Diário de Bitita [e-Livros.xyz]

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contra-capa

Pouco antes de morrer, Maria Carolina de Jesus— a autora de Quarto dedespejo,quenadécadade60teverepercussãointernacionaldepúblicoecrítica— entregou a jornalistas franceses que vieram entrevistá-la os cadernosmanuscritosquecompõemesteDiáriodeBitita.Nelesaautoraescreveusobresua infância e sua luta contra a miséria e o preconceito racial. Dirigindo umolharatentoàrealidadeàsuavoltaenarrandocomsensibilidadesuasvivênciaspessoais,CarolinadeJesuscriouumtextodeforçaimpressionante,queexpressaavisãodemundoetambémopapelhistóricodeumaimensaparcelaoprimidada população brasileira. Escrito com inteligência e numa linguagem original,DiáriodeBititasignificabemmaisqueumtestemunhopessoal:éumexemploespontâneo de contestação, onde a experiência vivida se torna mensagemliterária.

EDITORANOVAFRONTEIRA

Sempreumbomlivro

Aba(s)

DiáriodeBitita

Maria Carolina de Jesus é a autora de Quarto de despejo, livro que,publicadoemI960,teverepercussãointernacional,figurandoentreasobrasmaisexpressivas da chamada “literatura documentária de contestação”. Mas anotoriedadeeafama,oassédiodaimprensa,aatençãodopúblicoedoGovernologoterminaram,eCarolinadeJesusvoltouàmisériaquaseabsoluta,àmesmavidadefaveladaqueretrataraemseu livro.Pobreeesquecida,poucoantesdesuamorte, em1977, ela entregou a jornalistas que foramentrevistá-la os doiscadernosmanuscritosquecompõemoDiáriodeBitita.

Estanarrativatemforçaeautenticidade;écapazdesurpreenderecomovercom seu texto às vezes ingênuo, outras vezes quase bizarro, mas sempreperspicaz,ondeganhaexpressãoomundo interiordeumserhumanocheiodesonhos,àsvoltascomadurezaeaindiferençadasociedade.Assimcomoaoutragrande obra de Maria Carolina, este livro não é fruto de uma preocupaçãoartística—sãoapontamentosescritosnashoraslivresdeumatrabalhadora,umamulher negra, nascida no interior de Minas Gerais na primeira ou segundadécada do século, criada namiséria, vítima constante do preconceito.Mesmoassim,ouporissomesmo,suainteligênciaesensibilidade,a

consciênciaquetemdesiprópriaesuacuriosidadefrenteaomundoqueacercafazem deste livro mais do que um testemunho. Pois, inseparável da históriapessoal da autora, aparece aqui umaoutra face daHistória, protagonizada portodosaquelesqueaconstroemsemquepossam,contudo,escrevê-la.

Maria Carolina de Jesus conta sua infância e seu crescimento, suaperegrinação entre o campo e as pequenas cidades à procura de trabalho.Expressatambémsuavisãodemundo,suasexperiências,suasopiniões—desdeasingelalembrançadacriançafamintaqueprovacocadaemlata,atéareflexãosobreosgovernoseasrevoluções.Eofaznumalinguagemoriginalíssima,quejuntavocabulárioricoeextremacorreçãogramaticalaconstruçõesinusitadas—

reflexodadualidadeentreaculturaoraleainstruçãoadquiridanoslivros.

AlbertoMoraviaviu a criação deMaria Carolina de Jesus como superior atodososoutros romancesdeenredo inventado.Atravésdo“simples” relatodeepisódios,evidencia-seoladoobscurodopaís,aimensadistânciaentreoBrasiloficialeo real.Maisainda,cria-seuma literatura,porassimdizer,“emestadobruto”, que não é a elaboração estética de um artista, mas sim o resultadovigorosodaaçãoconcretadeviver.

Capa:VictorBurton;sobreMorro,óleosobreteladeDiCavalcanti(1930)

CAROLINAMARIADEJESUS

DIÁRIODEBITITA

EDITORANOVAFRONTEIRA

©ÉditionsA.M.Métailié

Direitosdeediçãodaobraemlínguaportuguesa

noBrasiladquiridospela

EDITORANOVAFRONTEIRAS.A.

RuaBambina,25—Botafogo—CEP22.251—

Tel.:286-7822

Endereço telegráfico:NEOFRONT—Telex:34695ENFSBRRiodeJaneiro,RJ

Revisãotipográfica

AndreaCorrêaRodrigues/EdilsonChavesCantalice/Uranga

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CIP-Brasil.Catalogação-na-fonte

SindicatoNacionaldosEditoresdeLivros,RJ

Jesus,CarolinaMariade,1914-1977.

J56d Diário de Bitita / Carolina Maria de Jesus. — Rio de Janeiro: NovaFronteira,1986.

(FicçãoBrasileira)

1.Literaturabrasileira—Romance.I.Título.II.Série.

86-0802CDD—869.93

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Digitalização,Formataçãoecorreção:Chuncho(LAVRo)

SUMÁRIO

1. Infância2. Asmadrinhas3. Afesta4. Serpobre5. Umpoucodehistória6. Osnegros7. Afamília8. Acidade9. Meugenro10. Amortedoavô11. Aescola12. Afazenda13. Retornoàcidade14. Doméstica15. Adoença16. Arevolução17. Asleisdahospitalidade18. Acultura19. Ocofre20. Médium21. Apatroa22. Sercozinheira

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INFÂNCIA

OspobresmoravamnumterrenodaCâmara:“OPatrimônio”.

Nãotinhaágua.Mesmofurandoopoçoelestinhamqueandarparacarregarágua.Nósmorávamosnumterrenoqueovovôcomproudomestre,umprofessorque tinha uma escola particular. O preço do terreno foi cinqüentamil-réis. Ovovôdiziaquenãoqueriamorreredeixarosseusfilhosaorelento.

Anossacasinhaerarecobertadesapé.Asparedeseramdeadobecobertascomcapim.Todososanos tinhaque trocarocapim,porqueapodrecia,e tinhaquetrocá-loantesdaschuvas.Minhamãepagavadezmil-réisporumacarroçadecapim.Ochãonãoerasoalhado,eradeterradura,condensadadetantopisar.

Euestavafazendoaminha,avant-premièrenomundo.Econheciaopaidomeuirmãoenãoconheciaomeu.Seráquecadacriançatemqueterumpai?Opai deminhamãe foiBenedito José da Silva. Sobrenome doSi- nhô.Era umpretoaltoecalmo.Resignadocomasuacondiçãodesoldodaescravidão.Nãosabialer,maseraagradávelnofalar.Foiopretomaisbonitoquejáviatéhoje.

Eu achava bonito ouvir a minha mãe dizer: — Papai! — E o vovôresponder-lhe:—Oqueé,minhafilha?

Euinvejavaaminhamãeporterconhecidopaiemãe.

Váriasvezespenseiinterrogá-laparasaberquemeraomeupai.Masfaltou-mecoragem.Acheiqueeraatrevimentodaminhaparte.Paramim,aspessoasmaisimportanteseramaminhamãeeomeuavô.

Ouviaasvelhasdizerqueascriançastêmqueobedeceraospaiserespeitá-los.Umdia,ouvidaminhamãequeomeupaieradeAraxá,eoseunomeeraJoãoCândidoVeloso.EonomedeminhaavóeraJoanaVeloso.Queomeupaitocavaviolãoenãogostavade trabalhar.Queele tinhasóumternoderoupas.

Quandoelalavavaasuaroupa,eleficavadeitadonu.Esperavaaroupaenxugarparavesti-laesair.Chegueiàconclusãoquenãonecessitamosperguntarnadaaninguém.Comodecorrerdotempovamostomandoconhecimentodetudo.

Quando a minha mãe falava eume aproximava para ouvi-la. Um dia, aminhamãerepreendeu-meedisse-me:

—Eunãogostodevocê!

Respondi-lhe:

—Se estou nomundo é por intermédio da senhora. Se não tivesse dadoconfiançaaomeupaieunãoestariaaqui.

Minhamãesorriuedisse:

—Quemeninainteligente.Eestácomquatroanos.

MinhatiaClaudimiracomentou:

—Elaémal-educada.

Minhamãedefendia-me,dizendoqueeutinhaditoaverdade.

—Elaprecisaapanhar!Vocênãosabecriarfilhos.

Elasiniciaramumadiscussão.Pensei:“Aminhamãeéquemfoiofendidaenãoficouressentida.”Percebiqueaminhamãeeraamaisinteligente.

—Bate,Cota!Batenestanegrinha!Elaestácomquatroanos,masocipósetorceenquantoénovo.

—Oquetemdeser,jánasce—respondiaaminhamãe.

Fiqueipreocupada,pensando:“Oqueseráquatroanos?Serádoença?Serádoce?”

Saícorrendoquandoouviavozdomeuirmãoconvidando-meparairmoscatargabirobas.

O que me preocupava era o dia de sábado. Que agitação! Homens e

mulherespreparando-separairemaobaile.Seráqueobaileéindispensávelnavidadoshomens?Pediaaminhamãeparalevar-meaobaile.Queriaveroqueerabaile,quedeixavaosnegrosansiosos.Falavamnobailemaisdecemvezesaodia.

Baile... deve ser uma coisa muito boa, porque os que falavam no bailesorriam.Masobaileeraànoite,eànoiteeuestavacomsono.

Euinvejavaasmulheres.Equeriacrescerparaarranjarumnamorado.

Umdiaviduasmulheresbrigandoporcausadeumhomem.Elaspuxavamoscabelos ediziam:—Ele émeu,desgraçada!Cadela!Sem-vergonha!Se eusouberquevocêdormiucomele,eutemato!

Fiqueiabismada.Seráqueohomemétãobomassim?Porqueasmulheresbrigam por eles? Então o homem é melhor do que cocada, pé-de-moleque,batatasfritascombife?Porqueseráqueasmulheresqueremcasar-se?

Seráqueohomemémelhordoquebananafritacomaçúcarecanela?Seráqueohomemémaisgostosodoquearrozcomfeijãoefrango?Seráquequandoeu ficar grande conseguirei um homem para mim? Quero um homem bembonito!

Asminhasidéiasvariavamdeminutoaminutoiguaisàsnuvensnoespaçoque formambelíssimos cenários, porque se o céu fosse sempre azul não seriagracioso.

Umdiapergunteiaminhamãe:

—Mamãe,eusougenteoubicho?

—Vocêégente,minhafilha!

—Oqueésergente?

Aminhamãenãorespondeu.

Ànoiteeuolhavaocéu.Miravaasestrelasepensava:“Seráqueasestrelasfalam?Seráqueelasdançamaossábados?Sábadoheideolharparaverseelasestão dançando.No céu deve ter estrelamulher e estrela homem.Será que as

estrelasmulheresbrigamporcausadoshomens?Seráqueocéuésóondeestouvendo?”

Quando eu ia buscar lenha com aminhamãe, avistava o céu nomesmoformato.

Nomatoeuviumhomemcortarumaárvore.Fiqueicominvejaedecidiserhomemparaterforças.Fuiprocuraraminhamãeesupliquei-lhe:

—Mamãe... eu quero virar homem. Não gosto de ser mulher! Vamos,mamãe!Façaeuvirarhomem!

Quandoeuqueriaalgo,eracapazdechorarhorasehoras.

—Vaideitar-se.Amanhã,quandodespertar,vocêjávirouhomem.

—Quebom!Quebom!—exclameisorrindo.

Quando eu virar homem vou comprar um machado para derrubar umaárvore.Sorrindoetransbordandodealegria,penseiqueprecisavacomprarumanavalha para fazer a barba, uma correia para amarrar as calças. Comprar umcavalo, arreios, chapéu de abas largas e um chicote. Pretendia ser umhomemcorreto.Nãoiabeberpinga.Nãoiaroubar,porquenãogostodeladrão.

Deiteieadormeci.Quandodespertei,fuiprocuraraminhamãeelamentei:

—Eunãovireihomem!Asenhorameenganou.

Eerguiovestidoparaelaver.

Seguiaaminhamãeportodosrecantos,chorandoepedindo:

—Euquerovirarhomem!Euquerovirarhomem.Euquerovirarhomem.

Falavaodiatodo.

Asvizinhasficavamimpacientesediziam:

—DonaCota,espancaestanegrinha!Quemeninacacete.Macaca.

Minhamãetoleravaedizia:

—Quandovocêveroarco-íris,vocêpassapordebaixodelequevocêvirahomem.

—Eunãoseioqueéarco-íris,mamãe!

—Éoarco-da-velha.

—Ah!Sim...

Eomeuolhargirou-separaocéu.Sendoassim,tenhoqueesperarquandochover.Eoarco-írisaparecer.Porunsdiasdeixeidechorar.

Umanoite choveu.Levantei para ver se o arco-íris estava visível,Minhamãeacompanhou-meparaveroqueeuestavafazendo.Vendo-meolharocéu,perguntou-me:

—Oqueestáprocurando?

—Oarco-íris,mamãe.

—Oarco-írisnãosaiànoite.

Minhamãefalavapouco.

—Porqueéquevocêquervirarhomem?

—Queroteraforçaquetemohomem.Ohomempodecortarumaárvorecomummachado.Queroteracoragemquetemohomem.Eleandanasmatasenão temmedo de cobras.O homem que trabalha ganhamais dinheiro do queumamulhereficaricoepodecomprarumacasabonitaparamorar.

Minhamãesorriuelevou-meparaacama.Masquandoseaborreciacomosmeusinterrogatóriosespancava-me.

Aminhamadrinhadebatismoéquemmedefendia.Elaerabranca.Quandocomprava um vestido para ela, comprava outro para mim. Penteava meuscabelosebeijava-me.Eupensavaqueeraimportanteporqueaminhamadrinhaerabranca.

Eu pensava em comer só as coisas gostosas. Lembro que quando comi

bananasfritascomcanela,disse:

—Quecoisagostosa!—Eporváriosdiaseufiqueipensandonasbananasfritas com canela. Se eu pudesse comer mais um pouquinho! Se eu pudessecomernovamente!

Comicocadaemlata.Oh,quecoisagostosa!Efiqueipensandonacocadaem lata.Aprimeira vez quevi sardinha em lata e comi a sardinha compão...pobremamãe!Nãomaistevesossego.Eupediaatodososinstantes:

—Quero aquela coisa gostosa.Quero aquela coisa gostosa!—E seguiaminhamãeportodososrecantos.

AtiaTeresaperguntou:

—Oqueéqueelaquer?

Ouviminhamãedizer:

—Quersardinhacompão.

Eassimfiqueisabendoqueaquelacoisagostosaerasardinha.

Euerainsuportável.Quandoqueriaalgumacoisaeracapazdechorardiaenoite até conseguir. Eu era persistente em todos os caprichos. Pensava que oimportanteéconseguiroquedesejamos.

Eosmeusdesejoseramsatisfeitos.Oúnicomeiodeminhamãeconseguirpazeramecontentar.Aminhamãeeratolerante.Meolhava,sorriaedizia:

—Vejaacaradela!

Nãomeespancava.

Asvizinhasmeolhavamediziam

—Quenegrinhafeia!Alémdefeia,antipática.Seelafosseminhafilhaeumatava.

Minhamãemeolhavaedizia:

— Mãe não mata o filho. O que a mãe precisa ter é um estoque depaciência.

OsenhorEurípedesBarsanulfodisse-mequeelaépoetisa!

2

ASMADRINHAS

Quando a minha mãe ia trabalhar, deixava-me aos cuidados de minhamadrinha,asiáMaruca.Quandocompleteiseteanos,aminhamãeconvidouadonaMatildepara crismar-me.Ela comprouumvestidode chitapara euusar.Quando vesti o vestido, pensei que estava muito bonita. Olhava todos quepassavampelas ruas para ver se estavamme olhando por eu estar usando umvestido novo. Como é bom ser criança, época em que tudo que é novo temimenso valor para nós! Eu estava descalça porque a minha mãe não pôdecomprarum“pédeanjo”paramim.

Fuicomaminhamadrinhaparaaigreja.Elaalugouumcarrodepraça.Ococheirodocarroeraoprimomulatodeminhamãe,JoséMarcelino.Elecobrouquinhentosréisporpessoa.Aminhamadrinhadeu-lhedezmil-réis.Eupensei:“Puxa,elatemmuitodinheiro!Jásouimportante,tenhoumamadrinharica.”

As pessoas adultas circulavam pelas ruas acompanhadas das crianças,segurando-aspelasmãos.Aigrejaestavasuperlotada.Osaltaresenfeitadoscomflorescor-de-rosa.

Aminhamadrinhafezagenuflexão.Perguntei:

—Porqueéqueasenhoraseajoelhou?

—Quandoestamosnaigreja,temosqueajoelharparasaudaroSantíssimoSacramentonoaltar.

Asmulheresdaroçaestavamnacidadeparacrismarascrianças.Usavamvestidos compridos e estampados. Os cabelos eram penteados em coques, oucachos,ouentãotrançascomfitas.ObispoeradeUberaba.Aminhamadrinhameexplicavaqueopadrebatizaeobispocrisma.

As velas estavam acesas.Os que entravam na igreja levavam flores. E a

fusão das cores alegrava o templo santo. O perfume do incenso e das floresmesclava-se.Aquiloparamimeraumdeslum-bramento.

Depoisqueminhamadrinhacrismou-me,voltamosapé.Euacheiumlençoeaminhamadrinhadissequeeupoderiausá-lodepoisqueolavasse.

Pensei:agoratenhoqueobedeceràminhamadrinharicaquetemdezmil-réis.Fiqueipensando:“Tenhotrêsmadrinhas,qualéamelhor?Umapreta,umamulata e a outra branca.” A branca era tão boazinha que eu a alcunhei demadrinhadoce.AsiáMarucaerapreta.Maseracarinhosa,penteavaetrançavaosmeuscabelos.AmadrinhaMatildequemecrismoueramulata.AmadrinhaMariinhaeraabranca.

Minhamãedizia:

— Quando a mãe morre, a madrinha é obrigada a criar o afilhado. Amadrinhaéasegundamãe.Vocênãopodexingarassuasmadrinhas,vocêtemquerespeitá-las.

Eu eramagrinha e o vestido era folgado, eu parecia um palito dentro dovestido.Euiaobservandotudo.Quealegriaquandochegamosnacasademinhamadrinha!Almoçamossentadasnamesa.Arroz,feijão,torresmo,carnedeporcoequiabo.Asobremesa:arroz-docecomcanela.Oh,quecoisagostosa!Exclamei:

—Seeupudessecomeroutravez!

Fiquei com vergonha.Minhamãe havia-me recomendado: eu deveria serbem-educada com as minhas madrinhas. Se a mãe mandar o filho ir para oinferno,sóamadrinhaéquemvairetiraracriançaquandoéoseuafilhado.

Paramim omundo consistia em comer, crescer e brincar. Eu pensava: omundo é gostoso para viver nele. Eu nunca hei de morrer para não deixar omundo.Omundoháse ser sempremeu.Seeumorrer,nãovouvero sol,nãovou ver a lua, nem as estrelas. Se eume encontrasse com Deus ia pedir-lhe:“Deus,dáomundoparamim?”

Passei o dia com aminhamadrinha.Às oito emeia da noite eu fui paraminha casa. Mas o meu desejo era morar definitivamente com a minhamadrinha.Nãocomenteiodia felizquepassei.Maspensei constantementenaminhamadrinha.

Deiteieadormecilogo.Quandoospássarosiniciaramasinfoniamatinal,eudeixeioleito,abluí-meefuicorrendoparaacasademinhamadrinha.Quandoelaabriuaportaeupuleiparadentroedisse-lhe:

—Abênção,madrinha!

Elaassustouerespondeu:

—Deus...te...a-ben-çoe.

Passeiodiacomaminhamadrinha.Eladeu-mebananasfritascomcanela.

—Hum,quecoisagostosa!

Euestavasupersatisfeitacomaquelamadrinhaquemedavacoisasgostosasparaeucomer.Puxa,comoébomterumamadrinha!

Nooutrodialevanteiefuicorrendoparaasuacasa.Assimqueelaabriueudisse:

—Abênção,madrinha!

Elarespondeudividindoaspalavras:

—Deus...te...a-ben-çoe.

Passeiodiacomaminhamadrinhamasnãocomidoces.Atardefuiparacasadescontente.Masmesmoassim,quandoodiadespontou,láfuieucorrendo.Quandoelaabriuaporta,estavaeu:

—Abênção,madrinha.

Elanãomerespondeu,masfezassim:

—Hum...hum...hum...

Olhou-meedisse:

—Seeusoubessenãocrismavaestamenina.

Fiqueimagoadíssima.Fuiparacasatristonha.Ejurei:“Nuncamaisheideir

nacasademinhamadrinha!”

No início ela não se preocupou. Passaram-se meses e anos. De vez emquando ela mandava um prato de carne picadinha lá em casa. Só o cheirodespertava o apetite.Nós comíamos.Eu comia amaior parte, porque era paramimqueelaenviava.Omeuirmãomeinvejava:

—Vocêsiméquetemmadrinhaboa.

Minha mãe mandava eu levar os pratos. Eu não ia para não quebrar ojuramento.Omeuirmãolevava-os.

Elacriavaumameninaquefaziaoserviçorudimentarsairdemanhãparaprocurarcortagemparaosporcos.

Minhamadrinha adoeceu, eu não fui visitá-la. Elamorreu, eu não fui noenterro. Não fui vê-la pela última vez. Tinha opinião e dizia que quando medesligodealguémhádeserparasempre.Rezaramoterço.Eunãocompareci.

OmeupadrinhoCassianoeameninaficaramcuidandodacasa.Demanhã,lá ia amenina retirar as cortagens do hotel.Cortava os pedaços de carne queencontrava na cortagem e guardava. Depois fervia água e despejava nacortagem.

Omeu padrinho estava em casa.Deixou o trabalho até normalizar a suavidanovamente.Observavaamenina trabalharparaver se ela sabia cuidardacasa.Elapegavaumamarmita,retiravaagorduracoaguladadacortagemedizia:

—Olha,tioCassiano,estacortagemosenhorpodedaraosporcosporqueeujárecolhiagordura.

Perguntouomeupadrinhopreocupado:

—Oqueéquevocêfazcomestagordura?

—Comestagorduraeuvoufazeracomida.Amadrinhafaziaassim.

—Eaquelacarnequevocêretiroudacortagem?

—Aquelacarneamadrinhacortava,depoispicavaerefogavacomcheiro-

verdeetomateefaziaangu.

—Eaquelepãoduroquevocêguardou?

—Aquele pãoduro, amadrinha amolecia no leite de cabra e deixavanoforno.Nóscomiamos.comcaféeficavagostoso.

—Eodinheiroqueeudavaparaelafazerascompras?

—Elaguardavadentrodeumalata.

—Ondeestáalata?

Ameninaconduziuomeupadrinhoparaoquarto,puxouumcaixotequeestavadebaixodacama,retirouumsacoqueestavadentrodocaixoteedentrodosacoestavaumalatacomodinheiro.

—Omeupadrinho ficou admirado coma quantidadedemoedas de doismil-réis, de notas de cinco, dez, cinqüenta, cem e duzentos. Passaram a tardecontando o dinheiro: treze contos. Ele ficou abismado pensando com quefinalidade ela ajuntava aquele dinheiro. Perguntou. Ela dizia que era paraconstruirumacasacomalpendreparaelaandarpraláepracá.

Omeupadrinhoexaltou-se:

—Cadela! Ordinária! Me dava cortagem para eu comer só para ajuntardinheiro.Eladeviaserlouca!

—Eelacomia?

—Comia,padrinho.

Omeupadrinhodeuumlongosuspiro,comentando:

— Infelizmente o homem não conhece a sua esposa profundamente, nãosabecomquemsecasa.Háquantotemposeráqueestoucomendoestetipodecomida? Que sacrifício tremendo para conseguir uma casa com alpendresomenteparaandarpraláepracá.

Quandoaminhamãesoube,cuspiuedisse:

—Elameconvidavaparaeuiralmoçaropicadinhocomangu.Euestavasempreprometendoqueia,masnãotinhatempo.

Omeuirmãocomentou:

—Oquenãomata,engorda.

Comos trezecontosomeupadrinhocomprouterrasparaplantar lavoura.Quinzealqueiresdeterra.Eraoseusonhoconcretizado.Maselesaboreavaemsilêncio.Diziaqueodinheiromaisbem-empregadoeraodinheiroquesegastacomprando terras. Os que compram terras não estão empobrecendo, estãoenriquecendo.

Contraiunovasnúpcias.Ouvidizerqueficourico.

Como se vê, todos têm um ideal que é o combustível da alma.Aminhamadrinhapoderiaterconstruídoasuacasacomalpendreparaandarpraláepracá...

QuandoaminhamadrinhaMatildenãotinhanadaemcasaparacomer,elapegavaumpratovazioeumgarfoeficavadepénaportaprincipaldesuacasa,fingindoqueestavacomendoedizendo:

Faço isto para os meus vizinhos verem que eu não passo fome, porquesempreexisteumvizinhodelínguagrande.

3

AFESTA

Eu ficava horrorizada quando via as mulheres abraçando os homens.Pensava:

“Por que será que as mulheres abraçam os homens, e os homens ficamcontentescomoscarinhosdasmulheres?”

O que preocupava aminhamãe era aminhamentalidade. Se alguém lheperguntava:

—Atuafilhaélouca?

Elarespondia:

—Aaparênciaédelouca.Masnãoé.

Recordoquandoaminhamãeteveumamenina.Nasceumortaepodre,comas carnes desligando-se dos ossos. As pessoas que iam visitá-la, saíamvomitandoecomentando:

—Eununcavininguémnascerassim.

Eles diziamque era sífilis. Ficavapensando: “Oque será sífilis?Quandoseráqueheideaprendertudoquehánomundo?”Minhamãediziaquetrabalhoudemasiadamente, lavandoascolchasdealgodão,mistascomlã tecidasnotear.Quandomolhadaspesavamsetentaquilos.

Às vezes eu notava as agitações do povo comprando tecidos paraconfeccionar vestidos para usar no dia do ano-novo. Por que será que todosfalame sorriemnestedia?E estesdias eramcomemorados combailes.Quemseráqueinventouobaile?Maseunotavaqueodiadoano-novoeraumdiaigualaosoutroscomassuasmisériaseangústias.

Depoisdoano-novoeraocarnaval.Entãoomundoésempreassim?Todososanoséamesmacoisa?Minhamãedissequenão.

Oúnicomêsqueeusabiaqueexistiaeraomêsdemaio.Eosnegrosiampediresmolas.SaíamcomumabandeiracomoretratodesãoBenedito.Quandochegavamnas casas dos ricos, asmadamas introduziama bandeira dentro dosquartos e salas suplicando ao santo que lhes auxiliasse. Embora elas tivessemcasas paramorar e alugar, roupas bonitas, comida em abundância, automóvel,banheiros com água quente para tomar banho todos os dias. Vivendo comconforto, ainda pediam o auxílio dos santos. Puxa! Será que os ricos não secontentam,comoquetêm?Paraqueessesdesatinosparaficarrico,sequandomorredeixatudo!Elasdavamaesmola,masfaziaminúmerospedidos.

Nodiadafesta,oAméricodeSousa,filhoderico,eraalegreejocoso.Paraassustarosnegrosquedançavamacongadapelasruas,elelevantavaàstrêsdamanhã e fazia três cruzes de cinzas nomeio da ponte que ia para o largo doRosário.Quandoos negros que dançavama.congada iam atravessar aponte eviamas cruzes, ficavamcommedopensandoque era feitiço.OAmeriquinho,reunidocomosoutrosbrancos,davarisadas.

MasoJoséSantana,queeraogalãdafestae tinhaumternodecongada,pulavapor cimadas cruzes de cinzas e eraaclamadoherói pelopovo.DepoisqueoSantanahaviapuladoporcimadascruzes,ofeitiçodeveriairparaele.

Oqueeunotavaéquenas festasdosnegrososbrancosnão iam.Umdiaapareceuumsenhorquenãotinhaaspernas.Distribuiuunsconvitesconvidandoopovoparairouvi-lotocarviolãonocineRecreio.TocouavalsaSaudadesdoMatão. A valsa já era por demais conhecida. Não foi um sucesso. Creio queestava aprendendo, porque não sabia ajustar a melodia tocando e a músicacantando.Oueramentiroso.

Vaiaramopobrehomem!

—Fora!VaitocarlánaChina!

Quegargalhada.Todossorriam,menoseu.

Porquea tristezaquenoteinorostodoartistarevelavaquedeveriaexistirqualquercoisafunestanasuavida.Seriaocomplexopornãoteraspernas?

Tinhahoraqueeutinhaummedodomundo!Eraquandoouviaoshomensfalaremnasdificuldadesqueháparaumhomemencontrar trabalho.Omundonãoéumparaísoparaohomem.AguerradoParaguai foi trágica,oshomensmatavam-secomcanhõesebombasdinamites.

Quando eu estava com os adultos, ouvia eles falarem coisas que eu nãocompreendia.Quandoestavacomascrianças,brincávamosderoda,contávamosasestóriasdefadas.Edaprincesaqueiadançarnoinferno,porqueeranamoradadodiabo.

O povo já estava afoito para festas juninas. E todos falavam em santoAntônio,sãoJoãoBatistaesãoPedro.

Umamulher haviamandado um rei cortar a cabeça de são João Batista!Pensei: “Asmulheres tambémmandamnomundo!Ah! então eu tambémvoumandar, só que não vou consentir que cortem as cabeças dos homens. Asmulheres brigam por causa dos homens, gostam de beijá-los, choram porquequeremoshomensedepoismandamcortaracabeçadeumhomem.”

ComoodieiamulherquemandoucortaracabeçadesãoJoãoBatista.Nãodormi,pensandonadorqueelehaviasentido.FoioreiHerodesquemmandoucortá-la.

Puxa! Então os reis são poderosos. Fiquei com medo dos reis, graças aDeusaquino-Brasilnãotemosrei.Umreinãodevesermau.Eledeveserbom.

OuviafalarquehaviamcrucificadoJesusCristo.QueJesusCristotambémeraumreimasmaispoderosodoqueosoutrosreis.

AscriançasestavamalegresporquenafestadesãoJoãoiamcomerbatata-doce e beber quentão.Os homens cortavam a lenha para fazer as fogueiras, epreparavamotoldoparaobaile.

Os dias de são João e santoAntônio eram designados ao casamento. Asmulheresdiziam:

—EumecaseinodiadesantoAntônioparaelemeproteger.

Mas euouvia dizer que é o homemquemdeveproteger amulher depoisquesecasam.Comoeralindaamentalidadeinfantil!

Eu achava o mundo feio e triste, quando estava com fome. Depois quealmoçavaachavaomundobelo.

Pergunteiaminhamãe:

—Omundoétãobom!Eleésempreassim?

Não respondeu-me. Dirigiu-me um olhar tão triste, um olhar quepreocupou-me.Masinsisti.

—Mamãe!Mamãe...fala-medomundo.Oquequerdizermundo?

Elamedeudoistapas,saícorrendoechorando.

MinhatiaClaudimiradisse:

—Vocêprecisadarumjeitonestanegrinha.Elavaitedeixarlouca.

4

SERPOBRE

Minhamãeme espancava todos os dias.Quando eu não apanhava sentiafalta.Entãocompreendiqueovovôeraomeudefensor.

Omeuirmãoeraopredileto.

Quandoamamãemebatiaeu iaparaa casadomeuavô.Eraumachoçaquatroáguascobertacomcapim.Semelhanteàsocasdosíndiosqueeuvianoslivros.Acasadovovôeratãopobre!

Elecatouquatroforquilhaseenterrou-asnochão.Pôsdoistravessõeseastábuas. Era a cama com um colchão de saco de estopa cheio de palha. Umacobertatecidanotear,umpilão',umarodadefiaroalgodão,umagamelaparalavarospéseduaspanelasdeferro.Nãotinhampratos,comiamnacuia.

SiáMaruca, amulherdomeuavô, eraboazinha.Não reclamavadavida.Erarisonha.Nãoseiseaquelesorrisoeraumrisoderesignação.

Todas as tardes o vovô rezava um terço. Nós ajoelhávamos diante docrucifixo.Eu ficavahorrorizadavendoospregosnasmãosdeCristo.Quedorqueeledevetersentido!

O homem devia ser superperverso para ter a coragem de pregar aquelescravos nas mãos de Jesus Cristo. Não há mérito para os que matam o seusemelhante.Elesnãovãorecebertroféus.

O vovô já estava queixando-se que estava sentindo dores nos rins masmesmo assim foi ouvir o senhor Manoel Nogueira. Ele nos dizia que osfazendeiros estavam desesperados, os italianos abandonavam as fazendas.Quandoelesviramoscolonosbrancosdesinteressarem-sedaslabutasrudesdoscampos,iamnascidadesàprocuradecolonos.Nãofaziamquestãodecor.Nãoselecionavam.Quantaspromessas!Diziamaosnegros:

—Vocêspodemirparaaminhafazenda.Eumandeiconstruirumsalãodebaileparavocês.Eumandobuscaro sanfoneiro JuritãoMarangoni, para tocarpara vocês dançarem. E, no fim do ano, eu trago o Jazz-Band BicoDoce, deRibeirãoPretoparatocarparavocês.

Mas os negros não iam porque na cidade também havia serviço,conseguiammuitopouco.

EosenhorNogueiradizia:

—ElestiraramosãoBeneditodalavouraecolocaramosãoGenário.Eamaniadobrasileiro,temoremédionopaís,maspreferemimportardaEuropa.

E as lavouras de café foram enfraquecendo-se. O último recurso foi osfazendeiros deixarem suas terras e estabelecerem-se nas cidades. Muitosdeixavamsuasterraschorando.

—É o início do fim doBrasil, porque agora nós vamos para a cidade evamos ser consumidores, seráumaminoriaque irá produzir paraumamaioriaconsumir.

Elesprometiamaosnegros:

—Voltemparaalavouraquenósvamostratá-losbem.Aceitamosassuasreivindicações.

A maioria dos negros eram analfabetos. Já haviam perdido a fé nospredominadoreseemsipróprios.

Otráficodenegros iniciou-senoanode1515.Terminounoanode1888.Osnegrosforamescravizadosdurantequase400anos.

Quando o negro envelhecia ia pedir esmola. Pedia esmola no campo.Osque podiam pedir esmolas na cidade eram só os mendigos oficializados. ACâmaradavaumachapademetalcomumnúmero,depoisdeexaminadopelomédicoe ficar comprovadaa sua invalidez.Eomendigonãopodia emprestardinheiroajuro.Eramfiscalizados.

Minhamãelavavaroupapordiaeganhavacincomil-réis.Levava-mecom

ela. Eu ficava sentada debaixo dos arvoredos. Omeu olhar ficava circulandoatravésdasvidraçasolhandoospatrõescomernamesa.Ecominvejadospretosquepodiamtrabalhardentrodascasasdosricos.

Umdiaaminhamãeestavalavandoroupa.Pretendialavá-ladepressaparaarranjardinheiroecomprarcomidaparanós.Ospoliciaisprenderam-na.

Fiquei nervosa. Mas não podia dizer nada. Se reclamasse o soldado mebatiacomumchicotedeborracha.

Eanotíciacirculou.

—ACotafoipresa.

—Porquê?

Quandoomeu irmãosoubequeamamãeestavapresacomeçouachorar.Rodávamos ao redor da cadeia chorando. A meia-noite resolveram soltá-la.Ficamosalegres.Elanosagradeceudepoischorou.

Eupensava:“Ésóaspretasquevãopresas.”

QuandoosenhorManoelNogueirasoubeficoupenalizado:

—CoitadadaCota.Nãofazmalaninguém.

Para prender alguém é preciso existir motivos. O que eu não possocompreender é como é que eles podem aceitar um tipo analfabeto para serpolicial. De duzentos homens, apenas dez sabiam ler. O último recurso eraaceitaropolicialanalfabeto.Quandoelesrecebiamfaziamumacruz,paraprovarquehaviamrecebidoosoldo.

Umdia,euandavapelas ruas, iacontente.Ganheiuma lima iaofereceràminhamãequandoapareceuoHumbertinhoemetomoualima.Chorei.Eleerabranco.Tinhaservidonoexército.Asvezeselevestiaafarda.PareciaoRodolfoValentino,eramaisbonito.Quandoeuencontrava-o,xingava:

—Medáaminhalima!Medáaminhalima.

Todos temiam-no,eleera filhodo juiz.Eo juizmandaprender.Eledava

vazãoaoseuinstintosatânico.

Umatardequandoeupassavanafrentedesuacasa,eleabordou-meemejogouváriaslimasnorosto,naspernas.Quedor!Entãoeuxinguei:

—Cachorroordinário,ninguémaquigostadevocê!

Vaiembora,vocêéumsujo."

Foram contar ao doutor Brand que foi ver a nossa discussão. Ele nãocompreendiaporqueaquelaslimasestavamnochãoespalhadas.Euxingava:

—Esteordináriovivepegandonoseiodasmeninaspobres,apertaedeixaelaschorandomasemmimvocênãovaiencostarassuasmãos.

OdoutorBrandinterferiu:

—Vocênãotemeducação?

—Eutenho.Oteufilhoéquenãotem.

—Calaaboca.Eupossoteinternar.

—Paraoseufilhofazerporcariaemmim,comofazcomasmeninasqueosenhor recolhe? Émelhor ir para o inferno do que ir para asua casa.DoutorBrand,aqui todos falamdosenhor,masninguém temcoragemde falarparaosenhor.Os grandes não têm coragemde chegar e falar!O seu filho entra nosquintaisdospobreseroubaasfrutas.

Foram avisar aminhamãe que eu estava brigando com o doutor Brand.Foram avisar os soldados. O povo corria para ver a briga. Quando o doutorBrandcaminhounaminhadireção,nãocorrieelenãomebateu.

Minhamãepuxou-me:

—Calaabocacadela!

Gritei:

—Deixa,istoaquiéumabrigadehomemcomhomem.

Falei:

—OlhadoutorBrand,oseufilhomeroubouuma lima.Todos têmmedodele,eunãotenho!Elenãorecebeconviteparairnasfestasdosricosporqueosricosnãoqueremmisturar-secomele.

—Calaabocanegrinhaatrevida.

—Atrevidoéoseufilhoporqueéfilhodejuiz,nãorespeitaninguém.

Quandoeleiamebater,eudisse-lhe:

— O Rui Barbosa falou que os brancos não devem roubar, não devemmatar.Nãodevemprevalecerporqueéobrancoquempredomina.Achavedomundo está nas mãos dos brancos, o branco tem que ser superior para dar oexemplo.Obranco temquesersemelhanteaomaestronaorquestra.Obrancotemqueandarnalinha.

OdoutorBrand,disse:

—Vamosparar,euvoudeixarasuacidade.

Minhamãepegouaminhamãoelevou-meparacasa.Opovopedia.

—Nãobatenela.

Nemossoldadosnãomexeramcomigo.Minhamãenãodeixavaeusairdecasa.TrêsdiasdepoisodoutorBranddeixouacidade.DissequeiaparaoRiodeJaneiro.

Que dó que eu tive do doutor Brand. Chorei com dó da dona Sinhá, aesposadojuiz.Quemulherboazinha!

Quandomeviamnasruas,aspessoassorriamparamimdizendo:

—Quemeninainteligente,nosdefendeu!Limpouacidade.

Todosmedavampresentes.Ganheivestidosnovoseusados.As filhasdofarmacêuticoJoséNetomederamdoisvestidosdeleseemeperguntavam:

—Vocêjásabeler?

—Nãosenhora.

—Puxa,quandosouberentão!Vocêpromete,menina.

DiziamqueforamaspalavrasdeRuiBarbosa,quemencionei,quefizeramojuizretroceder.Queeufalavaporintermédiodeumespírito.ÉqueeuouviaosenhorNogueiralerOEstadodeSãoPaulo.

Anossa vidamelhorou umpouquinho quando aminhamãe foi trabalharpara a dona Mariquinha, esposa do senhor José Saturnino. Que família boa!Povoculto.Eramespíritas.Oquintaleraamplo,comváriasárvoresfrutíferas.

Euacompanhavaofilhodopatrãoqueiamatarospassarinhos.Ospássarosjánosconheciam.Voavamquandonosviam.EueoEbanthoficamosamigos.Umaamizadegostosa,sóparabrincarmosjuntos.

Na pensão do senhor José Saturnino residia um cego, o senhor EpifânioRodrigues,quepediaesmola.

Quando os meninos conduziam-no pelas ruas, roubavam-lhe o dinheiro.Quecoragemderoubarumcego!Oladrãonãopodeirparaocéu.Quandoeuoconduzia,lheentregavatodoodinheiro.

Eledizia:

—Oh!Bitita!Vocêétãocorretaquedeveriaternascidohomem.Ohomemhonestoecorretoésolterrestre.

Eu pensava que deveria passar por debaixo do arco- íris, para virar ohomemcorretoparaauxiliaroshomens.Echoravaquandoelecomentava:

—Comoétristesercego.Oh!Deus!porquemedesteestaprovação!Quemaleufizpararecebertremendocastigo.Asmaldadesqueosmauspraticammecausamnáuseasmentais.Háosque,quandotêmvista,utilizam-naparapraticaromal.Háosquepassamanoiteestudando,esforçandoparainventarumaarmapoderosaparaaniquilarahumanidade.

Ficava com dó. Se eu pudesse dar-lhe um dosmeus olhos!Mas, eu nãoposso! Revoltava-me pensando que todas as pessoas deveriam ser iguais.Repetiamentalmente as palavras do senhorEpifânio: “Quemal eu fiz aDeus

pararecebertãotremendocastigo!”

EntãooDeusqueonegrodizqueéonossopaipodecastigarumhomemdeformatãoimpiedosaassim!Quecastigorude!QuedevofazerparanãoreceberoscastigosdeDeus?

OuvifalardesantaLuziaqueeraaprotetoradoscegos.Supliquei-lheparadarnovosolhosaostrêscegosdeminhacidade.EramosenhorEpifânio,oJoãocego,queerapreto,eosenhorJosécego.Eleerabenzedor.Benziaascriançasqueestavamcomquebranto,easmulheresqueestavamcomdordecabeça.Elebenziaassim:

“AssimcomoDeusfoi,Deusé.

Deusfaztudoqueelequer.

MeubomJesusdeNazaré

NossoSenhorbenzeuseufilhoparachorar.

EubenzoaMariaparasarar.

Estrelaformosa,donzela

preciosa,retiraiasmazelas

docorpodestacristã.Amém!”

Omeucérebroanotavatudoqueeuouvia,semesforço.

Elemorreuintoxicado.Foiocadávermaisbonitoquejávi.Quepena.Umhomem tãobom.Omundopara o cegodeve ser horroroso.Ouvi umamulherdizerqueocorpoéoenvelopedaalma.

OJoãocegotocavaviolãoecantava.Aspretinhasiamprocurá-loparalevá-lo aosbailes.Ele eraum semi-sultãonaquelenúcleo, ouvindoo seunome serpronunciadoporváriostonsdevozes:João!João!João.

Mas, quandoquis casar-se, não encontroumulher.Ficou triste e adoeceu.Nãoprocuroumédico.Morreucomvinteetrêsanos.

Eisomotivodesuacegueira.Eleestavacomquatroanos.Suamãe,donaJoaquina, deu-lhe um prato com sopa. bem quente. Em seguida deu-lhe umbanhonaáguafria.Deu-lheumacongestãoatingindoosolhos.SeoJoãotivesseencontradoumamulhertalvezteriaforçasparasuportarasuaodisséiaelutarnavida.

As mulheres pobres não tinham tempo disponível para cuidar dos seuslares.Àsseisdamanhã,elasdeviamestarnascasasdaspatroasparaacenderofogo e preparar a refeição matinal. Que coisa horrível! As que tinham mãesdeixavamcomelasseusfilhoseseuslares.

As empregadas eram obrigadas a cozinhar, lavar e passar. As refeiçõesdeveriam ser preparadas com artifícios: cestinhas de tomates, recheadas commaio-nese, cestinhas de batatas, recheadas compresuntomoído, azeitonas etc.As refeições eram servidas assim: primeiro uma sopa; após a sopa, servia-searroz, feijão, carne, salada.Quando serviampeixes, usavam-seoutros pratos eoutrostalheres,Porfim,asobremesaeocafé.

Quantaslouçaetalheresepanelasparaseremlavadas!Etinhaquearearostalheres.Lavarosladrilhos,enxugá-loscompanos.Deixavamotrabalhoàsonzeda noite.Trabalhavamexclusivamente na cozinha.Era comumouvir as pretasdizerem:

—MeuDeus!Estoutãocansada!

A comida que sobrava elas podiam levar para as suas casas. E nas suascasas, os seus filhos, que elas chamavam os negrinhos, ficavam acordadosesperandoamamãechegarcomacomidagostosadascasasricas.Nojantarascozinheirasfaziammaiscomida,parasobrar.Acomidaqueospatrõescomiamnoalmoço,nãocomiamnojantar.

Umaboacozinheiraganhavatrintamil-réispormês.Quandovenciaomêseacozinheirarecebia,elatinhaaimpressãodeserumaheroína.Enalteciaasimesmadizendo:

—Eusouforte!NãoéqualquerumaqueagüentacozinharparaodoutorSouza.

Queorgulho,quevaidade,seracozinheiradodoutorJosédaCunhaoudopresidenteFranklinVieiraeJoséAfonso.Eracomumouvirosricosdizerem:

Sabecomquemvocêestáfalando?Eusouomanda-chuva!

Easpretaspernósticasàsvezesdiziam:

—Sabecomquemcêtáfalando?Eusouacozinheiradopresidente.

Aos sábados, as cozinheiras iam aos bailes. Que suplício cozinhar aosdomingos, com sono.Mas depois do almoço elas podiam sair, passear até asquatrohoras,evoltarparaprepararojantar.Eelasnãosesaciavam.

No sábado seguinte iam dançar novamente até seis da manhã. Aosdomingoselasdeviamirparaotrabalhoàssetehoras,porqueaspatroasqueriamdormiratéassetehoras.

Quando as cozinheiras sentiam sono, iam lavar o rosto na água fria paradespertá-lo.Oúnicomedoeraodesalgaracomidaeapatroadaraconta.Erammuitaspessoasparatrabalharepouquíssimososlocaisparatrabalhar.Apatroaeratratadacomosefosseumasantanoaltar.Seaspatroasestivessemnervosas,asempregadasdeveriamdizer:

—Simsenhora!

Seestivessemamáveistinhamquedizer:

—Simsenhora.

Ohomempobredeveriagerar,nascer,crescereviversemprecompaciênciaparasuportarasfiláuciasdosdonosdomundo.Porquesóoshomensricoséquepodiam dizer “Sabe com quem você está falando?” para mostrar a suasuperioridade.

Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podiareclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobrenegrinha!Ofilhodapatroaautilizariaparaoseunoviciadosexual.Meninasqueainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas erambrutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira, e outrosporqueirasquevieramdoalém-mar.

No fim de novemeses a negrinha eramãe de ummulato, ou pardo. E opovoficavaatribuindopaternidade:—DeveserfilhodeFulano!Deveserfilho

deSicrano.Masamãe,negra, incientee semcultura,nãopodia revelarqueoseufilhoeranetododoutorX,ouY.Porqueamãeiaperderoemprego.Quelutaparaaquelamãecriaraquelefilho!Quantasmãessolteirassesuicidavam,outrasmorriamtísicasdetantochorar.

Opainegroeraafônico;sepretendiareclamar,opatrãoimpunha:

—Caleabocanegrovadio!Vagabundo!

Oúnicorecurso,eraentregar-separaDeus,queéoadvogadodospobres.EseodoutorOliveiraqueestudouemCoimbradissesse:

—Negro ladrão...—aquilo ia transferindo-sedebocaemboca.Eaquelenegro,semnuncaterroubado,eraumladrão.PorqueodoutorqueestudouemCoimbra disse! E não se reabilitava jamais. E o preto era regional, não tinhacoragemdedeixaro seu torrãonatal.Ficavapor alimesmoe transformava-seemchacotadamolecada.

E o filho do senhor Oliveira, depois de farto da sedução de mocinhaspobres, decidia casar-se com a filha do senhor Moreira, ela era rica. Elenamorava-acomtodorespeito.Quandoosnegrosreuniam-sefalavam:

—Temumbaiano,odoutorRuiBarbosa,quequerqueonegrováàescola,masosbrancosfalamquejáderamaliberdadeparaosnegrosechega.

Mas o Rui falava que a liberdade sem cultura e sem instrução não iabeneficiá-los.Onegroincultoseránômade,indolente,eimiscível.Nãoseráumbraçopara impulsionaraNação.Serásempreumaboca.Oanalfabetonão temforçasparaevoluirnavida.Eleserásempreummúsicodeouvido.

EosnegrosgostavamdoRui,edaprincesaIsabel.Omeuavôcontavaque,após a libertação dos escravos, quando nascia uma negrinha, ao batizá-la, opadrejádiziasemperguntaronome:Isabel.

ORuidiziaqueonegrodeveriaserconservadonalavoura.Quenumpaísénecessário terumaclasse telúrica.Ele ficariano trabalhoatéàs trêsda tardeeestudariaànoite.MasosdoutoresdeCoimbradiziamquequemdeveriaestudareram os filhos da classe predominadora, e não os que deveriam serpredominados, que o amo e o servo não poderiam ter sapiência igual. O Ruidiziaqueasapiênciaénata.Oestudoéparaesclarecer.Ele faleceunoanode

1923- Que perda para o país! Nas exclamações dos amigos e inimigos elesdiziam:

— Será que vamos ter um governo que preparará um Brasil para osbrasileiros?

5

UMPOUCODEHISTÓRIA

Noanode1924,surgiuarevoltadogeneralIsidoroDiasLopes.Ninguémsoube o porquê daquela revolução. Oposição contra o presidente ArturBernardes?

Promoveramuma campanha “Doe ouro para o bemdoBrasil”.E até emSacramento,minhaterranatal,apareceramangariadoresdeouro.Emcadacasaqueeleschegavamrecebiamqualquerobjetodeouro.Porqueasdonasdaquelaresidência não queriam ficar desprestigiadas. Davam o ouro, e recebiam umaaliançadechumboecobre,comumainscrição:“DeiouroparaobemdoBrasil”.Easmadamasusavamaquelasaliançascomênfase.

Propagou-se que se arrecadaram noventa quilos de ouro. E o Brasilcontinuou com o seu povo analfabeto e aguardando outro sucessor de RuiBarbosa.Eraopolíticomarca registradadaquela época.Mesmoextinto, aindapredominava.

Eeupensava:“Porqueéqueestesbonshomens,quegostamdeauxiliaropovo,morrem?Quemdeveriamorrer e devemorrer, é só os imprestáveis.”Opovofalandodarevoluçãodissequehouvemuitosroubosnasgrandescidades,queasfamíliasamedrontadasdeixavamassuascasas,eosladrõesaproveitavamaausênciadosdonos.

A revolução empobreceu uns e enriqueceu outros. E aquela revoluçãodeixouoBrasilemdesordem.EnaBandeiraestáescrito:Ordemeprogresso.

Os soldados usavam um distintivo no formato domapa do Brasil. Verdecom uma inscrição: “Esta terra tem dono!” Para nós que morávamos lá nointeriorchegavamapenasoscomentários,bemadulterados.

A revolução não afetou o governo do presidente Artur Bernardes. Que

dizia:

—EusouochefedaNação.Entreiaquiparagovernar.Nãovouincluir-mecom os que falam muito. Com os tipos de idéias livres demais, esses tiposfalantes e frustrados. Tenho compromisso moral com o meu povo. Quereconhece a minha boa vontade de servi-lo. Me considero um funcionáriopúblico.

Earevoluçãofoisemelhanteaumatempestade.

OpovodiziaqueosenhorArturBernardes,antesdenascer,haviafeitoumcursodiplomático,noventredesuamãe.Elevenceuosseusopositorescomasua arma poderosíssima: a educação. Podiam brigar com ele, mas ele nãobrigavacomninguém.Eraumhomemquecresceuetornou-seumhomem.Nãoeradessestiposquesãoapenashomensnaestatura.Mascontinuammolecotes,infantis.

No ano de 1925, as escolas admitiam as alunas negras. Mas, quando asalunas negras voltavam das escolas, estavam chorando. Dizendo que nãoqueriamvoltaràescolaporqueosbrancosfalavamqueosnegroseramfedidos.

Asprofessorasaceitavamosalunospretospor imposição.Masseonegronãopassavadeano,asmãesiamprocurarasprofessorasediziam:

—A senhora não deixoumeu filho entrar no segundo ano porque ele énegro,maselejásabelereescreveroa-b-c.OsfilhosdeJúlioBargespassaramde ano, as netas de José Afonso também. Se eu pudesse com mau-olhadoestragaravidadeumaprofessoracomoasenhora!

As professoras não respondiam. Compreendiam que havia mentalidadesopostas.Umapessoacultaeumapessoaincultanãochegavamaumaconcórdia.Elasdiziamquetodaprofissãotemseuladonegativo.Depoisexclamavam:

—Os abolicionistas, vejam o que fizeram! Essa gente agora pensa quepodefalardeigualparaigual.Eu,naépocadaabolição,tinhamandadotodaessagenterepugnantedevoltaparaaÁfrica.

EosdoutoresdeCoimbrainsultavamD.PedroII:

—Cão!Eledeviaperderanacionalidadeportu-guesa,estasterrasdeveriam

permanecercolôniaportuguesa.

Naquela época, os dois únicos negros importantes eramPatrícioTeixeira,umcantor,eodoutorAzevedoCostadeUberaba.Eosnegroscomentavam:

—Graças a Deus agora nós temos negros ilustres, temos um negro quecantanosdiscoseoutroquedáreceitas.Asfarmáciasvendemosremédiosqueelereceita,OdoutorAzevedoCostatemumhospitalqueeleconstruiu:

Euerapequenaeficavaouvindoosvelhosfalarepensava:“Eunãoheidemorrersem-conhecerodoutorAzevedoCosta.Comoseráqueeleviroumédico?Oh!semefossepossívelvirardoutora...euiaserdoutoraBitita.”

Na cidade, o homem humano que estava no centro era o senhorManoelNogueira.Eramulato.Eomulatoéomeio-termodasociedade.Convivecomosbrancosecomospretos.EcomonomedeNogueira,deveriaserfilhodealgumdoutordeCoimbra.O senhorManoelNogueirapassavaodia comosbrancosporqueeraoficialdeJustiça.Enoentardecerelesentavanaportadesuacasa,eliaojornalOEstadodeSãoPauloparanósouvirmostrechosqueforamditospelo Rui Barbosa; por exemplo, que cada estado deveria ceder terras para osnegroscultivar.MasesteprojetonãofoiaprovadonaCâmara.

OBrasilabriaimigraçãoparaaItália.Íamosreceberseismilitalianos,doismiliamparaSãoPaulo,doismilparaoRioGrandedoSul,ummilparaoRiodeJaneiro,eummilparaoEstadodeMinas.

Elesvinhamparasercolonos,iamarrendarasterrasdosfazendeiros,paraplantações. E os brasileiros tinham que respeitá-los. Quando os italianoschegaram,viramqueoúnicobraço ao seu alcancepara auxiliá-lo eraobraçonegro.

Ositalianosquevieramforamselecionados.Sadios,bonsdentesesabiamler.Umafamíliadeoitopessoastratavadequinzemilpésdecafé.Elescomiamcarne,polenta,queijoesopas.Opãoerafeitoemcasa.Opãoeraenorme,elescortavamasfatias.Elaseramfartas.

Que alívio para os negros! Trabalhando para os italianos, eles ganhariamummil-réispordia.Nofimdasemana,quedinheirão!Seismil-réis,eosnegroscompravam-sapatos e até o famoso terno de casimira. Para os italianos nãofaltavamoscamaradas,porqueeleserameducadosecarinhososcomosnegros.

Quandoositalianosfaziambailesaossábados,deixavamsuasfilhasdançarcom os negros, que ficavam envaidecidos. E no domingo eles reuniam-se nasesquinasparacomentar:

—EudanceicomaConcheta.EudanceicomaPina.

Na segunda-feira, o negro que dançou com a Concheta, e o negro quedançou comaPina trabalhariam como se fossemquatro homens.Empolgadosporqueositalianosnãoeramorgulhosos.

Eles plantavam todos os cereais, criavam porcos, galinhas e vacas. Nãoencontravamoposiçõesdosfazendeiros.EoBrasilagrícolaeraoBrasilrico.EraoBrasilfamoso.Ascolheitaseramfartas.

Nosdiasdasemana,ostrabalhadoresdesapareciam.Voltavamaossábadospara a cidade. Suas esposas trabalhavam para as famílias ricas. Um doutorganhava quinhentosmil-réis pormês, e residia num palacete.Os seus criadoseram:cozinheira,copeira,lavadeira,choferecostureira.Todoscomiamnacasado doutor. E andavam bem vestidos. O carro do doutor era o Buick. Elastrabalhavamo ano todo, e no fimdo ano, se fossemdar umbalançonos seusganhos,nãotinhamnada.

Era a lei quemmandava. Um soldado era autoridade. E havia ordem nacidade. Aos domingos, os camaradas eram os donos da cidade. Tinhampermissãoparacantar,bebereatébrigar.Mas,nasegunda-feira,seospoliciaisencontrassem um camarada nas ruas, ele tinha que justificar-se por que e queestavavadiandonodiaqueeradestinadoaotrabalho.Eledizia:

—Aminhamulherteveumfilho.

Senãohaviaditoaverdade,iapreso.

OcafédoBrasilerafamosonaEuropa.Eosfazendeirosquevendiamtantocaféeramtipos incultos,quequandoenriqueciamnosobrigavama tratá-losde“coronel”.Eeracoronelportodososrecantos.

Os italianos, de colonos; foram transformando-se em fazendeiros,compravamáreasnasgrandescidades.Construíamcasasparaalugá-las,vilas.Emandavamnascidadeseviviamcomosrendimentosdosaluguéis.

No alto das casas moravam os donos. Nos porões, moravam os pretos.Quandoosnegrosbebiam,efaziambarulhonosporões,os italianosbatiamospésnoassoalho.Eraoavisopedindosilêncio!Eovozeriocessava.

Os italianos construíampadarias, lojas, e não faltava trabalho. Só que ostrabalhadores,seminstrução,nãosabiamler.Nãosabiamaplicarodinheiroqueganhavam.Odinheiroeraparacomprarroupasparausaremaosdomingos,parapassearem nos jardins, e ser admirados nos bailes. Eles não gostavam de serdenominadosdepoucaroupa.

Demadrugadaelesdeixavamacidade.Tinhammedode irempresoscomumsoldadoaolado.Quevergonha,todosolhando!Seeraépocadofrio,onegrotranspirava.Quando era posto em liberdade, desaparecia para sempre.Mas osbrancosnãoiampresos.

E estas prerrogativas, estas imunidades, estas concessões deixavam ospredominadoresmais auto-ritários.O filho do pobre, quando nascia, já estavadestinadoa trabalharnaenxada.Os filhosdos ricoseramcriadosnoscolégiosinternos.Eraumaépoca emque apenas aminoria é que recebia instruções.Aminoriaalfabetizadadesaparecia.

Opioremtudoistoeraquandoummédicoreceitavaumremédioparaumleigo, eles erravam porque não sabiam olhar no relógio. Uma máquinacomplicadacomnúmeroseospontinhoseaqueletique-taque.Enãosabiamlerasindicações.

OdoutorJosédaCunhaeraonossomédico,elereceitavaumpurganteparao senhor José Cego, e um remédio para tomar depois do purgante. A donaAmbrosina,esposadosenhorJoséCego,errou.Deuoremédiodeumavez,eopurgantedepois.Ovelhomorreu.Autópsia;envenenamento.

TinhaumanegrinhaIsolinaquesabialer.Erasolicitadaparalerasreceitas.EutinhaumainvejadaLina!Epensava:“Ah!EutambémvouaprenderalerseDeusquiser!Seelaépretaeaprendeu,porqueéqueeunãoheideaprender?”

Ficava duvidando das minhas possibilidades porque os doutores deCoimbradiziamqueosnegrosnãotinhamcapacidade.Seriaaquiloperseguição?Qualeraomalqueosnegroshaviamfeitoaosportugueses?Porqueéqueelesnos odiavam, se os negros eram pobres e não podiam competir com eles emnada?Aquelascríticaseramcomplexosnamentedonegro.

MashaviaosenhorManoelNogueiraqueencorajavaosnegros.Dizia:

—SenhorBenedito,mandaosseusfilhosàescola.Ébomsaberler.Vocêsdevem obedecer ao Rui Barbosa. Ele foi amigo de vocês. Como José doPatrocínio,comoCastroAlves.EscreveuumlivropedindoclemênciaparavocêsqueforamarrebatadosdoseuberçoqueéaÁfrica.

Ovovôchegavadotrabalho,jantavaeiaouvirosenhorManoelNogueiralerosfatosqueocorriamnomundo.AEuropaestavaesfaceladacomaguerrade1914.

Eupensava:“Seaguerranãotrazbenefíciosparaoshomens,entãoporqueéqueelesfazemasguerras?Seráqueoshomensnãogostamdeles?Nãodevemgostar,porqueeles exterminam-semutuamente.Ea épocaemqueamente dohomem metamorfoseia-se. Ele deixa de ser humano para transformar-se emanimal.Seráqueelesnãosecomovemcomosanguedosseussemelhantes?Eosqueficamaleijados?Eoshomensdizemquesãoosdonosdomundo.Quesãosuperiores. Vivem endeusando-se! E os homens consideram-se civilizados. OúnicohomemquecondenaereprovaaguerraéoPapa.Eele,nãoécasado.Nãotemfilhosparairemguerrear.”

Omeudesejoeraperguntar,aosenhorManoelNogueira,queméquesabiatudoaquiloqueestavanojornal.ElehaviaexplicadoqueojornaleraimpressoemSãoPaulo.OtioCirineuperguntou:

—OndeficaSãoPaulo?

OpretoFidênciodisse:

—Eoutropaís.EsóatravessaroRioGrandevocêentraemRifama,jáestáemSãoPaulo.

OsenhorManoelNogueiracoçouacabeçaedisse:

—É...oRuiestavacerto.Éprecisoalfabetizarestepovo.

O queme impressionava era a fé que o povo depositava no homem quegovernavaoBrasil.EraodoutorArturBernardesdaqui,doutorArturBernardesdali.Queteveumgovernoconfuso,comasgarantiasconstitucionaissuspensas.Mas,eleagiacomsapiência.

Jáqueospoderososodesprezavam,elededicou-seaospobresquesãobemmais fáceis de contentar.A primeira coisa que ele fez foi distribuir uniformespara as crianças pobres, calçados e livros. As crianças que estavam calçadosapatospelaprimeiravezsorriamediziam:

—FoioArturquemedeu.

Efoiinstituídaacaixaescolar.OBrasilinteirocomoveu-secomestegesto.Era a primeira vez que o povo recebiaalgode um governo. E quantos padre-nossoeave-maria,opovomiúdorezouparaqueDeusprotegesseopresidente!

Eózé-povinhoignorantediziaqueopresidenteArturBernardestinhasidoalunodesãoVicentedePaulaedeSantoAntôniodePádua.OsenhorManoelNogueiradavarisada,porqueeraoúnicoqueconheciahistória.Eexplicavaquenãoeraverdade.SãoVicentedePaulaera francês,enasceunoanode1581emorreu no ano de 1660. Mas o disse-disse já estava de boca em boca. E opresidenteficousendooalunodesãoVicente.

—Ah!Entãoéporissoqueninguémderrubaele.

OsenhorManoelNogueiradizia:

—Estepovonecessitadeumestudointensoparafalarcomconhecimentoenão falar pernosticamente. Quem fala com conhecimento está ensinando. Onosso território é imenso, todos devem estudar para defender o Brasil edesbravarasnossasterras.

Um lavrador ganhava trêsmil-réis por dia. Para atrair os homens para ocampo,odoutorArturBernardesmandouosfazendeirospagaremnovemil-réispordia.Pronto!Queméquenãoqueriasercamponês?Acidadeficoulimpa.

Oshomensque trabalhavamnacidade tinhaminvejadoscamponesesquerecebiam todosos sábados cinqüenta equatromil-réis.E eles tinhamdinheiroparagastarcomafamília,ecomasmeretrizes.Eoshomensficavamcontentesporquepodiamterduasmulheres.

Nasegunda-feiraelesdeixariamacidadedemadrugadaparachegarnaroçaàs seis da manhã. Os homens deveriam levantar-se antes do sol aparecer noespaço.Selevantassemdepois,eramcriticadospelosamigos:

—Eleéalmofadinha,nãogostadelevantarcedo.

Cadaumpegavasuaenxada.Trabalhavamcomentando:

—Eudormicomumamulherbranca.

Ooutrodizia:

—Eudormicomumapretinha,edeicincomil-réispraela.

—Eudeidezparaabranca.Quetaléamulherbranca?

—Quetaléamulhernegra?

Ecadaumdavaasuaopinião.

—Eu sempre falei quenãohaveriademorrer semconhecerumamulherbranca.

—Você vê como é que o mundo já está melhorando, nós os negros jápodemosdormircomasmulheresbrancas.Éaigualdadequejáestáchegando.

Ooutro falavadobaile.QuedançoucomaQuirina,eapertou-anosseusbraços,queamulhergordaémacia.

Começou a correr um boato que um soldado estava ganhando cento eoitentamil-réispormês.Enãoeranecessáriosaberler.Oshomenscomeçaramaconjeturarsedeveriamirsersoldadosoucontinuaremnaslavouras.

Os soldados militares eram fascinantes. Podiam entrar nos circos e nãopagar.Dormircomasmundanasenãopagá-las.Viajarnostrensdeferro,enãopagareogovernoaindadariaasroupas,alojamentosecomida.Ealgunsforamsersoldados.ViajavamparaUberaba.

Opresidentesoubequeiaeclodiroutrarevolução.QuandooIsidorofezarevolução,opovojáadoravaeveneravaopresidenteArturBernardes.Eopovodizia:

—Opresidentenãoentrounapolítica apenasparadeixaro seunomenahistória,vaideixarrealizações.

Eleprometeuaopovoqueiacriarasleistrabalhistas.Dizemquechegouaescrevê-las.Nãoasdivulgouporcausadaoposiçãodaimprensa.Dizemquealeique ele idealizou é diferente da atual. O melhor salário seria do homem docampo.Oseuobjetivoeradesconglomerarasgrandescidades.

OBrasil tinha famade ser opaís da fartura.E a Itália comprou arrozdoBrasilefaltouarrozparaopovo.EavendadoarrozfoiocalcanhardeAquilespara o presidenteArtur Bernardes, porque aminoria predominadora pretendiadepô-lo.

Mas o povo devia obrigações ao presidente. Em todos os lares pobresexistia uma criança que adorava o presidente. Ele foi o primeiro presidentefilantrópicodoBrasil.EleexplicouquenãomaishaveriadeexportarprodutosnacionaissemconsultaroministrodaAgricultura,epediudesculpasaopovo,

Oarrozcustavaquatrocentosréis,quinhentosréiseseiscentosréisoquilo.Ecomaexportaçãopassouacustaroitocentosréis.Eopovodiziagovernoquepermiteelevaçãodospreçosdosgênerosdeprimeiranecessidadenãoéamigodo seu povo. Ai meu Deus! Nós íamos morrer de fome. As profecias doNietzschejáestãovigorando.Noanode1870,ofilósofoalemãodisse:“Daquianoventa anos vai haver uma transformação caótica no mundo. Porque ocomérciovaiacrescentandocentavosnosseusprodutos.Noanode1970,opãoestará custandocem-mil-réis cadaum.Noanode1990,pobreohomemdesteano.”

Na época doFredericoNietzsche,cemmil-réis era o ordenado de quatrohomens da alta sociedade. Ele foi criticado. O povo dizia que ele era louco.Ninguémacreditavanestafilosofiadebotequim.Nietzscherespondeu:“Alguémdoanode1980hádeverquetiverazõesehãodeaplaudir-me.”

Os literatos da época diziam que o homemde 1970 a 1990 ia ser super-homem. Ia predominar o amor, não ia existir ladrões. Os homens já estariamsupercivilizados.Seriammaisfortesnofísicoenoespírito.Nãoiahaverguerras,nem preconceitos raciais, o homem não ia matar o homem. Porque, todaspessoas que morrem fazem falta para alguém. Eles não iam deixar os preçossubjugá-los, iamseentendercomassembléiasenãocomasarmas.Jáestariamavançados na medicina. Todos teriam profissões. A mendicância já estaráextinta.

NinguémquerialerasobrasdeNietzsche,dizendoqueeleeradébilmental.A imprensa dizia que o escritor alemão estava imitando o doutor MiguelNostradamus, o profeta francês, nascido no ano de 1503. Mas FredericoNietzschedizia:“Alguémdoanode1980hádefelicitar-meereabilitaraminhamemória.Eudisseistocomaintençãodeadvertirosinfaustosdestaépoca.”

Osvelhosdiziam:

—Estas previsões vão realizar-se no ano de 1980 a 1990.Até lá nós jáestaremos mortos. O nosso compromisso é com este povinho miúdo. Fundarvárias escolas para ilustrá-los. E Deus queira que eles tenham forças paraprepararumBrasilparaosbrasileiros.

PorqueoRuidissequeesteBrasilgrandiosoqueeleimaginavaviráquandonãomais existirem analfabetos no nosso torrão.Que o combustívelmoveu osmotoreseosaberlocomoveohomem.

Paratranqüilizaropovo,opresidentedissequeocustodevidadeveriasersempreficção,enãorealidadeeseraoalcancedetodos.

Depoisdacolheita,oarrozvoltouaoseuantigopreço.

No final do governo do senhor Artur Bernardes, várias crianças estavamalfabetizadas.Ospobres completavamoquarto ano e recebiamodiploma.Ascrianças ricasprosseguiamosestudos.Ospobresnão tinhampossibilidadesdeestudar nem o curso ginasial. E quantos meninos pobres choravam porquequeriam estudar! E quantos meninos ricos choravam porque não queriamestudar.Eelesdiziam:

—Deusdánozesaosquenãotêmdentes.

E aqueles meninos não tinham meios de aprender um ofício. Se iamtrabalharcomoFiúta,aprendiamoofíciodemarceneiro.Outros iam trabalharnalavoura.OutrosiamparaaMarinha.OutrosiamparaoExército.Paramimomundoerasemelhanteaumaprateleiracheiadegarrafasondeédifícilarranjarumlugarparacolocaroutras.

OsenhorArturBernardesfoiamuletadeourodaclassepobre.Eopovo,sabendoler,jápodiaacompanharasdatasnasfolhinhasesaberadatadoanoemcurso.Oúnicoanoqueopovonãoesqueciaeraode1914porcausadaguerra.

DepoisqueopresidenteArturBernardesdeixouogovernoopovo falavaqueoseugovernofoiumaépocadasvacasgordas.Oqueeunotavaéque,seosordenadoseramelevados,ospobrescontinuavamsemprepobres.

Os italianos e os sírios que haviam chegado ao Brasil abandonaram aslavouras e foram estabelecer-se no comércio. Os sírios não trabalharam nalavouradoBrasil.Quandoos fazendeirosviramosseuscafezaisabandonados,ficaramapavorados.Nãohaviabraçosparaaslavouras.Começaramaimploraraonegroparasercolono.

O negro foi, mas o fazendeiro não consentia que plantasse arroz nascabeceirasdoscafezais.Nãopodiaplantarfeijãonomeiodoscafezaisnãopodiacriarporcos,nemgalinhas;sócuidarexclusivamentedocafé.Ofazendeirodavaumaordemdecento e cinqüentamil-réisparao colono ir comprarosgênerosalimentíciosnumempório.Ocolonocompravafeijão,farinha,toucinho,açúcar,querosene, fósforo, fumo, sabão, e carne-seca. Não comprava arroz porque odinheironãodava.Oquecompravanãodavaparaoitodias.

Esefossepediroutraordemparaofazendeiro,tinhaqueouviristo:

—Vocêstrabalhampoucoecomemmuito.

No fim do ano, o fazendeiro ia acertar as contas com o negro, o negroestavalhedevendoquinhentosmil-réis...

Só os italianos tiveram permissão para plantar no meio do cafezal, evendiamoexcessodesuasproduções.Eofazendeiropagava-osparacuidardoscafezais.

O negro foi desinteressando-se da vida de colono, fugia das fazendaslevando apenas uma trouxa de roupas!Os seus pertences ficavamna fazenda.Voltavaàcidade.Iatrabalharemqualquercoisaemoravanosporõesitalianos,ounosbarracões.

Eu ouvia apenas os rumores que os portugueses haviam lutadodesesperadamenteparaserosdonosdestasterras.Maseunãoviaportuguesesnalavoura. Deram valor ao Brasil só enquanto o braço africano trabalhavagratuitamente para enriquecê-los. Quando eles foram obrigados a pagar osserviçosprestadospelosnegrosdesinteressaram-sedoBrasil.ElesnãoiamparaalavouraEelesxingavamosnegros:

—Negrospreguiçosos,seaindaexistisseaescra-vidãocomosbraçosparatrabalhargratuitamente,oBrasilaindaseriacolônialusa.

MásJoséBonifácio,JosédoPatrocínio,CastroAlves,LuizGama,barãodoRioBranconãoacatavamaescravidão.

Em1922,oBrasiljáhaviasidodescobertohá422anos.Eopovodizia:

—Paísatrasado.

Não era o país, eram seus habitantes que não tinham condições parainstruírem-se.

—Pergunteiàminhamãe:

—Porqueéqueomundoétãoconfuso?

Respondeu-me.

—Omundoéumacasaquepertenceadiversosdonos,seumvarre,vemooutroesuja-a.

Maséassimmesmo.Ohomemsódávaloraohomemdepoisquemorre.Seoshomensgovernamomundo,elenuncaestábomparaopovoviver,porquenão deixar as mulheres governarem? As mulheres não fariam guerras porqueelas são asmães dos homens.Mas os homens são os pais dos homens, fazemguerras,ematam-se.

MinhamãedissequenãoiadeixareuirouvirasleiturasdosenhorManoelNogueira, que eu estava ficando louca. Aconselhou-me a ir brincar com asbonecas.Fuibrincar.Nãosentiatração.Nãomeemocionei.Nãopoderiavivertranqüilanestemundo,queésemelhanteaumacasaemdesordem.Oh!semefossepossívellutarparadeixá-loemordem!

Euvia aspessoasmorreremepensava: “Quevantagem temohomemdenascersequandoeleaprendevivernomundo,jáestávelhoemorre?”

Eu observava as ações dos homens. Os pretos bebiam pinga à vontade.Quandonasciaumacriança,elesbebiamporqueestavamcontentes.Masaquelacriançaquenasciaiaviverigualaelesquandocrescesse.Quandoelesestavam

tristes,bebiampinga.Masoresultadodebeberpingaeraficaremembriagados,brigarem,mataremunsaosoutros,depois irempresoseapanhardossoldados.Eupensava:“Eununcaheidebeberpinga.Etodasaspromessasqueeufizeramimmesma,heidecumpri-las.”

Observava as conseqüências de todos os atos que praticamos.Quando osnegrosbebiam,eupensava:“Porqueésóospretosquebebem?”Masosbrancosbebiamdentrodesuascasas.Seumbrancocambaleavanasruasdiziamqueeraindisposição,mal-estar.Seumbrancobebianosbareserarepreendido:—Vocêestá imitandoosnegros?Arranjouumnegroparaseroseuprofessor?Aúnicacoisaqueestáaoalcancedonegroparaelenosensinar,ébeberpinga.Napingaelessãocatedráticos.

Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. Emuitas vezes onegroestavaapenasolhando.Ossoldadosnãopodiamprenderosbrancos,entãoprendiamospretos.Terumapelebrancaeraumescudo,umsalvo-conduto.

OsenhorManoelNogueiradizia:

—Queinjustiça.Maseunãotenhoforçasparainterferir.Euestounomeio-termo da raça humana. O meu pai é branco. Minha mãe é preta. Necessitodefenderos irmãosdeminhamãe.Eles têmodireitodevivere seremfelizes,estas hostilidades por questão de cor é mediocridade. E primitivismo dospredominadores.

Ele disse que para oRui quando os negros aprenderem a ler eles hão desaber defender-se. Não vão aceitar a coleira com humildade. Até o cão sabedefender-se.Saberosnarparaimporrespeito.Nãovãoaceitarasimposições.ORui dizia que noBrasil ainda vai haver negros doutores,médicos, advogados,engenheiroseatéprofessores.OBrasilnãovaificarassim.Oshomensdofuturovão sermais cultos.Esta canalhadeprepotentesvaimorrer.Osnegrosdevemestudarenãoguardarressentimentos.Aherançadeódionãodeve transferir-sedepaiparaofilho.

—EunãovouviverparaverestesfatosqueoRuiprofetizou.Masvocês,quando forem admitidos como empregados, não devem roubar os patrões. Oempregado vai conviver com os familiares do patrão. Tem que obedecer erespeitá-lo.Temhomemquelutaparaarranjarumemprego.Quandoéadmitido,relaxa.Opretonãodevematarobranco.Obranconãodevemataropreto.Os

pretoseosbrancostêmquedançarumaquadrilha.Ficaremvis-à-visaoredordoBrasil.

Eu já estava enjoada de ouvir: preto e branco. Achava que os homensdeveriamfalarmenosetrabalharmais.ImitarosjaponesesquevieramdoJapão.Elesfalampoucoetrabalhammuito.

6

OSNEGROS

—Seeupudessecompraristo!Seeupudessecompraraquilo!

Vestiaumvestidodeminhamãe,amarravaumbarbantenacinturaepulavao muro da vizinha, trepava nas árvores, colhia as frutas, ia introduzindo-asdentrodoseio,depoisdesciaeiasaboreá-las.

Masnãosentiatranqüilidadeinterior.Omeusubconscientemeadvertiaquehaviapraticadoumatoindigno.Eunãotenhocoragemderoubar.Devoedevereilutar para conseguir tudo com honestidade. Tinha a impressão que alguémsussurravanosmeusouvidos—sejahonesta,sejahonesta,sejahonesta—comose fosse um tique-taque de um relógio. Parece que eu tinha um preceptordirigindo-me. Quando eu ganhava uma fruta, ou comprava, não ficavaatemorizada,todostêmobomsenso.Seohomemrouba,éporqueeleécanalha.

Passados uns dias, resolvi entrar noquintal da vizinha.Quando fui pegarumamanga,acobrafoipondoaboca.Assustei,perdioequilíbrioeanoção.Fuidesprendendo-medecimaparabaixo,batendonos troncosecaínosolosemi-inconsciente.Esqueciqueestavafurtandoasmangas.Comeceiagemer,oscães,ouvindo-me gemer, ladraram e as galinhas cacarejaram. A dona Faustina foiaveriguaroquehavia.Encontrou-mecomoseiorecheadodemangas.Dirigiu-meumolharqueamedrontou-me.Percebiqueelaeraavarenta.

Repreendeu-me!

—Entãoévocêquemroubaasminhasfrutas.Negrinhavagabunda.Negronãopresta.

Respondi:

—OsbrancostambémsãoladrõesporqueroubaramosnegrosdaÁfrica.

Elaolhou-mecomnojo.

—Imagina só se eu ia até aÁfrica para trazer vocês... Eu não gosto demacacos.

EupensavaqueaÁfricaeraamãedospretos.Coi-tadinhadaÁfricaque,chegandoemcasa,nãoencontrouosseusfilhos.Deveterchoradomuito.

Estavadeitadanochãoedizia:

—Olhaacobra!Olhaacobra!—desfaleci.

Foram avisar à minha mãe que eu estava roubando as mangas de donaFaustina.Minhamãepegouumchicoteedeu-meduaschicotadas.Despertei,esaícorrendocomoseasminhaspernasfossemmovidasamotor.

Minhamãeficoufuriosaporquehaviavestidooseuvestidonovo.Eraumvestido de fustão estampado.Que suplício quando eu passava pelas ruas e osmeninosgritavam:

—Ladronademanga!Ladronademanga.

Mas isto eram cenas que passavam. E as crianças esquecem logo o quepresenciameosdiasiamdecorrendo-se.

Eunotavaqueosbrancoserammaistranqüilosporquejátinhamseusmeiosdevida.Eosnegros,pornãoterinstrução,avidaera-lhesmaisdifícil.Quandoconseguiamalgumtrabalho,eraexaustivo.Omeuavôcomsetentae trêsanosarrancava pedras para os pedreiros fazerem os alicerces das casas. Os pretos,quando recebiam aquele dinheirinho, não sabiam gastar em coisas úteis.Gastavam comprando pinga. Os pretos tinham pavor dos policiais, que osperseguiam.Paramimaquelascenaseramsemelhantesaosgatoscorrendodoscães.

Osbrancos,queeramosdonosdoBrasil,nãodefendiamosnegros.Apenassorriam achando graça de ver os negros correndo de um lado para outro.Procurandoumrefúgio,paranãoserematingidosporumabala.

AminhabisavóMariaAbadiadizia:

—Osbrancosdeagorajáestãoficandomelhorparaospretos.Agora,elesatiramparaamedrontá-lo,antigamenteatiravamparamatá-los.

Eospretossorriamdizendo.

—OBeneditoviroulebre,quandoviuospoliciais.

Quando os pretos falavam: — Nós agora, estamos em liberdade — eupensava:“Masqueliberdadeéestaseelestêmquecorrerdasautoridadescomosefossemculpadosdecrimes?Entãoomundojáfoipiorparaosnegros?Entãoomundoénegroparaonegro,ebrancoparaobranco!”

Eu notava que, com as mulheres pretas, eles não mexiam muito. Nãofaziamelascorrerem.Masfalavampalavrõesparaelasemostravamopênis,eeufuidizerparaaminhamãe:

—Sabemamãe,euviohomemmostrando,avelaparaaVitalina,efalouumascoisasqueeunãocompreendi.AfilhadaVitalinachorouedissequevaicontaraonoivodela.

Quandonãochovia,asmulheresreuniam-se,iamfazerromarias,rezaraospésdoscruzeirosemolhavamascruzesepediamaDeusparamandarchuvas,acendiamvelas.Omeuavô rezavao terço.Quemsabia rezar, era tratadocomdeferência especial. Ele recebia convites para ir rezar nos locais distantes.Depoisdoterço,nósbebíamoslicordeabacaxi,eoscomestíveiseramvariados.Broa de fubá, biscoito de polvilho. Eu ficava vaidosa por ser a neta de umhomemquesabiarezaroterço,convencidaqueéramosimportantes.Eupreferiaoarroz-docepreparadocomleitepuro.

Os oito filhos do meu avô não sabiam ler. Trabalhavam nos laboresrudimentares.Omeuavôtinhadesgostoporqueosseusfilhosnãoaprenderamaler,edizia:

—Não foipor relaxodeminhaparte.Equena épocaqueos seus filhosdeveriamestudarnãoeramfranqueadasasescolasparaosnegros.Quandovocêsentraremnasescolas,estudemcomdevoçãoeesforcem-separaaprender.

Enós,osnetos,recebíamosaspalavrasdovovôcomosefossemumseloeumcarinho.

Omeu avô era um vulto que saía da senzala alque- brado e desiludido,reconhecendo que havia trabalhado para enriquecer o seu sinhô português.PorqueosquehaviamnascidoaquinoBrasiltinhamnojodeviverexplorandoonegro.

O vovô dizia que os brasileiros eram os bons homens, de mentalidadespuras,iguaisàsnuvensnoespaço.

— Deus que ajude os homens do Brasil — e chorava, dizendo: — Ohomem que nasce escravo, nasce chorando, vive chorando emorre chorando.Quandoelesnosexpulsaramdasfazendas,nósnãotínhamosumtetodecente,seencostávamosnumcanto,aquelelocaltinhadonoeosmeirinhosnosenxotavam.Quandoalguémnosamparava,nósjásabíamosqueaquelaalmaerabrasileira.Enóstínhamosfé:oshomensquelutaramparanoslibertarhãodenosacomodar,oquenosfavoreceéquevamosmorrerumdiaedooutroladonãoexisteacorcomodivisa,lápredominarãoasboasobrasquepraticamosaqui.

Nomêsdeagosto,quandoasnoiteserammaisquentes,nosagrupávamosao redor do vovô para ouvi-lo contar os horrores da escravidão. Falava dosPalmares,ofamosoquilomboondeosnegrosprocuravamrefúgio.OchefeeraumnegrocorajosodenomeZumbi.Quepretendialibertarospretos.Houveumdecreto:quemmatasseoZumbiganhariaduzentosmil-réiseumtítulonobredebarão.Mas onde é que já se viu umhomemquemata assalariado receber umtítulodenobreza!Umnobreparatervalortemquetercultura,linhagem.

Mas com tantas celeumas em torno do negro, o negro foi ficandoimportante, o negro e o ouro eram coisas de grande valor. E com os debates,liberta não liberta, o português foi ficando amável com o negro. Mas nãoconseguia reconquistá-lo, e já estava enfraquecendo-se. Se era severo com osnegros,eracriticado,perdendosuaautoridade.

Osabolicionistasinstigavamosnegrosanãoobedeceraossinhôs.Mesmoqueelesquisessem fazerum levante estariamsós,nãopoderiamcontar comacooperação dos seus escravos. Começaram a dar presentes aos escravos.Furavam as orelhas das negrinhas, ofereciam- lhes brincos de ouro com apretensãodereconquistá-los.Masjáeramquase400anosdesofrimento.

Havia os pretos quemorriam comvinte e cinco anos: de tristeza, porqueficaramcomnojodeseremvendidos.Hojeestavamaqui,amanhãali,comose

fossem folhas espalhadas pelo vento. Eles tinham inveja das árvores quenasciam,cresciamemorriamnomesmolugar.Osnegrosnãosãoimigrantes,sãoacomodados.Nãosonhamcomoutrasplagas.Àsvezesohomemeravendidoeseparado de sua esposa. Os sinhôs haviam espalhado que eles eramamaldiçoados pelo profeta Cam. Que eles haviam de ter a pele negra, e serescravodosbrancos.Aescravidãoeracomocicatriznaalmadonegro.

Quandoumnegrodizia:—Eusoulivre!,ninguémacreditavaezombavamdele.

—Équeumacobraiamorderomeusinhô,euvi,ematei-aeosinhôdisseque eu salvei a sua vida e libertou-me. Agora eu sou amenina dos olhos dosinhô.Almoçonamesmamesaaoladodosinhôenãodurmonasenzala.

Após a libertação, os portugueses ficaram apavorados com medo dosnegros.Eraoreversodamedalhaparaelesqueforamosleõeseeramobrigadosatransformar-seemovelhas.MilharesdeixaramopaíseoBrasilficouàderiva.

—Já que vocês são livres, saiamdasminhas terras!Vamosver se vocêsconseguemencher abarrigacoma liberdade. Imagina só, terquedardinheiroaosnegros!Eumpecado.

OpovoerarevoltadoporqueoseusonhoeraaprenderalerparalerolivrodeCastroAlves.Os negros adoravam o Tiradentes em silêncio. Se um negromencionasse o nome de Tiradentes, era chicoteado, ia para o palanque paraservirdeexemplo.ParaosportuguesesoTiradenteserao secretáriododiabo.Paraosnegros,eleeraoministrodeDeus.

O vovô nos olhava com carinho. “Deus os protegeu auxiliando-os a nãonascernaépocadaescravidão.”Osnegroslibertosnãopodiamficarnomesmolocal.Deveriamsairdesuascidades.UnsiamparaoEstadodoRio,outrosparaoEstadodeMinas,deGoiás,paraficar livresdosxingatóriosdosex-sinhôs,erepetiamaspalavrasdeCastroAlves:“Onegroélivrequandomorre.”

Eu estava com cinco anos, achava esquisito aquelas cenas antagônicas, aminha mentalidade embrionária não me auxiliava a compenetrar aquelasdivergências.Seonegropassavacabisbaixo,obrancoxingava!

—Negro,vagabundo!Eunãogostodesta raça!Eu tinhaesta raçaparaocomércio.

Eupensava:“MeuDeus!quemfoiquecomeçouestaquestão,foiopretooufoiobranco?Quemprocurouopreto?Sefoiobrancoquemprocurouopreto,elenão temodireitode reclamar.Onegronão invadiu suas terras, foramelesqueinvadiramasterrasdosnegros.”Ninguémparameexplicar.Aminhamãejáestavasaturadacomasminhasperguntas.

Masomundoétãogrande!Temtantoespaço,todospodemviverbemaquidentro!Porqueestasbrigas?Omeuavôdizia:

—Osquebrigamsãoosanimaisquenãosabempensar.

Entãoohomeméumanimalporqueelebrigamaisdoqueosanimais.Oh!meuDeus!Seomundoéassim,nãovaleapenanascer!Senãopredominaraeducaçãoentreoshomens,elesjamaisserãofelizes.Hámaisódionomundodoqueamizade.

Eujásabiaqueasraçasqueeramhostilizadasnomundoeram:osnegros,porcausadacor;osciganos,porseremnômades,ladrõestrapaceirosenãoterempátria,eossemíticosporquebrigaramcomoCristo.MasseoCristo,quefoioofendido emartirizado, perdoou-lhes, então por que é que os homens hão deguardar ressentimentos? Se os homens depois da morte de Cristo tivessemdeixado de matar compreendendo a inutilidade do homem matar o própriohomem! Mas o homem continuou com a sua tara. Ele não respeita os dezmandamentos do livre arbítrio. Quando um mata o outro, fica jactancioso,arrogante.

MinhatiaClaudimiratrabalhavaparaossíriosquevinhamcomoimigrantespara oBrasil. E aqui conseguiam até empregadas.Ganhava trintamil-réis pormês,paralavararoupa,passá-la,cuidardascrianças,dacasaedacozinha.

Pensava;“PorqueseráqueelesdeixamasuapátriaevêmparaoBrasil?”Edizemqueonossopaíséumpedacinhodocéu.Nãohaviamotivosparaodiá-los.Porquegostavamdopaís,enãoperturbavam.Pensei;“SeráqueoBrasilvaisersemprebomcomodizemeles?Porqueseráqueoestrangeirochegapobreaquiefica rico? E nós, os naturais, aqui nascemos, aqui nós vivemos e morremospobres?”

Ouvia dizer que os estrangeiros que já estão há mais tempo no Brasilauxiliavamospatríciospobres.Queosbrasileirosricosnãoauxiliamobrasileiropobre. Que não confiam. Os estrangeiros não vinham pobres. Eles não eram

analfabetos e dominavam o comércio. E o brasileiro analfabeto não tinhacondiçãodeprogredir.

Minhatialevavaoquibeparanóscomermosediziaqueossíriossocavamacarnenopilão.Enósdávamos risada.Obrasileironãoconheciaa lentilhaediziaqueeraofeijãodosturcos.

Seperguntasse:

—Osenhoréturco?

—Non,eusírio!Turconãopresta!

Pensava: “Que mundo é este? Um mundo que para viver-se nele énecessárioterumestoquedepaciência.”

Ojaponêsdiz:“Chinêsnãopresta.”

Ochinêsdiz:“Japonêsnonpresta.”

Obrancodiz:“Amarelonãopresta.”

Obrancodiz:“Negronãopresta.”

Onegrodiz:“Amarelonãopresta,obrancotambémnãopresta.”

Obrancocriouaaltasociedade,lánãoentraonegro.Sóaterraéquenãotem orgulho.Nomundo a humanidade nasce emorre.Quando o homem estávivo,vivecomoscereaisquesaemdaterra.Equandomorrevaiparaoseiodaterra.Elanãofala,masésábia.EamelhorobradeDeus.

Eugostavadefrutas,maseradifícilconseguirdinheiroparacomprá-las.Eujáestavanotandoqueopobrevivemaiscomaspretensões.

UmdiaouviaminhamãecontandoqueomeutioJoaquimestavatomandoágua numa torneira pública — o chafariz — quando o filho do Juca Barãochegouedisse-lhe:

—Sai daí negro sujo! Quem deve beber água primeiro sou eu, que soubranco—,eempurrouomeutio,queficounervosoeretirouumafaquinhade

arcodebarrilqueelefez,edeuumgolpenanucadofilhodoJucáBarão,quecaiunosolosemvida.

Omeutionãofoipresoporsermenor.

OjuizdedireitoeraodoutorBrand.Osbrancosreuniram-seeforamxingarovovô:

—Agoraqueosnegrossãolivres,vãomatarosbrancosejásãoprotegidospelalei.

Estascenaserammotivoparaosportuguesesufanarem:

—Estesatosselvagenssãoaconseqüênciada liberdade.Evocêsvãovercoisas piores, pois o Rui chegou a dizer que, se o negro estudar, poderá sergovernador,presidente,deputado,senadoreatédiplomata.

Osnegrosqueouviamnãorespondiam,porqueosportugueseseramricos.Eles eram livres, mas pobres. Na questão do negro com o branco, ninguémprocurasabercomqueméque esta a razão.Eo negro é quemacaba sendoobodeexpiatório.

7

AFAMÍLIA

Omeuavôfoipaideoitofilhos.Quatrohomensequatromulheres.

Oshomenseram:JoséBenedito,Antônio,Joaquim,JoãoBenedito.

O João teve meningite em criança, ficou com o cérebro atrofiado. OJoaquimeraocampeãodafamília.NósotratávamosdeTróhem.

Asmulheres:MariaCarolina,MariaVerônica,AnaeClaudimira.

A tia Ana, “a Donda”, seu apelido, casou-se com um mulato, CândidoNunes.Deixouumfilho,AdãoNunes.

AtiaAnamorreucombarriga-d’agua.QuemdescobriuaenfermidadefoiodoutorVicenteCândidodosSantos.Eoperou-a.Quandoaáguacaíanabacia,euficava olhando aquela água verde, sem compreender as deficiências do corpohumano.EodoutorVicenteficoufamoso.

Aminhatiafoiinfeliznocasamento.Eoqueeuouviadizer,queoesposoerainimigodotrabalho.Quandoalguémlheaconselhavaparaarranjartrabalho,elecoçavaacabeçacomosenestegestoestivesseprocurandoumasoluçãoparaos seus problemas.O que lhe agradava era sentar-se e falar. Contava estóriasmaravilhosas. Se soubesse ler poderia ser um grande escritor. Não erapornográfico.

Aminha tiaClaudimira foibonitaquando jovem.Porondepassavaouviaisto:

—Quebeleza!Quemulherbonita.

Ficou vaidosa. Apareceram-lhe vários pretendentes. Mas nenhum servia.Emtodoselaencontravadefeitos.Eostemposforampassando.

Minha tia inciente pensava que a mocidade e a beleza são uma dupladiuturna. A mulher deve casar-se quando é jovem. Foi envelhecendo eestacionouna idadededezoito anos. Iniciou-se assimo calváriodeminha tia,quenãoqueriamorrersemconhecerascaríciasmasculinas.

Quando as mulheres reuniam-se para falar dos prazeres que os homensproporcionamaumamulher,elaficavaouvindo.Reprovandoasua tolice.Ela,queteveaoportunidadedecasar-se,terumlarenãocasou-se.Easuapresençavelhusca já não perturbava os homens. Crianças que ela viu nascer e crescerultrapassaram os dezoito anos e a minha tia ficou condicionada nos dezoito.Comosefosseumamontanhairremovível.

EuolhavaorostodomeutioJoaquim.Umrostotristecomoumanoitesemlua.Elenãosorria,nuncaviosseusdentes.Eleeraanalfabeto.Sesoubesseler,poderianosrevelarassuasqualidadesintelectuais.

JáomeutioAntônioeraumtipomaisalegre.Lembro-mequeelefoitirarumafotografianofotógrafoJoãoBianchi.Oretratosaiupreto.Sósedistinguiaoternobranco.Meutioxingou:

—Eunãosoutãopretoassim.Tudoquevocêsfazemparaosnegros,écompoucocaso.Masseobrancopaga,onegrotambémpaga.Eeunãovoupagar.

Iniciou-seumadiscussão.“Paga,nãopaga!”OJoãoBianchidizia:

—Diomio.Setuespretononespossiblequeelretratoseabranco.

Omeutiopagou,xingando.

AmulherqueviviacomomeuavôeraaSiáMaruca.Umapretacalma.Eraum casal elegante. Quando falavam, se o vovô a repreendia ela chorava ecurvavaacabeçaepediadesculpas.Quandoovovôseausentavaeudizia:

— Siá Maruca, por que é que a senhora não reage quando o vovô arepreende?

—Nãominhafilha!Amulherdeveobedeceraohomem.

Euficavafuriosa.Echoravaporquequeriavirarhomemparaasmulheresobedecerem-me.

OmeutioManoelnósochamávamosdeManoelGrossoporcausadesuavoz abaritonada. Os filhos, conhecidos assim: os Grossos, eram oito, quatrohomensequatromulheres.

ARosa ficou loucaquandofoi seduzidaporumhomemque recusou-seacasar com ela. O meu tio Manoel tinha uma azagaia. Uma arma que tem oformatodeumafolha.Erapresentedoseuavô,queganhou-anaguerracomoParaguai.Cortadosdoislados.

AtiaJerônima,tiademinhamãe,eratãopobrequedavadó,tinhasóumapanela.Elaacordavaàstrêshorasdamanhã,epunhaofeijãonofogo.Quandoofeijão cozinhava, ela temperava-o e despejava numa gamela. Fazia o arroz edespejavaemoutragamela.Cozinhavaacarne,oufrango,edespejava-onoutragamela,porfimfaziaaverduraecomianasgamelinhas.Ascolheresparacomertambémeramdepau.

A minha tia rezava pedindo a Deus para ajudar-lhe a conservar aquelapanela.Eseaquelapanelaquebrasse,oqueseriadeles?Quedóqueeutinhadatia Jerônima!Seeupudessedar-lheumaspanelas,mas tambémerapobre.Elanãotinhaoquevestir.Ascamaseramforquilhasenterradasnosolo.Ocolchãoeradesacodeestopaeascobertastambém.DavaaimpressãodeserareprisedopresépiodeBelém.

A tia Ana Marcelina, irmã de minha avó materna, era mulata clara. Amulatacabedal.Nãogostavadepreto.Davamaisatençãoaosbrancos.Quandoolhavaospretos,eracomosolhossemicerradosedesviavaoolhar.ApesardatiaAnanãogostardospretos,tinhaumfilhopreto.OMindu.OnomedoMindueraOctaviano.Quepretobonito!Eramarceneiro.

Tenhopoucacoisaquedizerdestatia,porqueelaeramulata.Ehavia,comodivisadasfamílias,opreconceitodecor.Minhatiavestiaroupasfinasiguaisàsdos brancos. Esforçava-se para viver igual aos ricos. Residia numa casaconfortável.Emtodasasportasejanelastinhacortinas.Tinhatapetes.Ascamastinhamcortinados.Comiamnamesa.

Asfilhasgostavamdedançar.Nosbailesdosbrancoselasnãoiamporquenãoeramconvidadas.Nosbailesdosnegroselasnãoqueriamir.Quandonós,ossobrinhos pretos, íamos visitá-la, não tínhamos o direito de entrar. Casa demulato,onegronãoentra.

Minhamãenasceunaroça.NasmargensdoriodasVelhas.Quandoatingiuamaioridade,foramresidirnacidade.Minhamãecasou-secomosenhorOsórioPereira.Minhamãeeoseuespososepararam-se.Elalamentava:

—OOsóriocasou-secomigo,parasairdatutela.

Foi seu tutor o senhor Miguel Alvim. Uma das famílias ricas, das quecriavam os enjeitados para tratar dos porcos, galinhas, varrer a casa, arrumar,fazeracozinhaefazercompras.Eraproibidoterescravos,entãoelespegavamunsnegrinhosparacriá-los.Uminfelizqueiacrescerseminstrução.

QuandoosenhorOsórioPereiracasou-secomaminhamãe,otutordeu-lhesó quinhentosmil-réis. Não deu-lhe um lote de terra para ele construir a suacasinha.Deu-lheumascalçasusadas.Eunsparesdesapatostãograndesqueoesposodeminhamãedeveriacortarossapatosaomeioouduplicarosseuspés.Ascalçaseramlargas,porqueosenhorAlvimeraobeso.

Minhamãedisse-mequeosenhorOsóriopareciaumaminhocadentrodascalças.Queixava-sequeoseucasamentonãofoirealizadopelainterferênciadoamor. Foi negócio. Ele queria ficar livre da tutela, já estava saturado daquelavidarecluídaquelevava.

O senhor Osório Pereira ficou gastando o dinheiro, pensando que osquinhentos mil-réis eram inextinguí- veis. Era a primeira vez que ele tinhadinheiroparagastar,poderiatercompradoumacasa.Quandoodinheiroacabou-se,eleficoufurioso.Nãotinhacompradonadaparacomerenãosabiaemquehavia gasto o dinheiro. Era preciso procurar trabalho.Arrependeu-se de ter-secasado.Na casa do senhorMiguelAlvim, ele tinha o que comer e umquartoparadormir.

Umdia,comonãotinhamnadaparacomer,eledisse:

—Maria!Medêumsacoqueeuvoucomprarumacosteladevascaparavocêfazerumasopa.

Minhamãe acendeu o fogo e pôs água para ferver. Ficou alegre quandoavistou o seu esposo: “Graças a Deus, vou ter um esposo que me ajudará asuportaropesodeminhavida.”Oseuesposochegou,edespejouosaco.Eramcocosdemacaúbaedisse-lhe:

—OaçougueironãoquismevenderosossosfiadoeaindamechamoudeOsórioCigarra.Nãoseioqueelequisdizercomisto.Vamoscomerococoatéeuarranjarserviço.

Aminhamãefoiqueixar-separaovovô,eelelheemprestoudoismil-réis:

—Ondejáseviusustentarumlarcomcocos.

Elesforamdesinteressando-se.

A minha mãe era semilivre. Se uma mulher trabalhava para auxiliar oesposo,opovofalava:

—Credo.Ondeéque jáseviu,umamulhercasada trabalhar!Eladeverátrabalharsomentenoseular.

Mesmocomosdisse-disse,minhamãefoitrabalhar.Comamplaliberdade,aminhamãedançavaepassavaasnoitescomosamigos,efoificandoinebriadacomascaríciasdosseusamigosdebangulê.

Foinestesbailesinseletosqueelaconheceuomeupai.Dizemqueeraumpreto bonito. Tocava violão e compunha versos de improviso. Era conhecidocomoopoetaboêmio.Nosbaileseledançavasócomaminhamãe.Elatevesóumfilhocomseuesposo,oJerônimoPereira.OsobrenomePereira,doesposodeminhamãe,deve ter sidoherdadodealgumportuguês,porqueoesposodeminhamãe eramulato.Quandominhamãe ficou gestante, surgiram os disse-dissetãocomunsnascidadesdointerior.

As línguasdaspessoasdo interior,naspequenascidades, sãoafiadas, sãomaiores do que o mar e mais velozes do que o pensamento. Línguasdestruidoras,quetêmdesmoronadováriosideais,línguasqueàsvezesacertamoalvo,eàsvezesfalham.

Diziamqueacriançaqueianascererafilhadopoetaboêmio.Quandoeunasci,comprovaram-seosboatos,easmáslínguassentiram-semeioproféticas.Aminhasemelhançacomopoetaserviudepretextoparaoesposodeminhamãeabandoná-la.

Ele era o tipo de homem irresponsável, que não mantém o lar e exigefidelidade.Nãotinhaidadeparaserchefedefamília.Oqueelequeriaeracasar-

separaconseguirasualiberdade.Nãoteveconsciênciademinhamãecuidando,zelandoasuafelicidade.Disse:

—Caseicomumanegrasóparasairdatutela.

Efoimorarcomumamulherbranca.Umavelhacomcinqüentaedoisanos,poderia ser sua avó.Mas era branca. E ele dizia quemulher branca não temidade.

—Esemprejovem.

Minhamãeficoucomdoisfilhosparamanter.Minhamãedissequebebeuinúmeros remédios para abortar-me, e não conseguiu. Por fim desistiu, eresolveu criar-me. Não fiquei triste, nem revoltada, talvez seria melhor nãoexistir.Porqueeujáestavacompreendendoqueomundonãoéapétaladarosa.Hásemprealgoaescravizá-lo.

Quandoela saíaparao trabalho,deixava-meaoscuidadosdasiáMaruca.Dizemque eu choravadia e noite.Eomeu choro ininterrupto aborrecia a siáMarucaeosvizinhos,quediziam:

— Será que ela não cansa de chorar? Será que ela pensa que estáagradando?Elatemofôlegodegato.

A siáMaruca ficava revoltada porque eu lhe impedia de cuidar dos seusafazeres,queeralavarroupaatrezentosréisadúzia..Oh!Aquelechorodiário.Jáestavadeixando-acomtonturamental.Elaeramuitotímidaeboa,enãotinhacoragemdereclamarparaaminhamãeparanãodesgostarovovô.Quedizia:

—Missão de um homem é aceitar os netos legítimos, ou ilegítimos, etolerarasfalhasdosfilhos.

— Um dia, ela deu-me pinga para beber. Adormeci e não chorei. SiáMaruca sorriu comentando:Acertei o remédio para você. Você quer é pinga,cachorrinha!

Quando a minha mãe chegou do trabalho, não me ouvindo chorar, foiaveriguar.Euestavainconsciente.Minhamãepegou-meelevou-meaomédicoespírita,osenhorEurípedesBarsanulfo.Eleolhou-me,sorriuedisse-lhe:

—Elaestáembriagada,deram-lheálcoolparabebereadormecer.

Minhamãe queixou-se que eu chorava o dia e noite. Ele disse-lhe que omeu crânio não tinha espaço suficiente para alojar os miolos, que ficavamcomprimidos, e eu sentia dor de cabeça.Explicou-lhe que, até aos vinte e umanos, eu ia viver como se estivesse sonhando, que a minha vida ia seratabalhoada. Ela vai adorar tudo que é belo! A tua filha é poetisa; pobreSacramento, do teu seio sai uma poetisa.E sorriu.Deu-me uns remédios paravomitaroálcooledissecomvozenérgica:

—Você...nuncahádebeber.Oálcoolépéssimopromotor.Porqueheideauxiliá-lasempre.

Recordo quando adoeci com caxumba. O tumor furou. Minha mãecomprimia-o, para retirar o pus. Eu chorava. Nós estávamos num velório. Euestavanocolodeminhamãe,tãocontentecomaquelademonstraçãoafetiva.

Eraumcasalquemorrerapornãopoderamar-selivremente,porimposiçãodafamília.AmulherquemorreueraafilhadatiaAna,amulataquenãogostavadepreto.Eraprimademinhamãe.NinguémdafamílianotariaaindiferençaqueatiaAnanosvotava.Maseunotava.Eodiavaaquelas intriguinhaspreparadaspelaspessoas,pigmeusnamentalidade,epensava:“Porqueseráqueosmulatoseosbrancosnegavamosnegros?”Obrancoaindaéaceitável!Mas,omulato?Estánomeio-termo.Éfilhodenegroefilhodebranco.Asraçasqueseunemparaproduziromulato.Contraobrancoomulatonãopode investir.Porqueobrancojáébranco.Entãoelesevoltacontraonegro.Masobranconãoaceitaomulatocomobranco.Houveatéumprojetodizendoqueseomulato tivesseocabelolisoeraconsideradobranco,seocabelofossecrespoentãoomulatoeraconsideradonegro.

OscomentáriosnovelórioeramdesabonadoresparaatiaAna,queimpediuasuafilhadecasar-secomumpreto.Dizendoquequeriaqueasuafilhacasassecomumbrancoparapurificararaça.Equeelanãosabiaqueonegroéumaraçapuranasuaorigem.Eobrancotambém.

AMariinhacasou-secomumbranco,o JoãoMiguel, eaúnicacoisaqueeste homem ofereceu à sua esposa foi uma vida cheia de sofrimento. Eraalcoólatra. E a esposa não bebia. O lar era a matriz da miséria. Quem osustentavaeraumpreto.ErahorrorosoveroesposodaMariinhapedirdinheiro

aopretoparabeberpingaedizer:

—Euteodeio,eodeiotambémaminhaesposa,porqueelateama.

Que ignorância da minha tia aceitar aquele homem sem qualidade, tipoinadmissívelmesmonumnúcleomaissórdido,sóporcausadacordapele!

QuandoopretoencontravacomaMariinha,choravadizendo-lhe:

—Sevocêfosseminha!Aminhavidahaveriadesermaisalegre.

AMariinhachorava,dizendo:

—Eu tenho nojo do JoãoMiguel. Como é horrorosa a presença de umhomem quando não lhe temos amor. Eu não deveria ter nascido. Porque nãonascilivre,fuiescravadavaidadedemamãe.

AquelafilhabrancaeraoorgulhodatiaAna.Eraapredileta.

Eupensava:“Onegronãodeveproduziromulatoporque sevoltacontraele.Aquelequerecebeascutila-daséquepodeavaliarador.Eéonegroqueestá apto para revelar as filáucias e as jactâncias dosmulatos. Os negros nãoperseguemomulatoporqueémulato,nemobrancoporqueébranco.Entãoonegroéosuperior.”

AMariinhaviviadizendo:

—Euvoumorrer!

Foimãededoisfilhos,oAdálioeoOlímpio.ForamosprimeirosnetosdatiaAna.Osseusnetosdepelebranca.

Opretodizia:

—Não fale que vai morrer, porque no dia que você morrer eu tambémmorrerei. Não suportarei viver neste mundo sem você. Espero, que o teusofrimento sirva de lição para a tua mãe, que pensa que as pessoas de pelebrancasãomeioDeus!Nãoésóvocêquemestamorrendo—eutambém.

Quando o preto soube que a Mariinha havia morrido, saiu correndo e

dizendo:

—Não!Nãopodeser!Elanãovaimedeixarsozinhoaquinestemundoquefoi amargo para nós. Mas o céu vai ser doce para nós. Eles estão brincandocomigo!Eistoéumabrincadeira!Seelamorreu,euvoudormirnocemitérioaoladodasuasepultura.

Eraomêsdenovembro.Estavachovendo.Elecorrianalamaquesalpicavaasuaroupa.Quandoviuocorpodamulherqueelesoubeamarprofundamenteestendidoinerte,ajoelhou-seechorou.

—Teamei,comtodorespeito.Comtodocarinho,queridaMaria.

Sentou-senumacadeiraechorava.

OesposobrancoestavanavendadoNicolaubebendopinga.

Aspessoasque estavampresentesnovelório rezavam, e falavamdavidainfaustaqueaextintapassou,comentandoqueDeusfezbememlevá-la.

AtiaAnaestavatriste.Haviaperdidoasuafilha-talismãecomvergonha:das conseqüências do seu orgulho. Eu já estava habituando-me com a morte,porqueamortalidadenoestadodeMinasGeraiséassustadora.

Pensava que era a enfermidade que tinha o nome de amor. Então estadoençamata...Seráqueestadoençapega?Quandoeuouviaalguémfalandonoamor,eudizia;

—Vaiaomédico,queestadoençamata.

—Oh!negrinhaidiota!Negrinhaantipática.

Quandoalguémiamexingarera:

—Negrinha!Negrinha!

Queconfusãoquandoopretocaiumorto.Quecorreria!Foramprocuraromédicoparaexaminarocadáver.Opovodizia:

—Puxa,ele tevepalavra,prometeu-lheque, seelamorresse,ele também

morreria,emorreumesmo.

Minha tia deixoude ser racista poruns tempos.Quandoo seu filho Joãoquis casar-se com a filha da siá Maruca, ela não consentiu. E a morte daMariinhafoimotivoparaopovofalarporváriosmeses.Porfim,atiaAnafoi-seresignando,enãomaisinterferiunosamoresdesuasfilhas.

PobreMariinha,tinhadesgostodeterapelebrancaquefoiacausadoradasua morte. Não desprezava os pretos. Se a minha tia fosse inteligente,compreenderia que o valor das pessoas não está na cor, está nas ações. AMariinhadizia:

—Euqueriaterapelepretaeoscabeloscrespos.Comoébonitoumrostopreto,comosdentesnítidos.

Foi a noitemais agitadaque eu já vi.Ouvi umamulher perguntar para aminhamãe:

—Oqueéqueameninatem?

—Estácomcaxumba.

—Queidadetemela?

—Quatroanos.

Pensei em perguntar o que era quatro anos. Mas a minha mãe haviarecomendadoqueascriançasnãopodemfazerperguntasnosvelórios.Comoéhorrívelsercriança.Nãotêmpermissãoparafazeristoouaquilo.Quemundoéeste,temosqueaceitarasimposições;sendoassim,ohomemnãoélivre.

Masosgrandesfalavam,brigavam,bebiameatéroubavam.Querdizerqueosadultostambémdeveriamedevemserrepreendidos,osatosdosadultostêmconseqüências trágicas, como se eles não tivessem fé em Deus e nemconsciência.Eracomosetivessemnascidonusecrescessemnus.Nãovestiramos seus sentimentos combondade.Adoravamohomem JesusCristo,mas nãoacatavamosseusensinamentos.

Oh!quemmederanãocrescer!Tinhahoraqueeuiacontraosgrandes.Mastinha hora que eu adorava-os. Quando elesme davam doces, carne com pão,

leite,queijoeaspratinhasdedoismil-réis.Comoeugostavadaquelaspratinhas.Quedinheirobonitinho!

Naclassedoshomens,eugostavadospadresporqueelesnãofalavamemguerras.Eramamáveisquandofalavamcomascriançasqueiamaocatecismo.DiziamquenósdeveríamosorarparaDeusnosauxiliar.OspadreseramopadrePedroeopadreJulião.Eragostosoficardentrodaigreja.

Quandoumhomempretoavistavaumsoldado,entravadentroda igrejaeajoelhava aos pés do altar. Permanecia vários minutos orando. Na igreja eleestavaprotegido.Osoldadonãoiaadmoestá-lo,nãoiainterpelá-lo.

Seoshomensreuniam-seeraparafalardatiaAna.Elogiavamaextinta.

:—Vamosnosreuniremandarrezarumamissaparaela.

Minhamãediziaquedevemosrespeitarosmortos,queelesiamparaocéu,queéDeusquemnosleva,eelesnãomaisvoltavamnaterra.Euerguiaosolhosparaocéuparaverseviaaresidênciadosmortos.

—Seráqueosmortosbrigam,seráqueosalãodebaileládocéuégrande,ouestátoldo?Seráqueasmulheresládocéudormemcomoshomens?Seráqueos policiais lá do céu batem nos pretos? Será que os mulatos lá do céu nãogostamdosnegros?

Eaminhamãeserevoltava:

—Calaabocacadela!Vocêquermedeixarlouca!Eunãoconheçoocéu,eununcaestivelá.Sódepoisqueeumorrer,équeeuvouparaocéu.Masdeveserruimmorrer!

MinhatiaClaudimira,dizia:

—Seeufossevocê,internavaestanegrinhanumhospício.

—Elaéminhafilha!Amissãodamulheréterpaciênciacomos,filhossejaeleumCaimouumAbel.

Fiqueipensando:“Quemseráque foiCaim?Oqueseráqueele fez?EoAbel?”

AsiáMarucadeu-meumlombrigueiro.Todasascriançaseramobrigadasatomá-lo.Fiqueihorrorizadaquandoviaquantidadedevermesqueexpeli.

—Nabarrigadagentetemestesbichos?

—Tem.

—Oqueéqueelescomem?

—Acomidaquevocêcome.

EasiáMarucafoisaindoparaficarlivredosmeusinterrogatórios.

OpovoxingavaatiaAna.Maselanãosabia.Minhamãediziaquesaíraàsdezhorasdovelórioporqueeuestavacomcaxumba.Depoisqueeladeitou-se,ouviaavozdaMariinhachamando:—Cota!Cota,Cota.Àmeia-noite, avozdesapareceu.

Todasemanamorriaalguém.

Eradifícilmorrerumrico,porqueassimqueelesadoeciamprocuravamomédico. Quando o pobre arranjava dinheiro para ir ao médico, já era tardedemais.

O médico que tratava dos doentes era o doutor Cunha, esposo da donaLeozínia,amulhermaisbonitadeSacramento.Eunãoqueriaqueaminhamãemorresse,porqueascriançasque ficavamsemasmães iam residir comoutrasfamíliaseperdiamaliberdade;

Como os negros amavam com alucinação a liberdade! Eles não tinhamassistênciamaseramfelizes.

GraçasaDeusamamãenãovaimorrerporqueeunãoqueroirmorarcomninguém, porque teria que trabalhar, apanhar, e não poderia brincar. Fiqueisabendo que as crianças que não tinhammães eram órfãos. E eu fiquei commedodapalavraórfão.

Todos os sábados havia um casamento na cidade. Que corre-corre. Asmulheres faziam doces, biscoitos, matavam galinhas, patos e perus. Pediampratos, garfos, facas, copos e cadeiras emprestados aos vizinhos. Assavam

biscoitosnasformasdeletrascomosnomesdosnoivos.

QuandoaJerônima,filhadasiáDona,casou-secomoJovino,eufuiverocasamento.AJerônimaeraloira,osolhosazuis,oscabelosclaros.OJovinoeramulato.Eu olhava o rosto do Jovino.Um rosto de homem sério, que ia saberrespeitaraquelecompromisso.Ocasamentofoifeitoemcasa.Porqueanoivaerabranca,e tinhavergonhadeatravessaras ruaspara ir aocartóriocasar-secomummulato.Estesboatoscirculavam,masnãochegaramaosouvidosdoJovino.Anoivaestavabonita!Easuamãesatisfeita,dizendo:

—Eujáestouvelha,egraçasaDeuscaseiaminhafilha!SeeumorrerelaolharáaClaudimira.Queeraasuairmãmaisnova.

Opadrastodanoivaestavaalegre.Atéeuestavaalegre.

OescrivãoeraosenhorJoséNeto,quedizia:

—Vocêtevesorte!Casou-secomumajovembrancaebonita.

Apósocasamento,os jovensviajaram.Foramparaa roça.Enós ficamosdançando.

Eu ficava pensando: “Por que será que finalizam as festas com bailes, obaile não é necessário.”Eunão gosto de dançar.Mas aprendi porque pensavaqueeraobrigatório.Pensavaqueéramosobrigadosaaprender tudoqueregeomundo.Masbeberpinga, istoeunãoqueriaaprender.Orouboeujásabiaqueera proibido. Quem matava um ladrão não ia preso. Mas ocorria muitasinjustiças.Asvezesumhomemmatavaooutro,ediziaqueavítimaeraladrãoparalivrar-sedaprisão.

Ostemposforampassando.QuatroanosdepoisaJerônimafugiucomumhomembranco.Porque tinhanojode teruma sograpreta.Elanão teve filhos.Nãoquis,oJovinoficousozinho.

Eletinhavacas,porcos,arrozplantado,eváriossacosdearrozbeneficiado,earrozcomcasca.Feijãodeváriasqualidades.EoitoporcosgordoseumcavaloarreadoparaaJerônimacavalgar.

TemposdepoisvioJovinoandandopelasruasdeSacramento,emaisumavezolheiaquelerostosériodeumhomembom.Nãofoipossívelveroseusonho

concretizado—queriafilhos.Deusfoiojuiznaquelaunião.

Asminhasprimas convidavam-meparabrincar.Eunãogostavaporqueomeucabelonãocresciaeelasdiziam:

—Cabeçapelada!Cabeçapelada,cabeçadehomem!Vocênãovaicasar...porqueoshomensnãosecasamcomasmulheresquenãotêmcabelos.

Eupediaaminhamãeparatrançarosmeuscabelos.Quedor!

Umdia,aminhamãemostrou-meumpentedeferrodizendoqueossinhôsobrigavamosescravosapentearoscabeloscomaquelespentes.Porqueocabelodonegroérústico.Quepentehorrível.Arrancavatodoocabelo.

EuviváriospretosquehaviamsidoagraciadoscomaLeiÁureaecomaliberdade.Faziamranchinhosnabeiradasestradas,porqueabeiradasestradaspúblicaspertenceaogovernoeninguémfalavanada.Elescontavamoshorroresdaescravidão.Suasmágoaseramcontraosportugueses.

Eu não podia compreender como é que as mulheres pretas choravam ediziam que foram os portugueses que as arrancaram do seio da África paravendê-las e ainda dormiam com eles. Existiam as pretas que viviammaritalmente com eles. E tinham vários filhos, e eram obrigadas a trabalharcomoempregadasdomésticas,eodinheiroquerecebiameramobrigadasadar-lhes.Enfim,eramsuasconcubinaseescravasindiretas.

Paramim,avidadoshomenserasemelhanteàsteiasdearanha.Eunãoseiondeéqueelasarranjamestesfiosparafazersuasteias.Enãoseiondeéqueoshomensconseguemtantasconfusõesparadificultaremsuasvidas.

Eunãoqueriaficargrande,avidadosgrandeséantipática.Ficavanervosaquandoamamãediziaqueeuestavacrescendo.

Eujáestavaconformada:osnegrosnãotinhampossibilidadesdemorarnascasasbonitascomvidraçasejardins.Minhamãemedizia:

— Minha filha, é tolice ambicionar o que não podemos conseguir,poderemosserfelizesmorandodentrodeumacascadeovo.

Quevontadedemorarnumaruacalçadaecomluzelétrica.Masasruasque

eram calçadas, iluminadas, eram para os ricos. A luz dos pobres eram aslamparinasaqueroseneeoferroacarvão.

Os meus parentes bebiam pinga e ficavam embriagados. Brigavam,quebravamosmóveis.Que suplício para quem não bebe permanecer nomeiodosébrios!Euchoravaporquequeriaficarlivredaqueleambiente.

AsiáMarucanãotrabalhava.Ovovônãopermitia.Dizia:

— A mulher depois que se casa deve cuidar apenas dos afazeresdomésticos. Compete ao homem ser o chefe da casa. Estou ganhando quinzemil-réisporsemana.

Que fortuna! Ele comprava os gêneros em sacos. Eu estava farta, nãosuportavaacarnedegalinha.

SiáMarucagritava:

—Minhasfilhas!—easgalinhasvinhamcorrendocomeromilho.

Eudisse:

—Quesossego!—estavacontente.

UmdiaasiáMarucalavouroupaparaforaeganhouummil-réis.Quandoovovô veio almoçar, não tinha farinha. Ele não comia sem farinha, porque naépoca da escravidão os pretos eramobrigados a comer o angu, e a farinha.Àtardequandofoijantarencontroufarinha.PerguntouasiáMaruca:

—Ondeecomoconseguistedinheiroparacomprarestafarinha?

Os seus olhos voarampara o rosto da siáMaruca, que haviamordido oslábios.Porfimelaresolveuresponder:

—EulaveiasroupasdadonaFaustina,elapagoueeucompreicincoquilosdefarinha,laveiduasdúziasporummil-réis.Oquilodefarinhacustouduzentosréis.

Omeuavôretirouacintadacinturaeespancou-a.Dizia:

— E a última vez que a senhora vai fazer compras sem o meuconsentimento. Quando quiser sair, peça-me permissão. Quem manda nasenhora,soueu!Seasenhoranãosabeobedecer—vaiembora!

AsiáMarucachorou.

E eu fiquei pensando: “É melhor ser meretriz, ela canta, vai aos bailes,viaja, sorri. Pode beijar os homens. Veste vestidos de seda, pode cortar oscabelos, pintar o rosto, andar nos carros de praça e não precisa obedecer aninguém.”

O vovô nos contava que os pretos que moravam nas cidades grandes jásabiam ler e tinhamatédinheironosbancos.Elenão sabia ler,masprocuravasaber se os negros já estavam subindo na esfera social. “Oh!”, exclamávamosadmirados.

Nãoseiseeraciúme,maseunotavadiferençasnosmodosdamamãenostratar.Omeuirmãoeraopredileto.Eupensava:“Elatrata-ocomtodocarinho,porqueeleémulato.Eeusounegrinha.”

Aminhamãesorria,dizendoqueasmãesgostamde todosos filhos.Queumamãelutaporcemfilhoseosfilhosnãolutampelasmães.

Elatrabalhavanascasasfamiliares,enascasasdasmeretrizes,elevava-me.Eu presenciava aquelas cenas pornográficas dasmulheres comos homens.Osósculos e os amplexos.Depois, eles entravam nos quartos e eu ouvia aquelesruídos das camas de arames. Pensava: “Se eu pudesse ver o que eles estãofazendo!”

—Eugostodevocê!Eugostodevocê!

—Nãomedeixemeuquerido!

Eram as únicas coisas que chegavam aos meus ouvidos. Mas não mesatisfazia.Porqueeuqueriaeraver.

A única coisa gostosa que existe é arroz-doce, o doce de leite, o pé-de-moleque.Opãodequeijo.Seráqueohomemémaisgostosodoqueodoce?Paradormircomohomeménecessáriosermulhergrande,eeusoupequena.

AEmerencianajáestavadormindocomoshomensevestindovestidosdeseda, e tinha posto um dente de ouro na boca e trocado o nome. Era Vilma.Comprouvestidodesedaparaamãedela,queestavacontenteporqueasuafilhaestavaganhandoumdinheirão,cem-mil-réisporsemana.Ganhavamaisqueumdoutor.JáconheciaUberaba,AraxáeUberabinha.

Eoshomens,vencidos,comentavam:

—Quemmederaternascidomulher!

Comigooshomensnuncavãodormir.Porqueeunãovoucrescer.Aminhamãediziaqueascriançasnãocompreendiamaquelascenasdebeijoseabraços.Oh! santa ingenuidade. Algumas coisinhas as crianças entendem. Todas asmeninas tinhamnamorados.Nosbailes, elesdançavam.Eu ficava sozinha.Osmeninos não dançavam comigo, diziam que eu era muito feia, muito magra.Que, dançando comigo, eles tinham a impressão de estar dançando com umbambu.OúnicoquedançavacomigoeraoDomingos.Umpretinhodequinzeanos.Ele tinhasóumbraço.Fui ficandorevoltadaeocomplexoapossando-sedaminhamentalidade.

Omeuirmãobrigavacomigo,quemapanhavaeraeu.Emequeixavaparaaminhamãe:

—A senhora protege o Jerônimo porque ele é filho legítimo. E eu, soubastarda.

Eunão sabia o que era bastarda.Mas achei bonita a palavra.Minhamãetambémdesconhecia.Nósouvimosnoscircos.Inconscientementeeuacertava.

Oqueeureprovavaeramasbrigasdosadultosalcoolizados.Umadultotemqueterclasse.Darbonsexemplos,seroprofessordadecência.Enãooprofessordaanarquia.

Omeu tio Joaquimeraomaisbravoda família.Eraopenúltimo filho, eobrigavaos irmãosmaisvelhosaobedecer-lhe.Atéaminhamãe,quecriou-oapósamortedeminhaavó,eraobrigadaapedir-lheabênção.Elenãosabialer.Empregava a violência. E batia com tanta energia que as pessoas que eleespancavaoulheobedeciamoudesapareciamdacidade.

Eleeraamasiadocomaminhamadrinhade.batismo.Elaerabranca..Eo

povomurmurava:

—Ondeéquejáseviu,pretocombranca.

Oshomensbrancosxingavam:

—Eoaçúcarcomocafé.Éocafécomleite.Eomosquitonoleite.Eunãoaprovoestaunião.Crécomcré,lêcomlê.

Asmulherespretas,quandoviamomeutiopasseandodebraçodadocomaminhamadrinha,diziam:

—Olhaomosquitonoleite!Olhaomosquitonoleite.

Omeutiodiziaqueoshomensignoranteséqueeramracistas.

Umdomingo,aminhamãepintouorosto,pó-de-arroz,carmim,ecrayon.Efoipassear.Encontroucomomeu tioqueobrigou-avoltarparacasae lavarorosto.

—Nãoestamosnaépocadocarnaval.

Elaobedeceu-lheemsilêncio.

Quandoeleausentou-se,elaxingou:

—Arrependi-medetercriadoestecachorro!

Elerespeitavasóovovô.Quandopediaabênção,tiravaochapéuebeijava-lhe as mãos. Era o único que não bebia álcool, não vagava. A polícia não oconhecia. Era carroceiro, obrigava omeu irmão a guiar os bois.Mas ele nãogostavadelevantar-seàscincohorasdamanhã.Eleiadespertá-locomasuavozestentórea.Omeuirmãosuplicava:

—Mamãe!falapraelequeeuestoucomdordeouvido.Acamaestá tãoquentinha.

—Elenãopodeir.Estácomdordeouvido.

Elequebravaaporta.Entravacomochicotenamãoenosdavachicotadas,gritandofuriosamente:

—Vocêestádoente?Tomao remédio!Nãogostodehomempreguiçoso,cachorro!Ouvocêaprendetrabalhar,oueutemato!OBrasilnãodeveserumpaísdeociosos.Asnossasterrasprecisamdebraços.Ohomeméassimmesmo,ao convidá-lo para trabalhar ele arranja estas doenças: bronquite, sinusite epreguicite.

Davaumaschicotadasnomeuirmão.Naterceirachicotada,o.meu irmãopulavaajanela,arrastandoascobertasechorando.

Minhamãereclamava:

—Vocênãoémeupai,nemmeumarido.

Ele dava-lhe uma chicotada, ela silenciava definiti- vamente. Eu davarisada.Elemedavaumachicotadadizendo:

—Isto, éparavocême respeitar.Eunão soupalhaçoparavocê rir-sedemim.

Quandoelesedistanciava,minhamãeselevantava,abriaaporta,rodeavaacasa para ver se ele estava oculto nos ouvindo. Certificando a sua ausência,xingava-o:

—Aquelecachorro!Eulimpeior...dele.

Eomeuirmãodecidialevantar-sequandoouviaospassosdomeutio.Aossábados,elepagava-o.Trocavaodinheiroemmoedaseenchiaasmãosdomeuirmão,edizia:

—Eleémuitopreguiçoso.Eupago-ocomdinheirotrocadoparaestimulá-lo ao trabalho. Quem sabe se o dinheiro tem mais força do que as minhaspalavraseasminhaschicotadas.

Meuirmãocolocavaasmoedasnosbolsosesorriadizendo:

—Estourico!Estourico!

Euficavacominvejaepensava:“Porqueéqueeunãonascihomemparaficarrico,eganharmuitodinheiro?”

Omeutiodizia:

—Ohomemparaganharmuitodinheiroéprecisosertrabalhadoreganharodinheirocomhonestidade.

Eurepetiamentalmente:“Honestidade.”

O meu tio comprava gêneros alimentícios, toucinho, carne e cachaça, ediziaparaaminhamadrinha:

—Vocêpreparaoalmoço,depoispodebeberasuapinga.

Elabebiaapinga.Embriagava-se,edeixavaoscãescomeremacarneeotoucinho.Nãopreparavaasrefeições.Asmulherespretasdiziam:

—Bemfeito!Arranjamulherbranca!Mulherbranca,nãopresta.

O meu tio espancava a minha madrinha que estava superalcoolizada,estendidanosolo.Davaaimpressãoqueeleestavaespancandoumcadáver.Masquem é que ousava interferir? Quando ela normalizava, estava com o braçoquebrado.Começavaagemer,echorar.

E eu pensava: “Temmulher que diz que o homem é bom.Que. bondadepodeterohomem,seelemataeespanca,cruelmente?Quandoeucrescereunãoquerohomem.Prefiroviversozinha.”

Elaajeitavaobraçoferido.Depoiscontinuavabeijandoomeutio.

Aquelas cenas, para mim, eram um enigma. E dizia comigo mesma:“Credo.Elesnãotêmvergonha.”Euerainciente,desconheciaaatraçãosexual,que é a advogada dos casais. Mas a minha idade não me auxiliava acompreenderqueomeutioestavacomarazão.

Os que ficavam condoídos iam relatar aos policiais que omeu tio haviaespancadoaminhamadrinha.Quandoospoliciaischegavam,eladefendia-o:

—Eleéumsanto!Eomelhorhomemqueexistenomundo.Elenãovaipreso.Eujátenholugarapropriadoparaprendê-lo.

Omeutiodizia:

—Eu saiodemanhãpara trabalhar, quandovolto do trabalho encontro-abêbada, caída por cima do braço. Se o braço está quebrado, não sou eu oresponsável.

Omeutioexibiasuasmãoscalejadas,queeramoúnicodocumentodeumhomem.Ospoliciaispediamdesculpasaomeutioeretiravam-se.Elesfechavamaportaeiamdeitar-se.

O meu tio comprava móveis, ela queimava-os para fazer as refeições.Nunca vi aminhamadrinha lavar roupas.Sabia fazer crochêmuito bem, quisensinar-me,nãoaprendiatrançaraslinhas,desisti.

Ela foi casada com um preto de nome Alcides. Abandonou-a. Não tevefilhos,pornão termenstruaçõesnormais, tinhaasmenstruaçõesduasvezesaoano. Era uma mulher amarela. Uma cor indefinida. Quando sorria, tinhaaparênciadeumesqueleto.

Euouviaeviaestasconfusõesqueficavamcondicionadasnaminhamentecomo se fossem roupas dobradas dentro de um armário. Todos os dias haviacoisas para entrar dentro da minha cabeça. O corpo humano deve ser assimmesmo,pensava.

Masomeutiocansou-sedevivercomaminhamadrinha,queeraabstratacom relação à vida, tão diferente deminhamãe, que imitava as abelhas e asformigas,queselocomovemdeumladoparaoutro.

Percebi que ele desejava reajustar a família. Notando a dificuldade,desapareceu de Sacramento, que é uma cidade que não oferece um futuropromissoraosseusfilhos.

Omeuirmãorejubilou-se.Dizia:

—Eunãoprecisotrabalhar!Eunãoprecisolevantarcedo!

Elevantavaàsonzehoras,iaaquecer-seaosol.

Eu pensava: “Meu Deus, os pretos precisam ser dinâmicos, maisesforçados, para fazer casas de tijolos. E não se acomodarem dentro destesquartinhos, recobertos com capim.” Apesar do meu tio ser rude, eu sentisaudadesdele.Eraumhomemhonesto.

8

ACIDADE

Istoocorriaaossábadoseaosdomingos.Acidadesuperlotavadehomens,circulandoàprocuradasmeretrizes.Elasficavamagitadas,iguaisàsaleluiasnosdias de chuva. Diziam que o sábado era o dia de ganhar muito dinheiro.Tomavam banho e perfumavam-se e saíam pelas ruas procurando os homenscomdinheiro.

Que disputa tremenda! Todas queriam conseguir homens. Nãoselecionavam. Davam a impressão de ser animais na cópula. Uma mulherlimpinha dormia com um homem sujo e beijava aquela boca com os dentespodres.Seohomemexibisseodinheiro:pronto.Eeleouviaisto:

—Meuquerido!Meuamor!Meubenzinho!Meusantinho.

Em trocadestas palavras, os homensdavam-lhes somas fabulosas.E elasdavamodinheiroparaasdonasdaspensõesondemoravam.

Ai delas, quando não arranjavam dinheiro! Que confusão! A dona dapensãoxingando-a:

— Meretriz, infausta! Você já está velha. Ninguém te quer! Vai pediresmola!Vocêdeverámearranjarodinheiro,ouentãodeixaoquarto.

Eupensava;“Seráqueodinheiroétãoimportanteassim?MasovovôdizqueacoisamaisimportantequeexisteéDeus!”

Eu achava esquisito era ver as meretrizes usando roupas coloridas eexagerando na pintura e nos adornos para atrair os homens. Para mim elasdeveriam fazer uma assepsia na boca para não terem mau hálito. Penso quequemcomercializaocorpodeveterumaassepsiarigorosa.

Aos sábados, os policiais apertavam-se. Ele colocavam um cinturão por

cima da túnica. Era a prova de absoluta autoridade. Os pretos ficavamapavorados.Asmulherespretassaíam,iamnasvendasretiraremosseusfilhoseseus esposos. Como é horroroso suportar uma autoridade inciente, imbecil,arbitrária, ignorante, indecente e, pior ainda, analfabeta. Não conheciam asregrasdalei,sósabiamprender.Quandonãoconseguiamoafetodasmeretrizes,prendiam as infaustas. Elas recusavam os soldados, aludindo que eles nãotinhamdinheiro.Eassimfiqueisabendoqueohomemquenãotemdinheironãotemvalorparaasmulheres.

Asmeretrizeseramasqueusavamoscasacosdeastracãeosvestidosdeseda. Cortavam os cabelos, pintavam os lábios de vermelho. As mulherescasadase asmoçasvirgensnão tinhampermissãoparausarobatom,passarocarmim e cortar os cabelos. Mas quando as meretrizes passavam com suasroupas sensacionais, os homens ficavam extasiados como se estivessemapreciando algo sobrenatural. E as meninas ficavam com inveja e queriamcrescerpara seremmeretrizes,edormir como JoséMerendengo.Quehomembonito!EraoRodolfoValentinodeSacramento.

Asmeretrizessentiamimensosprazeresquandooshomensseindispunhamdisputando-as. Estas querelas eram o bastante para avivar-lhes a vaidade,convencendo-as que eram bonitas. Que pavor que tinham de ficarem velhas!Compravam cosméticos rugol, e não saíam da frente do espelho. Como sefossem a madrasta da Gata Borralheira. O que não estava certo era ainterferênciadospoliciaiscomaquelasinfelizes.Queriamserosprediletos.

AmulherlivremaisbonitaeraaAbadia.UmdiaapareceumortacomumjovemdenomeOctávio.

O Octávio matou-a e suicidou-se. Não investigaram. Eu descobri quemmatouAbadia e oOctávio.Mas não podia dizer quem era. Se eu dissesse elepoderia matar-me e matar a minha mãe. Eu estava com cinco anos e jácompreendia a infantilidade dos adultos, que às vezes são criançolas nos seusatos.

Entrava em qualquer lugar. E presenciava cada cena... Pensava: “Osgrandes não respeitam os pequenos.” Não podia penetrar minuciosamentenaquelasconfusões.

Asmeretrizesnãosabiamler.Pagavamalguémparaescreverascartaspara

elasenviaremaosseusparentes.

Ameretrizviajanteeraadeusanaquelenúcleo,relatandoparaasamigasoslugares que conhecia. Elas estavam sempre com dinheiro. Enviavam paira osfamiliares.Pediamàsmãesque tomassemcontadesua irmãs,queerahorrívelsermulherà toa,queobrigassema irmãacasar-se,queémuitomelhorserdeumhomemdoque serdoshomens.Queelas tinhammuitoshomens,masnãotinhamumhomem.Aossábados,elassaíampelasruasprocurandoumhomem.Quando não conseguiam, diziam que eram infelizes. Será que os grandes sãoloucos? Será que eu vou ser igual aos grandes quando eu crescer? Já estavaaborrecidadevivernestemundo.Fuipediràminhamãe:

—Sabe,mamãe,eunãoestougostandodestemundo.Asenhoraquermepôrondeeuestava?

Elaexplicouqueparasairdestemundoeraprecisomorrer.

—Ah!demorrereutenhomedo.

Quando alguém roubava, os soldados saíam com o preso pelas ruas dacidade. Era obrigado a carregar o que havia roubado: galinha, cavalos. E acriançadasaíaatrás,batendolata, frigideira, tambor,quemsabia tocarsanfona,viola,violão,cavaquinho,gaitasaíaatrásdopreso:

Umdiaeraumpreto.Enósgritávamos:

—Olha Zé coberta! Ele roubou coberta!Olha o Zé coberta, é ladrão decoberta.

Eraomêsde junho.Que frio.Mas o negro estava transpirando, como setivessetomadoumbanho.

O povo saía pelas ruas para ver o ladrão. Era como se estivesseacompanhando uma procissão. Quando o delegado soltava o preto, eledesaparecia e nuncamais voltava paraSacramento.Era um castigomoral quetinha o seu efeito benéfico. E ninguém queria ser ladrão. Eu adorava estasfestinhas.Eoscomentários:

—OhomemqueroubadeveriasermarcadocomumLnorosto.Oladrãonãotemvalor.Eumabutrequetempreguiçadetrabalhar,oladrãodurapouco.

Atéascriançasrenegavamoladrão,quandoelassereuniamecomentavamsorrindo:

—VocêviuComooZécobertatranspirava?—edavamrisadas.

O homem que roubava galinha perdia o seu verdadeiro nome ia serreconhecidoportodoscomonomedeZégalinha.

Eosanosforampassando.Oquepreocupavaeraainfelicidadedospretos.Quandoocorriaumcrimeouumroubo,ospretoseraossuspeitos.Ospoliciaisprendiam.Quantasvezeseuouviaosmaioraisdizendo:

—Negrosladrões,negrosordinários.

Elesdiziam:

—Nãofomosnós.

Notavaosseusolharestristes.

Eusabiaqueeranegraporcausadosmeninosbrancos.Quandobrigavamcomigo,diziam:

—Negrinha!Negrinhafedida!

Aavódeminhamãedizia:

—Elessãocomoosespinhos,nascemcomasplantas.

Nãocompreendi,másachei tudoisto tãoconfuso!Porcausadosmeninosbrancoscriticaremonossocabelo:

—Cabelopixaim!Cabeloduro!

Eu lutava para fazer os meus cabelos crescerem. Era uma luta inútil. Onegroéfilhodemacaco.Quevontadedejogarpedras.

Omeuprazereraverumameninabrancasuplicar-me:

—Bitita,atiraumapedranaquelamangaparamim.

Eutinhaalvo,erasójogar,eacertar.Pensava:“Mesmosendopreta,tenhoalgumautilidade.”

Com os pretos velhos os meninos não mexiam, porque eles diziam queconheciamumhomemquevirava lobisomememula-sem-cabeça.Foi o únicomeioqueospretosvelhosarranjaramparatersossego.

A nossa casa já estava com o capim podre. Que luta para minha mãearranjar vinte mil-réis para comprar um carro cheio de capim, e pagar umhomem para colocá-lo no nosso ranchinho. O branco construía a sua casadefinitivamentecomtelhas.

Fuificandotriste.Omundohádesersempreassim:Negropraqui,negro,prali.EDeusgostamaisdosbrancosdoquedosnegros.Osbrancostêmcasascobertascomtelhas.SeDeusnãogostadenós,porqueéquenosfeznascer?

Fuiprocuraraminhamãe.

—AsenhorapodemedaroendereçodeDeus?

Elaestavanervosadeu-meunstapas.Fiqueihorrorizada:“Seráqueaminhamãenãovêalutadosnegros?Sóeu!”SeelamedesseoendereçodeDeus,euiafalar-lhe.Paraeledarummundosóparaosnegros.

Ela explicou-me que os negros eram ignorantes. Que o homem que nãosabelerficaparadoigualumaárvorenumlugar.

— Quando você completar sete anos, você vai entrar na escola. Vaiaprenderaler.

QueinvejaqueeutinhaquandoviaodoutorCunhalendoumjornal.“HeidelerojornalseDeusquiser.”Efiqueialegre.

Minhamãe era caprichosa.Areavaos bancos, areava as panelas.Tomavabanhostodososdias.Eunãogostavadetomarbanhoparadeitar.Eladizia:

—Sevocênãotomarbanho,osurubusvêmtecomer.

Às vezes eu dormia sem tomar banho. De manhã, quando avistava osurubuscirculandonosares, ia correndoesquentar águapara lavarosmeupés.

Olhandoosurubusvoandogritava:

—Eujálaveiospéssenhorurubu.

Eassimfuihabituando-meatomarbanho.

QuepavorqueeusentianaépocadasfestasdesãoBeneditocomocorre-corredospretos.Eraaúnicaépocaemqueelesdavamlucrosaoscomerciantes.Não tinha umpreto culto para nos falar da escravidão, para incentivar a raça.Viviam sem preocupar-se com o porvir. Qualquer anormalidade na cidade, asmeretrizesprocuravaminterferircomosesuaspresençasfossemindispensáveis.DavagraçasaDeus,quandoterminavaafestaquedeixavaoseusaldotrágico:várias jovens gestantes. Quando a cidade normalizava-se, o festeiro estavaendividado.Algunspretosadoeciamde tantosambar.Quefanatismoporbaile.Pensava: “Se eles tivessem o fanatismo para trabalhar, poderiam até ter casascobertas com telhas.” Paramim as pessoas quemoravam nas casas de telhaseram as importantes. Vários dias ficavam comentando as canções que elesimprovisavam.Oquemehorrorizavaeraverumpretoandarcinco léguasparadançar.Aspouquíssimasvezesqueacompanheiaminhamãenestasandanças,fiqueiestropiada.

Quandoiaaproximandoaépocadasplantações,sóseviaopovoolhandoparaoaltoecomentando:

—Seráquenãovaichover?

Todas as casas tinham oratório com as imagens dos santos.Asmulhereslavavamasimagenssuplicando:

—Estoulavando-asparaquenosenviemchuvas.SeráqueobomDeusvainoscastigar?

Enfeitavamelavavamoscruzeiros.FalavamquenoEstadodoCearáficouseteanossemchover.Quemorreumuitagente.Eupensava:“Ascruzessãodepau que os homens fazem. Que poder terão elas? Será que elas atendem ospedidos?”

Eeupediquefizesseeuvirarhomem.Queriaplantarlavouras.QueriaserumhomemforteecomprarumFord.QueriaserigualaoJosédoPatrocínio,queajudoualibertarosnegroseaindacomprouumFord.EuhaviavistooFordno

jornalQuevontadedeandarnaquilo!

Eu invejava as meninas brancas que usavam vestidos de veludo, linho,organdi, e calçavamospés commeiasde seda.A seda custava dezmil-réis ometro. Amulher que vestia um vestido de seda circulava pelas ruas vaidosa,semelhanteaumpavãoexibindosuaspenascoloridas.

QuandopercebiquenemsãoBenedito,nemoarco-íris,nemascruzesnãofaziam eu virar homem, fui me resignando e conformando: eu deveria sersempremulher.Masmesmosemiconformada,euinvejavaomeuirmãoqueerahomem.E omeu irmãome invejava por eu sermulher.Dizia que a vida dasmulheres é menos sacrificada. Não necessita levantar cedo para ir trabalhar.Mulherganhadinheirodeitadanacama.Euiacorrendodeitarnacamademinhamãe,pensandonodinheiroque iaganharparacomprarpé-de-moleque.Depoislevantava,desfaziaacamacomansiedade,procurandoodinheiro.

Quando a minha mãe via a cama desfeita, dirigia-me um olhar duro, eperguntava:

—Oqueestáfazendo,cadela?

— Estou procurando o dinheiro, o Jerônimo disse-me que as mulheresganham dinheiro na cama, eu deitei e vou ver quanto é que ganhei. Querocomprardoces.

Apanhava.

Elaganhava trintamil-réispormês.Compravabotinasparaomeu irmão.Dozemil-réis.Esandáliasparamim.Sandáliaeraocalçadodospobres.Ficavaalegre. Na época do frio eu podia calçar meias. Quando uma mulher pobrecalçavameias,asvizinhasperguntavam:

—Estádoente?

Sóasmulheresricaséquepodiamusarmeias.Erachique.

Quandosobravacomida,asmeretrizesdavamaospobres,quecomiamassobrasdosricossemaveriguarseeleseramdoentesounão.

Comasdificuldadesqueospaisencontravamparaviver,porqueapobreza

era a sua redoma funesta, alguns pais, incientes, obrigavam suas filhas a sermeretrizes.Visandoenriquecerporintermédiodasfilhas,jovensdesnutridas,queeram obrigadas a passar as noites bebendo bebidas geladas ou vagando pelasruas procurando um admirador. Algumas ficavam infectadas, com doençasvenéreasemorriamcomdezoitoanos.Eramfloresquenãoencontravamvasosdecristaisparaexibirosseusesplendores.Floresquenãoencontraramoadubodavida,queéafelicidade.

Não me agradava aquele modo de vida dos pobres. Não podia nemclassificar aquilo de vida, sofriam mais do que os animais. Que luta paraconseguirdinheironascidadesdointerior.

O que favorecia era o matadouro público, que distribuía os miúdos dosanimais. Um pedaço de fígado para cada criança: se numa casa havia oitocrianças,cadaumaganhavaoseupedaço.Quandoodistribuidorperguntava:

—Vocêssãoirmãos?

Respondiam:

—Nãosenhor.

—Masvocêstêmonarizchatoeamesmacor.

—EquenóssomosfilhosdeAdãoeEva.

Distribuíamascabeças,os rins,ospés,obuchoeas línguas.Quealegriaquandonóscomíamososbifesdefígadocomarroz!Eraumbanquete.Acarnede cabeça, que carne insípida! Não tem sabor, e não cozinha. Tinha até umditado:pessoasordináriaseramacarnedecabeça.Acarneselecionadaeraparaosricos:quinhentosréiseoitocentosréisoquilo.

As crianças ricas quando adoeciam era tosse. As pobres eram anêmicas,raquíticas,porandaremdescalças.

Minhamãecozinhavacomlenha.Nósnãopodíamoscomprar,íamosbuscá-la no mato. Reuniam-se várias mulheres: a Maria Preta, a Joaquina e MariaTriste,minhamãeeeu.Levávamosummachado.Quesuplícioandarnomatoprocurando um pau aqui, outro ali. Quando encontrávamos um pau seco, quealegria! Era como se encontrássemos um filão de ouro. Era aquela andança

dentro do mato, das sete ao meio-dia. Eu gostava de ir para comer as frutassilvestres — jatobá, pitanga, gabiroba, araticum, maracujá e marmelo-de-cachorro.Nãogostavadoretorno.Minhamãemeobrigavaacarregarumfeixedelenha.Euerafracaenãosuportavaopeso.Masnãopodiareclamar.Jáestavacomeçandoacompreenderqueparavivertemosquenossubmeteraoscaprichosdealguém.Quandonãoéamãe,éoesposoouopatrão.Quedorhorrívelnaspernas!Opesomecomprimiaparabaixo, como sequisesse introduzirminhaspernasdentrodaterra.Quandochegavaemcasaejogavaofeixedelenha,quealívio!Iasentarparadescansar.

Fuinotandoqueháapossibilidadedeficarmoslivresdetudoquenosfatigaouaborreceumdia.Porqueavidaéumaiguariaaquedevemosadicionarumadose de paciência. Minha mãe sorria alegre porque a lenha para nós era umdilema.

Oúnicodiaqueeudetestavaeraosábado,porcausadaagitação.Sefossepossívelacabarcomosábado!Sófalavamnobaileodiatodo.Omeudesejoeratransformar-menumaavequalquer,mesmo-que fosseourubu,evoar todosossábadosparafugirdaqueleambientequenãomeagradavaemnada!

Medáoferro!Ah!esperaumpouco!

Jáestavatomandonojoatédoferro.Maseueracriança.Obaileparaelaseraumaobsessão.Eoscomentários:

—Hoje,ofulanochega!

Os homens que trabalhavam na roça passavam á noite de sábado paradomingo na cidade e arranjavam mulheres para dormirem juntos. Alguns játinhamamulhercerta.

O comércio permanecia aberto domingos e feriados. Vendiam bebidasalcoólicas, e os bêbados circulavam pelas ruas praticando cenas absurdas. Obêbadonãoaçambarcavaorespeitodapopulação.

Na cidade vivia um mulato com o nome de João Flaviano. Quandoembriagado,ficavanu,eascriançasvaiando.Asmulheresdavam-lheumlençol,eleembru- lhava-se.Davaa impressãode seruma figurabíblicacoma túnicainconsútil.

O que me impressionava era ver os nordestinos com suas trouxas nascostas, com seu aspecto desnutrido, como se fossem habitantes de outrosplanetasdesumanos.Sujoserotos.Algunstocavamviolasecantavam:

“NoestadodoCeará

Seteanosnãochoveu

Quemeraricoemigrou

Quemerapobremorreu.”

Váriaspessoasparavamparaouvi-losedavamdinheiro.

“Quemeraricoemigrou.

Quemerapobremorreu."

O pobre não tevemeios para deixar o estado doCeará. E eu sou pobre!Quer dizer que quando o sofrimento bate na porta do lar pobre, ele encontraguarida. Ficava com dó daquela gente. Os homens pareciam esqueletosambulantes. Mas estava com seis anos, o que poderia eu fazer para ampararaquelepovoinfausto?

Minhamãedizia:

—Eles sãobaianos.Sãoda terradoRuiBarbosa.Eles abandonama suaterraesaemvagandopeloBrasilàprocuradetrabalho.Porqueseelesficaremporlá,morremdefome.Lánãochove.

Puxa!Entãoachuvafazfaltamesmo!

Então é por isso que o Rui Barbosa queria preparar um Brasil para osbrasileiros?OBrasil foi descoberto em 1500 e se não fosse tão espoliado, oshomensdoNortenãoviveriamintranqüilos,andandodeumEstadoparaoutro,porqueoBrasiliniciou-senoNorte.Oquefizeramcomasriquezasdosubsolo?Foramdevoradaspelos abutres insaciáveis.Eram tipos egoístas que comiamacarneedeixavamosossosparaosnaturaissemdentes.Tiposquesevestiamedeixavamosbrasileirosnus.EntãooTiradentespercebeu,compreendeu,lutou,emorreu por nós.Eu vou pedir ao vovô para rezar um terço para oTiradentes.

Coitado,morreuenforcado.Eeleestavacerto.

Omeusonhoeraverumportuguês,homemtãofalado.Masopovodiziaqueelesnãogostamdascidadespequenas,queelesestavamemSãoPauloenoRiodeJaneiro.

AscriançasquevoltavamdaescolafalavamdoThomazAntonioGonzaga,quemataram.DofreiCaneca,quemataram.SeaprincesaIsabelnãodeixasseoBrasil,tambémseriamorta.Entãoomundoéassim?Quandoalguémquerajudarospobres,os infelizes, elesmatam.OBrasil começoua fundarescolasdepoisquetornou-seRepública.

O senhor Nogueira dizia que os portugueses não construíram nem umaescolanoBrasil,porissoéqueoBrasileraatrasado.Queeramnecessáriosmaisquinhentos anos para dar nova face ao país, cultura e solidariedade coletivas.Incentivarnopovooamorpatriótico.

Minhamãedizia:

—Sevocêcrescerassim,preocupadacomosproblemasdopaís,poderáperderasuacabeça,igualaoTiradentes.

— Ora mamãe, os meninos que já sabem ler me falaram que na nossaBandeiraestáescritoOrdemeProgresso·Epara lembraraosbrasileirosqueopaístemqueestarsempreemordem.

Aordeméopovotrabalhandocomhonestidade,respeitandounsaosoutros.

Eusentiainvejaquandoviaosmeninosqueiamevoltavamdasescolas.Asruasficavamtristes,nãohaviamaiscriançasparabrincar.

Euconvidava:

—Vamosbrincar?

—Não.Euvouestudar.Queroganharcemnaslições.

Fuicorrendopracasa.

— Mamãe! Ô mamãe! Eu quero entrar na escola porque os meninos

ganhamcemmil-réisnaslições.Eununcaviumanotadecemmil-réis.

Minhamãenãorespondeu.Elajáhaviaexplicadoque-eudeveriacompletarosseteanos.

OsnortistasquechegavamiamresidirnoPatrimô-nio.Quandochoviaelesficavam olhando como se fosse o espetáculomais lindo domundo. Naquelastrouxinhas, eles carregavam panelas e pratos. Faziam um fogão tropeiro, iamarrancarcapimpararecobrirsuataperasedormiamnasredes.Atéasavestêmoseuninho,eeles...sãomaisinfelizesdoqueasaves.

Aosdomingos,oshabitantesdacidadeeramobriga-osaassistirosofíciosreligiosos.Asreligiõespredominanteseramacatólicaeaespírita.Oscatólicoserammaioria.Osespíritasminoria.Haviadiscriminações:ospobreseospretosassistiam àmissa das seis.Asmadames ricas e casadas assistiam àmissa dasoito.Easmocinhasassistiamàmissadasdez,iamcomosnamorados.

Ospobresficavampertodaigrejaparaverasmulheresricaspassar,usandovestidoscaríssimosqueeramconfeccionadosemSãoPaulonaCasaAlemãounamadameAntonieta.Senolavarasroupasaslavadeirasperdiamaetiquetadapeçaquelavavam,pronto,eramdespedidas.Umaroupaqueforaconfeccionadaem São Paulo tinha um valor. Era o comprovante que os donos eram ricos eimportantes.

As mulheres pobres invejavam os casacos de peles. Compreendo que osonho de pobre é sonhar, apenas sonar.As ricas eram vaidosas. Olhavam ospobres como se fossem intrusos neste mundo, ou objetos incômodos e semprestígio.

Eu ficava preocupada com a seleção de classe. Se na classemédia tinhaumafamília,e senesta famíliahaviaumamocinhabonitinha,quandoapareciaummédicosolteirocasava-secomela.Euouviaelasdizerem:

—Eunãogostodele.Vou-mecasarporqueeleédoutorepoderámedarumavidaconfortávelemeintroduziránaaltasociedade.

Eu ficava horrorizada, porque um homem, seja rico ou pobre, quandodecidecasar-seéporqueestáconsiderandoamulher.Mereceseramado.Creioqueasmulheresqueagemassimsãoasescravasdasvaidades.

Muitasdelasdiziam:

—Eugostodefulano.Maseleépobre.

Seráqueaaltasociedadeétãoimportanteassim?

Minhamãediziaqueasexigênciasnavidanosobrigamanãoescolherospólos.Quemnascenopólonorte,sepudervivermelhornopólosul,entãodeveviajarparaoslocaisondeavidasejamaisamena.

9

MEUGENRO

UmasenhoraquehaviamudadoparaSacramento,equenãomencionoudeondeviera,foiprocurarcriadaseminhamãeaceitou.

Ela queria que limpassem a casa. As janelas, o soalho. Fazer doces,preparar carnes, recheá-las, encher frangos, que o seu genro ia chegar. Ela iaapresentá-loaosfigurões.Quecorreria!Distribuiuváriosconvites.Nacasa,elafalava:

—Omeugenro,quehomem!

Queríamosverohomemfenômeno,tãoenaltecidopelasogra,coisarara.

Minhamãeea tiaTerezaéqueestavampreparandoosquitutes.Antônia,mulher do pai preto é quem engomou as toalhas bordadas. A casa ficou umprimor.

Apatroaeradelicadíssimaparalidarcomosdomésticos.Nãodavaordemcomaconvicçãoqueestavapagando.Pediacomgentileza.

—Amanhã,omeugenrovaichegar.Seráqueasenhorapoderáchegaràsseishoras?

Minhamãedissequesim.

—Elaandavadeum ladoparaooutro, reclamandoqueosponteirosdosrelógioseram indolentesenãosemoviam.Meu ilustregenro foi feitonocéu.Nãoferenossasensibilidade.Éorepresentantedagentileza.

Emtodososlugaresondeiapassearfalavaunicamenteno“meugenro.”

—Eleéquenosmantém.Osmeusdoisfilhosestãoestudandonumcolégio

interno.Ele é quempaga.Não é sóoCristo quem salva, ele tambémestámesalvando.

Nooutrodia,minhamãechegouàsseishoras.Estavausandoseuvestidonovoecalçadacomum“pédêanjo”.Aomeio-dia,chegouogenro.ViajounobondedoCipóatéacidade.OmotoristadoSeteconduziuogenrotãoesperado,eleeaesposaeosdois filhos.Quandosaíramdocarro,a sogra foi recebê-lo.Abraçaram-seebeijaram-se.Asogradizia:

—Tenhoa impressãoque já fazumséculoquenãoovejo!Osenhorestátãobonito!Muito obrigadapelas cartas.Eu as tenho recebidode oito emoitodias.Suascartasmetranqüilizamtanto.Osenhoréomeuprotetor.

Beijouosnetos.

Emumminutoanotíciacirculou:

—Sabe?O“meugenro”chegou!

—É?

—Massabedeumacoisa?O“meugenro”épreto!

—Preto?Credo!

—Eseráqueétãoimportantecomosefala?

—Eladizqueeleérico.

Osconvidadosnão foramalmoçar.Percebia-sequeaquela senhoraestavachorandointeriormente.Eosboatosprosseguiam.

—Imaginesó,eusentarnamesacomumnegro.

A esposa era uma beleza branca. Cabelos pretos e olhos verdes.A sograconvidou o genro para ver a casa e o quintal comos arvoredos.E pediu paraminhamãedeixarseislugaresnamesaeretirarosoutrospratosparaoseugenronãonotarhostilidadedosdonosdacidade.Dizia;

—Esteshomensdaquinãosãodignosdepegaremnasmãosdomeugenro.

Serviram o almoço.Quantas bebidas!Abriram as janelas.Que calor. Eledizia:

— A senhora deveria ter-me dito que vinha residir nesta pocilga. Quecidade!Istoaquiéumavila.Aquitemmar?

— Não senhor. Quando o senhor quiser tomar banho tem que ir aochuveiro.

— Estas cidades do interior não crescem nunca. Os habitantes destasregiõesnãotêmvisões,nemvaidades.Nãogastamparaobemdacomunidade.São tipos de mentalidade da era das cavernas, que guardam suas economiasdentrodasgarrafas.Ah!Euvoulevá-lacomigo.AsenhoratemquemorarénoRio.Quepovoseleto!Lánãohápreconceito.Quemdirigeistoaqui?

—ÉoseuJuca.Oprimeiroprefeitodestacidade,eveiodeAraxá.Precisaconhecê-lo. E um tipo inesquecível. É doutor mas fala caipira. Imagine quequando ele visitou a capital do estado de S. Paulo, ficou deslumbrado com oprogressodacidadegigantesca.Aspessoasdeoutrosestados,quandovisitavamSãoPaulo,iamtirarumretratonojardimdaLuzcomroupasdelãeoguarda-chuva aberto para comprovarem que em São Paulo chovia todos os dias. Ouentãoquehaviaaquelagaroaquedeufamaàcapitalpaulistana.

Tudo para ele era novidade, não acreditando que a cidade deslumbrantefosseobradohomem.Oseuídoloeraobonde.Quedelíciaviajarnaquelecarroelétricoqueo conduziapor todos recantos.É, ele ia comprar unsbondes paralevá-losparaSacramento.EobondelevariaopovodeSacramentoatéoCipó.Eraumbomnegócio.

Ele passava as tardes dentro dobonde.E ficouviajandodaPenhapara acidadeedacidadeparaaPenha.Eadormeceunotrajeto.

Quando despertou e desceu do bonde, percebeu que todos lhe dirigiamoolhar.Ficouintrigado,preocupado,pensando:“Seráqueestepovojásabequeeusou prefeito de Sacramento? Será que eles já sabem que eu sou fazendeiro?”Com o povo parando para ele passar, pensou: “Será que eles desejamhomenagear-me?Seráqueperceberamquesouimportante?”

Ele seguiu o caminho. Quando passou diante de uma vitrina, viu a suaimagemrefletidanoespelho.Compreendeuacausadosolhares.Equeenquanto

ele dormia trocaram o seu chapéu por um de pedreiro, todo sujo de cal ecimento. Ele sorriu e foi comprar outro chapéu. Ele estava usando roupa depalm-beach, sapatosdebico finoenvernizados, relógiodeouroedistintivodepolítico.Entrounumalojaecomprououtrochapéu.Umchapéunaqueletempocustavaquarentamil-réis.

E tempos depois, os bondes chegaram em Sacramento. Quem teve agentileza de pegar o chapéu do prefeito José Afonso fez um bom negócio,porqueparaganharquarentamil-réisnaquelaépocasómesmoumpolítico.

—Aquitemginásio?—perguntou“meugenro”.

—Dizemquevãofundarum.Osenhorquervisitaracidade?

—Não.Nãoestouhabituadoarespirarpó.

Minhamãesorrianacozinhaedizia:

—Onarizdonegroénarizimportante.Enarizdegalã.

—Euvimapenasvercomoéqueasenhoraestávivendo.

Que preto educado! Era semi-obeso. Falava do progresso nas cidadesgrandes.Queopovoéculto,maisgenerosoenãoéindolente.

Sobroumuitacomida,doces.Nóslevamos.Trêsdiasdepoiselesviajaram.Eleconvidouaminhamãe:

—VamosparaoRiodeJaneiro.

Minhamãerecusou,dizendoquetinhamedodesofrer.

Nãoficamossabendoonomedaquelasenhora,enemonomedoseugenro.Euqueriaouviroseunome.Mas,eladizia:

—Meugenro.

Olhavaaquelepretocomoseestivesseolhandoumajóia.Davaaimpressãoque ela é quemdesejava ser esposa daquele preto.Omessias que salvou-a damiséria.Nuncaumhomemfoitãoacatadoporumasogra.Eraimpressionantea

admiraçãodaquelasenhora.

Creioqueoshomensnãoforamcumprimentá-loporsesentireminferioresao“meugenro”.Asogranãotrabalhavaeviviacomosefosseumarainha.Todososmesesogenrolheenviavacincocontos.

Fiquei pensando naquela boamulher que foi desprezada só porque o seugenroerapreto.Querdizerqueopretofezcomqueelaperdesseaconsideraçãodosbrancos.Minhamãediziaqueomundoéassimmesmo.

Fiqueifuriosa:

—Ah!comigo,omundovaimodificar-se.Nãogostodomundocomoeleé.

Minhamãesorriaeperguntava:

—Oqueéquevocêvai-fazerdomundo?

—Nãoquero gente grande nomundo.São os grandes que sãomaus.Ascriançasbrincam juntas,paraelasnão existe a cor.Não falamemguerras nãofazemcadeiasparaprenderninguém.

Eunãogostodosgrandes.Osgrandestêmcoragemdeenfiarumafacanooutro.Outro dia um espinho entrou nomeu pé e doeu tanto! E se fosse umafaca?OtioCirineumeouviaedizia:

—Estanegrinhavailonge.

10

AMORTEDOAVÔ

OtioCirineudisse-me:

—Olha,Bitita,vocêvaicasarcomomeufilhoAscindínio.

Pensei: “Prefiro o Cirino.” Mas não disse nada. Não queria magoar oAscindínio,queficoucontentedizendo:

—Vocêvaiseraminhamulher!

Era um preto calmo. Pensei: “Este homem calmo, tranqüilo parece águaparada, nãome serve. Eu quero um homem relâmpago. Estes homens que selevantamdemanhãevãosentar-senãomeservem.”

Omeusonhoeraverumpretorico, fazendeiro,quefosseodonodeumaglebadeterras,comroçaseplantações.OuvidizerquenaBahiatinhapretosqueeramfazendeiros,queplantavamocacau.Comoeugostavadospretosetinhadódeles!Unstãoricos,outrostãopobres.Porqueéqueospobresrezavamtodososdias?Falavam:Deus... temdódenós.Deus...misericordioso.QuemseráoDeusqueéonossopai?QuevontadequeeutinhadeveroDeusepedir-lheparaconsertaromundo.OsricosnãofalavamemDeus.Sóospobres.

Aosdomingosreuniam-seasprimasqueeramadultas.AMariaSebastiana,aAnaRosaeaminhatiaClaudimira,cadaumacomoseunamorado.Quelutaparaelesconversarem.Eramanalfabetos.Falavamapenasdobaile.

—EoManoel,ébomsanfoneiro.

—EoJoãosabetocarviolão.

Eramfilhosdoscolonosetrabalhavamparaosportugueses.OBrasileraasegundaediçãodePortugal.Nãotinhaestilopróprio.

Enasfazendasnãohaviaescolas,haviaenxadasemabundância.Arrancartocos, preparar terras para plantar. Iamembora à noite.Não tinhampermissãoparaficaremnacidadenosdiasúteis.

Oúnicohomemquedizia:“—Eunãotenhomedodospoliciaisporqueseeuquiservirar soldadoeuviro”, eraoAugustoBicudo,paidaDoloresminhaprima.Umdiaelediscutiucomumpolicial,eopolicialfurou-lheaorelhacomumabala.OAugustoBicudointroduziacerapretanolocalparaocultarquefoiperfuradopelabala.

Anotíciacirculou,eodonodocircofoiprocurá-lo.

—Vocênãoquertrabalharnomeucirco?Agoravocêtemvalorporqueestácom a orelha furada. Você trabalha com o palhaço Pouca-Roupa. Eu tetransformonumgrandeartista.Etepagocinqüentamil-réisporsemana.Livre.Ete levoparaBeloHorizonte,RiodeJaneiro,Recife,SãoPauloeNiterói.Vocêpode até ficar rico. Eu posso anunciar: “Venham ver o homem que tem umaorelhaquefoifuradaporumabaladeumpolicial.”

Eoshomenscomentavam:

—OAugustoBicudoestácomumaorelhafuradaporqueagoraémodaohomemfuraraorelha.

—Não.Foiumpolicialquemfurou.

—É?Comfaca?

—Não!Comumabala.

Eledesgostou-se,foimorarnaselvacomosíndios.

No sábado seguinte asmeretrizes vestiram-se esperandoos roceiros.Masnãoapareceuninguémcommedoqueospoliciaislhesfurassemasorelhas.Atéoscomerciantesprotestaram,eopolicialdeixouacidade.

ADoloreschoravadizendo:

—Quepena!Furaramaorelhadomeupai!

NósestávamosatarefadoscomospreparativosparaocasamentodaMariaMaruca que era a filha da siá Maruca. Não tomei conhecimento do nomecompletodaMaria.Quemulatabonita.Boazinha.

Aspessoasbonitasnãodeveriammorrer.AMariaamavaofilhodatiaAna,o JoãoMarcelino.Mas a tia Ana não consentiu o casamento. Era autoritária.Quemvestiacalçaeraela.Sófaltavaterbigodes.

Osseusfilhosdeveriamcasar-secombrancos.

Masasuamãe,queéaminhabisavó,eranegradecabeloslisos.Erafilhadebranco.Eutenhosanguemesclado,porqueaminhaavómaternaeramestiça.

OJoãoMarcelinoeaMariaencontravam-senosbailes.Eramparconstante.Nãofalavam.Apenasolhavam-se.Estavamproibidosdefalar.Eraaordemdaditadoraqueeraaúnicapeçanegativadanossafamília.AMaria,percebendoaimpossibilidadedeconstruirumlarcomoJoão, foiolvidando-o.E iniciouumnamorocomumpretobonito.

O Sebastião era de Araxâ. Que olhos bonitos! E casaram-se. O JoãoMarcelino não compareceu. Chorou lamentando que não era livre. Que eraescravodoscaprichosdesuamãe.NãofoiaobaileporquenãopodiaseropardaMariaqueparaeletinhaovalordeumajóia.

Eletocavaviolãoecantavadespedindo-se.AMarianãoemocionou-secomascançõesdoJoão.Elecantava:

"Dizemqueoamorvemdasorte

easorteéparaquemtem.

Eucomonãotenhosorte,

nãoqueroamarmaisninguém.”

Eraumcapítulodesuavidaqueestavaencerrado.

OSebastião,esposodaMaria,trabalhavanumapedreira.Umapedrarolouecaiu-lhenascostas.Ficoudoenteváriosmeses.Chamaramummédicoque lhelancetouascostaseopusjorrou:cincolitros.

Euolhavahorrorizada.AMariachorava.Quandocessoudeescorreropus,oSebastiãomorria.Ficaramcasadosapenasquatroanos.Maisumavezodieiamorte—pobreMaria!

Comosofreumamulherbonitaquandoficaviúva.Mesmonocemitério,oshomens já estavampiscandoos olhospara ela que choravadesesperadamente.Quando deixamos o cemitério, asmulheres foram para as suas casas.Mas oshomensacompanharamaviúvaatéasuacasa.Diziam:

—NãochoraMaria.Nósarranjamosdinheiroparavocê.

Outrodizia:

—Euarranjodinheiroparavocê.

E os homens ficavam rondando a nossa casa como se fossem cachorrosperseguindoascadelas.HomensquemoravamnossítiosquandosouberamqueaMariaestavaviúvavinhamnacidade.AZica,queeradonadeumlupanar,foiprocurá-la!

—Vai lápracasaMaria.Vocêaindaénova.Eébonita.Vocêvaimedaruma renda espetacular. Eu tenho casas aqui em Sacramento, Conquista eUberabanaruaSãoMiguel.

AMaria não sabia defender-se, era supereducada.Dizem que amulher éviúvasóduranteodia.EaMaria ficougestante.Bebeumuitos remédiosparaabortar, ficou tuberculosa. O filho era de um preto por nome José de Paula.Quandoofilhonasceu,aMariamorreu.

Deixou um filho do seu esposo que ficou aos cuidados do padrinhoJerônimoGervásio. E o negrinho não freqüentou escolas. Eu tinha um dó donegro.Erabonito.ErafilhodoSebastião.

O senhor JerônimoGervásio vendeu a sua chácara para uns japoneses: oNapoleãoeoKarachima.Emudaram-se.Eeununcamaisvionegro.

As vezes eu pensava: “Asmães deveriammorrer depois que criassemosfilhos.”Eupensavaqueaspessoasmorriamporvontadeprópria.Quandoeuviaumhomemmorto,revoltava-me:“Queidiotamorrer,evaificardebaixodaterra.Elemorreufoidepreguiça,nãoqueriatrabalhar.Seráqueestehomemnãoteve

dódedeixarsuaesposa,seusfilhos,suasfazendas,oautomóvel?Eununcaheidemorrer,porqueouviadizerqueaspessoasquemorriamnãomaisvoltam.”

O fatoquemehorrorizou foi ver um soldadomatar um preto.O policialdeu-lhevozdeprisão;eleeradaroça,saiucorrendo.Opolicialdeu-lheumtiro.Abalapenetroudentrodoouvido.Osoldadoquedeu-lheotirosorriadizendo:

—Quepontariaqueeutenho!

Comopé,elemoviaocorposemvidadoinfaustoedizia:

—Eledeveserbaiano.

E eu fiquei pensando nos baianos que eram obrigados a deixar a Bahiaporque lá não chove e serem mortos pelos policiais. Será que ele tem mãe?Queméquevaichorarporele?Elenãobrigou,nãoxingou,nãobebeupinga.Nãohaviamotivosparamatá-lo.Quandoodelegadochegou,olhouomorto,emandousepultá-lo.Etudoacabou-se.

EseovovôrezasseumterçopedindoaDeusparachovernoNorte?EDeusatende o vovô. Quando ele reza, chove e os nortistas não precisam deixar oNorteevirparaSacramentoeseremmortossemmotivo.Chorei.Elemereciaasminhaslágrimas.

O soldado quematou o nortista era branco.Odelegado era branco.E eufiquei commedo dos brancos e olhei aminha pele preta. Por que será que obranco podematar o preto? Será queDeus deu omundo para eles? Eu tinhaexcesso de imaginação,mas não chegava a nenhuma conclusão nos fatos quepresenciava.Estavacomseisanos.Oúnicolugarseguroparaeuguardarosfatosera dentro da minha cabeça. Minha cabeça é um cofre. Minha mentalidadeaclarou-semuitomesmo.

Quandoomeuavôadoeceufiqueipensando:“Eseovovômorrer?Queméquevairezarparachover?Todosprecisamdachuva,masoúnicoquerezaéovovô.QuemdeverezarparachoveréopadrePedro,porqueeletambémplantalavouras. Será que ele reza? E a siáMaruca vai ficar sem o vovô e terá quetrabalhar.Nãomaistemovovôparacomprarcomidaeroupas.”

Elefoienfraquecendo-se.Osfilhosqueresidiamnasfazendasforamparaacidade, conduzindo os seus filhos e esposas. E foi assim que eu fiquei

conhecendotodososparentes.OsfilhosdotioJoséBeneditoeramsete.Osmaisvelhosnãosabiamler.

Ovovô foi desenganado pelosmédicos.Era infecção nos rins.Omédicoque tratava o vovô era o Dr. José da Cunha. Eu ficava penalizada, ouvindoaquelesgemidos.Epensava:“MeuDeus,porqueéqueexistedoença?Deondevem?AdoençaserádeDeusoudodiabo?”Poreuouvirquetudoqueéruimédodiabocomoodieiexingueiodiabo!Malvado,pé redondo!Mandardoençaparajudiaromeuavô!

Oh!seeusoubesseondeéoinferno,euialá.Epediaaodiaboparatiraradoençadovovô.Aminhavistacirculavapeloespaçoeeupensava:“Ondeseráoinferno?Seeusoubesseolocal!”

Eudeixavadebrincare sentavaao ladodacama.Omeuavômeolhava.Depoisfechavaosolhos.Euficavapreocupadafitandooseurosto,oseunarizafilado.Euqueria serbonita igualaovovô.Que lindaboca.Não tinhaonarizchatoda raçanegra.Ovovôeradescendentede africanos.Era filhodaúltimaremessadenegrosquevieramnumnavionegreiro.Osnegroscabindas,osmaisinteligenteseosmaisbonitos.

Oranchodovovôeracobertocomsapé.Quemeraeleparacomprartelhas!Telhasparanós eramabstratas, víamos as telhasnas casas ricas.De cinco emcincominutoschegavaalguémqueiaperguntar:

—OsenhorBeneditoestámelhor?

—Quehomembom!Elevaiparaocéu.

Elogiavam-no.Elenuncabrigoucomalguém.Nuncafoipreso.Nãoirpresoeramençãohonrosa.Pensava:“Ovovôchegouaomundoanteseeuvimdepois.Queroouviroquefalamdeleparasabercomofoiqueeleviveu.”

Omeu tioJoãosaíaparacomprarpãesparaopovoque ficavavelandoovovô que ia morrer. Mas se ele encontrasse uma serenata saía cantando apatuscada. Era fraco dememória. Retardado. Tevemeningite. Era inofensivo.Erauminfeliz.

As vizinhas emprestavam as panelas maiores que possuíam, porque osfilhoseosnetosreuniram-se.Nós,osnetosdacidade,queestávamoshabituados

comovovô,sentíamosesofríamosvendo-ogemer.Osnetosdaroçaolhavam-nosememocionar-se.Umdia, ovovôdesfaleceu.Os filhos eosnetos choraram.Queconfusãodevozes.

—MeuDeus!Opapaimorreu.

—Nãomorrevovô.

—Seosenhormorrer,nuncamaisvaichover.Enósvamosviveriguaisaosnordestinos,ficarandando,andando,comaquelesaconascostas.

E odiei amorte e queria dar-lhe umas cacetadas.A morte é louca! Vembuscaroshomensquegostamde trabalhar,osque têmobrigações,que têmosseusfilhosparacriar,osmeninosórfãosvãoficaraoscuidadosdodoutorBrand.

O doutor tem um filho moço, o Humbertinho, e ele faz coisas com asmeninas.Seráqueosfilhosdojuiznãodevemtereducaçãoepodemfazeroquebementendem?Nósquesomosospobres,ojuizquerqueandemosnalinha.Eunãoseiquelinhaéesta.

Euachoqueosmeninospobrestêmmaiseducaçãodoqueofilhodojuiz.AdonaSinhá,esposadojuiz,éboazinha.MasodoutorBrandpercebeuqueoseufilhopersegueasmocinhaspobres.Quandoelasoavistam,saemcorrendo.Seeufossehomemqueriadarumasurranofilhodojuiz.

Osricoscriamosseusfilhosassim:

—Nãofaçaisto,Humbertinho!

—Criamodos,Humbertinho!

—Vaiestudar,Humbertinho!

Mas o que faltava para o filho do doutor Brand era um cacetinho, umporretinhoeumtrabalhinho.

Seráqueamortenãopercebiaqueelatranstornavaavidadoshomens?

Ovovôdesmaioudominadopelador.Depoisfoireavivando-seenosdisse:

—Eunãodesmaio.Équeestoumorrendo,equemestámorrendorelembraopassado.Recordeiqueestoudevendotrintamil-réisaosenhorJoséRezende.Compreiumrolodearameenãopaguei.Vocêsvãopagar.

Eoseuolharcirculouolhandoosfilhosedisse:

—EstáfaltandooJoaquim.VocêspodiaminvocarosantoAntônioparaeleaparecer.

AminhamãefoiprocuraradonaMariaTreme-Treme,quediziaquetinhapoderessobrenaturaiseconversavacomossantos.Elapediuumatoalhavirgem,queaindanãoforausada,eumapeneiranova,eummaçodevelas.Minhamãecomproueentregou-lhe.

Dedois emdois dias, o vovôdesfalecia; quandodespertava nos revelavaalgo.DiziaqueerabommorrerquandosãoobedecidososdezmandamentosdaleideDeus.Opior,oqueDeusnãoperdoa,éorouboemataroseusemelhante.Eueracuriosaeficavapensando:“Oqueseráosdezmandamentos?”

UmdiaelepediuàsiáMarucaparasentar-seaoseuladoeouvi-lo.Quandoeleiafalar,osvizinhos,osfilhosiamouvi-lo.Aúnicanetaqueiaouvi-loeraeu.Queriaficarpertodeleporqueestavadespedindo-sedestemundo.Preparandoasua longaviagem.Umaviagemparaaqualoshomensnão levammalas, suasbagagenssãoasbelasaçõesquepraticaremaquinesteplaneta.Osqueoouviamfalar,diziam:

—Estehomeméumprofeta.

Eledisse-lhe:

—Maruca!Vocêviveunaminhacompanhiavinteeumanos.Quandoumamulherconvivecomumhomemseteanos,eledevecasar-secomela.Sevocênãotivernojodecasar-secomumdefunto,eupeço:quercasar-secomigo?

—Oh!—exclamamos.

Elasorriu.

—Desdequefuivivercomosenhor,omeusonhoerasersuaesposa.Eunãopediaosenhorparacasar-secomigoporqueaindanãoestáemusoamulher

pedirohomememcasamento.

Osfilhosforamprocuraropadreparafazerocasamento.Quecorreria,queagitação! O vovô poderia morrer de um momento para outro. Siá Marucabeijava-oeacariciavasuasmãoscadavéricas:

—Deusquelheajude.Oqueseriademimsenãootivesseencontrado.Eunãotenhoninguémnestemundo,vouficarsó.

—VocêficacomDeus.Noscasamentosfazem-sefestas,bailes,anoivausao véu. Mas, o nosso é diferente. Em vez de vestido branco, você vai usar ovestido preto. Celebram-se os casamentos com festas e lua-de-mel. Mas nonossocasamentovaiterlágrimas,daquiaunsdias,euvoumorrer.Queviagemdenúpciasesquisita,vouviajar sozinhoparaoalém.Nãosei sevouser feliz!Porqueohomemnascepuro,emorreimpuro.

Eupensava:“Oquequerdizerpuroeimpuro?”

O senhor Manoel Soares disse que o vovô era analfabeto, quem estavafalandoporeleeraoseuespírito.Resolviperguntaroqueeraespírito.

—Eaalmadele,todosnóstemosumaalmaquenosdirige.

—Eaalmaéboa?

—Todasasalmassãoboas.

—Então por que é que a alma não ensina os homens a ser bons? Elesmatamunsaosoutrosenãotêmdó.

Eupensavano soldadoOvídio,quandomatouonortista.Elesmatavamesumiamcommedodeseremvingadospelosparentes.OsenhorManoelSoaresnãorespondeu.

Osgrandestêmforçasparaconstruíremcasas,cortaremasárvores,masnãotêmforçasparaserembons.Osgrandessãounsbocós.

Oquenos impressionou foi a cartaqueo tio JoaquimnosenvioudeSãoPaulo.Eleestavapresoháquatroanosnapenitenciária.

Osmeus tios eram idiotas, eopadrinhoCandinho,quequeria seromaisesclarecidonafamília,falava:

—QuemestáemSãoPauloestáquasenocéu.Látemtantoserviçoqueseosdefuntos saíremdas sepulturas logo arranjam trabalho.Agoraque eu já seiondeéqueomanoJoaquimestátrabalhando,vouescrever-lheparaelearranjarserviçoparamim,napenitenciária;depoisvenhobuscarafamília.

Nós ficamos contentes. Na carta ele dizia que estava com saudades dopapai.“Mas,nãopossoirvê-lo.Ànoiteouçoumavozchamando-me:Joaquim!Joaquim,vai vero seupai.Avozmechamou quatro vezes.Depois silenciou.Mas a voz fica dentro domeu cérebro,me chama sete vezes. Será que estouficandolouco?Oqueéqueháporaí?”

Omeutiofoireconfortarovovô:

— O senhor não precisa ficar triste, e nem preocupar-se com o manoJoaquim,porqueeleestámuitobem,estátrabalhandonapenitenciárialáemSãoPaulo.

Ovovôdisse:

—Não,meusfilhos,elenãoestábem.Cometeuumcrime.Estápresonapenitenciária. Ele era violento, e a violência nos prejudica. Coitado do meufilho!

Era a primeira vez que nós ouvíamos falar na penitenciária. Ninguémrespondeuàcarta.

NãoagradeceramàdonaMariaTreme-Tremequepediuumatoalhavirgemeapeneiraenosdisse:

—Daquiasetediasvocêsreceberãoumacarta.

Será que ela conversava comos santos?Ela comprovouo que nos disse.Nãofoipernóstica.Ninguémprocurouaprendercomamulherasuaarte.

Eutinhaaimpressãoqueestavasonhando.Umanoiteovovôdesfaleceu.OmeutioAntôniopegouumavelaeumcrucifixoecolocou-osnasmãosdele.Euolhava aquelas mãos, pele e ossos, cadavéricas, que outrora foram vigorosas.

Quehaviamtrabalhadoparaenriquecerosportuguesesetrabalhadoparacriarosfilhoseosnetos.Eolheicomsimpatiaaquelasmãoshonestas.

Ovovôabriuosolhosenosdisse:

—Todoomalquesefazpaga-se.OmaleobemsãodívidassagradasparacomDeuserecebemostudocomjuros:obem,eomal.Epreferívelperdoardoque vingar-se. Eu sou o filho mais novo de minha mãe, quando ela estavamorrendo,eucoloquei-lheumavelaeumacruznasmãos,eagoraoAntôniofazcomigooqueeufizcomaminhamãe.Eumapenavocêsnãocompreenderem.

Euqueriaqueovovômeexplicassecomoéamorte.

—Todosnóssomosmortais.Ninguémédonodomundo.Omundoéumhotelondepassamosumatemporada.Tudoquenosrodeiaépó.Oferro,comotempo,transforma-seempó.Ummóveltambémserápó.Tudoéterranomundo.

Quando o vovô silenciava ou adormecia, as crianças eram obrigadas a irbrincarlongedecasaparanão:despertá-lo.Osgrandesnãofalavam.

Aspessoasqueiamvisitarovovôsaíamcomentando:

—Quehomeminteligente.Sesoubesseler,seriaoSócratesafricano.

—OqueseráSócratesafricano?

Outroscomentavam:

—Foicrimenãoeducá-lo.EestehomemseriaOHomem!Poderiamcriarumaleideeducaçãogeral,porqueaspessoascultasqueadquiremconhecimentodoseugrauintelectualtêmcapacidadeparaverdentrodesi.

Algumaspalavrasficaramgirandonaminhamente.Foramestas:“Foiumcrimenãoeducarestehomem.”Ocrimeeusabiaoqueera.QuandoosoldadoOvídiomatouobaianinho,ouviváriaspessoasdizer:“Foiumcrimematarestehomem.”Algumaspalavraseuouviaenãocompreendia.Sorriaeachavagraça.

Alguémvendo-mesorrirenãovendoomotivoparaorisodizia:

—Elaélouca!

Haviaocasiõesqueeudiziaparaaminhamãe:

—Mamãe,mamãe!Olhaascobras!

Elasorriaedizia:

—Eunãovejonadaminhafilha!

Eu tinha a impressão que milhares de cobras estavam enrolando-se emmim. E uma cobra enorme investia naminha direção. Eu não tinhamedo!Ovovôdisse-me:

—Sãoosfalsosamigosquevocêvaiencontrarnatuavida.

Nãocompreendianada.

“Osgrandesquandofalammedeixamconfusa.Eaminhamãesemprefalaque euvou crescer.Estou tãobemassim.MeuDeus!Eu tenhomedode ficargrande.Seráqueeuvouaprender todasestascoisashorrorosasqueosgrandesfazem!”

Nodia27deagostode1927ovovôfaleceu.Minhamãedisse-mequeeuestavacomseisanos.Seráqueeunascinoanode1921?Háosquedizemquenascinoanode1914.

Eunotavaqueospretosnãosabiamler.Nuncaviumlivronasmãosdeumnegro.Osnegrosnãoserviamnoexércitoporquenãoeramregistrados,nãoeramsorteados.Elesdiziam:

—Eorgulho.Sóosbrancosquesãoconsideradosbrasileiros.

Ninguémnaminhafamíliatinharegistro.Nãoeranecessáriooatestadodeóbitoparasepultarosmortos.Voltamosafalardomeuilustreavô.

Chorei quando ele morreu. Será que ainda vai chover? Agora ele podeconversarcomDeus.VaipedirchuvasparaoNorteeosnortistasnãoprecisamandar,andaratécansar.Apalpavaocorpogélidodovovôepensava:“Porqueseráqueeleesfriou?Estáfazendocalor.”

Oesquifedovovôeraazul.Minhastiaschoravam.Outrosdiziam:

—Eledescansou.

Àscincohorassaiuoenterro.Oshomenscarregavamocaixão.

Oshomensdiziam:

—Éonossofim.

SiáMarucapedia:

—SenhorBenedito,osenhoréomeuesposo,vembuscar-me!Eugostavadavida,sóporqueosenhorvivia.Nemtodosaprendemavivernomundoeeu...nãoaprendi.

Depois do sepultamento, uns forambeber e aminhamãe chorou.Comodecorrerdotempofuiolvidandoovovô,quefoiopretomaisbonitoquejáviemminhavida.Quelindonariz!Atestaeabocaerammagníficas.

11

AESCOLA

MinhamãefoilavarroupanaresidênciadosenhorJoséSaturnino,easuaesposadonaMariquinhadisseparaaminhamãemepôrnaescola.Minhamãefoifalarcomaprofessora.Euacompanhava.Quandoentramosnaescola,fiqueicommedo.Nas paredes havia uns quadros do esqueleto humano.O salão eraamploeasclasseseramnoscantos.Operíodomatinaleradestinadoaoquartoano.

Oprofessor erao senhorHamiltonMilon, irmãodo fundadordoColégioAlanKardec.QuemfundouocolégiofoiosenhorEurípedesBarsanulfo.

Osegundoperíodoeraparaoprimeiro,osegundoeoterceiroano.

Quandoeuolhavaosquadrosdosesqueletos,omeucoraçãoacelerava-se.Amanhã, eu não volto aqui. Eu não preciso aprender a ler. É que eu estavarevoltadacomoscolegasdeclasseporteremditoguandoeuentrei:

—Quenegrinhafeia!

Ninguémquerserfeio.

—Queolhosgrandes,parecesapo.

Minhamãeerapobre.DonaMariaLeiteinsistiucomamamãeparaenviar-meàescola.Eufuiapenasparaaveriguaroqueeraescola.

AdonaMariaLeite residianaEstaçãodeChapadão.VisitavaacidadedeSacramentoduasvezesaoanoparaassistiràseçãoespíritaemcomemoraçãoàdata do nascimento do senhor Eurípedes Barsanulfo. Ela dava roupas para ascriançaspobres, as roupaseos livroseramnovos,paraestimular enosdeixarvaidosos.Se as crianças ricas iamcomas roupasnovas, ospobres também.Enãohaviacomplexos.

OqueeuadmiravaéqueadonaMariaLeitenãoauxiliavaosbrancos,sóospretos,enosdizia:

—Eu sou francesa. Não tenho culpa da odisséia de vocês; mas eu soumuitorica,auxiliovocêsporquetenhodó.Vamosalfabetizá-losparaveroqueéquevocêsnosrevelam:sevãosertipossociáveisetendoconhecimentopoderãodesviar-sedadelinqüênciaeacatararetidão.

Paranosenvaidecereladizia-

—Eugostodospretos.Euqueriaserpretaequeriateronarizbemchato.

Esorria.Osnegrinhosquejásabiamler,liamparaelaouvir.Elaouviacomprofundointeresse.

Minhamãeeratímida.Ediziaqueosnegrosdevemobedeceraosbrancos,istoquandoosbrancostêmsabedoria.Porissoeladeviaenviar-meàescola,paranãodesgostaradonaMariaLeite.

Quando entrei na escola, eu ainda mamava. Quando senti vontade demamar,comeceiachorar.

—Euqueroir-meembora.Euqueromamar.

Aminhasaudosaprofessora,donaLonitaSolvina,perguntou-me:

—Entãoasenhoraaindamama?

—Eugostodemamar.

Osalunosdavamgargalhadas.

—Entãoasenhoranãotemvergonhademamar?

—Nãotenho!

—Asenhoraestáficandomocinha,temqueaprenderalereescreverenãovai ter tempo disponível para mamar porque necessita preparar as lições. Eugostodeserobedecida.Estáouvindo-me,donaCarolinaMariadeJesus!

Fiqueifuriosaerespondicominsolência:

—OmeunomeéBitita.

—OteunomeéCarolinaMariadeJesus.

Eraaprimeiravezqueeuouviapronunciaromeunome.

—Eunãoqueroestenome,voutrocá-loporoutro.

A professora deu-me umas reguadas nas pernas, parei de chorar.Quandochegueinaminhacasa,tivenojodemamar.Equeaminhaprofessorasoubemeconvencer que eu devia deixar demamar. Compreendi que eu aindamamavaporque era ingênua, e a escola esclareceu-me um pouco. Minha mãe sorria,dizendo:

—GraçasaDeus!Euluteiparadesmamarestacadelaenãoconsegui.

Minhamãesentiu-sebeneficiadacomoprimeirodiadeaula.

MinhatiaClaudimiradizia:

—Eporquevocêéboba,seessanegrinhafosseminhafilha!

Minhamãesorriacomentando:

—GraçasaDeus!Soulivre!Agorasimeupossopassear.

Eu ouvia tudo aquilo sem compreender. Tinha a impressão de estarsonhando.

Continueiindoàescola.Porqueocomparecimentoeraobrigatório.Masnãomeinteressavapelosestudos.Aminhaprofessorainsistiaparaeuaprenderaler.Medirigiaumolharcarinhoso.Euachavatãodifícilaprenderaler.

Imploravaaminhamãeparanãodeixareuiràescola.

—Eunãoqueroaprenderaler.

Elaouvia-meemedavaduaschicotadas.Euiacontraaminhavontade.Euera preguiçosa. Quando eu faltava à aula, a professora mandava um aluno irprocurar-meemcasa.Quandoeuchegavaàescola,adonaLonita,dizia:

—Asenhoraétãointeligente,procureaprenderaler.Esforceasuacabeça.

A única letra que aprendi a escrever facilmente, foi o “O”, e nos meuscadernoseuescreviasóaletra“O”,edizia:

—Arodinhaémaisfácil.

Ela percebendo que eu não me interessava pelos estudos desenhou noquadro-negro um homem com um tridente nas mãos que transpassava umacriançaedisse-me:

—DonaCarolina,estehomeméoinspetor.Acriançaquenãoaprendealeraté ao fim do ano ele espeta no garfo.No fim do ano ele vem aqui eeu vouapresentá-laaeleepedir-lhequedêumjeitonasenhora,porqueasenhoranãoquerestudar.Elehádeespetá-lanogarfo.

Aqueledesenho impressionou-meprofundamente.Euolhavaodesenho,eolhavaolivro.Sonhavacomodesenhoegritava:

—Mamãe!Olhao inspetor!Mandao inspetor ir-seembora,-queeu juroqueheideestudar.Euvouaprenderaler.Nãodeixeeleespetar-menogarfo.

Mamãedizia:

—Dorme,menina!Vocêestádelirando!

Decidi estudar com assiduidade, compreendendo que devemos atéagradecer quando alguém quer nos ensinar. Compreendi que estava sendoindelicadacomadonaLonita,cansando-lheapaciência.

Odesenhopermaneceunoquadro,trêsmeses.Depoispercebiquejásabialer.Quebom!Sentiumgrandecontentamentointerior.Liaosnomesdas lojas!“Casa Brasileira, de Armond Goulart.” Não é só esta loja que é uma casabrasileira.Masascasas,asárvores,oshomensqueaquinascem,tudopertenceaoBrasil.Percebiqueosquesabemlertêmmaispossibilidadesdecompreensão.Se desajustarem-se na vida, poderão reajustar-se. Li: “FarmáciaModelo.” Fuicorrendoparacasa.Entreicomoosraiossolares.

Mamãeassustou-se.Interrogou-me:

—Oqueéisto?Estáficandolouca?

—Oh!Mamãe!Eujáseiler!Comoébomsaberler!

Vasculhei as gavetas procurandoqualquer coisa para eu ler.Anossa casanãotinhalivros.Eraumacasapobre.Olivroenriqueceoespírito.Umavizinhaemprestou-meum livro,o romanceEscravaIsaura.Eu, que já estava farta deouvirfalarnanefastaescravidão,decidiquedeverialertudoquemencionasseoque foi a escravidão. Compreendi tão bem o romance que chorei com dó daescrava.Analiseiolivro.Compreendiquenaquelaépocaosescravizadoreseramignorantes,porquequemécultonãoescraviza,êosquesãocultosnãoaceitamojugodaescravidão.

Era uma época de tête-à-tête porque uma pessoa culta prevê asconseqüências dos seus atos. Os brancos retirando os negros da África nãopreviamque iamcriaro racismonomundoqueéproblemaedilema.Eu liaolivro,retiravaasíntese.Eassimfoiduplicandoomeuinteressepeloslivros.Nãomaisdeixeideler.

Passei a ser uma das primeiras da classe. A aula era mista. A minhaprofessoradizianofimdaaula;

—Euquerofalarcomosmeusalunospretos,éassuntomuitoimportante.

Osbrancossaíam,enósficávamos.Eladizia:

—Estounotandoqueosmeusalunosbrancossãomaisestudiososdoqueosmeusalunospretos.Osbrancosnãoerramquandoescrevem.Lavamasmãosquandovãopegarnoslivros.Osdesenhosentão,queprimor!elescapricham,eganhamcemtodososdias.

Agoraeucompreendooqueéganharcem.Equandoa liçãoébem-feita.Quandosaíamosdaescola,estávamosfuriososepensando;osbrancos...nãohãodesabermaisdoquenós!

Passadosunsdias, elapediaaosalunosbrancospara ficarnaaula.Dizia-lhesqueosalunospretoseramosmaisesforçados,osmaisestudiosos,osmaiscapacitadosnosdeveresescolares.

—Eles vão passar de ano e vocês brancos vão repetir.Vai ficar ridículo

paravocês,porquetodospensamqueobrancoémaisinteligentedoqueopreto.Estouencantadacomoprogressodosmeusalunospretos.

Osalunosbrancossaíamdaaularevoltados.

Cadaumiacomentando;

—Imaginasó,onegroquerersermaiordoqueeu.Maioraltemquesereu,quesoubranco.Estesnegrosvãomepagar!

Agindoassim,elanãotinhaproblemascomasliçõesdecasa.

Ela nos emprestava livros para nós lermos em casa; História Sagrada,HistóriaUniversal,aBíblia,eoslivrosiamtransferindo-sedeumparaoutro.

12

AFAZENDA

Umdiaapareceuumhomemnacidade.Dissequeestavaprocurandoumamulherparavivercomelenumafazenda.Quenãoerapossívelparaumhomemviver numa roça sozinho. Perguntou se minhamãe queria viver com ele. Elaaceitou.

Eledissequeo lugarapropriadoparaospobreséna roça.Queavidadocampo,alémdesermaissaudável,émaissimples.Avidanacidadeeradifícilporquetínhamosquecomprardetudo.

Elefoiprocurarumfazendeiro,queoaceitassecomocolono.ÍamosresidirnafazendaLajeado,nasimediaçõesdeUberaba.

OproprietárioeraosenhorOlímpioRodriguesdeAraújo.

Foicompesarquedeixeiaescola.Choreiporquefaltavamdoisanosparaeureceberomeudiploma.Únicomeiofoiresignar-me,porqueadecisãopaternavence.

Minhamãeencaixotavaosnossosutensílios,euencaixotavaosmeuslivros,aúnicacoisaqueeuvenerava.QuemnosconduziuatéafazendaLajeadofoiomotoristaJoséFernandes.Foiaprimeiravezqueviajeidecaminhão.Conseguiairtãodepressa!

Quandochegamos fiqueidescontente,queriavoltarparaacidade.Olhavaaquele local,vendoapenasasárvorescomsuas tonalidadesdeverdesclaroseescuros.

OsenhorOlímpioRodriguesdeAraújopagouaomotoristaduzentosmil-réis.Minhamãechorou:

—Atépagarmosestadívida!...

Omeupadrasto,senhorJoséRomualdo,encorajava-a:

—Deushádenosajudar.Nesteanovamossofrerumpouco.Masnooutro,vaimelhorar.Esteanonósvamosplantarlavouras.

Eu ficava pensando: “Será que poderemos viver no mato?” Estava commedodepassar fome.“Istoaqui,émuito triste.Não tematração.”Minhamãeacariciou-meedisse-me:

—Eunascinaroça.Emecrieinaroça.Foioúnicoperíododeminhavidaquefuifeliz.Aindatenhosaudadesdostemposemquefuimenina.Vocêquandoeramenornãoqueriacrescer.Eutambémnãoqueria.Ninguémquercrescermastodoscrescem.

Eujásabiaqueasleisdanaturezasãoimutáveis.Percorriosolhosaoredor.Apenasárvoreseumcéuazulcomdiscosolartépido.Minhamãeprosseguia:

—Eucomeceiasofrerdepoisquefui residirnacidade, foinacidadequeaprendi agostardosvícios, a cidadenosempolga, enosdestrói.Eunão tinhatempodeestaraoteulado,iatrabalharforadecasa,evocêficavavagandopelasruas.Aquivamosseramigas.

Dias depois comecei apreciar a vida silenciosa do campo. O sábado eratranqüilosemotaldebaile.AdonaMaria,esposadosenhorIlarêncio,nosdavaleiteequeijo.Aspessoasqueiamnosvisitarnosdavamumcasaldegalinhasdepresente.

—Eparavocêscomeçarem.

Minhamãedeixavaoleitoassimqueoastro-reiiasurgindo,iaprepararanossa refeição para irmos para a lavoura. Eu permanecia no leito, ouvindo osgorjeiosdasaves.Comainsistênciademamãe,eudeixavaoleito,iaaleluiarnoregato, fitandoaáguaquepromanavadoseiodaspedrascordechumboeerasempre tépida. A brisa perpassava suavemente. Eu aspirava os perfumes queexalavamasfloressilvestres.

O fazendeiro nos deu três alqueires de terra para plantarmos. Plantamosarroz,feijão,milho,canaevassouras.Aindasobrouterra.Comoébomterterrasparaplantar!Eujáestavacompreendendoovalordaterraquesaberecompensaroesforçodohomem.Eoventredaterraéfecundo.Aterraéfeminina,éamãe

dahumanidade.Euestavahabituando-menaquelemundoverde.

Quandosurgiuacolheita, fiqueiadmiradadaprodigalidadeda terra.Umaamigaquetodososmesesnosoferecealgoparacolher.Plantamosdoissacosdearroz, colhemos trinta. Dois sacos de milho. Colhemos três carros. O meupadrastofezumpaiol.Quefartura.Asgalinhasduplicavam,sócarijó.

Se a terra não agisse assim, não incentivaria o homem ao trabalhorudimentar. Fui adquirindo o hábito de plantar, ficando semi-ambiciosa. Era aprimeiraadeixaroleitoparairpáraalavoura.

Nas horas vagas, eu lia Henrique Dias, Luiz Gama, o mártir daIndependência, o nossoTiradentes.Todosos brasileirosatuais, e os do porvir,devemedeverãorenderpreitoaosaudosoJoséJoaquimdaSilvaXavier.Nãofoisalteador,nãofoipirata,foiumdosquetambémsonhouemprepararumBrasilparaosbrasileiros.Lendo,euiaadquirindoconhecimentossólidos.

Começamosacriarporcos.Pretendíamoscomprarumavaca,maseracentoevintemil-réis.Minhamãedizia:

—Vocêsonhaaltodemais.

Quevidagostosa!Euficavadeslumbradacomafartura.Verdurasefrutas,paramimaquilotudoeraaterraprometidaaoMoisésqueeutiveaventuradeencontrar.

Aos domingos íamos passear na casa do primeiro colono, omais rico, osenhor Florêncio. Ele tinha vinte vacas, porcos emais terras para plantar. Eraafilhadodecasamentodofazendeiro.Eraumhomemcomsetentaanosetomavaabênçãoaofazendeiroparabajulá-lo:

—Abênção,padrinhoOlímpio.

O senhor Olímpio Rodrigues de Araújo não respondia. Se nascia ummenino,pronto,onomeeraOlímpio.

Euestavaenamoradíssimadanovavida.Estavadesligando-medacomprade quilos de arroz e familiarizando-me com os sacos de cem quilos e com opaiol. Todos tinham possibilidades para fazer doces. Mamãe fazia arroz-docecomleitepuro.Eucomia.Elaperguntava:

—Quermais?

Aquelequermais,ficavaeclodindonomeucérebro.Ganhávamosoleite,oaçúcar. O arroz nós plantávamos. Que tranqüilidade, não tinha a polícia nosnossoscalcanhares.Quesilêncioparadormir!

Plantamosvinte edoispésde jiló.Todosos sábados aminhamãecolhiaquarenta litros, eu ia vendê-los emUberaba.Vendia o litro por trezentos réis.Ganhava trintamil-réis, compravavestidos e umcobertor depura lã por dozemil-réis.

TodasemanachegavaumafamíliaestrangeiraparavivernoBrasil,edizia:

— Que país! Que buena tierra. Que buona terra. Viva o Brasil dosbrasileiros.

Ositalianosdiziamaosseusfilhos:

—Daquiatrêsanosestaremosricos.

Eascrianças trabalhavamcantandoamúsicadeVerdi,estavamcontentesporqueiamficarricos.AtéospretosanalfabetoscantavamLadonnaèmóbile.

As únicas famílias negras que residiam na fazenda do senhor OlímpioRodriguesdeAraújo,eram:osenhorRomualdoèoAntônioCavaco,queficouviúvo.Eomeupadrastoqueriaqueeumecasassecomele.

Quandoumcolonoadoeciaianafazendapediraofazendeiropárachamarummédico.Queluta!Ofazendeirodizia:

—Dáumchádefolhadelaranjaparaela.

—Jádei!

—Dáumchádeerva-cidreira.

—Jádei!

—Parachamaromédicoaquielevaicobrarmuitocaro.

Eomédiconãovinha.

Quandoodoentefalecia,ofazendeirodizia:

—Oh! Se eu soubesse que ela estava doentemesmo, teria chamado ummédico.

Penseiqueerapreguiça.Quandofomosvisitaracasadofazendeiro,fiqueidecepcionada.Nãoeracomoeupensava.Nãotinhamóveis,apenasunsbancosrústicos, umamesa, uns catres com colchões de palha. Pensava: “Eles são osdonosdestagrandeáreadeterra,eleshãodeserfelizes.”Quandoviafilhadofazendeiro, condoeu-me. Era boba, surda-muda. Jogava a comida no soalho ecomiamisturando com terra e fezes. Pobre sianinha...Era tão bonita!Ooutrofilho, oZezé, era semi-idiota. Foi internadono colégioPedro II doRio e nãoaprendeualer.

Era uma prole do casamentoconsangüíneo, casamento de primos para asriquezasficaremnafamília.Afazendeiralamentava-se,eleseraminfelizes.Eupensava que só os pobres é que eram infelizes. A fazendeira, dona MariaCândida, eramagricela, como se fosse descendente de umofídio.Era simplesdemais,calçavachinelas,usavasaiasrodadaseamplas.Eramtantospanosquedeveriam pesar uns três quilos. Os paletós cheios de babados eram paraavolumaroseucorpo.Quandonãohápossibilidadesdeencherocorpocomaprópriacarne,éenchê-locomalgodão.

Ela conversava com aminhamãe, perguntando-lhe o que ela sabia fazer.Minhamãerespondiacompolidez.Minhamãeeradoventrelivreediziaqueosbrancoséquesãoosdonosdomundo.Elaaprendeuadizeraosbrancosapenas:

—Sim,senhora,simsenhor.

Quandochegouaminhavez,afazendeiraexami-nou-meminuciosamentecomoolhar.Comose euestivesse àvenda,dizendoqueeueraumanegrinhaesperta.Ficoucominvejademinhamãequetinhaumafilhaperfeita.Ainvejaduplicou-sequandolhedisseramqueeusabialer.Perguntouomeunome.Minhamãe respondeu-lhe com a voz trêmula, porque a presença de um branco aatemorizava.

—Ela...chamaCarolinaMariadeJesus.

Pedi aminhamãe para dizer-lhe quemeu nome era Bitita. A fazendeiradisse-mequeasuafilhamaisvelhatinhaonomedeCarolina;

—Vocêssãoxarás.

Minhamãesorriu,edisse-me:

—Vocêtemonomedesuaavó.

Eu não gostava do meu nome, pensando que este nome ia atrapalhar aminhavida.Minhamãejáhaviaditoquenãopodemostrocaronossonome.Éproibido.

A dona Maria Cândida pediu à minha mãe para eu ir todas as manhãsauxiliá-lanalimpezadacasa.Minhamãeconsentiu.

Pensei:“Quebom!Quantoseráqueelavaimepagar?”

Mas,adonaMariaCândidadisse-me:

—Sabe,Carolina,vocêvemtrabalharparamimequandoeuforaUberabaeucomproumvestidonovoparavocê,voucomprarumremédioparavocêficarbranca e arranjar outro remédio para o seu cabelo ficar corrido. Depois vouarranjarumdoutorparaafilaroseunariz.

Pensei: “Então estes homens que trabalham aqui já foram pretos, e afazendeirafezelesficarembrancos!Equandoeuficarcomoscabeloscorridoseonarizafilado,queroiraSacramentoparaosmeusparentesmeverem.Seráqueeuvouficarbonita?”

Seismeses fui trabalhar para a donaMariaCândida.Despertava às cincohoras, lavavao rosto às pressas porquepretendia chegar semprenahora certaparanãomagoá-la.Eraamulhermaisimportanteparamim.

Rejubilei interiormente quando ela disse-me que ia a Uberaba. Fiqueiaguardandooseuretornocomansiedade.

Elapermaneceudoisdiasfora.Quandoregressou,encontrou-medeplantãoà sua espera, mas fiquei decepcionada. Ela não trazia pacotes. Então elaenganou- me! Pensei nos seis meses que trabalhei para ela sem receber umtostão.Minhamãemediziaqueoprotestoaindanãoestavaaodispordospretos.Chorei.

Olheiasminhasmãosnegras,acaricieiomeunarizchatoeomeucabelopixaimedecidificarcomonasci.EunãopedinadaadonaMariaCândida,elaéquemusouumardilparameespoliar.Nãopoderiaenãodeveriaxingá-la,elaerapoderosa.Nósdependíamosdelaparaviver, nosdava a terraparaplantarmos.Mas roguei-lhe tantas pragas! Compreendi que ela já estava pagando com osseusfilhosidiotas.Apenasdoiseramsadios,oToninhoeaCarolina;aTuca.

Nooutrodia,nãofuilavararoupaeelanãomechamou.Minhamãesorriaedizia:

—Semefossepossívelexplicartantascoisas!Masotempotambéméumprofessoreteensinará.Osqueaprendemporsiprópriosaprendemmelhor.

Trabalhamosquatroanosnafazenda.Depoisofazendeiro,nosexpulsoudesuasterras.

—Vãoembora!Nãoosqueronaminhafazenda.Vocêshãomedãolucro.Sómedãoprejuízos,asualavouraéfraca.

Omeupadrastopediu:

—Seosenhormealugaroaradoparaararasterras.

— Não dou nada, vão embora. Você vai vender verduras em Uberaba,ganhamuitodinheiroenãodividecomigo.

Elevendiamilsacosdecaféclassificado,ocafémoca.Vendiacemporcosgordosparaosfrigoríficos,enósganhávamostrintamil-réiscomasverduraseelequeriadivisão.

Nestasfazendassóofazendeiroéquemtemodireitodeganhardinheiro.

—Vocêmedeveoitocentosmil-réisenãomepaga.Eunãosouteupai.

Omeupadrastocrioucoragemedisse-lhe:

— Eu também não queria ser teu filho. Porque os teus filhos nascemidiotas.Osanimaisaindanascemcomumpouquinhodeinteligência,eos teusfilhos?

Ofazendeiroentrou,fechouaportadizendo:

—Oh!seaindaexistisseotronco!

Fiquei pensando na dívida que ele disse que nós devíamos, se o meupadrastonuncapediuumtostão.Elesnãodavamdinheiroparaoscolonos.

Chorei com dó de deixar a nossa casinha, as verduras, os pés de jiló. Osenhor Olímpio Rodrigues de Araújo era o único homem que sabia ler.Oferecemos a ummotorista nossos porcos e as aves, e ele nos levou de voltaparaSacramento.

13

RETORNOÀCIDADE

Acheihorrorosoterquecomprarumquilodearroz,umquilodefeijão.Porqueéquenósnãopodíamosterterrasparaplantar,enãopodíamoscomprar?Nacidadeerahorrívelaconvivênciacomaquelaspessoasquenãoserespeitavam.Ehaviabrigastodososdias,comainterferênciadospoliciaisqueespancavamosrixentos.Aquelepovonãomudavaosseushábitos,queeramtrabalhar,beberedançar.Que saudades da vida ridente do campo!Recordava quando amamãetorravafarinha.Aáguaacionandoomonjolo.Quandofazíamosopão,comvinteovosparaficarmacio.Tudoerapreparadocomleite.Tinhasaudadesdaminhaenxada.Sentiasaudadesdoscalosnasminhasmãos.Docavalo,oMaçarico.Oamanhãnãomepreocupava.Nãoeranervosa,porqueviviacomfarturaemcasa.

Naroçanãohaviadistrações,masnãoexistiaosofrimento.Masparaquesonharseasterrasnãoeramnossas?Omeupadrastoestavatristeporqueaquelaagitaçãodiárianosaborrecia.Anossacasaeraumentra-e-sai.Meusprimososseusamigoseoutrosintrusos.

Conseguimos trabalho no sítio do japonês, oNapoleão, para carpir arroz.Eu ganhava três mil-réis, o meu padrasto cinco mil-réis. Recebíamos aossábados.Comprávamosdezquilosdearroze feijão.Fomos suportandoaquelavida.Minhamãelavavaroupasparaosricos.

Porinfelicidademinha,minhaspernasficaramcheiasdeferidas.Cozinhavaervas para banhar as pernas, e as feridas não cicatrizavam. Fiquei apavoradaquandoterminouacolheita.Comaspernascheiasdeferidas,nãopodiatrabalharnosserviçosdomésticos.Eviverdependendodomeupadrasto,edeminhamãe,eraumaagoniaparamim.

Um dia, apareceu um preto procurando empregado para trabalhar nalavouradecafénoestadodeSãoPaulo.OsenhorRomualdoaceitou.Reunimosoitopessoasporqueíamoscarpircafé.Eranecessáriováriaspessoas.

Embarcamos numa segunda-feira. Na estação de Restinga, uma carroçaestavanosesperando.EramonzehorasquandochegamosàfazendaSantaCruz.O proprietário era o senhor Oliveira Dias, o Loló. Dormimos no solo comoanimais,porqueosnossoscacosestavamnaestação.Demanhãomeupadrastofoiretirá-los.

O administrador era um mulato, José Benedito. Deu uma casa para nósmorarmos.Tinha luz elétrica só na casa do fazendeiro.Na frente de sua casa,tinha um cruzeiro iluminado com a luz elétrica. Ficava no topo da estação deRestinga,via-seocruzeiroànoite.

Nãotínhamospermissãoparaplantar.Ofazendeironosdavaumaordemdecentoecinqüentamil-réisparafazermoscomprasnumarmazémláemRestinga.Tínhamosqueandarquatrohorasparairfazerascompras,odinheironãodava.Comprávamos feijão, gordura, farinha e sal.Não tomávamos café por não teraçúcar.Nãotinhasabãoparalavararoupadecama.Quefraqueza!

Serviçotínhamosdemaisaté,comidapouquíssima.Nofimdoano,elefaziaumbailenumacasaqueelesdiziamserafazendavelha.Compravachope.Davaroupasvelhasparaoscolonos.Atéescovasdedentesusadas.Euficavaolhandoepensando:“Istoéinjustiça."

Omeupadrastoeratriste,todososcolonoseramtristes.Depoisdoalmoço,oLolóiapercorrerafazendaeverseoscolonosestavamtrabalhandoecontava.

—Estáfaltandoum,porqueéqueelenãoveiotrabalhar?

—Estádoente.

—Aquinaminhafazendaéproibidoadoecer.

Montadonumcavalopretoeroendoasunhas,nosolhavareclamandoqueonosso serviço não rendia. Na presença dele, nós carpíamos mais depressa.Quandoelesaía,nóssentávamosporqueestávamosfracos.

No quintal da fazenda tinha verduras, vacas de leite. Ele vendia para oscolonos.Quandoalguémiaprocurá-loparaacertarascontas,eledizia:

—Vocêsestãomedevendo.

Sepedíamosvale,recriminava:

—Eusóvejovocêscomer,nãovejoserviço.

A Dolores, minha prima, arranjou serviço em Franca. Minhas feridascicatrizaram, eu fui trabalhar na cidade. Empregada doméstica. E estavacontente.Omeupadrasto fugiu, fomosbuscar aminhamãe eoAdãozinho, ofilhodeminhatia,quehaviafalecidocombarriga-d’água.Foiporsofrermuitonasfazendasqueescreviumapoesia:“Ocolonoeofazendeiro.”

Opobre,nãotendocondiçãodeviverdentrodacidade,sópoderiavivernocampo para ser espoliado. E por isso que eu digo que os fornecedores dehabitantesparaasfavelassãoosricoseosfazendeiros.Seelesconsentissemqueplantássemosfeijãoearroznomeiodocafezal,atéeuvoltariaparaocampo.Aterraondeestáplantadoocaféefértil,éadubada.Ofeijãodágraúdo,eoarroztambém.

Eu não gosto dos fazendeiros da atualidade. Gostava dos fazendeiros dadécadade10até1930.Queincentivavamopobreaplantar.Nãoexpulsavamocolonodesuasterras.

Atualmente eles fazem assim: dão as terras para os colonos plantarem;quandovai-seaproximandoaépocadacolheita,ofazendeiroexpulsaocolonoeficacomasplantaçõesenãopaganadaparaocolono.

Ofazendeirotemumaatenuante:

—Asterrassãominhas,eupagoimposto.Souprotegidopelalei.

Eumladrãolegalizado.Eocolonovemparaacidade.Aquieletransforma-se.Ohomemsimplesnãosabemaisamainaraterra.Sabetrabalharnaindústriaquejáestáenfraquecendo.Easfazendastambém.

Atualmente,háumaminoriaparatrabalharnalavouraeumamaioriaparaconsumir.Masopovomiúdolutoumuitoparaverseconseguiavivernalavoura.São incriticáveis.O país que temmais terras no globo é oBrasil; portanto, onossopovojádeveriaestarajustado.

14

DOMÉSTICA

TudoquepossuíamosdeixamosnafazendadoLoló,quandofugimos.Nósentramospobresnafazenda,esaímosmaispobresainda.Carpimosdozemilpésdecafé,ecolhemostambém,enãorecebemosnada.Quecrueldade!Nostirardanossacasa,nosespoliar,enosabandonarsemumtostão.

Nacidadenãotínhamosondemorar.MinhamãefoiresidirnoquartinhodaMariinha, que estava nervosa dizendo que não podia receber o seu amante.Minhamãemexingava como se eu fosse a culpadadaquela tragédia.AúnicacoisaqueeufaziaerarogarpragasaoLoló.Aúnicavingançaaomeudispor.Osmeuslivrosficaramnafazenda.

Quefomequenóspassávamos!Conseguimosquinzemil-réis,ealugamosumquartinhonacasadeumcasaldeitalianos.Doisdiasvivemosempaz.Masno terceiro dia, o dinheiro do aluguel acabou-se porque o senhorio gastou noálcool.Ficounosxingando:

— Vão embora, negros vagabundos. Desocupem o meu quarto. Elesqueriamalugaroquartonovamente,paraarranjaremdinheiroparabeberpinga.Jáestavamdominadospeloálcool,enãorespeitavamostrintadiasdomês.

ADoloresarranjouumnamorado, foi viver comele, levouaminhamãe,quediziaqueospatrõesprocedemassimcomosempregados.

Consegui empregar-me com o senhor Benjamim, um sírio que tinha umempório no sítio, não sabia ler, vendia a olho, e ganhava dinheiro. A esposatambém era analfabeta. Quando vendiam algo fiado, ela pegava um lápis eriscavaumpapelque eraparaos freguesesveremqueelahavia anotado.Nãosomavamasrendasdiárias,nãotinhaminscrição,nãopagavamimpostos.Eramunslesa-pátria.

Omeuserviçoeracozinhar, lavarepassar.Prometeramqueme pagavamquarentamil-réis.Trabalhei doismeses. Fiquei comnojo deles quandovi elesbrigaremcomaafilhadaNilzaeoseuesposo,umprofessor.Osírionãogostavado professor, dizia que ele era brasileiro e pobre. Mas é no Brasil que elesenriquecem.

Pediaconta.Mederamcincomil-réis,deveriammedaroitenta.Eutivequeviajarapéparaacidade.RogueipragasaosírioBenjamim,eàsuaesposadonaMaria.Avarentos.

Quandochegueinacidade,aminhamãeestavatrabalhandoparaoirmãodosenhorHiginoCalleiros.Erambonsparaela.Àsvezeseuiaajudá-lanalimpeza.Umdiafui limparatrásdeumarmário, jogueiáguaquente.Enchiumalatadevintelitrossódebaratas.Elesficaramhorrorizados,eutambém.

ConseguimosalugarumacasadadonaNarcisa.Cinqüentamil-réispormês.

QuetragédiaqueofazendeiroLolóarranjouparanós!Oquenãodeveriamestarsofrendoosinfelizesqueficaramnasuafazenda.Searranjávamosdinheiroparapagaroaluguel,nãoarranjávamosparacomprarcomida.

MinhamãeresolveuvoltarparaSacramento, láela tinhaoseuranchinho.Voltamos. Ela lutava para arranjar o que comer. As minhas pernas estavamcicatrizadas.

Fui trabalhar na residência do senhorArmandGoulart.Não dei conta doserviço,saíefiqueiemcasa.Eraduroconseguiralgumdinheiro,fuitrabalharnacasa do farmacêutico Manoel Magalhães. Eles estavam alegres por estaremhospedando seu sobrinho padre Geraldo. Consideravam-se importantes porterem um padre na família. Ele chegava deRoma, ia rezar umamissa. Todosestavamconvidados.

Eunãoconheciaacasa.Ficavasónacozinhaenoquintal.Quandohouveumrebuliçoládentro.

Eu só ouvia a palavra: “Sumiu! Sumiu! Deve ter sido ela.” Eu estavaestendendoasroupasquandovichegaremdoissoldados.

—Vamos,vamos,vagabunda.Ladra!Nojenta.Leprosa.

Assustei:

—Oquehouve?

— Ainda pergunta, cara-de-pau! Você roubou cem mil-réis do padreGeraldo.

Eramdezhorasdamanhã.Anotíciacirculou.

—ABititarouboucemmil-réisdópadreGeraldoMagalhães.

—Credo!Elavaiproinferno!

Foram avisar a mamãe. E a única pessoa que esta sempre presente nasnossasalegriasoudesditas.

—Vocêroubou,Bitita?

—Nãosenhora!Eununcavicemmil-réis.

Omeudesejoeraverascédulasdecem,duzentos,quinhentos,eadeumcontoderéis.Euconheciasóasnotasdecinqüenta,vinte,dez,cinco,doiseummil-réis.

Fuipresapordoissoldadoseumsargento.Pensei:“Seráqueelesvãomeobrigarapercorrerasruascomascriançasgritando:ABitita,rouboucemmil-réis.—ABititarouboucemmil-réis!”

Compreendiquetodosospretosdeveriamesperarporisso.

Quandoosoldadoiamebaterotelefonetocou.Opadreavisavaquehaviaencontradoodinheironacarteiradoscigarros.Elequeriamepedirperdão.

Afamílianãoconsentiudizendoqueonegrotemamentalidadedeanimal.Aprovaévisível,elessósabemdançarebeberpinga.Opadredissequeiarezar,pediraDeusquemeajudassenavida.

Minhamãedizia:

—Comovocêéinfeliz.

Equeeuestavadoente.

MinhatiaAdriana,dizia:

—SeaBititasarar,elavaificarrica!Elaémuitointeligente.Maselanãohádesarar.

Minhamãedizia:

—Quandovocêerapequena,eratãointeligente;depoisquecresceuficouboboca.

Eubebiachádeervas“carolinhavelame”,tudoquemeensinavam.

Chegou um senhor procurando uma criada para trabalhar na fazenda SãoGabriel do doutor Wanderley Andrade, em Conquista. A lavadeira ia ganharcinqüenta mil-réis por mês. A cozinheira setenta. Minha mãe decidiu quedeveríamosir,pagavamaviagem.

Que fazenda!Euera louca por terras. Invejava os que tinham terras paraplantar.Compreendoqueosquegostamnãoatêm.Masomeusonhoera:“Nãoheidemorrerantesdeadquirirumaglebadeterrasparamim.Pretendoplantarmuitosarvoredos.”

ApatroaeraadonaElza.Bonitinha.Meescolheuparaseracozinheira,eminhamãeparaseralavadeira.

Elesfabricavammanteiga.Quefartura!Leite,queijoecarne.Eucomiapararenutrir-me.

ApatroaiaviajarparaSãoPaulo.Euiatomarcontadosseusfilhosnacasadesuamãe.ÍamosparaumafazendapróximadaestaçãodeDelta.Minhamãeiaficar tomando conta da casa do fazendeiro com a outra criada. A patroa iacomprar dois vidros de remédio para eu tomar para curar minhas pernas.Preparamo-nospara aviagem, ela foi despedindo-sedosparentes.Todos eramfazendeiros.

ParamosnafazendadoJoséResende.Eudeverialavararoupadascrianças,contarestóriasparaeles,pajeá-los.Nãodeixarquesemachucassem.ChegamosnafazendadedonaBárbara.

Oseugenroéquemtomavacontadosnegócios:Nhonhô.Elesiamprepararoenxovaldasmeninas,aElzaeaZenaide,queeragorduchinha,queiamestudarnum colégio interno em Uberaba, colégio de freiras. Pensei: “Quando elasvoltarem do colégio, estarão arrogantes, prepotentes, selecionando as pessoasparaoferecer-lhesosseussorrisos.”Elastêmpossibilidadesdedividiromundo.Odinheirocolocaopobredeumlado,eoricodooutro.

Fiquei tomandocontadosdoismeninos,oOswaldoeoGabriel.EudiziaparaoGabriel:

—Vouarranjarumnegrinhoparabrincarcomvocê.Respondianervoso:

—Negrinhonão,negrinha.

A dona Elza havia comprado uma panela de pressão. Quando fomoscozinhar o feijão, o ar não entrou num local que dava um assobio, a panelaelevou-se no ar, caiu dentro do chiqueiro rodando de um lado para outro. Seencostavanumporcoqueimava-o,oporcogrunhia,efoiaquelaconfusão.Equeeu era pernóstica, disse que sabia cozinhar com aquela panela.Era a primeiravezqueviaapanela.Compreendiqueopernósticopodeprovocarumdesastre.Queódioqueeusentiadaminhacondiçãohumilhante!

Umdiafuiprocurarraízesparafazerochá.Mashaviatantascobrasquemeapavorei.Davasaltoscomreceiodepisarnosofídios.

O senhor Nhonhô montou no cavalo e foi ver o que havia. Não pudeexplicarquehavia idoprocurarraízes,elerepreendeu-me,volteipracasaefuitomarbanho,estavatranspirando.

AdonaBárbaracriavatrêsnegrinhasórfãs,amãemorreu,opaideu-lheasnegrinhas que já estavam aprendendo a cozinhar, lavar e passar. Eles haviamcriadoumajovembrancaesurdaquepassavaasroupasefaziaosdoces.Quemcozinhava era uma preta velha nortista. Chorava com dor de dente. O únicodentenasuaboca.Nãogostavademim,porqueeusabialer.Quemsabelerpodeprestarenãoprestar.

Naépocadofrio,quedódosfilhosdoscolonoscomaquelasroupasfinas,tremendodefrio.EosfilhosdopatrãocomasroupasdelãcompradasemSãoPaulo.Ascriançaspobreseramosmaisfortes,nãosentiamnada.

Apatroa viajou ummês, São Paulo, Rio de Janeiro, Santos eCampinas.Quandovoltou,quejantar!Usavacasacodepele,chapéueluvas.Contaram-lhequeeueralouca.

QuandovoltamosparaConquista,eladespediu-me.Deucemmil-réiscomopagamento para mim e para a minha mãe. Ela falou que ia pagar setentacruzeiros paramim. Eu teria que receber duzentos e vinte e ummil-réis. E aminhamãecentoecinqüenta.

Nóstínhamosqueirapé.Eladeuumcheque.Troqueinacidade,compreiumvestidoparamim,outroparaaminhamamãeeviajamos.

Pensei: “Eles nos exploraram mas hão de gastar o que ganham comremédios.”Minhamãedizia:

—Vocêsabeler,eelestefazemdepalhaço.

Quando eu quis xingar o patrão, o senhorWanderley deAndrade,minhamãenãoconsentiu,dizendoqueelepoderianosmataroumandarosempregadosnosespancar.Pensei:“Jáé tempodeabandonarosfazendeiros.”Queódioqueeu tinha deles.Chegamos a Sacramento.Não tínhamos dinheiro para comprarcomida.Jurei:“Prefiropediresmolasdoquetrabalharparaosfazendeiros.”

15

ADOENÇA

Ouvi dizer que em Uberaba tinha bons médicos. Decidi ir até lá a pé.Pegueiaminhatrouxaesaí.Nãomedespedideninguém.

Dormianasestradas.Andavapelasestradasderodagem.Queluta!

Quando cheguei a Uberaba, não conhecia ninguém. Mas recordei queconheciaumapretaqueresidialá.Queinvejaqueeusentiquandoelarecebeu-me. Estavam residindo numa casa de telhas. Só eu é que não vou ter apossibilidadedemorarnumacasaassim.

Ela recebeu-me friamente. Era a donaMaria Leonaldo. Um recebimentosemsorriso,semotãocomum:“Comovai?”Elatinhaumbócio,disse-mequeiaoperar-se.Eu disse-lhe que havia ido aUberaba apenas para ver se conseguiacurarasminhaspernas.

Eladiziaqueestavammuitobem,queassuasfilhasiamaosbailestodosossábados,queestavambemempregadas.AsuafilhaLondinhaestavaseparadadoesposo, o Juca,mas comonão tiveram filhos nãohouve alterações na vida daLondinha. À noite, as suas filhas foram chegando. Nãome cumprimentaram,apenaspassaramosolhosefranziramonariz.NacasadedonaMariaLeonaldo,dormiaumasenhora,umamulherdecorparda.Eraacozinheiradeumafamíliarica.Ànoite,elatraziacafé,açúcar,sabãoedavaparaadonaMaria.Percebiqueela roubava da patroa. Era um grande sacrifício para conseguir a simpatia dedonaMaria.AdonaMariadisse-mequeoúnicolugardisponívelparaeudormirera no galinheiro. Para quem já havia dormido nas estradas, qualquer coisaservia.

Passeianoitenoquintal,nãoerapossíveldormircomasaves.Quenoitelonga!Chegueiatéasentirsaudadesdocalordosol.Asseishoras,asfilhasdedonaMariasaíramparaotrabalho.Fiqueicominveja.Asoitohoraselaabriua

portaedissequenãomequeriana sua casa.Que se eupudesseme empregarnumacasaricaparaajudarnopagamentodoaluguel,elaaindatolerava.

—Masninguémtedáserviço.VocêpodeprocuraroasilosãoVicentedePaula, lá no alto da Abadia, as irmãs hão de te aceitar. É um lugar para osindigentes.Emelhorvocê ir já.As casasque têmonomede sãoVicentenãopodemnegarhospitalidadeaosquepedem.

Peguei aminha trouxa e saí.Me indicaram o asilo. Quando cheguei, fuifalarcoma irmãAugusta.Citei-lheasminhasdesditas.Jáestavacomvontadedecortaraminhavida.

— Eu sou pobre, além de pobre, doente. As doenças internas não nosimpedemdetrabalhar,masasexternassim.

Jáestavacansadadeviveràsmargensdavida.

—VocêdeveconfiaremCristo.·Eleestáexperimentandoasuacalma,sevocêtempaciência.Paraquepensaremmorrer,setodosnóstemosquemorrerumdia.

Airmãconvidou-me:

—Entra.VocêéhóspededesãoVicentedePaula.

Elatocouosino.Apareceramasirmãs.Elaapresentou-me.

—Estajoveménossahóspede.Oteunomeé...

—CarolinaMariadeJesus.

—NãoésóvocêqueédeJesus,todosnós.Eleénossosalvador.

Erguiosolhos,eviumcrucifixo.OlhavaoCristonacruzepensava*“Ehorrívelserpobre!ComoéqueoCristotevecoragemdenascernapobreza!Elenãotinhacasa.Eeutambémnãotenho.”

Meindicaramomeuquarto.Nosquartinhos,queeramdivididos,haviatrêscamas em cada um. Eu olhava as velhinhas que já estavam despedindo-se davida.

Àstrêshorasfomostomarcafé.Quefartura!Quantospães!

A irmãCustódia disse-me que omédico visitava o asilo de oito em oitodias.Queeuesperasse.

Às seis horas serviram o jantar. Boa comida. E eu pensava “O povo deUberabaé superior,nãodeixaos seus indigentes ao léu.”EmSacramentonãotinhanemumaSantaCasa.EmUberabaasruasjáeramcalçadas.Acidadeeragrande,nãofaltavaserviço.

NooutrodiapedipermissãoàirmãAugusta,queeraairmãsuperiora,parairfazerumexamenaSantaCasa.Deixou.Omédicoquemeexaminoudeu-meunsremédios“amostragrátis.”Quandotomavaumremédiopensavasemefossepossívelamanhecersã.

Asirmãsdisseramqueeudeverialavaràsroupasdosasilados.

Eu lavavaa roupadas trintapessoasqueestavamasiladas.Aspernasnãosaravam.

Cansei daquela vida pedi à irmãAugusta que queria voltar para aminhaterra.Nãotinhaumtratamentoadequado.

Elaimplorou:

—Nãovai!Omundoéumteatrodeagruras.

Eunãopodiairaohospital,porquedevialavararoupa.Parairaohospitalprecisavapermanecernafilaparareceberasfichas.

Os asilados não deveriam trabalhar. Mas as irmãs não arranjavamlavadeiras.Elastinhamnojodelavarasroupasdosasilados.Euficavaindecisa.Para agradar-me, passei a ter direito a comer comida das irmãs.Que comida!Quepurê!Eraquasedeferênciaespecial.

Maseuqueriacurar-me.QueinvejaqueeusentiadaGeralda,umapretinhaqueeracozinheiradoasilo.Quandovagavapelasruassóolhavaaspernasdasnegrinhas.

AspalavrasdairmãAugustaficaramgirandonomeucérebro:“Omundoé

umteatrodeagruras.”Eascenassãotétricas:roubos,unsmatandoosoutros.Easbrigascomasfamiliares.Eàsvezescomosvizinhos.

— Deus não quer dar-lhe saúde que é para livrá-la de mesclar-seprofundamente no seio domundo. Aindamais vocês, que ainda não recebeminstruçãoadequada,nãosabemdefender-sedosfalsosprazeresdavida.A.ruínamoraltambéméprejudicial.

Eu já estava conhecendo a parte amarga da vida.Mas omeu desejo erapoderdaraminhamãeomeuauxílio.Creioqueédeverdosfilhosauxiliarosseuspro-genitores.

A irmã deu-me uns livros para eu ler. Vida de santa Terezinha, de santoAntônio. Eu hei de lutar para curar-me, ainda hei de ver os meus parentesinvejando-me.

16

AREVOLUÇÃO

Um dia amanheceu confuso, com as ruas cheias de soldados. Era arevolução.Euconheciasóarevoluçãodasformigasquandoselocomovem.Masarevoluçãodoshomensétrágica.Eunsmatandoosoutros.

EopovosófalavanoGetúlioVargaseJoãoPessoa.EraauniãodoestadodaParaíba comoRioGrande doSul.Os tenentes conclamavamos homens afardar-se.Oshomensnãodeveriamficaromissosnahoraemqueapátriaestavaemlitígio.

— Estas sedições ocorrem por causa dos incientes e prepotentes quequerem governar a Nação. Com o Getúlio vamos ter mais trabalho. Ele é ofundadordoPartidoTrabalhista.

Os soldados circulavam pelas ruas, ostentando umas bandeiras verdes,amarelasebrancas,comoretratodoGetúlionocentro.Osqueolhavamoretratosimpatizavamcomeleediziam:

—AgoraoBrasilvai ficaraoscuidadosdeumHomem!Estevaidarumimpulso ao país. Somos um povo sem líder. Temos que despertar.O país nãopodecontinuardeitadoeternamenteemberçoesplêndido.Onossopaísémuitoatrasado.

As mocinhas que eram empregadas domésticas não saíam das casas dospatrões. Eu estava trabalhando na casa da donaMimi, esposa doGaúcho.EleestavacontenteporqueeraoseuestadoqueestavapondooBrasilemordem.

Euandavapelas ruas.Na época eu estavausandoumapomadaque tinhaumcheirohorrível,eossoldadosnãomexiamcomigo.Asminhasferidaserammeusalvo-conduto.Ouviaossoldadoscantar!

“Vivaanossarevolução!

OBrasilvaisubirigualbalão.

ComoGetúliooBrasilvai,

comoGetúliooBrasilnãocai.

Vamostermaispãesnamesa,

oGetúlioéamigodapobreza.”

O dinheiro rei, omil-réis, foi recolhido. Circulava um dinheiro chamadobônus.Oshomensquefardavamrecebiamumaquantidadedebônusparadeixarpara as famílias. Os que recebiam os bônus compravam comida para osfamiliaresemgrandesproporções.Osqueestavamhabituadosacomprarquiloscompravamsacos.Quefartura!Asmulheresdiziam:

—SeoBrasilfossesempreassim,istoaquiseriaumparaíso.

Uns compravam material de construção, outros roupa de cama. Váriosjovens fardaram-se. Os que se imiscuíram no meio dos revoltosos viajaramassimquevestiramafarda,

Paraosque tinhamnoçãodoqueéobservarminuciosamente,percebia-seque aquela revolução estava sendo preparada há uns três anos.Não cometiamfalhas,emcadaunidade tinhaumcaminhãoconduzindoas fardamentas,botas,capotesdelã.Equantacarne!

Nãohaviasaque.Eraproibidonointerior.Punidososinfratores.Osquenãofardaramnãorecebiamosbônus.

O meu irmão não quis fardar-se, disse que tinha medo da revolução.Homens senis fardavam-se para receber os bônus. Compravam material paraconstruir uma casinha. Diziam: “Se eu morrer, deixo essa casa para os meusfilhos.Paraospobresaquelarevoluçãoeraaépocadasvacasgordas.

Omeuirmãoqueriaverossoldados.Resolveuvestir-sedemulher.Vestiuum vestido da minha irmã, pôs colar, pintou o rosto, amarrou um lenço nacabeçaesaiu.Meiahoradepoiseleentrouemcasacorrendo.Despiu-se,lavouorosto,pôsosseustrajesmasculinos.

Unssoldadospassarameperguntaram:

—Vocêsnãoviramumamulatabonita?

Minhamãerespondeu:

—Eunãovi,nãosenhor.

Estavam procurando o meu irmão. Ele ficou bonito vestindo os trajesfemininos.Ossoldadosretiraram-sedizendo:

— Que mulata bonita! Nunca vi coisa igual! Será que ela já é casada?Mulheres bonitas arranjamdono logo.Eu queria apenas olhar para ela porquenósnãopodemosmolestarasmulheres.Arevoluçãonãopermiteenospune.

Omeuirmãotremia.Quandoossoldadosretiraram-se,eledesapareceu.

O povo estava confuso. Havia votado no senhor Júlio Prestes e estavaaguardando a sua posse. Naquela época havia rivalidades entre Minas e SãoPaulo. O povo falava que a revolução era a favor do homem do campo, quepoderiadeixaravidadocampoeresidirnascidades,encontrandoempregosnasfábricas.Oserviçonasfábricasnãoexigiahomensespecializados.

Epronto:asenxadasforamrelegadas,eosaradosficaraminativos.OBrasiliadeixardeserumpaísagrícolaparatransformar-senumpaísindustrializado.Opovo dizia que oGetúlioVargas concedia empréstimos aos que pretendessemfundar indústrias. Era-a primeira vez na história do Brasil que um presidenteincentivariaopovo,reerguendo-lheomoral.Ospobresdiziam:

—OGetúliovaiseronossofarol.

QuandooBrasilnormalizou-se,osquehaviamrecebidobônusforamtrocá-losnascoletorias.Entregaramosbônusereceberamomil-réisquenaépocaerao“vale-tudo”.Eradinheiro-valorrecebido.Nãoeraodinheirolegal.Odinheiro-valor recebido era predominador.Quando alguém estava com cemmil-réis nobolso,eletinhaaimpressãodeserumsemibanqueiro.Eraumhomem,tranqüiloporquenãotinhaproblemaseconômicos.

Os que receberam o mil-réis quando trocaram os bônus, diziam: “É, oGetúliotempalavramesmo!Ohomemnãobrincaemserviço.Ohomemésério

mesmo.”

E agindo assim oGetúlio vai predominar.Aquelesmoços pobres, que sefardaram e entraram no estado de São Paulo, nãomais voltaram para os seusestados.ConseguiramempregoemSãoPaulo.Nacorrespondênciacomosseusfamiliares,elesiamconvencendoosseusparentesatransferir-separaoladodelá.Eaquelacartacirculavademãoemmão,nosconvencendodequeoestadodeSãoPauloéoparaísodospobres.Eeupensava:“Quandoeurecuperarasaúde,queroconheceracidadedeSãoPaulo.Queroveracidadesucursaldocéu.”

Eoshomens, quando se reuniam, falavamnoGetúlio.Que eraopai dospobres.EeucomeceiagostardoGetúlioepensava;“Seráesteopolíticoquevaipreparar um Brasil para os brasileiros?” Ele havia reanimado o povo, aquelepovo apático, “deixa pra amanhã”, estava sonhando, idealizando e projetando,porquepodiaconfiarnogovernoquenãodecepcionava.

Osquefaziamprojetosdiziam:

—EuvouparaSãoPauloevouconseguirumempréstimocomoGetúlioeabrir uma indústria com cinqüenta operários, porque o Getúlio diz que se ooperáriotiveremprego,elenãoterátempoparatransviar-seedesajustar-se.Elesóconcedeempréstimocomafinalidadedequeobeneficiadovaiseroperário.EaindústriaemSãoPauloélucroimediato.

Quando os fazendeiros ficaram sozinhos, deixaram suas terras etransferiram-separaSãoPaulo.Osvelhosdiziam:

—Um dia eles hão de arrepender-se, porque a lavoura também ajuda opaís. Agora que o camponês vai para a cidade, vão diminuir os braçosprodutivos.Vaiserumaminoriaaproduzirparaumamaioriaconsumir.Nofimasconseqüênciasserãodesastrosas,porqueohomem,manipulaoferro,masnãocomeoferro.

Eupensava:“Porqueseráquenascidadespequenasnãosesenteoefeitodeumapolítica?Seelesfazemtantosprogressosnascapitais,poderiamfazernointerior,eohomemnãonecessitarialocomover-sedeumestadoparaooutro.”Masaminhacidadecontinuavanomesmoestilo.Euolhavaacidadeepensava:“PobreSacramento,ésemelhanteaumboloemquenãopuseramfermento,nãocresce.”

OsenhorManoelNogueiradizia:

—AgoraoBrasilvaideixardeserumpaísatrasado.

As revoluções sempre auxiliamopaís.Opovodeveria fazer uma revoltaeraparacolocaroRuiBarbosanoCatete.

Aquelas explicações do senhor Manoel Nogueira não mais meentusiasmavam. Quando eu era menina, pensava que tudo o que ele dizia iarealizar-se.Agora já estavacompreendendoque, entragoverno, saigoverno,opobre continua semprepobre.Os sonhosdemelhoresdiasnão eramparanós.NósvivíamoscomosãoLourençonagrelhaincandescente.

O que nos empobreceu demasiadamente foram as nossas andanças pelasfazendas.Percebiqueofazendeironãodádinheiroparaoscolonos.Paramimaescravidãohaviaapenasamainadoumpouquinho.Erahorrorosoveroscolonosandaremcomasroupasrasgadas,remendadas,comosefossemmendigos.Seráquearevoluçãoiaauxiliarohomemcamponês?Auxílioouagrura?Empoucosdias o povo só dizia: — “Getúlio! Getúlio!” Até as crianças. Que fé! Queconfiança que o povo deposita no governo que vai tomar posse!Como se elefosseumbálsamoparaassuasdificuldades.

Omeuirmãonãoqueriafardar-se.Masohomemquenão lutassenãoerahomem.LutandoparaoGetúlio,écomoseestivessedepositandodinheironumbanco.Eosjurosvãoserobem-estardonossopovo.

Quemestavafazendoaquelarevoluçãoeramosricos.Maselesrevoltaram-se,porquê?Quemdeveriaedeverevoltar-sesomosnósquesomosospobres,que trabalhamos semmelhorar a nossa condiçãode vida, ganhamos apenas asunidades que não cobrem as nossas necessidades. Temos que ficar semi-alfabetizadosporqueocursosuperiorestáaoalcancedospoderosossomente.

Diziam que nas grandes cidades é que os pobres poderiam elevar-se umpouco.AlongevidadeparaopobresóseconseguenoestadodeSãoPaulo,ondeopobre tempossibilidadedecomer todososdias.EosegundoestadoéoRioGrande do Sul.As grandes indústrias estão em São Paulo por causa do lucroimediato.OshomensdeoutrosestadosiampôrsuasfábricasemSãoPaulo.Masointeriorcontinuavaapático.

Graças a Deus eu estava só, consegui empregar-me na casa do senhor

ManuelSoares.Queluta!Lavar,cozinhar,passarparatodaafamília.Trabalhavaparaterondecomer.

Pensava: “Se eu tivesse terras para plantar eu seria rica.”Olhava aquelasterras ao redor da cidade, inativas, as terras eram do senhor Hermógenes, doJerônimoCardoso,edoJoãoBorges.Porquenãodãoestasterrasparaospobresplantar?Teriamfarturaparaeleseparaospobres.Estáclaroqueas terras têmqueteroseuproprietário,maspoderiamarrendá-lasportempoindeterminado.ORuiBarbosa,quefoiumavozestentóreanopaís,falouquedeveriamsercedidasterrasparaosquequisessemcultivá-lasehãofoiatendido.Oúltimorecursoéprocuraroutrosrecantosmaispromissores.Eoshomensvãoperdendoohábitodeplantar.OjaponêsNapoleãohaviadeixadodeplantararroz, tinhaquepagaros camaradas. Na Europa corria boato que o negro do Brasil, por ter sidoescravo,trabalhavadegraçaemtrocadepingaecomida.

17

ASLEISDAHOSPITALIDADE

Minhamãemedeutrintamil-réisepensei:“ComestedinheiroeuvouatéRibeirãoPretoverseconsigointernar-me.Quemsabesedestavez,comauxíliodeDeus,conseguireisarar.

Diziam:

—Ouvocênãotemsorteoutepuseramfeitiço.

Que vontade de rir, porque não acredito em feitiço. Nãome despedi deninguém.Apassagemcustavavintemil-réis.Paravencernavida é necessáriopensar e agir. Cheguei emRibeirão às seis da tarde. Paguei seismil-réis paradormirepediaoporteiroparadespertar-meàsseis.

Nãodormipensando:“Seráquevouserfelizaquinestacidade?”Quemedoqueeusentiadascidadesgrandes!Eeutinhadinheiro.

Levantei, peguei a minha trouxa e saí. Segui a avenida-da Saudade.ChegueinaSantaCasaepediumaconsulta.Fizeramumcurativoedisseramqueeudeveriavoltardepoisdetrêsdias.Eradoençadeambulatório.

Ficar onde? Recordei que a tia Ana morava naquela cidade e decidiprocurá-la perguntando. Consegui localizá-la. Ela residia na Vila Tibério.Quandochegueieramseishorasdatarde.Elesestavamjantando.Pareinaportaecumprimentei-a:

—Abênção,tiaAna!

Elanãomerespondeu.Mesmosemesteconvite:“Vamosentrar”,euentreiesentei.Osmeuspésestavaminchadosdentrodossapatosqueoscomprimiam.

Erasábado.AtiaAnadisse-me:

—Vocêcomcertezajájantou.

—Nãosenhora.

Eladirigiu-meumolharfurioso.Pôsumpouquinhodefeijãoearrozefoidizendo:

—Visitasdebocanãomeinteressam.Visitasdebraçossim.Comofoiquevocêdescobriuaminhacasa?

—Foiumamulherquemmeensinou.

MinhatiaAnaficoufuriosaxingando:

—Ah,mulherinfame,desgraçada!Elaqueváparaoinferno!

Comiefiqueicomfome.Minhasprimasestavamvestindo-se.Iamfazerumbaile, haviam alugado um salão. Decidiram que eu deveria ir porque nãomeconheciamenãopodiammedeixarsozinha.

—Nãosabemosseelaéladra.

AMarcelinaestavanoivadeumpretinhodenomeOtávio.Pensei: “A tiaAnaagorajámistura-secomosnegros.Oseuorgulhoestáenfraquecendo-se.”Etiveesperançasqueelameajudasse.Quevontadededormir!

Chegouo JoséMarcelino.Nãomecumprimentou.Olhou-me com rancor.Pensei:“Queraçaantipática!”

As pessoas que estavam presentes no baile eram selecionadas. Bemvestidas.Oshomensusandoternosdecasimira.Eupensava:“Seráqueelessãoricos?”Ameia-noite rifaram um frango assado. Que vontade que eu senti dearrancar aquele frango e sair correndo. Eu estava sentada perto da tia Ana,olhando os que dançavam e pensava: “Eles estão do outro lado domundo.Omundo que a saúde lhes confere.” Paramim aquilo era apenas cenas.Que eupoderia olhar.Mas não poderia tomar parte. Já estavamais calma.O curativoque fizeram na Santa Casa foi producente porque as feridas começaram doer.Nãopodiagemernobaile.Quemestádoentenãovaiaobaile.

Ao lado da tia Ana estava sentada uma senhora que ultrapassava os

cinqüentaanos.Olhou-meeperguntouparaaminhatia:

—Queméela?

Aminhatiaobservou-meminuciosamenteedisse:

—Eumamendigaquedevezemquandovemnaminhacasapediresmola.

—Coitada! Tão jovem e já incapacitada para enfrentar a vida. Como asenhoraécaridosa!

EatiaAnasorriucomoselogiosdamulher.

Eu estava com sono mas não podia nem cochilar. Para finalizar o bailedecidiram marcar uma quadrilha. Mas faltaram damas. Então convidaram aminhatia,aoutrasenhoraeeu.

Que suplício quando fui levantar. As pernas estavam inchadas e pesadascomoseosmeuspésfossemdechumbo.Omeudesejoeradizer:“Moço,eunãopossodançar.Estoudoente.”Maselepoderiadizer-me:“Lugardedoentenãoénumsalãodebaile,énumhospital.”

Aceiteioconvite.Elesorriuparamim.Eutambémsorri.Jáfaziatempoqueeunãodançava.Nãoeraaminhadistraçãopredileta.

Mal vestida, eu era a gata borralheira naquele núcleo. Estava pedindo aDeusparaqueaquelaquadrilhaterminasse.Eunãosabiaseprestavaatençãonamúsica, na dor que eu sentia ou namarcação da quadrilha.Os que dançavamsorriameeucomvontadedegemer.Quealívioquandoaquadrilhaterminou.

Opovodespediu-seenósfomosparacasa.Quandochegamos,aminhatiadeu-measpassadeirasparaeuforrarocimentoedeitar.Quandorespirava,sentiao cheiro de poeira.Não adormeci por causa da friagem.Levantei e sentei-menumacadeira.Nãosentiasonoporestarcomfome.

Quandoodiadespontou,levanteiefuiparaoquintal.AtiaAnacontavaodinheiroqueganhounobuffet.Nãomeofereceramcafé.

Omeudesgostoeratãoimensoqueeunãosentiafome.Àsduashorasmederamumpouquinhodefeijão.Eusaí,fuinacasadaBárbara,filhadatiaAna.

QueriaveroSebastiãoseuesposo.Quandoelameviufechouaportaedisse-mequeiasair.

Pensei:“Seumdiaeutiversaúdenãoquerocontatocomosmeusparentes,elesestãomeapresentandoassuasqualidadesnegativas.”Osparentesdeveriamedevemauxiliarunsaosoutros.

Lembrei-medairmãAugusta:

—Omundoémesmoumteatrodeagruras.

Volteipara a casada tiaAna.Euestava suja.Trêsdias sem tomarbanhocom um calor insuportável. Mas eles não iam deixar eu tomar banho nobanheiro. Compreendi que eles me tratavam com profundo desprezo para eudeixaracasa.Saíparaveroqueconseguirianaquelacidade.

Encontreiaesposadomeupadrinho:MariaRita.Penseipedir-lheparaficarnasuacasa,mas jáestava ficandocommedodacasaalheia.Ela lavava roupaparafora,roupasfinas.Oquintaleragrandeeupoderiaconstruirumquartinhoparamim.Despedi-me.

Cheguei na casa da tia Ana, falei com a Marcelina, dizendo que haviavisitadoaMariaRita.

—Credo!Aquelamulhernãopresta!Vocênãodeveriaterentradolá.

AtiaAnafalou:

—Porqueéquevocênãovaipediresmolas?

Assustei. Pedir esmolas na minha idade? Era horroroso. Pensei: “Voutentar!E seja o queDeus quiser!” Saí andando, olhando as casas, procurandoumaparapedir.Quemestádoentenãopensanamorte.

“Euquerosararparatrabalharemqualquercoisa.Heideteraminhacasa!Deushádemeauxiliar.”

AtiaAnadisse:

—Senãoarranjardinheiro,nãovolte.

Dinheiro:éachavequeabreoscoraçõesdosambiciosos.“Juroquenuncahei de sacrificar ninguém para arranjar dinheiro paramim. Hei demoderar aminhaambição.Comoéquepodemexigirdinheirodeumapessoaimprestávelcomoeu.”Oh,meuDeus!Quandonascemos,choramos,eochoroéoprenúncioda auréola de infelicidade que há de cingir a nossa fronte. Todos que nascemsofrem.

Olhava aquela cidade.Tinha a impressãode estar sozinha semDeus.Porfimmedecidi.Toqueiacampainhadeumacasa.Apareceuumasenhorapedi:

—Asenhorapodemedarumauxílio?

Elaolhou-meminuciosamente,comoseeufosseumobjetoàvendaouemumaexposição.

—Você é novinha e pedindo esmolaNão tem vergonha? É por isso queninguém gosta dos negros, vocês são indolentes, imprestáveis. Vai trabalhar,nojenta.

—Équeestoudoente.

—·ProcuraaSantaCasa!

—Elesnãomeinternam.Minhadoençaédeambulatório.

—Vocênão temmãe, não temparentes?Vocês,medíocres, dãograças aDeusquando aparecemestas chagasnos seus corpos, para tiraremproveitodadoençapedindoesmolas.Equevocês,quesãoignorantes,nãosabemovalordeumcorposão,semenfermidade.

E horrível alguém ter nojo da gente. Segui sem me despedir pensando:“Prefiromorrerdefomedoquepediresmolas.Quandoseráquevousarar?”Omeusonhoera tersaúdeparaarranjardinheiroecompetircomminhasprimas.Queria transformar-me de gata borralheira em princesa.Osmeus parentesmeolhavamcomcaradenojoeaquilomeferiaprofundamente.Tinhahoraqueeuinvejavaasminhasprimasquepodiamcomprarroupas,vestidosdesedacor-de-rosa,azul,ecintosdeveludopreto.Maspretoeraomeudestino.

Paramim,apalavramaisbonitaeraapalavrasaúde.

PermaneciapenasseisdiasnacidadedeRibeirãoPretoecomisóumaveznacasadaminhatia.

Elesnãomeconvidavamparacomer.

Aspretinhasvestiam-sebem.OshomensdecortrabalhavamnaCompanhiaAntártica.Minhacondiçãoerapungente.Nãotinhacasa,nemempregoenãoénadaagradávelviveraorelento.Etudonomundotemdestino.

Quandoohomemestávivo,temasuacasaparaabrigá-lo,equandomorretemacampaparaoseurepousoeterno.Relembrandoomeupassadocaótico,mevinhamnamenteosrostosdaspessoasquehaviaconhecido.Esentiasaudadesapenasdomeuavô,edeminhasmadrinhas,siáMarucaeaMariinha.

Recordei de donaBárbara, à sogra do doutorWanderleyAndrade.O seurosto enrugado parecia um mapa. Será que o modelo do mapa foi o rostohumano?Eraamáveletristecomoseestivessedescontentecomomundo.

É o homem que semeia a tristeza nomundo. Omeu passado voltava naminhamentecomosefosseumafitanatela.Quepassadohorrorosoehediondo!Seeuachasseumacarteiracheiadedinheiro,quemsabeseaminhatiasorririaparamim.Odinheironãoésanto,mastambémfazmilagre.

Asegundacasaondebatiepediesmola,adonadacasadisse:

—Vaitrabalharvagabunda!

Fiqueisemação.Euquetenhoumespíritodeluta,dearrojoinabalável,quesoufortenasresoluções.Chorei.

A palavra vagabunda ficou eclodindo nomeu cérebro como se fosse umtique-taquedeumrelógio.Minhaslágrimasestavamquentesedeslizavampelasfaces,pingandonosolo.Pensei:“Eudevomorrer!”Fiqueiandandoatéencontrarumjardim.Senteiefiqueicontemplandoasnuvens,pensandonacasademamãetãodistante.Lá,eunãoerafeliz,omeuirmãomexingava.

Quandoodiafindoudirigi-meparaacasademinhatia.

Jáhaviamjantado.

Minhatiadisse-me:

—Viramvocêsentadanojardim,eaquiemRibeirão,aspessoasdecentesnãosentamnosjardins.

Omeuprimo,JoséMarcelino,olhou-meedisse:

—Istoé,aspessoasdecentes,masaBititanãoédecente.

Eleestavaescovandoosdentes,perguntou-me:

—Quandoéquevocêvaiembora?

Nãolhedissenada.Dizeroquê?...

PegueiaminhatrouxaesaírogandopraganatiaAna.

Procureiaestradaderodagempretendendovoltarparaaminhaterraapé.Fui andando resignada. Era o início de minha vida e o destino estavaapresentando-measpessoasdesumanasquetransitamporestemundo.Ostiposquepensamquesão imortais,destituídosdasbelasqualidadesecompéssimasformaçõesmorais.

Quantos meses levaria para chegar em Sacramento? Andei o dia todopensando: quando encontrar um lago ou um rio, vou tomar banho, cinco diassemtomarbanho!Eutenhoqueserfirmenasminhasresoluções.NuncamaisheidefalarcomosfilhosdatiaAna.Nãomaisheideconsiderá-losmeusparentes.Sereceberofensas,heidedevolverasofensascomotroco.

Queluta!Sentiafomemastinhamedodepedir.AsseishoraschegueiemJardinópolis.ProcureiaSantaCasa,admirando.

TodasascidadesdoestadodeSãoPaulotêmumaSantaCasa,ospaulistassãocaprichosos.Dáa impressãoqueoúnicoestadoricodopaíséoestadodeSãoPaulo.

Toqueiacampainhapensando:“Comoseráquevouserrecebida?”Eomeucoraçãocomeçouacelerar-secomoseestivessedançandoumsamba.Eutinhaaimpressãoquehavialevadoumempurrãoesendoatiradaforadomundo.Seeunãorecuperaraminhasaúde, tereiquemendigarmesmo.Masé tãobomviver

comopróprioesforço!Sempreexistealguémquenosdáserviço.

Aportaabriu-se.Apareceuuma freira.Pensei: “Elas sãoeducadíssimas ecompreensivas, qualquer coisa consegue-se com elas. Elas, que estão fora domundo, conhecemomundo tãobem.Equandoelas falam, temosa impressãoqueelassãoprofetisas.”Pedi:

—Seráqueasenhorapodefazerumcurativonasminhaspernasearranjarumlocalparaeutomarumbanho?Jáfazcincodiasquenãotomobanho.Eestazonaaquiémuitoquente.Euestoufedida.

Afreirasorriuedisse:

—Podeentrar.Vocêestácerta,ocorpohumanotemqueserlavadotodososdiase temqueseralimentado.Onossocorpoémuitodispendiosoparanósmesmos.Deondeveio?

—DeRibeirão.Estouviajandoparaverseconsigosararestaspernas.

Airmãsorriuedisse:

—Minhafilha,paracurar-seénecessárioorepouso.Nãoéandandodeumladoparaoutro.Aténasuaprópriacasapoderiater-securado.VocêianaSantaCasaapenasparafazeroscurativos.

—NaminhaterranãotemSantaCasa.

Fuitomarbanho.Quealívio,tomarbanhonobanheiro,comsabonete,águaquente, e uma toalha para enxugar-me, uma camisola e um roupão. Quantasgentilezas.Euestavahabituadaalidarcomaspessoasrudescomoocacto.

Eairmãtãoaveludada!Pensei:“Asirmãssãoamáveisporquetêmestudo,sãodotipocinzelado.”

Fuijantar.Comiàvontade,semconstrangimento.Sentisono,fuideitar.

Despertei às cinco horas com os gorjeios das aves e as vozes das irmãsrezandoaAve-Maria.Enquantoeudormia,elas fizeramocurativonasminhaspernas.Levanteiefuirezar,agradeceraDeussuainterferênciabenéfica.Tomei

café,efuidormir.Quegostosuraaquelacamalimpinha!

As irmãs me tratavam como se eu fosse uma personalidade ilustre. Eudisse-lhes que havia percorrido várias cidades e já estava cansando. “Tenhoplenaconvicçãoquenãovouconcretizarosmeusobjetivos.”

Airmãdiziaquepodemosfalardopassadomasqueofuturoéimprevisível,elepoderánossurpreendercomafatalidadeoucomafelicidade.

Naenfermariaasmulheresfalavamapenasdarevolução.Quefoibenéficaparaopovo.Quehaviamodificadoopadrãodevidadooperário.Osalárioeracompensador. Eles tinham possibilidades de ter contas bancárias. Citavam asvantagensdasleistrabalhistas.Ooperáriopodeaposentar-senavelhiceerecebeosaláriointegral.Ooperárioestavacontentecomasleis.EoGetúliojáestavasendocognominadodeopaidospobres.

O povo era disciplinado. Não havia conspirações porque o povo não eraoprimido.Elestinhamapossibilidadedeadquiriroquenecessitavamsemseremoprimidos, sem sacrificarem-se. Todos vestiam-se bem. Nas ruas não sedistinguiaquemeraopobrequemeraorico.Ospreçosestavamaoalcancedetodos.Queinvejaqueeusentiadenãopodertrabalhar.

Quandoeuerapequenatinhasaúde,eagoraqueestavamocinhaéquefuiadoecer.Ninguémmenamoravaeodesprezodoshomensmemortificava.Deveserbombeijarorostodeumhomem.

Nosdiasdevisitaseuficavaolhandoecominveja.Todasrecebiamvisitas,menoseu.

—Estaéaminhamãe.

—Estaéaminhatia.

—Estaéaminhacunhada.

—Estaéaminhafilhaeesteéomeuesposo.

Família...coisaquenãotenho.Quandoumadoenterecebiaalta,euchorava.Eosdiasforampassando.

As minhas pernas continuavam na mesma. As chagas não cicatrizavam.ResolvideixaraSantaCasa.

Asirmãsimploraram:

—Fique!Nóstemostantacomida,enãotemosquemcoma!Nósnãotemosdoentes.OsqueadoecemaquipreferemirparaRibeirãoPreto,ouSãoPaulo.

Pensei:“Semefossepossível ir atéSãoPaulopara consultar!...Masnãotenhorecursos.EmelhoreuvoltarparaSacramento,esejaoqueDeusquiser.”Agradeciàsirmãs,esegui.

Quandoanoitecia,dormianasmargensdaestrada.Seráqueaminhavidavaiseratribuladaassim?Eunãoqueropediresmola.Nãoqueroroubar.Queroserhonesta.Pensavaconstantementeenãoencontravasolução.Aspessoasquemeviamandandopelasestradasficavamolhandoecomentando:

—Eladeveserlouca!

Pareiparadescansareouviumavozquecantava

“Euquandobebo

àsvezesestranho,

asvezesbato,

tambémapanho.

Euquandobebo

ficomal-educado,

brigocomamulher

eatécomodelegado.

Euquandobebo

ficomauevalentão,

brigocomoexército

eatécomoLampeão.

Euquandobebo

criochifreseatéroubo.

Brigocomomundo

eatécomodiabo.”

Olhando aquele homem carpindo a terra, pensei: “Será que ele me dáserviço?Voupedir!Jácompreendiqueomundoécoletivo.Éunsprecisandodosoutros.”Perguntei-lhe:

—Moço!osenhorprecisadeempregada?Eupossolheauxiliarnalavoura.Osenhorpodemepagarummil-réispordia,Équeeusoudoenteeninguémmedáserviço.Eunãobeboenãoroubo.

Ele parou para ouvir-me e disse que poderia dar-me trabalho.Mas a suaesposanãotrabalhavanaroça.

—Sevocêficarsozinhacomigoaquieutenhomedodalínguadopovo.

Pensei:“Língua,umacoisatãopequenaetãotemida.”

Eunãoseiinsistir.Decidiseguir.

Ia-meencorajandoalutar,apoiadanaminhacuriosidade.Queriaviverparaveroqueosmelhoresdiasquevirãovãoproporcionar-me.Quandoliavidadossantos,noteiqueomundonãofoiaveludadoparaeles.

ÀsquatrohoraschegueinacidadedeSalesdeOliveira.Andandopelasruasviumanúncionajaneladeumacasa:“Precisa-sedeumaempregada.”Resolvipediro trabalho.Expliqueiparaapatroaqueeupodia lavara roupa,enceraracasa,limparosvidros,e;elapodiamepagarvintemil-réispormês.Elaaceitou-me.Quealegria!Eutambémiaterumapatroa.Jánãoerarelegada.

Limpei o quartinho onde eu ia dormir com a impressão que estava no

paraíso. Dependurei osmeus vestidos. Circulei o olhar no quintal. Era amplomasnãotinhaumcanteirodeverduranemdeflores.

Àsseishorasomeupatrãochegou.Eleeramotoristadepraça.Janteiefuidormir.

Demanhãeunoteiquehaviachovido.Eseeuestivessenaestrada?Querdizer que este já foi um dos meusmelhores dias. Tomei café e fui limpar oquintal.Laveiasgradesdeferro,oportãoeencereioportão.Laveiasroupas.Euprecisavaagradaraquelapatroaparaelanãodespedir-me.Aqueleempregoparamim era como se fosse um reconstituinte que ia revigorar aminhamoral. Eutinhaaimpressãoquenãoeraninguémnestemundo.Eeupretendiaseralguém,e para ser alguém é necessário empregar o seu tempo exercendo qualquerprofissão.

Comodecorrerdosdias, fiquei sabendoosnomesdospatrões.Ela,donaMaria Augusta. Ele, Arnaldo Padilha. Ela era costureira. Disse-me quetrabalhava em São Paulo, na Casa Alemã. Queria voltar para São Paulo,pretendiainternarasmeninasetrabalhar,elaeoesposo.MasoseuesposonãoqueriairparaSãoPaulo,adoravaavidanointerior.

Disse-me que foi visitar a sua madrinha. E ela obrigou-a a casar-se. Ocasamento é uma redoma na vida de uma mulher. Não havia motivos paradesgostos,porqueo-senhorArnaldoPadilhaeraeducadíssimo.

Trabalheiquinzedias.Eladisse-mequehaviaarranjadoumempregoparamim,nacidadedeOrlândia.

— Você deixou a casa bem limpinha, agora eu posso cuidar de tudosozinha.

Ela deu-me uns colares e uns brincos. Foi o primeiro colar que usei naminhavida.

Euestavacalmapor foraechorandopordentro.Seeupudesse ficarcomelaparasempre.Quemulherbonita.Pareciaumaboneca.Falava, tãopouco.Esabiafalar.Percebia-sequeelanãofoimeninavadia.Tudoqueelafaziaficavabonito. Deu-me vinte mil-réis. Que alegria! Há quanto tempo eu não viadinheiro!Fiqueinervosa.Nãosabiaondeguardá-locomreceiodeperdê-lo.

Às onze horas chegou o automóvel que ia me levar pra Orlândia. Iaobservandoaestradaderodagem.Quebeleza!

Quandochegamosnacasaondeeu ia trabalhar,viduasplacasnoportão:Dr.J.MansoPereira.Dra.MiettaSantiago.Pensei:“Seráqueelesvãoaceitar-me?”Apareceuumamulatanoportãoeconvidou-meparaentrar.Quandoentreino jardimomeucoraçãoacelerou-secomoseestivessemeadvertindodealgofunesto. Procurei acalmar-me pensando: “Será que irei ser feliz aqui?”Felicidadeéumalendaqueoshomenscriaram,elaéinexistente.

Acasa eranumaesquina.No terraçovi várias cadeiras e bancosondeosdoentessentavam.

—Oqueseráquevoufazernestacasa?Lavar,passar?

Amulataindicou-meumquartinhodizendo:

—Vocêvaidormiraí

Estava cheio de caixotes. Ajeitei os caixotes e coloquei o colchão. E fuitomarbanhoparairfalarcomapatroa.

Elaperguntouomeunome,aidade,sesabialereescrever,tudooqueeusabiafazer,edeu-mepapelumacanetaeotinteiro.Escrevi:“Seilavarroupas,passá-la, remendá-la, pregar botões, fazer bolos, sabão, doces, encher frangos,encerar casa.” Entreguei-lhe o bilhete, ela leu e elogiou a minha letra. Sorri,porqueumadoutoraelogiaraminhacaligrafia!Quandomeviusorrir,disse:

—Que dentes níveos! Pensei: “Será que estou com alguma enfermidadenosdentes?”

Ela disse-me que eu deveria varrer o quintal. Eu era inciente edesorganizadaparatrabalhar.Haviafarturanacasadodoutor.Eleexaminou-me,efaziacurativo"nasminhaspernas.EuauxiliavaaRaimundaacuidardacasa.Queinvejaqueeusentiadelaqueeraforte,eandavaportodaacidade.

Umdia, remexendonoscaixotes, encontreivários livroseumDicionárioProsódicodeJoãodeDeus.Eraaprimeiravezqueviaumdicionário.Quandocompreendi a finalidade do dicionário, procurei a palavra níveos, e sorrisatisfeita,porquetinhaalgoatraente:osmeusdentes.

A Raimunda me falava de Belo Horizonte. Quem criou-a foi a mãe dodoutorManso.AdonaSegundaelogiavaopaidodoutorManso.

Dias depois chegou o irmão do doutor Manso. Outro doutor que vinhapraticarcomoirmão.OdoutorOlintoMansoPereiraeraalto.Tinhaummedodedarreceitas!

Dizia:

—Deus,fazeicomqueeuacerte.Omeudoentenãodevemorrer.Amortedeumdoenteéocomprovantedaincapacidadedeummédico.

A Raimunda pajeava o filho da doutora Mietta, o Baby. Ele não erabatizado.Ospaisdecidiramesperarqueelecrescesseeelemesmoescolhesseoseunome.

Os patrões decidiram visitar São Paulo. Eu pedi à doutora Mietta paracomprarunsvestidosparamim.ARaimundafoivestidadecriada:Touquinhaeaventalbranco.Váriaspessoascomentaramqueaquiloerapedantismo.Quenãomaisseusavaaqueleuniforme.Queostrajestiveramépocanamonarquia.

ARaimundaestavaalegreporqueiaconheceraínclitacidadedeSãoPaulo.Ficaramforadezdias.

Quando regressaram, falavam do progresso na cidade industrial. Mas adoutoraMiettadiziaquepretendiaresidirnoRiodeJaneiro.NãoouviaavozdodoutorManso.Eraumhomemtriste.Porquê,seeletinhasaúde,profissão,umacasa,esposaefilho?Quemdeveriasertristeeraeu.AdoutoraMiettacomproutrês vestidos para mim. Que tecidos bonitos indesbotáveis. A dona MariaAugustafezosvestidos.Dezcruzeiroscadaum.Eunãopagueiporqueganhavavintemil-réis.Canseidaquelavida.

Decidi seguir para Sacramento. Levei os livros velhos que estavam noquartinho para eu ler. Quando chegue na minha cidade, fui recebida comhostilidade pelosmeus parentes. Eu a estava mais inteligente e observava asfisionomiasrancorosas.Pensei:“Elesnãosentemsaudades.

Minhamãedisse-me:

—Quandovocêchega,eujáseiquevouteraborrecimentos.Eujánãolhe

disseparavocêficarporlá?Nãoéimplicância,nemantipatiadaminhaparte,épara o seu próprio bem. é Um espetáculo duro para mim presenciar eles tejudiarem.

Mas eu, que nas minhas andanças dormia debaixo das árvores, erahumilhada,jáestavaficandoinsensível.Mostrei-lheosmeusvestidos.Elaachoubonito.

—EstestecidossãodeSãoPaulo.Foiaminhapatroaquemcomprou.

—Ah...vocêtempatroa?Deixadesermentirosa.Vocêfalaisto,queéparanósacreditarmos,nósduvidamos.

Mostrei-lhe os colares. Ela escolheu um amarelo e deixou o verde paramim.

Eucompreiumasombrinhaepercebiqueasminhasprimas invejavamosmeusvestidos.Quandoelascompravamvestidos,eunãoinvejava.

18

ACULTURA

O que eu não acatava eram as vaidades inúteis. Elas trabalhavamexclusivamenteparacomprarroupas.Podiamtrabalharparacomprarumterrenoeconstruirumacasinhaqueé a coisamais importantenavida.Eupassavaosdias lendo Os Lusíadas de Camões, com o auxílio do dicionário. Eu iaintelectualizando-me,compreendendoqueumapessoailustradasabesuportarosamarumesdavida.

Por eu ter tomadomuitos remédios,minhas pernas estavam cicatrizando.Comecei a fazer projetos. “Vou ficar boa. Hei de conhecer a cidade de SãoPaulo.”Opovodiziaqueeraacidadefavodemel.EmSãoPaulotemumbairroquesechamaParaíso.EacidadedeSãoPauloéumparaísoparaospobres.ÉoestadodoBrasilquetemmaisestradasdeferro.

Por intermédio dos livros, eu ia tomando conhecimento das guerras quehouvenoBrasil, a guerradosFarrapos, a guerradoParaguai.Condenava estaforma brutal e desumana que o homem encontra para solucionar os seusproblemas.

— Eu sentava no sol para ler. As pessoas que passavam, olhavam odicionárioediziam:

—Quelivrogrosso!DeveserolivrodesãoCipriano.

Eraoúnicolivroqueosincientessabiamqueexistiaeexiste.ComeçaramapropalarqueeutinhaumlivrodesãoCipriano.Ecomentavam:

—Entãoelaestáestudandoparaserfeiticeira,paraatrapalharanossavida.Ofeiticeiroreza,enãovemchuva;ofeiticeiroreza,vemageada.

Quandoaminhamãesoube,avisou-me:

—Émelhorvocêpararde lerestes livros, jáestãofalandoqueé livrodesãoCipriano,quevocêéfeiticeira.

Eu dei uma risada estentórea. As pessoas que ficam esclarecidas eprudentessabemconduzir-senavida.“Euquerosararparasairdaquiparanãomaisvoltar.”

Eu estava contente porque as feridas estavam cicatrizando. Queria fazeruma surpresa para a minha mãe. Estava seguindo as indicações da irmã deJardinópolis. Se eu repousasse na minha própria casa, poderia curar-me. Naminha casa eu estava tranqüila.Nãome revoltava, não sentia aquela angústiainterior.Quandonãolia,bordavaqualquercoisa.

Omeuirmãoqueandavagirandooraaqui,oraali,apareceu.Quedóqueeusentia daqueles jovens pobres. Não podiam ficar na cidade porque a políciaperseguia-os.Oshomenspobresolhavamospoliciaiscomoosgatosolhamoscães.Mas isto é inciência, porqueohomemque é policial tambémépobre, esabeasdificuldadesqueohomempobreencontraparaviver.Acolméiadopobreproduzomelamarume.

Umdiaestavalendo,passaramunsrapazes,pararamepediramparaveromeudicionário.Entregueiolivroparaelesolharem.Olharamedisserem:

Ah!émesmoolivrodeSãoCipriano.Comoépesado.

Percebi que eles eram pernósticos e fiquei com dó, porque a leiturabeneficiatantoohomemcomoamulher.Queixei-mequeomeudesejoeratersaúdeparatrabalhar.Queaenfermidademetransformavanumfarrapohumano.

Quandoelessaíramforamcontarparaosargentoqueeuohaviaxingadodefarrapo,dizendoqueelesprendiamsomenteospobres.Osargentoeracompadredeminha prima Leonor, e deu ordem aos soldados para irem prender-me. Euestavaemcasa.Nãogostavadesairporquemeaborreciacomodisse-que-disseemtornodomeunome.

Já estava ciente que os ricos que nascem nas cidades pequenas podemnascernus,masospobrestêmquenascervestidosdepaciênciaparasuportarasignorâncias. Assustei quando vi os policiais. Eles pararam na minha frente ederam ordem de prisão. Não perguntei por que estava sendo presa. Apenasobedeci. Minha mãe interferiu, dizendo que eu não estava fazendo nada de

errado.

—Calaaboca!Evocêtambémestápresa.

Seguimosnafrentedosdoispoliciais.

Minhamãechoravadizendo:“Eutedisseparanãovirnestacidade.Porquevocênãoficacomospaulistas?”

Quando chegamos na cadeia, o povo já sabia que eu estava sendo presa.Nosintroduziramnumacela.Penseinafreiraquemeaconselhou:

— Vai para a sua terra, e lá você repousa e sara. Você não temtemperamentoparaficarrecluída.

Ficamospresasdoisdiassemcomer.Noterceirodiaosargentonosobrigouacarpirafrentedacadeia.Opovopassavanaruasemnosver.

Eupensava: “Admitoque sedêumcastigomoral aosqueerram,mas eunãoerrei.”Noquartodiafomoscarpiratéaomeio-dia.Asminhasmãosdoíam,asferidasporfaltaderemédiosinflamaramnovamente.

Aumahoradatardenosrecolherameosargentofoiinterrogar-me:

—Entãovocêandadizendoqueeusouumfarrapo?

Compreendi:“Ah,foioLiquemcontou.”

— Eu disse para o Li que a enfermidade me transforma num farrapohumano. E me considero inferior aos outros. Não gosto quando me dizem:“Feridenta!” Eu não tenho culpa de estar doente. Quando eu sarar querotrabalhar.

—Vocêanda lendoo livrode sãoCipriano.Pren- tendebotar feitiço emquem?

—EunãocreionofeitiçoenãotenhoolivrodesãoCipriano.

—Eutenho.

E deu-me o livro para olhá-lo e folheá-lo. Eu gostava imensamente de

livrosepegueiolivrocomcarinhoecuidado,comoseestivessepegandoumacriançarecém-nascida.Masestavanervosaparaler.

—Dizemqueasenhorasaiànoiteeficavagandopelacidade.

Minhamãedisse:

—Elanãosaiànoite.

—Calaaboca,vagabunda!

Voltámosparaacela.

Osargentomandouumsoldadopretonosespancar.Elenosespancavacomum cacete de borracha. Minha mãe queria proteger-me, colocou o braço naminha frente recebendo as pancadas. O braço quebrou, ela desmaiou, eu fuiampará-la,osoldadocontinuouespancando-me.Cincodiaspresasesemcomer.

Minhatiafoinosvisitare levouumviradodecarnecomfarinha.Minhaspernasincharam.Pensei:“Estestiposdevem-serdescendentesdeNerb,queerafanático pelas cenas cruéis.” O braço de minha mãe doía. Ela chorava. UmsoldadodenomeIsaltinomexingava:

—Estavagabundaviveviajando.Moçadireitanãoviaja.DizquevaiparaSãoPaulo'.

Eu pedi à minha tia para ir falar com o senhor Aureslino de Campos,gerentedoBanco,parasoltar-me.Posteriormenteeulhepagaria.Respondeu-mequenãopodia,precisavapagaracarceragem,vintemil-réis.

Minhaspernascomeçaramafeder.Pensei:“Esederbichos?”

O meu primo Paulo arranjou os vinte mil-réis, e me soltou. Hei deconsideraromeuprimoPaulocomoomeuúnicoparente.

As feridas inflamaram.Aminhamãenãopodia lavar roupa.Nóssaíamosandandonasroçaspedindoesmolas.Minhamãecomobraçoquebradoeeucomaspernasenfaixadas.Ganhávamosarroz,feijão,toucinho,sabão,queijo,sobrasdecomidas.

Minhamãedizia:

—Vocêprecisadeixarestacidade.

—Estábem—concordei.

Pensavanagenerosidadedospaulistas.

Ospaisdefamíliaproibiramsuasfilhasdefalarcomigo.Euiacontaminá-lascomosmausexemplos.

Deixamos a cidade deSacramento. Fomos paraFranca.Que luta para euviveremFranca.Nãopodiatrabalhar.MinhamãearranjouempregonacasadosenhorIgnácioCalheiros.Euficavavagando.Quefomequeeupassava!

Às vezes eu ia no emprego de minha mãe. Limpava o quintal, visandocomer qualquer coisa! Não tínhamos casa. Íamos dormir na chácara doChicholim.Eraumpalhaçodecircofalidoeanoso.Eracaridoso.EraopaidaatrizCarmemCassnel.Quehomembom!

19

OCOFRE

Eueraumarevoltada.Comeceiaviajar,procurando tratar-me.Sarei.Quealegria!Minhamãesorria.

Arranjei emprego. Fui trabalhar nosTrês Irmãos, para a donaClélia.Mepagaria quarentamil-réis pormês. Quemulher fina, poderia ser uma atriz ouumaartistadecinema.

Tudoqueeufaziaparaelafaziacomtodocaprichoecarinho.Nãoeraparabajulá-la.Eraporsimpatiaeconsideração.

Que fartura! Paramim um grão de arroz tinha o valor de uma pedra debrilhante.Euprecisavarevigoraraminhaalmaqueestavadescrentedetudo.

Quando recebi os vinte e cinco mil-réis, sorri e chorei porque a outraempregadadadonaCléliavoltoudizendoquegostavadetrabalharsóparaela.AdonaCléliaerafilhadeitalianos,casadacomosenhorAbdo,umsírio.Elesabiafalaroárabe.

Comsaúde,nãoháfaltadetrabalho,eeufuidesinibindo-me.Podiacalçarmeias.Ninguémtinhanojodemim.Fui-meempregarnacasadosenhorEmílioBruxelas.EleestavacasadocomadonaZizinha.Quemulherséria!Esforçava-separa viver bem comos enteados, oSinésio, o Ibraim e os outros.Quando elacozinhava,euolhavaparaaprenderporquepretendiaseratalnacozinha.

O senhor Bruxelas comprou um cofre em São Paulo. Quando chegou ocofre,euestavavarrendoasala.Ohomemquefezaentregadocofreexplicavaosegredo!

—Osenhorrodatrêsvezes,zero.Rodaquatrovezesdois.

Eunãoestavaprestandomuitaatençãonaexplicaçãomasosdadosficaram

gravadosnaminhamente.

OsenhorEmílioBruxelaspegouopapel,leuefechouocofre.Erodouosnúmeros novamente, o cofre abriu-se. Ele pegou os objetos de valor, papéis,escrituraseummaçodedinheiro,ecolocounocofredizendo:

—Agorasim,estoutranqüilo,possosairdecasasossegado.Estecofre,osladrõesnãoconseguirãoabri-lo;

AdonaZizinha,queestavaesperandooseuprimeirofilho,andavapelasalaepediu-meparairprepararocafé.Apósocafé,ohomemqueentregouocofredespediu-se.DiasdepoisosenhorEmílioBruxelasperdeuopapelquecontinhaa explicação para abrir o cofre. Ficou nervoso. O senhor Jozias de Almeidadisse-lhe:

—ACarolinaémuitointeligente.Seelaouviuosegredodocofre,deveterdecorado.

Então o senhorEmílioBruxelas, resolveu certificar-se, e procurou-me nacozinha, e olhou-me.Aquele olhar intranqüilizou-me, eu tinha a impressão deestardiantedeumraioX.Percebiqueelequeriadizer-mealgo.

Estavachovendo.Eusentiafrio,masnãotinhaagasalhos,nemesperançadeter.

Eleperguntou-me:

—Asenhoraviuocofre?

—Vi,simsenhor!

—OsenhorJoziasdeAlmeidadisse-mequeasenhoraémuitointeligente.

Quealegriaquesenti.Puxa,osbrancoscomentandoqueeusouinteligente!Istoparamiméumahonra.Entãoelesfalavamdemimláfora.

Masdeveriaexistirumafinalidade,porqueaqueleshomenssófalavamdopreço do café, comentando a época em que o Getúlio mandou queimar oexcedente,quefoiprejuízoparaaNação.Quesevendessemocaféporumpreçoinferior sempre era lucro.Queimando-o foi um prejuízo total.Muitas famílias

ficarampobres.OsenhorEmílioprosseguiu:

—Asenhoraouviuohomemlerosegredodocofre?

—Ouvi,simsenhor.

—Seráqueasenhorapodeescreveroquefoiqueouviu?

Fiqueivaidosa.

—Oh!possosim!

Elepegouumpapeledeu-me.

Escrevi:“Rodatrêsvezes,zero.Rodaquatrovezes,dois.”

Fuiescrevendooqueouvieentreguei-lhe.Ele foicorrendoabrirocofre.Abriu.Foiprocurar-menacozinha.

—DonaCarolinaasenhorapodeir-seembora.Vaiarrumarassuasroupasesai.

Fiqueiapavoradaporqueestavachovendo.Eunãopodiaperguntar-lheporqueéqueestavameexpulsandodesuacasa,seeulheprestaraumgrandefavorauxiliando-oaabrirocofre.Omeuorgulhofaloumaisalto.Jáqueeleestámeexpulsando,vousairsempedirexplicação.Eledeu-metrintamil-réiseusaí.Nãotinhaguarda-chuva.Deicincopassosfiqueiencharcada.Nãotinhaninguémnasruas.Eunãotinhacasa.Queluta!

Quando cheguei na casa da Dolores estava molha- díssima. Não quisincomodá-la. Já estava descontente de ser classificada a inferior. Que alívio,quandoodiasurgiu.

Fui enxugar as minhas roupas pensando onde conseguir outro emprego.Erammuitaspessoasqueprecisavamtrabalhar.Eunãoexigiapreços.Porcausadachuva,comeceiatossir.

FuitrabalharnacasadosenhorTeófilo,memandaramemboraporcausadatosse.Eupensavaquesereadiquirisseasaúde,iavivercomofidalga.Enganei-me.Osdiasparamimaindaeram funestose trágicos.Osmeus sonhosnão se

concretizavam.Queriatrabalharparacuidardeminhamãe.

Osbonsempregos jáestavamocupadosporpessoasdemelhoraparência.Decidiprocurartrabalhosforadacidade.Nasfazendas.Nascasasdofazendeiro.

20

MÉDIUM

FuitrabalharparaadonaMariaAmélia,filhadoTotonhoRasa,esposadosenhorRoberto Junqueira.Quepatroa educada!Euera apajemdaNilza.Quemeninabonita.Estavadoente.AdonaMariaAméliaeratriste.Eupensava;“Porquê,seelaérica?”

Voltamos para a cidade. O doutor Carlos Signareli, começou a tratar amenina.ComoeugostavadadonaMariaAmélia!Pensava:“Seelanãodespedir-me, hei de ficar sempre com ela.”Muito elegante no falar.Olhando-a pareciaumaprincesa.

Ameninaestavamorrendoeela também.OdoutorCarlosSignarelidissequeerameningite.AmãedadonaMariaAméliadespediu-me,dizendoquenãogostavademim.

Quandodeixeiaquelacasa,rezeipedindoaDeusparaauxiliaradonaMariaAméliaquetinhatodasasqualidadesparasercanonizada.

Conseguioutroempregonumapensão.MasnãoconseguiaesqueceradonaMariaAméliaJunqueira.RezavapedindoaDeusparaameninanãomorrereelanão sofrer. E eu ia à igreja Nossa Senhora da Conceição, parava diante dosaltares suplicando aos santos que não permitissem que aNilzamorresse.Quesaudadesqueeusentiadamenina!

Jureinuncamais serpajemporquenaconvivênciaaprendemosaamarascrianças.MasaNilzamorreu.

Eu não tinha roupas para vestir. Escrevi um bilhete para a dona MariaAmélia,pedindo-lheosseusvestidosusados.Eladeu-os.Escreviobilhetecomaconvicçãoqueelanãoianegar.

Quandogostodeumapessoa,gostodevê-latodososdias.Euqueriavera

donaMariaAmélia,por sentir saudades,enãoqueriavê-laporqueeladeveriaestarmuitotristecomamortedaNilza.

Que sucesso, quando vesti os vestidos que a dona Maria Amélia deu!Organdi amarelo. Cheio de babados. Pensei: “Se eu pudesse vestir sempreassim!”Efuidançar.

Era horroroso viver. Eu estava trabalhando ganhando trinta mil-réis,apareciaoutra,que trabalhavamelhor,eganhavavintemil-réispormês.Eu jáestava cansando daquela vida de andarilha. Eu tinha a impressão de ser umamoedacirculando.Quevergonhaqueeusentiapornãotermosumacasa.

Alugamos um quarto na casa de dona Narcisa. O preço do quarto eracinqüentamil-réispormês.Quelutaparaarranjarestescinqüentamil-réisparapagar o primeiromês adiantado. Não tínhamos sossego, pensando: “Será quevamosarranjardinheiroparapagarosegundomês?Seninguémtinhaempregofixo.”Minhamãemeolhavaedizia:

—Eu não posso confiar em você. Já percebi que você nunca vai poderauxiliar-me.

Nósdormíamosnosolo.Forrávamosochãocomjornais.

Minhamãedizia:

—Nós viramos ciganos. É horrível estar hoje aqui, amanhã ali. Estamosimitandoosartistasdecirco.

Eume sentia como se fosse um refugo.Umamoeda fraca, sem cotação.Não podíamos comprar o que comer. Quando venceu o mês, não podíamospagar.Saímosantesqueapretanosexpulsasse.

ADolores arranjou um amigo e foi viver com ele. Levou a minhamãe.Choreiefuiemboraapé,comatrouxinhanosbraços.Chegarsemdinheiroeradesprestígio.Maseusóseiconseguirdinheirohonestamente.Quandochegueinacidade,espereiqueanoitecesseparaeuentrarnacidade.

MaistardefuiprocuraraDolores,queestavadoente.Dornosolhos.Minhamãeestavamagrinha,queixando-sededornoestômago.Euviaváriaspessoasirem para São Paulo e pensava: “Há de chegar a minha vez.” Já havia

completadoumanoqueeuestavatrabalhando,enãohaviaganhonemcemmil-réis.Euinvejavaaquelasmoçasqueganhavamsessentamil-réispormês.

Por infelicidade minha, adoeci. Que febre que eu sentia. Estava comdisenteria.Gemiadiaenoite.

Deitada,nosalãodachácaradoChicholim,umanoiteouvipararumcarroeperguntar.

—Eaquiquetemumamulherdoente?

Responderam que sim. E ò senhor Arnulfo de Lima entrou, me olhou edisse-me:

—Évocêmesma.

Dissequeeleestavadormindo,nasuacasa,eomeuespíritofoilhepedirum auxílio: um colchão e ummédico para examinar-me. Eu ainda não tinhaterminadoomeuciclodeexistência enãoeraahoraparaeudesencarnar-me.Dei-lheomeuendereço.

EuconheciaosenhorArnulfodeLima.Eraodonodeumcentroespírita.Elelevouummédicoparaexaminar-me.Eleaplicou-meumainjeção.Euestavadeitadanastábuas.Quegostosuradeitarnaquelecolchão!Dormi.

Despertei às nove da manhã com o corpo quente, com a impressão queestavasendoassadaviva.Fiqueiapavorada.Enchiumabanheiracomáguafria,entrei. Que alívio! Que sensação agradável! Quando saí da água ela estavaquente.Eadoençadesapareceu.

AtéhojenãocompreendoestemistériodeirprocuraromédiumArnulfodeLima.Elenãomeconhecia.Mas rezeiparaeleser feliz.Eu tinhaa impressãoque não estava acordada, que estava sonhando. Eu queria procurar o senhorArnulfodeLimamasnãotinharoupa.Pensava;“Porqueéqueomeuespíritonão procurou o doutor Tomaz Nortelino, que é espírita?” Comecei acompreenderque eu receboumaproteção, e desconheço aorigem.Mas fiqueialegre.Comoébomumcorposão!Fuiprocuraremprego,tinhaaimpressãoquehaviatomadoumreconstituinte.

Eraoanode1936.Opovodiziaqueestavaenriquecendocomoestilodo

Getúliogovernaropaís.Os impostosnãoeramonerosos.EmtodososbareseoutrosestabelecimentosestavaexpostooretratodonossoproeminentechefedaNação.Oscomerciantesquandodavambalançostinhamumsaldofavorável.Ospreçoseramfixosdeanoparaano.Quandoooperáriorecebiaoseudinheiro,jáeradesignadoparaistoouparaaquilo.Quepovoalegre!

21

APATROA

Fiquei alegre quando consegui um emprego numa fazenda.Eu não podiatrabalharnacidadepornãoterroupas.Naroça,qualquercoisaserve.Avidaésimples,semburocracia.Fui trabalharnafazendadosenhorNhonhôRasa.Eleera surdo. Mas muito educado com os colonos. Eu era pajem. Quanto leite,,queijoeverduras!Asempregadasmecriticavamdizendo:

—Vocêéumaidiota,deixaracidadeparavirtrabalharnomato.

Quandoapatroa ianacidade,eu iapara tomarcontadascrianças.Ela iapassear,iraocinemaparadistrair-seumpouco.

Euqueriaumserviçodemaismovimento.Eficarsentadacomumacriançanos braços o dia todo foi cansando-me. Tinha a impressão que o tempo nãopassava. Eu pensava: “Como será que está vivendo a minha mãe?” Canseidaquela vida estagnada. Uma vida sem um amanhã promissor. Sentia umdescontenta-mentotremendo.Quevontadedeterumacasa,umavidaajustada!

A patroa era ótima. Eu tinha vergonha de dizer que desejava deixar oemprego. O meu desejo era viver na cidade, ir ao cinema. Dançar, entrar nocordão de carnaval “Só para moer”. O cordão era do Benedito Musa. Masquandoeufuipedirsemeaceitavanoseucordão,eledisse-me:

—Não te aceito nem para engraxar os sapatos dasminhasmeninas. Nomeucordãonãoentramendigo.Vocênãotemroupa.

Eleestavacerto,masfiqueinervosa.

Omeusonhoeradançaraosomdojazz-bandBicoDoce,deRibeirãoPreto.Paramim,aminhavidaerasemelhanteaumapedraqueeunãopodiaerguer.Detanto pensar fui adquirindo o hábito de não reclamar, não lamentar. Para quemortificar-mecomoimpossível?

Opatrãoeraamável,brincavacomosempregados.Euachavagraçaquandoeledizia:

—Bomdiasaca-rolha!

Queordemnaquelafazenda!Osempregadosqueriamdeixarafazenda,masnãotinhamcoragemdepediraconta.Aeducaçãodospatrõesedascriançasnosimpedia.

Osempregadoseramtratadoscomosefossemdafamília.OsenhorNhonhôtocavadiscoscaipiraparaoscolonosedizia:

—Nãoseusamaistratarosempregadoscomdesprezo.

Quando eu pedi a dona Fiica que queria ir embora, ela não apreciou eperguntou-me:

— O que é que está te faltando aqui? Fala o que você quer que eusoluciono.

Pensei:“Voupedir-lheparacomprarroupasparamim.Masseelacomprar,tereiqueficarcomela.Jáestoucansandodevivernocampo.Sefosseparaeumorarnestafazendaparaplantar,aísim.MaseuesperoqueDeusaindavaimeauxiliar,heideterterrasparaplantar.Heideteravidaqueesperoter.”

AdonaFiica,disse-me:

—Sabe,Carolina,muitaspessoaslutaramparaalibertaçãodevocês.Masvocêsnãotêmapegoanada.Parecemesquilos.Euachovocês,negros,umpovomuitodifícil.Sevocêssãodesorganizados,éporquevocêsquerem.Oqueéquevocê lucra nas suas andanças? Dá a impressão que vocês entram nas nossascasassóparainvestigaralgoedepoispartem.Eupossomorarnacidade,masacidadenãomefascina.Eujáconheçotudo.Aquieupossocriarosmeusfilhoscommaisconforto,emenosdespesas.Morandonacidade,eutenhoquecomprarquilos,eeunãogosto.

Nacozinhaeramduascozinheiras.Quefartura!

Eladisse-me:

—Quandoeuforàcidade,eutelevoetedeixolá,vocêjáestáhabituadaadormirnascasascondenadaspelaprefeitura.

Anossaconversaterminou,quandoouvimosavozdosenhorNhonhô.Fuiserviroalmoço.

Acozinheiraqueriasairejáhaviacompletadoumanoqueeladizia:

—Amanhã, eu falo que quero ir embora. Amanhã eu falo que quero irembora.

EutinhaaimpressãoqueadonaFiicahaviafeitoumcursoparaserpatroa.Quandoelafoinacidadelevou-medeautomóvel.Disse-me:

—Eupodiadeixarvocêvirapé.Maseutenhodó.Nãogostodemagoarninguém.

Pagou-me, dividi o dinheiro com aminhamãe. Fiquei com vergonha dedar-lhe só vinte mil-réis. Eu olhava o dinheiro e pensava: “Sem este papelninguémvive.Elenosdomina,epredominananossavida!Osquetêmbastantesão fortes, são respeitados, sãoosdonodo leme;quemnãoo tememgrandesquantidades,éjoão-ninguém,pé-rapado,sãoosdesconsiderados,sãoosfracos.”Eu só conseguia comerquandoestava empregada.Eranecessárioprocurarumempregoparaviversemprenacidade.

22

SERCOZINHEIRA

Tivesortefuitrabalharnumacasarica.Quepalacetesuntuoso!Quevontadederesidirnumacasabonitaeserdonadestacasa.Erasonharcomoimpossível.Eutinhaaimpressãoqueestavasobrandonestemundo.

Minha mãe pediu-me para arranjar dinheiro que ela ia voltar paraSacramento.

—Masvocênuncamaisvolteparaaquelacidade.

Omeuobjetivoeraconseguiroscinqüentamil-réis.Enaquela casa eu iaganharsessentapormês.Euiasercozinheira.Cozinhei.Oprimeirodia,opatrãoreclamou.Pediumaiscapricho.Acomidanãoestavagostosa.

Fiqueiapavorada.Euquepretendiaserumaboacozinheira.

Eu eramorosa.Não conseguia lavar toda a louça e cuidar da comida.Apatroamedizia:

—Parece que você não tem prática de trabalhar. Anda depressa, porquevocêtemquematarumfrango.

Eunãosabiamataraves.Masmesmoassim,matei.Nãoconseguicortarospedaços.Apatroareclamou.Commuitalutaojantarficoupronto.

Euqueriasairdoemprego.Percebiquenãodavacontadotrabalho.Enãosabiacozinharàaltura.Comeceiaouvirvozesiradas:

—Ordinária.

—Cadela,nojenta!

Assustei,quandoolheiorostodapatroa.

—Prepareassuasroupaseváembora!

Quemedoqueeusentiadaquelapatroa!Noinícioeujácompreendiqueelanão estava satisfeita com os meus afazeres. Eu estava saindo com as minhastrouxas.Encontreicomo filhodapatroa,queacabavadechegar.Ouvindosuamãexingar-me,disse-lhe:

—Oh!mamãe!Nãoéassimquese trataasdomésticas.Elas tambémsãosereshumanosquemerecemnossaconsideração.

Amãeexplicou-lhe:

—Equeestanegrinhamatouumagalinhaenãoabriuamoela.

Ofilhodapatroadeuumarisada.

Pensei:“Ah!foiporisso,queeladespediu-me.”Osrumorescircularamnacidade:umacozinheiraquenãoabriaamoeladasaves.Oquemefavoreceu,équeapatroanãodecorouomeunome.Eeunãoconsegui conhecerdireitooshabitantesdaquelacasa.

Quandoestavanaruafiquei indecisa.Nãosabiaparaonde ir.Procurarosparentes,eutinhareceio.Elesmeolhavamcomoseeufosseaculpadadesuasdesditas. Fui procurar a casa daMaria Vaca-brava. Elame acolhia porque àsvezeseudividiaomeudinheirocomela.Emcertas circunstâncias,odinheirosuplantaosjuízos.Elaeratãoantipática,pernóstica,eraanalfabetaequeriafalaroclássico.Viviadecorandoaspalavrasdifíceis.Elaeraatraenteporcausa dosdentesqueeramníveos.Quandofalávamos,elamecriticava.

—Vocênão tem ilusão, jánasceuvelha.Não temondemorar.Andamalvestida. Se eu pudesse, eu queria morar no Rio de Janeiro. Que cidadeagradável!

Ela arranjava uns trapos e eu deitava lamentando a minha vida. Eu nãotoleravaaquelecheirodecachaçaecigarros.

Despertei e saí prometendo a mim mesma que havia de ser uma boacozinheira.Iaesforçar-meparaserdisputada,enãoenxotada.

NaSantaCasaestavamprecisandodeumacozinheira.Quesorte!Rejubilei.Meofereci.

Airmãaceitou,pediureferências,masasminhaspatroaseramfazendeiras.Eradifícillocalizá-las.

Airmãresolveuaceitar-meedisse-me:“Vocêprovaastuasqualidades.”

Pensei:“Seráqueeutenhoalgumasqualidadesapresentáveis?”

Era para dormir na Santa Casa. Que cama limpinha! Camisolas para eutrocar.Luzelétrica.AirmãquemeauxiliavanacozinhaeraairmãIrinéia,queperguntou-me:

—Quantasvezesasenhorajáfoinosbailes?

Pensei!Penseierespondi:

—Umastrintavezes,creioeu.

—Ah!Querdizerqueasenhoragostadedançar!

— Gostar, não gosto. Mas as minhas amigas convidavam-me cominsistência.Paranãodesagradá-lasentãoeucompareço.Asenhorasabequeosbailes,sãopessoasqueosfazemnassuascasas.Quandocomparecemuitagente,entãoobaileficaanimado.

Espereiqueelafizesseoutrapergunta.Comoelanadadissessecontinueiomeu trabalho. Servimos o almoço. Primeiro para a enfermaria dos pobres.Depoisparaosdoentesdopavilhão.Quandoospratosvoltarameusoubequeacomida foi apreciada. Lavava a louça depressa. Conservava a cozinha bemlimpinha.Nãoqueriaserrepreendida,nemdespedida.

Fiqueicontentequandorecebiavisitadairmãsuperiora.Veiodizer-mequeacomidaestavabem-feita.Queeraprecisovariar.Nacozinhatinhaumlivrodeartes culinárias, eu lia ànoite.Pensavanaminhavidaqueestavamelhorando.Que ordenado!Oitentamil-réis pormês. Era omaior ordenado da cidade. Eudavaosparabénsamimmesma,analisandoaminhaascensão.Compreendiquedependiademimmesmalutarparavencer.

Aprendiváriospratoscomá irmãIrinéia.Quefartura!Quanto leite!Comaquela alimentação reconfortante, comecei engordar. Eu tinha cuidado com oasseio corporal, porque a irmã Irinéia reclamava tudo. E eu, temendo asobservações da irmã, procurava aprimorar-me. Estava na cotação que de hámuitotempoeudesejava.Acotaçãodeboaempregada.

Eumesentiacomoumgeneralquehaviavencidoumabatalha renhida,eagora estava recebendo as condecorações. Nãomais tinhamedo domundo, enemda vida.Compreendi que uma pessoa relaxada, desorganizada, indolente,nãoconseguevencernavida.Dependiademim,adotarasbelasqualidades.Efiquei analisando os fatos. Os maus têm que desligar-se da maldade, paraencaixar-se neste mundo. Os desonestos, acatar a honestidade. Porque osdesonestossãoostiposquenãotêmconsciência,visamapenasoseubem-estar.Os fortes devem orientar e esclarecer os incientes, os ignorantes. Eu não tiveninguémparaguiar-menestavida.Oqueimpediu-medecairnoabismoforamaspalavrasdovovô:

— Vocês não devem roubar! O homem que rouba não mais tempossibilidades de reabilitar-se. Não devemos enganar os que nós depositamconfiança. Quando você entrar numa casa, deixe boas impressões, para vocêpoder voltar novamente e ser recebida com sorrisos.Os que apoderam-se dosbensalheiosestãocomprandosuaspassagensparavisitaroinferno.

Eunão tenhoa tendênciacleptomaníaca, entãoeuaindavouser feliz.Eunãoentreinomundopelasaladevisitas.Entreipeloquintal.Euiavencerporqueeraoutra.

Deixavaoleitoàscincohoras,iapreparararefeiçãomatinaldosdoentes.Otrabalhoerasuave,nãomecansava.Eoordenadomeincentivava.Eracomosetivessedeixadoumamansarda,parahabitarumamansão.

Demanhã,asfreirasiamnacozinha,mecumprimentavam:

—BênçãoemCristo,irmã.

—Parasempresejalouvado.

AfreiramaisamáveleraairmãMariaJosé.Quepersonalidade!Tinhatodasas qualidades que uma mulher sensata deve ter. Olhando-a eu pensava: “Elapodiaserumaboaesposaparaalguém.Poderiaserprofessora,jornalistaeatriz.”

Omeusonhoeracolocá-lanumaltar,eadorá-lacomosefosseumasanta.

Eu cuidava da cozinha como se fosse um nicho de ouro.Quando a irmãIrinéiaentrava,eunotavaqueelanãosimpatizavacomigo.Masnãomeatingiaasua frieza. Eu já estava aprendendo a olhar o lado prático da vida. E aqueleordenado me dominava como se fosse um freio. Ela elogiava a minhaantecessora, diziaque ela era engraçada.Aminha antecessora era a esposadoVitorio. O pretomais educado da cidade de Franca,mas estava preso porquedescobriramqueeleeraladrão.

AirmãIrinéiaperguntou-me:

—Asenhorajáfoinaigreja?

—Algumasvezes.

Respondimeioconfusa,porqueeujásabiaqueposterioraosinterrogatóriosvinha umaobservação.Eu tinha a impressão que estava numduelo, e deveriaficaremguarda.Prevenidaparareceberogolpe.

—Então a senhora já foi diversas vezes aos bailes e nas igrejas algumasvezes?

Silenciei.

Nãomefascinavaaquelapalestra.Prepareioalmoço.

Estava super contente porque no dia da minha folga minhas amigas meolhavamcominveja.Omeuordenadoeracomentadoemtodaacidade.

Minhamãesorriadizendo:

—Deusresolveuteajudar.Creioqueeleouviuasminhasorações.Asmãesnãogostamdeverosseusfilhossofrendo.

Quando recebi dei cinqüenta mil-réis para a minha mãe, ela voltou paraSacramento.Eeufiqueicomtrintamil-réis.Tinhaaimpressãoqueestavarica.

Dei um balanço nas minhas ilusões: eu pretendia comprar um palacete,comprar roupas finíssimas,umdesejo irrealizável.Eudeveria retirardaminha

menteaquelessonhosdegrandeza.Euqueriacomprarroupasparacompetircomas minhas primas. Eu estava deprimida por ter sofrido muito. Mas agora eudeveriaadotarumestilodevidaparamim.“Vouviverdentrodasminhaspossessem ostentação.Compreendendo que qualquer trabalho que executamos ficarámaissuavecomadedicação.”Pretendiaterumavaidadelimitada.

Nointervalo,eupediapermissãoàirmãparasair,fuicomprarumvestido.Quealegriainterior!Pretendiaterváriosvestidos.

A dona Agostinha fez o vestido. Godê. Que bom ver os nossos desejosrealizados!Aquelevestido tinhaoefeitodeumamagianomeusubconsciente.Erasemelhanteaumreconstituintenaminhavaidadefeminina.

Interrogavaamimmesma:“Seráquevouficarbonitaquandousá-lo?”Parausá-lo deveria comparecer numa festa. Ou usá-lo para passear com umnamorado.Eu estavaduplamente feliz.Agora sim, eupoderia comparecer nosbailessemconstrangimento.

Pegueiavassouraesaídançandonacozinha,queeraespaçosa.Eutinhaaimpressãoqueestavausandoomeuvestido.Quandorodopiei,encontreiosolhosda irmã Irinéia, fitando-me. Eram uns olhos grandes ovalados. Pretos ebrilhantes,comosefossemenvernizados.Pareiderepente,encosteiavassouraefuiveraspanelas.

Airmãdisse-me:

—Creioqueasenhoradeveriaserbailarina,enãocozinheira.

Esqueciovestido,asfestasedediquei-meaosmeusafazeres.

As irmãs estavam preparando-se para viajar para São Paulo, iam fazer oretiro.Eramseisirmãs,viajavamdeduasaduas.

Para ser sincera, comecei sentir falta das diversões, então decidi sair.Poderia ganhar menos em outra casa, mas poderia sair aos domingos, ir aocinema, e passear. Pedi a conta. Depois que deixei o emprego, compreendi aminhainsensatez...

ADolores,minhaprima,xingou-me:

—Vocêéburra.Idiota.Vocêestavaganhandoquasecemmil-réispormêsetevecoragemdesair.Temosqueaprenderaolharasvantagens.

Eu estava com dinheiro, fui concretizar o meu sonho. Fui ao cinema,usando o meu vestido novo. Fui visitar a dona Clélia, ela arranjou-me umempregonaresidênciadesuacunhada,adonaSalima.Lavarepassar.Cuidardacasa, quando ela estava na loja.Dias depois, o seu filho José viajou paraSãoPaulo,paraestudarnocolégioSírio-Brasileiro,naavenidaPaulista.

Pensei:“ÉemSãoPauloqueospobresvãoviver,éemSãoPauloqueosjovensvãoinstruir-separatransformar-senosbonsbrasileirosdeamanhã.”

Não avisei aos parentes onde estava trabalhando. E não saía porque oserviçoerademais.Euerasozinhaparacuidardetudo.

Um domingo fui visitar a Dolores, ela estava doente de novo, dos seusolhos escorria um líquido cor de leite. A enfermidade estava dominando-a.Fiqueicomdó.

Disse-me que havia recebido cartas de minha mãe. Que a polícia estavaespancandoomeu tioAntônio.Fiqueipensandonaminha família, eram todosanalfabetos,enãopoderiamvivernasgrandescidades.Eaúnicacoisaqueeupoderiafazerporeleseraterapenasdó.

Respondiacartademinhamãepedindoquenãofalasse.Ospobrestêmqueser afônicos.Viver no nosso país como se fôssemos estrangeiros.A ira da leicontranóseraagra.A leipodeser severa.Mascomumaassistência,podeserbenéfica. Prende-se uma criança mas obrigando-a a estudar. Prende-se umjovem,masensina-seumofício,reajustando-onasociedade.Seumhomemépaideumaprolenumerosa,opaíspodeauxiliá-loaeducarosfilhos—esteeraumdossonhosdosaudosoRuiBarbosa.Quediziaqueopovonecessitadeumlíderoudeumrei.Queumreimedíocreobrigaopovoatrabalharparacompletarasuaarca.Masumreisábiotrabalhaparaobem-estardoseupovo.Quequalquerumpodegovernarumpovocorretoeelevado.Queexcessodeliberdadeofuscaaautoridadeno lar,naescolaeno trabalho.Quealguémsempreéautoridadedealguém.Queumhomemélídernoseularcomaesposaeosfilhos,opatrãocomosempregados.Estaéumaregradahumanidade.

Trabalhei trêsmeses pára a dona Salima, ia ganhar quarentamil-réis pormês.Quandovenciaomêseutinhavergonhadecobrá-la.Quandocompletaram-

senoventadias,decidicobrá-la.Eladeu-meapenasdezmil-réis.Eudisse:

—Só?

Respondeu-me:

—Senãoestácontente,podedeixaraminhacasa.

Choreipensandonaquantidadederoupasqueeulavavaepassava.Cuidardo quintal, olhar a casa quando ela estava ausente. Não roubava. Cuidava detudocomosefossemeu.Decidiprocuraroutroemprego.Oudeixarointerior.

Pretendia encontrar um trabalho commelhor remuneração. Eu tinha queaprenderareagir,aexigirrespeitonoscontratosdetrabalho.Masnãotinhacasaejáestavacansandodaminhavidaandarilha.

Apatroaeraestrangeira,eeunacional.Eunãopodiacompetircomela.Elaerarica,eeupobre.Elapodiamandarprender-me.Continueitrabalhando.

A patroa sorria dizendo que havia encontrado uma idiota que trabalhavaquase de graça. Depois do jantar eu saía andando pela cidade, procurandoemprego.Euestavasã.Nãohaviaobstáculoparavedar-me.

Indicaram-me uma professora que estava procurando uma criada para virparaSãoPaulo.Fuiprocurá-la,elaaceitou-me.Quealegria!Volteicorrendo,fuipreparar as minhas roupas. Não avisei à patroa que ia sair, ela já havia medespedido.

Atéqueenfim,euiaconheceraínclitacidadedeSãoPaulo!Eutrabalhavacantando,porque todas aspessoasquevão residirna capital doestadodeSãoPaulorejubilamcomosefossemparaocéu.

Nodiadaviagem,nãodormiparanãoperderohorário.Otremsaíaàssetehoras,maseuchegueinaestaçãoàscincohoras.Quealegriaquandoembarquei!

Quandochegueiàcapital,gosteidacidadeporqueSãoPauloéo eixodoBrasil. E a espinha dorsal do nosso país. Quantos políticos! Que cidadeprogressista.SãoPaulodeveserofigurinoparaqueestepaíssetransformenumbomBrasilparaosbrasileiros.

Rezava agradecendo a Deus e pedindo-lhe proteção. Quem sabe iaconseguirmeios para comprar uma casinha e viver o resto demeus dias comtranqüilidade...

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ESTAOBRAFOIIMPRESSANAPROLEDITORAGRÁFICALTDA.,PARAA EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A., EM SETEMBRO DE MILNOVECENTOSEOITENTAESEIS.

Nãoencontrandoestelivronaslivrarias,pedirpeloReembolsoPostalàEditoraNovaFronteiraS.A.—RuaBambina,25—Botafogo—CEP22251—RiodeJaneiro

TableofContents1INFÂNCIA2ASMADRINHAS3AFESTA4SERPOBRE5UMPOUCODEHISTÓRIA6OSNEGROS7AFAMÍLIA8ACIDADE9MEUGENRO10AMORTEDOAVÔ11AESCOLA12AFAZENDA13RETORNOÀCIDADE14DOMÉSTICA15ADOENÇA16AREVOLUÇÃO17ASLEISDAHOSPITALIDADE18

ACULTURA19OCOFRE20MÉDIUM21APATROA22SERCOZINHEIRA