Direito do Consumidor e Direito da Concorrência · | 7 1. Introdução1 1. Esta apostila apresenta...

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1||Direito do Consumidor e Direito da Concorrência

Direito do Consumidore

Direito da Concorrência

de Promoção da ConcorrênciaComunidade Virtual do Programa Nacional

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3||Direito do Consumidor e Direito da Concorrência

Conteudistas

Francisco Ribeiro Todorov

Marcelo Maciel Torres Filho

Dezembro 2014

Francisco Ribeiro TodorovMestre pela Columbia University, Professor Voluntário da Universidade de Brasília, Sócio de Trench, Rossi e Watanabe Advogados

Marcelo Maciel Torres FilhoMestre pela Stanford University, Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília, Associado de Trench, Rossi e Watanabe Advogados

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5||Direito do Consumidor e Direito da Concorrência

1. Introdução ..................................................................................................................7

2. Defesa da concorrência no Brasil ................................................................................9

2.1 Quadro normativo e institucional .......................................................................9

2.2 Panorama dos tipos de questões enfrentadas pelo direito da concorrência .....13

(a) Controle preventivo: atos de concentração ............................................13

(b) Controle repressivo: infrações contra a ordem econômica .....................15

(i) Condutas horizontais ...................................................................16

(ii) Condutas verticais .......................................................................18

3. Defesa do consumidor no Brasil................................................................................22

3.1 Questão preliminar: quem é o consumidor? ....................................................22

3.2 Quadro normativo e institucional .....................................................................23

(a) Princípios constitucionais, o CDC e outras normas relevantes ...............23

(b) O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor .....................................24

(i) SENACON e o DPDC .................................................................25

(ii) Órgãos estaduais, municipais e DF .............................................26

(iii) Entidades privadas ......................................................................27

(iv) O SINDEC e o Cadastro de Reclamações Fundamentadas .........28

(v) Plano Nacional de Consumo e Cidadania e a Câmara Nacional das

Relações de Consumo ................................................................29

(vi) Outros órgãos envolvidos na defesa do consumidor ....................29

3.3 Principais eixos de atuação das normas de defesa do consumidor ..................30

(a) Responsabilidade civil relativa à qualidade de produtos e serviços ........31

(i) Responsabilização por vícios ......................................................31

(ii) Responsabilização por defeitos ...................................................32

(A) Acidentes de consumo ......................................................33

(B) Recalls ..............................................................................34

(b) Práticas comerciais ...............................................................................34

(i) Propaganda ................................................................................34

(ii) Práticas abusivas ........................................................................35

(c) Contratos ..............................................................................................36

4. Interfaces entre os dois sistemas ..............................................................................37

4.1 Aplicação das leis nas esferas administrativa, cível e criminal .........................38

(a) Esfera administrativa .............................................................................38

(b) Esfera civil ............................................................................................47

(i) Ações individuais concorrenciais e consumeristas .......................47

(ii) Ações civis públicas concorrenciais e consumeristas ...................48

ÍNDICE

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(iii) Questões controvertidas em ações no plano concorrencial ..........50

(A) Controvérsias em ações individuais ...................................50

(B) Controvérsias em ações civis públicas...............................51

(c) Esfera criminal ......................................................................................52

4.2 Possíveis convergências e divergências .........................................................54

(a) Venda casada .......................................................................................55

(b) Preço excessivo vs. onerosidade excessiva ..........................................57

(c) Preço predatório ...................................................................................59

(d) Recusa de fornecimento .......................................................................61

(e) Desconsideração da personalidade jurídica ..........................................63

4.3 Advocacia da concorrência e campanhas de conscientização .........................65

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1. Introdução1

1. Esta apostila apresenta as principais linhas do direito de defesa do consumidor e do direito de defesa da concorrência no Brasil, bem como busca possíveis paralelos e diferenças entre esses dois sistemas normativos2. Conforme se verá, os dois sistemas aproximam-se naturalmente, tendo em vista o papel central do consumidor como destinatário das normas de proteção da concorrência e de defesa do consumidor. Contudo, há também diferenças fundamentais entre as preocupações centrais que informam esses dois conjuntos de normas.

2. O direito da concorrência busca garantir o processo de competição que deve existir entre os agentes econômicos no mercado. Esse objetivo tem fundamento na percepção de que mercados competitivos são, em geral, benéficos à sociedade. Nesse sentido, a Constituição Federal, em seu art. 170, estabelece que um dos princípios informadores da ordem econômica é, justamente, a livre concorrência.

3. Em termos econômicos, o processo de concorrência permite que se alcance uma alocação eficiente dos recursos na economia. Na prática, da competição decorrem benefícios tais como menores preços e maior inovação. Por exemplo, um fornecedor que detém um monopólio sobre determinado serviço ou produto não é constrangido pela concorrência exercida por outros fornecedores. Nesse cenário, o monopolista é capaz de reduzir a quantidade ofertada no mercado, causando um aumento de preços, transferência de renda dos consumidores ao produtor monopolista, menor grau de inovação, gastos com a própria manutenção do monopólio, e perda de riqueza decorrente dos maiores preços (os quais impedem que consumidores dispostos a pagar um preço menor tenham acesso àquele produto).

4. Conforme será explicado nesta apostila, as autoridades de defesa da concorrência atuam justamente com o objetivo de prevenir a formação de estruturas de mercado (e.g. por meio de fusões e aquisições) e de punir comportamentos empresariais (e.g. cartéis e outras práticas abusivas) que possam ter um resultado negativo semelhante ao descrito acima. Em outras palavras, a função do direito da concorrência é proteger o funcionamento eficiente dos mercados, com os consequentes benefícios assim gerados aos consumidores, à economia e à sociedade como um todo. 1 Os autores esclarecem que o presente trabalho é fruto de um esforço coletivo e, portanto, agradecem a contribuição dos seguintes colaboradores de Trench, Rossi e Watanabe Advogados: Renata Campetti Amaral, Péricles D’Ávila Mendes Neto, Bruno Corrêa Burini, Leonardo Felisoni Torre, Lorena Leite Nisiyama, Renata Lins Arcoverde e Felipe Cardoso Pereira. 2 Os termos “direito da concorrência” e “direito antitruste” são aqui utilizados de maneira intercambiável.

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5. O direito de defesa do consumidor, por sua vez, busca proteger a parte vulnerável numa relação jurídica de consumo estabelecida com um fornecedor de um produto ou serviço. Seus vários mecanismos têm como foco justamente essa assimetria, a qual, se não controlada, poderia vir a ser explorada por fornecedores em detrimento dos consumidores. Esta apostila também apresentará as linhas gerais do sistema normativo de proteção do consumidor, tanto em seus aspectos institucionais quanto no que se refere a seus principais modos de atuação. Em particular, faz-se um panorama das regras de responsabilização de fornecedores quanto à qualidade de produtos e serviços, práticas comerciais e propagandas abusivas, e proteção do consumidor na esfera contratual.

6. Os dois ramos do direito aqui abordados, portanto, possuem uma proximidade fundamental. Em primeiro lugar, ambos são formas de proteção da ordem econômica, constitucionalmente garantida. Além disso, o direito da concorrência tem como um de seus princípios básicos justamente a proteção do consumidor, conforme indicado no caput do art. 1o da atual legislação concorrencial, a Lei 12.529/20113. Finalmente, conforme visto, em regra os consumidores são beneficiados pela manutenção de um processo competitivo entre fornecedores de produtos e serviços.

7. Contudo, há também importantes diferenças. Por seu lado, o direito de defesa da concorrência tem como foco a manutenção do processo competitivo na economia. O consumidor é beneficiado pela concorrência entre os agentes econômicos, mas de maneira indireta. Por outro lado, as normas consumeristas são diretamente voltadas à proteção do consumidor.

8. Essa diferença fundamental pode ser compreendida a partir dos fenômenos microeconômicos sobre os quais os dois ramos de direito se debruçam. Tome-se como exemplo a fabricação de eletrodomésticos. O direito da concorrência busca proteger a competição existente entre os diferentes fabricantes: e.g., evitando condutas anticompetitivas ou fusões que possam prejudicar o processo competitivo. Em outras palavras, o objetivo é manter os fabricantes de eletrodomésticos competindo entre si, com todos os benefícios daí advindos aos consumidores e a sociedade como um todo – por exemplo, na forma de menores preços de liquidificadores e lançamento de inovações em máquinas de lavar.

9. Por outro lado, ainda nesse mesmo exemplo, o direito de defesa do consumidor age em relações individuais entre os fabricantes 3 V. art. 1o, caput. A preocupação com o consumidor é também evidenciada no art. 88, § 6o, II.

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de eletrodomésticos e seus consumidores. O objetivo é impedir abusos decorrentes de um eventual desequilíbrio que exista nessa relação. Em vez de tutelar o processo competitivo como um todo (por exemplo, garantindo que certo fabricante não consiga aumentar o preço do eletrodoméstico, porque, ao fazê-lo, os consumidores buscariam fornecedores alternativos), as normas consumeristas atuam diretamente na relação de consumo (por exemplo, impedindo que o fabricante abuse da assimetria de informação que existe com os consumidores ao não fornecer uma garantia adequada ao mesmo eletrodoméstico).

10. A apostila está estruturada da seguinte maneira. Os capítulos 2 e 3 dedicam-se respectivamente à exposição dos sistemas de defesa da concorrência e do consumidor, inclusive quanto a seus aspectos institucionais. O capítulo sobre o direito da concorrência é curto, porque outras apostilas já se dedicam a essa temática. O capitulo 4 explora algumas interfaces entre os dois sistemas: a aplicação das normas nas esferas administrativa, cível e criminal; possíveis convergências e divergências quanto ao tratamento de práticas abusivas; e uma comparação das atividades de advocacia da concorrência e campanhas de conscientização dos consumidores.

2. Defesa da concorrência no Brasil

11. Este capítulo abordará aspectos institucionais da legislação de defesa da concorrência no Brasil. A apresentação aqui realizada é curta, tendo em vista que outras apostilas da Comunidade Virtual do Programa Nacional de Promoção da Concorrência abordam a mesma temática de maneira mais aprofundada.

2.1 Quadro normativo e institucional

12. Desde a década de 1930, estão presentes na legislação brasileira normas de alguma maneira voltadas à proteção da concorrência nas relações econômicas. Todavia, os primeiros instrumentos legislativos tinham como foco a defesa da economia popular e foram de aplicação limitada. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) foi criado em 1962, mas sua atuação durante o regime militar também foi modesta4.

4 Para uma análise mais aprofundada da história institucional da defesa da concorrência no Brasil desde 1930, v. TODOROV, Francisco R.; TORRES FILHO, Marcelo M.. History of Competition Policy in Brazil: 1930-2010. Em: The Antitrust Bulletin, Vol. 57, No. 2, Summer 2012: 207.

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13. Foi apenas na década de 1990, em meio a diversas reformas institucionais que marcaram o período, que se aprofundou a defesa da concorrência no Brasil. Um exemplo desse processo é a Lei 8.137/905 que estabeleceu crimes contra a ordem econômica. Contudo, o principal marco legal desse período é a Lei 8.884/946, que estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), àquela época composto pelo CADE como autarquia federal, a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE), e a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE).

14. Após 1994, a evolução do SBDC pode ser dividida em duas principais fases. A primeira durou aproximadamente até 2000-2003 e foi marcada por um maior esforço no controle de concentrações econômicas. São desse período importantes marcos na atuação do CADE, como a aprovação com restrições da criação da AmBev7. Após 2000, percebe-se uma tentativa das autoridades de mudar o foco de suas atividades, passando a dar igual importância ao controle de condutas anticompetitivas, principalmente os cartéis. É desse período, por exemplo, a criação e o aprofundamento do instituto da leniência8.

15. Em 2011, foi promulgada a Lei 12.529/20119, que introduziu 5 BRASIL. Lei de Crimes contra a Ordem Tributária, Econômica e contra as Relações de Consumo. Lei 8.137 de 27/12/1990. Brasília, Diário Oficial da União, 1990.6 BRASIL. Lei de Defesa da Concorrência. Lei 8.884 de 11/06/1994. Brasília, Diário Oficial da União, 1994.7 CADE. Ato de Concentração nº 08012.005846/99-12. Conselheira Relatora: Hebe Teixeira Romano Pereira da Silva. Decisão em: 29/03/2000. DOU: 07/04/2000.8 BRASIL. Lei 10.149 de 21/12/2000. Brasília, Diário Oficial da União, 2000.9 BRASIL. Lei 12.529 de 30/11/11. Brasília, Diário Oficial da União, 2011.

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diversas mudanças ao SBDC10. A principal delas foi a instituição do controle prévio de atos de concentração. De acordo com a nova lei, as empresas não mais podem implementar operações antes da aprovação do CADE, estando sujeitas a multas em caso de descumprimento. Trata-se de importante medida que aproximou o CADE da prática internacional relativamente ao controle de concentrações.

10 A lei entrou em vigor em 29 de maio de 2012.

Box 1

ATOS DE CONCENTRAÇÃO - CRIAÇÃO DA AMBEV

Em 1999, foi submetida ao CADE operação de fusão das duas principais fabricantes de cervejas no Brasil, donas das marcas Brahma e Antarctica, dando origem à AmBev. Juntas, as empresas participantes da operação somavam 75% de participação no mercado nacional de cervejas. Esse percentual gerou preocupações concorrenciais. A aprovação da operação foi então condicionada à observância de algumas condições, a fim de evitar prejuízos à livre concorrência. Por exemplo, a transação só poderia ser concluída caso:

-- As partes alienassem uma de suas marcas (Bavária), para empresário que preenchesse alguns requisitos, incluindo na venda a transferência de contratos de fornecimento e distribuição e alienação de unidade fabril destinada à produção da cerveja em cada uma das regiões do país e compartilhamento da rede de distribuição com o futuro comprador durante 4 anos (sujeito à prorrogação).

-- A AmBev compartilhasse sua distribuição para 5 (cinco) empresas, uma em cada mercado relevante adotado no voto da Relatora, com participação não superior a 5%, através de leilão, para aquela que oferecesse o maior pagamento de comissão, o que deveria ser implementado em 8 meses, sob pena de intervenção judicial, durante 4 anos.

Tais obrigações constaram em um Termo de Compromisso de Desempenho, que teve validade de 5 anos e foi monitorado pelo CADE, mediante relatório elaborado pela parte requerente semestralmente.

Com a adoção dessas medidas, o CADE buscou garantir que os resultados da fusão não resultassem em estruturas de mercado nocivas à livre concorrência no que tange à produção e venda de cervejas nacionais, incentivando a entrada de novos agentes, bem como a possibilitando que aqueles que já se encontrassem inseridos nesse mercado pudessem expandir sua participação.

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16. Outra mudança fundamental trazida pela Lei 12.529/2011 foi a unificação da estrutura dos órgãos de análise antitruste. O CADE passou a ser formado pelo Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, pela Superintendência-Geral (SG), pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE) e por uma Procuradoria Federal especializada (ProCADE). Nesse contexto, o CADE absorveu as competências da antiga SDE e da SEAE no que se refere a atos de concentração e investigação de práticas anticompetitivas. A SEAE continuou fazendo parte do SBDC, mas com atribuições voltadas principalmente à advocacia da concorrência -- as quais serão abordadas no item 4.3 abaixo.

17. Nessa nova estrutura de atribuições, cabe ao Tribunal a decisão final em processos administrativos instaurados para investigações de condutas anticompetitivas11. Quanto aos atos de concentração, à Superintendência-Geral incumbe aprová-los, cabendo um tipo de recurso por partes interessadas ou avocação pelo próprio Tribunal12. Em caso de restrições ou desaprovação à operação, a Superintendência-Geral remete seu parecer ao Tribunal, que permanece com competência para decidir13.

18. Dessa maneira, a Superintendência-Geral é atualmente responsável pela condução das investigações de condutas anticompetitivas e da análise dos atos de concentração14. Tanto o Tribunal quanto a SG podem contar com o auxílio do Departamento de Estudos Econômicos, que tem a função de elaborar estudos e pareceres econômicos que auxiliem na análise dos casos15.

19. Adicionalmente, funciona junto ao CADE uma Procuradoria Federal especializada, à qual cabe representar a autarquia judicial e extrajudicialmente, bem como emitir pareceres nos processos analisados pelo Tribunal16. Funciona também junto ao CADE uma representação do Ministério Público Federal, que igualmente pode opinar em processos em trâmite perante o Tribunal17.

11 Art. 9º da Lei 12.529/2011.12 Art. 65 da Lei 12.529/2011.13 Art. 57 da Lei 12.529/2011.14 Art. 13 da Lei 12.529/2011.15 Art. 17 da Lei 12.529/2011.16 Art. 15 da Lei 12.529/2011.17 Art. 20 da Lei 12.529/2011.

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2.2 Panorama dos tipos de questões enfrentadas pelo direito da concorrência

20. As atividades do SBDC na defesa da concorrência podem ser divididas em duas principais vertentes: (a) o controle preventivo, que compreende a análise de atos de concentração e práticas de advocacia da concorrência, e (b) o controle repressivo, que trata da investigação e punição de práticas anticompetitivas. Essas duas vertentes são brevemente explicadas abaixo.

(a) Controle preventivo: atos de concentração

21. Conforme mencionado acima, o controle preventivo realizado pelo SBDC inclui tanto o controle de atos de concentração quanto práticas de advocacia da concorrência. No entanto, considerando que as práticas de advocacia da concorrência serão tratadas adiante no item 4.3 abaixo, o presente item será restrito aos atos de concentração.

22. O controle de concentrações refere-se à análise, pelas autoridades antitruste, de certas operações empresariais, com o objetivo de avaliar se elas possuem um impacto negativo sobre as relações de concorrência no mercado. Desde a promulgação da Lei 12.529/2011, o Brasil adotou o controle prévio de atos de concentração. Dessa forma, as operações sujeitas à análise do CADE não podem ser concretizadas antes que o órgão se manifeste a seu respeito18. A Lei 12.529/2011 estabelece que as partes devem manter as condições de concorrência até a aprovação da operação, estando sujeitas a multa que pode variar de 60 mil a 60 milhões de reais em caso de descumprimento (o chamado “gun jumping”)19.

23. O artigo 90 da Lei 12.529/11 estabelece uma lista objetiva de operações que devem ser submetidas ao CADE, quais sejam: fusões, aquisição de empresas ou parte de empresas (incluindo ações, quotas e ativos), celebração de consórcio (com exceção daqueles formados para participação em licitação), joint ventures, e contratos associativos. O CADE está atualmente esclarecendo, por meio de sua jurisprudência e resoluções, que operações empresariais enquadram-se em cada uma dessas categorias20.

18 Art. 88 da Lei 12.529/2011.19 Id.20 Por exemplo, o CADE adotou em 29 de outubro de 2014 a Resolução nº 10/2014, que define mais precisamente o conceito de contrato associativo.

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24. Além do critério relacionado ao tipo da operação, para que uma operação seja notificável ao CADE é também necessário o preenchimento de critérios objetivos de faturamento: (i) um dos grupos econômicos envolvidos deve ter obtido faturamento bruto anual ou volume de negócio superior a R$ 750 milhões de reais no ano anterior à operação; e (ii) o outro grupo econômico envolvido na operação deve ter obtido faturamento bruto anual ou volume de negócio superior a R$ 75 milhões de reais, também no ano anterior à operação21. O CADE também tem buscado esclarecer o conceito de “grupo econômico” para fins do critério de notificação22.

25. Deve-se ressaltar que, mesmo que uma determinada operação não se enquadre nos critérios acima, o CADE poderá requerer sua apresentação no prazo de um ano a contar da consumação.

26. De acordo com a Lei 12.529/2011, serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma “posição dominante” ou que possam resultar na “dominação de mercado relevante” de bens ou serviços23. No entanto, há possibilidade de aprovação caso a operação, cumulada ou alternadamente: (i) aumente a produtividade ou a competitividade; (ii) melhore a qualidade de bens ou serviços; ou (iii) propicie a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico. Nesses casos, é necessária a comprovação de que parte desses benefícios será repassada para os consumidores24.

27. Na prática, essa avaliação substantiva das operações apresentadas ao CADE depende de vários fatores e é informada por análises econômicas nos casos mais complexos. Normalmente, essa análise envolve a definição dos “mercados relevantes” afetados pela operação empresarial e, posteriormente, a avaliação do grau de concentração causado nesses mercados. Caso, após a operação, o grau de concorrência real ou potencial remanescente nesses mercados seja pequeno, isso significa que a operação pode causar efeitos anticompetitivos na forma de maiores preços, menor inovação etc. Nesses casos, o CADE pode intervir proibindo a operação ou condicionando-a a restrições negociadas ou impostas.

(b) Controle repressivo: infrações contra a ordem econômica

21 BRASIL. Portaria Interministerial nº 994 de 30 de maio de 2012. Brasília, Diário Oficial da União, 2012.22 Art. 4º, §1º, da Resolução nº 2/2012 do CADE.23 Art. 88, §5º, da Lei 12.529/2011.24 Art. 88, §6º, da Lei 12.529/2011.

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28. De acordo com a Lei 12.529/2011, constituem infrações contra a ordem econômica quaisquer atos que tenham por objetivo ou possam produzir qualquer um dos efeitos abaixo25:

• Limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa.

• Dominar mercado relevante de bens ou serviços.

• Aumentar arbitrariamente os lucros.

• Exercer de forma abusiva posição dominante.

29. Ou seja, fica caracterizada a infração caso a conduta tenha por objeto ou efeito (ainda que tal efeito seja somente potencial) o prejuízo à concorrência, independentemente de culpa do agente. A lei também relaciona condutas concretas que podem vir a configurar infração à ordem econômica, desde que algum dos critérios acima listados esteja presente26. Na prática, em muitos casos, a possibilidade de efeitos anticompetitivos somente existirá caso o agente econômico envolvido na prática detenha “posição dominante” no mercado. A lei brasileira contém uma presunção relativa de posição dominante na presença de participações de mercado acima de 20%27.

30. As multas aplicáveis às empresas que violem os dispositivos da Lei 12.529/2011 podem variar de 0,1% a 20% do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no “ramo de atividade empresarial” em que ocorreu a infração28. Ainda, há previsão legal de que a multa nunca seja inferior à vantagem auferida, quando possível sua estimação29. Está sujeito à multa também o administrador direta ou indiretamente responsável pela infração cometida, mas apenas quando comprovada a sua culpa ou dolo. Nesse caso, a multa varia entre 1% a 20% daquela aplicada à empresa30.

31. As multas aplicáveis às associações, sindicatos e empregados das empresas infratoras variam entre R$ 50 mil até R$ 2 bilhões31. É importante ressaltar que a Lei 12.529/2011 aumentou significativamente

25 Art. 36, caput, da Lei 12.529/2011.26 Art. 36, §3o, da Lei 12.529/2011.27 Art. 36, §2o, da Lei 12.529/2011.28 Art. 37, inciso I, da Lei 12.529/2011. O CADE define esses ramos em sua Resolução nº 3/2012.29 Art. 37, inciso I, da Lei 12.529/2011.30 Art. 37, inciso III, da Lei 12.529/2011.31 Art. 37, inciso II, da Lei 12.529/2011.

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o alcance dessa multa. A Lei 8.884/94, substituída pela Lei 12.529/2011, estabelecia que a multa aplicável a associações, sindicatos e empregados das empresas infratoras seria de R$ 6 mil a R$ 6 milhões32.

32. Além de multa, a Lei 12.529/2011 estabelece a possibilidade de aplicação de outras penas não pecuniárias por infrações à ordem econômica, como por exemplo a publicação em jornal do extrato da decisão condenatória, proibição de parcelamento de tributos federais ou ainda de participação em licitações públicas por um determinado período. Por exemplo, em um caso recentemente julgado envolvendo o setor de cimento, o CADE estabeleceu como pena a alienação de ativos empresariais33.

33. De maneira geral, as condutas anticompetitivas combatidas pelo CADE podem ser divididas em dois blocos: (a) condutas horizontais e multilaterais, envolvendo empresas no mesmo nível da cadeia de produção (e.g. cartéis); e (b) condutas verticais unilaterais, envolvendo empresas em diferentes níveis da cadeia produtiva.

(i) Condutas horizontais

34. As condutas anticompetitivas horizontais são aquelas que envolvem diferentes empresas que concorrem entre si para oferecer um determinado produto ou serviço. A principal infração à ordem econômica desse gênero é a chamada prática de “cartel”. Conforme indicado acima, o combate aos cartéis é atualmente um dos principais focos de atuação das autoridades antitruste brasileiras.

35. Os cartéis são acordos entre empresas concorrentes com o objetivo, por exemplo, de fixar preços, dividir clientes entre si ou territórios de atuação, ou acertar entre si seus níveis de produção. Um acordo de cartel elimina a concorrência em um determinando mercado, privando os clientes de preços mais baixos, maiores quantidades de produtos e/ou inovações. Por essa razão, os cartéis são considerados a forma mais grave de infração da ordem econômica, tendo em vista os efeitos deletérios dessa prática no mercado e, dessa forma, recebem as penalidades mais severas.

32 Art. 23, inciso III, da Lei 8.884/94.33 CADE. Processo Administrativo nº 08012.011142/2006-79. Conselheiro Relator: Alessandro Serafin Octaviani Luis. Decisão em: 28/05/2014. DOU: 03/06/2014.

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36. Esses acordos entre concorrentes serão quase sempre considerados ilegais. Com efeito, o CADE está cada vez mais se aproximando de uma análise da ilicitude “pelo objeto”: ou seja, basta a comprovação de que houve um acordo ilícito entre concorrentes para que o CADE decida por sua condenação. Isso porque, segundo o entendimento do CADE e de outras autoridades concorrenciais, um cartel quase sempre acarretará efeitos deletérios no mercado. Os cartéis também configuram crime, conforme será exposto no item 4.1.c abaixo.

37. Uma das ferramentas à disposição do CADE para detecção de práticas de cartel é o acordo de leniência, por meio do qual uma empresa e/ou indivíduos podem solicitar a imunidade das penas aplicáveis à infração (inclusive criminais) e em troca oferecer informações sobre sua conduta e de seus competidores às autoridades. A celebração de acordo de leniência só é possível em casos em que as autoridades não tenham informações suficientes para a condenação da infração antes do pedido de leniência34.

34 Art. 86, §1º, III da Lei 12.529/2011.

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(ii) Condutas verticais

38. Além das práticas horizontais acima descritas, o chamado “abuso de posição dominante” também é considerado infração contra a ordem econômica. Quando essas práticas abusivas ocorrem em diferentes níveis de uma determinada cadeia produtiva, são chamadas de “verticais”. Por exemplo, pode haver prática abusiva quando um fornecedor exige exclusividade de seus fornecedores ou quando tal prática puder ter o efeito de impedir que as empresas concorrentes consigam acessar o mercado por meio de fornecedores.35

35 CADE. Processo Administrativo nº 08012.001794/2004-33. Conselheiro Relator: Ricardo Ruiz. Decisão em: 05/02/2014. DOU: 11/02/2014.

Box 2

FORMAÇÃO DE CARTEL - CARTEL DOS EXTINTORES DE INCÊNDIO/DF35

Contexto: Denúncia pelo jornal Correio Braziliense (DF) de suposta formação de cartel pelas empresas responsáveis pela comercialização e manutenção de extintores de incêndio no Distrito Federal, que estariam estabelecendo artificialmente os preços dos produtos e serviços por elas oferecidos. Sua operacionalização teria se dado por meio de associação da qual estas empresas seriam integrantes, a Associação das Empresas de Equipamentos Contra Incêndio do DF.

Resultado: O CADE entendeu terem as empresas adotado conduta horizontal uniforme (cartel) a fim de fixar preços. Como prova, foram considerados o instrumento particular utilizado para fundar a associação, bem como tabelas de preços a serem adotadas pelas empresas. O conselheiro não procedeu à análise dos efeitos da prática:

“não há dúvidas que para configuração do ilícito do cartel não é necessário a comprovação de seus efeitos [...] a função primordial do CADE é proteger a concorrência como mecanismo. de orientação da atividade econômica. Assim, no momento em que competidores entram em contato para minimizar o nível de disputa entre si, há nesta conduta um prejuízo à sociedade. Neste sentido, a atividade econômica passa a ser orientada não pelas demandas do cliente/consumidor, mas sim pelas demandas dos parceiros na colusão [...] uma vez não comprovado a existência de tais contatos cujo objeto é ilícito, não há como se alegar ausência de efeitos danosos”.

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39. Além da exigência de exclusividade, constituem outras possíveis práticas anticompetitivas, por exemplo: políticas de descontos (quando um fornecedor oferece descontos, por exemplo, exigindo uma quase exclusividade), venda casada (quando o fornecedor condiciona economicamente a compra de um produto à aquisição de outro), recusa de fornecimento (por exemplo, quando um dono de uma infraestrutura recusa seu acesso a certas empresas concorrentes), discriminação de preços etc.

40. Contrariamente aos cartéis, normalmente considerados problemáticos do ponto de vista concorrencial, as práticas verticais normalmente são pró-competitivas ou, quando muito, neutras. Contudo, em certas situações, práticas verticais também podem ser anticompetitivas, quando há um claro potencial de efeitos negativos à concorrência no mercado. A análise dessas práticas é razoavelmente complexa e, a depender do caso, exige uma sofisticada verificação de efeitos econômicos. Em muitos casos, há sérias controvérsias jurídicas e econômicas.

41. Em linhas gerais, um requisito necessário, mas não suficiente, para que tais práticas configurem infração à ordem econômica é que a empresa possua “posição dominante” no mercado. A avaliação depende de uma análise sobre os mercados envolvidos, incluindo elementos tais como: definição dos mercados relevantes afetados; cálculo da participação de mercado da empresa; e análise da existência de poder de mercado (e.g. quando a empresa é capaz de agir independentemente de seus concorrentes e alterar unilateralmente as condições de mercado)36.

42. Serão analisados abaixo dois casos envolvendo condutas unilaterais que já foram apreciadas pelo CADE, quais sejam, a política de descontos e a exigência de exclusividade.

36 Conforme indicado acima, o art. 36, § 2o, da Lei 12.529/11 estabelece uma presunção relativa de posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, muito embora a análise de posição dominante é sempre feita no caso concreto, sendo que nem sempre tal posição é identificada em empresas com mais de 20% de mercado.

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37

37 CADE. Processo Administrativo n. 08012.003805/2004-10. Conselheiro Relator: Fernando Furlan. Decisão em: 22/07/2009. DOU: 24/07/2009.

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POLÍTICA DE DESCONTOS - O CASO AMBEV TÔ CONTIGO37

Em 22 de julho de 2009, o CADE condenou a AmBev ao pagamento de multa no valor de aproximadamente R$ 325 milhões por adoção de política de descontos considerada anticompetitiva.

A AmBev criou um programa de descontos por meio do qual bares participantes recebiam pontos ao adquirir quantidades mínimas de cervejas. O acúmulo desse pontos daria direito ao resgate de brindes que, conforme entendido pelo CADE, em termos concretos, representavam um desconto na aquisição dos produtos, condicionada à aquisição de volumes mínimos do produto.

A conduta anticompetitiva identificada pelo CADE, portanto, foi a política de descontos criada pela AmBev, que teria o potencial de induzir revendedores de cerveja à exclusividade e poderia, em tese, limitar o acesso de outros fabricantes de cerveja aos canais de distribuição.

Ao final da análise, o CADE considerou que a AmBev possuía posição dominante, com elevada participação de mercado (aproximadamente 70%). Ademais, decidiu que o programa de descontos, associado à elevada penetração da AmBev nos pontos de venda, poderia eliminar ou limitar a atuação de concorrentes nos pontos de venda. Concluiu, por fim, pela condenação da empresa, em razão dos potenciais efeitos anticompetitivos resultantes da atuação do agente com posição dominante - ainda que esses efeitos não tivessem sido verificados.

Nesse caso, o CADE adotou um standard bastante rigoroso para a condenação da empresa, estabelecendo uma ilegalidade praticamente automática para políticas de descontos atreladas a quantidades mínimas de compra, quando implementadas por empresas com posição dominante no mercado.

A multa aplicada à AmBev foi a maior já imposta pelo CADE em processos administrativos envolvendo a análise de abusos de posição dominante. A AmBev

vem contestando essa multa na Justiça.

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43. Em suma, diversas práticas comerciais podem ser consideradas abusivas a depender do contexto em que são implementadas. Entretanto, uma determinada prática comercial somente será considerada abusiva a depender de seus efeitos negativos (concretos ou potenciais) sobre o ambiente concorrencial. Para configuração desse tipo de infração, é normalmente necessária a comprovação de que a empresa que adotou a prática comercial detinha posição dominante e de que a conduta em questão de fato produziu ou poderia produzir efeitos deletérios no mercado. 38

38 CADE. Processo Administrativo n. 08012.003805/2004-10. Conselheiro Relator: Fernando Furlan. Decisão em: 22/07/2009. DOU: 24/07/2009.

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EXCLUSIVIDADE - O CASO DA EXCLUSIVIDADE NOS PONTOS DE VENDA DE CIGARRO38

O CADE analisou a questão da exigência de exclusividade envolvendo merchandising, exposição, armazenamento ou venda de produtos nos pontos de vendas que comercializam produtos derivados do tabaco.

A então Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE) entendeu, em parecer opinativo, que a política de exclusividade implementada pela Souza Cruz em pontos de venda de tabaco seria anticompetitiva. Nessa ocasião, o CADE entendeu que estavam presentes os requisitos para que houvesse fechamento do mercado em decorrência de cláusula de exclusividade, quais sejam:

(i) existência de poder de mercado (posição dominante) por parte da empresa que implementa a exclusividade; e(ii) significativa parcela do mercado atingida pela prática.

Em 13 de setembro de 2000, a Souza Cruz celebrou com o CADE um Termo de Compromisso de Cessação com relação a esse processo administrativo, comprometendo-se a não exigir exclusividade em seus pontos de venda. Dessa forma, não houve julgamento do CADE sobre a matéria.

Posteriormente, houve abertura de novo processo administrativo para investigar tanto a Souza Cruz quanto a Philip Morris pelas práticas de exclusividade de merchandising, exposição, armazenamento ou venda de produtos nos pontos de vendas que comercializam produtos derivados do tabaco ocorridas em período posterior.

Tanto a Souza Cruz quanto a Philip Morris celebraram Termos de Compromisso de Cessação (em junho de 2012 e janeiro 2013, respectivamente) para encerrar o processo administrativo em questão, mediante o término da conduta sob investigação.

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3. Defesa do consumidor no Brasil

44. Como visto acima, em linhas gerais, o direito antitruste tem como preocupação central a manutenção das relações de concorrência entre as empresas no mercado. Por sua vez, o direito do consumidor visa à tutela dos interesses dos indivíduos ou pessoas jurídicas que, no contexto de relações jurídicas voltadas à aquisição de produto ou prestação de serviço, encontram-se em posição de vulnerabilidade frente a agentes econômicos de maior porte. A incidência de suas normas está, portanto, voltada primordialmente à existência desse desequilíbrio.

45. Esta seção apresentará os contornos principais da legislação consumerista, dentro da seguinte estrutura: (i) em primeiro lugar, o capítulo discutirá brevemente quem são os consumidores protegidos pela legislação; (ii) posteriormente, apresentará em linhas gerais o quadro normativo e institucional do sistema de proteção do consumidor; (iii) por fim, abordará seus principais eixos de atuação: responsabilização civil por qualidade dos produtos, práticas comerciais específicas, e contratos sob a perspectiva consumerista.

3.1 Questão preliminar: quem é o consumidor?

46. As normas de proteção ao consumidor aplicam-se, de maneira geral, quando há uma relação de consumo entre as partes envolvidas, caracterizada pela existência de um produto ou serviço ofertado a consumidores por um fornecedor.

47. Portanto, num dos polos dessa relação encontra-se o fornecedor, definido pelo Código de Defesa do Consumidor - CDC39 como qualquer pessoa jurídica, regida por normas de direito público ou privado, sociedade ou empresa individual, brasileira ou estrangeira, que fabrique, monte, crie, construa, transforme, importe, distribua ou venda produtos ou preste serviços a consumidores40.

48. Por outro lado, a definição do “consumidor” protegido pela legislação consumerista não é tarefa simples. Há parâmetros genéricos estabelecidos pelo CDC, os quais, contudo, geram certa controvérsia doutrinária e jurisprudencial.

39 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei 8.078 de 11/09/90. Brasília, Diário Oficial da União, 1990.40 Art. 3º, caput, do CDC.

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49. Inicialmente, o CDC estabelece que é consumidora “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final” 41. Além disso, o CDC estabelece um limite ao conceito a partir da destinação atribuída ao bem ou serviço adquirido: a caracterização do adquirente como consumidor está condicionada ao uso final que esse atribui ao objeto de aquisição42. Nesse sentido, a depender do conceito de “destinação final”, pode-se determinar quem são os destinatários das normas do CDC. Por fim, dispõe o código que indivíduos ou pessoas jurídicas inseridos em outras situações devem ser equiparados a consumidores, a fim de terem também seus interesses tutelados pela legislação consumerista43.

50. O atual posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça é de que seriam também consumidoras as pessoas jurídicas que apresentem alguma vulnerabilidade técnica, jurídica, informacional ou econômica numa relação com seus fornecedores, independentemente de encontrar-se nela o destinatário final do objeto de aquisição. Isso porque a finalidade das normas de proteção ao consumidor é a restauração do equilíbrio nas transações comerciais44.

3.2 Quadro normativo e institucional

(a) Princípios constitucionais, o CDC e outras normas relevantes

51. A proteção ao consumidor é reiterada em mais de uma ocasião ao longo do texto constitucional45. Por exemplo, é elencada como uma das garantias constitucionais do art. 5º, segundo o qual “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”46. Ademais, assim como a defesa da concorrência, a defesa do consumidor é enumerada como um dos princípios informadores da ordem econômica, como meio de assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social47.

41 Art. 2° do CDC.42 Art. 2°, caput, do CDC.43 Arts. 17 e 29 do CDC.44 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.195.642 - RJ. Ministra Relatora: Ministra Nancy Andrighi. Julgado em: 13/11/12. DJe: 21/11/1245 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.46 Art. 5º, inciso XXXII, da CF/88.47 Art. 170, inciso V, da CF/88.

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52. Nesse contexto, foi promulgado em 1990 o CDC, o qual estabeleceu regramento sobre tópicos tais como: (a) direitos básicos dos consumidores; (b) qualidade dos produtos e serviços, considerando a saúde e segurança dos consumidores, bem como determinando a responsabilidade dos fornecedores pelos defeitos apresentados; (c) regulamentação de práticas comerciais, abrangendo propaganda e práticas abusivas, regras atinentes à garantia (legal e contratual), além de proteção contratual, e (d) sanções administrativas e criminais em caso de infrações, além de previsão de reparação na esfera cível por meio de ações individuais e coletivas48.

53. O CDC também alterou dispositivos da Lei da Ação Civil Pública49, com o objetivo de incluir as violações aos direitos individuais difusos de ordem consumerista dentre aqueles passíveis de serem tutelados por ações dessa espécie. Estabeleceu também outras competências, a fim de conferir maior efetividade às ações civis públicas. Esse assunto será abordado no item 4.1.b abaixo.

54. Além disso, ainda em 1990, foram definidos os crimes contra as relações de consumo, por meio do art. 7º da Lei 8.137/90, vindo a complementar aqueles já dispostos no próprio CDC nos artigos 61 e seguintes. Esse assunto, por sua vez, será desenvolvido no item 4.1.c abaixo.

(b) O Sistema Nacional de Defesa do Consumidor

55. Desde 1993, o Poder Executivo buscou regulamentar o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), previsto nos arts. 105 e 106 do CDC, cuja finalidade é a viabilização da tutela dos interesses dos consumidores por meio da fiscalização, repressão, esforços educacionais, e elaboração de políticas públicas.

56. O art. 105 do CDC enumera as entidades que integram o SNDC: órgãos federais, estaduais, municipais e distrital de proteção ao consumidor, bem como entidades privadas voltadas a essa finalidade. Por sua vez, o artigo 106 estabelece as competências do órgão federal responsável pela coordenação do sistema.

48 Art. 61 e ss. do CDC.49 BRASIL. Lei da Ação Civil Pública. Lei 7.347 de 24/07/85. Brasília, Diário Oficial da União, 1985.

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57. Atualmente, a organização do SNDC é disciplinada pelo Decreto 2.181/9750, o qual estabelece, também, normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC, bem como delimita a competência dos órgãos integrantes do sistema e disciplina os processos administrativos destinados à apuração de práticas que infringem normas de proteção e defesa do consumidor.

(i) SENACON e o DPDC

58. O SNDC é atualmente coordenado pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça (SENACON)51. Incumbe à SENACON: (i) garantir a proteção e exercício dos direitos dos consumidores; (ii) promover a harmonização nas relações de consumo; e (iii) incentivar a integração e a atuação conjunta dos membros do SNDC52. Esses objetivos, por sua vez, materializam-se por meio das atividades de repressão às práticas infrativas, de políticas voltadas à proteção da saúde e segurança dos consumidores, pelas atividades da Escola Nacional de Defesa do Consumidor, através da implantação do Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (SINDEC), e pelo aperfeiçoamento de políticas regulatórias.

59. O Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão vinculado à SENACON, é responsável por apoiar a secretaria no exercício das competências estabelecidas no art. 106 do CDC, nos termos da atual redação do Decreto 2.181/97. Tramitam no órgão os processos administrativos para apuração de supostas violações aos direitos dos consumidores de competência federal e processos em trânsito nas entidades de outras esferas políticas que versem sobre interesses difusos ou coletivos, avocados pela SENACON53. Das decisões proferidas pelo DPDC cabe recurso à SENACON, última instância em âmbito administrativo de infrações desta natureza54.

50 BRASIL. Decreto 2.181 de 20/03/97. Brasília, Diário Oficial da União, 1997.51 A SENACON/MJ é prevista no Decreto Federal 7.738/2012, que alterou o Decreto 2.181/97. Antes de 2011, o SNDC era coordenado pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), órgão da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (por força do Decreto nº 861/93, que regulamentava o art. 106 do CDC). Em razão da reformulação das autoridades concorrenciais promovida pela Lei 12.529/2011 e com a consequente extinção da SDE, fez-se igualmente necessária a reformulação do SNDC, passando o DPDC a ser vinculado à SENACON, à qual incumbiria a partir de então coordenar o SNDC.52 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. O que é a Senacon. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em: 25/05/2014.53 “Art. 16. Nos casos de processos administrativos em trâmite em mais de um Estado, que envolvam interesses difusos ou coletivos, a Secretaria Nacional do Consumidor poderá avocá-los, ouvida a Comissão Nacional Permanente de Defesa do Consumidor, e as autoridades máximas dos sistemas estaduais”.54 Art. 50 do Decreto 2.181/97.

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60. Finalmente, ainda no âmbito da repressão administrativa de violações aos direitos do consumidor, tem a SENACON também a função de dirimir eventuais conflitos de competência entre as entidades integrantes do SNDC, decorridos da investigação de condutas delitivas cujos efeitos se observem em mais de uma jurisdição.

(ii) Órgãos estaduais, municipais e DF

61. A existência de órgãos estaduais, municipais e do Distrito Federal voltados à proteção dos consumidores está prevista no art. 105 do CDC. Trata-se dos PROCON(s) -- órgãos que atuam na proteção dos

Box 5

Atribuições da SENACON

Art. 3o Compete à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, a coordenação da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabendo-lhe:

I - planejar, elaborar, propor, coordenar e executar a política nacional de proteção e defesa do consumidor;II - receber, analisar, avaliar e apurar consultas e denúncias apresentadas por entidades representativas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado ou por consumidores individuais;III - prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias;IV - informar, conscientizar e motivar o consumidor, por intermédio dos diferentes meios de comunicação;V - solicitar à polícia judiciária a instauração de inquérito para apuração de delito contra o consumidor, nos termos da legislação vigente;VI - representar ao Ministério Público competente, para fins de adoção de medidas processuais, penais e civis, no âmbito de suas atribuições;VII - levar ao conhecimento dos órgãos competentes as infrações de ordem administrativa que violarem os interesses difusos, coletivos ou individuais dos consumidores;VIII - solicitar o concurso de órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como auxiliar na fiscalização de preços, abastecimento, quantidade e segurança de produtos e serviços;IX - incentivar, inclusive com recursos financeiros e outros programas especiais, a criação de órgãos públicos estaduais e municipais de defesa do consumidor e a formação, pelos cidadãos, de entidades com esse mesmo objetivo;X - fiscalizar e aplicar as sanções administrativas previstas na Lei nº 8.078, de 1990, e em outras normas pertinentes à defesa do consumidor;XI - solicitar o concurso de órgãos e entidades de notória especialização técnico-científica para a consecução de seus objetivos;XII - celebrar convênios e termos de ajustamento de conduta, na forma do § 6o do art. 5o da Lei no 7.347, de 24 de julho de 1985; (Redação dada pelo Decreto nº 7.738, de 2012).XIII - elaborar e divulgar o cadastro nacional de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos e serviços, a que se refere o art. 44 da Lei nº 8.078, de 1990;XIV - desenvolver outras atividades compatíveis com suas finalidades.

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consumidores. As atribuições desses órgãos são esclarecidas nos arts. 4o e 5o do Decreto 2.181/97.

62. O art. 5o determina que qualquer entidade ou órgão da Administração Pública que se destine à defesa dos interesses e direitos dos consumidores tem, dentro de suas competências, atribuição para apurar e punir infrações expostas no seu próprio texto e na legislação das relações de consumo.

63. Já o art. 4o estabelece que tais órgãos têm competência concorrente para exercer todas as atividades listadas no Box 5 acima (com exceção dos itens II e XIII, que se referem às atividades da SENACON em âmbito nacional). Além disso, cabe a esses órgãos: (a) planejar e executar políticas de defesa do consumidor em seus territórios, (b) atender os consumidores e processar suas reclamações, (c) fiscalizar as relações de consumo, e (d) instruir e julgar processos administrativos em seu âmbito de competência.

64. A criação dos órgãos estaduais, municipais e distrital de defesa do consumidor está condicionada à elaboração de diplomas legais pelas respectivas esferas políticas às quais estarão ligados, que por sua vez deverão ser regulamentadas pelo Poder Executivo local. Para garantir o ingresso de entidades provenientes dessas esferas políticas no sistema, é estabelecida como uma das competências da SENACON o incentivo à sua criação, por meio de auxílio financeiro ou através de outros programas especiais55.

(iii) Entidades privadas

65. As entidades privadas que compõem o SNDC são organizações da sociedade civil criadas no intuito de promover os direitos dos consumidores e defendê-los de eventuais abusos cometidos por fornecedores. Sua participação no SNDC é prevista no CDC56. Conforme visto acima, uma das atribuições da SENACON é o fomento à criação de tais entidades.

55 “Art. 3o Compete à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, a coordenação da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabendo-lhe: [...]IX - incentivar, inclusive com recursos financeiros e outros programas especiais, a criação de órgãos públicos estaduais e municipais de defesa do consumidor e a formação, pelos cidadãos, de entidades com esse mesmo objetivo;”

56 Art. 105 do CDC.

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66. Essas organizações estão no rol de legitimados para mover ações coletivas em sede de abusos aos direitos do consumidor57. Além disso, têm legitimidade para firmar convenções coletivas de consumo, as quais estabelecem condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo58.

67. Um exemplo de entidade privada voltada à proteção dos consumidores é o IDEC - Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor59.

(iv) O SINDEC e o Cadastro de Reclamações Fundamentadas

68. O Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (SINDEC) foi criado em 2003 como política de integração dos membros do SNDC60. É facultado a todas as entidades integrantes do sistema firmar convênio junto à SENACON para fazer parte do SINDEC.

69. Por meio dele, são registrados os atendimentos individuais, a instrução dos procedimentos de atendimento e dos processos de reclamação, além da gestão das políticas de atendimento e fluxos internos dos PROCON(s) integrados. Ademais, o SINDEC elabora os Cadastros Estaduais e Nacional de Reclamações Fundamentadas, bem como é fonte de subsídios para a implantação das diretrizes do Plano Nacional de Consumo e Cidadania61.

70. Os Cadastros de Reclamações Fundamentadas, cuja elaboração é de responsabilidade de cada integrante do SNDC, consistem em bancos de dados de fornecedores contra os quais há decisões definitivas proferidas pelos órgãos de defesa do consumidor62. O acesso a essas

57 Art. 82, inciso IV, do CDC.58 Art. 107 do CDC. “As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo.[...]”59 Mais informações em: http://www.idec.org.br.60 ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Experiência: Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor (Sindec) Disponível em: http://inovacao.enap.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=300. Acesso em 27/05/2014.61 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. O que é o Sindec. Disponível em: http://portal.mj.gov.br. Acesso em 27/05/2014.62 Criados em consonância com os arts. 47 do CDC e 57 e seguintes do Decreto Federal 2.181/97.

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informações também é público e sua divulgação atualizada deve ser feita pelas entidades correspondentes em periodicidade no mínimo anual.

(v) Plano Nacional de Consumo e Cidadania e a Câmara Nacional das Relações de Consumo

71. O Plano Nacional de Consumo e Cidadania, criado em 2013, foi instituído no intuito de promover a proteção e defesa do consumidor em todo o território nacional, por meio da integração e articulação de políticas, programas e ações63. São três os eixos de atuação desse plano, cada qual subdivido em várias ações: (i) prevenção e redução de conflitos; (ii) regulação e fiscalização; e (iii) fortalecimento do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor64.

72. A gestão do plano, por sua vez, ficou a cargo da Câmara Nacional das Relações de Consumo, subdivisão do Conselho de Governo criada pelo mesmo decreto. Sua atuação se dá em duas instâncias: (i) Conselho de Ministros, responsável por guiar a formulação, implementação, monitoramento e avaliação do Plano; e pelo (ii) Observatório Nacional de Proteção ao Consumidor, cuja atribuição é promover estudos, preparar propostas para a concretização dos objetivos estabelecidos pelo Plano e monitorar a execução das políticas, programas e ações do Plano Nacional de Consumo e Cidadania.

(vi) Outros órgãos envolvidos na defesa do consumidor

73. Não obstante a atuação dos integrantes do SNDC, há ainda outros atores aos quais compete, ainda que indiretamente, proteger os consumidores. Agências reguladoras, por exemplo, tutelam interesses dos destinatários dos serviços que estão sob sua responsabilidade. Contudo, essa espécie de atuação não está restrita ao âmbito governamental: há também entidades privadas capazes de interferir nas relações de consumo, sem que tenham sido constituídas exclusivamente com essa finalidade.

74. Na esfera governamental, há, a título de exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Dentre suas competências, encontra-se a fiscalização e regulamentação de produtos e serviços

63 BRASIL. Decreto Federal 7.963 de 15/03/2013. Brasília, Diário Oficial da União, 2013.64 Arts. 4º a 7º do Decreto 7.963/2013.

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que possam afetar a saúde dos brasileiros65. Dessa forma, a autarquia materializa um dos direitos garantidos aos consumidores, que é a vedação da comercialização de produtos e serviços que constituam ameaça a sua saúde ou segurança. Por meio da sua atuação, por exemplo, podem-se identificar vícios em produtos que ensejem a realização dos denominados recalls, regulados pela legislação consumerista66.

75. Como exemplo de pessoa jurídica de direito privado cuja atuação também impacta os consumidores, tem-se o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Trata-se de organização da sociedade civil que tem com uma de suas atribuições a coibição de práticas publicitárias antiéticas, nos termos do Código Brasileiro de Autorregulamentação da Propaganda (convenção da categoria, de caráter privado)67.

76. Nesse sentido, há também a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), que estabelece uma miríade de padrões de qualidade para a fabricação de produtos e prestação de serviços. Suas determinações podem vincular a atividade dos fornecedores, tendo em vista ser a estes vedada a disponibilização no mercado de produtos e serviços os quais, ausente regulamentação oficial, não observem a padronização elaborada pela ABNT68. Essa regra aplica-se, aliás, tanto às normatizações produzidas pela ABNT quanto às de outras entidades credenciadas pelo Conselho Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (CONMETRO).

3.3 Principais eixos de atuação das normas de defesa do consumidor69

77. O CDC tem como princípio central o reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores, o que significa que as normas de proteção dos consumidores foram criadas de maneira a equilibrar a

65 Arts. 2º, inciso III, e 8º da Lei 9.782/99, que define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências.66 BRASIL. Portaria do Ministério da Justiça 487 de 15/03/2012. Brasília, Diário Oficial da União, 2012.67 CONSELHO NACIONAL DE AUTORREGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA. Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária. Disponível em: http://www.conar.org.br/. Acesso em: 23/06/2014. Cumpre ressaltar, contudo, que o Conar possui a prerrogativa de impor sanções bastante específicas, a saber: (a) advertência; (b) recomendação de alteração ou correção do anúncio; (c) recomendação aos veículos de divulgação no sentido de que sustem a divulgação do anúncio; (d) divulgação da posição do Conar com relação ao Anunciante, à Agência e ao veículo anunciante, através de veículos de comunicação, em face do não-acatamento das medidas e providências preconizadas.68 Art. 39, inciso VIII, do CDC.69 Trechos desse capítulo são também encontrados no livro “Doing Business in Brazil 2014”, editado por Trench, Rossi e Watanabe Advogados.

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relação estabelecida entre fornecedor e a parte vulnerável, o consumidor. Com esse intuito, as autoridades de proteção ao consumidor, bem como o Judiciário, tendem a adotar, na maioria dos casos, uma postura pró-consumerista.

78. Outros princípios trazidos pelo CDC são: educação e informação de consumidores e fornecedores, repressão de práticas abusivas no mercado de consumo, e apoio à criação, por fornecedores, de meios alternativos de resolução de conflitos.

79. O CDC estabelece, igualmente, os seguintes direitos básicos do consumidor: proteção à sua saúde e segurança, no caso de produtos e serviços defeituosos; informações claras e adequadas a respeito das principais características de produtos e serviços; proteção contra propaganda abusiva e enganosa; modificação de cláusulas contratuais que estabeleçam obrigações desproporcionais aos consumidores; a efetiva indenização por danos materiais, morais, individuais e coletivos (direito à reparação integral); acesso às esferas administrativa e judicial para completa prevenção e reparação de danos; e a prestação adequada de serviços públicos.

80. Os direitos básicos mencionados acima são empregados pelos julgadores nas esferas administrativa e judicial na tutela do interesse dos consumidores e/ou imposição de penalidades às empresas, no caso da inobservância do CDC.

(a) Responsabilidade civil relativa à qualidade de produtos e serviços

(i) Responsabilização por vícios

81. Produtos e serviços ofertados no mercado brasileiro devem assegurar aos consumidores a qualidade que deles se espera, sendo próprios e adequados para o consumo. Caso sejam verificados vícios nos produtos ou serviços, os consumidores têm o direito de exigir que o fornecedor saneie-os. Não sendo o vício sanado no prazo de trinta dias, poderá o consumidor exigir, conforme sua preferência, a substituição do produto por outro da mesma espécie (em perfeitas condições de uso), a restituição da quantia paga devidamente atualizada, ou o abatimento proporcional do preço, sem prejuízo de reparação pelos danos causados em razão dessas imperfeições70.70 Arts. 18, 19 e 20 do CDC.

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82. O CDC concede aos consumidores a garantia legal, a qual é obrigatória e não pode ser afastada por convenção entre as partes, nem modificada e limitada71. Fornecedores podem optar por ofertar aos consumidores garantias contratuais com prazos específicos, os quais serão usufruídos pelos consumidores além daqueles já estabelecidos por lei72. Deve-se ressaltar que, no atual entendimento do STJ, a garantia legal passa a valer após o término da garantia contratual73.

83. O certificado de garantia contratual deve seguir um padrão e explicar sua aplicabilidade, bem como a forma, prazo e locais em que pode ser exercida. Deve ser entregue ao consumidor, devidamente preenchido, no momento de entrega do produto/serviço, acompanhado de manual de instruções ilustrado, escrito em linguagem compreensível pelo homem-médio74.

84. O código estabelece um prazo de 30 dias (no caso de produtos não-duráveis) e de 90 dias (no caso de produtos duráveis) para que os consumidores possam apresentar reclamações a respeito de vícios aparentes ou de fácil constatação, contados a partir da efetiva entrega do produto ou conclusão do serviço75. No caso de vícios ocultos, o período para apresentação de reclamação passa a correr a partir do momento em que o dito vício foi evidenciado ao consumidor76.

(ii) Responsabilização por defeitos (fato do produto ou serviço)

85. Os consumidores também têm sua saúde e segurança protegidas e, por isso, fornecedores são responsáveis por danos causados por defeitos em produtos ou serviços77. O CDC entende como defeituoso o produto que não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, tendo em vista três circunstâncias: (i) sua apresentação; (ii) o uso e os riscos que razoavelmente se esperam quando da sua utilização; e (iii) a época em que ele foi colocado em circulação78.

71 Arts. 24 e 25 do CDC.72 Art. 50 do CDC.73 Superior Tribunal de Justiça. REsp 967.623/RJ. Min. Relatora: Nancy Andrighi. Data do Julgamento: 16/04/2009. eDJ: 26/06/2009.74 Art. 50, parágrafo único, do CDC.75 Art. 26 do CDC.76 Art. 26, §3º, do CDC.77 Art. 12 do CDC.78 Art. 12, §1º, do CDC.

33||Direito do Consumidor e Direito da Concorrência

86. Ocasionado um dano em virtude de defeito no projeto, fabricação, construção, montagem, manipulação, apresentação ou acondicionamento de determinado produto, surge obrigação de reparação, independentemente de comprovação de culpa, por parte do fabricante, produtor, construtor e importador, seja ele nacional ou estrangeiro, bem como nos casos em que foram fornecidas informações insuficientes ou inadequadas acerca de sua utilização e riscos79.

87. Além disso, deve ser o próprio comerciante responsabilizado, nos termos descritos acima, quando: (a) não for possível identificar o fabricante, construtor, produtor ou importador do produto/serviço defeituoso; (b) o produto é comercializado sem identificação clara de quem seria seu fabricante, produtor, construtor ou importador; ou (c) não houve o acondicionamento adequado de bens perecíveis80.

88. No caso da prestação de serviços, há também responsabilização objetiva, devendo o fornecedor reparar os danos oriundos de defeitos e decorrentes de insuficiência ou inadequação na prestação de informações a respeito de sua fruição e riscos81.

89. Cabe ressaltar que, conforme já exposto na seção 3.1 sobre o conceito de consumidor, todas as vítimas de acidentes causados por um produto ou serviço defeituoso são equiparadas a consumidores para fins de responsabilização pelo defeito/fato do produto ou serviço82.

(A) Acidentes de consumo

90. O CDC determina que serão comercializados produtos e serviços que não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, excetuados aqueles que se consideram normais e previsíveis diante de sua natureza, estando obrigados os fornecedores a dar as informações necessárias e adequadas nesse sentido83. No caso dos produtos e serviços potencialmente perigosos ou nocivos, as informações a respeito desses riscos deverão ser prestadas de maneira ostensiva84.

79 Art. 12 do CDC.80 Art. 13 do CDC.81 Art. 14 do CDC.82 Art. 17 do CDC.83 Art. 8º do CDC.84 Art. 9º do CDC.

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91. Se, em virtude de defeito ou insuficiência/inadequação de prestação de informações, ocorrer um dano à saúde ou segurança de um indivíduo, configura-se o acidente de consumo. Conforme exposto no item anterior, nessas situações caberá responsabilização, nos termos dos arts. 12, 13 e 14 do CDC. Consumidores têm um prazo de 5 anos para buscar a reparação desses danos contra os fornecedores.

(B) Recalls

92. Conforme visto, a legislação consumerista veda a comercialização de produto ou serviço caso esse apresente alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança do consumidor. Caso tal fato ingresse na esfera de conhecimento do fornecedor em momento posterior à comercialização, este deverá comunicar o ocorrido imediatamente às autoridades e os consumidores85. Esse processo é denominado comumente de recall/chamamento, e está regulamentado pela Portaria 487/2012 do Ministério da Justiça.

93. Caso alguma entidade do SNDC venha a identificar a existência de defeito que enseje a realização de um recall, o qual não tenha sido informado pelo fornecedor, serão impostas sanções de ordem administrativa e penal, sem prejuízo de reparação civil pelos danos causados aos consumidores.

(b) Práticas comerciais

(i) Propaganda

94. Nos termos dos arts. 30 e seguintes do CDC, as informações ou peças publicitárias (desde que suficientemente precisas) veiculadas pelos fornecedores passam a integrar o contrato firmado no contexto da relação de consumo, constituindo, a partir de então, obrigação para com o consumidor. O CDC também obriga os fornecedores a formular

85 “Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.§ 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários.§ 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço.§ 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.”

35||Direito do Consumidor e Direito da Concorrência

tais anúncios de modo que os consumidores sejam capazes de, fácil e imediatamente, identificá-los como propagandas de produtos e serviços.

95. O CDC proíbe expressamente propagandas abusivas e enganosas. Como propaganda abusiva, entende o CDC a propaganda discriminatória, que incita violência, explora o medo ou superstição, beneficia-se da imaturidade de julgamento e inexperiência das crianças, ou que possa levar o consumidor a agir de forma perigosa ou ameaçadora com respeito a sua saúde e segurança86. A propaganda enganosa, por sua vez, é qualquer informação ou comunicação de teor publicitário, o qual seja total ou parcialmente falso, ou que por qualquer outra razão, ainda que por omissão, possa conduzir o consumidor ao erro a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, atributos, origem, preço e qualquer outro dado sobre o produto ou serviço87.

(ii) Práticas abusivas

96. Práticas abusivas são entendidas como comportamentos dos fornecedores observados antes, durante ou após a oferta de produtos ou serviços que coloquem o consumidor em desvantagem e, em razão disso, são proibidas pela legislação em vigor88.

97. O CDC apresenta exemplos de práticas abusivas, tais como a “venda casada” (condicionamento da venda de um produto/serviço à aquisição de outro produto/serviço que normalmente é ofertado separadamente)89, a colocação no mercado de consumo de produtos que não observam exigências técnicas90, entre outras.

98. Algumas dessas práticas abusivas serão comparadas, na seção 4.2 abaixo, com práticas similares que podem vir a constituir uma infração à ordem econômica do ponto de vista do direito da concorrência. Conforme se verá, em muitos casos, há diferentes requisitos para a configuração de uma prática abusiva sob as normas consumeristas e concorrenciais.

86 Art. 37, §2º, do CDC.87 Art. 37, §1º, do CDC.88 Art. 39 do CDC.89 Art. 39, inciso I, do CDC.90 Art. 39, inciso VIII, do CDC.

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(c) Contratos

99. O tratamento conferido pelo CDC à matéria contratual difere do entendimento clássico de que deveria o Estado manter-se à parte diante dos ajustes realizados entre particulares. Portanto, quanto aos contratos de natureza consumerista, prevalece uma forma de dirigismo contratual, a fim de tutelar os interesses do consumidor.

100. Essa proteção ao consumidor adquire especial importância num contexto de consumo de massa, no qual são comuns os chamados “contratos de adesão”. Trata-se de acordos com cláusulas previamente elaboradas, utilizados pelos fornecedores sempre que irão vender um produto/serviço para os consumidores. No intuito de coibir abusos, diante da impossibilidade da adequada avaliação por parte do consumidor dos termos do acordo celebrado junto ao fornecedor, foi dedicada tutela específica pelo legislador a seu respeito no CDC91.

101. Nesse sentido, versa o Capítulo VI do CDC a respeito da proteção contratual. Determina-se, por exemplo, que contratos que regulam relações desta natureza somente operam efeitos sobre consumidores caso estes tenham vindo a previamente tomar conhecimento de seu conteúdo, bem como devem ser redigidos de maneira a deixar claros o seu sentido e alcance92.

102. Em seguida, estabelece-se o marco hermenêutico segundo o qual contratos de consumo serão sempre interpretados em benefício do consumidor. Diante da vulnerabilidade do consumidor no momento em que se fixam os termos do contrato, esse princípio busca suprimir imposições unilaterais por parte dos fornecedores93.

103. Por meio do art. 49, garantiu-se ao consumidor o direito ao arrependimento, em até sete dias após o recebimento do produto, quando o contrato foi firmado em local que não o estabelecimento comercial.

104. No art. 51, por sua vez, é apresentado rol exemplificativo de cláusulas abusivas, dentre as quais é possível listar: (i) aquelas que evitam, eximem ou reduzem a responsabilidade dos fornecedores por defeitos de qualquer natureza apresentados pelo produto ou serviço; (ii) aquelas que 91 Art. 54 do CDC.92 Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.93 Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

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transferem a responsabilidade a terceiros; (iii) aquelas que determinam o uso compulsório da arbitragem; (iv) aquelas que possibilitam que o fornecedor altere, direta ou indiretamente, o preço de forma unilateral, entre outras.

105. Exatamente por este caráter exemplificativo, diante do caso concreto, as autoridades e/ou tribunais devem se manifestar sobre se uma determinada cláusula é abusiva ou não, buscando como fonte os postulados gerais que informam as relações contratuais consumeristas, tais como a cláusula geral da boa-fé objetiva, de lesão enorme, e de equidade94.

106. A cláusula geral da boa-fé objetiva pauta-se no padrão de conduta que se espera no desenrolar de uma relação contratual. Dessa forma, na existência de uma previsão aumentando o desequilíbrio já característico desse contexto, haveria uma violação à expectativa de lealdade, confiança e transparência. Por sua vez, a lesão enorme diz respeito à cláusula-preço, pela qual o fornecedor não pode impor ônus excessivo ao consumidor ou contraprestação desproporcionalmente manifesta. Por fim, pela cláusula geral da equidade, de caráter mais aberto, as cláusulas manifestamente injustas não operariam efeitos95.

107. Por fim, cabe mencionar o caso especial dos contratos de consumo no contexto do comércio eletrônico. O comércio eletrônico foi regulamentado por meio do Decreto Federal 7.962/2013. Tal diploma busca garantir direitos do consumidor já tutelados pelo CDC em sede dessa forma peculiar de realização das transações consumeristas, dispondo, especificamente, sobre três tópicos: (i) prestação de informações claras a respeito do produto, serviço e do fornecedor; (ii) realização de atendimento facilitado ao consumidor; e (iii) respeito ao direito de arrependimento.

4. Interfaces entre os dois sistemas

108. Este capítulo apresentará algumas interfaces entre o direito de defesa da concorrência e as normas de proteção do consumidor. A seção 4.1 aborda os mecanismos de aplicação das leis nos planos administrativo, cível e criminal. A seção 4.2 analisa possíveis convergências e divergências quanto a práticas abusivas selecionadas, bem como no que se refere ao

94 KHOURI, Paulo R. Roque A. Direito do Consumidor: Contratos, Responsabilidade Civil e Defesa do Consumidor em Juízo. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2013. pp. 125-126.95 Id., pp. 127-129.

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tema da desconsideração da personalidade jurídica. Por fim, a seção 4.3 explica as atividades de advocacia da concorrência e as campanhas de conscientização do consumidor.

4.1 Aplicação das leis nas esferas administrativa, cível e criminal

109. Conforme explicado nos capítulos 2 e 3 acima, tanto o sistema de defesa do consumidor quanto o sistema de defesa da concorrência no Brasil preveem mecanismos de prevenção e repressão a infrações.

110. Os mecanismos de repressão manifestam-se na esfera administrativa – por meio de processos administrativos sancionadores conduzidos pelo CADE e pelos órgãos federais, estaduais, municipais e do Distrito Federal de defesa do consumidor – e nas esferas cível e criminal.

111. Em relação aos mecanismos de prevenção, destacam-se a análise de atos de concentração pelo CADE, já abordada no capítulo 2, e as medidas de advocacia da concorrência, bem como campanhas de conscientização realizadas pelos órgãos do sistema de defesa do consumidor.

(a) Esfera administrativa

112. Conforme já mencionado, a Lei 12.529/2011 tipifica as infrações à ordem econômica sujeitas à aplicação de penalidades administrativas. De forma similar, o CDC e o Decreto 2.181/97 estabelecem as práticas infracionais que sujeitam o fornecedor, no contexto de uma relação de consumo, a sanções de natureza administrativa.

113. A responsabilização administrativa dos agentes envolvidos nas infrações previstas pelos sistemas de defesa da concorrência e do consumidor ocorre por meio de processos administrativos de natureza sancionadora, os quais tramitam perante o CADE e os órgãos de defesa do consumidor.

114. No âmbito do sistema de defesa da concorrência, a Lei 12.529/2011 estabelece como competência do Plenário do Tribunal do CADE – tribunal administrativo colegiado, composto por seis Conselheiros e um Presidente

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– a decisão sobre a imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica96.

115. Entretanto, a instauração e instrução dos processos administrativos para imposição dessas sanções é de competência da Superintendência-Geral do CADE (SG-CADE)97. Ao final da instrução, a SG-CADE emite uma recomendação, não vinculativa, ao Tribunal Administrativo sobre a configuração ou não de infração à ordem econômica. Apenas o Tribunal poderá decidir pela imposição de sanções administrativas por infrações à ordem econômica.

116. A Lei 12.529/2011 prevê três tipos de investigações sobre infrações à ordem econômica:

i. Procedimento Preparatório de Inquérito Administrativo;

ii. Inquérito Administrativo para Apuração de Infrações à Ordem Econômica;

iii. Processo Administrativo para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica.

117. Desses três tipos, apenas o último destina-se à imposição de penalidades administrativas, sendo, por essa razão, orientado pelos princípios da ampla defesa e do contraditório. A decisão administrativa final, no caso dos Processos Administrativos para Imposição de Sanções por Infrações à Ordem Econômica, é de competência exclusiva do Tribunal, conforme mencionado acima.

118. Já as duas primeiras espécies de processo administrativo destinam-se, em síntese, à obtenção de indícios adicionais que autorizem a abertura de um Processo Administrativo para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica. Possuem natureza inquisitorial e podem ser arquivados diretamente pela Superintendência-Geral. É comum que esses dois tipos de processos tramitem sob sigilo na SG-CADE, especialmente quando as autoridades pretendem obter indícios adicionais por meio de procedimentos de busca e apreensão, por exemplo.

96 Art. 9º, III.97 Art. 13, inciso V, da Lei 12.529/2011.

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119. No caso de Processo Administrativo para Imposição de Sanções Administrativas por Infrações à Ordem Econômica, caso o Tribunal Administrativo conclua pela ocorrência de infrações à ordem econômica, poderá aplicar as seguintes sanções administrativas98.

120. As infrações à ordem econômica sempre sujeitam o infrator a multas, que serão aplicadas pelo Tribunal99. A multa aplicável às empresas infratoras varia entre 0,1% e 20% do faturamento bruto obtido no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração no ano anterior à abertura do processo administrativo. Já no que tange às multas aplicáveis aos indivíduos, os percentuais variam entre 1 a 20% da multa aplicada à empresa (para administradores envolvidos na infração), enquanto 98 Arts. 37 e 38 da Lei 12.529/2011.99 Art. 37 da Lei 12.529/2011

Box 6SANÇÕES ADMINISTRATIVAS POR INFRAÇÃO À ORDEM ECONÔMICA

Art. 3o Compete à Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça, a coordenação da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, cabendo-lhe:

• Multa às empresas (Art. 37, I), aos seus administradores (Art. 37, inciso III) e às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial (Art. 37, II).

• Publicação às expensas do infrator, em jornal indicado pelo CADE, do extrato da decisão condenatória (Art. 38, I)

• Proibição de contratar com instituições financeiras oficiais e participar de licitação com a administração pública federal, estadual, municipal e do DF, bem como em entidades da administração indireta (art. 38, II)

• Inscrição do infrator no Cadastro Nacional de Defesa do Consumidor (art. 38, III);

• Recomendação aos órgãos públicos competentes para que (i) seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual de titularidade do infrator; (ii) não seja concedido ao infrator parcelamento de tributos federais; (iii) que sejam cancelados, no todo ou em parte, incentivos fiscais ou subsídios públicos (Art. 38, IV);

• Cisão de sociedade, transferência de controle societário, venda de ativos ou cessação parcial de atividade (Art. 38, V);

• Proibição de exercer comércio em nome próprio ou como representante de pessoa jurídica (Art. 38, VI)

• Qualquer outro ato ou providência que o CADE entenda necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.

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funcionários não administradores estão sujeitos a multa que varia entre R$ 50 mil até R$ 2 bilhões.

121. As demais sanções administrativas podem ser aplicadas, isolada ou cumulativamente, sem prejuízo das multas, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral100.

122. Exemplo emblemático da aplicação da Lei 12.529/2011 na imposição de penalidades é a recente decisão do CADE no caso do suposto cartel do cimento, em que a autoridade de defesa da concorrência impôs multa recorde, além de uma série de penalidades inéditas que os Conselheiros do CADE entenderam necessárias para a cessação das condutas anticompetitivas101:

100 Art. 38 da Lei 12.529/2011.101 Foram opostos embargos de declaração à referida decisão, os quais ainda estão pendentes de apreciação pelo Tribunal do CADE (situação em dezembro de 2014).

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102

123. No contexto do sistema de proteção e defesa do consumidor, os órgãos de proteção e defesa nas esferas federal, estadual, municipal e do Distrito Federal possuem competência concorrente para apuração de práticas infrativas ao sistema de proteção e defesa do consumidor e imposição de sanções de natureza administrativa103. No âmbito federal, os processos administrativos estão sob responsabilidade do DPDC. Nos âmbitos estadual e municipal, as infrações administrativas são apuradas pelos PROCON(s) dos estados e municípios.

102 “Cade multa em R$ 3,1 bilhões o cartel do cimento”. Disponível em http://www.cade.gov.br/Default.aspx?1c2fff09180de32ffb491a2d3b1e. Acesso em 05 de junho de 2014.103 Art. 5º do Decreto 2.181/1997.

Box 7

CADE IMPÕE MULTA RECORDE SOBRE SUPOSTO CARTEL DO CIMENTO102

Em 28 de maio de 2014, o CADE condenou por unanimidade as condutas anticompetitivas que ficaram conhecidas como Cartel do Cimento (Processo Administrativo n. 08012.011142/2006-79).

De acordo com o CADE, o cartel teria atuado no mercado brasileiro de cimento e concreto por meio da fixação de preços e de quantidades de venda de produtos, divisão regional do mercado e alocação de clientes entre as empresas cartelizadas. Os representados também atuavam, segundo o CADE, para inviabilizar a entrada de novos concorrentes nesses setores.

A investigação obteve acesso a e-mails, anotações e documentos aprendidos durante operação de busca realizada em 2007. O Conselheiro Relator do Processo Administrativo estimou que os efeitos nocivos do Cartel do Cimento à sociedade teriam sido equivalentes a pelo menos R$ 28 bilhões, nos 20 anos em que o cartel teria atuado.

Somadas, as multas aplicadas a seis empresas, seis pessoas físicas e três associações resultaram em R$ 3,1 bilhões.

Além disso, o CADE estabeleceu a obrigação de que as empresas representadas vendam fábricas, bem como participação acionária nos setores de cimento e concreto. Impediu-se, também, a realização de atos de concentração no setor de cimento entre as empresas condenadas e a aquisição de qualquer ativo no setor de concreto, pelo prazo de cinco anos.

A obrigação de venda de ativos é prevista pela Lei n. 12.529/2011, mas não tinha sido imposta pelo CADE em condenação de cartel. É esperado que os representados condenados pelo CADE busquem anulação judicial da decisão administrativa do CADE.

Fonte: CADE

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124. Entretanto, caso mais de uma pessoa jurídica de direito público instaure processo administrativo para apuração de infrações decorrente do mesmo fato e mesmo fornecedor, o conflito de competência decorrente deverá ser dirimido pela SENACON104.

125. No mesmo sentido, considerando a relativa descentralização na persecução administrativa na esfera da proteção ao consumidor, a SENACON poderá, sob certas condições, avocar processos administrativos em trâmite em mais de um Estado, quando envolvam interesses difusos ou coletivos105.

126. De forma similar ao sistema de defesa da concorrência, também no sistema de defesa do consumidor é possível que as autoridades competentes abram investigações ou averiguações preliminares antecedendo a abertura do processo administrativo em si, com a finalidade de requisitar dos fornecedores informações sobre as questões investigadas106.

127. Assim, verificada a ocorrência da prática infrativa, penalidades de natureza administrativa podem ser impostas pelos órgãos competentes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor de forma cumulativa, sem prejuízo das sanções de natureza cível e penal107:

104 Art. 5º, parágrafo único, do Decreto 2.181/1997.105 Art. 16 do Decreto n. 2.181/1997.106 Art. 33, §1º, do Decreto 2.181/1997.107 Art. 56 do CDC.

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128. A penalidade mais comumente aplicada no âmbito da proteção e defesa administrativa do consumidor é a multa. Essa penalidade, a ser graduada de acordo com a gravidade da infração e a vantagem indevidamente auferida, varia entre aproximadamente R$ 500,00 e R$ 7,5 milhões108. As multas mais altas são comumente aplicadas em casos emblemáticos e de alcance nacional. Existe ainda uma tendência das autoridades de proteção e defesa do consumidor de impor sanções alternativas, tais como suspensão de websites, no caso em que essas atividades não estejam de acordo com as normas de defesa do consumidor.

129. Como exemplo das medidas de repressão às práticas infrativas nas relações de consumo, cite-se a multa imposta pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (“DPDC”) à montadora de automóveis FIAT, em razão de supostos defeitos no modelo FIAT Stilo:

108 Nos termos do art. 57, parágrafo único do CDC, as multas administrativas incidentes em caso de infração à legislação consumerista variavam entre duzentas e três milhões de vezes o valor da Unidade Fiscal de Referência (Ufir). Contudo, após a publicação do Despacho 571 do Ministro da Justiça, em 13/07/2011, fundamentado em parecer da Advocacia Geral da União exarado em 11/04/2011, tais valores passaram a ser atualizados com base no Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA-e).

Box 8

SANÇÕES ADMINISTRATIVAS NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

• Multa;

• Apreensão do produto;

• Inutilização do produto;

• Cassação do registro do produto junto ao órgão competente;

• Proibição de fabricação do produto;

• Suspensão de fornecimento de produtos ou serviço;

• Suspensão temporária de atividade;

• Revogação de concessão ou permissão de uso;

• Cassação de licença do estabelecimento ou de atividade;

• Interdição, total ou parcial, de estabelecimento, de obra ou de atividade;

• Intervenção administrativa;

• Imposição de contrapropaganda.

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109130. Traço distintivo entre a repressão administrativa no sistema de defesa da concorrência e no sistema de proteção ao consumidor é o fato de que, no primeiro, as decisões tomadas pelo Tribunal do CADE no âmbito de processos administrativos não comportam revisão no âmbito do Poder Executivo110. Por outro lado, no segundo sistema, das decisões tomadas pelo DPDC e pelos PROCON(s) cabe recurso ao superior hierárquico, sem efeito suspensivo, no prazo de dez dias111.

109 SILVA, Cleide. DPDC impõe multa à Fiat por atraso na realização de recall. Disponível em: http://blogs.estadao.com.br/cleide-silva/fiat-paga-multa-de-r-3-milhoes-por-atraso-em-recall-e-faz-filme-para-conscientizar-consumidor/. Acesso em: 05/06/14.110 Art. 9º, §2º, da Lei 12.529/2011.111 Arts. 49 e seguintes do Decreto 2.181/1997.

Box 9

DPDC IMPÕE MULTA À FIAT POR ATRASO NA REALIZAÇÃO DE RECALL109

Em março de 201, a montadora Fiat foi multada pelo DPDC, em articulação com o GEPAC - Grupo de Estudos Permanentes de Acidentes de Consumo (formado por Ministério Público Federal em São Paulo, Ministério Público Estadual de São Paulo, Ministério Público do Distrito Federal, Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor – MPCON, Fundação Procon-SP, Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – Inmetro e Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC, além do DPDC), em R$ 3 milhões.

A investigação teria apontado a existência de um defeito no conjunto do cubo da roda dos veículos Fiat Stilo e recomendou que a montadora efetuasse recall. O recall resulta do Código de Defesa do Consumidor, e do dever de não colocar no mercado produtos que apresentem alto grau de nocividade ou perigo à saúde e segurança dos consumidores.

Como a empresa teria negado a existência do defeito, e se recusado a promover o recall, recebeu multa próxima ao teto autorizado pelo Código de Defesa do Consumidor.

Ainda em 2010, a montadora oficializou o início da campanha e a troca de peça nos modelos fabricados entre 13 de abril de 2004 e 9 de março de 2010.

Em 2011, a FIAT ajuizou ação com a finalidade de anular a multa imposta pelo DPDC, entre outras medidas. Após alguns anos de discussão judicial, a FIAT celebrou em 2014 um acordo com as autoridades por meio do qual se comprometeu a recolher a multa imposta ao Fundo de Direitos Difusos, suspender a ação judicial e elaborar um filme educativo com o objetivo de alertar e conscientizar consumidores sobre a importância de atender aos recalls.

Fonte: Estadão Blogs - Cleide Silva.

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131. De todo modo, os sistemas de persecução administrativa para defesa da concorrência e proteção do consumidor assemelham-se pela existência de soluções “negociadas” para a suspensão e arquivamento dos processos administrativos para imposição de sanções.

132. No âmbito do sistema de defesa da concorrência, empresas e indivíduos investigados podem celebrar Compromissos de Cessação com o CADE, contendo obrigações de cessação da conduta e colaboração com as investigações e, em alguns casos, de confissão da prática ilícita e pagamento de contribuição pecuniária112. Em contrapartida, vigente o Compromisso de Cessação, será suspenso o processo administrativo para imposição de sanções e arquivado quando do cumprimento de todas as obrigações assumidas. De forma similar, a SENACON e os PROCON(s) podem celebrar compromissos de ajustamento de conduta, que suspendem o curso do processo administrativo, caso já instaurado, e geram o arquivamento das investigações após atendidas todas as condições estabelecidas no respectivo termo113.

133. Finalmente, cumpre ressaltar que, apesar de ambas as infrações administrativas à ordem econômica e ao sistema de proteção e defesa do consumidor estarem sujeitas à persecução administrativa e à aplicação de sanções nessa esfera, a importância desse tipo de repressão não é o mesmo para os dois sistemas.

134. De fato, no sistema de defesa da concorrência, a repressão administrativa às infrações ainda possui mais destaque que as demais – na medida em que, na maior parte dos casos, a reparação cível e a repressão criminal das infrações à ordem econômica ainda são precedidas pela investigação administrativa. De qualquer maneira, vêm crescendo em importância a persecução penal e as ações de indenização na esfera cível, tanto individuais quanto coletivas.

135. Por outro lado, pode-se afirmar que, no caso do sistema de proteção e defesa do consumidor, a esfera cível possui destaque em relação às demais, já que, conforme será explicado na seção seguinte, as ações civis públicas de responsabilidade por danos causados ao consumidor e as ações individuais de reparação de danos são elementos de grande importância na repressão a esse tipo de infração. De todo modo, nos últimos anos os órgãos de proteção e defesa do consumidor têm atuado de modo mais coordenado e ativo, mormente em questões relacionadas à proteção da saúde e segurança do consumidor.112 Arts. 85 e seguintes da Lei 12.529/2011.113 Art. 6º, §§ 3º e 4, doDecreto 2.181/1997.

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(b) Esfera civil

136. A Lei 12.529/2011 prevê, em seu art. 47, o direito de ação dos prejudicados por atos anticompetitivos. Tais ações manifestam-se para a proteção de interesses individuais (e.g. uma ação de indenização ajuizada por um cliente individualmente prejudicado por sobrepreços causados por um cartel) ou de interesses individuais homogêneos114. Há autonomia entre as esferas administrativa e judicial, especialmente se consideradas as peculiaridades na responsabilização em processo administrativo perante o CADE e em processos judiciais.

137. Os mesmos instrumentos processuais estão disponíveis na esfera das normas de defesa do consumidor. Conforme já visto acima, é possível o ajuizamento de ações individuais por consumidores lesados -- por exemplo, para buscar reparação de danos por fato ou vício do produto. No que tange às ações coletivas, foram criadas as ações civis públicas no ordenamento jurídico brasileiro, de maneira a proteger o meio ambiente, consumidores, bens e direitos relacionados a interesses artísticos, históricos e turísticos, bem como quaisquer outros interesses coletivos ou difusos. Além disso, o CDC estabelece também normas sobre ações coletivas, a fim de proteger direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos.

(i) Ações individuais concorrenciais e consumeristas

138. O art. 1º da Lei 12.529/2011 estabelece que a lei é “orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico”. Aponta ainda que “a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei”.

139. Portanto, o direito da concorrência tutela, de forma imediata, a instituição da concorrência, por meio da manutenção do processo competitivo. Ao fazer isso, garante as possibilidades de escolha ao consumidor e impede práticas de mercado que impactam diretamente o consumidor, como o aumento de preços ou redução de qualidade ou inovação de produtos. Por essa razão, é dito que o consumidor também é protegido, ainda que de forma mediata.

114 Não são tratadas aqui as execuções de sentença condenatória do CADE ou as ações anulatórias de tais decisões.

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140. Esse cenário indica que determinado fato sujeito à análise do direito concorrencial, por se tratar de fato jurídico de múltipla incidência, pode, em tese, causar dano ao processo competitivo em si (por exemplo, por meio de condutas exclusionárias que reduzam o nível de competição ao mercado) e a consumidores (por meio de aumento de preços decorrentes da redução do nível de competição). É possível cogitar de ações individuais cominatórias (i.e. que buscam uma obrigação de fazer ou não fazer) ou indenizatórias movidas por sujeitos inseridos em ambas as categorias. Há, ainda, a hipótese de demandas individuais propostas por sujeitos que tenham alguma relação jurídica com empresas que promovam condutas anticompetitivas, ainda que não se insiram na qualidade de consumidores, conforme a teoria finalista.

141. O pedido cominatório pressupõe lesão de trato sucessivo ao direito do autor e possibilidade de uma ordem de ação ou abstenção para fazer cessar a ilegalidade. Já o pedido indenizatório demanda a caracterização dos pressupostos ordinários da responsabilidade extracontratual: dano, nexo de causalidade e elemento subjetivo.

142. Vale a menção às possíveis ações pseudoindividuais, cuja tutela individual pode proteger interesse particular do autor, mas seus efeitos são projetados para outros sujeitos que possam sofrer os efeitos ou se beneficiar da medida. Uma tutela cominatória que impeça a prática de preços colusivos, movida por sujeito específico, poderá gerar benefícios a todos os consumidores do produto vendido, a despeito de se tratar de mera ação individual. A doutrina questiona a legitimidade desse pedido e não há massa crítica jurisprudencial sobre o tema.

143. No que se refere às normas de defesa do consumidor, o CDC estabelece ferramentas processuais a serem usada para a proteção dos consumidores nas ações de reparação de danos movidas por indivíduos em face dos fornecedores. Por exemplo, a ação pode ser proposta na jurisdição de domicílio do consumidor, o que facilita o acesso à Justiça. Igualmente, de acordo com o CDC, consumidores têm, como um de seus direitos básicos, a facilitação da defesa de seus direitos, incluindo a inversão do ônus da prova em seu favor.

(ii) Ações civis públicas concorrenciais e consumeristas

144. O microssistema do processo coletivo não está codificado. Seu regramento processual-material tem sua coluna vertebral no CDC, com

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especial destaque para o Título III - “Da defesa do Consumidor em Juízo”. A despeito da referência da proteção ao consumidor, tais disposições são válidas para a regulamentação de todo o processo coletivo, especialmente ao tratar da definição dos direitos/interesses tutelados (difusos, coletivos e individuais homogêneos), da competência, dos sistemas de reparação/liquidação e da coisa julgada.

145. Também merece destaque a Lei da Ação Civil Pública, ao dispor sobre legitimidade, competência, eficácia da decisão e regras procedimentais. Complementam ainda o microssistema a Lei da Ação Popular, do Mandado de Segurança Coletivo, e o Código de Processo Civil, de aplicação subsidiária115.

146. Ações civis públicas são utilizadas tanto na proteção de interesses de consumidores possivelmente lesados quanto em casos de infrações à ordem econômica – considerados aqui os atos anticompetitivos. Elas são propostas pelos sujeitos previstos no art. 5º da Lei 7.347/85: o Ministério Público; a Defensoria Pública, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; e a associação.

147. A ação tem por finalidade a imposição de medidas cominatórias (obrigações de fazer e não fazer) e/ou indenizatórias, cujos valores poderão ser liquidados e executados individualmente pelos indivíduos lesados ou que serão revertidos ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (FDDD), gerido pelo CFDD, e utilizados para a “promoção da recuperação, conservação e preservação do meio ambiente e melhoria da qualidade de vida da população brasileira, proteção e defesa do consumidor e promoção e defesa da concorrência, ou destinação para atividades relacionadas com patrimônio cultural brasileiro e outros direitos difusos e coletivos”116.

148. As ações civis públicas propostas no Brasil são normalmente movidas pelos Ministérios Públicos Federal, Estaduais e Distrital. Nesses casos, os procuradores podem promover inquéritos civis antes de mover a ação civil pública, a fim de investigar se o fornecedor causou dano aos consumidores ou não. Durante o inquérito civil, os fornecedores normalmente têm a oportunidade de apresentar informações apropriadas a respeito da investigação.115 BRASIL. Lei da Ação Popular. Lei 4.717 de 29/06/1965. Brasília, Diário Oficial da União, 1965.BRASIL, Lei do Mandado de Segurança. Lei 12.016 de 07/08/2009. Brasília, Diário Oficial da União, 2009.BRASIL. Código de Processo Civil. Lei 5.869 de 11/01/1973. Brasília, Diário Oficial da União, 1973.116 Disponível em: http://portal.mj.gov.br/cfdd/. Acesso em: 27/06/2014.

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149. Inclusive, é possível a celebração de acordos durante a promoção de inquéritos civis. Tais acordos, conhecidos como Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) estabelecem, normalmente, práticas corretivas a serem adotadas pelos fornecedores, cuja não observância implica a aplicação de multas. Os TACs normalmente possuem uma cláusula que determina o pagamento de uma indenização pelos danos causados aos consumidores coletivamente.

(iii) Questões controvertidas em ações no plano concorrencial

150. Diferentemente do que ocorre na esfera da defesa do consumidor, ações individuais e coletivas derivadas de ilícitos concorrenciais são uma manifestação relativamente nova no Brasil. Isso decorre do desenvolvimento recente da disciplina da concorrência e dos igualmente recentes esforços políticos para disseminação da “cultura da concorrência” e compreensão da sua dimensão pelo jurisdicionado e pelo próprio operador do direito. Dessa incipiência surgem controvérsias sobre as quais doutrina e jurisprudência se debruçam, algumas das quais são resumidamente expostas abaixo.

(A) Controvérsias em ações individuais

151. Prova do dano: em ações movidas pelo consumidor, a necessidade de prova do consumo do bem/serviço e dos efeitos da conduta anticompetitiva, usualmente refletidos no preço, para caracterização do dano. Consideram-se aqui os complexos processos de formação de preço e a dificuldade de se estabelecer um parâmetro seguro comparativo de preços competitivos e daqueles obtidos em mercado no qual se limita, falseia ou prejudica a concorrência.

152. Prova do dano (ii): em ações movidas pelos competidores (em condutas exclusionárias), o dimensionamento do dano.

153. Prova do dano (iii): em ações movidas por quem tenha relação jurídica (comercial) com a empresa que comete ilícito, a prova de que o prejuízo dele decorrente não tenha sido repassado ao preço do produto comercializado pelo demandante, neutralizando o dano, sem que houvesse perda de mercado.

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(B) Controvérsias em ações civis públicas

154. Legitimidade ativa: a representatividade adequada como requisito de legitimação (não prevista em lei, mas reconhecida pela doutrina e no direito comparado, especialmente na class action norte-americana; conta com precedentes jurisprudenciais, ainda que incipientes).

155. Competência/eficácia subjetiva da decisão: Competência/eficácia subjetiva da decisão: a inexistência de posicionamento claro do Superior Tribunal de Justiça sobre o art. 16 da Lei 7.347/1985, que delimita quem será beneficiado por decisão judicial a partir dos limites territoriais do órgão que emitiu essa decisão117.

156. Suspensão impositiva da ação individual: a despeito da regra do art. 104 do CDC, segundo a qual a existência de ações coletivas não significa a impossibilidade de continuação de ações individuais, é possível a suspensão obrigatória de ações individuais multitudinárias que tratem das mesmas questões que estejam em discussão em ação coletiva e cuja sentença possa beneficiar tais indivíduos.

157. Ônus da prova: a aplicação da distribuição dinâmica do ônus da prova no processo coletivo, que dá ao juiz flexibilidade para decidir a quem cabe provar algo no processo dependendo das circunstâncias, e que já está presente na tutela do consumidor e do meio ambiente (esse instituto já encontra eco no projeto de Código de Processo Coletivo e consta do Novo Código de Processo Civil, ora no aguardo da sanção presidencial).

158. Ônus financeiro do processo: a responsabilidade pelo pagamento da realização de provas no processo (especialmente perícias), quando a produção dessas provas é destinada à comprovação de fato que favorece o próprio autor.

159. Dano moral coletivo: verba de natureza punitiva não associada aos pressupostos normais da indenização por dano moral individual, cuja possibilidade é objeto de decisões conflitantes pelo STJ.

117 “Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.” in BRASIL. Lei 7.347 de 24/07/1985. Brasília, Diário Oficial da União, 1985.

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160. Prescrição: talvez o maior reflexo da falta da existência de uma codificação para processos coletivos, a prescrição (i.e. impossibilidade de ajuizar a ação por causa da decorrência de um determinado período de tempo) suscita debate sobre a utilização de prazos prescricionais para ações civis públicas emprestados de outros diplomas normativos, como a lei de ação popular (5 anos), independentemente do direito material envolvido, o que é criticado em razão da associação do prazo prescricional material ao instrumento processual utilizado. Há ainda a remessa à utilização dos prazos previstos no Código de Defesa do Consumidor (5 anos).

161. Liquidação e execução da sentença da ação coletiva: a possibilidade de obtenção dos benefícios alcançados por meio de ações coletivas que tutelam interesses individuais homogêneos, por pessoas que não sejam associadas ou que não tenham expressamente autorizado a propositura da demanda por determinada associação, com decisões conflitantes no STJ e STF.

(c) Esfera criminal

162. A lei brasileira prevê, ainda, responsabilização criminal tanto no que se refere ao sistema de defesa da concorrência quanto no de proteção e defesa do consumidor118.

163. No plano das normas de defesa da concorrência, a Lei 8.137/90, alterada pela Lei 12.529/2011, tipifica os crimes contra a ordem econômica:

Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:

I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas;

II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando:

a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas;

b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas;

118 A exposição aqui realizada é curta, tendo em vista que há uma apostila da Comunidade Virtual do Programa Nacional de Promoção da Concorrência voltada à aplicação das normas concorrenciais na esfera criminal.

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c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa.

164. Note-se que o escopo da Lei 8.137/1990 sofreu significativa redução com a entrada em vigor da Lei 12.529/2011. Vários incisos do art. 4º, bem como os arts. 5º e 6º desse diploma legislativo, foram revogados pela nova lei de defesa da concorrência, eliminando diversas condutas anticompetitivas anteriormente classificadas como crimes, tais como venda casada e preços excessivos.

165. Atualmente, a doutrina discute o alcance do inciso I do art. 4º, acima transcrito. Parte dos estudiosos afirma que se trata precisamente do crime de cartel, enquanto outra parte sustenta que o inciso I refere-se apenas aos casos de abuso de poder econômico que decorram de ajustes ou acordo entre empresas, como seria o caso de acordos de exclusividade ou fixação de preços de revenda119.

166. De todo modo, importante ressaltar que o inciso I exige um resultado, qual seja, a dominação do mercado ou eliminação, total ou parcial, da concorrência. Por outro lado, o inciso II prescinde da ocorrência de um resultado, bastando a existência de um “acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes”.

167. A despeito das divergências doutrinárias, o fato é que o cartel é o crime contra a ordem econômica cuja persecução criminal tem sido mais intensificada. Desse modo, a repressão criminal aos casos de cartel tem recebido significativa cobertura da mídia.

168. Paralelamente, o CDC tipifica certas práticas que constituem crimes contra as relações de consumo, prevendo penas tais como detenção de três meses a dois anos e/ou pagamento de multas para essas infrações. A veiculação de publicidade enganosa ou abusiva é um dos exemplos de crime contra as relações de consumo120. Da mesma forma, a não realização de campanha de recall também é considerada um crime pelo CDC121.

119 Para mais detalhes sobre a discussão, vide MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a Cartéis: Interface entre Direito Administrativo e Direito Penal. São Paulo: Singular, 2013, página 185.120 Art. 67 do CDC.121 Art. 64, parágrafo único, do CDC.

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169. Segundo a doutrina, o bem jurídico protegido pelo Direito Penal do Consumidor é a relação jurídica de consumo, e não propriamente o consumidor individual122. Como exige a própria relação de consumo, o sujeito ativo dos crimes contra as relações de consumo é o fornecedor. Entretanto, ainda verifica-se uma “subutilização da via penal para a tutela do consumidor (e de outros interesses difusos e coletivos)”123. Esse cenário de subutilização dos mecanismos criminais de repressão ainda é percebido também na esfera de defesa da concorrência.

170. A Lei 8.137/1990, também tipifica em seu art. 7º uma série de crimes contra as relações de consumo, estabelecendo sanções como detenção de dois a cinco anos e/ou multa. Alguns exemplos das práticas tipificadas como crimes pela Lei 8.137/1990 são a venda, ou exposição à venda, de mercadoria cuja embalagem, tipo, especificação, peso ou composição esteja em desacordo com as prescrições legais, bem como de matéria-prima ou mercadoria em condições impróprias ao consumo.

171. Finalmente, existem crimes contra as relações de consumo que não estão previstos sob essa rubrica no CDC ou na Lei 8.137/90. São exemplos de tais crimes as práticas de corrupção, adulteração ou falsificação de substância alimentícia ou medicinal124, e o fornecimento de substâncias nocivas à saúde pública125.

4.2 Possíveis convergências e divergências

172. Conforme já apresentado anteriormente, há uma proximidade natural entre o direito da concorrência e o direito do consumidor, na medida em que, em último grau, a tutela do mercado pelo direito da concorrência visa a proteger, também, os consumidores. Em outras palavras, quando o direito da concorrência se preocupa em garantir um mercado competitivo, o que se busca é evitar que agentes econômicos, de forma artificial, manipulem o mercado gerando desequilíbrios microeconômicos que possam resultar em redução da oferta de determinado bem ou serviço e seu conseguinte aumento de preço. Logo, o beneficiário mediato da politica de defesa da concorrência também é o consumidor.

122 BENJAMIN, Antonio V. Herman, MARQUES, Claudia Lima, MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de Defesa do Consumidor. 4 ed. Ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, página 1459.123 Idem, página 1458.124 Art. 272 do Código Penal.125 Art. 278 do Código Penal.

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173. Contudo, há diferenças importantes na maneira pela qual os objetivos desses dois sistemas normativos são concretizados, e isso fica evidente quando se examina o tratamento dado a algumas infrações anticoncorrenciais pela Lei 12.529/2011 e a práticas abusivas pelo CDC. A seguir, serão descritas algumas dessas condutas previstas tanto na legislação concorrencial quanto no CDC, explorando-se possíveis divergências. Ao final, será também descrita uma aproximação entre os dois sistemas quanto à temática da desconsideração da personalidade jurídica.

(a) Venda casada

174. A prática de venda casada consiste no condicionamento do fornecimento de um produto à compra de um segundo. Normalmente essa prática é utilizada por empresas para alavancar produtos menos conhecidos por meio da conjugação de tais produtos com outros de amplo conhecimento do público.

175. Essa conduta está prevista na Lei 12.529/2011 da seguinte forma126:

XVIII - subordinar a venda de um bem à aquisição de outro ou à utilização de um serviço, ou subordinar a prestação de um serviço à utilização de outro ou à aquisição de um bem.

176. O CDC possui dispositivo semelhante127:

Art. 39 É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas:

I - condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos.

177. Apesar de os dispositivos serem parecidos, seus efeitos e objetivos são distintos. Enquanto, na relação de consumo, busca-se apenas evitar o abuso de forçar a venda de um produto não desejado, sob a ótica da lei da concorrência o dispositivo visa também a evitar que essa condicionante seja usada por

126 Art. 36, §3°, inciso XVIII, da Lei 12.529/2011.127 Artigo 39, inciso I, do CDC.

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empresas para alavancar produtos de marca própria e com isso restringir, ou mesmo fechar, o mercado do produto secundário para concorrentes.

178. Nesse sentido, distinguem-se os escopos das análises empreendidas nas searas consumerista e concorrencial para se avaliar a ocorrência dessa prática. No direito do consumidor, o simples condicionamento injustificado da aquisição de bem ou serviço à compra de bem ou serviço distinto já poderia ser suficiente para caracterização do ilícito. Diferentemente, no âmbito do direito da concorrência, faz-se necessária, também, avaliação dos efeitos anticoncorrenciais da conduta, os quais só se materializam mediante a existência de certas condições -- sendo a principal delas a existência de poder de mercado do agente que adota a prática sob análise.

179. Por outro lado, uma prática comercial pode ser considerada uma forma anticompetitiva de venda casada, mas não configurar uma violação ao direito do consumidor. Primeiramente, caso a conduta ocorra em relação comercial que não envolva o consumidor, não se aplicam as regras do CDC. Além disso, é possível entender que certas condutas que, na prática, “forçam” a aquisição conjunta de bens ou serviços não configuram um condicionamento jurídico, não caracterizando assim a infração ao CDC. Seria o caso, por exemplo, da oferta de descontos substanciais e não decorrentes de maior eficiência na compra conjunta de bens, que são também oferecidos separadamente. Nesse caso, não há condicionamento jurídico à compra conjunta, porque os produtos são vendidos separadamente. Contudo, o oferecimento de descontos elevados e não justificados pela redução de custos de transação pode ser visto como uma forma de induzir o comprador à compra conjunta, o que em alguns casos pode gerar efeitos anticoncorrenciais.

180. Em outras palavras, uma mesma prática de venda casada pode muito bem configurar um ilícito sob as normas de proteção ao consumidor e, paralelamente, não ter qualquer potencial impacto sobre a concorrência, sendo dessa maneira incabível a intervenção do CADE, e vice-versa.

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(b) Preço excessivo vs. onerosidade excessiva

181. De maneira geral, uma das possíveis consequências das condutas anticoncorrenciais é a elevação do preço acima do que seria esperado num mercado competitivo. Por exemplo, um cartel pode servir justamente para que empresas concorrentes concordem em elevar os preços. Da mesma maneira, uma empresa que possui poder de mercado pode adotar alguma prática comercial anticompetitiva para manter sua posição dominante e, dessa maneira, continuar sendo capaz de cobrar preços acima do nível competitivo.

182. Diferentemente da Lei 8.884/94 (anterior lei antitruste), a atual Lei 12.529/2011 não dispõe sobre preços excessivos. Tendo em vista o fato de que, na lei anterior, tal prática era enumerada como um dos possíveis ilícitos anticoncorrenciais, depreende-se que, atualmente, a mera prática de “preços excessivos” não mais constituiria violação ao princípio da livre concorrência.

128 Superior Tribunal de Justiça. REsp 744.602/RJ. Min. Relator: Luiz Fux. Julgamento: 01/03/2007. DJ: 22/03/2007.

Box 10

VENDA CASADA - VISÃO CONSUMERISTA128

Contexto: Vedação, por parte da empresa Cinemark, de consumo de produtos de gênero alimentício nas dependências de suas salas de cinema, exceto por aqueles vendidos pela própria empresa nesses estabelecimentos.

Conflito: Diante da prática observada, entendeu o PROCON/RJ que a empresa estava impondo aos consumidores venda casada e, em 2005, condenou-a ao pagamento de contribuição pecuniária e cessação imediata da prática. Em razão disso, foi movida ação anulatória pela Cinemark, culminando em julgamento de recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça, em março de 2007.

Resultado: Entendeu o Ministro Luiz Fux, relator do recurso, que não é permitido o condicionamento do fornecimento de um produto ou serviço à aquisição de outro produto e serviço, nos termos do art. 39, inciso I do CDC. A superioridade econômica do fornecedor, nas relações consumeristas, teria o condão de obstar o exercício pleno da liberdade de escolha pelo consumidor, conforme teria se observado no caso concreto, uma vez que não haveria razão justificada para que se impusesse tal restrição – não constituindo a aferição de menos ganhos em motivo suficiente para embasá-la, a qual integra o risco assumido quando do empreendimento da atividade comercial. Dessa forma, manteve-se a decisão da autoridade de proteção ao consumidor.

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183. Portanto, para o direito da concorrência atual, a mera cobrança de preços excessivos não é ilegal. Ela só se constitui em ilícito se o preço acima do patamar competitivo for resultado de uma outra prática comercial. Por exemplo, um cartel ou um abuso de posição dominante (e.g., um fornecedor de insumos essenciais pode colocar o preço do seu produto em patamar não razoável, configurando assim, na prática, uma recusa disfarçada de venda).

184. Por outro lado, o CDC carrega a ilegalidade da cobrança de preço excessivo em seu artigo 39, incisos V e X: “exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva” e “elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”. Portanto, diferentemente das normas concorrenciais, o direito de defesa do consumidor contém uma preocupação específica com a própria onerosidade excessiva de um produto ou serviço.

185. Novamente, mostra-se aqui uma divergência quanto aos focos de atuação dos dois sistemas normativos. Enquanto o direito da concorrência está voltado à própria manutenção do processo competitivo (sendo então o consumidor protegido reflexamente), o direito do consumidor está, no caso dessa prática, voltado à prevenção de comportamentos oportunistas pontuais de agentes econômicos, protegendo o hipossuficiente na relação específica de consumo.

129

129 CADE. Averiguação Preliminar 08012.003648/1998-05. Cons. Relator: Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo. Julgamento: 18/08/2010. DOU: 20/08/2010.

Box 11

PREÇO EXCESSIVO - VISÃO CONCORRENCIAL129

Contexto: Alegado aumento de preços cobrados pela White Martins para o metro cúbico de gás liquefeito, bem como adoção de taxa de cobrança para frete do gás e aluguel dos cilindros no estado de Minas Gerais;

Conflito: Diante do aumento do preço e cobrança inédita dos serviços anteriormente prestados pela White Martins, a Figueroa Campos Indústria e Comércio Ltda. encaminhou representação à então Secretaria de Direito Econômico. Esta foi, por sua vez, encaminhada ao DPDC, onde se constatou que a apuração do ocorrido não seria de sua competência. Em 2000, o DPDE instaurou averiguação preliminar, a fim de investigar se o fato em questão constituiria ilícito concorrencial.

Contenda: No seu voto, o Conselheiro Carlos Ragazzo entendeu que, não obstante as hipóteses previstas no parágrafo único do art. 21, da Lei 8.884/94, a caracterização de um preço como excessivo encontra óbices diante da impossibilidade de se determinar parâmetros acerca do que constituiria o suposto excesso. Dessa forma, um preço só poderia ser considerado excessivo caso sua determinação seja resultante de outras práticas anticoncorrenciais, tais como condutas horizontais uniformes ou abusos de posição dominante. Ou seja, um

preço elevado, por si só, não configuraria violação às normas concorrenciais.

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(c) Preço predatório

186. Do ponto de vista concorrencial, o preço predatório consiste na realização de vendas a preços abaixo dos concorrentes e presumidamente abaixo do próprio custo de produção, visando assim à exclusão dos demais concorrentes do mercado.

187. Há, contudo, diversos questionamentos sobre a verificação prática dessa conduta. Seu uso somente faz sentido se o mercado em questão permitir ao praticante do preço predatório recuperar os “investimentos” realizados no momento da predação com a possibilidade de extração de lucros de monopólio após a saída dos concorrentes do mercado. A dificuldade é que, ao aumentar o preço posteriormente para compensar os prejuízos, a empresa atrairá novos agentes econômicos para o mercado, dificultando, ou mesmo impossibilitando, a recuperação do prejuízo havido no momento anterior.

188. O art. 36, §3°, inciso XV, da 12.529/2011 dispõe sobre o tema: “vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo”. Contudo, justamente por conta da improbabilidade prática de sua verificação, as autoridades concorrenciais normalmente estabelecem requisitos estritos para uma condenação por preço predatório130.

189. Já a lei consumerista não versa sobre o assunto, até porque, no curto prazo, um preço mais baixo é de interesse do consumidor. Ainda assim, há precedente de intervenção do PROCON para questionar revendedora de combustível na prática de preço predatório.

130 Para mais informações, vide voto-vista da Conselheira Ana Frazão : Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Processo Administrativo nº 08012.007189/2008-08. Conselheiro Relator: Ricardo Machado Ruiz. Decisão em: 01/10/2014. DOU: 09/10/2014.

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131190. Resta saber, contudo, por que a prática de preço predatório poderia chamar o interesse de órgãos de defesa do consumidor. A prática de preços reduzidos é favorável ao consumidor. A ausência de precedentes em que uma conduta com objetivos anticompetitivos de redução de preço para posterior domínio do mercado (e aumento de preços) tenha sido de fato identificada indica que, na prática, esquemas de preços predatórios são, no mínimo, muito raros. Bem mais comuns são reclamações feitas por agentes econômicos que pretendem impedir uma concorrência saudável de preços muitas vezes feitas por agentes mais eficientes (que, assim, podem oferecer preços menores aos consumidores). Devem os órgãos de defesa do consumidor se colocar ao lado das práticas que geram bem-estar ao consumidor, e não o contrário.

131 Superior Tribunal de Justiça. REsp 938.607/SP. Min. Relator: Francisco Falcão. Julgamento: 04/09/2007. eDJ: 08/10/2007.

Box 12

PREÇO PREDATÓRIO - VISÃO CONSUMERISTA131

Contexto: Adoção de preço abaixo do custo por posto de gasolina de propriedade da Esso Brasileira de Petróleo Ltda., localizado na cidade de Campinas.

Conflito: Em decorrência da conduta, foi instaurado processo administrativo pela entidade de defesa do consumidor municipal, que culminou na condenação da empresa ao pagamento de contribuição pecuniária. A empresa impetrou mandado de segurança, alegando não ser a conduta observada passível de sanção de natureza consumerista. A causa chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi debatido se o fato de a conduta em questão constituir ilícito anticoncorrencial obstaria a sua repressão na esfera consumerista.

Resultado: No entendimento do Ministro Francisco Falcão, relator do recurso, a adoção de preços predatórios, conquanto prática punível na esfera concorrencial, seria passível de repressão igualmente na seara consumerista, pois o artigo 7º do CDC estabelece que os direitos elencados em seu texto não excluem outros provenientes de fontes diversas – inclusive aqueles constantes de legislação interna ordinária. Ademais, integraria o escopo da tutela promovida pelo Direito do Consumidor a coibição e repressão de práticas abusivas cometidas no mercado de consumo, dentre as quais a concorrência desleal, nos termos do art. 4º do referido código, bem como, em seu art. 6º, assegura-se a proteção ao consumidor contra métodos comerciais desleais e práticas abusivas na comercialização de bens ou serviços. Dessa forma, prosperou o entendimento de que o PROCON municipal teria legitimidade para punir práticas dessa natureza.

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132(d) Recusa de fornecimento

191. Sob a legislação concorrencial, uma empresa pode prejudicar a concorrência ao se recusar a fornecer um produto ou serviço a um concorrente. Por exemplo, caso um mesmo grupo econômico produza uma matéria-prima e fabrique outro produto que utiliza essa matéria-132 CADE. Averiguação Preliminar 08001.006298/2004-03. Cons. Relator: Ricardo Villas Boas Cuêva. Julgamento: 01/02/2006. DOU: 24/02/2006.

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PREÇO PREDATÓRIO - VISÃO CONSUMERISTA132

Em fevereiro de 2006, o CADE julgou uma averiguação preliminar instaurada para investigar suposta conduta de preços predatórios praticada pela Gol. A investigação versou sobre promoção realizada pela empresa, consistente na venda de passagens ao preço de R$ 50 para determinados trechos.

Em julho de 2004, o Ministério da Defesa enviou representação às autoridades concorrenciais contra essa promoção da Gol. Essa representação seguiu uma nota técnica elaborado pelo Departamento de Aviação Civil, segundo o qual a prática da Gol constituiria prática de preço predatório, tendo em vista que as tarifas estariam abaixo dos custos da empresa.

A SEAE analisou o caso e emitiu parecer sugerindo o arquivamento da averiguação, tendo em vista não ter sido configurada a prática de preços predatório punível sob as normas de defesa da concorrência. Em síntese, entendeu que preços promocionais são comuns e normalmente benéficos ao consumidor. E, mesmo que estejam abaixo do custo de produção, somente haveria ilícito na ausência de justificativa e caso haja real potencial de dano à concorrência. Em outras palavras, preços promocionais devem ser presumidos lícitos:

“Deve-se observar que preços promocionais, em geral, estão atrelados a um período de tempo relativamente curto, motivados por aspectos pontuais e com um objetivo específico de equilibrar novamente as quantidades ofertadas e demandadas, de forma que os recursos sejam alocados da forma mais eficiente possível”.

Quanto à situação específica, a SEAE frisou aspectos tais como o aspecto eminentemente promocional da campanha, o curto período de tempo em que a promoção estaria em vigor, sua racionalidade como forma de ocupar assentos remanescentes nas aeronaves por um baixo custo adicional por passageiro, a ausência de poder de mercado por parte da Gol, e inviabilidade de uma eventual estratégia de recuperação de “lucros perdidos” por meio da hipotética exclusão de seus rivais no mercado. Os conselheiros do CADE concordaram com a análise da SEAE e determinaram o arquivamento da investigação.

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prima, esse grupo pode ter o interesse de restringir o acesso de seus concorrentes àquela matéria-prima essencial.

192. Nesse sentido, o art. 36, §3°, da Lei 12.529/2011 prevê como possível conduta ilícita “recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, dentro das condições de pagamento normais aos usos e costumes comerciais”. Contudo, conforme já explicado anteriormente, as condutas unilaterais de abuso de posição dominante previstas no art. 36 da Lei 12.529/2011 só constituem ilícito se verificado um potencial ou concreto efeito anticompetitivo no mercado, conforme indicado no caput do mesmo dispositivo.

193. Além disso, tendo em vista a liberdade de contratação protegida constitucionalmente, as autoridades concorrenciais normalmente estabelecem requisitos estritos para a verificação do ilícito de recusa de fornecimento. Por exemplo, não caberia punir uma empresa se ela possui justificativas objetivas para a recusa de contratar.

194. Na seara consumerista, o CDC também não permite a recusa injustificada de venda, conforme dispõe o artigo 39, incisos II e IX do CDC:

II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;

IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais.

195. Percebe-se que, no contexto das normas de proteção ao consumidor, a preocupação em coibir a recusa de fornecimento está em evitar uma limitação artificial às opções de consumo. Novamente, é possível a existência do ilícito consumerista mesmo em situações que não acarretariam a aplicação das normas concorrenciais, por inexistir um efeito negativo sobre as relações de concorrência no mercado. O oposto pode ocorrer também, quando a prática de recusa gere efeitos concorrenciais (como na comercialização de insumos e matérias primas), mas não envolva relação de consumo.

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133(e) Desconsideração da personalidade jurídica

196. Tanto a Lei 12.529/2011 quanto o CDC preveem a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em caso de abuso ou infração. Nos termos do art. 34 da Lei 12.529/2011, a personalidade jurídica do agente infrator poderá ser desconsiderada quando houver abuso do direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. Tal desconsideração também poderá ocorrer em caso de falência, insolvência, ou mesmo encerramento das atividades sociais por má gestão.

133 CADE. Averiguação Preliminar 08012.00416/2005-13. Cons. Relator: Ricardo Ruiz. Julgamento: 18/07/2012. DOU: 25/07/2012.

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RECUSA DE FORNECIMENTO - VISÃO CONCORRENCIAL133

Contexto: A Sumitomo Corporation foi acusada de se recusar a vender princípios ativos necessários para fabricação de inseticidas a certos fabricantes de marca própria (e.g. Carrefour).

Conflito: Em razão da negativa da Sumitomo de comercialização dos seus produtos, a SEAE encaminhou representação à Secretaria de Direito Econômico, que por sua vez instaurou Averiguação Preliminar para averiguar a suposta ocorrência de ilícito anticoncorrencial.

Resultado: Em seu voto, o Conselheiro Ricardo Ruiz seguiu entendimento já consolidado no Tribunal do CADE de que a caracterização dos fatos sob investigação como recusa de fornecimento, voltada a propósitos anticompetitivos, sujeita-se à observância dos seguintes requisitos:

(i) existência de poder de mercado por parte da Sumitomo – que não seria o caso, tendo em vista que a entrada de novos agentes nos mercados de produção de princípios ativos seria livre e não implicaria altos custos irrecuperáveis, bem como não atuava a Sumitomo no mercado alvo (produção de inseticidas);

(ii) possibilidade de causar danos à concorrência nos mercados relevantes analisados – que seria inexistente, tendo em vista que a Sumitomo não concorria no mercado alvo (produção de inseticidas), bem como a recusa, por si só, não teria o condão de impedir a atuação dos players no referido mercado;

(iii) existência de justificativas objetivas para a recusa de contratar -- no caso, a justificativa adotada pela Sumitomo para fundamentar a negativa de comercialização (suposta ausência de rigor no processo produtivo, em razão dos preços baixos pelos quais os produtos finais eram comercializados) não foi considerada suficiente. Entretanto, estando os outros pressupostos ausentes, não

seria possível a caracterização da conduta como anticompetitiva.

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197. É importante destacar que, se não houvesse a previsão do art. 34, ainda assim seria possível atingir o patrimônio dos sócios, com a utilização dos arts. 32 e 33, que dispõem conforme segue:

Art. 32. As diversas formas de infração da ordem econômica implicam a responsabilidade da empresa e a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores, solidariamente.

Art. 33. Serão solidariamente responsáveis as empresas ou entidades integrantes de grupo econômico, de fato ou de direito, quando pelo menos uma delas praticar infração à ordem econômica.

198. A previsão de responsabilidade solidária do art. 32 implica automática assunção por parte do sócio do pagamento de eventuais encargos impostos pelo CADE, ainda que a personalidade jurídica não seja desconsiderada. Logo, a previsão do art. 34 tornou-se redundante.

199. O CDC assegura, de forma análoga ao art. 34 da Lei 12.529/2011, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica para casos em que haja flagrante violação das leis e estatutos sociais, por meio do art. 28:

Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

§ 1° (Vetado).

§ 2° As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 3° As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste código.

§ 4° As sociedades coligadas só responderão por culpa.

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§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

4.3 Advocacia da concorrência e campanhas de conscientização

200. A Lei 12.529/2011 atribuiu à SEAE a importante missão de zelar pela promoção da concorrência no Brasil. Dito de outro modo, à SEAE cabe empreender ações para divulgar e fomentar a cultura da concorrência entre os órgãos públicos e para a sociedade como um todo.

201. A SEAE deve exercer essa missão por meio – especialmente, mas não exclusivamente – da apresentação de pareceres no que tange à promoção da concorrência nos seguintes contextos134:

202. A SEAE também deve elaborar estudos que embasem a elaboração de políticas públicas, que fundamentem a análise de processos em trâmite no CADE, na Câmara de Comércio Exterior (“CAMEX”) ou na própria SENACON, bem como atuar de forma mais direta, propondo revisão de diplomas legais ou encaminhando representação sobre o caráter anticompetitivo de atos normativos135:

134 Art. 19 da Lei 12.529/2011.135 É importante destacar que a SEAE também tem competência para encaminhar representação diretamente à Superintendência-Geral do CADE caso tenha conhecimento e indícios de práticas que podem configurar infração à ordem econômica.

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ATUAÇÃO DA SEAE POR MEIO DA APRESENTAÇÃO DE PARECERES SOBRE ASPECTOS CONCORRENCIAIS

• Propostas de alterações de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, de consumidores ou usuários dos serviços prestados submetidos a consulta pública pelas agências reguladoras.

• Pedidos de revisão de tarifas e as minutas.

• Minutas de atos normativos elaborados por qualquer entidade pública ou privada submetidos à consulta pública.

• Proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional.

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203. Como exemplo do desempenho dessas atividades, apenas em 2012, a SEAE emitiu 248 manifestações acerca de aspectos concorrenciais de regras regulatórias136. Exemplos dessas manifestações foram: (i) a emissão de parecer sobre restrições impostas por Edital da Agência Nacional de Energia Elétrica para participação no Leilão 07/2012; (ii) análise sobre proposta da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) de resolução fixando critérios e procedimentos para a alocação de áreas em aeroportos; (iii) colaboração à Audiência Pública 2/2012 da Agência Nacional de Transportes Aquaviários, sobre proposta de norma que estabelece procedimentos para a elaboração de projetos de arrendamentos e para a revisão do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de arrendamento de áreas e instalações nos portos organizados.

204. Em 2012, a SEAE também elaborou estudos setoriais tais como: (i) análise das diversas normas que envolvem a fixação de preços máximos para o serviço prestado pelos Centros de Formação de Condutores (CFCs); (ii) prestação de serviços funerários do Município de Nova Iguaçu (RJ), com recomendação de que fosse permitida a entrada para novos agentes no mercado; (iii) barreiras em normas técnicas, manifestando preocupações com impactos sobre a concorrência das normas em debate nos comitês 136 Relatório de Atividades 2012. Disponível em http://seae.fazenda.gov.br/central-de-documentos/relatorio-de-atividades. Acesso em 05/06/2014.

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COMPETÊNCIAS ADICIONAIS DA SEAE EM SEDE DE ADVOCACIA DA CONCORRÊNCIA

• Preparação de estudos avaliando a situação concorrencial de setores específicos da atividade econômica, de ofício ou quando solicitada pelo CADE, pela CAMEX ou pela SENACON.

• Elaboração de estudos setoriais para fundamentar a participação do Ministério da Fazenda na formulação de políticas públicas setoriais nos fóruns em que este Ministério tem assento.

• Propor revisão de leis, regulamentos e outros atos normativos da administração pública federal, estadual, municipal e do Distrito Federal que afetem ou possam afetar a concorrência nos diversos setores econômicos do País.

• Manifestar-se, de ofício ou quando solicitada, a respeito do impacto concorrencial de medidas em discussão no âmbito de fóruns negociadores relativos às atividades de alteração tarifária, ao acesso a mercados e à defesa comercial.

• Encaminhar ao órgão competente representação para que este, a seu critério, adote as medidas legais cabíveis, sempre que for identificado ato normativo que tenha caráter anticompetitivo.

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da ABNT, e; (iv) a pedido do Ministério Público Federal, analisou os preços dos carros no Brasil, considerando efeitos da Lei Ferrari137 sobre a dinâmica de concorrência da indústria.

205. Enquanto o público-alvo das iniciativas de advocacia e promoção da concorrência de competência da SEAE são principalmente as agências reguladoras e pessoas jurídicas de direito público, as campanhas de promoção do sistema de defesa do consumidor são normalmente destinadas à conscientização dos próprios consumidores individuais. Nos termos do art. 106 do CDC, analisado à luz das alterações trazidas pelo Decreto 2.181/97 e pelo Decreto 7.738/2012, compete à SENACON: (i) prestar aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias e (ii) informar, conscientizar e motivar o consumidor, por intermédio dos diferentes meios de comunicação. Nas esferas estadual e municipal, por força do art. 4º do Decreto 2.181/97, compete aos PROCON(s) o exercício dessas atividades de conscientização e promoção da defesa do consumidor.

206. A SENACON, por meio do DPDC, pode estabelecer parcerias com agências reguladoras em áreas conexas para realizar campanhas de conscientização e educação, tendo por público-alvo os consumidores brasileiros. Como exemplos disso, há o Boletim Consumo e Saúde, resultante de trabalho integrado entre o DPDC e a Ouvidoria da ANVISA,138 bem como acordos de parceria celebrados com entidades integrantes do SBDC139 .

137 BRASIL. Lei Ferrari. Lei 6.729 de 28/11/1979. Brasília, Diário Oficial da União, 1979.138 Boletim Consumo e Saúde, Edição n. 30, de 22 de abril de 2013. Disponível em http://portal.mj.gov.br.139 BRASIL. Portaria que estabelece mecanismos de atuação integrada entre a Secretaria de Direito Econômico, por meio do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica para a criação do Cadastro Nacional de Infrações à Ordem Econômica - CADE. Portaria Conjunta/MJ 58 de 2/12/2009. Brasília, Diário Oficial da União, 2009.

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140140 “Cade e Senacon definem agenda de cooperação”. Disponível em http://www.cade.gov.br/Default.aspx?b5889662b369bf43d765f6401537. Acesso em 05 de junho de 2014.

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AGENDA DE COOPERAÇÃO - CADE E SENACON140

14/05/2014. O presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade, Vinicius Marques de Carvalho, assinou nesta quarta-feira (14) nota técnica conjunta da autarquia e da Secretaria Nacional do Consumidor – Senacon do Ministério da Justiça. O documento propõe uma agenda de atuação comum entre os dois órgãos, com o intuito de fortalecer a integração entre as políticas de defesa da concorrência e do consumidor.

Também nessa quarta-feira (14) a nota técnica foi apresentada na 8ª reunião da Senacon com o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – SNDC, realizada em Gramado (RS). O SNDC congrega Procons estaduais e municipais, Ministério Público, Defensoria Pública e entidades civis de defesa do consumidor.

Entre as medidas previstas na agenda de cooperação está a troca de informações entre Cade e Senacon. Com isso, o Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor, que há mais de dez anos consolida, em âmbito nacional, informações sobre atendimentos aos consumidores realizados nos Procons integrados, poderá servir como ferramenta de monitoramento de eventuais restrições e compromissos impostos no julgamento de atos de concentração ou de condutas anticompetitivas.

Da mesma maneira, as informações que o Cade dispõe sobre o funcionamento de determinados mercados poderão ser utilizadas na formulação das políticas de defesa do consumidor. Assim, documentos como o caderno setorial sobre varejo de gasolina, lançado em março pela autarquia, e o segundo estudo setorial já em andamento, que trata de saúde suplementar, poderão orientar ações de proteção e defesa do consumidor.

A nota técnica do Cade e da Senacon destaca a importância de se coordenar as políticas de defesa da concorrência e do consumidor, uma vez que ambas buscam o bem estar dos consumidores, ainda que com atribuições e instrumentos distintos.

De um lado, a política de defesa da concorrência atua sobre aspectos da oferta de produtos e serviços e do relacionamento competitivo entre fornecedores, com o objetivo de proporcionar aos consumidores ampla possibilidade de escolha, com preços mais baixos e melhor qualidade. A defesa do consumidor, por sua vez, atua pelo lado da demanda, de modo a garantir que os consumidores sejam capazes de exercer de forma consciente e eficaz seu poder de escolha possibilitado pela competição entre fornecedores.

“Em razão dos diferentes focos em que se baseiam a política de defesa da concorrência e a política de proteção ao consumidor, é importante que a implementação de ambas as políticas se dê de forma alinhada”, assinala a nota técnica.

A agenda de cooperação entre Cade e Senacon prevê também a realização conjunta de estudos setoriais e o compartilhamento de plataformas de ensino e de divulgação. A Escola Nacional de Defesa do Consumidor, que capacita agentes e entidades que atuam na defesa do consumidor, como Procons, passará a incluir em seus cursos conteúdos e informações referentes à regulação antitruste.

Fonte: CADE

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207. De modo semelhante, nas esferas estadual e municipal os PROCON(s) promovem campanhas de conscientização cobrindo diversos eixos de atuação, tais como organização de palestras gratuitas para consumidores em geral e para conscientização de fornecedores; atividades voltadas à educação para o consumo, destinadas ao público infantil e de terceira idade; realização de pesquisas e levantamentos sobre as relações de consumo; publicação de cartilhas, boletins e informativos voltados a temas atuais sobre relações de consumo, entre outras iniciativas. Exemplo das cartilhas publicadas pelo PROCON/DF e PROCON/SP seguem abaixo:

Figura 1: Capa do Informativo sobre Recall Lançado pelo PROCON/SP141

141 Disponível em http://www.procon.sp.gov.br/pdf/acs_recall.pdf. Acesso em 5 de junho de 2014.

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Figura 2: Manual do Consumidor Consciente Lançado pelo PROCON/DF142

208. Finalmente, também no intuito de promoção de políticas públicas a favor dos consumidores, recentemente foi publicada a Portaria 1.184/2014143, que criou o Portal do Consumidor (www.consumidor.gov.br). O site funcionará como um canal direto entre consumidores e as empresas conveniadas, por meio do qual conflitos poderão ser solucionados diretamente. A proposta é que a ferramenta, além de fortalecer os consumidores na busca pelas garantias que lhes são conferidas, também proporcione aos órgãos de defesa do consumidor a ampliação da análise e monitoramento do mercado de consumo, o aprimoramento dos fluxos e processos de atendimento pelos fornecedores participantes e um incremento à competitividade no mercado pela qualidade do atendimento ao consumidor144.

142 Disponível em http://www.procon.df.gov.br. Acesso em 5 de junho de 2014.143 BRASIL. Portaria/MJ 1.184 de 02/07/2014. Brasília, Diário Oficial da União, 2014.144 Novo serviço público permite ao consumidor reclamar pela internet. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/novo-servico-publico-permite-ao-consumidor-reclamar-pela-internet. Acesso em: 30/06/2014.