipo ou classe de ações" 6.

IV

O INTÉRPRETE PERANTE AS INTENCIONALIDADES OBJETIVADAS

§ 4. Não interpreto, por outro lado, coisas, mas atos. Em última análise, interpreto a "intencionalidade", no sentido lógico,

5. Trata-se, aliás, de pressuposto já rutidamente realçado por BETTI, ao analisar o problema essencial da "objetivação": "cada interpretação, só por ser tal, tem como pressuposto iniliminável uma objetividade que está perante o . intérprete, cabendo a êste compreender-lhe o sentido" (BETTI _ !nterpreta~ione deUa Legge e sua Efficienza Evomtiva, em "Jus", 1959, pág. 175).

Aliás, não há interpretação que não pressuponha algo, consoante observado por HEIDEGGER: "a interpretação de algo como algo tem os seus fundamentos essenciais no ter, no ver, e no conceber prévios. Uma interpretação jamais é uma apreensão de algo dado levada a cabo sem pressuposto" (Sein und Zeit, trad. castelhana citada, § 32, pág. 174).

6. CESIIRINI SFORZA - Op. cit., págs. 102 e segs. e, em geral, todo o capitulo VIU dedicado ao "problema dell'oggetivazione giuridica". Cf. do mesmo Autor - "Oggettività e astratezza nell'esperienza giuridica", in !<$ee e Pr oblemi di Filosofia deZ Diritto) Milão, 1956.

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242 MIGUEL REALE

não psicológico dêste têrmo, segundo a qual alguém possa se ter servido eventualmente de coisas. As ((intencionaliâades objetivadw/' constituem, pois, o domínio próprio da interpretação, sendo possivel afirmar-se que, fundamentalmente, a interpretaç.ão é, pelo seu sim­ples pôr-se como tal, um ato dirigido a algo em razão de alguém e vinculado às estruturas inerentes ao objeto interpretável.

Para dar uma idéia mais precisa do sentido axiológico inerente a todo ato interpretativo, pense-se na atitude de qualquer de nós contemplando o pôr do sol. A emoção que êste fenômeno nos pode proporcionar, suscitando um sentimento estético, não resulta da compreensão de um sentido que lhe seja inerente como elemento constitutivo; nasce, pura e simplesmente, da recepção de um dado objetivo que se converte, no plano da consciência, em motivo de beleza e de encantamento. Somos nós que compomos axiologica­mente a imagem recebida e, se ela se converte, por exemplo, numa página literáríaou num quadro, surge incontinênti uma diversa forma de objetividade, correspondente a uma «objetivação de sen-

tido". 1; dessa ordem a realidade do direito e de todos os "objetos

culturais" , cujo conhecimento se resolve numa ((compreensão de sentido: como observa Karl Engisch, ((é SÓ através da interpretação como compreensão que é pôsto a claro e apreendido o conteúdo material intrínseco das regras jurídicas"; e é só assim que "se torna plausível a afirmação de que a Ciência Jurídica é uma das ciências do espírito, pois que, segundo as concepções modernas, o sentido e a compreensão são o critério decisivo de tais ciências" 7.

É essa a razão pela qual a objetividade, no ato interpretativo, não é comparável à objetividade existente, por exemplo, nos domí­nios das ciências naturais ou explicativas. Nestas, à medida que a investigação se desenvolve (si spiega) amplia (spiega) o campo do conhecimento e revelação do objeto, sem haver outro limite que não seja o resultante das limitações atuais da capacidade pesquisa­dora. Poder-se-ia dizer que o campo do objeto investigado cresce com o ampliar-se ou o aprofundar-se do ato cognoscitivo, e que o método vai como que constituindo o objeto à medida que desvela progressivamente as camadas do real.

O "intérprete", ao contrário, não tem diante de si algo indefini­damente "objetivável", mas sim algo que só pode ser re-criado ou re-presentado dentro dos limites daquilo que já se tornou objetivo por ato de outrem. Assim sendo, por mais que o intérprete possa desempenhar uma função criadora no ato de interpretar, como efetivamente se dá, a sua "criação" jamais pode ir além do "de­senho intencional" ou do horizonte daquilo que lhe cabe com-

7. K ENGISCH _ Introdução ao Pensamento Jurídico, trad. cit., pág. 103.

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 243

preender e expressar, sem que isto importe em considerá-lo sempre jungido à presumida intenção originária do autor da forma obje­tivada.

A liberdade do intérprete fica, em suma, sempre contida nos limites de uma ((estrutura objetivada". A limitação do poder do intérprete não resulta, pois, de eventual deficiência ou carência de meios de pesquisa, mas é uma condição inerente à natureza mesma do ato interpretativo: a atividade interpretativa, em verdade, tem como um de seus princípios essenciais o da fidelidade ao esquema ou estrutllra objetivada, em função da qual pode se mover o inves­tigador com relativa liberdade, desde que não desnature ou de­forme a estrutura objetivada a que se acha vinculado.

Como pondera E. Betti, reportando-se a Spranger, "o ato de entender postula essencialmente uma objetividade ideal comum aos vários sujeitos e, sendo uma recognição reflexa de um valor obje­tivado e fixado em determinadas estruturas (Wertegebilde), pode até mesmo ser concebido independentemente da consciênda que os autores (da objetividade) possam ou não ter tido do valor das estru-turas por êles formadas" 8. .

§ 5. Eis aí como o estudo fenomenológico do ato interpreta­tivo já nos revela dois pressupostos que constituem a "fundação transcendental" de tôda e qualquer teoria da hermenêutica:

a)

b)

a exigência de uma objetivação do esPírito em formw; representativas; e a conseqüente vinculação do intérprete às estruturas e limites peculiares a cada tipo de objetivação.

Outra conseqüência implícita nas duas acima citadas é a de que, se há uma vinculação do intérprete a certa "estrutura objeti­vada",

c) cada tipo de objetivação reclama processos práprios} ade­quados à sua compreensão.

Compreende-se, dessarte, que a interpretação da história não se confunda com a das artes e, nem com a do direito, e que, no âmbito dêste, por exemplo, se discriminem esferas particulares de

8. BETTI - op. cit., t. I, .pág. 107. o mesmo A. acrescenta, porém, que, se de um lado as objetivações vinculam a liberdade do espírito que as interpreta, nem por isso deixam de provocar uma tendência a rebelar-se contra elas, do que resulta "uma luta que representa uma dialética interior entre espírito atual e objetivações; um continuo alternar-se de atração e de repulsão, que chega a influir sôbre o processo ínterpretativo mesmo, des­viando o seu curso e modificando os seus resultados, o que faz pensar na fórmula mística "nee tecum vivere p08SUm Me sine te" (op. cit., pág. 138) .

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244 MIGUEL REALE

hermenêuticas, numa adequação cada vez mais cerrada das formas de compreensão às peculiaridades das diferentes manifestações da experiência jurídica. As diferenças que os jurisperitos apontam em matéria de interpretação do Direito constitucional ou do Direito financeiro, na hermenêutica da lei ou dos negócios jurídicos, e, indo mais além, na interpretação dos atos "inter vivos" ou "mortis causa", não decorrem de artifícios semânticos ou de pseudoproble­mas, mas resultam antes da "objetividade normativa" própria do mundo do direito e de suas múltiplas manifestações.

Antes de passar ao estudo específico dos pressupostos peculia­res à Hermenêutica jurídica, cabe assinalar uma outra "condicio.na­lidade" de qualquer ato interpretativo, que é a típica liberdade ou problematicidade do ato interpretativo, na medida e enquanto pro­cura recriar e expressar as intencionalidades objetivadas. Neste ponto, parece-me que Guido Calogero coloca a questão com admirável acuidade quando, após demonstrar a insufíciência dos processos ló­gico-formais na atividade jurisdicional, esclarece que a liberdade do juiz, ao prolatar uma sentença, se revela antes no ato de "pôr as premissas" de seu raciocínio. Na determinação das "premissas", diz Calogero, "o juiz é sempre livre, se se entender por liberdade a exclusão daquela necessidade aproblemática, que é própria do tauto­logismo silogizante, mas nunca é livre, se por liberdade se entende a mera possibilidade arbitráría de se decidir em um sentido ao invés de outro. Em todo o seu processo mental, de cuja eficiência depende o valor real da sua jurisdição, ci juiz não é, com efeito, nem absolutamente necessitado, - pois em tal caso não teria pro­blema algum a resolver, e, por conseguinte. nenhum ato de inteli­gência? lhe caberia desenvolver, - nem absolutamente livre, visto como em tal hipótese não se lhe apresentaria, de igual modo, ne­nhum problema, não podendo êle, em virtude do mesmo pressuposto, encontrar qualquer obstáculo" 9.

Essa, na realidade, é a liberdade não só do juiz, mas de qualquer intérprete, o qual se desenvolve problemàticamente, isto é, tendo a disponibilidade de múltiplas opções possíveis no âmbito de uma objetividade cujos horizontes o vinculam. É claro que a amplitude dessa capacidade de escolha varia segundo as diferentes objetivi­dades. histórico-sociais, mas, em nenhuma delas, penso eu, é tão vasta ··como nOs dO)11ínios do direito.

É da máxima importância salientar o caráter problemático do ato interpretativo, pois êsse cunho de problematicidade auxilia-nos a pôr nos seus devidos têrmos a tão debatida questão da liberdade

9. G. CALOGERO _ La Logica deZ Giudice e il suo Contl'ollo in Cassazione, pádua, 1937, pág. 99. Sôbre o silogismo normativo e a apresentação silo­gística do processo de decisão, v. as considerações feitas por J. B APTISTA MACHAOO no prefácio à sua tradução à Introdução ao Pensctmento Jurídico de KARL ENGISCH, Lisboa, 1965, págs. XXXVII e segs.

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 245

do intérprete suscitada com tanta veemência pela Escola de Direito Livre, e reproposta pelo neo-realismo norte-americano.

O ato de interpretar, por seu simples pôr-se como tal, já é problemático, enquanto não exclui "a priori" a possibilidade de múltiplas vias de acesso ao "sentido" do objeto a que se dirige e, por conseguinte, de variações de sentido, muito embora possa haver, como muito freqüentemente ocorre, unanimidade quanto a deter­minada forma de interpretar. É que o problematicismo do conheci­mento e da praxis não deve ser entendido como um "problemati­cismo de resultados", - o qual o confundiria com o ceticismo, -mas sim como um problematicismo metódico, caracterizado pela exclusão "a priori" de vinculações que prefigurem as conclusões do processo hermenêutico.

Eis aí já discriminados alguns dos pressupostos do ato inter­pretativo em geral (objetividade intencional, vinculação e liberdade concomitantes do intérprete, adequação variável do ato em função das distintas esferas de objetividade) sendo essas as bases comuns que tornam viável uma teoria da interpretação de caráter positivo. Parece-me, pois, patente que a problemática filosófica da interpre­tação se desenvolve tõda no plano transcendental das condições de possibilidade, sem se confundir com o plano confiado à . teoria her­menêutica positiva, enquanto esta procura discriminar e determinar os meios ou processos técnicos mais indicados ou imprescindíveis ao entendimento do objeto interpretável, em função de circunstâncias históricas determinadas.

V

ATO INTERPRETATIVO E NORMA JURíDICA

§ 6. Fixadas essas linhas de orientação gnoseológica para tôdas as formas de interpretação, passemos a analisar o que ocorre no caso particular da Ciência do Direito, ou, por melhor dizer, das normas de direito.

Cabe aqui a lembrança de uma distinção feita por Cesarini Sforza entre ato normativo e norma, visto como "o puro e simples enunciado de uma norma pressupõe sempre, ou que o comporta­mento tenha sido querido, ou possa ser querido como típico", sendo certo que o ato normativo, - que consiste sempre num ato de vontade real ou virtual -, precede, de um ponto de vista lógico e também temporal, à fórmula normativa, isto é, à enunciação da norma 10.

Essa distinção, pe.nso eu, pode ser aceita, mas em sentido diverso do que lhe foi dado por seu ilustre autor, o qual se mantém

10. CESARlNI SFORZA - Oor80 di Filosofia deZ Diritto, Roma, pág. 39.

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246 MIGUEL REALE

fiel a uma concepção de imperativismo voluntarista} afirmando, por exemplo, que "um ato de vontade} ou seja, um ato normativo) se esconde sempre atrás da fórmula normativa, e é pràpriamente, ou melhor, é antes exclusivamente nêle que consiste a realidade do di reito} isto é, a experiência jurídica viva, a qual não se exaure em um conjunto de fórmulas (como são os artigos das leis) mas) ao contrário) se identifica com a multiplicidade dos atos normativos) com as manifestações concretas da vontade dos homens de subor­dinar a juízos jurídicos (giuridicizzare) ou de racionalizar o mundo das ações humanas, mediante tipos de ordem prática" n. - Ora, essa identificação entre "ato normativo" e "ato de von­

tade" colhe o problema apenas no seu momento culminante, quando o Poder (seja estatal, na formulação das leis, ou social, na cons­tituição dos costumes) interfere, com a sua escolha decisiva, para dar objetividade e certeza ao processo nomogenético, mas olvida todo o "complexo axiológico" e todo o "complexo fático" que con­dicionam o ato volitivo. Se é indispensável reconhecer o que há de positivo na interferência do Poder, como opção volitiva, devem-se evitar duas conclusões extremas, uma que reduz o legislador a um simples fotógrafo do desenvolvimento fático (tese sociologista) 12 e outra que converte as manifestações concretas das vontades em fonte instauradora das normas jurídicas (tese decisionista) quando, na realidade, essa vontade objetivadora se insere como momento, essencial, é certo, mas momento} na nomogênese jurídica 13.

Essa recondução da problemática jurídica às suas fontes fá­tico-axiológicas, _ de tal modo co-implicadas que só por abstração são discerníveis (visto como, no mundo do direito, não há fato sôbre o qual não incidam va],ôres) nem valôres que não se refiram a fatos) _ faz-me dizer que o direito, antes de ser "querer querido", é "querer valorado", de sorte que a imperatividade jurídica não é de caráter voluntarista} mas sim axiológico: resulta, isto é, do pro­cesso de objetivaçiw dos valôres que se realiza através de manifes­tações concretas da vontade 14.

11. CESARINI SFORZA - Filosofia deZ Diritto, 3.' ed., Milão, 1958, pág. 65.

Grifos do Autor. 12. :J!:, por exemplo, a posição de CARLOS MAXIMILIANO quando escreve :

"O legislador não tira do nada, como se fôra um Deus; é apenas o órgão da consciência nacional. Fotografa, objetiva a idéia triunfante; não inventa, reprodUz; não cria, espelha, concretiza, constata" (Hermenêutica e Aplicação do Direito, Pôrto-Alegre, 3.' ed., § 25).

13. Não posso, aqui, senão pedir vênia para reportar-me a meu trabalho Law, power anã theirs correlations, no volume Essays in HO'I'lIJT of Roscoe pound, 1962, págs. 238 e segs., incluido, sob o título "O poder na democracia", em Pluralis?no e Liberdade, São Paulo, 1963. Cf. também supra, págs. 192

e segs. 14. Sôbre a imperatividade axiológica do direito, cf. MIGUEL REALE

Filosofia do Direito, 4.' ed., cito págs. 469 e segs. Vide também o dito infra, § 7. A meu ver, a compreensão do caráter de "imperatividade"

o DIREITO COMO EXPERI~NCIA 247

Feitas essas ressalvas, se partirmos da consideração de Cesa­rini Sforza de que os atos normativos são "manifestações concretas da vontade dos homens no seu momento abstrativo", constituindo o direito como "realidade espiritual, isto é, como experiência jurí­dica viva", - irredutível às fórmulas normativas, que são apenas os meios de objetivação daqueles atos, - poderemos, do mesmo modo, dizer que o ato interpretativo não se reduz à pura explicitação lógico-formal das relações ínsitas na estrutura das proposições nor­mativas.

A luz de um normativismo concreto, ato normativo e ato inter­pretativo são elementos que se co-implicam e se integram, não se podendo, senão por abstração e como linha de orientação da pes­quisa, separar a regra e a "situação regulada". Tanto para o legislador como para o intérprete o objetivo final é a norma jurídica, mas com escopos distintos. O primeiro nela procura expressar obje­tivamente uma complexa relação de fatos e vdlôres, destinada, em princípio, a atender a exigências sociais de certeza e de segurança, dentro de um dado ambiente histórico-cultural; já o segundo, o intérprete, visa compreender a norma, a fim de aplicar em sua ple­nitude o significado nela objetivado, tendo presentes os fatos e valôres dos quais a mesma promana, assim como os fatos e os valôres supervenientes.

A correlação, que me parece essencial, entre ato normativo e ato interpretativo demonstra o equívoco de se querer reduzir "a priori" a interpretação a uma simples explicitação de ordem formal, condenando como metajurídicas questões de conteúdo ético, psico­lógico, etc. Revela, outrossim, quanto é precária qualquer teoria de Hermenêutica jurídica cega ou infensa aos seus pressupostos fundantes, por "horror ao transcendental", que é uma ,espécie de "horror ao vácuo" de que são tomados certos filósofos do direito contemporâneos ...

Frise-se, aliás, que, se aqui distingo entre plano transcendental ou filosófico e plano científico positivo da hermenêutica, nem por isto vejo entre êles uma solução de continuidade, uma vez que aquêle é pertinente às condições de possibilidade, e o segundo se refere à experiência jurídica possível.

Posta a questão nesses têrmos, parece-me admissível dizer que, assim como a determinação dos processos de objetivação do direito nos leva, cronológica e logicamente, do ato normativo para a fórmula normativa, a determinação dos processos de interpretação obriga-nos a refazer aquêle caminho, remontando desde a estrutura

em têrmos axiológicos supera as objeções usualmente contrapostas ao "impe­rativismo voluntarista", possibilitando considerar-se "prescriç~o" como sinô­nimo de "imperativo" (Sôbre tal problema, cf. CESARINI SFORZA - "Sul sig­nificato degli imperativi giuridici", em Riv. Italiana 1'lElT le Scienze Giuridiche, voI. IX, Série III, 1957-58, pâg. 2).

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248 MIGUEL REALE

formal da norma até ao momento constitutivo e integrante do ato normativo, concebido êste, como se vê, não como uma volição pa­ralisada no instante originário da formulação normativa, mas antes como um processo volitivo continuamente atuante no evolver his­tórico, a partir do querer objetivante originário. Veremos, logo mais, quais as conseqüências dêste entendimento quanto ao pro­blema da "intenção" no processo interpretativo.

VI

IMPERATIVIDADE E INTERPRETAÇÃO

§ 7. Ora, uma vez reconhecido que tôda norma jurídica assi­nala uma direção para algo em virtude de assim ter sido querido por outrem, em função das valorações dominantes em dado ambiente histórico-social (imperativismo axiológico) surge uma série de outros problemas a resolver ainda no plano da Filosofia jurídica, condicionando vias e processos de ordem prática.

Quando se diz que a norma tem como antecedente imediato uma volição objetivante, dessa afirmação não decorre que ela seja redutível a um "comando de ordem volitiva": constitui antes uma prescrição de caráter axiológico, que não obriga em virtude do puro querer de quem emana a norma, mas sim em virtude da pressão objetiva que os valôres exercem no meio social.

A norma jurídica nunca é de caráter puramente volitivo, mas fundamentalmente axiológico, visto como o fim} postulado por seu intermédio, é sempre a versão ou a veste racional de um valor, ou, por outras palavras, um valor visto e reconhecido como motivo de­terminante da conduta. Valor, dever ser e fim podem ser discri­minados ou concebidos como momentos do processo de objetivaçã'O normativa, no qual a vontade constitui fator decisivo de mediaçã'O: o direito não é tal pelo fato de ser querido, mas é querido e atua­lizado pelo valor-fim que encerra 15.

Ora, segundo alguns autores, o "querer" pode culminar em meros enunciados normativos, isto é, na simples indicação ou pre­visão de uma classe de comportamentos possíveis e, mais ainda, que a nota de imperatividade pode ser posta entre parêntesis no momento da interpretação da norma. Se esta é ou não imperativa, argumenta-se, é questão relativa à atitude do destinatário, isto é, ,de quem deverá agir ou não agir, uma vez conhecido o significado

15. Cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito} 4.4 ed. cit., §§ 207 e segs Quando se põe o problema do dever ser em têrmos axiológicos, e não pura­mente formais, não me parecem cabíveis as críticas feitas por ULRICli KLUG, tendo presente' apenas a concepção kelseniana.

Sôbre a correlação entre valor e fim e o ato interpretativo, cf. as obser­vações desenvolvidas no § 9 dêste trabalho.

o DIREITO COMO EXPERIE:NCIA 249

da norma : é assunto, pois, que diz respeito ao momento da apli­cação ou cumprimento do preceito, e não ao momento de sua interpretação como tal. Ê o que nos diz, por exemplo, Mario Rotondi quando observa: "não importa que o objeto da interpre­tação seja um comando, ou que a norma, que se tenha de inter­pretar, seja também destinada a ser aplicada, isto é, que ela se imponha tanto à explicatio como à applicatio. Intérprete não é ape­nas o destinatário do comando, nem quem fiscaliza a sua obser­vância. Isto se torna ainda mais evidente no caso de interpretação das leis antigas de puro valor histórico" 16.

A mim me parece, todavia, que, posta a questão em t&rmos de "imperatividade axiológica", com o superamento da antropomórfica concepção voluntarista, que reduz as normas jurídicas a "comandos", não pode o intérprete fazer abstração da nota de prescritividade valorativa ínsita na estrutura da fórmula objetivada, pois a reali­zabilidade ou a praticidade da norma (ou por outras palavras, a correlação ~ntre a sua validade formal ou vigência e a sua validade social ou eficáCia) não é pressuposto que possa ser esquecido pelo exegeta: a necessidade essencial da interpretação das normas é uma conseqüência também da destinação prática dos preceitos 17 • .

Posta a imperatividade em têrmos de objetivação axiológica, evidencia-se a inteira procedência da crítica feita à antiga doutrina, já definitivamente superada, segundo a qual a opinião dos elabora­dores de uma lei teria fôrça de interpretação autêntica, por ser aquela a presumida expressão de suas intenções ou propósitos. Na realidade, a norma jurídica emancipa-se da pessoa do legislador no ato mesmo em que · é promulgada, pela simples razão de que ela jamais foi simples conteúdo de seu querer individual, mas encontrou antes em seu ato volitivo a necessária mediação para objetivar-se como "querer social", expressão esta que só adquire significação precisa quando traduz "o complexo de valorações prevalecentes" em cada processo nomogenético. Quando se diz, aliás, que o legislador deve se decidir como intérprete da sociedade que representa, já se põe de antemão a necessidade de interpretar-se a regra jurídica como uma ordenação axiológica que transcende a vontade subjetiva do órgão formalizador da norma: os propósitos dêsse querer indi­vidual passam a ser meros ingredientes, mas ingredientes indis­pensáveis à compreensão da "significação objetiva".

16, MARIO ROTONDI - "Interpretazione della Legge", no Novissimo Di­gesto ItalÍ<:Lno, Turim, 1957, vol . VIII, págs. 893 e segs. Cf. KARL ENGISCH - Introdw;ão ao Pensamento· Juridico, trad. cit. , págs. 28-37, sôbre "impe­ratividade" e "normas de valoração".

17. A objeção feita por ROTOND!, no passo supra citado, invocando o caso particular da interpretação das leis antigas de puro valor histórico, _ se válida contra o imperativismo voluntarista, _ não atinge a imperatividade de tipo axiológico, pois nenhuma lei antiga é interpretável com abstração da condicional idade histórico-cultural que lhe deu vigência.

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MIGUEL REALE 250

Por aí se vê que a procura da "intenção do legislador", ou de sua "presumida intenção", como se preferiu dizer para fugir às críticas formuladas ao psicologismo que caracterizava tal orien­tação interpretativa, só pode significar procura e determinação das valorações originárias que condicionaram a objetivação nor­mativa, e que seria êrro não levar em linha de conta, como se não fôsse elo de um processus, no instante em que a regra jurídica é objeto de interpretação à luz de novos e supervenientes esquemas

estimativos. É essencial, pois, para o intérprete saber que lhe cabe com-

preender, na plenitude de seu desenvolvimento, o conteúdo de uma prescrição axiológica tal como esta significa objetivamente na fórmula normativa, que se torna autônoma desvinculando-se de suas fontes originárias, é certo, mas, até certo ponto, como uma cápsula, digamos assim, que, ao se desprender de um foguete espa­cial, conserva o impulso e a direção do engenhO propulsor, como condição de sua própria trajetória: só que no Direito a trajetória pode sofrer alterações, utilizando-se o operador do impulso, ima­nente à norma, para fins originalmente não previstos.

VII

NATUREZA AXIOLóGICA DO ATO INTERPRETATIVO E SUA CONDICIONALIDADE HISTÓRICA

§ 8. Pois bem, tal colocação do problema envolve outros complementares que procurarei resumir nos limites dêste trabalho, à luz da compreensão de "normativismo concreto", a que já me referi e tal como tenho procuradO delinear neste livro 18.

Se, como vimos, tôda volição não implica, por si só, a quali­ficação da norma como imperativa, importa, porém, na prévia admissão de que há um valor positivo, que se quer ver atualizado ou não violado, ou um valor negativo que se quer evitar ou su­primir. Onde, pois, há uma norma de direito, há sempre um problema axiológico pressuposto ao intérprete.

Dessa asserção resultam quatro conclusões que será sempre necessário ter presentes, especialmente por suas conseqüências de

ordem prática, a saber: a) Tôda norma, por ser sempre representação de um valor

e objeto de volição, jamais pode deixar de ser interpre­tada, não podendo haver norma que dispense interpre­tação (essencialidade do ato interpretativo).

18. Vide os Ensaios VII e VIII, supra.

b)

c)

d)

o DIREITO COMO EXl"EItIf:NCIA 251

Tôda interpretação jurídica é de natureza axiológica, isto é, pressupõe a valoração objetivada na proposição nor­mativa (essencialidade axiológica do ato interpretativo) . Tôda interpretação se acha condicionada por um com­plexo de situações fáticas, a começar cronologicamente por aquela ·que havia condicionado oríginàriamente a ob­jetivação da norma (essencialidade da condicionalidade f ática do ato interpretativo). Tôda interpretação tem como pressuposto o caráter ne­cessàriamente lógico da proposição normativa, não obs-tante possa ter sido o resultado de fatôres alógicos (essen­cialidade lógica do ato interpretativo) .

No que se refere a êsses enunciados, cabe obserVar que os valôres, que formam a razão ou o conteúdo das normas, aparecem nesta por meio de um ato volitivo. A norma jurídica é, pois, sempre determinação racional e objetiva de valôres, na medida e em função de meios idôneos à sua realização, na dependência ou em função dos fatos ou circunstâncias em que a valoração ea volição ocorrem.

Daí, em primeiro lugar, a natureza racional ou a essenciali­dade lógica do ato interpretativo, desde que se não reduza, é claro, a logicidade a puros nexos de inferência de ordem formal. Se tôda a lógica se reduzisse à Lógica formal, deveríamos concordar plenamente com Luís Recaséns Siches, quando nos diz que a Lógica­do direito não é a "Lógica do racional", mas sim a ~'Lógica do razoável". Na realidade, porém, a "Lógica deI razonable" não é senão um aspecto ou momento da Lógica da razão, não redutível a meras conexões formais 19

19. V. RECASÉNS SICHES - Nueva Filo8ofia de la Interpretación del Derecho, México, 1956: "la lógica material deI Derecho, es decir, la lógica de los contenidos de las disposiciones jurídicas, es una lógica diferente de la lógica tradicional; es el logos de lo humano, la lógica de lo razonable, a diferencia de la lógica de lo racional, de tipo matemático" (pág. 29 e sobretudo Capo UI, págs. 128 e segsJ. Aliás RECASÉNS SrcHES, reportando-se a ORTEGA y GASSET, adverte que a "lógica do razoável" não é menos lógica do que a "lógica do racional" (pág. 136). Por outra ordem de idéias, ligadas à análise das relações lógico-formais, outros estudiosos, como PEREL­MAN e BAGOLINI, têm excluído o direito da esfera do racional, isto é, do "verificável como verdadeiro -ou como falso", para atribuir-lhe o caráter do razoável, implicando a complexa adequação ou "apropriação" de meios idôneos à consecução de fins. (Cf. BAGOLINI - in Riv. Int. Fil. del Dir., 1963, I, págs. 7 e segs.) .

Gumo CALO GERO, na monografia citada, já contrapusera "à tautológica inutilidade de tôda esquematização lógica e silogística do pensamento hu­mano e, por conseguinte, também do juízo jurisdicional" uma "lógica das coisas, qualquer que seja a roupagem verbal que se lhe dê" (op. cit ., págs. 100 e 102). Segundo o mesmo autor não haveria necessidade de muita re­flexão para se descobrir "que não há subsunção ou sistematização jurídica

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MIGUEL REALE

252

VIII

LOGICIDADE CONCRETA 00 ATO INTERPRETATIVO COMO EXIGÊNCIA DE OBJETIVAÇÃO RACIONAL

§ 9. Contestada a redução da Lógica jurídica a meros es­quemas formais, não se pode, todavia, desconhecer que, sendo a norma jurídica uma "proposição de dever ser", a sua interpretação tem necessário caráter lógico, quedando excluídas tôdas as formas de compreensão emocional do momento normativo do direito, a que são levados alguns autores pela confusão que fazem entre o aspecto "genético" e o "lógico" da objetivação normativa.

É inegável que uma norma de direito, por· exemplo uma lei, muitas vêzes é o produto de um complexo de fatôres conflitantes, alguns dêles emocionais e até mesmo passionais, mas não é menos certo que, uma vez feita a opção pelo legislador por um dos pos­siveis diagnóstw08 axioz,;g;cos dos fatos, oU sej., um. vez obieti­'(;afio o querer axiológico numa dada fórmula normativa, consa­ge.d. pela s.nção, di'" noem. "ipsa fado" se põe como entid.de lágiC., como ptaposição lógica a ser lágicamente i ... erida na uni­dade coerente do sistema total das proposições normativas em

vigor 20. As chamadas interpretações intuitivas oU emocionais das nor-mas jurídicas são pseudo_interpretações, não correspondendo senão ao resultado provisório de uma primeira e imediata tomada de contato com a objetividade do preceito, podendo no máximo for­necer elementos a serem aferidos e superadOs pela totalidade con-

gruente da compreensão racional. --que não seja valoração (valutazione) e que. por conseguinte. não lhe serve jamais a lógica. mas tão_somente a experiência histórica concreta. e a inteligência teleológica. do jurista e do juiz" (op. cit., pág. 92).

Tudo está. porém. em nos entendermoS sôbre qual o aspecto da lógica correspondente ao tipo de realidade que é o direito. Lógica valorativa. lógica do concreto. ou "lógica de la razón vital". são tôdas expressões com as quaiS se quer indicar a especificidade da compreensão do mundo histórico-cul­tural. em que se situa o direito, como um dos elementos constitutivoS essen­ciais da experiência social do homem. Tal reconhecimento não pode, todavia. noS levar a desconhecer. como ponderamos no Ensaio IV. sU/[lra, as "possibili­dades analíticas" correspondentes às partes do direito suscetíveis de rigorosa formalização, mas antes nos deve levar a situá-las em seus devidos limites, na unidade do entendimento e da explicação do direito, como melhor se exporá no texto. É essa, aliás, a orientação prevalecente entre os próprios

cultores da Lógica jurídica. 20. Sôbre êste ponto capital. cf. :MIGUEL REALE - Pluralismo e Liberdade, São PaulO. 1963, especialmente o ensaio intitulado "O poder na Democracia", supra lembrado. Sôbre a complexidade dos fatôres políticos e econômicos, psicológicos. etc.. atuantes no momento da emanação das leis, "resultantes de frações de idéias amalgamadas", cf. CARLOS MAXIMILIANO - 01'. cit., §§

26 e segs.

I I I

I

O DIREITO COMO EXPERli;:NCIA 253

O reconhecimento que aqui se faz da logicidade como caracte­rística inseparável da interpretação prende-se, além do mais, a uma questão que nem sempre tem sido devidamente estudada na nomogênese jurídica, qual seja saber como o valor se apresenta tanto no ato normativo como no ato interpretativo. Costuma-se dizer, por exemplo, que a norma jurídica declara valioso ou des­valioso certo tipo de conduta tendo em vista a realização de certos fins; mas como algo só pode ser pôsto como fim por ser valioso, bem se compreende a falta de rigor terminológico da referida asserção. Já foi observado que há valôres-meios e valôres-fins, mas é preciso ir além e reconhecer que tôda teoria dos fins ou teleologia pressupõe uma teoria dos valôres ou axiologia. Em última análise, algo é fim porque:

a) b)

c)

é referido a um valor e, como tal, é considerado valioso; e, por ser valioso, se apresenta como meta ou ideal a ser atingido; implicando a problemática dos meios idôneos à conse­cução de um resultado.

Ora, se considerarmos êsses três aspectos em seu conjunto, chegaremos à conclusão de que um fim não é outra coisa senão a versão racional de um valor que se quer alcançar graças a meios idôneos. Parece-me que é o que sucede em tôda norma jurídica em cujo âmbito os valôres se põem objetivamente como fins.

É o princípio de certeza, inerente à experiência jurídica, que, no plano do direito, converte valôres ou valorações em algo de mais preciso e determinado, que são os fins. O caráter necessà­riame.nte teleológico da interpretação jurídica é, pois, um "conse­cutivum" da consistência essencialmente teleológica da norma de direito, podendo-se dizer, que, por motivos inilimináveis de certeza, a conversão semântica de uma valoração sob forma teleológica circunscreve ou delimita o espectrum axiológico, adequando-o às circunstâncias históricas: a norma jurídica não consagra, por exem­plo. o valor da liberdade "in abstracto", mas · nos limites daspos­sibilidades pertinentes a cada tipo de conduta, em função de ele­mentos variáveis de lugar e de tempo, segundo critérios prudentes de oportunidade, conveniência, etc. Poder-se-ia afirmar que a exigência de certeza, Dostulada Dela vida do direito. restringe a abertura, por assim dizer, do "diafragma normativo". de confor­midade com a intensidade e a natureza dos fachos axiológicos em uma dada situação históric'o-social, na medida e em função da ação útil e adequada possível.

É o motivo pelo qual o legislador, primeiro, e sobretudo o intérprete, depois, não podem se contentar com valorações fluidas e imprecisas, incapazes de ordenar e disciplinar os comportamentos humanos segundo uma razoável ou adequada conexão de meios a

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MIGUEL REALE

254

fins, cabendo lembrar que, como salientou Cesarini Sforza, no tó­pico acima citado, todo ato normativo importa em "giuridicizzare" as ações humanas e que "giuridicizzare" equivale a "razionalizzare

mediante tipi pratici". O esfôrço de objetivação e de racionalização é uma das ca-

racterísticas da experiência histórica do direito, não obstante os repetidos insucessos que fàcilmente se poderiam invocar. Se Stammler nos diz que "todo direito é uma tentativa de ser direito justo", tal afirmação poderia ser apresentada sob outro prisma, mas em consonância com ela: "todo direito é uma tentativa de direito racional", ou, para evitar interpretações equívocas, "todo direito é uma tentativa de direito racionalmente objetivado".

Vem daí o fato de a objetivação do direito se processar me­diante uma conversão constante de "experiências valorativas" em "fórmulas normativas", isto é, em juízos de valor que se expressam como "proposições de caráter teleoIÓgico", representando estas sempre o momento culminante no qual uma das valorações pos­síveis dos fatos sociais se eleva ao plano objetivo daquele fim que é expresso e sancionado pela norma jurídica, graças à "escolha constitutiva" do querer axiologicamente determinado que a põe

"in esse" . É claro que nem sempre a norma jurídica traduz, de maneira

clara, 'O processo de racionalização aqui analisado, dada a descon-certante interferência de motivos a-racionais ou para-racionais que se verifica, por exemplo, na feitura de uma lei no seio do Parla­mento, mas é, exatamente neste ponto que mais se impõe o dever racionalizante do intérprete, o que, longe de eliminar, pressupõe concreta e viva consideração das exigências axiológicas.

Se o jurista poucas vêzes é partícipe, de maneira decisiva, da formulação das normas de direito, nem por isso deixa de ser responsável por sua exegese e aplicação. Se a lei é obscura, incerta, pouco adequada às condições sócio-econômicas, incongruen­te na totalidade do sistema, é aqui que se põe, de maneira viva, a dignidade da Jurisvrudência) em virtude do trabalho do intérprete que capta a ratio legis, indo além dos simples nexos lógico-formais, encontrando, em suma, as razões reais a que o legislador teve em vista atender e às que devem ser atendidas no evolver do processo histórico. Vê-se, pois, que entre ato normativo e ato interpreta­tivo não há solução de continuidade. no sentido da progressiva objetivação das possibilidades axiológicas, num crescendo de inte-

gração racional. Poder-se-ia dizer que o process'O de objetivação racional pros-

segue através do ato interpretativo, adequando-se a "fórmula nor­mativa" às situações novas supervenientes, fato êste que tem sido devidamente considerado pelos juristas através da impropriamente chamada ({interpretação evolutiva" . No fundo, tôda interpretação

o DiREITO COMO EXPERIENCIA 255

ê essencialmente progressiva, em função, como já tive ocaSlao de observar, do princípio fundamen tal da realizabilidade do direito, visto como não se enu.nciam normas para serem contempladas, mas sim para serem cumpridas, pTevendo-se) concomitantemente, a conseqüência do não cump1'imento) no que consiste o seu caráter preceptivo ou imperativo.

Por outro lado, a compreensão do ato interpretativo como mo­mento do processo de racionalização e de objetivação, - tal como o tenho aqui exposto, de conformidade com uma visão histórico­-axiológica da experiência jurídica, - tem como conseqüência reconhecer o caráter sempre integrante da interpretação, supe­rando a necessária e prévia tarefa de explicitação do · enunciado normativo. Nessa ordem de idéias, Felice Battaglia situa admi­ràvelmente o problema quando pondera ser "a interpretação a via normal, ou, pelo menos, a mais conspícua, de integraçãp do sis­tema jurídico", inserindo-a no quadro geral de uma compreensão axiológica do direito 21.

IX

PLENITUDE DO ORDENAMENTO JURíDICO E PLURALISMO METÓDICO

§ 10. A conversão do processo axiológico em teleolqgico, co­mo e~lgencia de objetivação e racionalização normativas, além de salIentar a natureza concreta e dinâmica da interpretação do direito, previne-nos contra tôdas as tentativas de subordiná-Ia à teoria das expressões formais do direito, inclusive porque a inter­pretação bem poucas vêzes é de uma proposição isolada, mas pressupõe outro princípio) que é a unidade lógica do ordenamento jurídico.

Êsse é outro pressuposto que cabe ter presente na Hermenêutica juridica, implicando não só a unidade do processo interpretativo (de tal modo que as diversas formas de exegese devem ser discri­minadas como momentos, e não mais como técnicas autônomas "a se", conforme é ponto de vista já prevalecente entre os mais lúcidos teóricos do direito) como também a necessária conexão de cada norma, a ser interpretada, com a totalidade do ordenamento. Esta constitui uma das características mais marcantes da inter­pretação jurídica.

Com efeito, nas demais formas de objetivação do espírito. cada objetivação particular é suscetível de ser interpretada em si mesma, com abstra.ção das demais. Assim é que a interpretação

21 . Cf. FELICE BATTAGLIA - "I! diritto nel sistema dei valori", na Riu. TTitn. di DiT. e Froc. CiuiZe, 1964, fasc. 2, pág. 501.

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de cada tocata de Bach não implica e exige a concomitante exegese das demais produções do artista, cada uma delas constituindo como que um todo em si pleno e significante. É claro que a melhor interpretação de cada obra poderá ser o resultado do co­nhecimento da produção global do compositor, mas não será jamais imprescindível essa correlação, nem iniliminável a congruência es­tética concomitante com as demais criações musicais.

No direito, ao contrário, é a significação mesma de cada nor­ma que depende da parte do ordenamento em que ela se acha inserida, _ quer por ato do legislador originár io, quer em virtude de ato posterior do intérprete, compatível com a sistemática em vigor, quer como decorrência de uma norma jurídica nova que venha alterar, não a regra já existente, mas a sua situação no todo da ordem positiva. Éste fato, sôbre acentuar a já lembrada característica de conc'fetitude objetivante) tanto do ato normativo como do ato interpretativo, como conseqüência da solidariedade e interconexão própria do mundo dos valôres, - tal como é exposto, entre outros, por Max Scheler e Nicolai Hartmann 22 - vem con­firmar que a pluralidade dos processos hermenêuticos ou a neces­sária adequação do intérprete à estrutura ou consistência de cada expressão da experiência jurídica não deve levá-lo a esquecer o valor do ordenamento em seu total desenvolvimento histórico.

A apontada adequação da interpretação às diferentes formas ou estruturas com que se apresenta esta espécie de "objetividade histórico-social" que chamamos Direito, demonstra" por outro lado, a l1~cessidade de um pluralismo metódico) sendo descabidas certas polêmicas que se travam ainda sôbre a excelênciadêste ou daquele processo hermenêutico, pondo-se errôneamente eI'ltre parêntesis o problema da consistência de cada "objetividade racional" em estudo.

A compreensão ontognoseológica do ato interpretativo, consi­derando-o "a parte subiecti" e "a parte obiecti", revela a fragili­dade de algumas preferências metódicas incompatíveis com a es­pécie de "realidadE!" observada, num apêgo exclusivista, por exem­plo, a "juízos de valor" ou a "juízos analíticos", ou se olvidando o que na interpretação há de "declarativo" ou de "constitutivo", êste momento pressupondo aquêle, ou ainda sacrificando-se a inter­pretação com descabidas preferências por esta ou aquela modali-dade unilateral de c'Ompreensão.

Quem diz "pluralidade" diz também "relação" e "unidade", quandO aquela é posta em função de uma discriminação de "objeti­vidades regionais", cujo pressuposto é a prévia admissão, consoante nos diz Husserl, das "leis pertinentes à essência da objetividade

em geral" 23.

22. Cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, cit., págs. 187 e

passim. 23. Cf. o que foi exposto no § 3.- dêste trabalho e respeetiva

segs. e

nota 3.

o DIREITO COMO EXPERIÊt>:CIA 257

Não há, pois, perigo de dispersão ou desvio do intérprete, por se lhe apontar a necessidade de uma pluralidade de processos, em função de distintas "consistências objetivadas", uma vez que, como salienta Bobbio, embora à luz de outros pressupostos, "o jurista não pode compreender o significado de uma proposição normativa sem remontar à realidade social, da qual esta proposição tirou não só a sua razão de ser, mas também as noções de que é composta" 24.

O essencial é, pois, não pretender resolver todos os problemas da Ciência do Direito tão-sômente com recurso a inferências ana­líticas, pois é evidente que resultaria em pura perda o rigorismo das mais apuradas técnicas de formalização aplicada à interpretação de uma norma inválida, pois o problema nuclear para o jurista diz respeito à validade da norma e à valomção de seu conteúdo. Na unidade concreta do ato interpretativo os diferentes processos ne­cessàriamente se implicam e se completam.

x

INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO NORMATIVA

§ 11. No parágrafo anterior, analisamos o pressuposto da unidade sistemática considerando a norma em relação com o orde­namento de maneira estática, isto é, na medida em que uma dada proposição se correlaciona com o restante do ordenamento, mas o problema tal1'lbém deve ser pôsto de maneira dinâmica.

Com efeito, conforme nos demonstrou Santi Romano,' todo ordenamento é uma realidade viva e concreta, razão pela qual, ao examinar o problema da chamada "interpretação evolutiva", es­creve: "Se quisermos falar de vida e de evolução também com relação àqueles elementos que são as normas jurídicas, não deve­remos esquecer que se trata de uma vida e de uma evolução que só as atingem, tocam e animam na medida em que se manifestam a vida e a evolução da instituição: sômente esta, no seu conjunto, e não cindida nas suas partes essenciais, possui vitalidade e ido­neidade para se desenvolver" 25.

24. Cf. BoBBro - Teoria della Scienza deZ Diritto, Turim, 1950. pág. 176. Poueo antes BoBBro dissera: "a ciência jurídica nada tema ver com fatos, mas sim eom enunciados sôbre fatos" (011 . cit., pág. 168) o que me parece tão inadmissível como seria esta outra afirmação paralela : "o direito nada tem a ver com valôres, mas com enunciados s6bre valôres". Contra essa eoneepção formal da Teoria Geral do Direito, lembraria, com P ALAZZOLO (Scienza e Epistemologia Giuridica, Pádua, 1957, págs. 126 e segs.) a ne­eessidade de tratá-la como momento do desenvolvimento problemátieo e unitário do saber jurídico.

25. SANTI RoMANO - Frammenti di un Dizionario Giuridico, Milão, 1947, pág. 124.

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Melhor será, porém, reconhecer que a norma e o ordenamento, assim como permanentemente se "correlacionam", também "se exigem" na realidade do processo histórico, de tal modo, por exem­plo, que, se às vêzes parecem claros os propósitos do legislador, logo após a promulgação da norma legal, com o correr do tempo vai se tornando obscuro o fim originàriamente visado, enquanto outros complexos axiológicos e fáticos sobrevêm para empobrecer­-lhe ou enriquecer-lhe o significado 26.

No entendimento do direito, portanto, todos os fatôres e ele­mentos devem ser levados em conta, sendo igualmente errôneas, a meu ver, tanto a tese dos que apresentam como imutáveis ou rígidos os fins originários de uma lei , como a dos que chegam a proclamar que tais fins originários não interessam ao intérprete, que deveria atender apenas aos valôres e escopos vigentes no am­biente cultural em que atualmente êle se situa. O certo é que a temporalidade cultural, própria da experiência jurídica, não per­mite seja esquecido ou pôsto entre parêntesis o momento primor­dial da nomogênese jurídica, como condição que é de todo o pro­cesso de objetivação histórica, só possível em função e na medida da elasticidade conatural a cada regra de direito.

Põem-se aqui dois problemas conexos, aos quais não posso fazer senão ligeira referência, que são o da temporalidade e da elasticidade da norma jurídica 27, cujo estudo propicia novas pers­pectivas para melhor compreensão daquelas exigências iniliminá­veis a que se procura atender mediante a "interpretação evolutiva", quando o que acontece é a natural expansão hist6rico-social ine­rente a tôda objetivação normativa) dado seu caráter essencial­mente axiológico) em função de dada condicionalidade fática 28.

§ 12. Para quem, como o autor dêste trabalho, os valôres não podem ser compreendidos sem a sua permanente referibilidade histórica, visto como os mesmos transcendem cada forma de obje-

26. Cf. FRANCEscO CARNELUTTI - Teoria Generale del Diritto, 3.' ed., Roma, 1951, págs. 286 e segs.

27. Sôbre o problema do tempo no direito, v. as importantes observações de L. BAGOLINI em diversos escritos, notadamente na Riv. Int. di Filosofia deZ Diritto, 1963, fasc. rI, págs. 143 e segs. e 1964, fasc. III, págs. 378 e segs., demonstrando que "la temporalità, nel campo della validità gíurídica, non ha il carattere di una continuità omogenea e irreversibile". Cf. supra Ensaio VIII, págs. 218 e segs.

Quanto à ques tão da elasticidade da norma, v. DINO PASINI - Vita e Forma nella Realtà deZ Diritto, Milão, 1964, págs. 45 e segs., com especial \,eferência ao normativismo jurídico concreto exigido por uma concepção integral do direito.

28. Cf. a justa observação de PIETRO ProVANI sôbre a Ciência do Direito "enquanto artífice de interpretações das normas e, por conseguinte, de mo­dificações, e, dentro de tais limites, de autêntica produção jurídica, como órgão do progresso juridico ... " (La F'ilosofia deZ Diritto come Scienza Filo­sofica, Milão, 1963, págs. 153 e segs,) .

() DIREITO COMO EXPERrBNCIA 259

tivação normativa, no ato mesmo em que êles a tornam possível, o pressuposto da dinamicidade do ordenamento jurídico e do ca­ráter dialético de sua interpretação não é, pois, senão a conseqüência do reconhecimento de que o direito é essencialmente um proces.'Hts e, no meu particular modo de ver, um processo de compreensão normativa de fatos segundo valôres, desenvolvendo_se segundo uma dialética de implicação e polaridade, ou dialética de complementa­riedade, em virtude da qual o momento normativo se afirma como momento por excelência da vida do direito, mas sem se destacar, como mera fórmula abstrata, dos complexos fáticos e axiológicos a que se referem 29.

Ê a razão pela qual não serão conexões tautológicas que per­mitirão ao intérprete nos dar o significado pleno das normas de direito, cabendo-lhe atender a todos os pressupostos axiológic08 da realidade jurídica, desde os ideológicos aos de ordem religiosa, desde os que surgem sob o impacto da técnica aos que se compõem à luz de exigências estéticas ou sob a pressão de imponderáveis r eclamos da vida cotidiana 30,

Ê claro que, neste trabalho, destinado a discriminar alguns dos pressupostos filosóficos da interpretação, não cabe entrar no exame de cada uma das espécies de pressupostos aXiológicos, como, por exemplo, os pOlíticos, 'Os econômicos, etc., matéria esta per­tinente à Teoria Geral do Direito como tal 31.

o que importa, em suma, é que o intérprete, seja êle jurista, jUiz ou administrador, tenha compreensão dos valôres que gover­nam a ordem jurídica, elevando-se, como diz Del Vecchio, "alle piu profonde regioni deI diritto" 32

29. A meu ver, ninguém sentiu mais do que ASCARELLI, entre os juris­peritos, a concretitude axiológica do processo nonnativo: "A norma jurídica, escreve êle, repousa de um modo ou de outro, sôbre valorações ; é norma de ação, sempre tendente a uma forma de agir: a rigor, por conseguinte, não há jamais um contraste entre norma jur'ídica e tato econômico determinado, como se fõssem dados contrapostos; nem tampouco um problema de direta adequação da norma ao fato. O problema é, ao invés, o da relação entre uma norma historicamente posta, e as valorações e volições atuais e , por isto, também entre norma e sua aplicação, entre norma vigente e norma observada" (Problemi Giuridici, Milão, 1959" t . l, pág. 70). Cf. PASINI ~ op. cit., págs. 63 e segs.

30. Lembro ainda outra lição de ASCARELLI pondo em evidência a com­plexidade da realidade jurídica, "opera complessa, ana quale partecipano tutti i membri della collettività e sulla quale influiscono t utti i fattori della vita sociale, ora in armonia, ora in contrasto . .. abiti a volte incoscienti e orientamenti precisi e teleologici , necessità economiche ed esigenze morali, concezioni religiose e orientamenti di política economica, coscienti e precisi sforzi di gruppo e pratiche seguite senza la coscienza delIa 10ro origine e deI loro originario significato" (ASCARELLI _ Studi di Diritto Compara to e in Tema di Interpretazione, Milão, 1952, págs. 56 e segs.l.

31. CARLOS COSSIO - La Opinion Pública, Buenos-Aires, 1958, págs. 151 e segs.

32. DEL VECCHIO ~ Pa1'6rga, Milão, 1961, pág. 41.

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Ensa i o Xl

EXPERffiNCIA MORAL E EXPERIÊNCIA JURíDICA (*)

SUMÁRIO: I - Duas perspectivas do problema. II - Sentido da subjetividade da Moral e da objetividade do Direito. III -­A moralidade do Direito. IV - Os corolários da atributividude.

I

DUAS PERSPECTIVAS DO PROBLEMA

§ 1. Se analisarmos o prohlema das relações entre moral e direito seg1..Uldo a perspectiva histórica que se delineia a partir de Thomasius e Kant até nossos dias, verificaremos que o pr-imitivo contraste pãsto entre a experiência moral e a jurídica,no fim do século XVIIT e na primeira metade da centúria passada, veio pro.. gressivamente se abrandando, até surgirem tentativas.· de identifi~ cação, sobretudo na área da filosofia idealista, a qual . teve o irre­cusável mérito de suscitar a atenção dos estudiosos tanto para · o que une como para o que distingueaquelasduasforl11as da vida humana.

Esta observação visa, preliminarmente, a esclarecer que as relações entre moral e direito não devem ser estudadas in abstracto) como se se tratasse de duas · figuras geométricas suscetíveis de serem referidas uma à outra segund() proporções ideais, tal · como se cuidou fazê-lo com as conhecidas ... imagens dos círculos · concên­tricos ou secantes. Tais configurações, além de seu relativo alcance pedagógico, valem, no máximo, como linhas de referência, assina­ladoras de momentos de uma correlação que só pode ser compreen­dida in concreto) em função dos diversos ciclos culturais.

Poder-se-ia dizer que cada época histórica sente a necessidade de pôr, a seu modo, o problema discutido no presente trabalho,

(*) Trabalho redigido a convite da Comissfro Organizadora do VII Congresso Interamericano de Filosofia (IV da Sociedade Interamericana de Filosofia) debatido no simpósio realizado em Quebec, de 18a 23 de junho de 1967, sôbre "As relações entre a Moral e o Direito", aqui publicado com expressa a utorização dos promotores do certame.

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2.62 MIGUEL llEALB

assim como tenta resolvê-lo de conformidade com o quadro de valôres que a informa, no qual as soluções apresentadas se tornam elementos relevantes para a determinação de seu próprio sentido espiritual. Não se compreenderia, com efeito, o afinco de Tho­masius, Kant ou Fichte em apontar diferenças e até mesmo anta­gonismos entre o mundo moral e o jurídico, se fizéssemos abstração das circunstâncias especiais em que as suas meditações se desen­volveram. Certas colocações por êles feitas, que parecem dema­siado exacerbadas e agudas aos olhos do homem contemporâneo, adquirem um sentido construtivo quando vistas em função do destino humano, naquele momento crucial de sua trajetória, im­pondo-se-nos o reconhecimento de que aquêles pensadores tiveram em mira preservar, através de suas rígidas distinções, a autonomia intocável dos valôres da subjetividade contra as possíveis agressões da ordem jurídico-política constituída.

Da mesma forma, certas identificações posteriores entre a moral e direito, visando a reduzir êste àquela ou vice-versa, pren­dem-se a variáveis circunstâncias históricas, quando não a contin­gentes motivações políticas, como se dá, por exemplo, quando se quer legitimar, de antemão, as decisões do Estado, concebido como mero aparelho ou instrumento de ação de uma classe, de uma raça ou do povo miticamente concebido como totalidade ética.

§ 2. A correlação ora feita entre o problema das relações entre moral e direito e as variáveis mutações históricas teve por fim demonstrar ser êle inseparável das concepções dominantes sô­br:e ° individuo e a sociedade,o povo e o Estado, envolvendo, na realidade, tôda a complexa estrutura axiológica em vigor, em cada sistema cultural, razão pela qual os assuntos se acham íntima e essencialmente implicados em distintas "totalidades históricas de sentido", correspondentes a diferentes condições humanas.

Tais considerações nos previnem contra a tentação natural de colocar o problema aqui examinado em têrmos de puro dever ser, passando-se a cogitar das relações entre um tipo de ' moral idealmente concebido, e um direito dotado de igual idealidade. A questão, situada dessa forma, perderia tôda e qualquer consistên­cia, inclusive pela impossibilidade de acôrdo quanto ao que possa ou deva ser considerado a moral ou o direito "em si" , como reali­dades ontológicas ou expressões do absoluto que nos transcende.

S 3. Não se pense, todavia, que pelo fato de correlacionar a questão ora estudada com as coordenadas do processo histórico­-cultural da experiência humana, seja eu partidário do relativismo histórico, não admitindo a possibilidade de relações ou distinções entre o direito e a moral a não ser segundo um critério pragmá­tico de efetividade, ou seja, tão-só em função da intensidade da coação social correspondente aos comportamentos efetivamente se-

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 263

guidos em dada comunidade e em dada época. Um neopositivista poderá assim pensar, não admitindo que possam ter sentido per­guntas que não se refiram às relações prováveis entre os compor­tamentos efetivos dos indivíduos pertencentes a determinada socie­dade, em função da existência de certas regras de conduta que se reputem "morais" e outras que se considerem "jurídicas", levan­do-se em consideração os possíveis estímulos ou influências que umas e outras possam exercer sôbre as consciências a que se des­tinam: tudo se resolveria, a final, numa apreciação de alcance estatístico, dependentes de prévias convenções lingüísticas, e com base na análise dos resultados observados, segundo os critérios que informam as pesquisas de ordem psicológica ou sociológica.

Tal colocação do problema, de fundo marcadamente nomina­lista, na qual se dá às regras morais e jurídicas um valor pura­mente convencional ou lingüístico, não leva em conta um fato tão irrecusável como a correlação existente entre o cumprimento da­quelas regras e as mutáveis condicionalidades históricas: refiro-me ao fato de que, não obstante tôdas as variações verificadas na história, algo possibilitou aos homens não só reconhecê-las como jurídicas ou morais, mas também se empenharem por elas.

Contra tôdas as soluções de tipo nominalista fica de pé a verificação de que, por mais que se renovem os horizontes da experiência social, o direito e a moral continuam sendo realidades históricas inamovíveis, que ora se correlacionam, ora se antagoni­zam, ora tendem a se contrapor, ora a se confundir, ressurgindo sempre a intuição ou a consciência crítica de que ambos sedis­tinguem e se correlacionam em função de algo conatural ao ser do homem e às estruturas da convivência social.

:É a essa luz que, no e do plano mesmo da experiência histó­rica, surge um problema essencial, o das "condições transcenden­tais" que fazem do direito e da moral duas formas de vida, dis­tintas mas complementares, não havendo incompatibilidade lógica em se reconhecerem, concomitantemente, a tmiversalidade de sua correlação, e a sua condicionalidade hist6rica. A rigor, esta pres­supõe aquela, pois, quando se fala em história ou em processo histórico, não se alude a um encontro fortuito de acontecimentos particulares, discerníveis apenas em virtude de valôres lingüísticos convencionais e extrínsecos, mas antes se reconhece que, no com­portamento coletivo da espécie humana. mesmo os atos morais e jurídicos mais antagônicos ou contraditórios significam pelo me­nos uma tentativa incessante de atingir certos valôres considerados essenciais à afirmação do espírito perante si mesmo e a natureza.

Perfilam-se, dêsse modo, dois planos distintos e complemen­tares para uma análise em profundidade das relações entre · a moral e o direito: o plano transcendental das suas "condições de possibi­lidade" (tomado o têrmo "transcendental" na amplitude que lhe

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264 MIGUEL REALE

dá a fenomenologia de Husserl) e o plano empírico-positivo de sua co~dicionalidade histórica.

, Donde se conclui que, no meu modo de ver, as perguntas do filósofo do direito' não se situam numa esfera indiferente às per­plexidades, alternativas e exigências existenciais inerentes à vida prática do advogado ou do juiz, ou nos quadnmtes da ciência positiva do direito, pois a pesquisa filosófica e a '. científica devem se desdobrar segundo momentos complementares, os resultados de uma ' influindo sôbre a outra, quer suscitando problemas novos, quer entreabrindo novas soluções para velhos problemas.

II

SENTIDO DA SUBJETIVIDADE DA MORAL E DA OBJETIVIDADE DO DIREITO

§" 4. Assentes a distinção e a correlação dos dois planos de investigação supra referidos, penso que, para a determinação da natureza das relações entre moral e direito, temos duas principais vias de acesso, que se encontram e se confundem no final da traje-

, tória: uma é a da análise fenomenológica da experiência ética atual; a outra é a da investigação crítico-histórica dessa experiên­cia, tal como já se encontra refletida no processo das idéias e teorias l •

Digo que uma conduta é ética quando se subordina a certas regras, cUja obrigatoriedade resulta de algum valor, cujo adimple­mento é suscetível de ser reconhecido como um bem tanto por quem age como pelos demais homens, com a consciência, outros­sim, do valor intrínseco do seu e do alheio empenho em realizá-lo. Quando um valor é objeto de compreensão racional, pondo-se obje­tivamente como motivo bastante da conduta, temos o que deno­mino fim. Deve-se .notar, porém, que só é necessária a conversão da axiologia em teleologia em ' determinadas formas de conduta ética, como, por exemplo, na hipótese da experiência jurídica.

Na conduta ética há, pois, uma vi:nculação da consciência do agente a algo que não só determina o ato como o legitima ou lhe

1. Nos limites desta comunicação, não posso senão,' enunciar essa tese da convergência entre a análise fenomenológica e a reflexão crítico-histórica, pedindo vênia para remeter o leitor ao que exponho sôbre o assunto em minha Filosofia do Direito, São Paulo, 4.' edição, págs. 318 e segs. Em HUSSERL, diga-se de passagem, as duas vias ainda permanecem distintas, mesmo nas páginas de sua obra póstuma Die Krisi8 der europli'ÍSchen Wi8sens­chaften und die tranzeendentaZe Phiinomenologie, ed. de Wálter Biemel, 1954, onde o problema da relação entre fenomenologia e história é mais vivamente sentido.

o DlI:ElTO COMO EXf>ECUb;"CL\ 265

dá validade, assim como implica padrões de referência segundo os quais os comportamentos são discrimináveis em eticamente posi­tivos ou negativos.

Desenvolvendo-se a conduta ética sempre em sociedade, tôdas as suas formas são ôntica mente sociais: pressupõem um indivíduo situado em relação com outros indivíduos, ou um'a pluralidade de pessoas. A afil'maç5.o mesma de meu cu pressupõe, 'para"distin­guil'-me e afjrmal'-m(~ corno ((diverso de alguém", a pessoa do cUÍl'O: a !JCssoa do próximo é, em suma, uma presença essencial à tomada de consciência de minha própria diversidade pessoal, podendo-se dizer que é o outro que me constitui, como eu o cons­tituo, nesse comum constituir-nos que é a vida social e histórica.

O "eu" e o "outro" estão, por conseguinte, sempre presentes em qualquer modalidade de experiência humana, de tal sorte que, sendo a pessoa a raiz da vida ética, esta surge, desde as origens, sob o signo da bilateralidade. Mas, -, e é aqui que surge o pune­tum saliens da questão, - não é dito que o "eu" se correlacione sempre com "o outro" segundo as mesmas exigências axiológicas.

Se a vida do espírito é por sua natureza bilateral, - tal como vem sendo reconhecido desde Hegel a " Husserl e a Heidegger, e é verdade prevalecente no pensamento contemporâneo ' - , se dizer espírito é dizer "intersubjetividade", isto não quer significar que as relações entre sujeito e sujeito se concluam sempre em virtude de vinculação a uma mesma ordem de valôres, ou que, mesmo sendo esta igual, elas se realizem de maneira ' uniforme. Expli­cam-se, assim, as diferenciações do valor do bem discerníveis nos domínios da ética, onde se discriminam pelo menos quatropossi­bilidades de conduta: a religiosa, a moral,. a costumeira " (as cha-madas "convenç-ões sociais") e a jurídica. ' '

§ 5. Na conduta religiosa autêntica o sujeito agente não se põe perante os outros sujeitos, nem a êles se co.ntrapõe, mas, de certa forma, procura desprender-se dêles, evadir-se do social, em atenção a algo pressuposto como qistinto dos valôres dacon­vivência, isolando-se na intimidade de ' sua consciência, para nela vislumbrar um valor que o transcende como ' "indivíduo", ou seja, como membro integrante do "social", Nesse sentido observa Max Weber .que "a conduta íntima só é social quando orientada pela ação de outros. Não o é, por exemplo, a conduta religiosa quando não é mais que contemplação, oração solitária, etc." 2.

Poder-se-ia dizer que, no ato de religiosidade, a bilateralidade transcende o social, para se pôr em absurda relação com o absoluto, que é o que não tem alter, nada sendo concebível como sendo o

2. MAX WEllER, Economícb y Socíedad, trad . de Echevarria, México, 194'1, t. l, pág. 21.

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seu igual ou análogo: absurdo no plano lógico, é .daro, não no da fé, à cuja luz a "bilateralidade" tem outras razões de medir. É o motivo pelo qual, o ato religioso é, essencialmente, uma entrega que o crente faz de si, um dar-se como condição de compreensão, um subordinar-se como ra:zão de conquista estimativa, o que mostra a sua profunda analogia com as mais altas e sublimes formas de

dedicação amorosa. Já na conduta moral não há essa fuga do social, embora se

dê outra forma de individualização ou de reflexão da consciência para ou sôbre si mesma: o agente moral não se abstrai do social, mlls antes o subordina ao ângulo estimativo de sua subjetividade. a · ato moral é um pôr-se perante o outro, ainda quandO se resolve em dedicação e entrega; até mesmo quando envolve o sacrifício de si em favor do próximo. É que, na conduta moral, o que é pra­ticado remonta a uma fonte e ra:zão determinante, que é a inten­cionalidade do agente} a espontânea e livre opção de um homem em função de seus próprios sentimentos e princípios.

Mister é reconhecer que, em tal caso, sentimo-nos socialmente ligados por nós mesmos. A direção que seguimos brota do que h~ de mais singular e recôndito em nossO ser. Praticamos deter­minado ato e sentimos que é reflexo ou expressão de nossa perso­nalidade, e que, por conseguinte, o motivo de nosso agir se põe radicalmente em nós. A instância última do agir é o homem na sua subjetividade consciente. . Quando a ação se dirige, pois, para um valor, cuja instância é dada pela própria subjetividade, nós estamos diante de um ato de natureza moral.

O que distingue a conduta moral é esta pertinência do ato à estimativa do sujeito mesmo que age. Até certo ponto, poder-se-ia dizer que, no plano da conduta moral, o homem tende a ser o legislador de si mesmo. Não é necessário que êle tenha pôsto a regra que cumpre, porque basta que a tenha tornado sua. QuandO o nosso comportamento se conforma a uma regra moral, e nós a recebemos espontâneamente como regra autêntica e legítima de nosso agir, o nosso ato é moral. É dispensável, outrossim, que a recepção da regra moral seja o resultado de uma pura compreen­são "radonal": _ basta que haja receptividade, que pode ser espontânea e natural, como a do homem rústico que jamais teve noção do "significado" de uma norma. A conformidade "racional" e deliberada do ato à regra é exceção: - no comum dos atos morais, vive-se a regra em seu sentido pleno e espontâneo, tal como se oferece à consciência na riqueza de seus motivos e

atrações. O que importa, pois, é que haja sempre recepção e assenti­

mento. Ninguém pode praticar um ato moral pela fôrça ou pela coação. A Moral é incompatível com qualquer idéia ou plano de natureza coercitiva, quer de ordem física, quer de ordem psíquica.

~

o DIREITO COMO EXPERlf;NCiA 267

No ato moral é essencial a espontaneidade, de tal maneira que a educação para o bem tem de ser sempre uma · transmissibili­dade espontânea de valôres, uma adesão ao valioso sem qualquer subordinação capaz de violentar a vontade ou a personalidade.

Neste ponto, Kant viu certo, quando pôs em evidência o elemento de espontaneidade no mundo moral, mas sacr ificou, de­vido ao seu racionalismo formal, outras vias de espontaneidade não menos puras do que as abrangidas pela razão pura prática.

Pois bem, a idéia de pessoa como valor fundamental brota do reconhecimento do homem como um ser que deve ser autênti­camente si mesmo. O homem é pessoa enquanto age com fide­lidade à sua subjetividade, na totalidade de seu ser irrenunciável, sem se alienar a outrem. O indivíduo é o homem enquantp cau­salmente determinado; mas a pessoa é o homem enquanto! capaz de se propor livremente fins, como motivação íntima.

Por outras palavras, o homem enquanto mero indivíduo, como ser puramente biológico, não foge a liames determinados causal­mente, só superando o plano estritamente naturalístico quando se põe como instaurador de valôres e fins. a homem, visto na essên­cia de sua fi~alidade universal, é pessoa} isto é,umser com lJO$si­bilidade de escolha constitutiva de valôres.

§ 6. Ao lado das condutas religiosa e moral, - nas quais a bilateralidade se polariza no sentido da subjetividade -, temos outras duas formas de conduta ética, nas quais a bilateralidade se polariza no sentido da objetividade do social: são as condutas costumeira e jurídica.

Por conduta costumeira entendo a que se conforma a regras de usos e costumes, de etiquêta ou de "convenção social". Nela o que prevalece é a conformidade extrínseca a consagrados padrões sociais de agir, numa adequação exterior, que pode não traduzir fidelidade aos valôres aos quais aparenta obedecer.

a que na experiência meramente costumeira sobreleva éa exterioridade do comportamento. Não se contesta, é claro, a possibilidade de, nesse domínio, haver espontaneidade e sinceridade, ciência e consciência de sua legitimidade, mas êstes não são re­quisitos essenciais.

Se pensarmos, por exemplo, nos gestos de cortesia, fàcilmente se compreende que tanto é cortês, no sentido de ter cumprido a regra, aquêle que aperta a máo de outrem, com sinceridade, como quem o faz por simulação. Aliás, os hipócritas são dos que mais se esmeram em cumprir as regras de etiquêta com minudência, em todos os seus matizes e variações.

Há, pois, nesse domínio das regras de costume ou convenção social, uma nota dominante de exterioridade, porquanto a pauta

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268 MIGUEL REALE

do julgamento, a instância axiológica do agir, é dada mais pela . pessoa do outro do que por nossa própria pessoa. Pode haver coincidência entre nossa sinceridade e nosSo agir, mas o elemento intencional, em tal caso, é acessório: - o ato de cortesia ou de gentileza subsiste, desde que a exterioridade do gesto ou do com-portamento seja satisfeita.

A meu ver, portanto, esta relação de um homem a outro de uma forma exterior, sem significar uma proporcionalidade entre ambos, representa uma característica das ações convencio-nais, ou do "costume" em geral.

É evidente que pode haver conflitos, tal como no exemplo apontado, entre a consciência moral e o comportamento costu­meiro, por ser essencial àquela a íntima e sincera adesão da vontade ao . valor determinante da ação, mas, de qualquer forma, a não obrigatoriedade compulsória ou coercível, ou seja, a não exigibi­lidade efetiva dos deveres costumeiros torna menos agudos os possíveis contrastes entre a moral e o costume. Nem é de se excluir que possa haver coincidência ou harmonia entre uma e outro, fato que deveria constituir a regra e não a exceção.

Em se tratando, porém, da conduta jurídica,! na qual a obje­tivação social do liame intersubjetivo é típica, o pIioblema apresenta conhecidas dificuldades, pois, de um lado, é imprescindível pre­servar os valõres da subjetividade, aquilo que constitui o núcleo individualizador de cada pessoa, e, de outro, é necessário, conco­mitantemente, salvaguardar a coexistência harmônica e pacifica das subjetividades, ou a ordenação objetiva das relações entre tôdas as pessoas, o que não pode ser obtido sem a disciplina da liberdade, e o recurso a processos compulsórios de respeito mútuo.

O que pode variar, como já observei, é o quadro dos bens tutelados pelo jus, a respectiva escala de prioridades, ou os meios de ação, mas, onde quer que houver convivência humana, aí haverá necessàriamente essa bilateralidade específica, - peculiar ao di­reito _ que consiste em ligar dlW8 ou mais pessoas entre si em sentido de totalidade objetiva, atribuindo a cada uma delas, con­comitante e proporcionalmente, faculdades ou podêres de agir, que podem ser recíprocas ou não: a essa forma de enlace intersub­jetivo denomino {(bilateralidade atributiva".

O que a distingue, por conseguinte, é a nota de atributividade) pela qual as partes se proporcionam umas às outras; cada uma delas se proporciona ao todo social e, por sua vez, o todo a elas se proporciona. Uma {(totalidade de pessoas" só pode se constituir com base na atributividade do que é devido a cada subjetividade; jamais poderá ser uma totalidade unitária e granítica, na qual se dissolvam as prerrogativas dos indivíduos como tais.

Cabe ainda salientar que, na experiência bilateral atributiva, isto é, na experiência jurídica, a valoração do ato praticado não

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o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 269

se subordina ao prisma estimativo isolado de um só dos sujeitos da relação, mas sim aos de todos os que dela participem. O devido, por exemplo, em um contrato de C'ompra e venda é determinável em função das pretensões complementares e recíprocas · de quem compra e de quem vende: a razão de medir do ato não é, pois, subjetiva, mas intersubjetiva) dando nascimento aum liame obje­tivo que subordina a si o querer de ambas as pessoas obrigadas. O mesmo se dá, embora com características diversas, nos demais setores da experiência jurídica, o que nos permite afirmar que, no fundo, o direito pode ser reduzido ao espírito como concreta inter­subjetividade.

Donde afirmar eu que, - do ponto de vista da valoração do ato - , o direito é axiologicamente bilateral, como conseqüência de ser a valoração do ato, sob o prisma jurídico, transubjetiva; e que a moral é axiológicamente unilateral) uma vez que o juiz últi­mo do ato moral é a consciência mesma do agente : ontologicamen­te) todavia, como atividades espirituais, bilateral é tanto amoral como o é o direito.

Compreende-se, ante o exposto, por qual razão me parece insuficiente caracterizar o direito como "bilateral", visto ter re­conhecido ser a bilateralidade inerente . a todos os planos d~ vida ética: sem a nota especifica da atributividade, não se atinge a essência da distinção entre a moral e o direito, distinção que também põe em evidência a correlação essencial entre uma e outro. .

III

A MORALIDADE DO DIREITO

§ 7. Reconhecida a bilateral idade como uma qualidade ine­rente a tôda a vida ética, mister é, com efeito, distinguir dois prismas ou instâncias no problema da alteridade: em ·· um primeiro caso, a instância valorativa reside na pessoa do agente, que· é a medida do ato, embora deva pôr-se necessàriamente em relação com outrem (bilateraZidade correspondente à instância subjetiva, não obstante a inevitável socialidade de tôda a vida espiritual: é o campo da moral); no outro caso, a validade da relação decorre de sua "coordenação objetiva", superando o ego e o alter e envol­vendo-os em um nexo comum, em razão do qual são possíveis entre os participantes pretensões reciprocas ou não (bilateralidade de instância transubjetiva, ou, como prefiro denominá-la, bilaterali­dade atributiva, a específica do mundo jurídico)3.

Dir-se-á que a nota axiológica da atributividade, aqui lem­brada para caracterizar a experiência jurídica, já se continha,

3. Para maiores esclarecimentos sôbre a distinção entre bilateralidade em sentido ôntico e axiológico, v. MIGUEL REALE, op. cit., pâgs. 348 · e segs.

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270 MIGUEL REALE

embora subentendida, na antiga teoria da bilateralidade ou alte· ridade, tal como veio sendo elaborada desde Platão e Aristóteles até os 'nossOS dias, primeiro com referência à idéia de justiça e, mais modernamente, quanto ao conceito mesmo de direito. Creio, no entanto, indispensável trazê-la à plena luz, frisando-lhe a im­portância, por tratar-se de uma qualidade que, levando na devida conta os laços que acomunam moral e direito, permite-nos também distingui-los entre si.

Em verdade, a vida jurídica só aparentemente se afasta da subjetividade quandO se põe como ordem heterônoma e coercível. Essa aparência de divórcio entre moral e direito é devida a um erróneo conceito de heteronomia e de coercibilidade, concebidas indevidamente como se fôssem notas características e originais do direito, quando, na ' realidade, são ambas redutíveis ao conceito de bilaterlÍlidade atributiva, como logo mais se verá. A objeti­vação normativa e coercivel da experiência jurídica não equivale ao aniquilamento da espontaneidade moral: ao contrário, ela tem por fim a ordenação objetiva das relações sociais, pelo menos como intencionalidade .e renovada tentativa de preservar a subje­tividade mesma, permitindo que o espírito se revele em múltiplas e até mesmo conflitantes formas de vida.

Os processos de objetivação normativa poderão variar de um ordenamento jurídico para outro, mas talvez seja possível dizer-se que a linha ideal do desenvolvimento histórico do direito se projeta no sentido de uma objetividade jurídica ideal, daquela que mais possa realizar socialmente os valôres da subjetividade, em ex­tensão e profundidade. Na conjuntura de nossos tempos, são as "sociedades plurais" as que se mostram mais fiéis a êsse sentido deontológico da história, como penso ter demonstrado em meu livro Pluralismo e Liberdade.

A esta altura já se vê que é na natureza mesma do homem, _ o único ente que originàriamente é enquanto deve ser) - que se deve buscar a fonte da vida ética, condicionando, transcenden­talmente, as diversas experiências axiológicas que compõem a tessitura da sociedade e da história. Se o homem não é concebível sem os va,lôres que o inspiram, e se a todos os homens tem de ser assegurada a possibilidade de serem o que moralmente "devem ser", a SUbjetividade da pessoa e a objetividade de uma ordem social de pessoas surgem como valôres distintos, mas complemen­tares: é no conceito de "bilateralidade atributiva" que vejo con­cretizar-se êsse nexo de distinção e complementariedade, através do processo dialético de implicação-polaridade que governa as ex­periências moral e jurídica.

Essa complementariedade essencial é posta pela idéia mesma de pessoa humana como valor-f onte) da qual todos os valôres so­ciais promanam, tornando-se compreensivel o que no início dêste t rabâlho assinalei; não somente a possibilidade, mas a necessidade

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 271

de atentar tanto para a universalidade como para a condicionali­dade histórica das relações entre a moral e o direito. 'Se êstes, através dos diferentes ciclos culturais, apresentam uma gama ' va­riada de soluções, tal acontece exatamente por não ser possível coexistência social, moralmente fundada na liberdade, sem a plu- . ralidade que dela decorre.

Tais relações, por outro lado, serão moral e juridicamente legítimas na medida e enquanto se diversificarem dentro dos li­mites resultantes do que se poderia denominar (ta abertura angular axiol6gica da pessoa": o valor da pessoa humana atua como fulcro irradiante de múltiplas experiências éticas, condicionando, "in con­creto", variáveis formas de moralidade e juridicidade, sem que uma possa ser reduzida à outra, muito embora, como muitas vêzes acontece, a mesma ação humana possa atender, concomitantemente, a ambas as ordens de valôres.

Ora, quando dois valôres ou expressões da vida ' humana se põem um perante o outro de tal modo que um não possa, " ou ser concebido ou ser atualizado sem se referir necessàriamenteao outro, e, ao mesmo tempo, se verifica a impossibilidade de serem reduzidos um ao outro, dizemos que há entre êles uma relação dialética de implicação-polaridade ou de complementariedade.

:f';sse concomitante nexo de distinção e complementariedade revela, por outro lado, que muito embora tais valôres incidam sôbre distintos níveis de aç.ão, êles reciprocamente -se ' completam. 1f; assim que o direito, por mais que se expanda como ordenamento objetivo, jamais logrará cobrir todo o campo do social,poisse tudo se subordinasse integralmente às regras jurídicas (a inspira­ção do artista e as formas de sua imaginação criadora; a vocação do sacerdote e a religiosidade dos crentes; a vocação dos cientistas e o sentido de suas pesquisas, etc.) estancar-se-iam,também inte­gralmente, as fontes vivas da subjetividade, e a paz jurídica seria a do espírito esvaziado de liberdade, a de um mundo habitado pela figura fantasma! do "homo juridicus". A moralidade ou o valor moral do direito consiste, como se vê, na fidelidade aos fins da heteronomia e da coercibilidade, cujos limites resultam das ne­cessidades inerentes a coexistência garantida dos demais valôres, no exercício de uma função histórica que já me levou a apontar a justiça como sendo "o valor franciscano", cuja valia consiste em valer para que os demais valôres valham.

IV

OS COROLARIOS DA ATRIBUTIVIDADE

5 8. Como conclusão dêste trabalho, é necessarlO acrescen­tar que pela bilatera!idade-atributiva não ficamos apenas sabendo

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272 MIGUEL REALE

como e por que moral e direito se distinguem e se correlacionam, mas também nos damos conta de por que o conceito de direito implica os de exigibilidade, heteronomia, coercibilidade e prede~ terminação formal, que são "os corolários da bilateralidade atri. butiva".

Sendo a relação jurídica uma relação distributiva ou atribu­tiva, compreende-se e legitima-se moralmente a sua exigibilidade. Em se tendo de aplicar uma regra que se destina a reger atos de pelo menos duas pessoas integradas na "unidade d~ relação", quando uma delas falta ao devido (voluntàriamente ou não, pouco importa) à parte lesada se confere o poder de exigir o qqe lhe compete: o direito atribuído é um direito subjetivo, ao qual corresponde uma ação · que o assegura, inclusive pelas vias da coação.

Na realidade, o direito subjetivo só aparentemente deflui do Estado ou da ordem jurídica coercitiva, como o pretende o estata­lismo jurídico, porque o direito subjetivo e o objetivo são ambos expressões de uma única e mesma experiência ética; o direito subjetivo reflete os valôres morais de cada subjetividade síngula e, sob êsse prisma, nunca deixa de ser um poder · moral,. o direito objetivo expressa as exigências da harmonia necessária entre as subjetividades coexistentes. Resulta daí que na idéia mesma de direito está ínsita a de subjetividade garantida eJ por conseguinte, a de sua intrínseca moralidade; e que os direitos subjetivos, longe de serem · outorgados pelo Estado ou pela socieqade, representam projeções ou atualizações históricas, diversificadas e concretas, da subjetividade transcendental que funda a ordem jurídica positiva.

Ora, a exigibilidade, que se origina da bilateralidade-atribu­tiva, legitima, por sua vez, a possibilidade da coação, ou seja, a coercibilidade dos direitos. Dêsse modo, o princípio de coercibi­lidade não assinala simples conformidade lógica entre direito e coação,mas também uma exigência axiológica: a coação liga-se ao dever ser do direito, pois, quando a norma jurídica primária, que contém o preceito de conduta, não é espontâneamente cum. prida, impõe-se o advento de dadas conseqüências, as quais podem consistir no cumprimento forçado da regra infringida, ou em uma pena correspondente ao valor do direito cuja reintegração se haja tornado impossível.

Compreendida como exigência axiológica do direito, a coação pulsa de fôrça ética, quer ao tornar efetivos, graças a processos vá.rios, os resultados que normalmente derivariam da conduta es~ p6ntânea do obrigado (pela penhora e a hasta pública obriga-se, por exemplo, o devedor a pagar o débito), quer ao se impor ao transgressor uma pena retributiva do mal irremediàvelmente pra~ ticado (a condenação do homicida não restitui, por certo, o bem da vida, mas normativamente faz valer o valor atingido) ,

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 273

Em ambos os casos, a eticidade objetiva do Direito coloca o violador das normas jurídicas em consonância consigo mesmo, não com o seu eu empírico, mas com o eu harmonizável com o alter e o nós, base da juridicidade.

Daí ter-15e dito que o direito é uma espécie de moral objetiva ou o mínimo ético, expressão dúbia que parece olvidar a funciona­lidade essencial que existe e.ntre o mundo moral e o jurídico. O direito não poderá ser jamais a sobra do naufrágio dos valôres morais, aindfi que seja para garantir à sociedade uma desoladora sobrevivência. Mínimo ético só haveria se todos infringissem as regras jurídi~as e Só um homem restasse em condições de aplicar a sanção, mas acontece que, ao ser aplicada a sanção, ressurgiria, em tôda a inte.nsidade, a fôrça dos valôres éticos, o que demonstra a solidariedade da vida espiritual.

§ 9. Optra decorrência da atributividade é a predeterminação formal do direito. De tôdas as espécies de experiência social, o direito é a Gue mais exige forma predeterminada e certa em suas regras. Não se compreende o direito, hoje em dia, sem um mínimo de legislação escrita, de certeza, de tipificação da conduta e de previsibilidade genérica. Isto porque ° direito, 8.'0 facultar-lhe a possibilidade de escolha entre o adimplemento ou não qe seus preceitos, situa o obrigado no âmbito de uma escolha já . objeti­vamente feita pela sociedade, escolha esta revelada através de um complexo sistema de fontes. Mesmo nos países onde vigora o "common law" , as normas jurisdicionais e consuetudinárias reves- ­tem-se de categorias formais; a diferença que existe com referência à tradição romanística, não está na certeza da juridicidade, ·· que a todos os sistemas acomuna, mas sim no que tange ao processo ou à gênese dos preceitos. O direito, portanto, exige predeterminação formal, sendo a lei a expressão máxima dessa exigência, o que explica seu êxito em confronto com os usos e costumes.

A certe7,a do direito vai até o ponto de exigir a constituição de um poder do Estado, cuja finalidade precípua é ditar, em con­creto, o sentido exato das normas. Ligada, portanto, ao princípio da certeza do direito, temos a compreensão mesma da função ju­risdicional.

Não existe, na esfera moral, a predeterminação formal das regras, ou órgãos destinados a declarar o seu conteúdo real, como se verifica no mundo jurídico, onde, aliás, a tipicidade normativa não deve ser reconhecida apenas nos domínios do direito penal. Lembre-se, por exemplo, que ninguém pode ser punido a não ser em virtude de crime previamente definido. É impossível que o julgador, no momento de aplicar a pena, seja, ao mesmo tempo, legislador e juiz. A predeterminação da figura delituosa é, abso­lutamente, indispensável. A mesma coisa acontece, de uma forma ou de outra, em todos os setores da Jurisprudência. É por êsse

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2T'1 MIGUEL REALE

motivo que se pode chegar à seguinte conclusão: o direito positivo de um povo deve ser considerado pleno, sem lacunas, não estàti~ camente, entendamo-nos, mas in acto, em processo, como "orde-namento" e não como mero "sistema de regras". /

Pois bem, a apontada exigência de tipicidade ou de predeter~ rninação formal no mundo do direito é um corolário da bilatera­lidade atributiva, em virtude da qual é possível obter-se pela fôrça o respeito às pretensões e prestações juridicamente válidas. É natural, com efeito, que cuidadosa e prudentemerte se certifique o direito, sem apêgo a fórmulas estereotipadas . e inúteis, mas também sem horror descabido à forma que lucidamente enuncie o lícito e o ilícito, a fim de prevenir e evitar os abusos e distorções do poder.

A moral, fundada na espontaneidade e insuscetível de coação, pode dispensar a rigorosa tipicidade de seus imperativos, que, aliás, não devem, por sua natureza, se desdobrar em comandos casuís­ticos. O direito, ao contrário, prevendo e discriminando "classes de ações possíveis", deve fazê-lo com certo rigor sistemático, numa ordenação a mais possível lúcida de categorias e esquemas nor~ mativos. Não passa de contraposição abstrata a que é feita, por exemplo, por Viehweg, entre saber problemático e saber sistemá~ tico, excluindo êste indevidamente do campo do direito.

O fato inegável de ser a experiência jurídica incompatível com meras explicações lógico-dedutivas, - válidas mais para o suporte ideal ou proposicional das regras de direito do que para o seu conteúdo -, não elimina a compatibilidade entre problematicidade e sistematicidade, desde que esta seja entendida na concretitude do evolver histórico, com as aberturas e inovações inerentes ao processo de dever ser.

A apontada exigência de predeterminação formal resulta, aliás, de um fato de grande alcance: nas normas jurídicas os valôres se expressam propriamente como fins, isto é, como algo que passou do plano da axiologia para o da teleologia, a qual se caracteriza por ser o estudo das relações dos fins (valôres na me­dida e enquanto determinados racionalmente como objetivos da ação) com os meios idôneos à sua garantida consecução. O direito não se processa, em suma, segundo valôres genericamente atuantes na consciência, - tal como às vêzes ocorre no plano da vida moral - , independentemente de qualquer compreensão racional específica. Na experiência jurídica, ao contrário, as valorações se concretizam, normalmente, em esquemas racionais de condutas típicas, a que correspondem conseqüências não menos típicas. A teleologia jurídica, que governa a história do direito positivo, pressupõe, porém, a axiologia jurídica como sua condição trans­cendental de possibilidade.

o lillUélTO COMO EXl"E/:IF:l>:CIA 275

§ 10. Em conclusão, tendo como fulcro o conceito de bila­teraJidade atributiva, seja-me permitido relembrar aqui a sistema­tização ele critérios distintivos entre a moral e o direito, sob o tl"Íplice ponto de vista da valoração do ato, da forma, e do conteúdo, conforme o seguinte esquema, constante de minha Filosofia do Dircito:

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Direito Moral

Bilateral atribu- a) Unilateral 1) Quanto à I tivo valoração b) Visa mais à in-do ato b) Visa mais ao tenção, partindo

ato exteriorizado, da exteriorização partindo da in- do ato. TIelações tenção.

entre c ) Pode '" he",õ~ I ,) Nunca heterôno· nomo. ma.

direito d) Coercível. d) Incoercível 2 ) Quanto à e) Especificamente e) Não apresenta e fo rma preterminado e igual predetermi_ certo, ass im co- nação tipológica. moral mo objetivamen-te certificável.

f f) Vi" d, rn""i" I f) Visa de maneira

3) Quanto ao imediata e preva- imediata e pre-lecente ao bem valente ao bem objeto ou social, ou os va- individual, ou os conteúdo l lôres de convi- valôres da pessoa, vência.

Do quadro acima, à luz do que foi exposto neste trabalho, pode-se concluIr que as determinações do direito, como tôdas as formas de objetivação da experiência social, só valem em função das subjetividades de que se originam, das fontes de valor das quais promanam.

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Ensaio XII

PENA DE MORTE E MISTÉRIO «)

SUMÁRIO: I - o problema da morte na consclencia contempo­rânea. II - A morte e o conceito racional de pena. IH - A morte à luz da Filosofia existencial: Sêneca, Agostinho, Heidegger e Sartre. IV - O absurdo da morte na gradação das penas.

Omnia mors poscit. Lex est, non poena, per1r6.

SftNECA

I

O PROBLEMA DA MORTE NA CONSCIÊNCIA CONTEMPORÂNEA

§ 1. Em 1935, no apogeu da Escola Técnico-Jurídica, Vin­cenzo Manzini escrevia : "A questão da pena de morte, apesar de ter dado lugar a intermináveis e tediosíssimas diatribes por parte de filósofos e çle pseudojuristas, não é nem questão filosófica, nem jurídica. Os argumentos que se aduzem a favor ou contra a pena de morte não são sequer racionalmente decisivos, quer num sentido, quer no outro, e ainda menos o podem ser jurldicamente, visto não haver outro direito além do constituído pelo Estado. A questão da pena de morte é meramente política, porque somente pode ser decidida segundo critérios políticos".

A seguir, após lembrar a lei de 1926, que restabelecera a pena de morte na Itália, acrescentava o ilustre penalista: "O efeito foi tão maravilhoso que ficou patente a fatuidade dos so­fismas daqueles filósofos que pretendem demonstrar a inutilidade da pena de morte" I.

(*) Apesar de não se enquadrar propriamente na Epistemologia Juridica, penso que o presente trabalho. - escrito especialmente para o Colóquio rea­lizado pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, para comemorar o primeiro centerlário da abolição da pena de morte em Portugal, - esclarece alguns dos problemas versados neste livro. Consigno aqui meu agradecimento aos mestres portuguêses pelo honroso convite que me fizeram.

1. MANZINI - Istituzioni di DiTitto Peruile Italiano, 5.' ed. , Pádua, 1935, págs. 213 e sego

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278 MIGUEL ItEALE

Não obstante o curto tempo decorrido, essas palavras adqui­riram uma estranha ressonância, tais as mutaçõe~ profundas por que passou a humanidade nestas últimas três décadas, projetando o problema da morte para o primeiro plano das meditações dos filósofos, irradiando-se poderosamente pelos quadrantes da arte e da literatura. Apesar da solidariedade que governa o mundo dos valôres culturais, não se pode dizer, todavia, que a nova pro­blemática tenha tido igual repercussão no campo do direito, o qual é pouco propício aos movimentos que parecem se afastar das linhas tradicionais da medida e da prudência. Há, porém, sinais de que os juristas, e não apenas os jusfilósofos, já se aperceberam da sem razão dêsse alheamento, não podendo a Ciência do Direito, como compreensão normativa da experiência social, deixar de prestar atenção aos novos aspectos oferecidos sôbre a vida humana que ela procura dimensionar. A idéia, aliás, de realizar um sim­pósio para comemorar-se o primeiro centenário da abolição da pena de morte em Portugal, - a segunda Nação, salvo engano, a fazê-lo, mas a única que soube manter desde entãq inquebrantável fidelidade ao princípio exemplar, - não possui mero sentido de comemoração ocasional, mas reflete antes, em tôda a sua inten­sidade, a renovada presença do grave problema na consciência universal.

Não resta dúvida que, no plano dos fatos, a vigência ou não da pena de morte depende de critérios políticos, mas o problema é, em si mesmo e a um tempo, filosófico e jurídico, por seu conteúdo e pelas implicações que suscita na experiência social. O ato do legislador, instituindo a pena de morte, não tem o efeito de legi­timá-la, indiferente às "diatribes" dos filósofos, e como se só res­tasse aos juristas o trabalho acessório de estudar os processos téc­nicos postos pela invencivel determinação normativa: ao contrário, a opção do órgão soberano do Estado, no instante mesmo em que instaura ou reinstaura a pe.na de morte, põe o problema de sua legitimidade. Poder-se-ia dizer, parafraseando conhecido dito de Rosmini, que é então que o problema brilha com esplendor insólito.

Ora, quer parecer-me que a nova consciência problemática da morte, tão densa e até desesperadamente vivida no seio da filosofia existencial, e que já agora parece se qrientar segundo diretrizes mais achegadas à concretitude da existência humana, não tem sido devidamente levada em conta, por jusfilósofos e juristas, no tocante à compreensão da questão particular da pena de morte.

Há todo um estudo a fazer-se quanto à colocação da questão da pena de morte à luz das meditações de Dilthey ou de Simmel, de Max Scheler ou de RiIke, de Heidegger ou de Jaspers, de Sartre, de Ortega ou de Gabriel MareeI sôbre o significado da morte no plano existencial. Seria, porém, tarefa incompatível com os limites naturais de uma comunicação, que, em princípio,

o DmEITO COMO EXPERleNCIA 279

deve se destinar a dar conhecimento dos resultados de uma pes­quisa pessoal sôbre determinado assunto.

É a razão pela qual, no presente trabalho, vou limitar-me a focalizar a matéria sob um ângulo especial, -que pressupõe, p·or certo, a temática existencial, nascendo, por assim dizer, de suas exigências proQlcmúticas, mas com a finalidade estrita de uma análise da questão sob o ponto de vista exclusivo da possível com­patibilidade lógica entre o conceito de pena e o conceito de morte. Trata-se, como se vê, de uma análise que pretende se desenvolver no interior do enunciado "pena de morte", tomando certas posi­ções existenciais como têrmos de referência à elucidação do as­sunto, o que talvez demonstre quanto exagêro há em se extremarem ou se absoluti~rem as colocações da filosofia analítica e da filo­sofia existencial.

II

A MORTE E O CONCEITO RACIONAL DE PENA

§ 2. Nesse sentido, a primeira observação -que se impõe refere-se ao conceito de pena, ou, por melhor dizer, aos conceitos fundamentais de pena que a doutrina nos tem oferecido, tendo em vista a sua natureza e os seus fins. O que me move, em tal análise, é verificar se, não 'obstante as divergências que separam as di­versas teorias, há nelas algo que as vincule a uma base ou a um propósito comum.

De antemão, parece-me que têm sido baldados todos os esfor­ços tendentes a desvincular o conceito de pena do conceito gené­rico de sanção) não logrando êxito os penalistas seduzidos pelo desejo de uma fundação a se do Direito Penal, isto é, totalmente desvinculada da sanção comum a tôda a ordem jurídica. A rigor, a p<>na é a forma própria da sanção correspondente à violação de um preceito penal, entendendo-se por sanção a conseqüência jurí­dica de que é munida tôda regra de direito para salvaguarda de seu adimplemento, seja no sentido da outorga de um benefício ou vantagem apto~; a influir sôbre a vontade do destinatário (sanção premial) seja como privação de um bem material ou pessoal, capaz de prevenir ou de reprimir lesões ao direito (sanção penal, no sentido lato dêste termo).

A sanção penal, genericamente considerada, triparte-se em sanção ci.vil) sanção administrativa e sanção penal, strito sensu, ou pena) propriamente dita, não havendo necessidade de apontar, neste estudo, as características de cada uma delas. Bastará frisar que a pena se distingue das demais sanções, não apenas por mo­tivos de ordem formal , mas também em razão de seu conteúdo, ou seja, em virtude do valor ou do interêsse que tutela. Como "con­seqüência jurídica" do delito, - e conseqüência que se não reduz

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280 MIGUEL REALE

a um simples nexo causal, ad instar do que ocorre no plano das relações naturais, visto se constituir como momento de um dever ser ético, - a pena tem como pressuposto necessário uma ação axiologicamente dimensionada, segundo o modêlo racionalmente expresso no preceito legal violado.

Podem variar as doutrinas no concernente à conceituação da pena, uns pondo em realce a sua natureza retributiva, outros a sua destinação preventiva, ou então preferindo uma apreciação conjunta dos dois aspectos para concebê-la como "uma repressão de escopo preventivo", mas são tôdas expressões de um mesmo e inevitável propósito de fundação racional da pena, com base nas lições da experiência. A pena é, em suma, necessàriamente, uma categoria racional, assim por sua natureza como por seus fins.

Quer se opte por uma concepção naturalistic~ da pena, su­bordinando-a ao problema da periculosidade do delinqüente, quer se funde a sua . compreensão na idéia ética de um castigo ou so­frimento infligido ao transgressor, "malum passionis propter ma­lum actionis", o certo é que o conceito de pena implica um processo de racionalização da experiência, pondo-se a conseqüência jurídica como o resultado de uma determinada forma de valoração do ilícito penal, resultado êsse que sempre corresponde a uma correlação de meio a fim, segundo a perspectiva ou o enfoque teorético pre­ferido.

É à luz dêsses pressupostos teóricos que o penalista toma posição perante o quadro das discriminações ou especificações penais, procurando ajustar ou graduar a pena em função da na­tureza do bem lesado, da pessoa do delinqüente e da reação da consciência individual e coletiva. Nessa delicada tarefa de ade­quação das regras de direito à tipicidade dos delitos, a razão e a experiência vão de mãos dadas, aferindo-se, à luz de dados estatís­ticos e de pesquisas psicológicas, sociológicas, etc., o acêrto das medidas adotadas, tendo-se em vista a defesa soci;il ou a recupe­ração do infrator. Poder-se-á mesmo afirmar que é em têrmos de "racionalização concreta", segundo princípios teóricos o mais possível controlados pela experiência, que se desenvolve e deve se desenvolver tôda a política criminal, que só assim poderá atender à sua real destinação ética.

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A MORTE À LUZ DA FILOSOFIA EXISTENCIAL : Sf'::NECA, AGOSTINHO, HEIDEGGER E SARTRE

§ 3. Pois bem, assente a base racional e experiencial do conceito de pena, tenho para mim que, lógica e ontologicamente, é êle incompatível com o conceito de morte. ((Pena de morte" é

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 281

um enunciado que só formalme.nte se compõe em unidade, dada a discrepância substancial que há na utilização da morte como ins­trumento de pena. É o que a Filosofia contemporânea vem pôr em realce, reatando uma linha de compreensão do problema que remonta a Sêneca e a Santo Agostinho.

Lêem-se, no L. XIII, capítulos 9-11 de De Civitate Dei me­ditações sôbre 9 problema da experiência da morte de uma im­pressionante m~dernidade, especialmente se postas em cotejo com as de Heidegger nos § § 46-53 de Sein und Zeit e as de Sartre em l/1!Jtrc ct le Néant.

Pondera Santo Agostinho que quando se examina mais de perto a questão, não se pode, a rigor, falar em experiência da morte, pois aquêle angustioso e atroz padecimento que o mori­bundo experimenta não é a morte mesma : se êle continua tendo qualquer sensação, é que ainda está vivo; e, se ainda se acha em vida, deve-se dizer que se acha antes em um estado anterior à morte do que em "articulo mortis". É difícil, por conseguinte, dizer-se quando se deixa de viver e se está morto; a mesma pessoa se acha, ao mesmo tempo, morrendo e vivendo, na direção da morte, despedindo-se da vida. E, quando a morte sobrevém, o homem já não se acha em estado de morte, mas depois dela. Quem, pois, pode dizer, pergunta Santo Agostinho, quando é que o homem está na morte?

A seu ver, vive-se e morre-se ao mesmo tempo, e nem bem se nasce j á se começa a morrer, não se achando jamais o homem antes ou depois da morte, mas sempre morrendo, consoante adver­tência depois repetida por tantos outros, e que tão profunda res· sonância atinge na especulação do segundo após-guerra 2 .

Na mesma linha de pensamento, mas em sentido diametral­mente oposto, pirá Heidegger que a morte do outro não repre­senta para nós qualquer experiência, sendo a morte em si mesma absurda, dado que, se o homem é um ser destinado à morte, esta não é senão "a possibilidade da impossibilidade" mesma da exis­tência; não outorga à realidade humana nada a realizar, de tal sorte que a existência se reduz a uma aventura de sua própria impossibilidade 3.

2. Cf. SANTO AGOSTINHO - De Civitate Dei, XIII - 9-12. Lembre-se o "quotidic mor,im1tr" de S~NECA: "Quotidie morimur, quotidie enim demitur ali.q-na. pa.rs uitae: et tunc quoque, quum crescimus, vita decrescit" . Epistolae, XXIV, "De htturi met1~: de rrwrte". Quanto ao conceito de morte como "pos­sibilidade existencial", e como "situação-limite", há que recordar esta pas­sagem do filósofo cordovês : "Vivere noluit, qui mori non vulto Vita enim cum exceptione mortis data est; ad hanc itur. Quam ideo timere dementis est; quia cer ta expectantur, dubia metuuntur. Mors necessitatem habet aequam et invictam", (Ep, XXX). Quanto à não experiência da morte, atente·se à radical asserção de L. WITTGENSTEIN ; "Death is not a event of life. Death is not lived through". (Tmctatus LogicocPhilosophicus, 6.431),

3. V. MARTIN HEIDEGGER, op. cit ., § 47 e segs.

Page 160: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

282 MIGUEL R EA LE

Não há dúvida que, como observam Gabriel MareeI, Roger Mehl e Ferrater Mora, a experiência da morte alheia, especial­mente quando participamos da perda de um ente amado, não é algo estranho a nós, mas se insere na intimidade de nosso ser, torna-se, de certo modo, "a nossa experiência da morte" 4, mas se trata sempre de uma experiência reflexa, na qual nos pomos simpateticamente "na situação do outro", para empregarmos ex­pressões caras aos moralistas inglêses da escola de Adam Smith. Essa, que poderíamos denominar "experiência por participação", vem antes demonstrar que a morte como tal é diretamente inex­perienciável em têrmos de percepção e de comunicação intersub-jetivas.

Ora, são todos êsses aspectos essenciais que se olvidam quando se aplica a pena de morte. Esta é tomada como um simples fato, desvestidode tôda a sua sig,nificaçá'o dramática e enigmática, para assinalar apenas o afastamento material de um corpo indi­vidual, como unidade orgânica diferençada, havida como indese­jável ao todo do corpo social. A execução da pena de morte re­duz-se a algo de exterior, que se conclui e se satisfaz com o exter­minio de um corpo, cuja cessação é a cessação de uma possibi­lidade existencial. A morte é, dêsse modo, apenas um fim, um têrmo no processo biológico e um ponto considerado final na se­qüência dos autos do processo judicial.

Mas, como adverte Heidegger, se o morrer pode ser tomado sob um ponto de vista biológico-fisiológico, "o conceito médico de exitus não coincide com o de finalizar", nem pOde a morte ser considerada, consoante pondera Sartre, o término de uma vida, como a nota final, e interna a ela, de uma melodia 5.

Mesmo sem acolher as conclusões radicais de Heidegger ou de Sartre quanto ao "absurdo" da morte, considerada em têrmos de pura "possibilidade existencial", e mesmo que se repute a morte um momento da economia geral da natureza, - e Weis­mann chegou a dizer que ela foi "inventada" pelos sêres orgânicos para assegurar a vida das espécies, - o que me parece inegável é o absurdo de destinar-se à morte um ser humano, hic ac nunc, sem se atentar para o mistérío que cerca essa "destinação", apresen­tada e querida, no entanto, como sendo o resultado final de uma decisão, cuja racionalidade intrínseca e concreta se proclama.

§ 4. Por outro lado, se todos nos destinamos à morte, - e empregamos estas palavras sem as desesperadas implicações que lhes confere Heidegger, - se, de certo modo, todos estamos "des-

4. Cf. JosÉ FERRATER MORA - El Ser y la Muerte, Madri, 1962, págs. 197 e segs.

5. V. HEIDEGGER - op. cit.) § 47, in fine, e SARTRE - op. cit., 12.' ed., pág. 615.

o DIREITO COMO EXPERltNCIA 283

tinados à morte", a pena de morte equivale à "antecipação da morte".

É exatamente neste ponto que se revela mais violenta a con­tradição ao pretender-se converter a morte em instrumento de sanção.

Se se podem aduzir razões plausíveis para explicar a morte como fenômeno biológico, ou mesmo julgar-se racional a morte enquanto necessária à existência em geral na ordem cósmica, nem por isso pode ser olvidado que a morte não pode ser senão a «minha morte": "interiorizando-se, escreve Sartre, ela se indivi­dualiza; não é mais o grande incognoscível que limita o humano, mas é o fenômeno de minha vida pessoal, que faz dessa vida uma vida única, isto é, uma vida que não recomeça jamais, onde não é dado repetir o lance. Dêsse modo, eu me torno responsável de minha morte como de minha vida. Não do fenômeno empírico e contingente do meu falecimento, mas dêsse caráter de finitude que faz com que minha vida, como a minha morte, seja a minha vida. É. nesse sentido, que Rilke se esforça por demonstrar que q fim de cada homem assemelha-se à sua vida, visto como tôda a · vida individual é a preparação dêsse fim" 6.

A "suidade" inseparável do conceito de morte, enquanto "fim" da existência humana singular, converte a questão da pena de morte em uma roda de aporias. Primeiro porque se torna inex­plicável a invasão do Estado na esfera do que é mais íntimo e intocável na pessoa humana, que é a sua morte, como elemento essencial de sua vida, e, mais ainda, de sua hora de morrer.

Já nos ensinara Sêneca: u nenw moritur nisi sua morte", e u nemo nisi suo die moritur" 7. Na realidade, as duas asserções se confundem, pois a minha morte é o meu dia de morrer. Donde se conclui que a condenação à morte pelo juiZ equivale a uma violenta substituição do delinqüente enquanto pessoa; eqUivale à sua "morte ética" antes de ser levada a cabo a "morte biológica", o que explica tenha Carnelutti podido aproximar, com tôda a crueza, a pena de morte à expropriação por utilidade pública .. . 8

Dir-se-á que a morte na fôrca ou na câmara de gás na data fixada na sentença é a morte dêle criminoso, forjada por êle como expressão de sua vida, mas se se admite que a cada vida corres­ponde a sua morte, uma inexplicável sombra envolve a decisão judicial, como se o julgador, - convicto de estar agindo segundo critérios objetivos da mais estrita racionalidade, - houvesse sido instrumento de insondáveis designios.

6. SARTRE - op. cit.) pág. 616. Na mesma linha de pensamento, FER­RATER MORA salienta o caráter de "mismidad" e "propriedad" da morte. (op. cit., págs. 170 e segs.) .

7. E p.) LXIX. 8. Cf. BE'lTIOL - Diritto Penale, 6.' ed., Pádua, 1966, pág. 664.

Page 161: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

284 MIGUEL REALE

A inseparabilidade do conceito de morte do conceito de pes­soa põe, assim, em evidência que a morte não pode ser matér ia de pena, pois elimina, no ato de sua aplicação, aquêle mesmo a quem ela se destina. Em última análise, na e pela pena de morte, a pessoa é negada como tal, convertida em coisa. Daí assistir razão a Gustav Radbruch quando pondera que só uma concepção supra-individualista do direito pode admitir a pena de morte, por­que só uma concepção desta natureza pode reconhecer ao Estado um direito de vida e de morte sôbre os indivíduos 9. Essa negação absoluta do ser pessoal no ato de decretar-lhe juridicamente o fim, pela admissão de uma ordem superior e incontrastável de valõres, personificada .no Estado, corresponde, por exemplo, à posição he­geliana, segundo a qual a vida não constitui algo de exterior à personalidade, razão pela qual só tem direito sôbre ela uma idéia ética que a absorva em si, o que redunda em tornar a pessoa "algo de subordinado, que deve dedicar-se à totalidade ética" 10.

É no ato da aplicação da pena de morte que esta se põe na crua luz do entendimento sartriano: aniquilamento do ser humano fora de tôdas as suas possibilidades; não apenas o projeto que destrói todos os projetos e que se destrói a si mesmo, mas o triunfo do ponto de vista do outro sôbre o ponto de vista que eu sou sõbre mim mesmo 11.

O desapossamento, a "desapropriação" da pessoa; o homem que cessa de ser projeto para ser mera projeção) isto é, o juizo e a imagem que dêle se fêz no proces.so ; o prevalecer absoluto do outro sôbre si mesmo) eis a que se reduz a pena de morte. A bem ver, a trágica compreensão sartriana da morte, como o {(triunfo do outro) ("1!:tre mort) c'est êtr e en pr oie aux vivantsJJ ) marca a perspectiva antecipada do condenado à morte, de uma existência pessoal esvaziada de seu conteúdo ético, de seu "transcender-se", sem o qual a morte, insolúvel como problema, se reduz a um absurdo 12.

9. RADBRUCH - Filosofia do Direito, trad. de Cabral de Moncada, São Paulo, 2.' ed., 1957, pág. 343.

10. Cf. HEGEL - Gr undlinien der Philosophie des Recht, § 70 e Zusatz zu § 70. Não se deve esquecer que para HEGEL "a inadequação do animal à universalidade é a sua doença original e o germe inato da morte" ( Enciclo­pedia dell.e Scienze Filo8ofiche in Compend'io, trad. de Benedetto Croce, § 375).

11. SARTRE - op. cit., pág. 624. 12. É o próprio SARTRE que configura a morte como condenação, mas

condenação ou "pena absurda", dada a irrealizabilidade paradoxal de seu "fim". Afirma que cada um de nós assiste, todo dia, à execução de nossos companheiros de cadeia, preparando-nos corajosament e para afrontar o der­radeiro suplício e empenhando-nos em fazer um belo papel sôbre o patíbulo, mas, nesse ínterim, somos levados por uma epidemia de gripe espanhola ... (pág. 617) .

o DIREITO COMO EXPERIÊN CIA 285

Não creio que se possa equacionar racionalmente a morte como um problema. Se há exagêro em se explicar a vida como simples destinação à morte, seria impossível compreendê-la sem esta des­tinação, inseparável de um halo de mistério, que é, aliás, o mistério que circunda tôda a existência humana, linha traçada entre o misté­rio de nascer e o mistério de morrer.

Não se trata, pois, de proclamar a impiedade da pena de morte, - alegando-se que a justiça humana não pode pronunciar juízos reservados à onipotência divina, - mas de pôr a questão em têrmos mais radicais, pela verificação da impossibilidade lógica de conside­rar-se a execução capital um ato racionalmente fundado, e, por con­seguinte, de apresentá-la como "espécie de pena".

IV

O ABSURDO DA MORTE NA GRADAÇÃO DAS PENAS

§ 5. Há ainda outros aspectos a considerar e não de somenos importância.

No início dêste estudo, vimos como tôdas as penas, de que lança mão o legislador, constituem espécies de sanções, distribuin­do-se elas segundo uma graduação racional que procura levar em conta uma série de fatôres peculiares a cada hipótese de ilicitude penal, bem como à personalidade de cada delinqüente.

O poder-dever de punir, que compete ao Estado, abre-se , dêsse modo, em um leque de figuras ou "medidas", segundo soluções escalonadas, mensuráveis em dinheiro ou em "quantidade de tem­po". Essa ordenação gradativa é da essência mesma da justiça pe_ nal, pois esta não se realizaria se um critério superior de igualdade ou de proporção não presidisse à distribuição das penas, dando a cada infrator mais do que êle merece.

Pois bem, quando se decreta a pena de morte, rompe-se abrupta e violentamente a apontada harmonia serial; dá-se um salto do plano temporal para o não tempo da morte.

Com que critério objet ivo ou com que medida racional (pois ratio significa razão e medida) se passa da pena de 30 anos ou da prisão perpétua para a pena de morte? Onde e como se configura a proporcionalidade? Qual a escala asseguradora da proporcionali­dade?

Dir-se-á que também há uma diferença qualitativa entre a pena de multa e a de reclusão, mas o cálculo daquela é redutível a critérios cronológicos, podendo ser fixada , por exemplo segundo o que representará em têrmos de jornadas de trabalho perdido, para que possa significar privação e sofrimento à pessoa do infrator,

Page 162: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

286 MIGUEL REALE

em função de sua situação patrimonial. De qualquer modo, são critérios racionais de conveniência, suscetíveis de contrasteação na experiência, que governam a passagem de um para outro tipo de pena, enquanto que a idéia de "proporcionalidade" submerge-se na perspectiva da morte.

Em tal conjuntura, os partidários da sanção capital, ou silen­ciam ou contornam o problema, contentando-se com uma opinião de caráter puramente subjetivo. Observe-se, por exemplo, como é fluida a colocação do problema na obra de um penalista de re­conhecida sensibilidade filosófica, como é Giuseppe Bettiol. Diz êle, preliminarmente, que, "no estado atual de desenvolvimento cultural, todo sofrimento infligido ao culpado além da exigência retributiva é um mal, e será sentido como mal insuportável tam­bém todo sofrimento infligido nos limites formais da retribuição, quando esta não fôr mais adequada ao conceito . mesmo de retri­buição. O verdadeiro conceito de retribuição, acrescenta, é um conceito ético que deve ter presente a natureza moral do homem". Isto não obstante, o eminente mestre de Pádua, declarando ser a necessidade da pena de morte uma conseqüência de seu caráter retributivo, e não vice-versa, julga-a admissível em determinadas hipóteses, como no caso de homicídio premeditado de ascendente ou de descendente ou no homicidio da vítima de uma violência carnal, por serem tais fatos tão graves que "o desequilíbrio por êles produzido no seio da coletividade não pode ser compensado ou contrabalançado senão com a aplicação da pena de morte, a única que, nas circunstâncias concretas, se mostra verdadeira­mente retributiva e proporcionada ao mal perpetrado" 13.

Quer parecer-me que nesse juízo o que prevalece não são critérios objetivos, segundo os quais se possa estabelecer uma "verdadeira proporção", ao preferir-se a pena de morte ao máximo da pena temporal, por falta de um denominador comum de refe­rência. Sob a aparência de uma solução em têrmos retributivos oculta-se uma opção ditada pela presumida necessidade de recom­por o equilíbrio ético da sociedade, o que equivale a dizer em têrmos de defesa dos valôres da "consciência moral da sociedade". Na ordem social das sanções penais a pena de morte representa, na realidade, um plus) insuscetível de gradação objetiva.

Se, por outro lado, visualizarmos o assunto do ponto de vista da defesa. ou da prevenção sociais, preferindo ao punitur quia pec­catum est o punitur ne peccetur) não será menos evidente o salto que a pena capital representa no escalonamento das sanções j,nfli­gidas pela Justiça. Se o objetivo é afastar o delinqüente do con­vívio social, a pena máxima de reclusão ou mesmo a prisão per­pétua se oferecem como soluções de tipo racional, de igual na­tureza, sem falar na sentença com pena de duração indeterminada

13, BETTIOL - op. cit., págs. 642 c 647,

o DInEITO COMO EXPERIÊNCIA 287

com a qual se pretendem aferir, em funcionalidade concreta a pena, a nersonalidade do réu e a tutela dos valôres de convivência. A opção pela pena de morte, nessa ordem de idéias, não é ditada por motivos de caráter racional, jogando-se com o "terror da morte" , como possível instrumento de prevenção criminal, no instante mesmo em que se faz abstração do essencial significado da morte pôsto em evidência neste trabalho.

O conceito de morte, em suma, é de tal ordem, que, como afirma Simmel, matiza todos os conteúdos da vida humana, po­dendo-se dizer que ela é inseparável de um halo de enigma e de mistério, de sombras que à luz da razão não é dado dissipar: querer enquadrá-la em soluções penais equivale a despojá-la de seu significado essencial para reduzi-la à violenta desagregação física de um corpo.

Quando os antigos diziam: "morreu de morte naturiu na fôrca" , talvez se intuísse que havia um fato de morte, não uma pena de morte.

Penso, em suma, que, analisada à luz de seus valôres semân­ticos, o conceito de pena e o conceito de morte são entre si lógica e ontologicamente irreconciliáveis e que, assim sendo, "pena de morte" é uma contradictio in terminis.

Page 163: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

íNDICE DOS AUTORES CITADOS

A

ABBAGNANO, N. - 12.

ACKOF F, H. L. - 185.

AGOSTINHO, Santo - 277, 280, 281.

AMSELEK, P. - 161, 177.

ANTONI, C. 11.

AQUINO, Tomás de - 76, 77, 143.

ARISTóTELES - 77, 79, 136, 178.

ARROW, Kenneth - 177.

ASCARELLI, T . - 33, 37, 80, 206, 214, 215, 230, 259.

ASCOLI, Max - 230.

AUSTIN, J . - 100, 126.

AZEVEDO, Noé - 98.

B

BACHELARD, G. - 72, 138.

BAGOLINI, L. - XVI, 1, 17, 26, 54, 100, 105, 120, 175, 221, 224, 251, 258.

BAPTISTA MACHADO, J. - 213, 214, 244.

BARA TT A, A. - 129.

BARBANNO, F. - 153.

BARBOSA, R. - XXIX

BASTIDE, R. - 148.

BATTAGLIA, F. - 230, 255.

BENTHAM, J . - 64.

BERGSON - 39, 77.

BERN ARD, Claude - XXIV.

BETTI, E. - 230, 235, 236, 241 , 243.

BETTIOL, G. - 97, 283, 286.

BEVILAQUA, C. - XXIX, 77.

BIERLING - 101.

BINDING - 95, 211.

BOBBIO, N. - XIX, 52, 67, 82, 98, 99, 113, 114, 120, 257.

BODENHEIMER, E . - 117, 203.

BOHR, Niels - 72.

BOTTOMORE, T. B. - 154.

BOUDON, R. - 157, 161, 176, 193.

BOZZI, R. - 7.

BREAL, M. - 214.

BRÉHIER, E. - 25.

BRENTANO, Frank - XV.

BROAD - XIX.

BROGGINI, G. - XVII.

BROGLIE, L. de - 72.

BRUGI - 129.

BRUNSCHVIGG, L. - 222

BRYCE - 100.

C

CAIANI, L. - 214, 236.

CALAMANDREI, Piero - 185.

CALO GERO, G. - 203, 244, 251.

CAMMARATA - 230.

Page 164: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

290 MIGUEL REALE

CAPOGRASSI, G. - 1, 7, 33, 34, 36, 40, 41, 110.

CARABELLESE, P. - 26.

CARBONNIER, J . - 148.

CARDOZO, B. - 37, 77, 204.

CARNAP, R. - 156.

CARNELLI, L. - 220.

CARNELU'ITI, F . - 37, 77, 258, 283.

CASSIRER, E. - XXXI, 14, 16, 18, 26, 33.

CASTIGLIA, T. - 1.

CAVALCANTI FILHO, T. - XV, XXIX, XXXIII, 107.

CíCERO - 79. COCCOP ALMERIO, D. - XIV.

COHEN - 18. COHEN, M. R. - XXXI, 71, 142,

161. COING, H. - 238.

COMTE, A. - 68, 81, 160.

COSSIO, C. - XIX, 54, 110, 111, 259.

COSTA, Newton A. da - XIV, XX.

COUTO, Almiro - XVII.

COUTO E SILVA, Clóvis - 185.

COWAN, T. A. - 26, 178.

CROCE, B. - XVI, 2, 6, 8, 9, 230.

CUNHA, Euclides da - 202.

CZERN A, R. C. - XXIX, XXXII.

D

DANILEVSKY - 151.

DAVID, P. R. - 148.

DET...J CAMPO, S. - 154.

DEL VECCHIO, G. - XV, 76, 88, 171, 230, 259.

DELOS, J. - 109.

DESCARTES - 43. DILTHEY, W . - 13, 20, 21, 24, 26,

115, 153, 157, 208, 278.

DOURADO DE GUSMÃO, P. - 154, 221.

DUFRENNE, M. - 27.

DUGUIT, L. - 37, 77, 150, 188.

DUPRÉEL - 138. DURKHEIM, E. -- 150, 151, 157,

208.

E

EHRLICH - 37, 102, 104, 105, 188, 230.

EILD, J. - 40. ENGISCH, K. - 70, 71, 72, 140,

157, 179, 204, 205, 209, 213, 242, 244, 249.

ESPINOSA - 129.

ESSER, J. - XXI, 70, 135.

EVAN, W. E . -- 154.

F

F ALZEA, A. - 116.

F ASS6, G. - 11. FERRATER MORA, J. - 12, 174,

202, 282, 283. F ERRAZ JR., T. S. - XXX, XXXV.

FERREIRA, Pinto - 221, 223.

FERREIRA, Waldemar - XV.

FICHTE - 76, 262. FILANGIERI - 64. FOUCHARD, P . - 169. FRANK, Jerome - 72, 106, 107.

FREITAS, Teixeira de - XIV, XXIX, 213.

FREUD - 158. FREYRE, G. - XVIII, XXIV, 149,

152, 221. FREYER, H. -- 85.

FROSINI, V. - 73, 148, 150, 177.

G

GALILEU - 49.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 291

GAOS, J . - 40.

GARCiA MAYNEZ, E . - 54, 67, 70, 72.

GE.'NTILE, G. - XVI, 2, 6, 9, 77, 230.

GÉNY, F. - 37, 77, 93, 108, 128, 188, 230.

GINSBERG - 152, 153, 203.

GIORGIANNI, V. -'- 99.

GIOV ANNI, B. de - 203.

GOETHE - 150.

GOLDSCHMIDT, W. - 75, 76, 77.

GOMES, Orlando - 169.

GONSETH, F. - 72.

GUELI, V. - 209.

GUSDORF, G. - 44 ..

H

HAESAERT, G . .P. - 1.

HAGERSTROM, A. - 105.

HALL, J. - 53, 110, 111.

HAN DY - 44.

HARDWICK, E. R. - 181.

HART, H. L. A. - 100, 101.

HARTMANN, N. - XV, XXII, XXXI, 20, 26, 32, 136, 137, 138, 158, 233, 236, 256.

HAURIOU - 109, 170.

HECK, P. - 37, 103.

HEGEL - 2, 5, 9, 12, 27, 48, 76, 77, 79, 80. 110, 137, 265, 284.

HEIDEGGER, M. - XXVII, XXXI, 20, 22, 23, 27, 220, 241, 265, 277, 278, 280, 281.

HEIDELBERG - XVII.

HEGENBERG, L. - 161.

HENDEL, C. W . - 18.

HEN KIN, L. - 161.

HESSE, M. - 161, 180.

HOBBES - 79.

HOLMES, O. W. - 37, 77, 100, 107, 188, 230.

HUME, D. - 16, 16S. HUSSERL,' E. - XVI, XXVII,

XXXI, 12, 13, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, .37, 39, 49, 53, 54, 84, 86, 90, 115, 158, 202, 204, 205, 228, 233, 236, 239, 256, 264, 265.

HUSSERL, G. - 220.

I

INGARDEN - 233.

J

J AMES, W. - 38.

JASPERS, K. - 145, 157, 174, 175, 278.

JHERIN G - 103, 192. JELLINEK, G. - 94, 95, 110.

K

KALINOWSKI - 67, 68, 77, 163, 173.

KANT - XXIII, XXXI, 1, 7, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 21, 27, 54, 77, 79, 80, 83, 110, 112, 262, 267.

KANTOROWICZ - 76, 228, 230. KAUFMANN, F . - 151. KECSKEMETI, P . - 144, 177. KELSEN, H. - XVII, XIX, 19, 52,

94, 96, 97, 100, 104, 170, 174, 179, 187.

KEMPSKI, J . Vou - 178. KLUG, U. -- XIX, 67, 97, 177, 248. KOCOUREK - 100. KOHLER - 211.

KUNZ, J. L. - XV, 82.

L

LAF AYETTE - XXIX.

LANDGREBE, L. - 40.

Page 165: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

292 MIGUEL REAL E

LARENZ, K. - 104, 148, 166, 185, 186, 211.

LASK, E. - 19, 53, 76, 113.

LA TORRE, Sanchez de - XVI.

LAUREANO LANDABURU - 148.

LAURENT - 93.

LEGAZ Y LACAMBRA - 54, 148, 187.

LENINE - 10.

LE ROY - 202.

LERNER, S. - 11.

LESSA, P. - XXIX, 104, 124.

LEVEL, P. - 123.

LÉVI·STRAUSS, C. - 44, 48, 71, 73, 153, 160.

LEWIN, K. - 152.

LIMA, Alvino - 216.

LINS, M. - 221.

LLEWELLYN, K. N. - 106.

LLAMBIAS AZEVEDO - 137.

LOCKE - 2, 79.

LOPES DE ONÁTE, F. - 110.

LUKACS, G. - 42, 45, 46.

LUMIA, G. - 67.

LONDSTEDT, W. - 105.

M

MACEDO, Silvio de - 67.

MACHADO NETO, A. L. - 117, 202.

MAGGIORE - 230.

MAIHOFER, W. - 128.

MAINE, Henri - 151.

MANZINI - 97, 98, 277.

MARCEL, Gabriel - 278, 282.

MARIAS, Julian - 221, 222, 223.

MARCHELLO, G. - 164.

MARQUES, J . Frederico - 185.

MARSHALL MCLUHAN - 24, 174, 225.

MATHIOR, A. - 148.

MARTY, G. - 128.

MARX, K. - XXV, 33, 46, 151.

MASSA RI - 97.

MAZZARESE - XIX, XX.

MAXIMILIANO, C. - 211, 246, 252.

MAYER, M. - 121.

MA YZ V ALLENILLA, E . - 21, 173.

McIVER - 152.

MEDIN A ECHEV ARRIA, J. - 154.

MEHL, R. - 282.

MENDES, C. - XVIII.

MENDES JÚNIOR, J. - 192.

MENEZES, Djacir - 221.

MERKL - 94, 170.

MERLEAU·PÓNTY - 15, 45, 46, 70, 71, 139, 157, 158.

MERTON - XVIII, 152, 153, 221, 223.

MESSINEO, F. - 169.

MONCADA, C. de - 54, 118.

MOORE, W. E. - 150.

MORAIS FILHO, Ev. - 202.

MONTESQUIEU - 186.

MURALT, A. de - 21.

MYRDAL, G. - 202.

N

NATORP - XXXI.

NERY CASTA~EDA, H. - 34.

NAGEL, E. - 161.

O

OLBRECHTS-TYTECA, L. - 72.

OLIVECRONA - 102, 105, 106, 128, 165, 187.

OPOCHER, E . - 2, 3.

ORTEGA Y GASSET - 251, 278.

o DIREITO COMO EXPERIÊNCIA 293

P

PACI - 40.

PAUL, Woff - XXV.

POLAZZOLO, V. - 2, 257.

PARESCE, E. - 133, 137, 138.

P ARSONS, T. - XVIII, 152, 153, 154, 160, 163.

PASINI, V. - 148, 258, 259. PEIRCE, C. - - 38.

PEKELIS, A. - 129.

PERELMAN, C. - XXI, 67, 70, 72, 78, 209, 251.

PETRAZYSKI - 94.

PIO V ANI, P. - 132, 142, 258.

PLATÁO - lO, 77.

POINCAM - 202.

PONTES DE MIRANDA _ XXIX, 77, 125, 205, 207, 221, 223.

POPPER, K. - XVIII.

POULANTZAS, N. A. - 148, 149.

POUND, R. - 53, 107, 126, 135, 184, 188, 230.

PRIOR, A. N. - 222.

PUGA, Leila Z. - Xx.

PUKUI - 44.

R

RADBRUCH, G. - 19, 53, 78, 113, 115, 127, 129, 198, 284.

RADIN, M. - 106.

RANDELET - 222.

RAY, J . - 221, 222.

RA V A, Adolfo - XV.

R EALE, M. - XIV, XIX, XXIV, XXX, 63, 81, 83, 95, 97, 101, 104, 115, 120, 121, 151, 239, 246, 247, 252, 256, 259.

RECASÉNS SICHES - I, 2, 34, 35, 38, 54, 58, 71, 72, 76, 78, 79, 86, 88, 107, 110, 154, 159, 188, 251.

RENARD, G. - 109.

RIBAS - XXIX.

RICCI, Giovanni - XVI.

RICKERT - 19, 114.

RILKE - 278, 283.

RIPERT, G. - 108, 207, 211.

ROCCO, A. - 97.

ROMANO, Santi - 108, 109, 170, 174, 257.

ROMERO, Francisco _ 229.

ROSS, Alf - 102, 105.

ROTHACKER - 157.

ROTONDI, M. - 249.

ROUBIER, P. - 53, 63, 199.

ROUSSEAU - 79, 80.

S

SABATIER - 148, 150, 206, 207.

SANCHEZ DE LA TORRE _ XVI, 48, 71, 148.

SARTRE - 227, 278, 280, 281, 282, 283, 284.

SAUER, W . - 53.

SAVIGNY, F. C. - XXV, 5.

SCHAFF, A. - 161, 173.

SCHELER, Max - XV, XXXI, 17, 20, 26, 156, 202, 256, 278.

SCHR6DINGER, E. C. - 186.

SCIALOJ A, V. - 228.

SOLER, Sebastian _ 33.

S1l:NECA - 277, 281, 283.

SFORZA, W. Cesarini _ 1, 141, 148, 161, 228, 230, 235, 240, 241, 245, 246, 247, 254.

SIMMEL - 278.

SIMPSON - 44.

SOMMER - 126.

SOROKIN, P. -143, 150, 151, 157, 221, 223.

SPENCER, H. - 139, 151.

Page 166: Direito Como Experiencia - Miguel Reale

294 MIGUEL REALE

SPENGLER - 151.

SPRANGER -- 26, 115, 243.

ST AMMLER, R. - 18, 19, 32, 33, 230, 254.

STATI, M. O. - 184.

STONE, J. - 52, 53.

STRENGER, Irineu XXXIV, 182.

T

TAMMELO, I . - 68.

TARELLO, G. - 106, 107.

TONNIES, F. - 150.

TOYNBEE - 151.

TREVES, R. - 19.

TRIGEAUD - XVIII.

U

URBAN, W. M. - 236.

V

VAffiNGER - 202.

XXIX,

V AN ACKER, Leonardo - XXIX.

V ANNI, lcilio -- XV.

VERDROSS - XXXIII.

VERNENGO - XIX, XX.

VICO, G. B. - 9, 16, 192. VIEHWEG, T. - XXI, XXXV, 70,

71, 72, 135, 136, 274.

VILLEY, M. - 72, 128, 16l.

VIRALLY, M. - 143, 166, 167.

VIRTON, P. - 208.

VISCHER, V. - 214.

VITT A, Ed. - 214.

WRIGHT, Von - XIX.

W

WACH - 21l.

W ARD, L. - 151.

WEBER, Max - 20, 26, 33, 115, 144, 151, 153, 157, 265.

WINDELBAND - 114.

WINIARSKY, L. - 151.

WIRTH, L. - 202.

WITTGENSTEIN, M. - 281.

WUNDT - 215.

Impressão e acabamento Editora SARAIVA

Unidade Gráfica Av. Amâncio Gaiolli, 1146

Guarulbos·SP