Direito Constitucional (Desembargador Rui Penha)

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1 Direito Constitucional I Teoria Geral da Constituição CAPÍTULO I INTRODUÇÃO 1. Introdução ao Direito Constitucional Direito Constitucional é o conjunto de normas que regulam o próprio Estado enquanto comunidade e enquanto poder. 1 O Direito Constitucional engloba as regras jurídicas que definem a titularidade do poder, os órgãos que exercem o poder do Estado, e a relação destes com os cidadãos. Formalmente Direito Constitucional é o ramo do direito público interno dedicado à análise e interpretação das normas constitucionais. Qualquer Estado envolve uma estrutura institucional do poder, no sentido em que tem de dispor de dispor de regras, ou normas jurídicas, em que assenta o seu ordenamento. 2 Porém, só a partir do século XVIII surge a Constituição como um conjunto de regras jurídicas definidoras das relações do poder político. Surge então o constitucionalismo moderno. O Constitucionalismo tende a disciplinar toda a actividade dos governantes e todas as suas relações com os governados. Pretende submeter à lei todas as manifestações da soberania e consagra e protege direitos dos cidadãos perante os órgãos do Estado. 3 1 Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, tomo I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 13. 2 Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 7. 3 Miranda, tomo II, 1996, pág. 7.

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Direito Constitucional I

Teoria Geral da Constituição

CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO

1. Introdução ao Direito Constitucional

Direito Constitucional é o conjunto de normas que regulam o próprio Estado enquanto

comunidade e enquanto poder.1 O Direito Constitucional engloba as regras jurídicas que definem

a titularidade do poder, os órgãos que exercem o poder do Estado, e a relação destes com os

cidadãos.

Formalmente Direito Constitucional é o ramo do direito público interno dedicado à análise e

interpretação das normas constitucionais.

Qualquer Estado envolve uma estrutura institucional do poder, no sentido em que tem de dispor

de dispor de regras, ou normas jurídicas, em que assenta o seu ordenamento.2

Porém, só a partir do século XVIII surge a Constituição como um conjunto de regras jurídicas

definidoras das relações do poder político. Surge então o constitucionalismo moderno.

O Constitucionalismo tende a disciplinar toda a actividade dos governantes e todas as suas

relações com os governados. Pretende submeter à lei todas as manifestações da soberania e

consagra e protege direitos dos cidadãos perante os órgãos do Estado.3

1 Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, tomo I, 3ª edição, Coimbra Editora, 1997, pág. 13.

2 Jorge Miranda, in “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1996, pág. 7.

3 Miranda, tomo II, 1996, pág. 7.

2

Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado

indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante em dimensão estruturante da

organização político-social de uma comunidade.4

A Constituição é resultado da necessidade dos povos de limitar o poder político, garantindo o

exercício do poder ao serviço do povo e os direitos individuais fundamentais.

O constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com

fins garantísticos.5

O Direito Constitucional configura-se como “Direito Público fundamental” por referir-se

directamente à organização e funcionamento do Estado, à articulação dos elementos primários do

mesmo e ao estabelecimento das bases da estrutura política.6

Breve história das constituições:

A organização política das comunidades remonta à pré-história tendo começado com a

organização das famílias e dos clãs como grupos com interesses e fins comuns.

As primeiras formas conhecidas de Constituição, enquanto organização do Estado e limitação de

poderes, surge com os hebreus que criaram limites pela chamada “lei do Senhor” ao poder

político, cabendo aos profetas, legitimados pela vontade popular, fiscalizar e punir os actos dos

governantes que ultrapassassem os limites bíblicos.

As Cidades-Estado gregas praticam a democracia directa, havendo identidade entre governantes

e governados, sendo os cargos públicos exercidos por cidadãos escolhidos em sorteio e limitado

no tempo a sua designação.

4 José Joaquim Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 4ª edição, Almedina,

Coimbra, 2000, pág. 51. 5 Canotilho, 2000, pág. 51.

6 Pedro Lenza, in “Direito Constitucional Esquematizado”, 12ª edição, Editora Saraiva, São Paulo, 2008, pág. 1,

citando José Afonso da Silva, in “Curso de direito constitucional positivo”, pág. 36.

3

Em Roma, os denominados interditos pretendiam garantir os direitos individuais contra o arbítrio

e a prepotência dos governantes. O Estado romano, embora essencialmente municipal,

consagrava direitos básicos ao cidadão romano, nomeadamente o direito de eleger os seus

representantes e de acesso às magistraturas, o direito de casamento legítimo e o direito de

celebração de actos jurídicos.

Na Idade Média o monarca tinha um poder absoluto, embora segundo a doutrina do pactum

subjectionis, o governo teria de ser exercido com equidade, existindo ainda regras fundamentais

do reino, especialmente as referentes à sucessão e indisponibilidade do domínio real. Existiam,

porém, forais, pactos e cartas de franquia que concediam direitos especiais a determinadas

pessoas ou aos habitantes de certas localidades. Com o cristianismo acentuou-se o valor da

pessoa humana (criada à semelhança de Deus), implicando a igualdade de todas as pessoas

perante Deus, constituindo forte abalo ao poder imperial romano ao contestar o carácter sagrado

do imperador.

Uma das principais manifestações de limitação do exercício do poder político pelo Rei surgiu em

Inglaterra com a Magna Carta, de 15 de Junho de 1215.7 A Magna Carta resultou da rebelião da

aristocracia contra o Rei em resultado do fracasso deste na guerra de reconquista de territórios

perdidos para os franceses, com consequente agravamento da situação da aristocracia inglesa, e

por ingerência com a Igreja. Nos termos do seu art. 39º “Nenhum homem livre será preso,

aprisionado ou privado de uma propriedade, ou tornado fora-da-lei, ou exilado, ou de maneira

alguma destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele, a não ser por

julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra” e, de acordo com o art. 40º, “A ninguém

venderemos, a ninguém recusaremos ou atrasaremos, direito ou justiça”.

Petition of Right, de 7 de Junho de 1628, foi aprovada por ambas as câmaras do Parlamento

inglês em reacção à decisão do rei Carlos I de cobrar impostos não aprovados pelo parlamento e

aquartelamento forçado dos soldados em casas particulares, para suportar o esforço com a guerra

dos trinta anos. A principal consequência da Petition of Right foi a proibição do rei cobrar

7 Anteriormente já Carta de Liberdades de Henrique I, outorgada em 1100, submetia o rei a determinadas regras no

tratamento de oficiais da igreja e nobres, concedendo assim determinadas liberdades civis à igreja e à nobreza

inglesa.

4

impostos que não tivessem sido aprovados pelo Parlamento e a proibição da prisão sem justa

causa. À Petition of Right sucedeu o Bill of Rights de 1689, lei do Parlamento inglês que impôs

que as leis emanassem apenas do Parlamento.

O Constitucionalismo moderno nasceu com a Constituição da Federação dos Estados Unidos da

América, de 1787, e com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão8, proclamada em

Paris em 2 de Outubro de 1789, e que serviu de preâmbulo à Constituição da República Francesa

de 3 de Setembro de 1791.

8 Art.1.º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As destinações sociais só podem fundamentar-se na

utilidade comum.

Art. 2.º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.

Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

Art. 3.º O princípio de toda a soberania reside, essencialmente, na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo pode

exercer autoridade que dela não emane expressamente.

Art. 4.º A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo: assim, o exercício dos direitos

naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo

dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei.

Art. 5.º A lei não proíbe senão as acções nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e

ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordene.

Art. 6.º A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer, pessoalmente ou através

de mandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, seja para punir. Todos os

cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos,

segundo a sua capacidade e sem outra distinção que não seja a das suas virtudes e dos seus talentos.

Art. 7.º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as

formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser

punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário

torna-se culpado de resistência.

Art. 8.º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão

por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.

Art. 9.º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o

rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.

Art. 10.º Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, incluindo opiniões religiosas, desde que sua manifestação

não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei.

Art. 11.º A livre comunicação das ideias e das opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; todo cidadão

pode, portanto, falar, escrever, imprimir livremente, respondendo, todavia, pelos abusos desta liberdade nos termos

previstos na lei.

Art. 12.º A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída

para fruição por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada.

Art. 13.º Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição

comum que deve ser dividida entre os cidadãos de acordo com suas possibilidades.

Art. 14.º Todos os cidadãos têm direito de verificar, por si ou pelos seus representantes, da necessidade da

contribuição pública, de consenti-la livremente, de observar o seu emprego e de lhe fixar a repartição, a colecta, a

cobrança e a duração.

Art. 15.º A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua administração.

Art. 16.º Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos

poderes não tem Constituição.

Art. 17.º Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a

necessidade pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indemnização.

5

2. A posição da Constituição na Ordem Jurídica timorense

Numa perspectiva material, a Constituição é o estatuto jurídico-político do Estado, resultado do

poder constituinte material, como poder do Estado de se dotar de tal estatuto, de se auto-

regulamentar.9

Numa perspectiva formal, a Constituição traduz-se na relação das normas constitucionais, ou do

sistema jurídico-constitucional, com as demais normas do ordenamento jurídico em geral.10

Os seja, formalmente é Constituição o conjunto de normas que revestem força jurídica superior

às demais normas jurídicas.11

Assim, nos termos do art. 2º, nº 3, da Lei nº 10/2003, de 10 de Dezembro, que enumera as fontes

de direito nacionais, a Constituição da República ocupa o primeiro lugar nas mesmas.

Esta ideia tem expressão no art. 2º da Constituição, ao consagrar no seu nº 2 que o Estado

subordina-se à Constituição e às leis (expressão do Estado de direito democrático consagrado no

art. 1º, nº 1, da Constituição), esclarecendo de seguida que as leis e os demais actos do Estado e

do poder local só são válidos se forem conformes com a Constituição (nº 3 do art. 2º).

3. O Estado Constitucional

O Estado Constitucional é o Estado que resulta da Constituição.

9 Miranda, tomo II, 1996, pág. 11.

10 Miranda, tomo II, 1996, pág. 11.

11 A Constituição enquanto texto constitucional é designada por Jorge Miranda de Constituição em sentido

instrumental (ibidem, pág. 12).

6

Na sequência das constituições francesa e norte-americana, hoje todos os Estados estão

estruturados constitucionalmente, no sentido em que dispõem de uma Constituição que

estabelece a estrutura política do Estado e os limites ao poder do mesmo.

Ao subordinar-se à Constituição, o Estado apresenta-se como um Estado de direito.

Porém, ele deve estrutura-se como um Estado de direito democrático (art. 1º, nº 1, da

Constituição), ou seja, uma ordem de domínio legitimada pelo povo.12

As constituições escritas reforçam a institucionalização jurídica do poder político, a soberania

nacional, uma e indivisível, a sua unidade, o povo como conjunto de cidadãos iguais em direitos

e deveres e a imediaticidade destes.13

O Estado Constitucional, mais do que uma mera organização das instituições do poder, traduz

ideias programáticas de defesa dos direitos fundamentais e de prossecução do interesse geral,

emanadas da filosofia política do iluminismo do século XVIII, consagradas no texto

constitucional.14

12

Canotilho, 2000, pág. 98. 13

Miranda, tomo I, 1997, pág. 83, e tomo II, 1996, pág. 17. 14

“Sendo o Estado comunidade e poder, a Constituição material nunca é apenas Constituição política, confinada à

organização política. É Também Constituição social, estatuto da comunidade perante o poder ou da sociedade

politicamente conformada. Estatuto jurídico do Estado significa sempre estatuto do poder político e estatuto da

sociedade – quer dizer, dos indivíduos e dos grupos que a compõem – posta em dialéctica com o poder e por ele

unificada. E, sendo Constituição do Estado (em si) e Constituição do Direito do Estado, necessariamente abarca

tanto o poder quanto a sociedade sujeita a esse Direito” (Miranda, tomo II, 1996, pág. 21).

7

CAPÍTULO II - A CONSTITUIÇÃO

1. Formas e Tipos de Constituição

Jorge Miranda divide os modelos constitucionais em quatro famílias distintas15

:

a) Os sistemas constitucionais de matriz inglesa ou britânica;

b) Os sistemas constitucionais de matriz americana;

c) Os sistemas constitucionais de matriz francesa; e

d) Os sistemas constitucionais de matriz soviética.

A. Os sistemas constitucionais de matriz inglesa ou britânica

No direito constitucional britânico a predominância das fontes de direito pertence ao costume.

Embora se verifique a existência de textos constitucionais escritos, como a Magna Carta, estes

são simples contratos resultantes de interesses pontuais que determinaram à data a necessidade

de limitações ao poder do rei, mas não constituem em si uma constituição conforme definida

supra (estatuto jurídico-político do Estado, resultado do poder constituinte material, como poder

do Estado de se dotar de tal estatuto, de se auto-regulamentar).

Uma outra característica própria deste tipo de predominância do costume como fonte do direito

constitucional traduz-se no facto de a constituição não assumir a forma escrita. Contudo, como já

se viu, existem inúmeros textos constitucionais ingleses, que pontualmente foram limitando em

específicos aspectos os poderes do rei.

“Tais leis não se ligam, contudo, sistematicamente, não se qualificam formalmente como

constitucionais e não possuem, enquanto tais, uma força jurídica específica, como acontece nos

países com constituição escrita ou formal”. Constituição predominantemente consuetudinária, a

Constituição britânica apresenta-se ainda, pela natureza das coisas, como Constituição cuja

15

Miranda, tomo I, 1997, págs. 122 a 196.

8

modificação se faz, a todo o tempo, pelo Parlamento, sem necessidade de um processo

diferenciado do processo de exercício da função legislativa. É o que os juristas ingleses chamam

uma Constituição flexível – em contraste com as restantes Constituições ditas rígidas”.16

Um dos elementos essenciais da Constituição consuetudinária é o princípio do “rule of law”,

enquanto princípios, instituições e processos que a tradição e a experiência dos juristas e dos

tribunais entendem serem fundamentais enquanto salvaguarda da dignidade das pessoas face ao

Estado, “à luz da ideia de que o Direito deve dar aos indivíduos a necessária protecção contra

qualquer exercício arbitrário de poder”17

(constitucionalismo).

Em termos de organização política do Estado o sistema define-se pela predominância do

Parlamento (parlamentarismo).

B. Os sistemas constitucionais de matriz americana

Sistema com Constituição escrita, cujo núcleo fundamental não pode ser em princípio alterado18

(Constituição rígida), sendo porém a mesma adaptada à evolução histórica da sociedade, através

de sucessivos aditamentos e sobretudo através da sua interpretação pelos tribunais.

Assim, como principal característica, a Constituição americana apresenta-se tendencialmente

imutável, impondo a noção da Constituição a sua supremacia sobre todos os demais actos

legislativos da união ou dos Estados federados, sendo uma Constituição que se adapta às

circunstâncias históricas em função da relevância atribuída aos tribunais na sua interpretação.

Em termos de organização política do Estado o sistema define-se pelo federalismo e por um

sistema de governo presidencialista Consequência própria do federalismo e da democracia

directa.

C. Os sistemas constitucionais de matriz francesa

16

Miranda, tomo I, 1997, págs. 129 e 130. 17

Miranda, tomo I, 1997, págs. 129 e 130. 18

A alteração da Constituição depende de um sistema complexo com a participação dos Estados Federados, o que

torna muito difícil a mesma.

9

A primeira Constituição francesa nasce da revolução de 1789, contrariamente ao que sucedeu

nos dois exemplos anteriores (a Constituição americana tem raiz não na revolução mas nos

acordos celebrados com a potência colonial inglesa anteriormente; foi precisamente o

incumprimento de tais acordos que despoletou a revolução americana).

Esta génese revolucionária leva à criação de uma concepção do Estado completamente nova,

influenciada pelo pensamento do iluminismo preponderante na altura. Verifica-se um corte

radical com a tradição e a eleição de um novo modelo político-social assente numa nova filosofia

do Estado e do direito. Este período é caracterizado por uma grande instabilidade constitucional,

sendo frequentes as substituições da Constituição vigente sempre que a mesma não se mostrava

adequada, por outra nova, sempre com base em pensamentos jurídico-filosóficos dominantes.

A Constituição, em França, é essencialmente lei, lei escrita ao serviço dos direitos e liberdades e

da separação dos poderes, acreditando-se que, sendo a lei escrita, mais patente se tornarão as

suas violações e, assim, se dissuadirão os governantes de as cometer.19

É excluída qualquer tipo de relevância ao costume. Por outro lado, os tribunais nenhuma

interferência têm na apreciação da constitucionalidade das normas, a qual é remetida para uma

entidade judicial própria.

D. Os sistemas constitucionais de matriz soviética

O sistema constitucional soviético nasceu directamente da revolução bolchevique de 1917, sendo

produto directo da ideologia marxista-leninista e essencialmente delineado por Lenine.

A ideia base do constitucionalismo soviético é que o poder assenta nos sovietes (conselhos de

operários, soldados, camponeses e marinheiros) e é exercido através do partido comunista que

assumiu como sua a ideologia marxista-leninista.

19

Miranda, tomo I, 1997, pág. 167.

10

A especificidade do constitucionalismo soviético radica no domínio de todo o poder pelo partido

comunista (o partido, depois de permitir ao proletariado a conquista do poder, exerce o poder em

seu nome).20

O poder é, assim, exercido pelo partido e não pelos órgãos do Estado, e o verdadeiro chefe

político é o Secretário-Geral do Partido e não o Presidente do Soviete Supremo ou o Presidente

do Conselho de Ministros. Juridicamente os actos políticos provêm dos órgãos do Estado, mas

politicamente as decisões mais importantes são sempre tomadas pelos órgãos do partido.

A Constituição é desvalorizada, sendo inaplicada em face de leis ordinárias entendidas mais

conformes com o Estado socialista. Os tribunais não interpretem a Constituição, assumindo a

Procuradoria-Geral um papel de maior relevância na aplicação uniforme da lei e no controlo da

administração. O partido pode dar ordens aos tribunais e determinar a interpretação das normas

por estes.

Podemos ainda classificar as Constituições:21

a) Quanto ao conteúdo: materiais e formais;

b) Quanto à forma: escritas e não escritas;

c) Quanto ao modo de elaboração: dogmáticas e históricas;

d) Quanto à origem: populares (democráticas) ou outorgadas; e

e) Quanto à estabilidade: rígidas, flexíveis e semi-rígidas.

a) Quanto ao conteúdo

20

A democracia socialista é uma democracia dirigida, dirigida pelo Partido e pelo Estado no interesse do

desenvolvimento do socialismo e da construção do comunismo (Miranda, tomo I, 1997, pág. 186). 21

Existem ainda outras classificações, variando segundo os autores, mas estas são as essenciais.

11

Constituição material: em sentido amplo, identifica-se com a organização total do Estado, com

regime político; em sentido estrito, designa as normas escritas ou costumeiras, inseridas ou não

num documento escrito, que regulam a estrutura do Estado, a organização de seus órgãos e os

direitos fundamentais.

Constituição formal: é o peculiar modo de existir do Estado, reduzido, sob forma escrita, a um

documento solenemente estabelecido pelo poder constituinte e somente modificável por

processos e formalidades especiais nela própria estabelecida.

b) Quanto à forma

Constituição escrita: é considerada, quando codificada e sistematizada num texto único,

elaborado por um órgão constituinte, encerrando todas as normas tidas como fundamentais sobre

a estrutura do Estado, a organização dos poderes constituídos, seu modo de exercício e limites de

actuação e os direitos fundamentais.

Não escrita: é a que cujas normas não constam de um documento único e solene, baseando-se

nos costumes, na jurisprudência e em convenções e em textos constitucionais esparsos. Ex.

Constituição inglesa.

c) Quanto ao modo de elaboração

Constituição dogmática: é a elaborada por um órgão constituinte, e sistematiza os dogmas ou

ideias fundamentais da teoria política e do Direito dominantes no momento.

Histórica ou costumeira: é a resultante de lenta formação histórica, do lento evoluir das tradições,

dos fatos sociopolíticos, que se cristalizam como normas fundamentais da organização de

determinado Estado.

d) Quanto à origem

Promulgadas (democráticas ou populares): as que se originam de um órgão constituinte

composto de representantes do povo, eleitos para o fim de elaborar e estabelecer a mesma.

12

Outorgadas: são as elaboradas e estabelecidas sem a participação do povo, aquelas que o

governante por si ou por interposta pessoa ou instituição, outorga, impõe, concede ao povo.

e) Quanto a estabilidade

Rígida: é a somente alterável mediante processos, solenidades e exigências formais especiais,

diferentes e mais difíceis que os de formação das leis ordinárias ou complementares.

Flexível: é a que pode ser livremente modificada pelo legislador segundo o mesmo processo de

elaboração das leis ordinárias.

Semi-rígida: é a que contém uma parte rígida e uma flexível.

2. Estrutura da Constituição: Preâmbulo, Partes, Títulos, Capítulos, Artigos e Disposições

Finais e Transitórias

O preâmbulo é o enunciado solene do espírito de uma Constituição, do seu conteúdo ideológico e

do pensamento que orientou os trabalhados da Assembleia Constituinte.

A Constituição divide-se em sete partes:

Parte I – Princípios Fundamentais;

Parte II – Direitos, Deveres, Liberdades e Garantias Fundamentais;

Parte III – Organização do Poder Político;

Parte IV – Organização Económica e Financeira;

Parte V – Defesa e Segurança Nacionais;

Parte VI – Garantias e Revisão da Constituição; e

Parte VII – Disposições Finais e Transitórias.

3. Princípios e Garantias: Diferenças e semelhanças

13

Os princípios constitucionais são o núcleo da Constituição em sentido material, a ideia do Estado

moderadora do regime ou da decisão constituinte.

As garantias visam assegurar o cumprimento dos princípios fundamentais frente ao próprio

Estado, por meios preventivos ou sucessivos que lhe conferem efectividade ou maior

efectividade.22

4. A Constituição em outros países23

A Constituição Brasileira:

Tal como a Constituição nacional, também a Constituição Brasileira de 1988 trata em primeiro

os direitos fundamentais, com prioridade sobre as demais matérias.

O Brasil assume-se como uma federação de Estados, sendo o regime político presidencialista,

embora controlado ou fiscalizado (tratou-se de um compromisso com a corrente maioritária na

Assembleia Constituinte, que tinha pendor parlamentarista). O sistema assenta no princípio da

separação de poderes, assente em três poderes. O Congresso é uma câmara bicameral (a Câmara

dos Deputados e o Senado).

Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar originariamente a acção directa de

inconstitucionalidade das leis, federais ou estaduais.

A Constituição Portuguesa:

A Constituição Portuguesa de 1976 resultou da revolução de 25 de Abril de 1974, que teve, entre

outros, como ponto de referência a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

22

Miranda, tomo II, 1996, pág. 241. 23

Veja-se Miranda, tomo II, 1996, págs. 221 a 238 e 324 a 411.

14

O tratamento dos direitos fundamentais assenta na afirmação simultânea dos direitos, liberdades

e garantias e dos direitos económicos, sociais e culturais, com predominância dos primeiros

sobre os segundos, como é característico do Estado Social de Direito.24

O regime é semi-presidencialista e a apreciação da constitucionalidade das normas é deferida a

um órgão próprio (o Tribunal Constitucional).

As Constituições dos Países Africanos de Expressão Portuguesa:

Como principais características iniciais (1973-1975):

a) Concepção monista do poder e institucionalização de partido único (correspondente ao

movimento de libertação do país);

b) Abundância de fórmulas ideológicas-proclamatórias e de apelo às massas populares;

c) Empenhamento na construção do Estado (director de toda a sociedade);

d) Restrição das liberdades públicas, em moldes autoritários, ou mesmo totalitários;

e) Organização económica de tipo colectivizante;

f) Recusa da separação de poderes a nível da organização política e primado formal da

assembleia popular nacional.

Estas formas constitucionais evoluíram para constituição de natureza democrática (1990-1992),

não através de novas constituição, mas mediante processos de revisão das constituições iniciais.

Principais características das constituições actuais:

a) Reforço dos direitos e liberdades fundamentais, com enumerações largas e relativamente

precisas, regras gerais sobre a sua garantia e proibição da pena de morte;

b) Previsão de mecanismos de economia de mercado, com pluralismo de sectores de propriedade

e a retirada da carga ideológica da Constituição económica;

c) Consagração de regras básicas de democracia representativa, e reconhecimento do papel dos

partidos políticos;

d) Eliminação do princípio da unidade do poder e distribuição mais clara de competências entre

os diversos poderes do Estado;

24

Miranda, tomo II, 1996, pág. 351.

15

e) Sistemas de governo assentes em três órgãos de poder político (presidente da República,

Assembleia e Governo). É acentuado o parlamentarismo em Cabo-Verde, presidencialismo em

Moçambique, Angola e Guiné-Bissau, e semi-presidencialismo em São Tomé e Príncipe.

f) Consagração da criação de autarquias locais;

g) Consagração de órgãos próprios independentes de fiscalização da constitucionalidade das leis.

16

17

CAPÍTULO III – ELABORAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL

1. Breve história da Elaboração da Constituição da RDTL

A Directiva da UNTAET nº 3/2001, de 31 de Março, procedeu à criação de treze comissões

constitucionais (uma por cada distrito administrativo), compostas inteiramente por timorenses

(em número de 5 a 7) assessorados por peritos nacionais e internacionais, para, funcionando

entre 1 de Abril e 15 de Julho de 2001, recolherem opiniões do povo sobre as questões essenciais

da futura Constituição do País, elaborando e apresentando relatórios escritos, não vinculativos,

ao Administrador Transitório e à Assembleia Constituinte.

A Assembleia Constituinte foi composta por 88 Deputados, eleitos por sufrágio directo e

universal, em 30 de Agosto de 2001.

A composição da Assembleia Constituinte era a seguinte:

Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (FRETILIN), 55 lugares;

Partido Democrático (PD), 7 mandatos;

Partido Social Democrata, 6 mandatos;

Associação Social-Democrata Timorense (ASDT), 6 mandatos;

União Democrática Timorense (UDT), 2 mandatos;

Partido Nacionalista Timorense (PNT), 2 mandatos;

Klibur Oan Timor Asuwain (KOTA), 2 mandatos;

Partido do Povo de Timor (PPT), 2 mandatos;

Partido Democrata Cristão (PDC), 2 mandatos;

Partido Socialista de Timor (PST), 1 mandatos;

Partido Liberal (PL), 1 mandatos;

União Democrática Cristã (UDC), 1 mandatos;

Deputados Distritais Independentes, 1.

18

Regulamento da UNTAET nº 2/2001, de 26 de Fevereiro, regulamentou as eleições para a

Assembleia Constituinte, optando por um sistema misto que combinava um círculo eleitoral

nacional com 75 deputados eleitos por um método de representação proporcional, chamados

“representantes nacionais”, e 13 círculos distritais uninominais elegendo um deputado por cada

distrito administrativo de acordo com o sistema maioritário, denominados “representantes

distritais”.

Os documentos elaborados pelas comissões constitucionais foram coligidos e encadernados,

tendo sido apresentados a numerosas entidades, nomeadamente ao Administrador Transitório e à

Assembleia Constituinte.

A Assembleia Constituinte tinha por função laborar e aprovar uma Constituição, tomando em

devida consideração os relatórios das comissões constitucionais.

A Assembleia Constituinte iniciou os seus trabalhos em 15 de Setembro de 2001 tendo

terminado os mesmos a 22 de Março de 2002, com a aprovação e assinatura do texto final da

Constituição da República Democrática de Timor-Leste.25

2. O Poder Constituinte Originário: Conceito, Alcance, Limites e Funções

A questão do titular do poder constituinte originário é indissociável, na prática, da questão do

titular da soberania. Soberano é o poder que cria o direito; soberano é o poder que “constitui a

constituição”; soberano é titular do poder constituinte.26

A soberania popular consiste essencialmente no poder constituinte do povo. A vontade

constituinte é a vontade do povo, expressa por meio de seus representantes.27

25

Fonte: http://timor-leste.gov.tl 26

José Joaquim Gomes Canotilho, in “Direito Constitucional”, 6ª ed. revista, Almedina, Coimbra, 1993, pág. 98. 27

Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, 23ª ed. atualizada, Editora Atlas, São Paulo, 2008, pág. 26.

19

Assim, o poder constituinte é um poder inicial (porque não existe, antes dele, nem de facto nem

de direito, qualquer outro poder), autónomo (a ele e só a ele compete decidir se, como e quando,

deve “dar-se” uma constituição à Nação) e omnipotente ou incondicionado (o poder constituinte

não está subordinado a qualquer regra de forma ou de fundo).28

O poder constituinte originário implica sempre uma situação de ruptura com a ordem jurídico-

constitucional anterior, seja pela constituição do novo Estado, seja por uma convulsão

revolucionária. Surge como uma vontade popular de mudança relativamente a uma ordem

vigente. O poder constituinte originário é aquele que instaura uma nova ordem jurídica,

rompendo por completo com a ordem jurídica precedente.29

Sendo um poder ilimitado e incondicionado é dentro da própria vontade popular que o poder

constituinte originário vai encontrar os seus limites. Aqui pode desempenhar o seu papel a

ciência política e a sociologia política. Em Timor-Leste a relevância da vontade popular foi

manifestada através da criação das comissões constitucionais supra referidas.

Porém, doutrinariamente apontam-se como limites ao poder constituinte os resultantes de

imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, de uma consciência jurídica colectiva

(nomeadamente os relacionados com os direitos fundamentais relacionados com a dignidade da

pessoa humana); os ligados à própria configuração do Estado, ou à ideia de Estado (por exemplo,

um Estado soberano não pode na sua constituição abdicar da soberania); e os resultantes do

direito internacional.30

No dizer de Gomes Canotilho, “A validade de uma constituição pressupõe a sua conformidade

necessária e substancial com os interesses, aspirações e valores de um determinado povo em

determinado momento histórico. Desta forma, a constituição não representa uma simples

positivação do poder; é também uma positivação de “valores jurídicos”. O critério da legiti-

28

Moraes, 2008, pág. 26 29

Lenza, 2008, pág. 84. 30

Miranda, tomo II, 1996, pág. 107-108.

20

midade do poder constituinte não é a mera posse do poder, mas a concordância ou conformidade

do acto constituinte com as “ideias de justiça” radicadas na comunidade”.31

A função primordial do poder constituinte originário consiste no poder de criação originária de

um “complexo normativo” ao qual se atribui a força de Constituição, ou seja, o poder

constituinte material visa a criação de uma Constituição formal.32

3. O Poder Constituinte Derivado: Conceito, Alcance, Limites e Funções

O Poder Constituinte derivado está inserido na própria Constituição, pois decorre de uma regra

jurídica de autenticidade constitucional, portanto, conhece limitações constitucionais expressas e

implícitas e é passível de controle de constitucionalidade.33

Diz-se poder constituinte derivado porque resulta da própria Constituição, na sua versão vigente

à data do exercício de tal poder. Daí que o poder constituinte derivado só possa ser exercido nas

condições previstas na própria Constituição e com os limites por ela impostos.

Trata-se do poder de modificar a constituição em vigor segundo as regras e processos nela

prescritos, que é também considerado como constituinte, embora seja instituído pela própria

constituição.34

Nenhuma Constituição deixa de prever a sua própria revisão, seja de forma expressa ou pelo

menos tacitamente.

4. Outorga e Promulgação da Constituição

31

Canotilho, 1993, pág. 111. 32

Canotilho, 1993, pág. 106. 33

Moraes, 2008, pág. 29. 34

Canotilho, 1993, pág. 95.

21

Trata-se aqui de analisar a forma de expressão do poder constituinte originário.

Segundo Alexandre de Moraes “são duas as formas básicas de expressão do Poder Constituinte:

outorga e assembleia nacional constituinte/convenção”.35

Conforme se referiu anteriormente, as constituições outorgadas são próprias das monarquias

absolutas ou dos Estados ditatoriais ou ainda se situações revolucionárias,36

caracterizando-se

pelo estabelecimento das regras fundamentais da organização política do Estado por iniciativa do

chefe do Estado, seja ele um monarca ou um ditador, ou pela autoridade revolucionária.

Não significa isto que tais constituições não possam conter igualmente as características

fundamentais do constitucionalismo moderno, nomeadamente a consagração de direitos

fundamentais do cidadão e a limitação de poderes dos órgãos do Estado.

O que distingue este tipo de constituições é a forma da sua elaboração e não o seu conteúdo. No

dizer de Gomes Canotilho, “O rei sujeitava-se aos esquemas constitucionais, mas reservava para

si o direito de dar a constituição aos súbditos”.37

A outorga é o estabelecimento da Constituição

por declaração unilateral do agente revolucionário, que autolimita seu poder.38

Pode ainda existir uma forma mista de criação da Constituição, resultante da articulação de dois

princípios diversos: o princípio monárquico e o princípio democrático. São as chamadas

35

Moraes, 2008, pág. 28. 36

O Estado Português criou um Estatuto especial para o território de Timor-Leste, por anexo à Lei nº 7/75, de 17 de

Julho, mas que não se pode considerar uma constituição. A Fretilin não chegou a outorgar nenhuma Constituição

formal para o Estado independente de Timor-Leste, na sequência da declaração de independência de 28-11-1975,

mas pode entende-se que com a declaração de independência foi outorgada uma constituição com os princípios

básicos do Estado independente.

É o seguinte o Texto da Declaração Unilateral da Independência de Timor-Leste, proclamada pela FRETILIN e lida

por Xavier do Amaral:

“Encarnando a aspiração suprema do povo de Timor-Leste e para salvaguarda dos seus mais legítimos direitos e

interesses como nação soberana, o Comité Central da FRENTE REVOLUCIONÁRIA DE TIMOR LESTE

INDEPENDENTE – FRETILIN – decreta e eu proclamo, unilateralmente a independência de Timor Leste que passa

a ser, a partir das 00H00 de hoje, a República Democrática de Timor-Leste, anti-colonialista e anti-imperialista”. 37

Canotilho, 1993, pág. 122. 38

Alexandre de Moraes, in “Direito Constitucional”, 13ª ed. atualizada, Editora Atlas, São Paulo, 2003, pág. 57.

22

constituições dualistas ou pactuadas, através das quais se efectiva um compromisso entre o rei e

assembleia representativa.39

Como já se referiu, o poder constituinte, ou competência originária, radica no povo ou na nação

que determinam este processo de criação constitucional é o que, rigorosamente, se poderá

chamar poder constituinte formal. Por poder constituinte material entende-se o poder de

qualificar como direito constitucional formal determinadas matérias e princípios.40

A assembleia nacional constituinte, também denominada convenção, nasce da deliberação da

representação popular, devidamente convocada pelo agente revolucionário, para estabelecer o

texto organizatório e limitativo de Poder.41

O procedimento constituinte, nas constituições promulgadas, pode ser directo ou indirecto.

Fala-se em procedimento constituinte directo quando o projecto de lei constitucional obtém

validade jurídica através de uma aprovação directa do povo (plesbicito, referendo); designa-se

por procedimento constituinte indirecto ou representativo a técnica da elaboração de constituição

na qual a participação do povo se situa no momento da eleição de representantes para uma

assembleia constituinte, cabendo a estes representantes a deliberação de aprovação da lei

constitucional. Na forma representativa pura cabe à assembleia constituinte elaborar e sancionar

a constituição.42

O princípio da soberania popular é compatível quer com o procedimento constituinte directo

quer com o procedimento constituinte representativo.

5. Revisão da Constituição

39

Canotilho, 1993, pág. 122. 40

Canotilho, 1993, pág. 106. 41

Moraes, 2003, pág. 28. 42

Canotilho, 1993, pág. 121.

23

A revisão da Constituição resulta de um Poder Constituinte derivado, porque inserido na própria

Constituição, e decorre de uma regra jurídica de autenticidade constitucional, portanto, conhece

limitações constitucionais expressas e implícitas e é passível de controle de

constitucionalidade.43

“Nenhuma Constituição deixa de regular a sua revisão, expressa ou tacitamente”.44

A escolha de um processo agravado de revisão, impedindo a livre modificação da lei

fundamental pelo legislador ordinário (constituição flexível), considera-se uma garantia da

Constituição. O processo agravado da revisão é um instrumento dessa garantia, a rigidez

constitucional é um limite absoluto ao poder de revisão, assegurando, desta forma, a relativa

estabilidade da Constituição.45

Segundo Zagrebelsky “O poder de revisão da constituição baseia-se na própria constituição; se

ele a negasse como tal, para substituí-la por uma outra, transformar-se-ia em inimigo da

constituição e não poderia invocá-la como base de validade”.46

Gomes Canotilho47

enuncia os seguintes limites ao processo de revisão constitucional:

“I. Limites quanto ao titular do poder de revisão

a) O órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Neste caso, a revisão ou modificação da

constituição é feita pelo mesmo órgão que desempenha funções legislativas normais, mas

segundo um processo particularmente agravado. O agravamento pode traduzir-se na exigência de

um parecer ou participação de outros órgãos, na exigência de maiorias qualificadas para a

deliberação, na exigência de deliberações intervaladas no tempo, na renovação dos componentes

do órgão legislativo.48

b) O órgão de revisão é o órgão legislativo, mas a revisão exige a participação directa do povo.

Aqui a revisão constitucional continua a pertencer ao órgão legislativo, mas as modificações

43

Moraes, 2003, pág. 28. 44

Miranda, tomo II, 1996, pág. 148. 45

Canotilho, 1993, pág. 1123. 46

Citado por Gomes Canotilho, 1993, pág. 1124. 47

Canotilho, 1993, págs. 1125-1128. 48

Na Constituição da RDTL o poder de revisão constitucional pertence ao Parlamento Nacional (art. 154º, nº 1 e 2).

24

constitucionais carecem de aprovação popular através de referendum, preventivo ou sucessivo,

facultativo ou obrigatório.

c) O órgão de revisão é um órgão especial. Neste esquema poderemos descortinar duas

hipóteses consoante haja ou não ligação com o órgão legislativo normal.

II. Limites relativos às maiorias deliberativas

Quando se reconhece ao órgão legislativo ordinário o poder de revisão, é normal a constituição

sujeitar as deliberações deste órgão a maiorias qualificadas, demonstrativas de uma adesão ou

consenso mais inequívoco dos representantes quanto às alterações da constituição. As revisões

extraordinárias, efectuadas em qualquer momento, implicam naturalmente um processo mais

agravado.49

III. Limites temporais

Este limite costuma ser justificado pela necessidade de assegurar uma certa estabilidade às

instituições constitucionais.50

IV. Limites quanto à legitimidade do órgão com poderes de revisão

A fim de se evitar que o legislador ordinário tenha a constituição à sua completa disposição,

estabelecem-se requisitos tendentes a impedir que as maiorias parlamentares no poder assumam

poderes de revisão para moldar a constituição de acordo com os seus interesses.51

V. Limites circunstanciais

A história ensina que certas circunstâncias excepcionais (estado de guerra, estado-de-sítio,

estado de emergência) podem constituir ocasiões favoráveis à imposição de alterações

constitucionais, limitando a liberdade de deliberação do órgão representativo”.52

49

A Constituição da RDTL só pode ser revista por maioria de dois terços dos deputados do Parlamento Nacional em

efectividade de funções (art. 155º, nº 1). 50

A Constituição da RDTL só pode ser revista decorridos seis anos sobre a data da entrada em vigor da Constituição

originária ou sobre a data da publicação da última revisão (art. 155º, nº 2 e 3). 51

Fora da limitação temporal referida, a Constituição será revista apenas a solicitação de quatro quintos dos

deputados em efectividade de funções (art. 155º, nº 4). 52

A Constituição da RDTL não pode ser revista durante o período em que vigore o estado de sítio ou de emergência

(art. 157º).

25

6. As Cláusulas Pétreas

As chamadas Cláusulas Pétreas constituem os limites materiais à revisão da Constituição.53

Trata-se de normas ou princípios constitucionais que a própria Constituição prevê que não

possam ser alteradas numa revisão constitucional. Trata-se de uma manifestação da prevalência

do Poder Constituinte originário relativamente ao Poder Constituinte derivado.

Para Jorge Miranda, “O problema dos limites materiais da revisão reconduz-se, no fundo, ao

traçar de fronteiras entre o que vem a ser a função própria de uma revisão e o que seria já

convolação em Constituição diferente”.54

Seguindo ainda Gomes Canotilho,55

existem os seguintes limites materiais:

“I. Limites expressos e limites tácitos

Limites expressos são os limites previstos no próprio texto constitucional. As constituições

seleccionam um leque de matérias, consideradas como o cerne material da ordem constitucional,

e furtam essas matérias à disponibilidade do poder de revisão.

Outras vezes, as constituições não contêm quaisquer preceitos limitativos do poder de revisão,

mas entende-se que há limites não articulados ou tácitos, vinculativos do poder de revisão. Esses

limites podem ainda desdobrar-se em limites textuais implícitos, deduzidos do próprio texto

constitucional, e limites tácitos imanentes numa ordem de valores pré-positiva, vinculativa da

ordem constitucional concreta.

II. Limites absolutos e limites relativos

Consideram-se limites absolutos de revisão todos os limites da constituição que não podem ser

superados pelo exercício de um poder de revisão; serão simples limites relativos aqueles limites

que se destinam a condicionar o exercício do poder de revisão, mas não a impedir a

53

Os limites materiais encontram-se enunciados no art. 156º da Constituição. 54

Miranda, 1996, tomo II, pág. 199. 55

Canotilho, 1993, págs. 1129-1132.

26

modificabilidade das normas constitucionais, desde que cumpridas as condições agravadas

estabelecidas por esses limites.

A existência de limites absolutos é, porém, contestada por alguns autores, com base na

possibilidade de o legislador de revisão poder sempre ultrapassar esses limites mediante a técnica

da dupla revisão. Num primeiro momento, a revisão incidiria sobre as próprias normas de

revisão, eliminando ou alterando esses limites; num segundo momento, a revisão far-se-ia de

acordo com as leis constitucionais que alteraram as normas de revisão. Desta forma, as

disposições consideradas intangíveis pela constituição adquiririam um carácter mutável, em

virtude da eliminação da cláusula de intangibilidade operada pela revisão constitucional”.56

Já para Jorge Miranda, não é admissível a revisão constitucional, mesmo com recurso ao

mecanismo da dupla revisão, relativamente às cláusulas referentes aos limites dos próprio poder

constituinte originário. Mas já admissível a alteração mediante tal mecanismo relativamente aos

restantes limites.57

56

Gomes Canotilho afasta, porém, esta possibilidade.

Em Portugal a técnica da dupla revisão foi usada, por exemplo, com a Constituição Portuguesa de 1976, eliminando-

se algumas normas de limitação da revisão constitucional. 57

Miranda, tomo II, 1996, pág. 207.

27

CAPÍTULO IV – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA CONSTITUIÇÃO

1. República, Soberania, Constitucionalidade, Cidadania, Território, Objectivos do Estado:

Conceitos, significados e importância

Os princípios constitucionais estruturam a Constituição. Constituem os fundamentos do Estado

constitucional, ou “princípios constitutivos do «núcleo essencial da constituição», garantindo a

esta uma determinada identidade e estrutura”.58

Conforme a Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, relativamente ao

art. 1º, “A “República”, destacada na epígrafe, sem adjetivos, identifica a comunidade política na

sua totalidade intemporal, como substrato pré-constitucional distinto e anterior ao Estado que

agora, precisamente, se pretende qualificar e ordenar”.59

No dizer de Gomes Canotilho, República é a “forma de exprimir a ideia relacional da

Constituição com a «comunidade» e não apenas com o Estado”.60

O termo República está aqui utilizado no sentido de colectividade política, de sociedade política

ou de comunidade política, enfim, de res publica”.61

Salienta ainda Gomes Canotilho que se tal definição exprime um Estado organizado e regido por

leis. Por outro lado, exprime ainda o exercício de poder não pessoalizado.62

O conceito de república encontra-se ainda associado aos conceitos de democracia e de Estado de

direito.

58

Canotilho, 1993, pág. 345. 59

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, coordenação de Pedro Carlos Bacelar de

Vasconcelos, edição de Direitos Humanos-Centro de Investigação Interdisciplinar, Escola de Direito da

Universidade do Minho, Campus de Gualtar, Braga, pág. 19. 60

Canotilho, 1993, pág. 484.

“Logo aqui se revela que Constituição se apresenta como lei fundamental da comunidade ou lei-quadro fundamental

da República, globalmente considerada, e não apenas como estatuto organizatório do Estado” (Gomes Canotilho e

Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, 2007, pág.

197. 61

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 197. 62

Por contraposição ao regime monárquico.

28

Para Gomes Canotilho e Vital Moreira, “As bases da República são a dignidade da pessoa

humana e a vontade popular”.63

A soberania exprime a ideia da unidade nacional, que impede a desagregação territorial do

Estado soberano, bem como a rejeição total, se necessário mediante resistência armada à

violação do território nacional por qualquer outro país. Exprime-se “o exercício autónomo da

criação e aplicação das suas próprias normas jurídicas, o relacionamento em pé de igualdade com

os demais Estados membros da comunidade internacional”.64

No dizer de Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o qualificativo significa não só a soberania

nacional em sentido político formal mas também a autodeterminação (independência política em

sentido material). Na verdade, soberania quer dizer, antes de tudo, autonomia, ou seja capacidade

de se dotar das suas próprias normas, da sua própria ordem jurídica (a começar pela Lei

Fundamental)”.65

Constitucionalidade, expressão do Estado de direito, significa a primazia da Constituição como

fonte de direito, conforme o art. 2º, nº 2. Todas as leis nacionais devem subordinar-se à

Constituição. “O propósito essencial deste preceito é o de afirmar a supremacia da Constituição

(princípio da constitucionalidade), que, enquanto lei fundamental do país, subordina o Estado

(n° 2), impondo-se como parâmetro de validade para a atuação dos órgãos do Estado e do poder

local (n° 3), define os termos do exercício da soberania pelo povo (n° 1) e institui os limites

dentro dos quais poderão ser reconhecidos as normas e os usos costumeiros de Timor-Leste (n°

4). Precisamente porque a Constituição é a lei suprema, a partir do momento em que existe uma

disposição constitucional sobre uma dada matéria, essa disposição não poderá ser afastada. É

nisto que consiste a força normativa da Constituição”.66

63

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 198. 64

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 20. 65

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 197. 66

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 22.

29

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Do princípio da constitucionalidade em geral e da

constitucionalidade do Estado em particular decorre necessariamente o princípio da

constitucionalidade da acção do Estado e de quaisquer outras entidades públicas”.67

A cidadania encontra consagrada no art. 3º. “A cidadania pode ser definida como o vínculo

jurídico que traduz a pertença de um indivíduo a uma comunidade política. Para os seus titulares,

a cidadania representa, além de um importante alicerce de identidade, o estatuto jurídico

fundamental e primário, a matriz de que decorrem os seus direitos e deveres. A cidadania é,

simultaneamente, um status e o direito de participar na vida jurídica e política que o Estado

propicia e de beneficiar da defesa e da promoção de direitos que o Estado concede. Para os

Estados, a delimitação do universo dos seus cidadãos (o seu povo) constitui uma prerrogativa

fundamental, expressão da sua soberania e matéria do seu domínio reservado, ainda que o direito

internacional imponha algumas condições (como a do caráter efetivo dos laços existentes entre o

indivíduo e o Estado) sem as quais o vínculo, conquanto estabelecido a nível interno, não será

oponível aos demais Estados nem poderá ser invocado na esfera internacional”.68

O direito de cidadania está consagrado no 15º da Declaração Universal dos Direitos do Homem

(“Todo o cidadão tem direito a uma nacionalidade”). A cidadania nacional encontra-se

regulamentada na Lei nº 9/2002, de 20 de Outubro.

O território, princípio consagrado no art. 4º, “delimita o espaço físico dentro do qual o Estado

exerce plenamente o seu poder, constituindo, nessa medida, um pressuposto material do

exercício válido, efetivo e exclusivo da soberania e uma condição da independência política e

económica relativamente a outros Estados”.69

A soberania territorial encontra-seconcretizada na Lei nº 7/2002, de 24 de Agosto.70

Veja-se o

art. 10º, nº 1.

67

Ob. cit., pág. 217. 68

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 25. 69

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 29. 70

Sobre a definição da zona marítima nacional a Lei 7/2002, de 24 de Agosto, de acordo com a Convenção das

Nações Unidas de direito do mar de 1982 (convenção de Montego Bay). Assim, nos termos do art. 5º, “O limite

30

Os objectivos do Estado encontram-se enunciados no art. 6º. Timor-Leste, enquanto Estado

constitucional, está vinculado, quanto aos meios e quanto aos fins à própria Constituição.71

“O Estado está vinculado à realização dos objetivos estabelecidos na Constituição, por força de

se assumir como Estado constitucional, isto é, um Estado subordinado ao disposto na

Constituição (art. 2°, n° 2). A obrigação do Estado é completa, no sentido de que o Estado deve

não só empregar todos os meios adequados como ainda assegurar que os fins sejam efetivamente

realizados”.72

Trata-se de norma programática, que delimita e obriga o Estado na sua actividade legislativa e

administrativa, mas dela não se extraem directamente direito subjectivos dos cidadãos. A única

consequência da sua violação será a inconstitucionalidade por omissão.

2. Sufrágio Universal e multipartidarismo.

“Entendeu o legislador constituinte especificar em artigo autónomo os objetivos do Estado já

enunciados nas alíneas b) e c) do artigo anterior, para sublinhar a centralidade do sufrágio

universal na formação da vontade popular, quer para eleição dos seus representantes quer para o

referendo”.73

exterior do mar territorial de Timor-Leste é definido por uma linha em que cada um dos pontos se situa a uma

distância de doze milhas náuticas do ponto mais próximo da linha de base”, ou seja, veio fixar-se como mar

territorial o mar adjavente à costa até 12 milhas marítimas (conforme o art. 3º da Convenção), havendo ainda uma

zona contígua ao mar territorial, até ao limite de 24 milhas, nos termos do art. 6º da Lei, a contar da linha de base do

mar territorial, onde o Estado pode tomar medidas de fiscalização e prevenção, nos termos do art. 10º, nº 2 da Lei

(conforme o art. 33º da Convenção). Para além disso existe a zona económica exclusiva, a área marinha situada para

além do mar territorial e a este adjacente, até 200 milhas marítimas a contar do ponto mais próximo da linha de base,

nos termos do art. 7º da Lei, que conferem direitos de fruição exclusiva, nomeadamente dos recursos naturais aí

existentes, de harmonia com o disposto no art. 56º da Convenção. A plataforma continental, definida no art. 8º da

Lei, é semelhante à zona económica exclusiva e refere-se aos fundos marínhos (arts. 76º e 77º da Convenção),

fundamentando nomeadamente a prospecção de petróleo na zona referida. 71

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 275. 72

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 36. 73

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 39.

31

Segundo Gomes Canotilho, “O sufrágio universal é considerado quase como a ratio essendi da

República”.74

Acrescentam Gomes Canotilho e Vital Moreira, “O presente artigo é uma concretização do

princípio democrático [consagrado nos arts. 1º, nº 1, e 2º, nº 1, da Constituição]. Nestes preceitos

elevam-se à dignidade de princípio fundamental da Constituição as figuras do sufrágio e dos

partidos políticos, significando que, em certo sentido, o Estado democrático [timorense] é um

Estado-de-eleições e um Estado-de-partidos, ou seja, uma democracia eleitoral e uma

democracia de partidos. De facto, ressalvado o papel do referendo como instrumento de

democracia participativa, a democracia constitucional é essencialmente uma democracia

representativa, baseada em eleições de órgãos representativos protagonizados em geral pelos

partidos políticos. De resto, a conjugação destas duas figuras no mesmo preceito sublinha a

ligação constitucional entra ambas e justifica, por exemplo, o papel dos partidos na

protagonização do sufrágio”.75

Sobre a matéria veja-se os arts. 46º, 47º e 48º da Constituição.

3. Relações Internacionais, Recepção do direito internacional e Solidariedade.

“O art. 8.° trata do posicionamento de Timor-Leste no mundo, contendo os princípios e as regras

jurídicas fundamentais que devem nortear a atuação do Estado timorense no âmbito das relações

que estabelece e mantém com os outros Estados soberanos e com os demais membros da

comunidade internacional. A ideia geral que resulta do conjunto é a de uma grande abertura ao

relacionamento com os outros povos e Estados e de um significativo entrosamento da atuação do

Estado timorense com os princípios jurídicos fundamentais que regem a vida internacional”.76

74

Canotilho, 1993, pág. 313. 75

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 285. 76

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 43.

32

Revela-se aqui a importância que o legislador constituinte atribuiu ao próprio Eatdo na relações

internacionais, onde se assiste a uma cada vez maior interdependência entre os Estados, bem

como um incremento do sistema normativo internacional.

Para Vital Moreira e Gomes Canotilho, “O nº 1 contém, na sua maior parte, princípios gerais de

direito internacional comum que regem as relações internacionais e que, mesmo no silêncio da

Constituição, já vinculariam o Estado”. A norma “estabelece de forma inequívoca e reforça, com

a autoridade da Lei fundamental, os mesmos princípios”.77

“No nº 1 a Constituição dá guarida a duas categorias de direitos: os direitos do homem e os

direitos dos povos”. “Os direitos dos povos (também conhecidos por direitos de quarta geração

ou por terceira dimensão dos direitos humanos), transportam uma dimensão colectiva que

aponta, desde logo, para direitos considerados como pré-condição básica e inalienável de todos

os direitos – o direito à autodeterminação e independência”.78

Nesta sequência, estabelece o art. 10º, nº 1, a solidariedade com a luta dos povos pela libertação

nacional.

“Por solidariedade, neste contexto, crê-se dever entender-se o empenhamento ativo do Estado

com a luta de outros povos que ainda não atingiram a autodeterminação a que aspiram.

“… já no n.° 2 deste mesmo artigo a Constituição traduz esta solidariedade num compromisso

concreto com as vítimas daquela luta.

“Da localização sistemática desta norma sobre asilo e do próprio enunciado do artigo resulta que

o direito de asilo não é um direito fundamental das vítimas de perseguição, mas apenas uma

concessão do Estado, que vincula as autoridades públicas, mas não atribui um direito subjetivo

fundamental às vítimas de perseguição”.79

77

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 239-240. 78

Canotilho e Moreira, 2007, págs. 240 e 241. 79

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 54-55.

33

Este preceito deve ser interpretado “não só no sentido do reconhecimento do direito à inssureição

como direito de resistência colectiva activamente exercida, mas também no sentido de legitimar

o apoio … aos povos que lutam contra a oporessão”.80

O art. 9º “define a relação do ordenamento jurídico timorense com o direito internacional,

distinguindo, como noutros ordenamentos jurídicos, diferentes regimes de receção de direito

internacional.

“A definição das condições de receção constitucional do direito internacional tem encontrado

duas modalidades: incorporação81

e transformação. O regime de incorporação é dominante

segundo a tradição dos sistemas jurídicos da família civilista, nos quais os atos de direito

internacional vigoram no ordenamento jurídico nacional nessa qualidade de atos de direito

internacional. Nestes sistemas, a receção pode ser automática, por simples operação

constitucional, ou condicionada à prévia adoção de atos derivados de direito interno. Os regimes

de transformação, típicos dos sistemas common law, exigem que a vigência de qualquer ato de

direito internacional se faça pela conversão em atos de direito interno, especialmente de cariz

parlamentar. Estas distinções são cada vez menos decisivas, encontrando-se na Constituição

diferentes regimes que distinguem em função das normas de direito internacional recebidas”.82

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “O nº 1 estebelece um regime de recepção

automática das normas e princípios de direito internacional geral que assim beneficiam de uma

cláusula geral de recepção plena, sendo tal direito incorporado como parte integrate do direito

[timorense], sem necessidade de observância das regras ou formas constitucionais específicas de

vinculação estadual ao direito internaciona (aprovação, ratificação, publicação)”. “Normas de

DIP83

geral são as normas consuetudinárias (costume internacional) de âmbito geral, mesmo que

se encontrem positivadas em instrumentos internacionais de âmbito Universal (Carta da ONU ou

a DUDH); princípios de DIP geral são os princípios fundamentais geralmente reconhecidos no

direito interno dos Estados e que, em virtude da sua radicação generalizada na consciência

80

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 242. 81

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, pág. 255, teoria da adopção. 82

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 54-55. 83

Direito Internacional Público.

34

jurídica das colectividades, acabam por adquirir sentido normativo no plano do direito

internacional (por ex: princípio da boa-fé, cláusula rebus sic stantibus84

, princípio do abuso de

direito, princípio da legitima defesa)”.85

4. Valorização da resistência, O Estado e as confissões religiosas, Línguas oficiais e línguas

nacionais, Símbolos nacionais e Bandeira Nacional.

Como já se referiu anteriormente, “a exaltação [no art. 11º] das ações heroicas dos fundadores e

a legitimação da desordem revolucionária donde emergiu a nova ordem jurídico-constitucional

pertencem a uma tradição comum ao movimento constitucional moderno”.86

Dele nasce o poder

constituinte originário.

Não obstante o disposto no art. 11º, nº 2, o art. 12º consagra a laicidade do Estado timorense.

Este artigo deve ser interpretado em articulação com o art. 45.°, onde explicitamente é

consagrado o princípio da separação entre as confissões religiosas e o Estado.87

Nos termos do art. 13º, nº 1, “O tétum e o português são as línguas oficiais da República

Democrática de Timor-Leste”.88

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Esta norma constitui uma imposição no sentido de,

em cerimónias do Estado ou em missões oficiais dos titulares dos órgãos de soberania do

Estado”, ser utilizada uma das línguas oficiais.89

Sobre os símbolos oficiais regulam os arts. 14º e 15º.

84

Rebus sic stantibus é uma expressão latina que significa “estando as coisas assim” ou “enquanto as coisas estão

assim”. A cláusula rebus sic stantibus consagra princípio de que uma convenção pode ser ajustada a uma nova

realidade, ou uma situação imprevista. 85

Canotilho e Moreira, 2007, págs. 254-255. 86

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 58. 87

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 59. 88

O padrão ortográfico da língua tétum desenvolvido pelo Instituto Nacional de Linguística (INL) foi aprovado pelo

Decreto do Governo n° 1/2004, de 14 de Abril. 89

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 292.

35

Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Os símbolos nacionais, antes de serem símbolos do

Estado, são símbolos da colectividade política (da República, no sentido do art. 1º). São valores

de referência de toda a colectividade, de comunhão cultural e ideológica, de identificação e de

distinção. Assumem, assim, alto relevo sob o ponto de vista constitucional”.90

90

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 291 (Quando, no artigo [14°], se fala de “Bandeira Nacional” e de “Hino

Nacional”, o adjectivo nacional aponta para o conceito de Nação como sinónimo de povo “fomado e determinado

historicamente”, isto é, “portador de historicidade existencial”).

36

37

Direito Constitucional II

Teoria Geral do Estado

CAPÍTULO I – FORMAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO ESTADO

1. Estado – Elementos do Estado

O Estado é a sociedade política organizada.

Para Gomes Canotilho, “o conceito de Estado é assumido como uma forma histórica de um

ordenamento jurídico geral cujas características ou elementos constitutivos [são] os seguintes:

(1) - territorialidade, isto é, a existência de um território concebido como “espaço da soberania

estadual”; (2) - população, ou seja, a existência de um “povo” ou comunidade historicamente

definida; (3) -politicidade: prossecução de fins definidos e individualizados em termos políticos.

A organização política do Estado era, por sua vez, uma parte fundamental (“parte orgânica”) da

Constituição”.91

Num sentido amplo, o Estado abrange “todo o complexo de entidades públicas, isto é, aquelas

dotadas, entre outras coisas, de poder de autoridade -, e neste sentido se pode dizer por exemplo

que o Estado abrange não apenas o Estado central, mas também os [órgão de poder local].

Noutros casos, tem um sentido menos amplo, excluindo precisamente as outras entidades

públicas territoriais. Noutros casos ainda tem um sentido ainda mais restrito, abrangendo apenas

o Estado-pessoa-colectiva representada pelo Governo e excluindo todas as outras entidades

públicas”.92

No art. 1º da Constituição “o Estado designa a organização política da sociedade

constitucionalmente institucionalizada”.93

91

Canotilho, 1993, págs. 14-15. 92

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 204. 93

Canotilho e Moreira, 2007, pág. 204.

38

Jorge Miranda considera que o Estado tem as seguintes características: (a) complexidade de

organização e actuação; (b) institucionalização; (c) coercibilidade e autonomização do poder

político; e (d) sedentariedade.94

a) “A complexidade de organização e actuação consiste em centralização do poder, multiplicação

e articulação de funções, diferenciação de órgãos e serviços, enquadramentos dos indivíduos em

termos de faculdades, prestações e imposições”.

b) Institucionalização do poder “significa dissociação entre a chefia, a autoridade política, o

poder, e a pessoa que em cada momento tem o seu exercício; fundamentação do poder, não nas

qualidades pessoais do governante, mas no Direito, que o investe como tal; permanência do

poder para além da mudança de titulares; e sua subordinação à satisfação de fins não egoísticos,

à realização do bem comum”.

c) A coercibilidade traduz-se no poder do Estado de administrar justiça, o que implica o

monopólio da força física. Por outro lado, as instituições do Estado, as instituições políticas e

instituições especializadas, adquirem autonomia.

d) A sedentariedade significa que o Estado assenta num território determinado.

O mesmo autor, definindo o Estado moderno apresenta-lhe as seguintes características:

- Estado nacional: “o Estado tende a corresponder a uma nação ou comunidade histórica de

cultura”;

- Secularização ou laicidade: o temporal e o espiritual afirmam-se em esferas distintas e a

religião já não serve de base à comunidade. O poder político não prossegue fins religiosos.

- Soberania: poder supremo e aparentemente ilimitado para vencer qualquer resistência interna à

sua acção e para afirmar a sus independência perante outros Estados.95

94

Miranda, tomo I, 1997, pág. 47. 95

Miranda, tomo I, 1997, págs. 64-65.

39

2. Princípios constitucionais

A Constituição (art. 1º, nº 1) define o Estado timorense como “um Estado de direito

democrático”.

Como já se referiu, “A “República”, destacada na epígrafe, sem adjetivos, identifica a

comunidade política na sua totalidade intemporal, como substrato pré-constitucional distinto e

anterior ao Estado que agora, precisamente, se pretende qualificar e ordenar”.96

Segundo Gomes Canotilho, o princípio do Estado de direito pressupõe por sua vez os seguintes

princípios:

a) O princípio da legalidade da administração

“O princípio da legalidade da administração, sobre o qual insistiu sempre a teoria do direito

público e a doutrina da separação de poderes, foi erigido, muitas vezes, em «cerne essencial» do

Estado de direito. Postulava, por sua vez, dois princípios fundamentais: o princípio da

supremacia ou prevalência da lei (Vorrang des Gesetzes) e o princípio da reserva de lei

(Vorbehalt des Gesetzes). Estes princípios permanecem válidos, pois num Estado democrático-

constitucional a lei parlamentar é, ainda, a expressão privilegiada do princípio democrático (daí a

sua supremacia) e o instrumento mais apropriado e seguro para definir os regimes de certas

matérias, sobretudo dos direitos fundamentais e da vertebração democrática do Estado (daí a

reserva de lei). De uma forma genérica, o princípio da supremacia da lei e o princípio da reserva

de lei apontam para a vinculação jurídico--constitucional do poder executivo.”97

b) Os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança dos cidadãos

“Estes princípios apontam sobretudo para a necessidade de uma conformação formal e material

dos actos legislativos, postulando uma teoria da legislação, preocupada em racionalizar e

96

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 19. 97

Canotilho, 1993, pág. 371.

40

optimizar os princípios jurídicos de legislação inerentes ao Estado de direito. A ideia de

segurança jurídica reconduz-se a dois princípios materiais concretizadores do princípio geral de

segurança: princípio da determinabilidade de leis expresso na exigência de leis claras e densas e

o princípio da protecção da confiança, traduzido na exigência de leis tendencialmente estáveis,

ou, pelo menos, não lesivas da previsibilidade e calculabilidade dos cidadãos relativamente aos

seus efeitos jurídicos”.98

c) O princípio da proibição do excesso

“O princípio da proporcionalidade em sentido amplo, também conhecido por princípio da

proibição de excesso (Úbermassverbot), desdobra-se em várias exigências ou princípios que,

esquematicamente, poderemos arrumar da seguinte maneira”: a) Princípio de conformidade ou

adequação de meios (Geeignetheit), pretende “salientar que a medida adoptada para a realização

do interesse público deve ser apropriada para a prossecução do fim ou fins a ele subjacentes”; b)

Princípio da exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit), “este requisito, também

conhecido como «princípio da necessidade» ou da «menor ingerência possível» coloca a tónica

na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível; c) O princípio da

proporcionalidade em sentido restrito (Verhãltnis-màssigkeit), necessidade de o resultado obtido

com a intervenção ser proporcional à «carga coactiva» da mesma.99

d) O princípio da protecção jurídica e das garantias processuais

“«Terceira dimensão do Estado de direito», «pilar fundamental do Estado de direito»,

«coroamento do Estado de direito», são algumas das expressões utilizadas para salientar a

importância, no Estado de direito, da existência de uma protecção jurídica individual sem

lacunas”.100

Aqui se incluem as garantias de direito penal, processuais e procedimentais, bem

como de direito administrativo e do processo judicial em geral.

“A expressão, “Estado de direito democrático, soberano, independente” insere a República

timorense na família das modernas democracias constitucionais: a subordinação do poder ao

Direito e à vontade popular, o exercício autónomo da criação e aplicação das suas próprias

98

Canotilho, 1993, págs. 371-372. 99

Canotilho, 1993, págs. 382-384. 100

Canotilho, 1993, págs. 385-388.

41

normas jurídicas, o relacionamento em pé de igualdade com os demais Estados membros da

comunidade internacional.

“A “vontade popular” e a “dignidade da pessoa humana” são os fundamentos do “Estado de

direito democrático”, orientadores da ação e condições da sua própria legitimidade. São os polos

indissociáveis da permanente tensão entre a vontade da maioria e a liberdade individual, entre o

bem comum e a subjetividade, o público e o privado”.101

3. Objectivos e funções do Estado

Como já se referiu, a Constituição da RDTL, vai para além da consagração de um Estado de

direito democrático, prevendo já a criação de um Estado de direito democrático e social, na

senda das modernas constituições mundiais.

Gomes Canotilho divide as funções do Estado em três ordens:

- Funções de Estado de primeira ordem são as de manutenção da segurança interna e externa do

Estado, ou a criação de “ordem-quadro para o exercício de liberdade política e económica” (art.

6º, al. a));

- Funções de Estado de segunda ordem, como a política de “intervenção” e “estímulo” com o fim

de criar instrumentos de “integração” necessários à organização capitalista da economia (art. 6º,

al. d)); e

- Funções de Estado de terceira ordem, a criação de pressupostos materiais para a realização da

democracia social e económica. As funções de Estado de terceira “pressupõem intervenções

qualitativas na ordem económica existente. Estas intervenções não se limitam a uma função de

direcção (Steuerung durch Recht, Lenkungsrecht) ou de «coordenação» de uma «economia de

101

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 20.

42

mercado»; são instrumentos de transformação e modernização das estruturas económicas e

sociais” (art. 6º, als. e), f), g), i) e j)).102

Promover a “edificação de uma sociedade com base na justiça social, criando o bem-estar

material e espiritual dos cidadãos”, sintetiza os objetivos do Estado da proteção da liberdade

individual e a garantia dos direitos de participação política, os quais só “realizáveis no quadro de

valores de uma sociedade solidária, atenta à criação das condições materiais indispensáveis ao

desenvolvimento económico, à melhoria das condições de vida, à igualdade de oportunidades no

acesso à educação, à saúde, e à segurança social”.103

102

Canotilho, 1993, págs. 474. 103

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 37.

43

CAPÍTULO II - ORGANIZAÇÃO DO PODER POLÍTICO

1. Princípios Gerais

Parte III da Constituição é dedicada à “organização do poder político”, aí se definindo as

competências e atribuições do Presidente da República (Título II), as competências e atribuições

da Assembleia da República, a forma e o processo dos actos deste mesmo órgão, a sua

organização e funcionamento (Título III); a função e estrutura do Governo, sua formação,

responsabilidade e competência (Título IV); a organização dos tribunais e o estatuto dos titulares

da função jurisdicional, Ministério Público e Advocacia (Título V); a estrutura da administração

pública (VI).

Conforme resulta da própria definição da Constituição, enquanto instrumento de organização do

poder político do Estado, “a uma lei fundamental pertence determinar vinculativamente as

competências dos órgãos de soberania e as formas e processos do exercício do poder”.104

Nos termos do art. 67º da Constituição, “São órgãos de soberania o Presidente da República, o

Parlamento Nacional, o Governo e os Tribunais.”

“A divisão segundo o critério funcional é a célebre “separação de Poderes”, que consiste em

distinguir três funções estatais, quais sejam, legislação, administração e jurisdição, que devem

ser atribuídas a três órgãos autônomos entre si, que as exercerão com exclusividade”.105

O princípio da separação de poderes está consagrado no art. 69º da Constituição. “A separação

de poderes tem uma dimensão negativa, de separação/limitação do exercício do poder pelo seu

controlo recíproco, e uma dimensão positiva, ordenadora da organização do poder político

segundo variáveis critérios de legitimidade e democraticidade. Por um lado, importa proteger os

cidadãos pela disseminação dos centros de exercício do poder público, cujo controlo mútuo

104

Canotilho, 1993, págs. 73. 105

Moraes, 2003, pág. 369.

44

(checks and balances) é uma das suas principais garantias. Por outro lado, a separação de

poderes impõe constitucionalmente a legitimidade democrática (direta e indireta) da ação dos

órgãos de soberania, como sucede diretamente com o Parlamento ou o Presidente da República e,

indiretamente, com o Governo que responde perante o PN e o PR. No caso dos tribunais, a

legitimidade da sua ação é de outra forma garantida pela Constituição, por exemplo, impondo

especiais garantias de independência, que todos os demais poderes deverão respeitar. A

legitimidade própria de cada um dos órgãos de soberania é o fundamento para o seu controlo

mútuo (checks and balances) – razão pela qual, além de estrita separação, este é também um

princípio de interdependência de poderes”.106

Conforme explica Alexandre de Moraes, “Lembremo-nos que o objetivo inicial da clássica

separação das funções do Estado e distribuição entre órgãos autônomos e independentes tinha

como finalidade a proteção da liberdade individual contra o arbítrio de um governante

onipotente. Em conclusão, o Direito Constitucional contemporâneo, apesar de permanecer na

tradicional linha da idéia de Tripartição de Poderes, já entende que esta fórmula, se interpretada

com rigidez, tornou-se inadequada para um Estado que assumiu a missão de fornecer a todo o

seu povo o bem-estar, devendo, pois, separar as funções estatais, dentro de um mecanismo de

controles recíprocos, denominado “freios e contrapesos” (checks and balances)”.107

Acrescenta Gomes Canotilho, trata-se de racionalizar e limitar os poderes públicos. “É também

uma função clássica associada ao princípio da divisão de poderes (separação e interdependência)

como princípio informador da estrutura orgânica da constituição. Separando os órgãos e

distribuindo as funções consegue-se, simultaneamente, uma racionalização do exercício das

funções de soberania e o estabelecimento de limites recíprocos”.108

Citando, de novo Alexandre de Moraes, “Não existirá, pois, um Estado democrático de direito,

sem que haja Poderes de Estado e Instituições, independentes e harmônicos entre si, bem como

previsão de direitos fundamentais e instrumentos que possibilitem a fiscalização e a perpetuidade

106

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 243. 107

Moraes, 2003, pág. 373. 108

Canotilho, 1993, pág. 73.

45

desses requisitos. Todos estes temas são de tal modo ligados que a derrocada de um, fatalmente,

acarretará a supressão dos demais, com o retorno do arbítrio e da ditadura”.109

No que respeita à forma de organização do poder político pode-se caraterizar o regime político

consagrado na Constituição como semi-presidencial, ou regime misto parlamentar presidencial,

“onde são visíveis elementos caracterizadores do regime parlamentar e dimensões próprias da

forma de governo presidencialista”.110

Seguindo Gomes Canotilho111

, são traços do regime parlamentar:

a) Autonomia do Governo

“Tal como no regime parlamentar, onde existe um conselho de ministros, presidido por chefe de

governo, com autonomia institucional e competência própria, e ao contrário do regime

presidencialista puro, em que os «secretários de Estado» não formam um corpo autónomo, sendo

meros executantes do Presidente da República, a [Constituição da RDTL] estabelece a existência

de um Governo dirigido por um Primeiro-Ministro como órgão de soberania institucionalmente

autónomo” (arts. 103º a 105º).

b) Responsabilidade ministerial

“A responsabilidade política do governo perante o parlamento … está constitucionalmente

consagrada na [Constituição da RDTL] como pode ver-se nos arts. 109º a 112º. O

desenvolvimento da responsabilidade política do Governo perante o Parlamento não se afasta, no

nosso sistema, do clássico modelo parlamentar: (i) ou se trata de uma iniciativa [do PN] através

de uma moção de censura (art. 111º); (ii) ou se verifica uma iniciativa do próprio Governo

através de uma moção de confiança (art. 110º)”.

109

Moraes, 2003, pág. 374.

“Sendo a lei “fonte do direito”, “instrumento principal de dominação” e “prerrogativa máxima do poder soberano”,

indiscutível a necessidade de se prever a existência de um órgão estatal para sua realização. Órgão este independente

e autônomo, a fim de realizar seu mister sem ingerências indevidas de outros órgãos estatais. Para tanto, consagrou-

se a separação das funções do Estado mediante critérios funcionais” (Moraes, 2003, pág. 419). 110

Canotilho, 1993, pág. 582. 111

Canotilho, 1993, págs. 583-585.

46

Traços do regime presidencial:

a) A instituição de um Presidente da República eleito através de sufrágio directo

“Tal como acontece nos sistemas presidencialistas, o PR é eleito através de sufrágio universal,

directo e secreto dos cidadãos [timorenses (art. 76º, nº 1)]. Não se estabelece, pois, uma

legitimidade indirecta do PR derivada da sua eleição pelas câmaras como acontece nos regimes

parlamentares republicanos.

b) O direito de veto político e legislativo

“Embora o PR não disponha de iniciativa legislativa, pode opor-se através do veto, como

acontece nos regimes presidenciais, às leis” votadas pelo PN (cfr. art. 88º, nº 1).

c) A existência de poderes de direcção política

“Um regime presidencial caracteriza-se pela existência de poderes de direcção política por parte

do presidente da república, diferentemente do que acontece com um presidente da república em

regime parlamentar. O que rigorosamente imprime uma dimensão presidencialista ao regime é:

(i) o conjunto de poderes institucionais conferidos ao PR e inexistente nos regimes

parlamentares; (ii) a existência de poderes próprios de um indirizzo político activo; (iii) a

desnecessidade, como corolário da natureza activa dos poderes próprios, da referenda ministerial

… (nos regimes parlamentares a regra é, pelo contrário, a necessidade de referenda ministerial)”.

2. Poder Legislativo

“O sistema de governo semipresidencialista timorense acolhe a típica atribuição do exercício da

função legislativa a um órgão democrático-representativo. Por isso, o Parlamento Nacional é, nos

47

termos deste artigo, “o órgão de soberania da República Democrática de Timor-Leste,

representativo de todos os cidadãos timorenses”.112

Conforme resulta do art. 92º da Constituição, o Parlamento Nacional (titular do poder legislativo

segundo o princípio da separação de poderes) não tem apenas funções legislativas, competindo-

lhe igualmente a função de fiscalização e a função de decisão política.

“O Parlamento assume, para o pleno cumprimento destas funções, um conjunto de poderes que

os arts. 95.° a 98.° melhor especificam: poder orçamental; poder de revisão constitucional; poder

exclusivo para legislar sobre as matérias mais sensíveis – como a delimitação do território, a

nacionalidade, direitos, liberdades e garantias – e poder de colaborar com o Governo na

regulação de outras, através do mecanismo de autorização legislativa; e poderes amplos de

controlo da ação de outros órgãos, em particular, do Governo e da Administração”.113

Quanto ao poder legislativo, a Constituição atribui ao Parlamento Nacional o exclusivo da acção

legislativa (“a lei entendida no sentido formal e restrito” de “acto normativo emanado [do

Parlamento Nacional e] elaborado de acordo com a forma e procedimento constitucionalmente

prescrito”).114

“A Função Legislativa dos Parlamentos nacionais caracteriza tipicamente a formulação

constitucional liberal, segundo a qual a “vontade geral” da comunidade política seria formulada

através da representação democrática que se conseguia no Parlamento. Por serem órgãos plurais,

representativos de ideologias e sensibilidades diversas e por ser o debate parlamentar uma

discussão transparente e aberta acessível aos representados, justifica-se que os atos legislativos

do Parlamento gozem de prerrogativas especiais relativamente aos atos legislativos do Governo.

Assim, a Constituição consagra um princípio de reserva de lei formal de lei, previsto no art. 95º,

nº 1 e 2”.115

112

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 308. 113

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 308-309. 114

Canotilho, 1993, pág. 704. 115

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 318.

48

Segundo Gomes Canotilho, “No momento actual de progressiva ampliação da competência

legislativa do executivo, o problema da reserva da lei ganha sentido se quisermos acentuar não

tanto a divisão dos poderes (hoje substancialmente atenuada face à institucionalização da prática

dos decretos-leis) ou a função dos parlamentos como simples órgãos de controlo político ou de

ratificação da legislação governamental, ou ainda a redução das leis parlamentares à fixação

racionalizadora e estabilizadora de uma ordem estadual (reserva de lei informada pela ideia de

Estado de direito), mas sim a legitimidade democrática das assembleias representativas, expressa

na consagração constitucional da preferência e reserva de lei formal para a regulamentação de

certas matérias”.116

\

Na Constituição da RDTL esta tendência foi devidamente acautelada reservando o poder

legislativo efectivamente ao Parlamento Nacional, conforme se pode verificar confrontando os

poderes legislativos de tal órgão com os poderes legislativos do governo.

“Destaca-se, no nº 1 deste artigo, a previsão de uma competência legislativa genérica do

Parlamento Nacional. Apesar de esta competência genérica parecer operar apenas na ausência de

previsão especial em sentido contrário nos catálogos da reserva absoluta e relativa do PN e do

Governo, a verdade é que não poderá ser esquecida como critério interpretativo de todo o sistema

de repartição de competências legislativas”. “A previsão de uma competência legislativa

genérica do PN presta homenagem ao princípio democrático, assim mais fiel e diretamente

cumprido”.117

Hegel, ao conceber o poder legislativo como o poder de organizar o universal, considera a lei

como expressão do geral e os actos do executivo como expressão do particular. “Quando se tem

de distinguir entre aquilo que é objecto de legislação geral e aquilo que pertence ao domínio das

autoridades administrativas e da regulamentação governamental, pode essa distinção geral

assentar em que na primeira se encontra o que, pelo seu conteúdo, é inteiramente universal. No

segundo encontram-se, ao contrário, o particular da modalidade de execução”.118

116

Canotilho, 1993, págs. 704-705. 117

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, págs. 320-321. 118

Hegel, Princípios da Filosofia do Direito, Lisboa, 1959, pág. 309, citado por Canotilho, 1993, pág. 695.

49

3. O Governo

O governo é o “órgão de soberania autónomo, que define a condução política e administrativa do

Estado” (art. 103º da Constituição).119

Para Gomes Canotilho, “A palavra ‘governo’ é plurisignificativa: (1) é o complexo orga-

nizatório do Estado (conjunto de órgãos) ao qual é reconhecida competência de direcção política

(ex.: forma de governo); (2) conjunto de todos os órgãos que desempenham tarefas e funções não

enquadráveis no «poder legislativo» e no «poder jurisdicional» (ex.: «poder executivo»); (3)

órgão constitucional de soberania com competência para a condução da política geral do país e

superintendente na administração pública (cfr. art. [103º da Constituição])”.120

“O Governo é institucionalmente constituído por três órgãos necessários, distintos mas

estreitamente conexionados (cfr. arts. 104º e 105º): o Primeiro-Ministro, o Conselho de

Ministros e os ministros, individualmente considerados. Quando se fala em Governo no sentido

rigoroso deve entender-se o Governo como órgão colegial e não o Primeiro-Ministro e ministros.

Neste sentido, a [Constituição] atribui determinadas competências ao Governo que só ele, como

órgão colegial, pertence exercer” (cfr. arts. 108º, nº 2, e 116º).121

Porém, “embora o Governo seja responsável perante o Presidente da República e perante a

Assembleia da República, ele não é nem uma «comissão do parlamento» nem um «executivo»

submetido ao Presidente da República. É um órgão constitucional autónomo com competência

(política, legislativa e administrativa) específica”.122

Embora a Constituição não faça qualquer referência ao poder legislativo do Governo, com

excepção da matéria da sua exclusiva competência (art. 115º), certo é que os Decretos Lei do

119

Constituição Anotada da República Democrática de Timor-Leste, pág. 343. 120

Canotilho, 1993, pág. 745. 121

Canotilho, 1993, págs. 745-746. 122

Canotilho, 1993, pág. 746.

50

Governo foram elencados entre as fontes nacionais de direito no art. 5º, nº 2, al. d), da Lei nº

1/2002, de 7 de Agosto.

No entanto, este facto, associado à circunstância de não existir nenhuma norma que atribua ao

Governo competência legislativa residual, ou concorrente, significa que o Governo não pode

legislar fora do âmbito expressamente previsto no art. 115º, o que reforça de forma clara a

competência legislativa do Parlamento Nacional, em detrimento do Governo.

4. A Presidência da República

Ao Presidente da República são atribuídos poderes próprios (numa linha mista de regimes

presidencialistas e de governos dualistas) e poderes partilhados (numa orientação próxima de

regimes parlamentares republicanos).

Os poderes próprios (por vezes chamados «institucionais») são aqueles que o Presidente da

República é autorizado pela Constituição a praticar, só e pessoalmente, mesmo quando se

verifiquem algumas exigências constitucionais (pareceres, consultas): dissolução da Assembleia

da República (art. 86º, al. f)),; nomeação do Primeiro-Ministro (art. 85º, al. d)) e demissão do

Governo (arts. 86º, al. g); etc..

Porém, “os poderes (próprios ou partilhados) constitucionalmente reconhecidos ao Presidente da

República não devem confundir-se com direcção política presidencial. O Presidente da

República não é na estrutura constitucional, um Presidente que governa, mas é, seguramente, um

Presidente com funções politicamente conformadoras”.123

Particularmente relevantes são as funções atribuídas ao Presidente em tempos de crise (art. art.

85º, als. g) e h)).

123

Canotilho, 1993, págs. 729-730.

51

O Conselho de Estado é um órgão constitucional auxiliar, pois ele é configurado

constitucionalmente como “órgão de consulta política do Presidente da República” (art. 90º).