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DIREITOS FUNDAMENTAIS: DELIMITAÇÕES DA SUA INFLUÊNCIA NO
DIREITO PRIVADO
Jaqueline Hamester Dick1
Desde a concepção do Estado, o homem já clamava pela proteção a direitos
que considerava fundamentais2. No início, direito à liberdade e à igualdade,
posteriormente os direitos sociais.
As Constituições trataram, progressivamente, de positivar os principais anseios
do homem, considerados como fundamento basilar da sua dignidade. Assim,
aqueles considerados como direitos básicos, protegidos pela Declaração de Direitos
do Homem de 1789, bem como os demais direitos humanos declarados em
1 Advogada, Mestre em Direito pela UNISC, professora de cursos de Especialização da UNISC e da
UCS de Caxias do Sul, pesquisadora-membro do Grupo de Pesquisa: “A Constitucionalização do Direito Privado”. 2 Para fins do presente trabalho, importa a distinção utilizada entre direitos do homem e direitos
fundamentais, segundo as conclusões dos componentes do Grupo de Pesquisa Constitucionalização do Direito Privado, coordenado pelo professor Jorge Renato dos Reis, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado da Universidade de Santa Cruz do Sul, RS, nos seguintes termos: “direitos do homem são aqueles previstos em tratados e normas supra-nacionais e direitos fundamentais são direitos do homem positivados constitucionalmente”. Neste sentido: PEREZ LÛNO, Antonio E. Los derechos fundamentales. Madrid: Tecnos, 1993, p. 44, apud GARCIA, Maria. Mas quais são os direitos fundamentais? In: ______ (Org.). Revista de direito constitucional e internacional. n. 39, ano 10. São Paulo, abr./jun. de 2002, p. 115, [...]”ressaltando a tendência doutrinária e normativa de reservar o termo direitos fundamentais para designar los derechos positivados a nível interno e direitos humanos, a expressão mais própria a denominar los derechos naturales positivados em lãs declaraciones y convenciones internacionales, así como aquelas exigências básicas relacioandas com la dignidad, libertad y igualdad de la persona que no ha alcanzado um estatuto jurídico positivo.” ANDRADE, 2004, p. 32: “poderíamos convencionar que a expressão direitos fundamentais, sem deixar de ser um super-conceito, designaria em sentido estrito os direitos constitucionalmente protegidos; à perspectiva internacionalista atribuir-se-iam o termo de direitos do homem, ou, melhor ainda, o de direitos humanos e guardar-se-iam as fórmulas direitos naturais, direitos originários, e em geral as que transportam uma carga afectiva (direitos imprescritíveis, inalienáveis, invioláveis) para dimensão filosófica.”
2
Tratados e Convenções Internacionais, foram inseridos nas Cartas Constitucionais
de quase todas as nações de origem cristã, e, portanto, conduzidos ao patamar de
direitos fundamentais do homem.
A transformação histórica experimentada nos últimos tempos, relativamente à
modificação do paradigma liberal para a proteção social, modificou a própria
concepção de direitos fundamentais, tornando-os a base vital de realização dos
novos anseios socializantes.
Na atualidade, os direitos fundamentais são dotados de tal importância, que se
atribui aos mesmos a condição de núcleo do direito constitucional. Assim,
considerando a força normativa da Constituição, os direitos fundamentais irradiam-
se por todo o ordenamento jurídico.
Neste sentido, é objeto do presente capítulo traçar algumas delimitações da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, iniciando-se pela exposição
da expressividade que os direitos fundamentais têm no sistema jurídico atual.
1 A força expansiva dos direitos fundamentais
A Constituição possui, na atualidade, como é notório, verdadeira força
normativa e, portanto, figura no ponto mais alto da pirâmide do sistema. Como eixo
central e fonte de valoração que norteia a Constituição, estão os direitos
fundamentais.
Estes constituem a essência do Estado democrático3 e verdadeiro núcleo da
Constituição material. E, por esta razão, os direitos fundamentais têm caracterização
3 SARLET, Ingo Wolgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 70: Os direitos fundamentais, como resultado da personalização e positivação constitucional de determinados valores básicos (daí o seu conteúdo axiológico), integram, ao lado dos princípios estruturais e organizacionais (e assim denominada parte orgânica ou organizatória da Constituição), a substância propriamente dita, o núcleo substancial, formado pelas decisões fundamentais, da ordem normativa, revelando que mesmo num Estado constitucional democrático se
3
especial, ligada a fundamentos distintos como: historicidade, inalienabilidade,
imprescritibilidade e irrenunciabilidade.
Os direitos fundamentais, como qualquer direito, são históricos. Nascem, e se
modificam. A ascensão ocorreu com a revolução burguesa-liberal, tendo estes
evoluído no decorrer dos tempos e, portanto, não são estanques, mas têm a
característica de se adaptar aos anseios sociais de cada época.
São direitos intransferíveis e inalienáveis, porque não são de conteúdo
econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se
pode desfazer, pois são indisponíveis.
Consideram-se também imprescritíveis, ante a premissa de que o exercício de
boa parte dos direitos fundamentais ocorre só pelo fato de estarem reconhecidos na
ordem jurídica. Em relação a eles não se verificam requisitos que importem em sua
prescrição, porque esta somente atinge a exigibilidade dos direitos patrimoniais, não
a exigibilidade de direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o
caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não
exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição. Vale dizer,
assim, que nunca deixam de ser exigíveis.
São também irrenunciáveis in abstrato. Alguns deles podem até não ser
exercidos, mas não se admite que sejam renunciados hipoteticamente.4 Assim,
pode-se dizer que os direitos fundamentais, enquanto normas-valores insertas na
Constituição, exercem função irradiativa em todo o sistema normativo.5
tornam necessárias (necessidade que se fez sentir mais contundente no período que sucedeu a Segunda Grande Guerra) certas vinculações de cunho material para fazer frente aos espectros da ditadura e do totalitarismo.” 4 A possibilidade de renúncia dos direitos fundamentais in concreto será abordada no terceiro
capitulo.
5 UBILLOS, Juan Maria Bilbao. Em qué medida vinculam a los particulares los derechos
fundamentales. In: SARLET, Ivo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 306: El protagonismo o el êxito de los drechos fundamentales em la cultura jurídica actual radica en que lãs normas que los reconcem son de
4
aplicación directa e inmedata, pero tienen um contenido principal, um sustrato um abierto, por lo que tiendem a expandirse, a penetrar y rellenar impetuosamente todos los interstícios del ordenamento”.
5
Na conjuntura atual, os direitos fundamentais são garantias destinadas a todos
os cidadãos e, para assegurar a sua realização, as normas que os tutelam são
consideradas verdadeiras normas condutas de observância obrigatória, seja frente
ao Estado, seja frente aos particulares. Nas palavras de Steinmetz, os direitos
fundamentais compõe uma “categoria especial de direitos”,6 porque na condição de
direitos de defesa, são efetivos limites aos poderes públicos.
Em épocas passadas, quando o poder público era o único a ser controlado, a
plena eficácia dos direitos fundamentais vigentes limitava-se a conter a imposição de
regras provenientes do poder público. No contexto atual, “é um equívoco elementar,
próprio do liberalismo míope e dogmático associar o poder exclusivamente ao
Estado, como se o Estado tivesse o monopólio do poder ou fosse a única expressão
material e espiritual do poder”.7
A própria idéia de poder, antes ligada unicamente ao Estado, sofre rupturas. A
partir do momento em que se percebe a desigualdade material dos indivíduos,
admite-se que o poder pode ser exercido também na esfera privada, mediante a
imposição de vontade de um particular sobre o outro.
Assim, a plena efetividade dos direitos fundamentais prescinde do efetivo
controle e limitação de todos os tipos de poderes, sejam aqueles provenientes da
esfera pública ou da particular. A força expansiva atribuída aos direitos fundamentais
vai além de limitar os poderes públicos, pois estão estes aptos a limitar qualquer tipo
de poder, seja emanado do ente público ou particular.
6 STEINMETZ. Vilson. A Vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros,
2004, p. 83.
7 Ibid., p. 85.
6
1.1 Contextualização dos direitos fundamentais na Constituição Federal
As garantias constitucionais consistem nas instituições, determinações e
procedimentos mediante os quais a própria Constituição tutela a observância ou, em
caso de inobservância, a reintegração dos direitos fundamentais.
A Constituição da República Federal Brasileira destinou um título próprio aos
direitos e garantias fundamentais8, protegendo, expressamente, no artigo 5º a vida,
igualdade, liberdade, a segurança e a propriedade, dos quais extrai-se uma gama
enorme de direitos previstos nos setenta e sete incisos do artigo 5º, todos
destinados a garantir os direitos básicos previstos no caput do artigo.
O título II, que trata dos direitos fundamentais, elenca, também, os direitos
sociais, como a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos
desamparados. E traz ainda um extensivo rol de direitos assegurados aos
trabalhadores (artigo 7º) e direitos políticos (artigos 14 a 16).
8 MORAES, 2005, p. 25, classifica os direitos fundamentais na Constituição de 1988 da seguinte
forma: a) direitos individuais: ligados ao conceito de pessoa humana, como a vida, dignidade, honra e liberdade; b)direitos sociais: liberdades positivas que vinculam o Estado; c) direitos de nacionalidade: vínculo jurídico que liga um indivíduo a um certo Estado; d) direitos políticos: direitos políticos subjetivos que disciplinam as formas de atuação estatal; e) direitos relacionados à existência, organização e participação em partidos políticos: destinado a regulamentar a atuação partidária, enquanto instrumento da democracia.
7
À primeira vista, pelo extenso rol de direitos previstos no Título II da
Constituição Brasileira, parece que os direitos fundamentais estariam de maneira
exaustiva lá elencados. Não é, entretanto, o que se extrai da leitura do § 2º do artigo
5º, que admite a existência de direitos fundamentais decorrentes de princípios
insertos na Constituição ou de tratados internacionais de que o Brasil seja signatário.
Daí se extrai que o rol de direitos previstos no Título II da Carta Constitucional
não é exaustivo, pois além de admitir outros direitos previstos na própria
constituição9, inclusive na forma de princípios, consagra também como direitos
fundamentais àqueles previstos por tratados internacionais.10 Assim, o fato de serem
“garantias pontuais” reunidos em um catálogo, não lhes confere a possibilidade de
serem compreendidos como “sem lacunas”11. Isto decorre da premissa, aceita pelo
legislador constituinte brasileiro, de que os direitos considerados fundamentais estão
em constante transformação.
9 SARLET, 2004, p. 6: “Por derradeiro, também no nosso direito constitucional positivo não como há
como sustentar a idéia de um sistema distinto, no sentido de autônomo (independente) em relação ao restante do texto constitucional, seja no que concerne aos princípios fundamentais (dos quais podem ser deduzidos direitos fundamentais não-escritos), seja no que concerne a parte não-organizacional, bem como em relação às ordens econômica e social, nas quais, aliás, se encontra sediada a maior parte dos direitos fundamentais fora do catálogo”.
10 A Constituição ao expressamente mencionar que o catalogo de direitos fundamentais não é
exaustivo, admite a permanente transformação dos preceitos fundamentais, em razão da própria evolução das relações sociais.
11 HESSE, 1998, p. 244.
8
Fica claro, assim, o caráter materialmente aberto das normas de Direitos
Fundamentais, admitindo-se, inclusive, a existência de direitos fundamentais não
positivados12, mas que estejam implicitamente consagrados no texto constitucional,
e via de regra, derivem de outros direitos expressamente positivados13.
Se por um lado, o legislador constituinte ressalvou a inclusão de outros Direitos
ao rol de fundamentais, impossibilitou a exclusão daqueles já positivados, consoante
determinação do inciso IV do § 4º do artigo 60 da Constituição Federal.
Os Direitos Fundamentais insertos na Constituição Brasileira assumem a
condição de cláusulas pétreas, quando impõe ao legislador reformista verdadeiros
limites materiais. Ao assumir tal condição, percebe-se que os direitos fundamentais
representam mais do que direitos escritos, mas verdadeiros valores diretamente
ligados à identidade da Constituição.
A prova da intima relação entre limites materiais à reforma constitucional e a identidade da Constituição reside no fato de que, de regra, os princípios fundamentais, os direitos fundamentais, bem como a reforma do Estado e do governo se encontram sob o manto desta especial proteção contra sua alteração e esvaziamento por parte do Poder Constituinte Reformador, o que também decorre da nossa atual constituição.
14
12
SARLET, 2004, p. 100: “[...] já podemos sustentar a existência de dois grandes grupos de direitos fundamentais, notadamente os direitos expressamente positivados (ou escritos), no sentido de expressamente positivados, e os direitos fundamentais não escritos, aqui genericamente considerados aqueles que não foram objeto de previsão expressa pelo direito positivo (constitucional ou internacional).
13 Em que pese a aceitação pela doutrina de direitos fundamentais não positivados, no presente
estudo parte-se do pressuposto de que os direitos fundamentais são aqueles expressamente consagrados na Constituição. Assim, a interpretação que se ousa fazer de tais afirmações reside no sentido de que, eventuais direitos considerados fundamentais que não estejam expressamente positivados, devem ter como pressuposto um direito fundamental positivado. Neste contexto, admite-se como direitos fundamentais não positivados aqueles que visem proteger a liberdade, igualdade, à vida digna, enfim, que tenham como base a proteção final de um direito fundamental expressamente consagrado na Carta Maior. Tal interpretação, ao mesmo tempo que, não nega a própria definição de direitos fundamentais - como os direitos do homem positivados constitucionalmente – está em perfeita harmonia com a caracterização moderna dos direitos fundamentais, no que se refere à necessária evolução dos mesmos para adequar-se as transformações e necessidades sociais.
14 SARLET, 2004, p.382.
9
A caracterização dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, talvez
tenha maior importância do que o próprio rol de direitos nela elencados. Isto porque,
o legislador, ao mesmo tempo que, de maneira especifica, define quais são os
direitos fundamentais, admite que outros direitos sejam elevados a tal condição, e se
assim o forem são regras de natureza absolutamente rígida, ante a impossibilidade
de absorção.
Entretanto, no âmbito da efetividade dos direitos fundamentais, o legislador
constituinte estabeleceu que as normas definidoras dos direitos e garantias
fundamentais têm aplicação imediata. Tal regramento, sem dúvida, tem suscitado
inúmeras divergências de posicionamento doutrinário e jurisprudencial, já que a
aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais requer algumas
definições preliminares, quais sejam: a) a efetiva aplicação dos direitos
fundamentais independe de regulamentação em todas as situações? b) os direitos
fundamentais vinculam ou não os particulares? c) os direitos fundamentais que
exigem uma autuação positiva do Estado ou do particular e podem ser sempre a
estes opostos?
Essas questões, meramente exemplificativas, deixam evidente que a
aplicabilidade imediata das normas de direitos fundamentais não é questão tão
simplória como colocada pelo legislador e, portanto, merece cuidadosa construção
doutrinária.
10
1.2 Dimensões jurídicas subjetivas e objetivas dos direitos fundamentais15
Segundo Canotilho, o fundamento subjetivo das normas de direito fundamental
refere-se ao “significado ou relevância da norma consagradora de um direito
fundamental para o indivíduo” e o fundamento objetivo tem em vista “o seu
significado para coletividade, para o interesse público e para a vida comunitária.”16
É consenso doutrinário que os direitos fundamentais são subjetivos, porque se
destinam à proteção do cidadão, “embora em certos aspectos eles possam ser
directamente encabeçados por pessoas colectivas privadas ou organizações
sociais.”17 São direitos subjetivos porque conferem ao indivíduo garantia de defesa
contra o Estado, e também a exigibilidade da atuação positiva deste para garantia
das liberdades.18
Se, por um lado, os direitos fundamentais são garantias aos particulares (plano
subjetivo), é verdadeiro que tais garantias surtem efeitos em um outro plano
(objetivo). Nas palavras de Andrade, “é precisamente a esses restantes efeitos, a
essa mais valia jurídica que se pode dar o nome de dimensão objetiva, que se
manifesta, quer em sentido valorativo ou funcional, quer em sentido estrutural.”19
A perspectiva objetiva dos direitos fundamentais tem função “axiologicamente
vinculada”20, visto que o exercício dos direitos subjetivos depende do
reconhecimento pela coletividade da existência do referido direito.
15
O tema ora proposto pela complexidade que representa, demandaria profundo estudo. Entretanto, a abordagem proposta no presente trabalho tem como finalidade precípua diferenciar as dimensões subjetivas e objetivas para a compreensão da caracterização geral dos direitos fundamentais.
16 CANOTILHO, 2000, p. 1216.
17 ANDRADE, 2004, p. 133, passim.
18 HESSE, 1998, p. 235-238.
19 ANDRADE, 2004, p. 142.
20 SARLET, 2004, p. 155.
11
Neste sentido, o reconhecimento no plano subjetivo dos direitos fundamentais
como direitos de defesa, requer a aceitação, no plano objetivo de restrições à
atuação estatal.21
Da concepção da dimensão objetiva dos direitos fundamentais resulta a idéia
de deveres fundamentais22, que acabam por fundamentar a limitação dos direitos
fundamentais em geral, especialmente concernentes à liberdade.
Percebe-se a dupla dimensão dos direitos fundamentais, já que do exercício de
um direito (no plano subjetivo) irradiam efeitos de oponibilidade aos demais sujeitos
– Estado ou particulares – evidenciando-se a esfera objetiva dos direitos
fundamentais.
Observa-se, portanto, que a dificuldade, em muitas situações, da eficácia
imediata das normas de direitos fundamentais, provem dos efeitos que tal aplicação
trará para a comunidade em geral. Aliás, se por um lado andou muito bem a
Constituição ao estabelecer um rol extenso de princípios de proteção à dignidade
humana, por outro, deixou de indicar instrumentos capazes de garantir tal
observância, ante a premissa de que o direito de um, requer uma atuação positiva
ou negativa de outrem, e deste “dever-jurídico” nem sempre cuidou o legislador de
tutelar.
2 O problema da eficácia dos direitos fundamentais frente aos particulares
A efetividade das normas constitucionais ao longo dos anos, evoluiu
juntamente com os sistemas políticos dos Estados soberanos, superando, no
21
HESSE, 1998, p. 239.
22A Constituição Federal Brasileira estabelece no inciso II, artigo 5º que ninguém será obrigado a
fazer alguma coisa, senão em virtude da lei. Parte-se assim, da premissa de que os deveres fundamentais, não partem unicamente dos direitos fundamentais, já que exigem imposição legal para sua observância. Nisso reside a discussão acerca da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, enquanto que em inúmeras situações a observância e respeito de um direito fundamental de uma particular, demanda do outro um dever, que nem sempre encontra-se na lei.
12
decorrer dos tempos, a fase do constitucionalismo meramente formal e abstrato,
evoluindo para um constitucionalismo material e histórico.
Neste sentido, o legislador brasileiro, ao tratar do tema direitos fundamentais e
em decorrência da relevância da matéria frente à sociedade, concedeu a estes
direitos de plena operatividade, consagrando de maneira expressa, a “aplicabilidade
imediata” das normas de direitos fundamentais, nos termos do artigo 5º, § 1º, da
Constituição Federal de 1988.
Como antes mencionado, a questão não é simplória como posta pelo
legislador; ao contrário, é tema extremamente controvertido na doutrina e de difícil
solução prática, ante aos efeitos que impõe ao Estado e, não poucas vezes, aos
particulares.
Para melhor compreensão da questão, convém enunciar os pressupostos da
norma, para que esta possa produzir efeitos no mundo jurídico, e fazer algumas
distinções terminológicas acerca da existência, validade, vigência, eficácia jurídica a
social (efetividade) da norma.
A existência da norma pressupõe uma manifestação no mundo dos fatos, a
ocorrência dos elementos constitutivos, quais sejam: agente, forma, e objeto.23 A
partir do momento em que a norma ingressa no plano da existência, passa a se
sujeitar a um segundo requisito: o da validade24.
Para Barroso, a validade da norma está condicionada aos requisitos de
competência, forma adequada e licitude, elementos estes que não interferem na
existência da norma, segundo conclui Sarlet, pois a norma pode ter ingressado na
ordem jurídica, independentemente de sua validade.25
23
BARROSO, 2003, p. 82.
24 BARROSO, op. cit., p. 83: “[...] uma lei que contraria a Constituição, por vício formal ou material,
não é inexistente” 25 SARLET, 2004, p. 227.
13
A norma existente e válida é, então, norma dotada de vigência, já que em
virtude de tais circunstâncias (existência e validade) torna-se de “observância
obrigatória”, constituindo pressuposto da eficácia, “na medida em que apenas a
norma vigente pode ser eficaz”.26
Para Kelsen, norma válida é aquela que, num contexto geral, é eficaz.
Entretanto, a norma não perde a sua validade “pelo fato de uma norma jurídica
singular perder a sua eficácia, isto é, pelo fato dela não ser aplicada em geral, ou em
casos isolados”27. Não é, no entanto, válida a norma jurídica que nunca for ou que
deixar de ser aplicada.
Kelsen não atribui à validade e à eficácia a mesma condição, mas sim situação
de complementaridade - somente a norma válida pode ser eficaz, mas nem sempre
a norma válida será dotada de integral e permanente eficácia. A eficácia28 diz
respeito à aplicabilidade. Segundo Barroso, “a eficácia dos atos jurídicos consiste na
sua aptidão para produção de efeitos, para irradiação das conseqüências que lhe
são próprias”29.
Percebe-se que o conceito delineado por Barroso consiste na condição da
norma de gerar os efeitos – plano formal – e não na necessária configuração prática
destes efeitos – plano material. Por esta razão, a doutrina tratou a eficácia em dois
planos distintos: eficácia jurídica e eficácia social da norma, também denominada de
efetividade, as quais Silva distingue:
26
SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 42.
27 KELSEN, 2000, p. 237.
28 Segundo DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus efeitos. 5. ed. São Paulo: Saraiva,
2001, p. 30: “A eficácia vem a ser a qualidade do texto normativo vigente de produzir, ou irradiar, no seio da coletividade, efeitos jurídicos concretos, supondo, portanto, não só a questão de sua condição técnica de aplicação, observância, ou não, pelas pessoas a quem se dirige, mas também de sua adequação em face da realidade social, por ele disciplinada e aos valores vigentes na sociedade, o que conduziria ao seu sucesso.”
29 BARROSO, 2003, p. 83: “A eficácia dos atos jurídicos consiste na sua aptidão para produção de
efeitos, para irradiação das conseqüências que lhe são próprias.”
14
Eficácia é a capacidade de atingir os objetivos previamente fixados como metas. Tratando-se de normas jurídicas, a eficácia consiste na capacidade de traduzir os objetivos nela traduzidos, que vêm a ser em última análise, realizar os ditames jurídicos objetivados pelo legislador. Por isso é que se diz que a eficácia jurídica da norma designa a qualidade de produzir; em maior ou menor grau, efeitos jurídicos, ao regular, desde logo, as situações, relações e comportamentos de que se cogita; nesse sentido a eficácia diz respeito à aplicabilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, como possibilidade de sua aplicação jurídica. O alcance dos objetivos da norma constitui a efetividade. Esta é, portanto, a medida de extensão em que o objetivo é alcançado, relacionando-se ao produto final objetivado pela norma se consubstancia no produto social que ela pretende, enquanto a eficácia a jurídica é apenas a possibilidade de que isso venha a
acontecer.30
O caráter efetivo da norma jurídica tem força normativa em toda a sua
integridade, partes e conteúdos, inclusive em suas implicitudes.
Feitas estas considerações preliminares, sem, contudo, tentar exaurir as
distinções e definições existentes, delimitar-se-á o objeto do presente estudo na
extensão eficacial das normas de direitos fundamentais frente aos particulares.
Neste aspecto, convém mencionar que, inicialmente, houve a negação da
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, sob o argumento de que
estes representavam, exclusivamente, direitos de defesa do cidadão perante o
Estado.31 De tal forma, não poderiam os particulares invocar a Constituição na
defesa de seus direitos perante outros particulares, mas tão somente as normas de
direito privado.
Entretanto, por todas as razões que caracterizam a evolução do sistema liberal
para o social, acabaram por derrubar os argumentos contrários à eficácia das
normas de direitos fundamentais nas relações privadas. Na Europa, tal concepção
foi construída pelas Cortes Constitucionais que, em decisões inéditas, acabaram
reconhecendo a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
30 SILVA, 2001, p. 66. 31
Conforme SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 226: A negação da eficácia dos direitos fundamentais frente aos particulares retrata a concepção liberalistas e teve como defensores Mangoldt e Ermst Forsthoff.
15
Hoje é possível dizer que a Teoria da negação absoluta da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais encontra-se absolutamente superada. A
discussão hoje existente diz respeito aos limites e efeitos da eficácia de tais normas
frente aos particulares, sendo defensáveis as teorias da “Eficácia Mediata ou
Indireta” e da “Eficácia Imediata ou Direta” dos Direitos Fundamentais, além de
outras teorias alternativas baseadas nos “deveres de proteção”.
2.1 Teoria da Eficácia Mediata32 ou Indireta dos Direitos Fundamentais
A teoria da eficácia mediata ou indireta tem como referência Günther Dürig, e
como principiais defensores os doutrinadores alemães. Segundo Dürig a “proteção
constitucional da autonomia privada pressupõe a possibilidade dos indivíduos
renunciarem a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.”33 A
vinculação deve ocorrer em virtude do acolhimento pelo legislador dos direitos
fundamentais na ordem privada, através de cláusulas gerais. A teoria tem como
pressuposto condicionar “la operatividad de los derechos fundamentales em el
campo de las relaciones privadas a la mediación de um organo del Estado.”34
Isto porque os direitos fundamentais “não se destinam a solver diretamente
conflitos de direito privado, devendo a sua aplicação realizar-se mediante os meios
colocados à disposição pelo próprio sistema jurídico”35, o que condiciona a aplicação
das regras de direitos fundamentais a uma atividade legislativa.
32
É difundido o termo Mittelbare Drittwirkung, trazido para o direito brasileiro do direito alemão, que inegavelmente influenciou as teorias existentes sobre a vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, e, com muita ênfase, a doutrina brasileira.
33 DÜRIG, Günter. “Grundrechte und Zivilrechtsprechung”, en MAUZ, Theodor (Hrsg.) Von, en
Festschrift für Hans Nawiaski. München: Beck, 1956, p. 157/190, apud SARMENTO, 2004, p. 238. 34
UBILLOS, 2003, p. 309.
35 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de
direito constitucional. 3.d. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 125.
16
A teoria da eficácia mediata tem alguns contornos bem delimitados
doutrinariamente.36 A primeira característica parte da idéia de que os direitos
fundamentais produzem efeitos nas relações particulares, mediante a aplicação de
parâmetros hermenêuticos próprios do direito privado. Assim, a aplicação dos
direitos fundamentais ocorre mediatamente, via regra interpretativa de direito
privado.
O segundo pressuposto é que a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas condiciona-se à mediação concretizadora do legislador em
primeiro plano, e dos juizes em segundo plano. Ou seja, não ocorre de maneira
direta, mas exige uma atividade mediadora dos poderes incumbidos de criar a
aplicar o direito.
Ainda, Steimetz elenca como atributo da teoria da eficácia mediata, a função do
legislador de criar regulamentações normativas específicas que delimitem o
conteúdo, as condições do exercício dos direitos fundamentais.
Por fim, no caso de ausência deste instrumento legislativo, cabe ao juiz dar
eficácia aos direitos fundamentais, por meio da atividade interpretativa, ou seja,
aplicação dos direitos fundamentais, mediante a interpretação das normas de direito
privado, especialmente as cláusulas gerais, como boa-fé, bons costumes, etc.
Segundo esta teoria, os direitos fundamentais nas relações privadas não
incidem de maneira direta, mas constituem um sistema de valores utilizado para
interpretação das normas de direitos fundamentais. Sem dúvida, a lei é o
instrumento mais apropriado para delimitar a influência dos direitos fundamentais
nas relações privadas, inclusive, para minimizar o conflito de direitos.
Hesse, um dos principais expoentes da teoria da eficácia mediata, explica que
a incidência direta das regras protetivas de direitos fundamentais nas relações
36
STEINMETZ, 2004, p. 139.
17
privadas pode significar um prejuízo à liberdade de um particular, em face da
proteção concedida, diante dele, a outro particular.37
Neste sentido, a submissão dos sujeitos privados aos mesmos vínculos e na
mesma extensão a que está submetido o Estado, poderia significar a transformação
de direitos em deveres.38 Em muitas situações, a observância do direito fundamental
de um particular impõe ao outro uma obrigação negativa, restritiva de liberdade, ou
até uma obrigação positiva, caso a teoria da eficácia imediata seja aplicada também
em relação aos direitos sociais.
É dever do Estado proteger os particulares contra a violação de direitos
fundamentais de outros particulares, mas defensável é que tal proteção deve ocorrer
via direito privado.
Com ênfase em tal idéia, defendem os expositores da teoria da eficácia
mediata que a vinculação imediata e direta das regras de direitos fundamentais nas
relações privadas teria como decorrência lógica a supressão de todos os
pressupostos da teoria da eficácia mediata antes expostos, sintetizados na
intervenção legislativa e interpretativa para aplicação das regras de direitos
fundamentais nas relações privadas. Seguindo esta lógica, seria absolutamente
desnecessária a implementação dos direitos fundamentais no sistema de regras de
direito privado, visto que se aplicaria diretamente a Constituição, afirmando-se,
inclusive, que a aplicação da doutrina da eficácia imediata “poderia destruir tanto o
37
HESSE, 1998, p. 285, “os direitos fundamentais em geral não podem vincular diretamente os particulares. Ter em conta sua influência sobre o direito privado como parte da ordem jurídica total é, com vista à problemática exposta, em primeiro lugar, tarefa do legislador de direito privado – vinculado aos direitos fundamentais – a quem cabe, em suas regulações, concretizar o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais, em especial, demarcar reciprocamente posições de privados afiançadas jurídico-fundamentalmente. Os tribunais não devem corrigir as decisões e ponderações do legislador em intervenção sobre direitos fundamentais ou com apoio em suas próprias ponderações.”
38 ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações entre
particulares. In: SARLET, Ingo Wolgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 276.
18
direito contratual quanto também o direito extracontratual, pois ambos seriam, em
larga escala, substituídos pelo direito constitucional”39.
Assim, defendem os expoentes da Teoria da Eficácia Mediata que os direitos
fundamentais devem ser considerados “na concretização das cláusulas gerais
juscivilistas,”40 já que não vinculam, por si só, os particulares, ante a impossibilidade
de aplicação direta.
É competência do legislador proteger os direitos fundamentais nas relações
privadas, sem desvincular-se do princípio da autonomia privada. Deve este
“proceder uma ponderação de interesses constitucionais em conflito, no qual lhe é
concedida certa liberdade para acomodar os valores contrastantes, em
consonância com a consciência social de cada época”41.
É função originária do legislador resguardar os direitos fundamentais frente à
violação de terceiros, mediante edição de normas que impeçam os abusos sociais e
econômicos, na seara do direito privado.42
No entanto, seria irreal crer que o legislador poderia prever todas as situações,
esgotando, no âmbito privado, a matéria atinente a proteção das garantias
fundamentais, sendo imprescindível, em um segundo plano, a atuação do Poder
Judiciário.
A este caberia preencher as lacunas deixadas pelo legislador, e rejeitar, por
inconstitucionalidade, as normas incompatíveis com os direitos fundamentais.
Mesmo assim, não se estaria admitindo a eficácia direta ou imediata das normas de
direitos fundamentais nas relações privadas. Ao contrário, o juiz, utilizando-se de
39
CANARIS, Claus Wilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. Tradução de Peter Naumann. In: SARLET, Ingo Wolganf (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 235.
40 Ibid., p. 236. 41
SARMENTO, 2004, p. 241.
42 VALE, André Rufino: Eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2005, p. 141.
19
cláusulas gerais próprias do direito privado, interpreta a questão em consonância
com a Constituição.
Os direitos fundamentais apenas tratam de preencher o conteúdo das
cláusulas gerais e dos conceitos jurídicos indeterminados, os quais são criados pelo
legislador privado, para permitir a ponderação diante do caso concreto.
Para a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais somente poderiam
ser aplicados no âmbito das relações entre particulares “após um processo de
transmutação, caracterizado pela aplicação, interpretação e integração das
cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados do direito privado, à luz dos direitos
fundamentais”43.
Assim, é indispensável à aplicação dos direitos fundamentais nas relações
privadas, o processo de mediação, pela atividade legislativa e, num segundo
momento, pela atuação do Poder Judiciário. De acordo com os mananciais teóricos
que fundamentam a teoria da eficácia mediata, os direitos fundamentais não
vinculam diretamente os particulares, mas têm sua eficácia condicionada à
mediação legislativa e interpretativa.
43
SARLET, 2004, p. 366.
20
2.2 A Teoria da Eficácia Imediata44 ou Direta dos Direitos Fundamentais
Assim como a Teoria da Eficácia Mediata, também a Teoria da Eficácia
Imediata teve seus pressupostos teóricos construídos por um alemão, Nipperdey45.
Segundo ele, os direitos fundamentais não somente são aplicados diretamente
nas relações privadas, como têm o efeito de modificar as normas de direito privado
existentes46, independentemente de serem elas cláusulas gerais, ou determinadas.
Assim, a aplicação direta dos direitos fundamentais implica a
inconstitucionalidade de todas as leis contrárias à Constituição. Isto porque a
constituição, como fonte normativa, e em face do princípio da unicidade jurídica, não
poderia ser violada por norma de direito privado devendo, o caso concreto ser
interpretado em estrita consonância com os ditames das regras de direitos
fundamentais.
Os direitos fundamentais têm oponibilidade erga omnes e “podem ser
invocados diretamente nas relações privadas, independentemente de qualquer
mediação por parte do legislador”.47 Tal concepção provêm da idéia de proteção
máxima aos direitos fundamentais, os quais, portanto, devem ser resguardados,
inclusive, frente aos demais particulares.
44
A teoria da eficácia imediata é conhecida no direito alemão como Unmittelbare Drittwirkung.
45 A teoria de Nipperdey acabou por influenciar o Tribunal do Trabalho alemão, que em decisão
inédita, ponderou: “Em verdade, nem todos, mas uma série de direitos fundamentais destinam-se não apenas a garantir os direitos de liberdade em face do Estado, mas também a estabelecer as bases essenciais da vida social. Isso significa que disposições relacionadas com os direitos fundamentais devem ter aplicação direta nas relações privadas entre indivíduos. Assim, os acordos de direito privado, os negócios e atos jurídicos não podem contrariar aquilo que se convencionou chamar de ordem básica ou ordem pública. STC 38/1986, 21/03/1986.”
46 NIPPERDEY, Hans Carl, apud. STEINMETZ, 2004, p. 163.
47 SARMENTO, 2004, p. 245.
21
A Teoria da Eficácia Imediata dos direitos fundamentais ampara-se na
realidade fática de que existem relações de desigualdade entre os particulares, e,
assim, poderiam estes violar os direitos fundamentais, como freqüentemente o faz o
Estado.
As premissas básicas da eficácia imediata dos direitos fundamentais são, com
propriedade, pontuadas por Steinmetz: a) as normas de direitos fundamentais são
oponíveis ao Estado e aos particulares; b) os direitos fundamentais são e atuam
como direitos subjetivos constitucionais, independentemente de serem públicos ou
privados; c) por terem natureza de direitos subjetivos constitucionais, tem eficácia
imediata, independentemente de regulação legislativa, salvo se o legislador
constituinte de maneira diversa estabelecer48.
A aplicação irrestrita e imediata das normas de direitos fundamentais
conduzem “a proibições de intervenções no âmbito das relações jurisprivatistas e a
direitos de defesa em face de outros sujeitos jusprivatistas”49, admitindo-se, assim,
a existência de deveres fundamentais, não só atribuídos ao Estado, mas também
aos particulares.
Neste aspecto Alexy ensina que o efeito imediato:
[...] consiste en que, por razones iusfundamentales, en la relacion ciudadano/ciudadano existen determinados derechos y no-derechos, liberdadies y no liberdadies, competencias y no-competencias que, sin estas razones, no existirían.
50
Por certo que, enquanto integrante da vida em sociedade, o cidadão, por ser
dotado de direitos, é titular de deveres sem os quais seria inconcebível a vida em
comunidade. Em se tratando de direitos fundamentais, a observância destes pelos
entes particulares acaba por gerar deveres diante daqueles que são obrigados a
respeitá-los. Quando a observância dos direitos fundamentais acarretar dever para o
48
STEINMETZ, 2004, p. 168-169.
49 CANARIS, 2003, p. 235.
50 ALEXY, 2002, p. 521.
22
outro particular, argumentam os defensores da teoria da eficácia mediata, que tal
imposição tem que, necessariamente, decorrer da lei e, portanto, a aplicação dos
direitos fundamentais, neste caso, não poderia ser direta.
A aplicação direta dos direitos fundamentais leva, sem dúvida, a um conflito
permanente de direitos, já que a relação ocorre entre dois titulares de direitos
fundamentais e, em muitas situações, a proteção a um direito, acaba por ferir outro
direito fundamental.
Ademais, é bom lembrar que o Constituinte Brasileiro não previu
expressamente a vinculação direta dos particulares aos direitos fundamentais. Em
que pese tal situação, grande parte da doutrina não nega, em pelo menos algumas
situações, a eficácia imediata dos direitos fundamentais.
Entretanto, grande parte da doutrina impõe algumas limitações e restrições.
Neste sentido, a aplicabilidade imediata nas relações interprivadas estaria afastada
nos casos em que o destinatário final dos direitos fundamentais é o Estado como,
por exemplo, os direitos políticos, garantias fundamentais na esfera processual e
alguns direitos sociais, como assistência social e previdência social51.
O doutrinador português, Andrade, posiciona-se no sentido de que a vinculação
direta deve ocorrer quando se tratar de relações privadas desiguais, quando se
verifica a imposição de poder de um particular perante o outro:
Quanto a nós, para além dos casos já referenciados em que a Constituição expressamente concebe os direitos perante privados, só deverá acertar-se esta transposição directa dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjectivos, para as relações entre particulares quando se trate de situações em que pessoas colectivas (ou excepcionalmente, indivíduos) disponham de poder especial de caráter privado sobre (outros) indivíduos.
52
51
Conforme SARLET, 2004, p. 364.
52 ANDRADE, 2004, p. 263.
23
Nestas situações, de acordo com a intensidade de poder impingido na relação,
o particular poderá invocar perante o outro particular, direitos fundamentais que
assegurem a sua liberdade e a sua igualdade.
Canotilho condiciona a aplicação direta dos direitos fundamentais às relações
privadas à determinabilidade53 das normas, ou seja, que as mesmas contenham
conteúdo em que se defina o âmbito de proteção de um direito fundamental e os
respectivos efeitos jurídicos, enquanto assenta que “as normas garantidoras de
direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis desde que possuam
suficiente determinabilidade”54.
Assim, percebe-se que a teoria da eficácia imediata não é irrestrita e nem
aplicável em todas as situações. Por outro lado, o seu afastamento absoluto poderia
permitir, em determinados casos, interpretações contrárias aos ditames
constitucionais, o que colocaria em risco a concepção do ordenamento jurídico atual,
no que se refere a força normativa da constituição e unicidade do sistema jurídico.
2.3 Teoria dos Deveres de Proteção
Além das teorias da Eficácia Imediata e Mediata, outras são defensáveis. Estão
embasadas na idéia do dever de proteção, por parte do Estado, de maneira que este
é o responsável por zelar pela observância dos direitos fundamentais.
É conhecida, assim, a “Teoria dos Deveres de Proteção”, defendida por um
segmento importante da doutrina alemã, como Claus-Wilhelm Canaris, Joseph
Isensee, Stefan Oeter e Klaus Stern. O pensamento destes juristas direciona os
53
CANOTILHO, J.J, Gomes. Estudos sobre direitos fundamentais. Coimbra: Almedina, 2004, p. 149, “Sem determinabilidade não há aplicabilidade directa; sem aplicabilidade directa não há positividade ou normatividade reforçada; sem normatividade reforçada fica perturbada a mensagem directiva da Constituição, no sentido de se transitar definitivamente para um sistema no qual são as leis que se movem dentro dos direitos fundamentais e não os direitos fundamentais que se movem no âmbito das leis.”
54 Ibid., p. 147.
24
direitos fundamentais apenas para o Estado, e o faz sob duas óticas distintas. Em
primeiro lugar, a vinculação do Estado aos direitos fundamentais reside na idéia de
dever de prestação deste, ou seja, de praticar os atos necessários – seja de
abstenção ou prestação – para realização dos diretos fundamentais a si opostos.
Num segundo plano, o dever do Estado implicaria o dever de “promoção e de
procteção dos direitos perante quaisquer ameaças, a fim de assegurar a sua
efectividade”.55
Neste aspecto, é atribuição do Estado estabelecer as regras de direito privado,
protetivas de direitos fundamentais:
O legislador privado, como órgão do Estado, encontra-se plenamente vinculado aos direitos fundamentais. Não pode atentar contra eles, sob pena de inconstitucionalidade das suas normas, e, mais do que isso, tem a obrigação de defendê-los.
56
O particular, em contrapartida, não está submetido diretamente aos direitos
fundamentais, mas sim ao regramento que, disciplinado os direitos fundamentais,
especifica as condições em que tal vinculação ocorre.57 Ao Estado, como
destinatário final dos direitos fundamentais, compete editar normas necessárias,
organizar e realizar todas as atuações, seja no âmbito legislativo ou judicial, a fim de
assegurar o respeito às ordens fundamentais.58
É claro que a atuação estatal esbarra nos direitos de liberdade, de maneira que
a interferência do Estado, enquanto guardião dos direitos fundamentais, deve estar
pautada em critérios como proporcionalidade, levando-se em consideração que a
proteção máxima de determinados direitos fundamentais acaba por violar outros
55
ANDRADE, 2004, p 147.
56 SARMENTO, 2004, p. 259, com base no pensamento da Claus Wilhelm Canaris.
57 NEUNER, Jörg. O Código Civil da Alemanha e a Lei Fundamental. Tradução de Peter Naumann.
In: SARLET, Ingo Wolganf (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 261, “Diferentemente de uma eficácia externa e imediata, não devemos examinar aqui a intervenção do terceiro com base na proibição do excesso (übermassgebot); isto é, o terceiro não necessita justificar o seu comportamento, mas os órgãos estatais devem observar os deveres de proteção conexos aos direitos fundamentais de acordo com as exigências do dever de proporcionalidade.”
58 ANDRADE, op. cit., p 147.
25
direitos. Neste sentido, construiu-se, doutrinariamente, o que o jurista português
Carlos Vieira de Andrade denomina de principio de proibição de défice, mediante o
qual o Estado está obrigado a assegurar um “nível mínimo adequado de proteção
dos direitos fundamentais, sendo responsável pelas omissões legislativas que não
assegurem o cumprimento desta imposição genérica”59.
Os limites da atuação do legislador jusprivatista esbarram nas proibições de
excesso e de défice, o que configura limitação à doutrina dos deveres de proteção. A
concepção extremada desta teoria é defendida por Schwabe, designada como
“Teoria da Convergência Estatista”, porque atribui ao Estado a responsabilidade pela
proteção dos direitos fundamentais e, em conseqüência, pela sua violação.
Esta teoria parte do pressuposto que cabe ao Estado proibir comportamentos
ou impedir a prática de atos que infrinjam direitos fundamentais. Considerando que
cabe ao Estado disciplinar e tutelar as relações privadas, “ele se torna responsável
pelos atentados aos direitos fundamentais cometidos contra particulares, sempre
que não os impedir60”.
A teoria atribui responsabilidade máxima ao Estado, como se fosse este capaz
de prever, legislativamente, todas as possibilidades de lesão aos direitos
fundamentais, e impedir, via atividade judiciária, a prática de atos que afrontem
esses direitos.
O ponto fundamental das teorias de imputação ao Estado é que, a violação de
qualquer dever fundamental é atribuída ao Estado, em face da obrigação de
proteção imposta a este.
Rejeitando a teoria extremada de Schwabe, Canaris explica que o efeito
produzido pelos direitos fundamentais no âmbito privado decorre de imperativos de
59
ANDRADE, 2004, p 148.
60 SCHWABE, Jurgen. Die sorgennante Drittwirkung der Grundrechte. Munich, Beck, 1971, apud
SARMENTO, 2004, p. 262.
26
tutela e proibições de intervenção.61 Isto porque, apesar do Estado ser o único
destinatário dos direitos fundamentais, estes acabam por influenciar as relações
privadas, enquanto é dever do Estado prestar tutela, fazendo-o dentro dos limites
especificados pela proibição de intervenção, a fim de impedir a violação.
Esta teoria mantém a idéia de que o Estado é o único destinatário dos direitos
fundamentais, e ao mesmo tempo explica o motivo pelo qual o comportamento dos
sujeitos privados sofre a interferência dos direitos fundamentais,62 no sentido de que
tal interferência decorre do dever de tutela atribuído ao Estado, enquanto guardião
dos direitos fundamentais.
3 A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais
Resta indiscutível, portanto, que os particulares estão vinculados à observância
dos direitos fundamentais nos negócios entre si celebrados. Isto porque a
concepção atual de Constituição não está limitada a interceder somente nas
relações entre Estado e particulares, já que se trata de verdadeira Lei Fundamental
do Estado e da sociedade, e se destina a regulamentar todas as relações sociais,
mesmo quando estabelecidas entre sujeitos privados.
Assim, a resposta à indagação acerca da vinculação dos particulares aos
direitos fundamentais é, naturalmente, positiva. O que resta duvidoso e controverso
é a extensão desta vinculação e os efeitos nos negócios jurídicos celebrados entre
particulares.
Da mesma forma, pode-se concluir que nenhuma das teorias acerca da
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas pode ser afastada, já que é
perfeitamente possível a aplicação de todas elas, de acordo com o caso concreto.
61
CANARIS, 2003, p. 53-54.
62 CANARIS, 2003, p. 133.
27
Nesta seara, conclui Steimetz ao mencionar que “eficácia mediata e eficácia
imediata não são incompatíveis. Onde termina [ou não há] a possibilidade de
viabilização da primeira inicia a atuação da segunda.”63
No mesmo sentido, é o pensamento de Ubillos: “admitir a possibilidade de uma
vigência imediata dos direitos fundamentais nas relações inter privatos em
determinados supostos não significa negar ou subestimar o efeito de irradiação
desses direitos por meio da lei.”64
Diante do pressuposto, aqui admitido, de aceitação de diversas teorias de
eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, a problemática está então
em definir, no caso concreto, as situações em que haverá a incidência direta das
normas constitucionais, e as situações em que a aplicação deverá ocorrer através
da mediação legislativa.
De acordo com a categoria de direitos fundamentais em questão, haverá maior
ou menor grau de vinculatividade. Existem direitos, como liberdade, igualdade, que,
pela sua própria natureza, são de observância obrigatória. Entretanto, admite-se que
outros direitos devem ser atribuídos em primeiro plano ao Estado, e aos particulares,
tão somente quando legislação específica assim o determinar, já que a sua
observância gera deveres.
Assim, a delimitação do problema, não escapa à analise da questão frente às
categorias de direitos fundamentais, o que acaba por revelar, justamente, que para
cada categoria de direito, a extensão eficacial das normas de direito fundamental dá-
se em planos distintos.
63
STEINMETZ, 2004, p. 266.
64 UBILLOS, Juan Maria Bilbao. La eficácia de los derechos fundqamentales frente a particulares:
analisis de la jurisprudência del Tribunal Constitucional. Madrid, Boletin Oficial del Estado, Centro de Estúdios Políticos Y Constitucionales, 1997, apud STEINMETZ, 2004, p. 267.
28
3.1 A vinculação dos particulares aos Direitos Individuais e Coletivos
Os direitos Individuais e coletivos estão diretamente ligados ao conceito de
pessoa humana, pois visam proteger a vida, a liberdade, a dignidade, a igualdade, a
honra, etc. Assim, são direitos básicos de todo ser humano que merece máxima
proteção do Estado.
Com a evolução das relações sociais, e gradativo aumento das desigualdades,
a imposição de vontades, deixou de estar limitada às relações entre Estado e
indivíduos e passou a ocorrer nas relações entre sujeitos privados, ameaçando,
assim, a liberdade e demais direitos básicos.
Percebe-se que a lesão aos direitos fundamentais não é somente proveniente
do Estado, mas decorrente de agrupamentos de sujeitos privados, que passam a
exercer verdadeiro poder sobre outros sujeitos privados. Esta ameaça, por óbvio,
traz à tona a discussão acerca da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais, questionando-se a autonomia privada nas relações entre particulares
e, especialmente, se é possível o titular de direitos fundamentais renunciar a tais
direitos.65
65
ANDRADE, 2004, p. 249-250: “É assim que se pergunta se ou até que ponto as liberdades (religiosa, de residência, de associação, por exemplo) ou bens pessoais (integridade física e moral, intimidade, imagem) podem ser limitados por contrato, com o acordo ou o consentimento do titular; se é licito o apelo público ao boicote de um filme ou de um livro; se é válido um contrato em que os empregadores se obrigam a não admitir trabalhadores não inscritos num certo sindicato; até que ponto é admissível a restrição da liberdade de expressão (e de outras liberdades) dos jogadores de um clube desportivo, dos membros de um partido político ou de uma ordem religiosa; quais os poderes de sancionamento que os pais ou tutores podem exercer sobre os menores; se é admissível juridicamente que alguém contrate uma agência privada de detectives para vigiar determinada pessoa, ou alguém publique um livro com um personagem obviamente baseado na vida intima de uma pessoa. Ou se é licito a um empregador contratar ou deixar de contratar um trabalhador por causa da confissão religiosa, sexo, ou opção política dele; se o senhorio pode despejar um inquilino por não pagamento da renda, quando tolera a permanência de outro que também não paga; se uma pessoa pode legitimamente deixar os seus bens por testamento apenas a familiares de um dos sexos, excluindo intencionalmente os do outro; se os donos de hotéis, táxis ou restaurantes, bem como os de escola ou de clubes privados, podem recusar a permanência, o transporte, o sérvio ou uma freqüência a certas categorias de pessoas (estrangeiras, pessoas de raça diferente ou determinado sexo.”
29
A doutrina acerca da aplicabilidade direta ou não das normas fundamentais
garantidoras de direitos individuais e coletivos é absolutamente divergente, assim
como o é a doutrina acerca dos efeitos da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais em geral.
Dürig, defensor extremista da eficácia mediata, também no que se refere aos
direitos fundamentais que garantem liberdades e direitos individuais e coletivos,
defende que não há justificativa para uma vinculação direta66, enquanto compete ao
Estado proteger os direitos fundamentais contra violação de particulares.
Nipperdey, em sentido oposto, defende a vinculação absoluta, fundamentada
na ordem normativa da Constituição.
Entretanto, a vinculação dos particulares às garantias fundamentais individuais
e coletivas está vinculada à origem histórica do seu surgimento, qual seja, o poder.
Ora, quando o Estado era o único sujeito capaz de impor poder, as garantias
fundamentais eram destinadas a este. No momento em que os sujeitos privados
passam a ser detentores de poder perante outros sujeitos privados, concebe-se a
imposição dos direitos fundamentais aos particulares, enquanto é premissa que os
entes providos de poder é que tendem a violar direitos fundamentais. Assim, Carlos
Vieira de Andrade defende que deverá ser aceita a transposição direta dos direitos
fundamentais para as relações entre particulares “quando se trate de situações em
que pessoas colectivas (ou excepcionalmente indivíduos) disponham de poder
especial de caráter privado sobre (outros) indivíduos.”67
Quando as relações forem entre iguais, defende o autor português que não
deve ocorrer esta transposição.68 No entanto, isso não significa que os direitos
fundamentais possam ser violados pelos particulares, como se absolutamente
66
DÜRIG, Günter. “Grundrechte und Zivilrechtsprechung”, en MAUZ, Theodor (Hrsg.) Von), en Festschrift für Hans Nawiaski. München: Beck, 1956, p. 157/190, apud ANDRADE, 2004, p. 251.
67 ANDRADE, op. cit, p. 263.
68 ANDRADE, op. cit., p. 268, ”nas relações entre iguais, parece-nos que os particulares não devem
ser considerados sujeitos passivos dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjectivos, com os deveres típicos correspondentes.”
30
inaplicáveis às relações privadas. Cabe ao Estado impor regras a serem observadas
por todos, como meio de garantia de observância dos direitos fundamentais.
Ademais, na condição de “princípios de valor objectivo”, os direitos fundamentais
têm efeito irradiativo em todo o ordenamento jurídico, inclusive, nas relações
privadas. Por mais autônomo que seja o direito privado, este não é independente da
Constituição e se submete aos valores nela inseridos. Assim, como já dito, o próprio
direito privado passa a ser elaborado e interpretado de acordo com a Constituição, e
com fim a satisfazer os direitos fundamentais de todo cidadão.
Por esta razão, admite-se que, mesmo tendo em vista os direitos e garantias
individuais e coletivas, em um primeiro plano, a aplicabilidade de tais normas é
indireta, já que se dá via aplicação de norma de direito privado, desde que esta
esteja conforme a Constituição. Em um segundo, plano, quando inexistente ou
inaplicável norma de direito privado, a incidência das normas fundamentais se dá de
maneira direta.69
No que se refere ao direito de liberdade, percebe-se que desta resulta também
a exigência de não intervenção estatal, de maneira que as partes têm absoluta
liberdade para contratar e negociar. É crível, no entanto, que nas relações entre
sujeitos privados desiguais, a liberdade deve sofrer limitações de maneira a garantir
a proteção aos demais direitos fundamentais e limitar a imposição de poderes. Neste
sentido, o legislador privado brasileiro, mediante princípios inerentes ao direito
privado como boa-fé, bons costumes, função social do contrato, bem como por
legislações especiais, limita a liberdade das partes a fim de garantir a equivalência
das obrigações assumidas. Também o juiz pode impor limitações à liberdade,
quando tal for necessário para garantir a observância de outras normas
fundamentais, inclusive, a própria liberdade. Assim, a aplicação imediata e irrestrita
do direito à liberdade nas relações privadas pode implicar na imposição de vontades
e desrespeito aos direitos fundamentais.
69
Esta é a posição de José Carlos Vieira de Andrade.
31
Compete ao legislador privado impor limites ao direito de liberdade, nas
relações desiguais, com a finalidade de garanti-la, de maneira equivalente às partes
contratantes.
Outro exemplo é o direito à igualdade, que em inúmeras situações confronta
com o princípio da liberdade. No caso de doação e testamento, a lei brasileira
admite que filhos sejam tratados de maneira desigual, o que, em tese, fere o
princípio da igualdade, mas garante a liberdade70, dentro de limites que o legislador
privado entendeu razoável.
O princípio da igualdade não tem força jurídica para se sobrepor ao predomínio
da vontade individual71. Pela generalidade dos direitos à liberdade e à igualdade, na
maioria das situações tais normas estão em conflito, sendo, desse modo, o
legislador privado, a instituição mais indicada, para, fazendo a ponderação desses
princípios, definir qual deve prevalecer diante de determinadas situações, mediante
o que a regra de direito privado se revela o meio mais adequado a solucionar os
conflitos.
O direito à igualdade se opera em diversos níveis nas relações privadas – ora
como princípio objetivo, ora como direito fundamental, ora como norma de proibição
discriminatória, ou como ordem de tratamento igual ou tratamento diferenciado72 - e
dele decorrem outros direitos fundamentais.
Na condição de norma de proibição discriminatória, é quase consenso que
opera eficácia imediata. A própria Constituição, regulando o direito fundamental à
igualdade, proíbe a discriminação de cor, idade, sexo, religião.
Entretanto, quando atua como ordem de tratamento igual, a vinculação se dá
de maneira mais comedida, já que vige no direito privado, em primeiro plano, o
70
ANDRADE, 2004, p. 278.
71 STEINMETZ, 2004, p. 249.
72 STEINMETZ, op. cit., 2004, p. 259.
32
direito à liberdade, e exigir dos particulares sempre um tratamento igual, acabaria
por restringir sobremaneira a autonomia da vontade.
No Brasil, onde a tendência é admitir a eficácia imediata das normas de direito
privado, especialmente no que se refere às garantias e liberdades individuais e
coletivas, determina-se a aplicação direta das normas constitucionais, especialmente
“na interpretação de cláusulas contratuais ou de outras declarações de vontade, de
sentido duvidoso, independentemente da invocação de qualquer conceito jurídico
indeterminado, formulado pelo legislador privado.73
Neste aspecto, impõem-se a todos os particulares o dever de respeito aos
direitos fundamentais, seja comissiva ou omissivamente. Em muitas situações, o
respeito a igualdade ou a não discriminação, não se resolve por uma não ação, mas
requer uma ação humana, a fim de igualar a prestação concedida por uma
determinada pessoa à outra pessoa que se encontre em situação jurídica de
igualdade.
A doutrina brasileira que defende a eficácia direta das normas constitucionais
estende esta modalidade de eficácia às relações paritárias, argumentando que
“mesmo em relações de tendencial igualdade, impõe-se uma proteção direta dos
direitos fundamentais, sob pena de se proporcionar uma garantia incompleta à
dignidade da pessoa humana.”74
Mesmo longe de um consenso doutrinário, o que se percebe é que, nas
relações entre particulares, as garantias individuais e coletivas geralmente estarão
em confronto diante do caso concreto. Por isso, é prudente que o legislador privado
atue de maneira a dirimir tais conflitos, determinando, mediante a edição de leis,
qual a norma fundamental deve prevalecer, sem, no entanto, afastar totalmente as
demais. Os direitos à liberdade e à igualdade, dentro do direito privado, em regra,
são conflitantes, devendo prevalecer um diante do outro, de acordo com cada
73
SARMENTO, 2004, p. 299.
74 SARMENTO, 2004, p. 306.
33
situação específica. Por óbvio, quando inexistente ou inaplicável a norma de direito
privado, deve o juiz julgar o caso concreto aplicando diretamente as garantias
fundamentais, fazendo a ponderação, no caso de conflito.
3.2 A vinculação dos particulares aos direitos sociais e aos direitos
transindividuais
Além dos direitos considerados de primeira dimensão, é controversa a
aplicabilidade das normas fundamentais de segunda e terceira dimensão frente aos
particulares75.
A concretização dos direitos de segunda dimensão – os direitos sociais -
requer, em regra, uma prestação, e por isso são denominados também de direitos
prestacionais em sentido estrito, já que, em regra, exigem uma conduta positiva do
seu destinatário76.
Por se tratarem também de direitos fundamentais, vige a regra do artigo 5º, §
1º, da Constituição Federal Brasileira, que determina a aplicabilidade imediata de
tais regras. Assim, não obstante a controvérsia doutrinária acerca do nível de
eficácia desses direitos frente ao Estado77, é majoritária a construção no sentido de
serem regras de eficácia direta e imediata e de observância obrigatória frente ao
Estado.
75
Para estudo da conceituação das diferentes dimensões dos direitos fundamentais vê REIS, Jorge Renato dos. A concretização e a efetivação dos direitos fundamentais no direito privado. In: Direitos Sociais e Políticas Públicas – Desafios Contemporâneos. Leal, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato dos (org.). Santa Cruz do Sul – Edunisc. Tomo 4. 2004. 76
SARLET, 2004, p. 275.
77 O presente estudo não tem como objeto da análise da aplicabilidade das normas de direitos
fundamentais frente ao Estado, mas tão somente em relação aos particulares, não sendo, portanto, desenvolvida a questão dos níveis de eficácia frente ao Estado e as controvérsias acerca da questão.
34
São, portanto, direitos do indivíduo frente ao Estado, e por isso não podem, em
tese, serem exigidos dos particulares78. A vinculação dos particulares e a
possibilidade de exigir, perante estes, prestações positivas, fere os princípios que
decorrem do direito à liberdade e à propriedade. Portanto, trata-se de colisão de
direitos fundamentais e, em regra, neste caso, prevalecem os direitos inerentes à
liberdade frente aos direitos sociais “porque não são suficientemente fortes para
afastar os princípios da livre iniciativa e da autonomia privada e os direitos
fundamentais de liberdade e de propriedade.”79
Isso não quer dizer que em situação alguma podem ser opostos aos
particulares. Estes não estão obrigados a ações positivas para garantir a eficácia
dos direitos fundamentais, salvo quando a legislação privada – que não seja
inconstitucional – assim o exigir, ou quando, em decorrência de outros institutos
normativos constitucionais, ocorra esta vinculação, como por exemplo, as
obrigações familiares, impostas aos pais em relação aos seus filhos, nos termos dos
artigos 227 e seguintes da Constituição Federal.
Pode-se concluir então, que os particulares somente estão obrigados a
prestações positivas quando a lei – seja a constituição ou a legislação
infraconstitucional – expressamente lhe atribuir esta obrigação, e desde que tal
atribuição não colida expressamente com os direitos fundamentais, especialmente,
os de primeira dimensão, caso em que deverá ocorrer a ponderação. Ademais, caso
o Estado efetivamente fosse capaz de prover os direitos sociais, as desigualdades
seriam mínimas, e os particulares não precisariam atuar como concretizadores de
78
Há entendimentos no sentido de que, em algumas situações de relevante valor social, os direitos sociais são oponíveis aos particulares, mesmo que deles emane uma conduta positiva. Neste sentido DE ASIS, Rafael. Las paradojas de los derechos fundamentales como limites al poder. Madrid: Instituto de Derechos Humanos Barotlomé de las casas (Universidad Carlos III de Madrid), Dykinson, 2000, apud STEINMETZ, 2004, p. 277: “[...] supõe que a extensão de obrigações positivas a determinados grupos privados cuja relevância para o ordenamento jurídico é evidente favoreceria o exercício de direitos e de liberdades. Esses dois lados da questão apontam para isto: eventuais tensões entre obrigações positivas e direitos fundamentais constituiriam colisões de direitos fundamentais e como tal deveriam ser resolvidas. [...] determinadas obrigações positivas ou de fazer, entendidas como promoção de direitos fundamentais, devem incidir sobre certos poderes de indubitável relevância social. A extensão dessas obrigações que tome em consideração os direito afetados.”
79 STEINMETZ, 2004, p. 280.
35
direitos sociais, como por diversas vezes o fazem, por sua livre consciência de
responsabilidade social.
Em determinadas situações, a observância dos direitos sociais não exige
prestação positiva, mas apenas um dever de abstenção e, neste caso, sustenta-se
que os direitos podem ser opostos frente aos particulares80. É o caso, por exemplo,
do dever de não violação ao direito à moradia, que obriga o Estado e os particulares
a não lesarem direito à moradia digna, tratando-se, aqui, como exemplificado por
Sarlet, da impossibilidade de penhora do único imóvel do devedor, mesmo nas
situações em que a legislação privada, expressamente admite.81
Mesmo em se tratando de direitos de defesa frente aos particulares, os
mesmos não são absolutos, já que a sua irrestrita aplicabilidade pode ferir outros
direitos fundamentais como a própria liberdade, igualdade e autonomia privada.
Assim, a ponderação de direitos fundamentais, diante do caso concreto, e
considerando sempre que nas relações privadas ambas as partes são titulares de
direitos fundamentais, é requisito essencial para segurança jurídica dos negócios
privados.
No que se refere aos direitos de terceira dimensão – os direitos transindividuais
–, pela sua caracterização, a doutrina brasileira tem considerado estes como direitos
que vinculam os particulares, já que a sua inobservância acarreta lesão a um grupo
de pessoas.
Entretanto, como explica Steinmetz, esta vinculação tende a ser indireta e
mediata, especialmente considerando que: a) o texto constitucional, em regra, exige
80
QUADRA-SALCEDO, Tomás. El recurso de ampro y los derechos fundamentales em las relaciones entre particulares. Madrid, Civilitas, 1981, apud STEINMETZ, 2004, p. 275, “há direitos fundamentais à prestações cujo único sujeito obrigado é o Estado e, por isso, não podem ser exigidos dos particulares. Contudo, isso não implica que os particulares, sob qualquer aspecto, estão, necessariamente desobrigados diante de direitos fundamentais a prestações. O particular não está obrigado a cumprir com um dever de prestações – não está na mesma posição do Estado -, contudo pode ser obrigado a não interferir no desenvolvimento e na efetivação de um direito a prestações.”
81 SARLET, 2004, p 324.
36
a mediação estatal para aplicação destes direitos82; b) os bens objeto de proteção
possuem complexidade, e, portanto, necessitam de regulação legislativa para
especificação dos deveres dos particulares; c) a observância dos direitos
transindividuais, requer, além de omissões, ações de proteção, que por vezes
representam ônus financeiro.
Sarmento, contrariamente, defende a eficácia imediata e direta destes direitos
em relação aos particulares, sob argumento de que se tais direitos vinculassem
exclusivamente o Estado, a sua inclusão como direitos fundamentais seria inócua,
enquanto é necessária a cooperação de todos os sujeitos privados para a efetiva
concretização desta categoria de direitos, especialmente no que se refere aos
direitos de proteção. Admite, também, que é possível o “reconhecimento de
obrigações positivas, de caráter prestacional, inferidas diretamente da
Constituição”83.
Pondera, entretanto, que, inicialmente, é obrigação do Estado a conservação e
recuperação do meio ambiente, bem como a promoção e proteção do patrimônio
histórico, artístico e cultural. A obrigação dos particulares é subsidiária e não pode
ser equiparada ao regime de vinculação vigente em relação ao Estado, já que o
particular, além de não ter o poder de polícia necessário para garantir a preservação
de tais bens, não pode ser compelido a arcar, de maneira direta, com o ônus
financeiro inerente à efetivação de tais direitos. 84
No que se refere aos direitos transindividuais, pela vasta gama de bens a
serem protegidos, não se pode, em tese, adotar uma solução única quanto ao
regime de vinculação dos particulares. Primeiro, porque devem ser levadas em
consideração as diferentes obrigações decorrentes de tais direitos, tais como
deveres de abstenção e deveres que exigem prestações positivas. Assim, o ideal é
que ocorra, como em todas as hipóteses, a mediação legislativa, a fim de assegurar
82
São exemplos de situações em que a aplicabilidade das normas constitucionais requer regulamentação legislativa: a defesa do consumidor (art. 5º, XXXII), a proteção ao meio ambiente (§1º do artigo 225).
83 SARMENTO, 2004, p. 367.
84 SARMENTO, op. cit., p. 367.
37
a correta aplicação e interpretação dos direitos fundamentais de terceira geração
nas relações privadas.
No Brasil, a doutrina acerca da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais ainda é escassa e requer amadurecimento. A maioria dos
doutrinadores que prega uma eficácia imediata e irrestrita demonstra uma clara
cultura social, já que por aqui ainda é necessária a ruptura da cultura liberal clássica.
Talvez por isso seja necessário defender-se o extremo, para ser possível garantir,
na prática, um mínimo de vigência dos direitos fundamentais.
De tal sorte, especialmente no que se refere às categorias específicas de
direitos fundamentais, está-se absolutamente longe de qualquer consenso, mas
algumas considerações merecem ser feitas.
No que se refere às garantias e liberdades, por serem estes direitos
considerados basilares, e dos quais decorreram todos os demais, é necessário que
sejam levados em consideração na interpretação de qualquer relação jurídica.
Ademais, são direitos que, em tese, não acarretam uma obrigação positiva ou ônus
financeiro ao seu destinatário. Assim, a doutrina em geral, brasileira e estrangeira,
tem admitido uma vinculação direta dos particulares a esses direitos.
A solução já não é a mesma no que se refere aos direitos sociais e
transindividuais. Isto porque a observância dos direitos sociais e transindividuais, em
regra, requer uma atuação positiva do seu destinatário e acarreta ônus econômico a
este. Assim, impõe um dever ao destinatário que, em se tratando de sujeito privado,
também é um titular de direitos fundamentais, acarretando, na maioria das
situações, colisão de direitos fundamentais.
38
Portanto, a apreciação acerca da aplicabilidade mediata ou imediata dos
direitos fundamentais nas relações privadas não foge da análise do caso concreto,
pois ao se fazer a ponderação dos direitos fundamentais em questão, optar-se-á por
aquele que deve prevalecer.
Também considerando a multiculturalidade do Estado brasileiro, e as
diferenças sociais, “a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas
travadas no interior de comunidades étnicas culturais minoritárias não poderá
prescindir de considerações acerca da identidade dessas comunidades.”85
Por fim, não é possível, ainda, se chegar a uma clara conclusão ou regra geral
acerca da extensão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, mas é
possível afirmar, entretanto, que86: a) os direitos fundamentais vinculam os
particulares; b) esta vinculação pode ser, em alguns casos imediata e, em outras
situações mediata; c) quando houver normas de direito privado aplicáveis ao caso
concreto, em consonância com os direitos fundamentais, estas deverão ser
aplicadas; d) quando as normas de direitos fundamentais referirem-se a meros
direitos de abstenção, e não implicarem em obrigação positiva e ônus econômico, a
tendência é de aceitação de uma vinculação imediata; d) quando a observância dos
direitos fundamentais exigir do particular uma prestação positiva, da qual decorra
ônus financeiro, a tendência é admitir que a vinculação do particular dependa de
uma mediação legislativa.
85
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação aos particulares dos direitos fundamentais. In: ______. A Constituição concretizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 283.
86 Tais afirmações não são consenso na doutrina estrangeira ou brasileira, mas tão somente posições
já afirmadas no presente estudo, as quais entende-se como aquelas que melhor solucionariam a divergência acerca da extensão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.
39
CONCLUSÃO
Sem a pretensão de esgotar o tema, ou sequer de traçar conclusões inéditas, o
presente trabalho teve como objetivo compilar idéias e teses acerca da influência
dos direitos fundamentais nas relações privadas, e das conseqüências da
normatividade constitucional na interpretação dos contratos celebrados entre
particulares.
Com a vigência da Carta Constitucional de 1988, inaugurou-se no Brasil uma
nova era jurídica, não mais preocupada unicamente com o indivíduo proprietário,
mas, também e especialmente, com o indivíduo como pessoa, dotado de direitos
mínimos assecuratórios da dignidade, concebida pelo legislador como direito
fundamental maior do Estado democrático de direito.
A Constituição de 1988, além de estabelecer direitos e garantias a todos os
cidadãos brasileiros, passa a estar dotada de normatividade ímpar, assumindo a
condição de fonte ordenadora do sistema jurídico, de maneira que todas as regras
infra-constitucionais devem estar em consonância com os preceitos socializantes
estabelecidos pela Carta Maior.
Surgem, assim, as legislações especiais bem mais protetivas e restritivas da
autonomia da vontade, a exemplo do Código de Defesa do Consumidor. A influência
da ordem constitucional restou evidenciada no contexto legislativo constante do
Código Civil de 2002 que, apesar de repetir muitas das regras constantes no
diploma de 1916, estabeleceu inúmeras regras abertas – as chamadas cláusulas
gerais – como boa-fé, função social do contrato, equidade, que exigem do intérprete
sensibilidade em relação à observância dos direitos fundamentais.
Percebe-se, assim, a irradiação das normas constitucionais, especialmente dos
Direitos Fundamentais a todo sistema jurídico. Desta forma, é inegável que todas as
regras de direito privado, inclusive, aquelas relativas aos contratos, devem ser
interpretadas de acordo com a Constituição.
40
Os direitos fundamentais não têm como destinatário exclusivo o Estado, mas
vinculam todos os particulares, uma vez que é indispensável que a interpretação dos
litígios entre estes deve ocorrer com observância dos direitos fundamentais.
A discussão doutrinária abordada no presente estudo, da qual não se obteve
uma solução definitiva, tem como enfoque os limites da influência constitucional nas
relações entre particulares. Uma regra de direito fundamental, pode ser aplicada de
maneira direta para solucionar um conflito estabelecido em uma relação contratual
privada? O particular, enquanto titular de direito fundamental pode ser obrigado a
uma prestação para assegurar a observância de direito fundamental de outro
particular?
As diversas teorias existentes sobre a vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais – teoria da incidência direta, teoria da incidência indireta e teoria
integradora – conduzem à conclusão de que, em determinadas situações, a
incidência ocorrerá de maneira direta; e em outras, de maneira indireta, de acordo
com a menor ou maior equivalência da relação contratual, de acordo com a
modalidade de direito fundamental a ser violado e, ainda, de acordo com a restrição
que essa observância causar ao direito fundamental do outro particular.
Entretanto, estando as normas de direito privado em harmonia com o sistema
constitucional, dispensável é a aplicação direta das normas constitucionais, pois a
simples aplicação das regras e princípios de direito privado possibilitará a solução do
conflito, com observância dos direitos constitucionais, sem que seja necessária a
aplicação direta de tais regras, preservando assim, a função própria de cada lei
integradora do ordenamento jurídico.
Por certo que nada melhor que o próprio legislador ordinário ao editar a norma
de direito privado, faça a ponderação e crie e norma, com a finalidade maior de
garantir a observância dos direitos e valores constitucionalmente protegidos.
41
No entanto, quando efetivamente o legislador privado não houver feito tal
ponderação, admissível seria a aplicação direta da norma constitucional para dirimir
o conflito. Defende-se, então, que a aplicação direta dos direitos fundamentais para
dirimir os conflitos privados seria residual, a fim de garantir a própria estabilidade do
sistema jurídico e também a fim de impedir que todas as questões de direito privado
se tornem questões de cunho constitucional, passível de apreciação pelo Tribunal
Constitucional.
A contrário sensu, percebe-se uma nítida tendência dos julgadores em
fundamentar suas decisões, no caso de litígio decorrente de relação contratual, nos
direitos fundamentais, especialmente na dignidade humana, o que tem elevado
consideravelmente as demandas judiciais apreciadas pelo Supremo Tribunal
Federal.
Ocorre que muitas destas decisões carecem de fundamento jurídico, e são
direcionadas muito mais por senso subjetivo de justiça, limitado exclusivamente à
questão concreta. É bom lembrar, entretanto, que a massificação das relações e
repetição de decisões não gera efeitos somente para as partes contratantes, mas
para toda a sociedade, evidenciando-se aqui a verdadeira função social do contrato.
Não raras vezes, percebe-se que o julgador simplesmente ignora o comando
legislativo ordinário, apto a dirimir o conflito e aplica diretamente a norma
constitucional, ao entender, que naquele caso concreto, a aplicação da norma
ordinária violaria direito constitucionalmente protegido.
O intérprete deixa de considerar, entretanto, que a norma ordinária tem como
finalidade proteger direito constitucional da coletividade, o que muitas vezes, implica
a não-observância de alguns direitos fundamentais individuais.
A Constituição tem ênfase comunitária, e como cerne a proteção do individuo
como ser integrante de uma vida em sociedade, de maneira que o respeito aos
direitos fundamentais da coletividade implica em algumas situações, a renúncia de
42
alguns direitos individuais. Neste aspecto, além da ponderação de bens, da
utilização de critérios de adequação, de necessidade, é necessário que seja
observada a função social do contrato e ponderadas as conseqüências da decisão
para as partes e para a coletividade.
Talvez o grande desafio desse novo modelo contratual seja racionalizar o
resultado da decisão, de maneira que seja esta coerente para as partes contratantes
e para a coletividade em geral, com o intuito de dar máxima eficácia ao direito
fundamental de todos os indivíduos que sofrem os efeitos da decisão, sem afastar
completamente o direito de um, para dar eficácia ao de outro.
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