Direito Humano à Alimentação Adequada

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Direito Humano Alimentao Adequada no Contexto da Segurana Alimentar e Nutricional

Valria Burity | Thas Franceschini | Flavio Valente Elisabetta Recine | Marlia Leo | Maria de Ftima Carvalho

Braslia 2010

Direito Humano Alimentao Adequada no Contexto da Segurana Alimentar e Nutricional ABRANDH, 2010.

Autores responsveis pela elaborao dos textos desta publicao Mdulos I, II, III, IV, V, VI e VIII Valria Burity Thas Franceschini Flavio Valente Mdulo VII Elisabetta Recine Marlia Leo Maria de Ftima Carvalho Reviso Marlia Leo Elisabetta Recine Valria Burity Thas Franceschini Ivnio Barros Design grfico Marilda Donatelli Realizao Ao Brasileira pela Nutrio e Direitos Humanos (ABRANDH) Observatrio de Polticas de Segurana Alimentar e Nutrio (OPSAN) da Universidade de Braslia (UnB) Apoio Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS)

Direito humano alimentao adequada no contexto da segurana alimentar e nutricional / Valria Burity ... [et al.]. - Braslia, DF: ABRANDH, 2010. 204p. Outros autores: Thas Franceschini, Flvio Valente, Elisabetta Recine, Marlia Leo, Maria de Ftima Carvalho. 1. Poltica alimentar Brasil. 2. Segurana alimentar - Brasil. 3. Direitos humanos Brasil. 4. Alimentos Aspectos sociais - Brasil. 5. Brasil Fome - Poltica governamental. 6. Nutrio Brasil. I. Burity, Valria. II. Ao Brasileira pela Nutrio e Direitos Humanos. CDU 612.391(81)Ficha catalogrfica elaborada pelo bibliotecrio Carlos Jos Quinteiro, CRB-8 n 5538

Os direitos de uso deste material pertencem ABRANDH. permitida sua reproduo integral ou parcial, desde que citada a fonte; preservado o contedo e no tenha fins lucrativos.

Sumrio

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Introduo MDulo I Segurana Alimentar e Nutricional (SAN) e o Direito Humano Alimentao Adequada (DHAA) MDulo II Direitos, obrigaes e as violaes ao DHAA MDulo III Exigibilidade MDulo IV Instituies e instrumentos de defesa e exigibilidade dos direitos humanos MDulo V Apoderando-se dos instrumentos de exigibilidade MDulo VI Construindo competncias para a realizao efetiva do DHAA MDulo VII A promoo da alimentao saudvel e adequada e a realizao do DHAA MDulo VIII Colocando em prtica Glossrio

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Introduo... O acesso alimentao um direito humano em si mesmo, na medida em que a alimentao constitui-se no prprio direito vida. Negar este direito antes de mais nada, negar a primeira condio para a cidadania, que a prpria vida. (1) Esta publicao fruto da experincia terica e prtica acumulada pela Ao Brasileira pela Nutrio e Direitos Humanos (ABRANDH) em suas diferentes linhas de ao. Parte do contedo apresentado foi utilizado como material de estudo de duas edies de um curso on line sobre Segurana Alimentar e Nutricional e o Direito Humano Alimentao Adequada, promovido pelo Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS), que agora colocamos disposio do pblico nesta publicao. O oferecimento deste curso contribuiu decisivamente para um maior entendimento sobre o Direito Humano Alimentao Adequada (DHAA), seus princpios, dimenses e estratgias para promover sua realizao. Com a publicao deste contedo temos o objetivo de colaborar para um processo de imerso nos conceitos e dimenses dos direitos humanos e do DHAA, com uma viso problematizadora do tema que facilite a construo de propostas de ao efetiva para a realizao do DHAA. Destinado a pessoas comprometidas com uma sociedade justa e equnime, representantes de entidades e organizaes da sociedade civil, movimentos sociais, agentes do poder pblico, membros dos Conselhos Estaduais, Municipais e Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (CONSEAs), dos Conselhos de Direitos Humanos, Conselhos de Controle Social de Polticas Pblicas Setoriais e outros conselhos estaduais, municipais e nacionais, procuradores e promotores do Ministrio Pblico, entre outros sujeitos relevantes, esta publicao remete-se necessidade de capacitar novos e novas protagonistas, em diferentes esferas de atuao, para a proteo e promoo da realizao do Direito Humano Alimentao Adequada (DHAA), no contexto da Segurana Alimentar e Nutricional (SAN). A excluso social da maioria da populao e o controle dos meios de comunicao por uma minoria geram no apenas concentrao de bens materiais, mas tambm concentrao de bens culturais, tais como a informao. O caminho para avanar na garantia da Segurana Alimentar e Nutricional e Soberania Alimentar e superar a realidade sistemtica de violaes ao Direito Humano Alimentao Adequada est na capacidade tanto da sociedade civil, como dos titulares de direitos em apoderarem-se da informao e dos instrumentos existentes para exigir a realizao dos direitos humanos. O fortalecimento das competncias das instituies governamentais e seus agentes pblicos, dos membros de conselhos de polticas pblicas e direitos humanos e de outros sujeitos tem igual importncia para o desenvolvimento de aes necessrias ao cumprimento de suas obrigaes e responsabilidades, visando ao respeito, proteo, promoo e ao provimento do DHAA. Pensar em direitos humanos em pleno sculo XXI, quando a violao da dignidade da pessoa humana ainda flagrante, significa refletir sobre os aspectos ticos, socioeconmicos, culturais, normativos e de relao com o poder, que se apresentam em nosso cotidiano. Estes elementos

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convidam-nos a pensar sobre o papel de cada um enquanto agentes pblicos ou representantes de diferentes esferas do poder pblico, representantes de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil e tambm na condio de cidados.

Em um pas marcado por grandes contrastes e por uma desmedida desigualdade social, de gnero e tnico-racial, para que todos e todas tenham condies de colaborar para o processo de transformao dessa realidade, necessrio apropriar-se da linguagem e da abordagem dos direitos humanos. Esta abordagem imprescindvel na busca por caminhos efetivos para a garantia da dignidade humana.

Breve contextualizao A promoo da realizao do Direito Humano Alimentao Adequada est prevista em diversos tratados e documentos internacionais e em vrios instrumentos legais vigentes no Estado brasileiro tendo sido tambm incorporada em vrios dispositivos e princpios da Constituio Federal, de 1988. A existncia deste marco legal estabelece a promoo da realizao do DHAA como uma obrigao do Estado brasileiro e como responsabilidade de todos ns. Apesar da pobreza, da fome e das demais violaes ao Direito Humano Alimentao Adequada continuarem a representar um enorme desafio a ser transposto pela sociedade brasileira, o tema da alimentao e nutrio vem sendo objeto de uma intensa reflexo por parte da sociedade civil e do governo brasileiro, ao longo de vrias dcadas. Destaca-se a contribuio de Josu de Castro1 para o debate e a ativa participao do Brasil na Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao - FAO2, desde sua criao em 1945. Atualmente a FAO tem 189 pases membros, mais a Comunidade Europia, comprometidos a libertar a humanidade da fome. A renovada preocupao do governo brasileiro com a questo alimentar e nutricional est explicitada na priorizao de eliminar a fome e a desnutrio e na recriao, em 2003, do Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (CONSEA)3. Este Conselho articula o debate entre o governo e a sociedade civil, e tem como principal atribuio assessorar o Presidente da

1. Mdico, professor, gegrafo, socilogo e poltico, Josu de Castro fez da luta contra a fome a sua bandeira. Nascido em 1908, em Pernambuco, Josu de Castro foi autor de inmeras obras, apresentando idias revolucionrias para a poca, como os primeiros conceitos sobre o desenvolvimento sustentvel. Josu de Castro foi um homem que estudou a fundo as causas da misria em nosso pas e no mundo e afirmava que ambas eram frutos de uma sociedade injusta. Suas idias o levaram a ser reverenciado em todo o mundo, com livros traduzidos em mais de 25 idiomas e duas indicaes para o Prmio Nobel da Paz. http://www.projetomemoria.art. br/JosuedeCastro/_index.html. Sua obra mais conhecida a Geografia da Fome. Em comemorao ao centenrio de seu nascimento em setembro de 2008, vrios eventos foram realizados por entidades da sociedade civil, rgos pblicos, escolas, Conselhos de Segurana Alimentar e Nutricional. Estes eventos incluram a exibio de filmes, palestras, debates, sesses solenes, exposies, plenrias, publicaes. Para mais informaes sobre o centenrio de nascimento de Josu de Castro, ver site: https://www.planalto.gov.br/Consea/static/eventos/josue_de_castro/josue_de_castro.html 2. A Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao, fundada em 1945 (...) trabalha no combate fome e pobreza, promove o desenvolvimento agrcola, a melhoria da nutrio, a busca da segurana alimentar e o acesso de todas as pessoas, em todos os momentos, aos alimentos necessrios para uma vida ativa e saudvel. Refora a agricultura e o desenvolvimento sustentvel como estratgia a longo prazo para aumentar a produo e a segurana alimentar, ao mesmo tempo que preserva e ordena os recursos naturais. A finalidade da FAO atender as necessidades das geraes presentes e futuras, promovendo um desenvolvimento tecnicamente apropriado, economicamente vivel e socialmente aceitvel que no degrade o meio ambiente. Disponvel em: https://www.fao.org.br/ 3. Instalado no dia 30 de janeiro de 2003, o Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (CONSEA) um instrumento de articulao entre governo e sociedade civil na proposio de diretrizes para as aes na rea da alimentao e nutrio. Na gesto 2007/2009, o CONSEA formado por 57 conselheiros, sendo 38 representantes da sociedade civil e 19 ministros de Estado e representantes do Governo Federal, alm de 23 observadores convidados. Para mais informaes sobre o CONSEA, ver site: https://www.planalto.gov.br/consea/exec/index.cfm

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Repblica na formulao de polticas de Segurana Alimentar e Nutricional e na definio de orientaes para que o pas garanta o Direito Humano Alimentao Adequada para todos. Alm disso, merece destaque a Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional (2) aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da Repblica, no dia 15 de setembro de 2006. Esta lei institui o Sistema Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional - SISAN com vistas a assegurar o Direito Humano Alimentao Adequada. O SISAN tem por objetivo formular e implementar polticas e planos de Segurana Alimentar e Nutricional, estimular a integrao dos esforos entre governo e sociedade civil, bem como promover o acompanhamento, o monitoramento e a avaliao da Segurana Alimentar e Nutricional no pas. E, para que o processo de instituio do SISAN e de elaborao dos Sistemas Estaduais de SAN, bem como de elaborao das Polticas e dos Planos Nacional e Estaduais de SAN considerem de fato a perspectiva do DHAA, torna-se essencial a internalizao e disseminao de conhecimentos sobre o conceito, os princpios e as dimenses deste direito humano fundamental.

PRoPoStA De Reflexo Elabore um texto sobre como voc conceitua o Direito Humano Alimentao Adequada e a Segurana Alimentar e Nutricional. (Mantenha essa resposta com voc para que, ao final da leitura desta publicao voc possa elaborar novos conceitos e compar-los a este inicial).

Introduo referncias bibliogrficas

(1) Relatrio Brasileiro para a Cpula Mundial da Alimentao, Roma, novembro 1996. In Valente, F.L.S, Direito Humano Alimentao: desafios e conquistas. Cortez Editora, So Paulo, 2002. p. 137. (2) Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional - Lei 11.346 de 15 de setembro de 2006. Disponvel em: http://www.abrandh.org.br/downloads/losanfinal15092006.pdf

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Alimentar e Segurana l (SAN) e o Nutriciona to Humano Direi o Adequada Alimenta (DHAA)

MDulo I9

ndice MDulo I

aula 1

Evoluo histrica do conceito de Segurana Alimentar e Nutricional o conceito de DHAA

aula 2 aula 3 aula 4

Definio de DHAA e alguns conceitos relacionados Algumas consideraes importantes Princpios SAN e DHAA: a interligao entre estes conceitos

aula 5 aula 6 aula 7 aula 8 aula 9

SAN, DHAA, Soberania Alimentar e a interligao entre estes conceitos O que o conceito de DHAA traz de novo para a abordagem de SAN? Insegurana Alimentar e Nutricional x DHAA Por que a realizao do DHAA deve ser uma preocupao? Resumo

Ao final deste mdulo voc ser capaz de: 3 Definir e compreender o conceito de Segurana Alimentar e Nutricional (SAN). 3 Definir e compreender o conceito de Direito Humano Alimentao Adequada (DHAA). 3 Compreender a ligao existente entre os dois conceitos. 3 Descrever os princpios e dimenses do DHAA. 3 Reconhecer a importncia do DHAA para o trabalho na rea de SAN, para estratgias de desenvolvimento social e reduo da pobreza. 3 Identificar as razes pelas quais a abordagem do DHAA importante para seu trabalho na rea de SAN.

Este Mdulo utiliza parte do contedo do curso de formao a distncia Introduo ao Direito Humano Alimentao Adequada elaborado pela Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO).

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MDulo I

aula 1

evoluo histrica do conceito de Segurana Alimentar e Nutricional (SAN) em mbito internacional e no Brasil (1)O conceito de SAN, Segurana Alimentar e Nutricional, um conceito em construo. A questo alimentar est relacionada com os mais diferentes tipos de interesses e essa concepo, na realidade, ainda palco de grandes disputas. Alm disso, o conceito evolui na medida em que avana a histria da humanidade e alteram-se a organizao social e as relaes de poder em uma sociedade. Durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) o termo segurana alimentar passou a ser utilizado na Europa. Nessa poca, o seu conceito tinha estreita ligao com o conceito de segurana nacional e com a capacidade de cada pas produzir sua prpria alimentao, de forma a no ficar vulnervel a possveis embargos, cercos ou boicotes devido a razes polticas ou militares. Esse conceito, no entanto, ganha fora a partir da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e, em especial, a partir da constituio da Organizao das Naes Unidas (ONU), em 1945. No seio das recm-criadas organizaes intergovernamentais j se podia observar a tenso poltica entre os organismos que entendiam o acesso ao alimento de qualidade como um direito humano (FAO e outros), e alguns que entendiam que a segurana alimentar seria garantida por mecanismos de mercado (Instituies de Bretton Woods, tais como o Fundo Monetrio Internacional - FMI e o Banco Mundial, dentre outros). Essa tenso era um reflexo da disputa poltica entre os principais blocos em busca da hegemonia(2). Aps a Segunda Guerra, a segurana alimentar foi hegemonicamente tratada como uma questo de insuficiente disponibilidade de alimentos. Em resposta, foram institudas iniciativas de promoo de assistncia alimentar, que eram feitas em especial, a partir dos excedentes de produo dos pases ricos. Havia o entendimento que a insegurana alimentar decorria da produo insuficiente de alimentos nos pases pobres. Neste contexto foi lanada uma experincia para aumentar a produtividade de alguns alimentos, associado ao uso de novas variedades genticas, fortemente dependentes de insumos qumicos, chamada de Revoluo Verde. A ndia foi o palco das primeiras experincias, com um enorme aumento da produo de alimentos, sem nenhum impacto real sobre a reduo da fome no pas. Mais tarde, seriam identificadas as terrveis conseqncias ambientais, econmicas e sociais dessa estratgia, tais como: reduo da biodiversidade, menor resistncia a pragas, xodo rural e contaminao do solo e dos alimentos com agrotxicos. No incio da dcada de 70 a crise mundial de produo de alimentos levou a Conferncia Mundial de Alimentao, de 1974, a identificar que a garantia da segurana alimentar teria que passar por uma poltica de armazenamento estratgico e de oferta de alimentos, associada proposta de aumento da produo de alimentos. Ou seja, no era suficiente s produzir alimentos, mas tambm garantir a regularidade do abastecimento. O enfoque, nesta poca, ainda estava preponderantemente no produto, e no no ser humano, ficando a dimenso do direito

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humano em segundo plano. Foi neste contexto que a Revoluo Verde foi intensificada, inclusive no Brasil, com um enorme impulso na produo de soja. Essa estratgia aumentou a produo de alimentos, mas, paradoxalmente, fez crescer o nmero de famintos e de excludos, pois o aumento da produo no implicou aumento da garantia de acesso aos alimentos. Vale ressaltar que, a partir dos anos 80, os ganhos contnuos de produtividade na agricultura continuaram gerando excedentes de produo e aumento de estoques, resultando na queda dos preos dos alimentos. Estes excedentes alimentares passaram a ser colocados no mercado sob a forma de alimentos industrializados, sem que houvesse a eliminao da fome. Nessa dcada, reconhece-se que uma das principais causas da insegurana alimentar da populao era a falta de garantia de acesso fsico e econmico aos alimentos, em decorrncia da pobreza e da falta de acesso aos recursos necessrios para a aquisio de alimentos, principalmente acesso renda e terra/territrio. Assim, o conceito de segurana alimentar passou a ser relacionado com a garantia de acesso fsico e econmico de todos - e de forma permanente - a quantidades suficientes de alimentos. No final da dcada de 80 e incio da dcada de 90, o conceito de segurana alimentar passou a incorporar tambm a noo de acesso a alimentos seguros (no contaminados biolgica ou quimicamente); de qualidade (nutricional, biolgica, sanitria e tecnolgica), produzidos de forma sustentvel, equilibrada, culturalmente aceitveis e tambm incorporando a idia de acesso informao. Essa viso foi consolidada nas declaraes da Conferncia Internacional de Nutrio, realizada em Roma, em 1992, pela FAO e pela Organizao Mundial da Sade (OMS). Agrega-se definitivamente o aspecto nutricional e sanitrio ao conceito, que passa a ser denominado Segurana Alimentar e Nutricional (3). A partir do incio da dcada de 90, consolida-se um forte movimento em direo reafirmao do Direito Humano Alimentao Adequada, conforme previsto na Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948)(4) e no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais - PIDESC (1966) (5), que sero explicados nas prximas aulas. Um passo especial para isto foi a realizao da Conferncia Internacional de Direitos Humanos (6), realizada em Viena, em 1993, que reafirmou a indivisibilidade dos direitos humanos. Tambm a Cpula Mundial da Alimentao (7), realizada em Roma, em 1996 e organizada pela FAO, associou definitivamente o papel fundamental do Direito Humano Alimentao Adequada garantia da Segurana Alimentar e Nutricional. A partir de ento, de forma progressiva, a SAN comea a ser entendida como uma possvel estratgia para garantir a todos o Direito Humano Alimentao Adequada. A evoluo conceitual ocorre em nvel internacional e nacional e caracteriza-se como um processo contnuo que acompanha as diferentes necessidades de cada povo e de cada poca. No Brasil, o conceito vem sendo debatido h pelo menos 20 anos e da mesma forma sofre alteraes em funo da prpria histria do homem e das sociedades. O entendimento de segurana alimentar como sendo a garantia, a todos, de condies de acesso a alimentos bsicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades bsicas, com base em prticas alimentares que possibilitem a saudvel reproduo do organismo humano, contribuindo, assim, para uma existncia digna foi proposto em 1986, na I Conferncia Nacional de Alimentao e Nutrio e consolidado na I Conferncia Nacional de Segurana Alimentar, em 1994. importante perceber que esse entendimento articula duas dimenses bem definidas: a alimentar e a nutricional. A primeira se refere

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aos processos de disponibilidade (produo, comercializao e acesso ao alimento) e a segunda diz respeito mais diretamente escolha, ao preparo e consumo alimentar e sua relao com a sade e a utilizao biolgica do alimento. importante ressaltar, no entanto, que o termo Segurana Alimentar e Nutricional somente passou a ser divulgado com mais fora no Brasil aps o processo preparatrio para a Cpula Mundial de Alimentao, de 1996, e com a criao do Frum Brasileiro de Segurana Alimentar e Nutricional (FBSAN), em 1998. Mais recentemente outras dimenses vm sendo associadas ao termo. Considera-se que os pases devam ser soberanos para garantir a Segurana Alimentar e Nutricional de seus povos (soberania alimentar), respeitando suas mltiplas caractersticas culturais, manifestadas no ato de se alimentar. O conceito de soberania alimentar defende que cada nao tem o direito de definir polticas que garantam a Segurana Alimentar e Nutricional de seus povos, incluindo a o direito preservao de prticas de produo e alimentares tradicionais de cada cultura. Alm disso, se reconhece que este processo deva se dar em bases sustentveis, do ponto de vista ambiental, econmico e social. Essas dimenses so incorporadas por ocasio da II Conferncia Nacional de SAN realizada em Olinda-PE, em maro de 2004. Hoje o seguinte conceito adotado em nosso pas:a Segurana Alimentar e Nutricional consiste na realizao do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base prticas alimentares promotoras de sade que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econmica e socialmente sustentveis. Este entendimento foi reafirmado na lei orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Presidente da Repblica em 15 de setembro de 2006, instrumento jurdico que constitui um avano por considerar a promoo e garantia do DHAA como objetivo e meta da Poltica de SAN. Elementos conceituais da SAN No conceito de SAN considera-se dois elementos distintos e complementares: a dimenso alimentar e a dimenso nutricional. A dimenso alimentar - produo e disponibilidade de alimentos que seja: a) suficiente para atender a demanda; b) estvel e continuada para garantir a oferta permanente, neutralizando as flutuaes sazonais; c) autnoma para que se alcance a auto-suficincia nacional nos alimentos bsicos; d) eqitativa para garantir o acesso universal s necessidades nutricionais adequadas para manter ou recuperar a sade nas etapas do curso da vida e nos diferentes grupos da populao; e) sustentvel do ponto de vista agroecolgico, social, econmico e cultural com vistas a assegurar a SAN das prximas geraes. A dimenso nutricional incorpora as relaes entre o homem e o alimento, implicando na: a) escolha de alimentos saudveis; b) preparo dos alimentos com tcnicas que preservem o seu valor nutricional e sanitrio c) consumo alimentar adequado e saudvel; d) boas condies de sade, higiene e de vida para melhorar e garantir a adequada utilizao biolgica dos alimentos consumidos; e) promoo dos cuidados com sua prpria sade, de sua famlia e comunidade;

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f) acesso aos servios de sade de forma oportuna e com resolutividade das aes prestadas; g) promoo dos fatores ambientais que interferem na sade e nutrio como as condies psicossociais, econmicas, culturais, ambientais. A segurana alimentar um importante mecanismo para a garantia da segurana nutricional, mas no capaz de dar conta por si s de toda sua dimenso. A evoluo do conceito de SAN, no Brasil e no mundo, aproxima-se, cada vez mais, da abordagem de DHAA. Para que uma Poltica de SAN seja coerente com a abordagem de direitos humanos, deve incorporar princpios e aes essenciais para a garantia da promoo da realizao do DHAA. Nas prximas aulas ser exposta, com maior detalhamento, a relao entre SAN e DHAA.

MDulo I

aula 2

o conceito de DHAAIntroduo O Direito Humano Alimentao Adequada indispensvel para a sobrevivncia. As normas internacionais reconhecem o direito de todos alimentao adequada e o direito fundamental de toda pessoa a estar livre da fome, como pr-requisitos para a realizao de outros direitos humanos. Entretanto, o direito alimentao adequada e o direito de estar livre da fome esto distantes da realidade de muitas pessoas em todo o mundo. A incorporao do conceito de Direito Humano Alimentao Adequada nas vrias estratgias de desenvolvimento social e de Segurana Alimentar e Nutricional um caminho eficaz para reverter essa situao. Um quadro global da pobreza e da desnutrio Em 2005, segundo dados da FAO, 852 milhes de pessoas sofriam de fome crnica (90% crnica e 10% gravemente desnutridas) nos pases em desenvolvimento. Em 2008 a FAO divulgou novos dados informando que esse contingente atingiu 923 milhes de pessoas, ou seja, 71 milhes a mais do que em 2005. Segundo a FAO a crise dos alimentos1 tem sido responsvel pelo aumento1. Recentemente, a mdia internacional tem dado muito espao ao que vem sendo chamado de crise mundial dos alimentos. Descreve-se a crise pelo aumento expressivo do preo de produtos alimentcios (i.e, trigo, milho, arroz, leite, carne, soja etc). De acordo com informaes da FAO, datadas de abril de 2008, 37 pases esto beira de uma crise alimentar grave. A ONU foi a pblico alertar que se nada for feito, faltaro alimentos para milhes de pobres no mundo. Parece que o problema de escassez da oferta quando, na realidade, trata-se da expresso mais perversa da injustia distributiva global. A maior prova disso que so somente os mais pobres os afetados pela crise. A alta dos preos dos alimentos a face mais visvel de um conjunto de fatores que vem historicamente promovendo excluso social e a sistemtica violao do DHAA de expressivos contingentes populacionais. importante ressaltar que as polticas de desenvolvimento tm se pautado em interesses de mercado e no em garantia de direitos e dignidade humana. Em um documento elaborado em 2008, chamado A Crise Mundial de Alimentos viola o Direito Humano Alimentao a ABRANDH apresenta alguns elementos que devem ser levados em conta na construo de uma agenda global de desenvolvimento pautada em direitos humanos. Para maiores informaes ver: http://www.abrandh.org.br/crisealimentos.pdf

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do nmero de pessoas afetadas pela fome2. Assim, a Meta de Desenvolvimento do Milnio n1 de reduzir metade, entre 1990 e 2015, a proporo da populao que sofre com a fome est gravemente ameaada. Alm disso, estima-se que 2 bilhes de pessoas sofrem de fome oculta (deficincias de micronutrientes), principalmente mulheres com anemia e deficincia de ferro, bem como as 250 milhes de crianas afetadas por deficincia de iodo, a causa mais comum de retardamento mental, ou os 250 milhes de crianas que sofrem de deficincia subclnica de Vitamina A, o que reduz a capacidade de combater doenas e pode levar cegueira. Ademais, uma nova epidemia de obesidade est se espalhando, com 25 milhes de crianas e 250 milhes de adultos obesos em pases tanto pobres como ricos, gerando conseqncias prejudiciais significativas tanto para a sade desses indivduos como para o oramento na rea de sade dos pases. A globalizao do comrcio e dos mercados e a rpida urbanizao substituem padres dietticos e hbitos alimentares tradicionais. O saneamento e a nutrio, aliados educao do consumidor, no conseguem acompanhar o ritmo inconstante. Isto resulta em uma maior deteriorao da situao alimentar e nutricional geral. Essa situao demonstra a necessidade de se garantir a realizao do DHAA enquanto estratgia fundamental para lidar com os extremos acima mencionados. O que o Direito Humano Alimentao Adequada? A expresso Direito Humano Alimentao Adequada tem sua origem no Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Em 2002, o Relator Especial da ONU para o direito alimentao definiu o Direito Humano Alimentao Adequada da seguinte forma: O direito alimentao adequada um direito humano inerente a todas as pessoas de ter acesso regular, permanente e irrestrito, quer diretamente ou por meio de aquisies financeiras, a alimentos seguros e saudveis, em quantidade e qualidade adequadas e suficientes, correspondentes s tradies culturais do seu povo e que garanta uma vida livre do medo, digna e plena nas dimenses fsica e mental, individual e coletiva. Essa definio implica todos os elementos normativos explicados em detalhes no Comentrio Geral 12 sobre o artigo 11 do PIDESC, segundo o qual: O direito alimentao adequada se realiza quando todo homem, mulher e criana, sozinho ou em comunidade com outros, tem acesso fsico e econmico, ininterruptamente, a uma alimentao adequada ou aos meios necessrios para sua obteno. Comentrio sobre a terminologia O PIDESC reconhece o direito a um padro de vida adequado, inclusive alimentao adequada, bem como o direito fundamental de estar livre da fome.

2. Sobre a crise dos alimentos ver tambm o posicionamento do Relator Especial da ONU para o direito alimentao, Olivier De Schutter: No Solutions for Food Crisis Without Human Rights (site em ingls): http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/NoSolutionsFoodCrisis.aspx

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Conforme os tratados internacionais de direitos humanos, existem duas dimenses indivisveis do DHAA: o direito de estar livre da fome e da m nutrio e o direito alimentao adequada. O DHAA comea pela luta contra a fome, mas caso se limite a isso, esse direito no estar sendo plenamente realizado. Os seres humanos necessitam de muito mais do que atender suas necessidades de energia ou de ter uma alimentao nutricionalmente equilibrada. Na realidade, o DHAA no deve - e no pode - ser interpretado em um sentido estrito ou restritivo, ou seja, que o condiciona ou o considera como recomendaes mnimas de energia ou nutrientes. A alimentao para o ser humano deve ser entendida como processo de transformao da natureza em gente saudvel e cidad. importante compreender os principais conceitos empregados na definio de Direito Humano Alimentao Adequada. Por exemplo, o que significa disponibilidade de alimentos? Consideremos o seguinte exemplo: Cenrio 1: Disponibilidade Exemplo: Uma rea propensa a ocorrncia de secas, habitada majoritariamente por agricultores familiares. Esses agricultores no dispem de recursos para investir em irrigao, por isto dependem da gua da chuva para o cultivo de suas lavouras. A ausncia de fontes de renda alternativas mantm os agricultores em situao de insegurana. Quando a falta de chuva resulta no fracasso da colheita, h poucos alimentos disponveis e nenhum dinheiro para compr-los. A rede de comrcio local de alimentos tambm afetada pelo fracasso da colheita. Nesse cenrio, como a produo de alimentos reduzida, os alimentos disponveis no so suficientes para as comunidades. Vejamos mais detalhadamente o que significa disponibilidade. Disponibilidade de alimentos A disponibilidade de alimentos pode ocorrer das seguintes formas: a) diretamente, a partir de terras produtivas (agricultura, criao de animais, cultivo de frutas), ou de outros recursos naturais como pesca, caa, coleta de alimentos; ou b) a partir de alimentos comprados na rede de comrcio local ou ainda obtidos atravs de aes de provimento como, por exemplo, entrega de cestas bsicas. Cenrio 2: Adequao Os alimentos disponveis tambm devem ser adequados. Por exemplo: As comunidades indgenas Guaranis-Kaiows do Municpio de Dourados, Estado do Mato Grosso do Sul, vivem em uma rea de terra to pequena que no lhes d condies de viver dignamente e de produzir ou obter seus alimentos tradicionais por meio da agricultura, pesca, caa e coleta.

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Em decorrncia dessa situao 17 crianas morreram por desnutrio em 2005. Os governos, federal e estadual, como medida emergencial, distriburam cestas bsicas de alimentos. Porm alguns alimentos (farinha de trigo e leite em p) no faziam parte da cultura alimentar do povo Guarani-Kaiow. Assim, essa medida no foi eficaz para reverter o quadro de desnutrio que afetou a aldeia. Numa escola h crianas portadoras de doena celaca e que, por esta razo, no podem comer glten. Contudo, a maioria dos alimentos oferecidos na escola contm glten, o que pe em risco a vida e a sade dessas crianas. Os cenrios acima so exemplos de inadequao dos alimentos. Adequao dos alimentos O consumo apropriado de padres alimentares, inclusive o aleitamento materno, essencial para o alcance do bem-estar nutricional. Alm disso, os alimentos no devem conter substncias adversas em nveis superiores queles estabelecidos por padres internacionais e pela legislao nacional. Estas substncias so toxinas, poluentes resultantes de processos agrcolas e industriais, inclusive resduos de drogas veterinrias, promotores de crescimento e hormnios, entre outros. A alimentao, no contexto do Direito Humano Alimentao Adequada, deve incluir valores associados preparao e ao consumo de alimentos. Alimentao adequada implica acesso a alimentos saudveis que tenham como atributos: acessibilidade fsica e financeira, sabor, variedade, cor, bem como aceitabilidade cultural como, por exemplo, respeito a questes religiosas, tnicas e s peculiaridades dos diversos grupos e indivduos. Acessibilidade ao alimento A acessibilidade ao alimento uma outra condio importante que precisa ser entendida. Veja o exemplo a seguir: Cenrio 3: Acesso Nas dcadas 70 e 80, as altas taxas de desemprego em reas rurais, e a falta de oportunidades, causaram migrao em massa para os centros urbanos. Os migrantes encontravam trabalho nos setores informais, onde os salrios eram baixos e irregulares, no permitindo a aquisio e consumo de alimentos nutritivos de forma regular e permanente. Esse exemplo configura a falta de acessibilidade econmica aos alimentos e em conseqncia o acesso a quantidades insuficientes de alimentos para a garantia da SAN. A acessibilidade ao alimento pressupe acessibilidade tanto econmica como fsica: Acessibilidade econmica A acessibilidade econmica implica acesso aos recursos necessrios para a obteno de alimentos para uma alimentao adequada com regularidade durante todo o ano.

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Acessibilidade fsica A alimentao deve ser acessvel a todos: lactentes, crianas, idosos(as), deficientes fsicos, doentes terminais ou pessoas com problemas de sade, presos(as), entre outros. A alimentao tambm deve estar acessvel para as pessoas que vivem em reas de difcil acesso, vtimas de desastres naturais ou provocados pelo homem, vtimas de conflitos armados e guerras e aos povos indgenas e outros grupos em situao de vulnerabilidade. estabilidade do fornecimento Veja, a seguir, um exemplo da falta de estabilidade do fornecimento. Cenrio 4: Estabilidade Em um assentamento rural, onde ainda no existem condies para produo de alimentos, h fornecimento de cestas bsicas. Entretanto, este fornecimento no estvel e regular. A entrega de cestas bsicas deveria ser suficiente, regular e permanente at que essas famlias tenham condies, por seus prprios meios, de ter acesso alimentao adequada. Alm disso, deveria haver aes que garantissem a autonomia dessas famlias, a fim de que, por seus prprios meios, pudessem prover seus alimentos de maneira estvel. Tanto a disponibilidade de alimentos como a acessibilidade aos mesmos devem ser garantidas de maneira estvel. Isso significa que alimentos adequados devem estar disponveis e acessveis, de forma regular e permanente, durante todo o ano.

MDulo I

aula 3

Algumas consideraes importantesApesar de reconhecido em vrios tratados e declaraes internacionais, todos aprovados pelo Brasil, a realizao do DHAA em suas duas dimenses, ainda est muito longe de se tornar uma realidade para muitos. Como diz a msica Comida dos Tits a gente no quer s comida.... De fato, alimentao adequada vai muito alm: Trata do direito a uma alimentao de qualidade, diversificada, nutricionalmente adequada, sem agrotxicos ou contaminantes e isentos de organismos geneticamente modificados - OGM.

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Existe uma grande preocupao por parte de vrias organizaes no governamentais e movimentos sociais em torno dos potenciais impactos, riscos e efeitos colaterais ou indesejveis que os organismos geneticamente modificados (OGMs) podem produzir, uma vez que seus efeitos sobre a sade e o meio ambiente ainda so desconhecidos. A liberao de produtos transgnicos, sem a realizao de estudos prvios de impacto ambiental e dos riscos sade e Segurana Alimentar e Nutricional da populao brasileira, fere o princpio da precauo3. Os transgnicos podem representar um risco para a Segurana Alimentar e Nutricional dos brasileiros: Tanto os riscos para a sade, quanto aqueles que afetam a produo ou o custo dos alimentos e as ameaas aos agricultores familiares, sem falar na dependncia aos interesses das empresas produtoras de transgnicos, tm incidncia na segurana alimentar dos brasileiros. Entre outros fatores, podemos imaginar um cenrio em que o uso dos transgnicos provoque desequilbrios ambientais graves com conseqentes quedas de produo de alimentos, dependncia de importaes, aumento de custos ao consumidor etc.http://www.esplar.org.br/campanhas/transgenicos_problemas.htm#14

Nesse sentido, a realizao de estudos e investigaes cientficas, imparciais e independentes, sobre os riscos ao meio ambiente e implicaes dos transgnicos para o consumo humano, assim como a adoo, efetiva e concreta, do princpio da precauo no que tange ao plantio e comercializao de transgnicos so medidas recomendadas como alternativas concretas a serem tomadas, diante da incerteza cientfica sobre os OGM. Trata ainda do direito de acesso informao cientificamente comprovada e respaldada sobre alimentao saudvel e alimentos seguros e adequados. Inclui a regulamentao da propaganda e publicidade que promovem o consumo de alimentos no saudveis ou que vendem caractersticas que inexistem ou so inverdicas, especialmente para crianas e jovens, fases da vida em que se constroem e definem os hbitos alimentares. Respeita os hbitos culturais que, em especial no Brasil, so formados com a contribuio da diversidade cultural (regional, racial, tnica) caracterstica da origem de formao do nosso povo. Incorpora o direito da populao de ter acesso aos recursos produtivos, de produzir, de maneira adequada e soberana, o seu prprio alimento e/ou de ter recursos (financeiros, fsicos e materiais) para alimentar-se de forma adequada e com dignidade. E, to importante quanto esses elementos, incorpora a garantia e a possibilidade concreta de a populao exigir a realizao de seus direitos. A promoo da garantia do DHAA passa pela promoo da reforma agrria, da agricultura familiar, de polticas de abastecimento, de incentivo prticas agroecolgicas, de vigilncia sanitria dos alimentos, de abastecimento de gua e saneamento bsico, de alimentao escolar, do3. O princpio da precauo estabelece a necessidade de preveno de riscos potenciais e de efeitos irreversveis antes mesmo da existncia de provas irrefutveis de nocividade de uma nova tecnologia. Esse princpio, incorporado na Lei 11.105 de 24 de maro de 2005, que estabelece normas de segurana e mecanismos de fiscalizao de atividades que envolvam organismos geneticamente modificados, encontra tambm expresso concreta em vrios artigos da Constituio Federal de 1988.

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atendimento pr-natal de qualidade, da viabilidade de praticar o aleitamento materno exclusivo, da no discriminao de povos, etnia e gnero, entre outros. No possvel descrever todas as aes necessrias para a garantia do Direito Humano Alimentao Adequada, porque cada grupo, famlia ou indivduo vai exercer o seu direito de se alimentar com dignidade na medida em que forem superadas as dificuldades da realidade especfica que lhes cerca; e o Brasil tem diversas realidades, com particularidades e dificuldades em cada uma delas. Os indgenas cujas terras no esto demarcadas, por exemplo, para ter o seu DHAA precisam de determinadas polticas que podem no ser pertinentes para os indgenas que vivem em terras demarcadas. Os ciganos tm necessidades diferentes de comunidades quilombolas. A classe mdia, que tem dinheiro para comprar seus alimentos, precisa de informao, entre outras medidas, para fazer valer o seu direito informao e de escolha saudvel dos alimentos, enquanto as comunidades urbanas e rurais excludas precisam de renda ou acesso terra, para poder usar a informao a que eventualmente tenham acesso, para realizar o seu DHAA. Ou seja, ainda que todos estes grupos tenham caractersticas comuns, em determinados momentos precisam de aes especficas para garantir esse direito. sempre importante reafirmar que o DHAA est indivisivelmente ligado dignidade da pessoa humana, justia social e realizao de outros direitos (direito terra para nela produzir alimentos, ao meio-ambiente equilibrado e saudvel, sade e educao, cultura, ao emprego e renda, entre outros). Isso aponta claramente para a necessidade de polticas e programas pblicos que tenham como princpio a intra e a intersetorialidade, para que se possa promover a realizao dos direitos humanos. Cabe ainda ressaltar que, na perspectiva da promoo dos direitos humanos, o processo (como feito) to importante quanto o resultado (o que feito). Nesse sentido, fundamental que prticas que promovam o DHAA considerem os princpios que se relacionam com esse direito e, assim, superem prticas paternalistas, assistencialistas, discriminatrias e autoritrias. Portanto, para promover a realizao do DHAA fundamental que a execuo e a implantao das polticas, programas e aes pblicas (o que feito) e seu delineamento, planejamento, implementao e monitoramento (como feito) sejam garantidos por um processo democrtico, participativo, inclusivo, que respeite as diferenas e diversidades entre os seres humanos.

MDulo I Princpios

aula 4

Os problemas relacionados com a privao de alimentos devem ser abordados sob a perspectiva do Direito Humano Alimentao Adequada. Isso significa que as estratgias de segurana alimentar e nutricional e as de reduo da fome e da pobreza devem incorporar vrios princpios de direitos humanos: Dignidade humana. Esse princpio exige que todas as pessoas sejam tratadas com respeito,

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dignidade e valorizadas como seres humanos. Polticas pblicas baseadas em direitos humanos reconhecem o indivduo no como mero objeto de uma poltica, mas sim como titular de direitos humanos, que pode reivindicar esses direitos. Prestao de Contas (ou responsabilizao). Uma abordagem baseada em direitos humanos reconhece o estabelecimento de metas e processos transparentes para o desenvolvimento e a reduo da pobreza. Os Estados so responsveis por suas aes perante os indivduos e delas devem prestar contas. Apoderamento. Os indivduos, por sua vez, precisam se apoderar das informaes e instrumentos de direitos humanos para que possam reivindicar do Estado aes corretivas e compensaes pelas violaes de seus direitos. A perspectiva do Direito Humano Alimentao Adequada est centrada em: No-discriminao. O Direito Humano Alimentao Adequada deve ser garantido sem discriminao de origem cultural, econmica ou social, etnia, gnero, idioma, religio, opo poltica ou de outra natureza. Isso, porm, no afasta a necessidade de que sejam realizadas aes afirmativas e enfoques prioritrios em grupos vulnerveis, em particular, em mulheres. Participao. Esse princpio destaca a necessidade de que as pessoas definam as aes necessrias ao seu bem-estar e participem, de forma ativa e informada, do planejamento, da concepo, do monitoramento e da avaliao de programas para o seu desenvolvimento e a reduo da pobreza. Alm disso, as pessoas devem estar em condies de participar de questes macro-polticas. A participao plena requer transparncia. Ela apodera as pessoas e uma outra forma de reconhecimento de sua dignidade.

MDulo I

aula 5

SAN, DHAA, Soberania Alimentar e a interligao entre estes conceitosLei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional. Art. 3: A Segurana Alimentar e Nutricional consiste na realizao do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base prticas alimentares promotoras de sade que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econmica e socialmente sustentveis. Como explicado anteriormente, no Brasil, o conceito de SAN vem sendo debatido h pelo menos 20 anos e vem sendo utilizado para se referir a uma estratgia ou poltica nacional de Segurana Alimentar e Nutricional, que incorpora o acesso regular e permanente alimentao saudvel e a outros bens e servios sociais bsicos necessrios para o bem estar do ser humano.

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Ao afirmar que determinado grupo ou indivduo est em estado de segurana alimentar e nutricional, considera-se que este grupo ou indivduo est tendo acesso a alimentao e nutrio adequadas e est tendo plena condies de aproveitar, em termos fisiolgicos, os alimentos ingeridos. Ou seja, est saudvel e vivendo em um ambiente saudvel. A figura (9) a seguir apresenta fatores determinantes do estado nutricional4 de um indivduo. Essa figura demonstra que o estado de segurana alimentar e nutricional mais amplo do que o estado de segurana alimentar. Porm, principalmente quando associamos SAN, Soberania e DHAA, outros fatores so importantes para garantia de SAN, como, por exemplo, sustentabilidade econmica, social e ambiental da produo, no reproduo de sistemas que gerem assimetrias e violaes de direitos, entre outros.

4. Fatores determinantes do estado nutricional: As expresses fatores determinantes ou fatores ou condicionantes so muito usadas nas diferentes reas da sade. Referem-se aos fatores globais e s condies que se acredita que influem na sade e na nutrio dos indivduos ou de coletividades. Esses fatores determinantes no atuam isoladamente, mas interagem entre si, de maneira complexa, tendo repercusses na sade e nutrio. A determinao do estado nutricional envolve diferentes fatores, de nveis diversos, de dimenses variadas. Sinteticamente, pode-se junt-los em 2 grandes grupos: condicionantes scio-ambientais (acesso educao, sade, meio ambiente saudvel, condies de moradia, condies de trabalho e salrio, disponibilidade e acesso aos alimentos e outros) e condicionantes individuais (hereditariedade; hbitos alimentares, consumo alimentar, utilizao biolgica dos alimentos, atividade fsica, estado de sade, estado fisiolgico, entre outros).

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A poltica de SAN deve ser regida por valores compatveis com os direitos humanos e, dentre esses valores, destaca-se o princpio da SOBERANIA ALIMENTAR que implica em cada nao ter o direito de definir polticas que garantam a Segurana Alimentar e Nutricional de seus povos, incluindo a o direito preservao de prticas alimentares e de produo tradicionais de cada cultura. Esse princpio relaciona-se com o direito de todos de participar das decises polticas de seu pas, cujos governantes devem agir de forma livre e soberana e de acordo com os direitos fundamentais de seus habitantes. por meio da poltica de SAN (1), articulada a outros programas e polticas pblicas correlatas, que o Estado deve respeitar5, proteger6, promover7 e prover8 o Direito Humano Alimentao Adequada. Este direito, que se constitui obrigao do poder pblico e responsabilidade da sociedade, alia a concepo de um estado fsico ideal - estado de segurana alimentar e nutricional - aos princpios de direitos humanos tais como dignidade, igualdade, participao, no discriminao, entre outros. Portanto, quando se fala em Segurana Alimentar e Nutricional refere-se forma como uma sociedade organizada, por meio de polticas pblicas, de responsabilidade do Estado e da sociedade como um todo, pode e deve garantir o DHAA a todos os cidados (10). O exerccio do DHAA permite o alcance, de forma digna, do estado de segurana alimentar e nutricional e da liberdade para exercer outros direitos fundamentais. Assim, o que se pode observar que todos os conceitos apresentados acima - poltica de SAN, estado de segurana alimentar e nutricional, soberania alimentar e DHAA - se relacionam. O DHAA um direito humano de todos e a garantia da Segurana Alimentar e Nutricional para todos um dever do Estado e responsabilidade da sociedade.

O DHAA um direito humano de todos e a garantia da Segurana Alimentar e Nutricional para todos um dever do Estado e responsabilidade da sociedade.

5. Respeitar: A obrigao de respeitar os direitos humanos requer que os Estados no tomem quaisquer medidas que resultem no bloqueio realizao desses direitos. O Estado no pode, por meio de leis, polticas pblicas ou aes, ferir a realizao dos direitos humanos e, quando o fizer, tem que criar mecanismos de reparao. Exemplo: polticas pblicas que geram desemprego devem ser associadas a mecanismos que garantam a gerao de novos empregos e salrio desemprego at a normalizao da situao. 6. Proteger: O Estado tem que proteger os habitantes de seu territrio contra aes de empresas ou indivduos que violem direitos humanos. Exemplo: o estado deve proteger o direito a alimentao de grupos ou indivduos ameaados pela ao de grandes empresas que contaminam ou impedem sua produo de alimentos. 7. Promover: A obrigao de promover/facilitar significa que o Estado deve envolver-se pr-ativamente em atividades destinadas a fortalecer o acesso de pessoas a recursos e meios e a sua utilizao por elas, para garantia de seus direitos humanos. O Estado tem que promover/facilitar polticas pblicas que aumentem a capacidade das famlias de alimentarem a si prprias, por exemplo. 8.Prover: O Estado tem tambm a obrigao, em situao de emergncia e/ou individuais ou familiares que, por condies estruturais ou conjunturais, no se tenha condies de garantir para si mesmo alimentao, moradia adequada, educao, sade. O Estado tem, por exemplo, a obrigao de garantir a alimentao e a

nutrio com dignidade a famlias que passam fome ou esto desnutridas por condies que fogem ao seu controle. O Estado deve tambm buscar garantir que essas famlias/pessoas recuperem a capacidade de se alimentar, quando forem capazes de faz-lo.

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MDulo I

aula 6

o que o conceito de DHAA traz de novo para a abordagem de SAN?Razes para adoo da abordagem do DHAA Apesar dos inegveis avanos e conquistas observados nos ltimos anos, a adoo efetiva de uma cultura de direitos humanos, especialmente de Direitos Humanos Econmicos, Sociais e Culturais (DHESC), encontra-se ainda em estgio embrionrio no Brasil, por uma srie de diferentes fatores9: H uma grande concentrao de renda, de recursos e de poder no Brasil. Uma grande parcela da populao desconhece que tem direitos. A falta de informao sobre direitos humanos contribui para que as aes pblicas no sejam reconhecidas como forma de cumprimento de deveres e realizao de direitos passveis de serem exigidos. No se pode negar que em muitos casos uma forte dimenso paternalista10 e assistencialista (ver box) ainda permeia o Estado e a sociedade brasileira, pois o acesso alimentao, moradia, sade, educao, cultura, ao lazer, entre outros, nem sempre reconhecido como direito. Ao contrrio, muitas vezes so vistos como favor, caridade ou privilgio. Mesmo nos casos de conhecimento da existncia de direitos humanos, incluindo dos DHESCs, a falta de informaes quanto aos caminhos para garantir que os mesmos sejam realizados e a ausncia de mecanismos efetivos para cobrana desses direitos so tambm grandes desafios que precisam ser enfrentados. Grande parte da populao brasileira ainda acredita que a defesa de direitos humanos se refere exclusivamente defesa dos direitos dos presos e bandidos. Essa associao decorre de uma generalizada desinformao por parte da populao e tambm, devido a uma eficiente manipulao de informaes e de ideologias feitas principalmente pelos meios de comunicao em massa. A abordagem de direitos humanos permite o enfrentamento da realidade ainda existente no Brasil. A perspectiva dos direitos humanos define claramente que o respeito, a proteo, a promoo e o provimento dos direitos de todos os habitantes do territrio nacional uma obrigao do Estado. Assim o Estado, isto , os agentes dos poderes pblicos, devem tomar todas as medidas necessrias para cumprir esta tarefa. Quando os programas pblicos so vistos como forma de cumprimento de obrigaes e de garantias de direitos, tanto pelos gestores e servidores pblicos, como pelos titulares de direitos ,

9. Nos mdulos apresentados mais adiante sero apontados, com maior detalhe e com base em relatrios de especialistas em DHAA, os principais obstculos e fatores que dificultam a realizao prtica desse direito no Brasil. 10. (...) paternalismo indica uma poltica social orientada ao bem-estar dos cidados e dos povos, mas que exclui sua direta participao: uma poltica autoritria e benvola, uma atividade assistencial em favor do povo, exercida desde o alto, com mtodos meramente administrativos. Para expressar tal poltica, nos referimos ento, usando de uma analogia, atitude benevolente dos pais para com seus filhos menores. Dicionrio de Poltica. Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino. Ver paternalismo.

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sem dvida, mais fcil para a sociedade exigir que os programas sejam bem geridos e executados. Como afirma Bobbio (10), a linguagem dos direitos humanos tem a grande funo prtica de emprestar uma fora particular s reivindicaes dos movimentos sociais. No Brasil, algumas iniciativas relacionadas SAN so: a Estratgia de Sade da Famlia (ESF) e programas como Programa Bolsa Famlia, Programa Nacional de Alimentao Escolar (PNAE), Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), Programa de Desenvolvimento Integrado e Sustentvel do Semi-rido (CONVIVER), Programa de Assistncia Jurdica Integral e Gratuita, Programa Luz para Todos e vrios outros. Estas iniciativas e programas utilizam recursos pblicos - pertencentes a toda sociedade, que os garante por meio do pagamento de impostos e tributos - para garantir os direitos dos cidados. Assim, fundamental que todos os tcnicos e servidores que atuam em programas governamentais compreendam que esses programas so formas de garantir direitos, e reforcem isso junto populao. Assistncia e assistencialismo A assistncia mantm uma forte relao com a obrigao de prover direitos. Realiza-se assistncia quando se constroem, de forma verdadeiramente participativa, polticas pblicas que tenham como base e vetor a dignidade humana. Esta construo feita em parceria com os poderes pblicos e as comunidades que devem ser sujeitos dessas aes. Nesta relao, atuam dois sujeitos autnomos e no um sujeito (poder pblico) e um objeto (comunidade marginalizada)(...). O que se vislumbra a possibilidade de os assistidos se organizarem de forma independente, elaborarem suas demandas de forma coletiva e passarem a acreditar mais em si prprios do que na interveno de qualquer liderana ou autoridade que lhe aparea como superior. A Assistncia , por isso mesmo, uma prtica de emancipao. Se vitoriosa, ela produz sujeitos livres e crticos. O assistencialismo, por sua vez, oferece a prpria ateno como uma ajuda, vale dizer: insinua, em uma relao pblica, os parmetros de retribuio de favor que caracterizam as relaes na esfera privada. pelo valor da gratido que os assistidos se vinculam ao titular das aes de carter assistencialista. No se trata, portanto, de executar aes para prover direitos e, assim, cumprir obrigaes, o que se vislumbra, pelo assistencialismo, a possibilidade de os assistidos retriburem eleitoralmente a ateno recebida; por isso, os assistidos devem ser submissos e dependentes, no devem se organizar de forma autnoma e, muito menos, expressar demandas polticas como se sujeitos fossem. O assistencialismo , por isso mesmo, uma prtica de dominao. Se vitorioso, ele produz objetos dceis e manipulveis.Ver crnica Assistncia Social e Assistencialismo, texto disponvel no site http://www.rolim.com.br/cronic5.htm de autoria de Marcos Rolim, jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria. Ensasta e colaborador de inmeros jornais e revistas brasileiras. Acessado em 23 de outubro de 2008.

A sociedade civil e outros atores sociais, por sua vez, tm o papel fundamental de apoiar e exigir a construo de uma nova cultura na gesto pblica, na qual as polticas, programas e aes governamentais sejam entendidos como direitos que podem e devem ser exigidos. O Estado e as esferas governamentais estaro cumprindo com suas obrigaes constitucionais e funcionais - e no prestando favor-, quando implementam programas e polticas que promovem os direitos dos cidados. Os seus agentes polticos e administrativos, cometero crime se cobrarem algo - seja em forma de gratificao em dinheiro, em mercadorias, em alimentos ou mesmo exigncia do voto de um eleitor - em troca deste pretenso favor.

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Direitos no so negociados e no podem ser usados como moeda de troca para serem exercidos! O fato do DHAA ser um direito humano de todos, e a Segurana Alimentar e Nutricional para todos um dever do Estado e responsabilidade da sociedade, nos leva a seguinte concluso: No podemos falar em Segurana Alimentar e Nutricional e em Direito Humano Alimentao Adequada sem entender o papel fundamental que cada um de ns possui, enquanto indivduos, agentes do Estado ou representantes da sociedade civil, no processo de promoo da realizao da SAN e do DHAA, como direito passvel de ser exigido em sua realidade local. Como ser explicado no Mdulo II, a todo direito humano, correspondem obrigaes do Estado e responsabilidades de diferentes atores sociais (indivduos, famlias, comunidades locais, organizaes no-governamentais, organizaes da sociedade civil bem como as do setor empresarial) em relao realizao dos mesmos. Assim, tarefa de todas as pessoas identificar as suas obrigaes e responsabilidades a fim de que o DHAA e a SAN saiam do papel e se tornem realidade no Brasil. Certamente as pessoas se tornaro promotoras da questo alimentar e nutricional como um direito humano e protagonistas da realizao do DHAA na realidade local na qual trabalham e vivem.

MDulo I

aula 7

Insegurana alimentar e nutricional x DHAAA manifestao mais grave da insegurana alimentar e nutricional a fome. Mas o estado de insegurana alimentar e nutricional deve ser percebido em seus variados graus, que envolvem desde dimenses psicolgicas at manifestaes fsicas que comprometem e colocam em risco a sade e a prpria vida das pessoas. A dimenso psicolgica da insegurana alimentar configura a preocupao de uma pessoa ou de uma famlia com a falta do alimento de forma regular, ou seja, que o alimento acabe antes que haja condies ou dinheiro para produzir ou comprar mais alimentos. Alm da preocupao com a escassez de alimentos, a insegurana alimentar pode manifestar-se mais concretamente de duas formas: 1. Insegurana alimentar relativa: manifestada pelo comprometimento da qualidade da alimentao (variedade e qualidade sanitria dos alimentos), mesmo que sem restrio na quantidade de alimentos necessria para garantir a energia e os nutrientes que o indivduo e as pessoas de sua famlia precisam para uma boa sade e adequado estado nutricional; e,

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2. Insegurana alimentar absoluta: situao em que o indivduo ou famlia passam por perodos concretos de restrio na disponibilidade de alimentos para consumo. A reduo pode ser leve, no incio do processo, mas pode agravar-se levando fome, situao em que um adulto ou at mesmo uma criana passe o dia - ou dias - inteiro(s) sem comer por no ter condies de produzir alimentos ou por falta de dinheiro para compr-los (1). Por outro lado, pode-se considerar que a insegurana alimentar e nutricional tem duas faces: Uma que se revela frente a restrio episdica ou continuada de consumo de alimentos (fome aguda ou crnica) tendo como repercusses biolgicas a desnutrio e a deficincia de nutrientes. Hoje, embora a desnutrio tenha sido reduzida no Brasil, ela ainda ocorre entre a populao residente em regies mais pobres ou em bolses de pobreza em todas as regies. A mortalidade por desnutrio ou infeces - doenas associadas muito estreitamente - atinge principalmente crianas pequenas. Um estudo recente desenvolvido pelo IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica - Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios - Segurana Alimentar 2004 (11), revelou que cerca de 72 milhes de brasileiros - aproximadamente 40% da populao - vive com algum grau de insegurana alimentar. Destes, 14 milhes, ou seja, 7,7% da populao vive em estado de insegurana alimentar grave, o que vale dizer que famlias inteiras, inclusive crianas, passam fome ou convivem, de forma rotineira, com o medo da fome. No Brasil, a causa da desnutrio no a falta de alimentos disponveis, mas a desigualdade de acesso a eles. Outros fatores esto associados tais como: moradias insalubres e a falta de saneamento bsico, fatos que aumentam o risco de doenas entre as pessoas mais vulnerveis (crianas e idosos). So causas que demonstram a extrema necessidade de que os direitos humanos sejam realizados de forma integrada. Recentemente, um fenmeno crescente, principalmente entre meninas e adolescentes de quaisquer classes sociais, a desnutrio e a morte conseqente aos transtornos alimentares (bulimia e anorexia nervosa), resultante da auto-privao de alimentos por questo de esttica e aceitao social. Estes exemplos tambm so considerados como violao do DHAA. A outra face da insegurana alimentar e nutricional conseqente no restrio alimentar, mas ao consumo inadequado de alimentos em termos de variedade e qualidade nutricional (composio) dos alimentos. Essa inadequao pode se dar em funo da falta de acesso financeiro ou fsico a uma alimentao saudvel ou mesmo pela falta de informaes sobre o que uma alimentao adequada e saudvel. No Mdulo VII esses conceitos sero trabalhados com maiores detalhes. Conforme apresentado anteriormente, parte dos alimentos disponveis atualmente para consumo pode representar riscos para a sade e a nutrio, tais como: alimentos de qualidade sanitria inadequada, produtos industrializados com quantidades elevadas de sal, acar e gorduras, alimentos geneticamente modificados, alimentos cultivados com o uso descontrolado de agrotxico (sem obedincia legislao sanitria que regula o uso dessas substncias), entre outros. importante ressaltar que pessoas que foram desnutridas no perodo intra-uterino ou at os dois anos de idade, tm um risco muito maior de desenvolver doenas crnicas associadas alimenta-

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o tais como sobrepeso e obesidade do que aquelas bem nutridas. As principais conseqncias so: diabetes, presso alta, doenas do corao, derrames, etc. O risco agravado quando crianas e jovens so expostos a uma alimentao rica em gorduras, sal e acar, ou mesmo a uma propaganda abusiva das mesmas. Isso demonstra, mais uma vez, a necessidade de articular diferentes tipos de aes pblicas para a proteo e promoo do DHAA. Quando uma famlia, grupo ou indivduo se encontra em qualquer um dos estados de insegurana alimentar e nutricional acima mencionados, o DHAA est sendo violado, como mostraremos com maior detalhamento no Mdulo II.

MDulo I

aula 8

Por que a realizao do DHAA deve ser uma preocupao?A realizao do DHAA deve ser uma preocupao de todos por uma srie de diferentes razes: Grupos em situao de vulnerabilidade precisam ser protegidos com base no princpio da dignidade humana - Dignidade humana. Muitos pases ratificaram o PIDESC - obrigaes legais. Direitos humanos e o Direito Humano Alimentao Adequada so necessrios para a consecuo das Metas de Desenvolvimento do Milnio - Compromissos internacionais. Fome, desnutrio e pobreza tm custos econmicos e sociais - RAZES ECONMICAS. Como temos conhecimento e recursos para erradicao da fome e realizao dos direitos humanos, seria antitico no agir - Razes ticas. Dignidade humana A dignidade o primeiro princpio reconhecido no Prembulo da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948. Ela a principal razo pela qual as estratgias de SAN e as de erradicao da pobreza e da fome devem ser direcionadas e integradas ao conceito do Direito Humano Alimentao Adequada. As estratgias de SAN integradas ao conceito do DHAA devem garantir um enfoque prioritrio para os grupos marginalizados, bem como garantir a alocao dos recursos necessrios para assegurar sua dignidade.

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Obrigaes legais At o momento, 159 Estados ratificaram o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC)11 e, portanto, tm a obrigao de realizar progressivamente o Direito Humano Alimentao Adequada. O PIDESC gera a obrigao de que o DHAA seja assumido, de fato, pelo Estado e refora a responsabilidade de todos os membros da sociedade para a sua realizao. Mesmo em pases que no ratificaram o PIDESC, todos os habitantes so titulares de direitos humanos, uma vez que estes direitos so universais e inerentes a todas as pessoas, independentemente de polticas especficas ou de governos. Compromissos internacionais Nos ltimos dez anos, a comunidade internacional, junto aos governos nacionais e grupos da sociedade civil, definiram metas para reduzir, efetivamente e num prazo estabelecido, a fome e a pobreza de forma definitiva. Como exemplo, ressaltamos as Metas de Desenvolvimento do Milnio12 para o ano 2015. Razes econmicas A garantia da dignidade humana deve ser a prioridade de todos os governos. O combate fome e desnutrio no pode ser unicamente baseado em pressupostos econmicos, pois o ser humano deve ser o centro de toda e qualquer poltica. Existem, porm, fortes razes econmicas para se investir na eliminao da fome e da insegurana alimentar e nutricional. No combater a fome implica reduo da capacidade produtiva de um pas. A fome e a desnutrio esto ligadas a origem e perpetuao da pobreza, comprometendo o desenvolvimento de qualquer pas. A desnutrio protico-energtica antes dos dois anos de idade resulta no retardamento irreversvel do desenvolvimento at a idade adulta. Adultos cujo desenvolvimento foi interrompido tm sua capacidade laboral e financeira consequentemente prejudicada. Outros efeitos incluem a reduo da capacidade cognitiva, o aumento da susceptibilidade a doenas infecciosas e o aumento da susceptibilidade aquisio de doenas crnicas na vida adulta. Todos estes problemas exigem a aplicao de recursos pblicos para serem superados. Razes ticas Em um mundo no qual alimentos so produzidos em quantidade suficiente, a existncia da fome e da desnutrio so uma afronta moral. Conhecemos as vrias causas e os caminhos para eliminar a fome e a desnutrio. Seria, portanto, antitico no agir e no usar todos os recursos disponveis para a garantia do Direito Humano Alimentao Adequada e demais direitos humanos.

11. Para conhecer os pases que ratificaram o PIDESC, ver site: http://www2.ohchr.org/english 12. Para maiores informaes sobre as Metas de Desenvolvimento do Milnio, ver site: http://www.pnud.org.br/home/

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MDulo I Resumo

aula 9

O conceito de Segurana Alimentar e Nutricional um conceito em construo. Hoje, o seguinte conceito de SAN adotado em nosso pas: a Segurana Alimentar e Nutricional consiste na realizao do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base prticas alimentares promotoras de sade que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econmica e socialmente sustentveis. O Direito Humano Alimentao Adequada tem duas dimenses: o direito de estar livre da fome e o direito alimentao adequada. A realizao destas duas dimenses de crucial importncia para a fruio de todos os direitos humanos. Os principais conceitos empregados na definio de Direito Humano Alimentao Adequada so disponibilidade de alimentos, adequao, acessibilidade e estabilidade do fornecimento. Segundo a definio do Direito Humano Alimentao Adequada, indivduos, inclusive as geraes futuras, devem ter acesso fsico e econmico, ininterruptamente, alimentao adequada. A promoo do DHAA demanda a realizao de aes especficas para diferentes grupos e passa pela promoo da reforma agrria, da agricultura familiar, de polticas de abastecimento, de incentivo prticas agroecolgicas, de vigilncia sanitria dos alimentos, de abastecimento de gua e saneamento bsico, de alimentao escolar, do atendimento pr-natal de qualidade, da no discriminao de povos, etnia e gnero, entre outros. Uma abordagem de SAN e de reduo da pobreza baseada em direitos est centrada em vrios princpios dos direitos humanos: dignidade humana, prestao de contas, apoderamento, no discriminao, participao. por meio da Poltica de SAN e soberania alimentar, articulada a outros programas e polticas pblicas, que o Estado deve respeitar, proteger, promover e prover o DHAA. Portanto, quando se fala em Segurana Alimentar e Nutricional refere-se forma como uma sociedade organizada, por meio de polticas pblicas, pode e deve garantir o DHAA a todos os cidados. O Direito Humano Alimentao Adequada agrega valor ao fundamentar e complementar o conceito e os programas de Segurana Alimentar e Nutricional com os aspectos jurdicos e os princpios dos direitos humanos. A perspectiva dos direitos humanos define claramente que o respeito, a proteo, a promoo e o provimento dos direitos de todos os habitantes do territrio nacional uma obrigao do Estado. Assim, obrigao do Estado garantir que os programas pblicos sejam vistos como forma de cumprimento de obrigaes e de garantias de direitos, tanto pelos gestores e servidores pblicos, como pelos titulares de direitos.

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A realizao desse direito deve ser uma preocupao para todos, por uma srie de razes: obrigaes legais do Estado, dignidade humana, compromissos internacionais, razes econmicas e ticas. A manifestao mais grave da insegurana alimentar e nutricional a fome. No entanto, o estado de insegurana alimentar e nutricional deve ser percebido em seus variados graus, que correspondem a violaes do DHAA. O Direito Humano Alimentao Adequada demanda que sejam criadas as instituies necessrias para a sua promoo e exigibilidade.

MDulo I referncias bibliogrficas

(1) Do combate fome Segurana Alimentar e Nutricional: o direito alimentao adequada in Valente, F.L.S, Direito Humano Alimentao: desafios e conquistas. Cortez Editora, So Paulo, 2002. p. 40-43. (2) Lehman, K. Once a Generation: The Search for Universal Food Security. Minesotta, IATP, 1996. (3) Valente, F.L.S. Do Combate Fome Segurana Alimentar e Nutricional: o Direito Alimentao Adequada. R. Nutr. PUCCAMP, Campinas. 10 (1): 20-36, jan./jun. 1997. (4) Declarao Universal dos Direitos Humanos. ONU, Nova York, 1948. Ver: http://www.unhchr.ch/udhr/lang/por.htm (5) ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. ONU, Nova York, 1966. Ver: http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Onu/Sist_glob_trat/texto/texto_2.html (6) Declarao da Conferncia Internacional de Direitos Humanos: http://www.pge.sp.gov.br/ centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/viena.htm (7) Declarao e Plano de Ao da Cpula Mundial da Alimentao, em especial inciso 7b: http:// www.direitoshumanos.usp.br/counter/FAO/texto/texto_3.html (8) Lei Orgnica de Segurana Alimentar e Nutricional - Lei 11.346 de 15 de setembro de 2006. Disponvel em: http://www.abrandh.org.br/downloads/losanfinal15092006.pdf (9) Gross, R. Schoenenber, H. 1999. (modelo adotado pelo SCN Comit Permanente de Nutrio da ONU) citado em: 4th Report on The World Nutrition Situation Nutrition Throughout the Life Cycle - Sub-Committee on Nutrition (ACC/SCN), January, 2000. (10) BOBBIO, N. A Era dos Direitos.Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 29

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(11) Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE): Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios - Segurana Alimentar 2004, Rio de Janeiro 2006. Disponvel em:http://www.ibge. gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2004/suplalimentar2004/supl_ alimentar2004.pdf Bibliografia sugerida para leitura: o Brasil e o Pacto Internacional de Direitos econmicos, Sociais e Culturais Relatrio da Sociedade Civil sobre o Cumprimento, pelo Brasil, do Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e Culturais. Braslia, abril de 2000. Este Relatrio foi produzido coletivamente por dezenas de colaboradores voluntrios, 17 audincias pblicas estaduais e consultas a mais de 2.000 entidades em todo o pas. Disponvel em: http://www.dhescbrasil.org.br A Segurana Alimentar e Nutricional e o Direito Humano a Alimentao no Brasil: Documento elaborado para a visita ao Brasil do Relator Especial da Comisso de Direitos Humanos da Organizao das Naes Unidas sobre Direito a Alimentao. IPEA 2002. Disponvel em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/seguranca_alimentar.pdf Soberania alimentar e a agricultura. Stedile, Joo Pedro; Balduino, Dom Toms. Artigo

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e , obrigaes Direitos A es ao DHA as viola

MDulo II33

ndice MDulo II

aula 1

O que so direitos humanos? Princpios e alguns atributos bsicos Histrico e Base legal dos Direitos Humanos e do DHAA

aula 2 aula 3 aula 4 aula 5

Introduo, 4 liberdades, DUDH Tratados e outros instrumentos internacionais de direitos humanos As Diretrizes Voluntrias Base legal do DHAA no Brasil e a LOSAN Direitos e obrigaes

aula 6 aula 7 aula 8 aula 9 aula 10 aula 11

Introduo, titulares de direitos, obrigaes dos Estados Diferentes nveis de obrigao dos Estados Responsabilidade de indivduos e outros atores sociais Diferentes dimenses do DHAA Violaes do DHAA Resumo

Ao final deste mdulo voc ser capaz de: 3 Definir e entender o conceito de direitos humanos 3 Identificar os estgios do desenvolvimento histrico dos direitos humanos e do DHAA 3 Conhecer a base legal internacional dos direitos humanos e do DHAA 3 Conhecer a base legal do DHAA no Brasil e a Lei Orgnica de SAN 3 Entender os diferentes nveis de obrigaes do Estado 3 Identificar quem so os titulares de direitos do DHAA 3 Compreender as obrigaes do Estado para a realizao do DHAA 3 Identificar as responsabilidades dos indivduos e de diferentes atores sociais para a realizao do DHAA 3 Compreender as diferentes dimenses do DHAA 3 Identificar as violaes ao DHAA. Este mdulo utiliza parte do contedo do curso de formao a distncia Introduo ao Direito Humano Alimentao Adequada elaborado pela Organizao das Naes Unidas para a Agricultura e a Alimentao (FAO).

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MDulo II

aula 1

o que so direitos humanos?Princpios e alguns atributos bsicos Direitos humanos so aqueles que os seres humanos possuem, nica e exclusivamente, por terem nascido e serem parte da espcie humana. So direitos inalienveis o que significa que no podem ser tirados por outros, nem podem ser cedidos voluntariamente por ningum e independem de legislao nacional, estadual ou municipal especfica. Devem assegurar s pessoas o direito de levar uma vida digna. Isto : com acesso liberdade, igualdade, ao trabalho, terra, sade, moradia, educao, entre outras coisas (1). No entanto, vale tambm ressaltar que a definio de direitos humanos est em constante construo, pois esses direitos foram conquistados a partir de lutas histricas e, por essa razo, correspondem a valores que mudam com o tempo. Eles avanam medida que avana a humanidade, os conhecimentos construdos e a organizao da sociedade e do Estado. Os direitos humanos foram pactuados como direitos inerentes a toda pessoa humana (2) por meio de um longo processo de lutas e conflitos entre grupos, especialmente, entre aqueles detentores do poder e as maiorias sem poder algum. Portanto, tudo o que se refere promoo de direitos humanos est relacionado ao estabelecimento de limites e de regras para o exerccio do poder, seja esse pblico, seja privado, econmico, poltico e mesmo religioso (3)(4). Os instrumentos de direitos humanos, normas, acordos ou declaraes que prevem estes direitos, por terem sido firmados em momentos de grande mobilizao e indignao popular contra os abusos de poder, por parte dos Estados e de grupos hegemnicos, ou depois de grandes catstrofes provocadas por guerras ou disputas que produziram a morte de milhares ou de milhes de pessoas em condies desumanas, so uma conquista da luta dos povos contra a opresso, a discriminao, o uso arbitrrio do poder ou omisses por parte dos detentores do poder. Exemplos disso so a Declarao de Direitos dos Homens e dos Cidados, firmada logo aps a Revoluo Francesa, em 1789; a Constituio dos Estados Unidos da Amrica, promulgada em 1787, 11 anos aps a vitria do povo americano contra o Imprio Britnico; a Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e os Pactos Internacionais de Direitos Humanos, que sero explicados adiante.

Os direitos humanos vida, liberdade, alimentao adequada, sade, terra, gua, ao trabalho, educao, moradia, informao, participao, liberdade e igualdade podem ser citados como alguns exemplos de direitos humanos.

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Princpios que regem os direitos humanos Os direitos humanos so universais, indivisveis, inalienveis, interdependentes e inter-relacionados em sua realizao. os direitos humanos: So universais porque se aplicam a todos os seres humanos, independente do sexo e da orientao sexual, idade, origem tnica, cor da pele, religio, opo poltica, ideologia ou qualquer outra caracterstica pessoal ou social. So indivisveis porque os direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais so todos igualmente necessrios para uma vida digna. Alm disso, a satisfao de um no pode ser usada como justificativa para a no realizao de outros. So interdependentes e inter-relacionados porque a realizao de um requer a garantia do exerccio dos demais. Por exemplo: no h liberdade sem alimentao; no exerce plenamente o direito ao voto aqueles que no tm direito ao trabalho e educao, no h sade sem alimentao adequada e assim por diante. Nesse sentido, a promoo da realizao de qualquer direito humano tem que ser desenvolvida de forma interdependente e inter-relacionada com a promoo de todos os direitos humanos. So inalienveis, ou seja, so direitos intransferveis, inegociveis e indisponveis, o que significa que no podem ser tirados por outros, nem podem ser cedidos voluntariamente por ningum, nem podem ter a sua realizao sujeita a condies. Alm disso, como explicado no Mdulo I, os direitos humanos tm como base os seguintes princpios que devem nortear a sua realizao: a participao e incluso1 a equidade e no-discriminao2 a obrigao de prestar contas (responsabilizao)3 o Estado de Direito4 os direitos humanos so diferentes dos demais direitos por que: 1. Os direitos humanos, pelos atributos a eles descritos na Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948) e reafirmados pela Conferncia de Viena (1993), independem de sua incorporao na legislao nacional (positivao) e, geralmente, so mais abrangentes do que os direitos que conhecemos tradicionalmente, por exemplo, direitos trabalhistas, direitos do consumidor, direito alimentao5, etc.1. Participao e incluso: A participao ativa e informada dos titulares de direitos pode ser descrita como um princpio bsico dos direitos humanos, bem como a necessidade de incluso dos marginalizados nas estratgias para a promoo da realizao dos seus direitos humanos. 2. Equidade e no discriminao: Todos os seres humanos so titulares de direitos humanos. Assim, qualquer tipo de discriminao que mantenha ou promova desigualdades consiste em uma violao de direitos humanos. 3. Obrigao de prestar contas (responsabilizao): Direitos implicam em obrigaes e obrigaes demandam responsabilidade. A responsabilizao de atores cujas aes tm um impacto nos direitos das pessoas um dos princpios fundamentais dos direitos humanos. 4. Estado de Direito: O Estado de Direito tem como pilar o princpio da legalidade. No apenas o indivduo que deve obedecer lei; cabe tambm aos poderes pblicos agir conforme o ordenamento jurdico, o que significa, entre outras coisas, observar os princpios que garantem os direitos humanos. 5. O direito alimentao escolar est previsto na Constituio e sua operacionalizao se d pelo Programa Nacional de Alimentao Escolar. A abordagem deste direito, enquanto direito humano, no entanto, somente comea a ser adotada nos ltimos anos, quando se comea a discutir a necessidade de reconhecimento da diversidade de culturas alimentares (regional, quilombolas, indgenas, etc.), das necessidades alimentares especiais de portadores de doenas especficas (doena celaca, diabetes, hipertenso etc.), entre outras.

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2. Direitos, conforme estabelecidos nas legislaes nacionais, so na maior parte das vezes atribudos a grupos especficos que conquistaram este direito em lei, mas no necessariamente se aplicam a outros grupos e indivduos. Os direitos trabalhistas no Brasil previstos na CLT (Consolidao das Leis Trabalhistas) somente se aplicam aos que tm, ou esto em uma situao em que deveriam ter, carteira de trabalho assinada. Por sua vez, o direito humano ao trabalho estabelece que todo ser humano tem direito a desenvolver atividades laborais por sua prpria e livre escolha, estabelece as obrigaes do Estado no sentido da garantia do pleno emprego (artigo 6 do Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais - PIDESC) e define que todos devem ter remunerao e condies dignas e saudveis de trabalho, sem discriminao de qualquer tipo, inclusive de gnero (artigo 7 do PIDESC). Isto, alm de estabelecer o direito de organizao independente (artigo 8 do PIDESC) e seguridade social e aposentadoria (artigo 9 do PIDESC).

MDulo II

aula 2

Introduo, 4 liberdades, DuDHIntroduo Nos ltimos anos, muitas aes tm sido adotadas para a realizao progressiva dos direitos humanos e do Direito Humano Alimentao Adequada. Esse processo pode ser dividido em trs fases principais:

ANOS 2000 1990 1980 1970 1960 1950 1940

PROMOO E REALIZAO

1) A promoo do reconhecimento dos direitos humanos e do Direito Humano Alimentao Adequada em todo o mundo.

A AMPLIAO DA ABORDAGEM E CONTEDO

2) A ampliao da abordagem e do contedo dos direitos humanos e do Direito Humano Alimentao Adequada.

ADOO

3) Adoo dos direitos humanos e do Direito Humano Alimentao Adequada no direito nacional e internacional (formalizao).

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O Discurso das Quatro Liberdades ARTICULAO E ADOO Anos 40 Em janeiro de 1941, Franklin D. Roosevelt, o ento Presidente dos Estados Unidos da Amrica, falou em seu discurso ao Congresso sobre quatro liberdades bsicas: Liberdade de expresso; Liberdade de culto; Liberdade de no passar necessidade; e Liberdade de no sentir medo. O Presidente explicou que a liberdade de no passar necessidade ser alcanada quando todas as naes garantirem uma vida adequada, para todos, em qualquer parte do mundo. Em 1944, o Presidente Roosevelt argumentou que estamos constatando claramente o fato de que a verdadeira liberdade individual no pode existir sem segurana econmica e independncia. Um homem que sofre privaes no um homem livre. A Declarao Universal dos Direitos Humanos Aps a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), muitos pases abraaram essas quatro liberdades, que foram includas na Declarao universal dos Direitos Humanos (5). A Declarao foi adotada em 10 de dezembro de 1948 pela Assemblia Geral das Naes Unidas (ONU). A Declarao universal, que representa a consolidao de conquistas resultantes da luta dos povos contra a opresso e abusos de poder, foi aprovada num momento que a humanidade ainda se encontrava sob o forte impacto das atrocidades ocorridas durante a II Guerra Mundial. Ela um documento referncia para a promoo e o respeito efetivo dos direitos humanos em todas as partes do mundo. O artigo 2 da Declarao afirma que Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declarao. O artigo 25 afirma que: Todo homem tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem estar, inclusive alimentao.... Artigo 25 1. Todo homem tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos e os servios sociais indispensveis, direito segurana em caso de desemprego, doena, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de subsistncia em circunstncias fora de seu controle. 2. A maternidade e a infncia tm direito a cuidados e assistncia especiais. Todas as crianas, nascidas dentro ou fora do matrimnio, gozaro da mesma proteo social.

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A formulao da Declarao Universal dos Direitos Humanos foi um passo importante para a adoo do DHAA nos instrumentos de direitos humanos. Do ponto de vista jurdico, declaraes no so legalmente vinculantes. Entretanto, so expresso de compromissos polticos e que reforam a obrigao dos Estados em garantir os direitos humanos de todos que esto em seu territrio. lei internacional vinculante e no vinculante As normas jurdicas internacionais so divididas em leis vinculantes e no vinculantes. A lei internacional vinculante inclui tratados que os Estados ratificaram ou com os quais de outra forma se comprometeram, expressamente, por meio de um processo nacional para tal fim. Exemplos so o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais PIDESC e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos - PIDCP. No que diz respeito aos documentos no vinculantes, podemos citar como exemplo as resolues, diretrizes e declaraes, tais como a Declarao Universal dos Direitos Humanos e as Diretrizes Voluntrias em apoio realizao progressiva do direito alimentao adequada no contexto da segurana alimentar nacional (6). O prximo passo foi a formulao e adoo de tratados de direitos humanos. Estes so: o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos - PIDCP (1966) (7); o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais - PIDESC (1966) (8); e vrias outras Convenes adotadas pela ONU e por organizaes regionais. Os instrumentos de direitos humanos, tais como a Declarao Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC) so resultado da preocupao, discusso e elaborao coletiva dos pases. Ou seja, a violao ou realizao de direitos deixa de ser algo de interesse meramente nacional e passa a ser objeto de considerao de toda a sociedade internacional. Esse o reconhecimento poltico, em mbito internacional, de que os poderes pblicos tm a obrigao de realizar direitos humanos e no podem viol-los. Da mesma forma, os demais atores sociais, inclusive indivduos, tm a responsabilidade de no violar e de promover a realizao de direitos humanos. Todos, sem exceo, esto sob a orientao de normas que tm como valor mximo o respeito aos seres humanos, no importando a nacionalidade ou as caractersticas individuais que os diferenciem. Cada pas, ao firmar os tratados internacionais de direitos humanos, reconhece sua obrigao de elaborar leis, polticas pblicas e realizar aes, de qualquer natureza, que promovam a equidade e reduzam, progressivamente, as desigualdades, tanto em mbito nacional como internacional. Alm disso, se compromete a no tomar qualquer medida que seja uma ameaa ou violao aos direitos humanos e de garantir mecanismos de proteo desses direitos.

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Direitos Humanos Civis e Polticos e Direitos Humanos Econmicos, Sociais e Culturais A Guerra Fria acabou separando de forma artificial os direitos humanos em direitos civis e polticos (direito humano vida, liberdade, a no sofrer tortura, ao voto, dentre outros), ento defendidos como prioritrios pelo mundo ocidental, sob a liderana dos Estados Unidos, e os direitos econmicos, sociais e culturais (Direito Humano Alimentao Adequada, o direito humano moradia, ao trabalho, sade, educao, etc.), defendidos como prioritrios pelos pases do bloco socialista, sob a liderana da Unio Sovitica e pelos pases em desenvolvimento. Isso resultou, em 1966, na diviso dos direitos humanos nos dois pactos internacionais citados acima (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Polticos (PIDCP) (7) e o Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC) (8), quando o desejvel seria a elaborao de um nico pacto. Com o final da Guerra Fria e o crescimento do movimento internacional pelos direitos humanos, a Conferncia Internacional de Direitos Humanos de Viena, realizada em 1993, retoma os princpios bsicos da Declarao Universal e de outros instrumentos internacionais de proteo de direitos, sendo, na ocasio, reafirmado que os direitos humanos so universais, indivisveis, inalienveis, interdependentes e inter-relacionados em sua realizao.

MDulo II

aula 3

tratados e outros instrumentos internacionais de direitos humanosO Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais A elaborao do Pacto Internacional dos Direitos econmicos, Sociais e Culturais (PIDESC) foi iniciada em 1951 e o instrumento foi adotado pela Assemblia Geral da ONU em 1966. O artigo 11 do Pacto reconhece o direito de todos a um padro de vida adequado () inclusive alimentao adequada e o direito fundamental de todos de estar livre da fome. Tambm define o que necessrio para alcanar a realizao do Direito Humano Alimentao Adequada. Subseqentemente, um determinado nmero de Estados foi necessrio para que o Pacto fosse ratificado por meio de um processo nacional. Isso ocorreu dez anos mais tarde, em 1976. Com a ratificao, um Estado passa a ser denominado Estado Parte, com obrigaes de: adotar medidas para a realizao progressiva dos direitos contidos no PIDESC; e informar periodicamente s Naes Unidas o progresso obtido na realizao progressiva dos direitos previstos no Pacto. At setembro de 2008, 159 Estados haviam ratificado o Pacto (9).

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O Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais

1980 1970 1960 1950 1940

RATIFICAO E AMPLIAO DA ABORDAGEM E CONTEDO

ARTICULAO E ADOO

Outros Documentos Internacionais e Convenes da ONU No transcorrer do tempo, outros documentos internacionais e Convenes da ONU foram ratificados, incorporando aspectos relativos ao Direito Humano Alimentao Adequada.