DISCRICIONARIEDADE E PRINCÍPIOS NA … · contemporaneidade é examinada sob a óptica do ......

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SÉRGIO SILVEIRA BANHOS DISCRICIONARIEDADE E PRINCÍPIOS NA HIPERMODERNIDADE MESTRADO EM DIREITO PUC/SP SÃO PAULO 2007

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SÉRGIO SILVEIRA BANHOS

DISCRICIONARIEDADE E PRINCÍPIOS NAHIPERMODERNIDADE

MESTRADO EM DIREITO

PUC/SP SÃO PAULO

2007

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SÉRGIO SILVEIRA BANHOS

DISCRICIONARIEDADE E PRINCÍPIOS NAHIPERMODERNIDADE

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São Pau-

lo, como exigência parcial para obtenção do tí-

tulo de MESTRE em Direito do Estado, sob a

orientação da Professora Doutora Lucia Valle Fi-

gueiredo.

PUC/SP SÃO PAULO

2007

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Banca Examinadora

_____________________________________

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DEDICATÓRIA

Aos meus filhos Pedro e Tiago.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço inicialmente à professora Lucia Valle Figueiredo, pelo exemplo

profissional e pela dedicação a todos dispensada nas memoráveis aulas dos Cursos de

Direito Administrativo I e II que tivemos a honra e o privilégio de participar, bem assim

pela acurada orientação prestada na confecção deste trabalho.

Obrigado a Osíris de Azevedo Lopes Filho, a Tarcisio Vieira de Carvalho,

a Carlos Mário Velloso Filho, a José Luiz Simão, a Ricardo Knoepfelmacher, a Fernan-

do Canhadas e a Othon de Azevedo Lopes, amigos e partícipes nesta laboriosa jorna-

da.

Agradeço aos meus pais, Reny e Sérgio, pela dedicação e pelo amor in-

condicionado que dedicaram a mim e a minha irmã Ângela.

Por fim, sou particularmente grato à amada Isabel, companheira há 24

anos, exemplo de profissional, esposa e mãe.

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RESUMO

Esta dissertação demonstra a recente tendência doutrinária e jurisprudencial ob-

servada no Direito da hipermodernidade, que indica efetiva diminuição da parcela

de discricionariedade nos atos da Administração Pública, a partir da aplicação in-

tegrada de princípios e regras. Da tradicional abordagem puramente legalista

passa-se atualmente para uma visão mais abrangente na teoria do Direito como

Integridade, de RONALD DWORKIN, mediante a qual não só normas, mas também

princípios, devem ser analisados de maneira sistêmica, integrada. Dado isso, a

obra de DWORKIN é a base teórica de apoio às questões instigadas por todo este

estudo, porque a aplicação integrada de princípios e regras se tornou essencial à

busca do ideal de justiça, trazendo novo enfoque quanto ao papel do Direito Ad-

ministrativo nesta ambiência de profundas e rápidas transformações típicas da hi-

permodernidade. Considerada a nova concepção da separação dos poderes, o

princípio da legalidade estrita, por encerrar uma fórmula de contenção do exercí-

cio do poder estatal, deve ser contraposto a outros princípios constitucionais de

igual relevo, observado o caso concreto. A acepção clássica da discricionarieda-

de, assim, encontra-se de vez superada. O controle jurisdicional desses atos não

é só possível, mas imprescindível num Estado Democrático de Direito. A síntese

desse novo paradigma para o Direito Administrativo é clara e deve pautar a agen-

da dos administradores na contemporaneidade: os administrados são os efetivos

destinatários dos direitos e das garantias constitucionais. A técnica de pondera-

ção dos princípios contrapondo valores nos casos considerados já faz parte da

realidade da jurisprudência da hipermodernidade, que se encontra sintonizada

com o neopositivismo e com a teoria do Direito como Integridade.

INDEXAÇÃO: Hipermodernidade; Princípios; Direito como Integridade; Devido

Processo Legal; Separação de Poderes, Legalidade Estrita; Neopositivismo; Dis-

cricionariedade; Conceitos Jurídicos Indeterminados; Ato Político; Controle Judici-

al; Limites do Controle; Conseqüências para o Direito Administrativo; Ponderação;

Jurisprudência da Hipermodernidade.

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ABSTRACT

This thesis addresses the recent doctrinal and jurisprudential tendency observed

in the law in the context of hypermodernity, which indicates an effective reduction

in the use of discretionality in administrative acts as a result of the integrated ap-

plication of principles and rules. The traditional legalistic approach is currently giv-

ing way to a more wide-ranging view, exemplified in Ronald Dworkin’s theory of

law as integrity through which not only rules, but also principles themselves,

should be subjected to a systemic, integrated analysis. Given this, Dworkin’s work

forms the theoretical platform for the questions raised by this entire study, since

the integrated application of principles and rules has become fundamental in the

pursuit of the ideal of justice, bringing a new focus on the role of administrative law

in an environment of deep and rapid change that typifies hypermodernity. Consid-

ering the new concept of the separation of powers, the notion of strict legality, by

presupposing a means of controlling the exercise of State power, must be set

against other constitutional principles of equal importance, taking into account the

particularities of each case in question. In this context, the traditional concept of

discretionality is outmoded. Jurisdictive control of these acts is not only possible,

but also absolutely essential in a democratic state of law. The synthesis of this

new paradigm for administrative law is clear and should be an indissoluble part of

administators’ agenda in contemporary society: citizens are the effective benefici-

aries of constitutional rights and guarantees. The technique of balancing principles

by assessing their values in the particular case is already part of the jurisprudence

of hypermodernity, which is in synchrony with neopositivism and the theory of law

as integrity.

KEY WORDS: Hypermodernity; Principles; Law as Integrity; Due Process of Law;

Separation of Powers; Strict Legality; Neopositivism; Discretionality; Indeterminate

Legal Concepts; Political Acts; Judicial Control; Limits of Control; Consequences

for Administrative Law; Balancing; Jurisprudence of Hypermodernity.

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SUMÁRIO

Introdução p. 09

Capítulo – Hipermodernidade e Direito p. 12

1.1 – Princípios na hipermodernidade p. 16

1.2 – Justiça e hipermodernidade p. 23

1.3 – Direito Administrativo na hipermodernidade p. 26

1.4 – Ronald Dworkin e a hipermodernidade p. 28

Capítulo 2.º – Estado Democrático de Direito e Di reito como Integridade p. 30

2.1 – Uma nova concepção do princípio do devido processo legal p. 34

2.2 – A separação dos poderes e a contemporaneidade p. 38

2.3 – A legalidade e os novos tempos p. 42

2.4 – Neopositivismo e Direito como Integridade p. 45

Capítulo 3.º – Discricionariedade na hipermoderni dade p. 49

3.1 – O Direito como Integridade e a discricionariedade p. 51

3.2 – Poder vinculado e poder discricionário p. 53

3.3 – A nova concepção da discricionariedade administrativa p. 55

3.4 – Os conceitos jurídicos indeterminados e os atos políticos p. 56

3.5 – Atos discricionários e controle jurisdicional p. 60

3.6 – Os limites na apreciação jurisdicional da discricionariedade p. 64

3.7 – Conseqüências para o Direito Administrativo p. 68

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Capítulo 4.º – Interpretação, jurisprudência e hi permodernidade p. 72

4.1 – A técnica da ponderação p. 74

4.2 – O papel da Administração moderna p. 76

4.3 – A construção da jurisprudência da hipermodernidade p. 78

4.4 – Caso 1: A contraposição do princípio da legalidade estrita com p. 79a cláusula do devido processo legal e com princípio da digni-dade da pessoa humana – A redução da discricionariedadenos atos relativos à nomeação nos concursos públicos

4.5 – Caso 2: A contraposição do princípio da legalidade estrita com p. 92O princípio da proteção à confiança, considerado o conceitojurídico indeterminado da “boa-fé”:

4.6 – Caso 3: A visão integrada de princípios e direitos fundamentais p. 101em contraposição ao princípio da legalidade estrita. A reduçãoda discricionariedade nos atos políticos

Síntese Conclusiva p. 109

Bibliografia p. 114

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INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é demonstrar a recente tendência

doutrinária e jurisprudencial observada no Direito da hipermodernidade, a assina-

lar uma efetiva diminuição da parcela de discricionariedade nos atos da Adminis-

tração Pública. Tal se dá a partir da aplicação integrada de princípios e regras. Da

tradicional abordagem legalista passa-se, nos tempos de hoje, a uma visão mais

abrangente na tônica da teoria do Direito como Integridade, de RONALD DWORKIN,

mediante a qual não só as normas, mas também os princípios, devem ser anali-

sados, consideradas as peculiaridades do caso concreto de maneira sistêmica,

integrada. A obra de DWORKIN, por essa razão, permeará todos os capítulos do

presente estudo, buscando conferir força teórica a dar sustentação a argumentos

e conclusões desafiados no texto. É que a aplicação integrada de princípios e re-

gras tornou-se essencial na busca do ideal de justiça, trazendo novo enfoque

quanto ao papel do Direito Administrativo neste ambiente de profundas e rápidas

transformações, típico da hipermodernidade.

Considerada a nova concepção da separação dos poderes, o princí-

pio da legalidade estrita, por ser princípio que encerra fórmula de contenção do

exercício do poder estatal, de observância essencial, é examinado à luz do Direito

da hipermodernidade, que, na sua visão integrada, neopositivista de essência,

indica a total possibilidade de experimentar sua aplicação sopesada pela de ou-

tros princípios constitucionais de igual relevo, considerado o caso concreto.

A acepção clássica da discricionariedade, assim, encontra-se de vez

superada. O controle jurisdicional desses atos é possível e necessário num Esta-

do Democrático de Direito. A síntese desse novo paradigma para o Direito Admi-

nistrativo é clara e deve pautar a agenda dos Administradores na contemporanei-

dade: os administrados são os efetivos destinatários dos direitos e garantias

constitucionais.

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Em contraposição ao princípio da legalidade, de forma estrita consi-

derado, parte-se hoje para a ponderação deste com outros princípios de igual re-

levo, tais como o do devido processo legal, da segurança jurídica, da proteção à

confiança, da dignidade da pessoa humana, entre outros. A técnica de pondera-

ção, contrapondo valores nos casos considerados, já faz parte da realidade da

jurisprudência da hipermodernidade, que se encontra sintonizada, portanto, com o

neopositivismo e com a teoria do Direito como Integridade.

No Capítulo 1.º, o Direito na hipermodernidade é analisado sob di-

versos matizes. Após uma abordagem introdutória sobre a evolução dos tempos

do Direito, passando pela distinção conceitual existente entre os diversos tipos de

normas jurídicas, a importância da aplicação integrada de princípios e regras na

contemporaneidade é examinada sob a óptica do ideário de justiça que se busca

na atualidade. Segue-se, ao fim, nota prefacial a respeito da teoria do Direito

como Integridade, de DWORKIN, a título de introduzir a matéria, que, como assina-

lado, entremeia todos os capítulos do presente trabalho.

Já no Capítulo 2.º, a origem e a evolução da cláusula do devido pro-

cesso legal é analisada sob o enfoque do Estado Democrático de Direito, passan-

do-se, após, ao exame da sua acepção substantiva, traduzida pelos seus ele-

mentos integradores, os quais corroboraram de forma significativa para a evolu-

ção da garantia dos direitos fundamentais. Na seqüência, considerada a nova

concepção da separação dos poderes, a legalidade estrita é examinada sob a

lente do Direito da hipermodernidade, que indica a total possibilidade de experi-

mentar a sua aplicação ponderada com outros princípios constitucionais de igual

relevo.

No Capítulo 3.º, por sua vez, traz-se notícia da discricionariedade

atual. Enquanto a primeira parte versa sobre a acepção clássica daquilo que se

entende por atos discricionários e vinculados, a segunda faz referência à recente

concepção doutrinária da discricionariedade administrativa, considerados, inclusi-

ve, os conceitos jurídicos indeterminados e os atos políticos. Na última parte, o

controle jurisdicional desses atos e os limites da apreciação da discricionariedade,

bem como as conseqüências desse novo paradigma para o Direito Administrativo

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são apreciadas.

Por fim, no Capítulo 4.º, a matéria referente às novas técnicas de

interpretação, que incluem a ponderação de princípios, será enfrentada, momento

em que trazidos à discussão três casos buscados da recente jurisprudência das

Cortes Superiores, que abordam o princípio da legalidade estrita em contraposi-

ção a outros princípios constitucionais de igual matiz, à moda do Direito como In-

tegridade de DWORKIN, com a finalidade de se dar comprovação à hipótese desa-

fiada nesta dissertação.

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1.º CAPÍTULO

HIPERMODERNIDADE E DIREITO

As transformações na organização do Estado costumam ser acom-

panhadas pelo desenvolvimento das instituições que integram o sistema de Di-

reito. Estado e Direito encontram-se relacionados de maneira dinâmica e coorde-

nada. Os tempos do Estado devem, portanto, corresponder aos tempos do Direi-

to, dado ser no sistema jurídico que o Estado se legitima para o exercício do po-

der.

No século XX, o Direito atravessou:

a) a pré-modernidade - caracterizada pelo Estado Liberal;

b) a modernidade - representada pelo Estado Social;

c) a pós-modernidade - traduzida pelo Estado Neoliberal.

No século XXI, autores como ROBERTO DROMI (2005) preferem en-

tender presente uma nova etapa do Direito, a da hipermodernidade. Vale salientar

que LUÍS ROBERTO BARROSO (2006) e CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO (2005)

preferem preservar a expressão pós-modernidade para designar este momento

de tantas transformações sociológicas, culturais, econômicas e geopolíticas. Para

justificar a denominação hipermodernidade, DROMI assevera que já no início deste

milênio expressivos acontecimentos alcançaram tamanho significado que geraram

conseqüências históricas concretas, demandando daí um novel elenco de res-

postas aos Estados. Em acordo com DROMI, o terrorismo internacional, a corrup-

ção endêmica e as catástrofes ambientais revelam a chegada desta fase do Di-

reito.

A globalização, o liberalismo econômico, o hiperconsumo, a fluidez e

a alta capilaridade das mídias de comunicação, a crise nos sistemas de saúde e

de previdência, a preocupação crescente com o mercado de trabalho e a segu-

rança pública - entre outros problemas inobstante herdados da pós-modernidade -

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parecem estar mais presentes na alvorada deste novo século, tornando-se uma

trágica realidade em praticamente todos os Estados contemporâneos.

Em face das preocupações típicas da lógica atual, a hipermoderni-

dade apresenta como desafio maior a busca pela renovação da defesa dos direi-

tos do homem relativamente ao Estado, mediante a utilização de outra aborda-

gem hermenêutica, com o objetivo de buscar a melhor realização do Direito. Mas

quais seriam os instrumentos de transformação disponíveis na hipermodernida-

de? - A prudência política referendada pela experiência histórica, segundo DROMI,

permite asseverar que não existe melhor forma de defender a liberdade individual

que o Direito entendido como ferramenta de limite de poder.

BARROSO (2006:2) não se opõe à preferência pela expressão pós-

modernidade e concorda que se vive uma época pautada na descrença no poder

absoluto da razão, no desprestígio do Estado, na velocidade, na imagem acima

do conteúdo, em que o efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o

essencial. Vive-se hoje, nas palavras deste constitucionalista, “a angústia do que

não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem verdades seguras. Uma época

aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós-freudiana”.

A essas transformações o Direito não pode restar indiferente. A

paulatina globalização aproximou, juntamente com as pessoas, os ordenamentos

jurídicos que regem diferentes nações, levando à inevitável comparação entre as

realidades, ampliando as exigências dos cidadãos. O desenvolvimento de Esta-

dos Comunitários, sobretudo os do contexto europeu, a reformulação do conceito

de separação de poderes, a conversão das Constituições formais em materiais

são motivações extras para a adequação do Direito à hipermodernidade.

O Direito, a ferramenta correta e disponível para responder às

questões ora veiculadas, é pleno de cenários diversificados mediante o estabele-

cimento de uma mais bem elaborada legislação, compatível com os novos tempos

ou por intermédio da aplicação de novel conjunto de técnicas de interpretação

jurídica. Na mesma linha de pensamento, SIQUEIRA CASTRO (2005:15) assinala

que os novos tempos no Direito demandam uma abordagem material das Consti-

tuições. Tal fenômeno retrata a assimilação, pelas Cartas, das complexas rela-

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ções socioeconômicas que tipificam o mundo contemporâneo. Entende esse autor

que o constitucionalismo clássico debilitou-se, não havendo outro caminho a se-

guir, porque:

(...) o convívio humano foi impactado pelo avanço tecnológico emtodas as frentes do conhecimento, pela insurgência de novos valo-res e direitos que passaram a integrar o receituário axiológico dademocracia de massas e, ainda, pelas transformações do proces-so político permeável às condicionantes de uma nova ordem in-ternacional que, longe de estabilizar o convívio das nações e me-lhorar a qualidade de vida dos povos do planeta, apresenta novosdesafios e angústias para a humanidade.

O constitucionalismo clássico - iluminista de origem, com raiz liberal

e individualista, típico do século XVIII - quedou vulnerável aos novos tempos. Há

que se notar que a tônica desse modelo clássico não ia além da organização do

Estado fundada na concepção da separação dos poderes com vistas a assegurar

um pretendido equilíbrio, bem como na fixação de um elenco de direitos e garan-

tias individuais para consubstanciar a essência do ideário das Constituições da-

queles tempos.

No preâmbulo do terceiro milênio abre-se um novo receituário de di-

reitos já exaltados na Constituição de 1988, mas agora reclamados na razão di-

reta dos conflitos que emergem do meio social. No afã de prover respostas às

demandas sociais percebe-se, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, um re-

cente fenômeno traduzido na aplicação integrada de princípios e regras. O objeti-

vo deste modelo não é apenas a superação da tradicional divisão entre o domínio

do Estado e o da coletividade, que pautou a separação entre o Direito Público e o

Direito Privado, mas promover a reformulação do próprio Direito a partir da con-

cepção conferida ao Direito Público, em especial ao Direito Administrativo, que

impõe a implementação de uma agenda para um novo tempo, a ser seguida por

legisladores, juízes e, acima de tudo, pela própria Administração.

O Direito Administrativo, pois, vê-se obrigado a adequar-se a um

novo mundo, para manter-se em dia com as exigências dos administrados. Na

hipermodernidade - mais do que nunca - enquanto o Direito Constitucional impõe

pautas e fixa critérios, o Direito Administrativo deve aplicá-las diariamente como

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Na hipermodernidade o Direito tem como desafio uma perspectiva: ir

além do mero pós-modernismo conceitual para alcançar a idéia de Constituição

viva, construída a partir da visão de uma sociedade aberta, pluralista, democráti-

ca, tolerante, estabelecida como compromisso de esperança. Trata-se de uma

abordagem humana voltada mais para a sociedade do que para o Estado. Neste

contexto descortinam-se temas palpitantes para a hipermodernidade, por meio

dos quais poderão ser enfrentadas as questões e os problemas do mundo con-

temporâneo, num enfoque que merece ser corajoso e transformador.

1.1 Princípios na hipermodernidade

TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR (apud GERALDO ATALIBA, 2004:16)

assevera que “uma Constituição não é apenas o seu texto, mas é, principalmente,

uma prática”. Da mesma forma, dizia RUY, um país não há de ser julgado pela sua

Constituição, mas segundo o modo pelo qual a coloca em prática. Buscar a reali-

zação dos princípios trazidos na Constituição para assegurar-lhes eficácia é tor-

nar efetivos os seus desígnios. É para dar eficácia ao texto constitucional que os

princípios assumem papel de relevo, mormente quando interpretados uns em

contraposição a outros, em uma abordagem sistêmica e integrada realizada a

partir da ponderação de valores ínsitos a cada um deles, consideradas as parti-

cularidades do caso concreto na essencial busca do ideal de justiça.

Mas qual é a efetiva diferença entre princípios e regras? Por que tal

diferença tem total significado na procura da justiça? - Para a tarefa de diferenciar

princípios de regras, missão particularmente complexa, como bem pontuou JOSÉ

JOAQUIM GOMES CANOTILHO (1999), vale a referência a seus critérios gerais de di-

ferenciação:

a) grau de abstração: os princípios são normas com grau de abstra-

ção relativamente elevado;

b) grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto: os prin-

cípios, em razão de sua natureza vaga e indeterminada, ao contrário das regras,

não são susceptíveis de aplicação direta;

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c) caráter de fundamentalidade no sistema das fontes do direito: os

princípios, face à sua posição hierárquica no sistema das fontes, têm papel fun-

damental no ordenamento jurídico;

d) proximidade da idéia de Direito: os princípios são standards juridi-

camente vinculantes radicados nas exigências de justiça (RONALD DWORKIN) ou na

idéia de Direito (KARL LARENZ), sendo certo que as regras são normas vinculativas

com um conteúdo meramente funcional;

e) natureza normogenética: os princípios são normas que estão na

base (ratio) de regras jurídicas.

Em suma, princípios são normas qualitativas distintas de regras jurí-

dicas, porquanto, diferentemente destas, permitem o balanceamento de valores e

interesses considerados no caso concreto consoante seu peso e a ponderação a

se realizar com outros princípios. Os princípios, de acordo com AGUSTÍN GORDILLO

(1966), representam ao mesmo tempo norma e diretriz do sistema, informando-o

visceralmente. As regras, noutro passo, obedecem à lógica do tudo ou nada.

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No caso dos constitucionalistas brasileiros, BARROSO (2003) assinala

que a dogmática moderna entende que as normas em geral e as normas constitu-

cionais (em particular) enquadrar-se-iam em duas grandes categorias: os princípi-

os e as regras. As regras conteriam relato mais objetivo, com incidência restrita às

situações específicas a que se dirigem. Os princípios teriam maior teor de abstra-

ção e uma finalidade mais destacada no sistema. De qualquer sorte - em home-

nagem ao princípio da unidade da Constituição - inexistiria hierarquia entre eles,

não impedindo o fato de princípios e regras desempenharem funções distintas

dentro do ordenamento.

SIQUEIRA CASTRO (2005:55) comenta a questão da eficácia dos prin-

cípios e das regras, trazendo a lume a lição de ROBERT ALEXY (1983) de que prin-

cípios são normas dotadas de alto grau de generalidade, enquanto que regras,

sendo também normas, apresentam um grau relativamente baixo de generalida-

de. A conseqüência disso é que a carga de eficácia jurídica dos princípios se tor-

na difusa e indeterminada, traduzindo daí uma multiplicidade de meios para efeti-

vá-los. No caso dos princípios descortinam-se vários caminhos para atingir os

efeitos pretendidos pelo sistema jurídico. Diferem das regras, que apresentam

âmbito de eficácia jurídica já definido e delimitado em seu suporte fático.

Para SIQUEIRA CASTRO (2005:54), embora haja opiniões contrárias,

os princípios apresentam força vinculante, ainda que temperada, uma vez que

“tanto o preceito, quanto o princípio, enquanto espécies do gênero normas jurídi-

cas, são mandados constringentes, isto é, comandos deontológicos providos de

imperatividade”.

A questão não é pacífica, todavia. Conferindo destaque à distinção

de cunho qualitativo entre normas e princípios, ALEXY (1983:86-87) sustenta que a

maior diferença entre tais espécies normativas reside em que os princípios são

normas que determinam que alguma coisa venha a realizar-se na maior medida

possível, de acordo com as possibilidades jurídicas e reais existentes, diferente-

mente das regras, que se aplicam à lógica do “ou isto ou do aquilo”, isto é, se a

regra é válida e incide em determinado caso, deve ser aplicada em sua totalidade:

nem mais, nem menos. Confira-se:

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O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é queos princípios são normas que ordenam que algo seja realizado namelhor medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e re-ais existentes. Portanto, os princípios são mandados de otimiza-ção que estão caracterizados pelo fato que podem ser cumpridosem diferentes graus e que a medida de seu cumprimento dependenão só das possibilidades reais mas também das jurídicas. O âm-bito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios eregras opostos. De outro lado, as regras são normas que só po-dem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então deve fa-zer-se o que ela exige, nem mais nem menos. Portanto, as regrascontêm determinações no âmbito do fático e juridicamente possí-vel. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é quali-tativa e não de grau. Toda norma ou é uma regra ou é um princí-pio.

Com o mesmo viés de idéias, mas inserido no contexto da “common

law”, RONALD DWORKIN (2002) deduz que ao contrário do que se dá com os princí-

pios, as regras se aplicam “in a all or nothing fashion way”, num cenário de “tudo

ou nada”.

Escreve DWORKIN (2002:39-43):

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natu-reza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisõesparticulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias espe-cíficas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação queoferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada.Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida,e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não éválida, e neste caso em nada contribui para a decisão.

E complementa:

Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo umaoutra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras nãotêm – a dimensão de peso ou importância. Quando os princípiosse intercruzam (...), aquele que vai resolver o conflito tem de levarem conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por cer-to, uma mensuração exata e o julgamento que determina que umprincípio ou uma política particular é mais importante que outrafreqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essadimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, demodo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão impor-tante ele é.

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Assim, para RONALD DWORKIN, regras são proposições normativas

aplicáveis sob a forma de “tudo ou nada”. Se os fatos nelas previstos ocorrem, a

regra deve incidir de modo direto e automático e produzir seus efeitos. O coman-

do é objetivo e não dá margem a elaborações mais sofisticadas acerca de sua

incidência. A aplicação de uma regra se dá, predominantemente, mediante sub-

sunção, sendo certo que ela somente deixará de incidir sobre a hipótese se for

inválida, se houver outra mais específica ou se não estiver em vigor. Os princípios

normalmente contêm maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão

política relevante e indicam uma determinada direção a seguir.

Para DWORKIN, verificada a hipótese de incidência previamente des-

crita no texto da norma, aplicar-se-á a regra à espécie. Não verificada a hipótese

de incidência, a regra não incidirá e não deverá ser aplicada. De outra forma, no

caso dos princípios, por serem normas de elevado grau de generalidade, revelam-

se de profícua capacidade para legitimar novas valorações e novas aplicações,

considerados os casos concretos.

A generalidade, portanto, dá tônica aos princípios. Isto porque prin-

cípios, quando contrapostos mediante uma atividade de ponderação dos interes-

ses em questão, possibilitam maior ou menor realização de cada um desses indi-

vidualmente considerados, conforme as possibilidades materiais do caso, sem

que um deles exclua ou elimine o outro. Há uma ponderação de valores vetoriais,

quando analisado o caso concreto.

A atividade de ponderar, a ser tratada mais detalhadamente no 4.º

Capítulo, pode ser sinteticamente descrita como uma técnica de decisão própria

para os casos difíceis (“hard cases”), em relação aos quais o raciocínio tradicional

da subsunção não se mostra adequado2. Daí a importância de uma abordagem

que valorize a aplicação dos princípios, em especial quando entra em jogo algo

2

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21

mais que a idéia de validade, isto é, a idéia de valor, de justiça. Ou seja, a convi-

vência das regras é excludente, no caso de disputa uma exclui a outra. No caso

dos princípios, não obstante a convivência ser complexa, tem ela índole inclusiva,

não elimina do sistema jurídico o princípio não aplicado. Os princípios coexistem

embora entrem em disputa, enquanto as regras contrárias excluem-se reciproca-

mente pelo método da subsunção do tipo fático à norma jurídica.

A colisão de princípios não só é possível como faz parte da lógica do

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Já CARLOS ARI SUNDFELD (2005:146) entende que:

O princípio jurídico é norma de hierarquia superior à das regras,pois determina o sentido e o alcance destas, que não podem con-trariá-lo, sob pena de pôr em risco a globalidade do ordenamentojurídico. Deve haver coerência entre os princípios e as regras, nosentido que vai daqueles para estas.

BANDEIRA DE MELLO (1981:236) chega a ponto de assinalar que a

eventual violação de um princípio seria ainda mais penosa para o sistema jurídico

do que a desobediência de uma regra:

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma.A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um espe-cífico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de coman-dos. E a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade,conforme o escalão do princípio violado, porque representa insur-gência contra todo o sistema, subversão dos seus valores funda-mentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corro-são de sua estrutura mestra.

Por fim, GERALDO ATALIBA (2004:34), leciona que os princípios nada

mais são do que “linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sis-

tema jurídico, apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obri-

gatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos)”.

A título de síntese vale registrar que um modelo constituído exclusi-

vamente por regras conduz a um sistema jurídico de limitada racionalidade práti-

ca, que exige uma disciplina legislativa exaustiva e completa, com a pretensão – e

a imperfeição – de fixar, em termos definitivos, as premissas e os resultados das

regras jurídicas. Noutro aspecto, a excessiva valorização de princípios, em detri-

mento das regras, não traz a segurança jurídica almejada para o sistema, vez que

deixaria ao governo dos homens a responsabilidade de solver, a partir de intelec-

ção revestida de inegável subjetividade, os deslindes das controvérsias postas

pela coletividade. A solução mais uma vez está nas máximas basilares do Direito:

bom senso e prudência.

Munidos de bom senso e prudência, pois, deve-se conjugar a aplica-

ção no direito contemporâneo de regras e princípios, sopesando uns em relação a

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outros, numa visão sistêmica e integrada, porque como assinala FERRARA (apud

ATALIBA, 2004:28) um princípio jurídico não existe isolado, mas em íntima conexão

com outros princípios e com as regras, sendo certo que “o direito objetivo, de fato,

não é um aglomerado caótico de disposições, mas um organismo jurídico, um

sistema de preceitos coordenados e subordinados, no qual cada um deles tem um

lugar próprio”.

1.2 Justiça e hipermodernidade

Como entender necessária a aplicação na hipermodernidade dos

princípios na busca do ideal de justiça? - Na expressão de BARROSO (2006:28), “o

Direito, a partir da segunda metade do século XX, já não cabia mais no positivis-

mo jurídico”. Com efeito, a extrema vinculação entre Direito e norma, sem uma

rígida atenção à ética, não mais correspondia ao estágio do processo de desen-

volvimento social da humanidade.

Não se tratava de um mero - e refutado - retorno ao jusnaturalismo,

caracterizado pelos fundamentos vagos, abstratos ou metafísicos. Ao contrário, o

denominado neopositivismo surgiu para atender aos anseios coletivos, não com o

ímpeto da desconstrução absoluta dos conceitos positivistas em vigor, mas com a

intenção de revigorar, respeitado o ordenamento positivo em vigência, as idéias

de justiça e legitimidade. O Direito na hipermodernidade intenta, portanto, promo-

ver a volta aos valores clássicos, a reaproximação entre a ética e Direito; prestigia

a aplicação dos princípios, mas preserva o ordenamento positivo posto.

É que os valores materializados nos princípios abrigados na Consti-

tuição de maneira explícita ou implícita iluminarão a compreensão da Carta a ser

entendida como sistema aberto, assente, como refere CANOTILHO (1999:1099),

“em princípios estruturantes fundamentais que, por sua vez, assentam em sub-

princípios e regras constitucionais concretizadores desses mesmos princípios”.

A aplicação do Direito deve-se dar à luz do texto constitucional em

vigor, composto por regras e princípios de diferentes graus de concretização. A

novel missão na hipermodernidade será, pois, respeitando o sentido histórico,

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político e jurídico da Carta, buscar sua integração à realidade atual, com os an-

seios da contemporaneidade. De notar, nesse passo, que nem todos os princípios

ora em voga são novos. Uns, explica BARROSO (2006:28), existiam, mas experi-

mentam fragorosa evolução:

(...) alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdadee a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados.Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram no-vas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado demo-crático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporarammais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova di-mensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilida-de, da solidariedade e da reserva de justiça.

Logo, a novidade do Direito na hipermodernidade não é a existência

de princípios e seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios,

vindos de textos religiosos e filosóficos, de há muito permeiam a realidade do Di-

reito. O que é singular na dogmática jurídica nestes novos tempos, segundo o

constitucionalista, é o reconhecimento de sua normatividade. No que diz com

essa alegada normatividade, valem as palavras de CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA

(1994:26):

Em sua natureza jurídica, os princípios constitucionais têm norma-tividade incontestável, quer dizer, contêm-se nas normas jurídicasdo sistema fundamental. Estas normas, nas quais residem osprincípios constitucionais, são superiores a quaisquer outras, emrazão do conteúdo expressa ou implicitamente nelas formalizados(...). Assim, o princípio constitucional predica-se diferentemente dequalquer outro princípio ou valor prevalente na sociedade, masnão jurisdicizado, por carecer da normatividade que o torna impo-sitivo ao acatamento integral. Esta qualidade talvez represente omaior avanço a que chegou o constitucionalismo contemporâneo,pois a normatividade dos princípios alterou a face e o coração doconceito de Constituição. A norma que dita um princípio constitu-cional não se põe à contemplação, como ocorreu em períodos su-perados do constitucionalismo; põe-se à observância do próprioPoder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se sub-metem e da qual participam.

Dessa normatividade, segundo ROCHA (1994:59), advém a super-

constitucionalidade dos princípios, traduzida no fato de que sua eventual inobser-

vância gerará “conseqüências jurídico-constitucionais mais sérias que aquelas

decorrentes do descumprimento de regulações jurídicas". Na opinião de SIQUEIRA

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CASTRO (2005:49-50), por sua vez, a busca da aplicação de princípios nos tempos

de hoje justifica-se porque:

(...) num sistema axiológico-teleológico, onde as normas jurídicasnão são um amontoado desconexo, onde elas, segundo KARLLARENZ, ‘não estão desligadas umas das outras, mas estãonuma conexão multímoda’, e numa conexão, acrescente-se, deimbricação deontológica, a função catalogatória do aplicador danorma perde relevo”. Neste tipo de sistema, que é móvel, flexívele que se abre e se mantém sempre permeável para acolher novasconfigurações da vida, e no qual são possíveis tanto mutações naespécie do jogo concertado dos princípios, do seu alcance e limi-tação recíproca, como também a descoberta de novos princípios,a função axial do jurista é a de traçar novas valorações, novas co-nexões de sentido e novas cadeias de regulação entre normas(preceptivas ou principiológicas, escritas ou não escritas).

Num tal contexto, observada a natureza aberta do sistema jurídico,

impõe-se aos atores envolvidos a tarefa de encontrar, justificadamente, a solução

mais adequada às controvérsias postas pelo mundo contemporâneo, revestida do

que a sensibilidade humana reconhece como justiça. No Brasil, o caráter de pres-

tígio dado aos princípios pela Carta de 1988 denota a flagrante opção do Consti-

tuinte por um sistema jurídico tipicamente aberto no qual convivem regras e prin-

cípios. Impõe-se hoje a todos – administradores e administrados, governantes e

governados, Estado e sociedade – empenharem-se na integração sistêmica de

regras e princípios.

Não se trata de tarefa fácil. Representa, todavia, matéria que traduz

quiçá o mais profícuo debate jurídico dos tempos de agora, que dada a sua vasti-

dão e o seu relevo, deverá pautar a agenda dos próximos anos. O desafio lança-

do é afastar-se dos conceitos jurídicos herdados, objetivando o resgate do senti-

mento de justiça trazido nas expectativas contemporâneas da sociedade.

Não se trata, como se poderia açodadamente pensar, de desprezar

a segurança jurídica. Muito ao contrário: o núcleo rígido dos institutos do Direito

permanece imaculado, mas não se tolera que a interpretação a ser conferida a

um determinado conceito se mostre contrária aos novos sentidos que emanam

dos princípios de Direito como alicerces do sistema jurídico, entendido como justo

e humanitário, de todo compromissado com a aspiração de justiça.

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1.3 Direito Administrativo na hipermodernidade

A aplicação integrada de princípios e regras vem também a refletir-

se diretamente na constitucionalização do Direito Público, levando a uma fla-

grante evolução doutrinária e jurisprudencial, especialmente no âmbito do Direito

Administrativo. De fato, no âmbito do Direito Administrativo, novéis doutrina e ju-

risprudência vêm a demonstrar que o sistema jurídico não é mais composto só de

regras, mas também de princípios constitucionais, visto que os direitos funda-

mentais do cidadão não podem mais figurar como peça acessória. Essa atual

concepção vem consagrando o surgimento daquilo que MAURO ROBERTO GOMES

DE MATTOS (2005), dentre outros, denomina “Teoria Geral do Direito Constitucional

Administrativo”3.

Como demonstrado, o novo constitucionalismo tem-se afastado do

modelo meramente positivista, do respeito único à regra positivada, para buscar

nos princípios seu verdadeiro fundamento de validade, o que faz notar que essa

mudança de paradigma não poderia deixar de alcançar a Administração. A aplica-

ção de princípios vem de trazer novo alcance ao Direito Público, de vez que os

princípios, como vetores da ciência jurídica, são proposições fundamentais a se-

rem por todos observadas, inclusive e sobremodo pelo Estado, sob pena de co-

metimento de ato distanciado do ideário de justiça.

Os princípios, assim, são diretrizes fundamentais da Administração,

de maneira que só se poderá considerar válida a conduta administrativa se com-

patível com o sistema jurídico como concebido num Estado Democrático de Di-

reito. Funcionam como verdadeiras normas fundamentais, cujo respeito é essen-

cial à boa gestão da coisa pública. Com essa nova filosofia de valorização dos

princípios, percebe-se substancial alteração no Direito Administrativo, que passa

a ser mais vinculado, afastando a antes inalcançável discricionariedade adminis-

trativa. Nesse contexto, o controle jurisdicional torna-se fundamental para esta-

belecer o equilíbrio das forças em jogo. O administrado possui nos princípios a

garantia de que não será oprimido pela força e pelo gigantismo do Poder Público.

3 Teoria para a qual os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição são obrigatórios paratodo o segmento da Administração Pública.

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Nessa quadra não há mais espaço para qualquer ato administrativo, embora dis-

cricionário, que se apresente dissociado do ordenamento jurídico analisado como

sistema de valores.

Destarte, na hipermodernidade urge a vinculação da Administração

à legalidade constitucional, não meramente à legalidade estrita. Retira-se do Po-

der Público a faculdade de livre escolha inclusive nos atos discricionários, se es-

ses restarem afastados dos princípios constitucionais. A liberdade hoje não é to-

tal: encontra-se vinculada aos instrumentos contidos na própria Constituição. De

notar, todavia, que a livre escolha administrativa não foi abolida. Encontra-se hoje

tão-somente vinculada aos princípios, às regras e aos direitos fundamentais, para

que os administrados tenham a garantia de que a Administração atuará sempre

em homenagem ao interesse público.

Nesse contexto, o Poder Judiciário tem papel de destaque. É que

para cumprir o papel de fiscalização dos atos administrativos, o Estado Democrá-

tico de Direito dotou exatamente esse Poder de um dever indelegável de manter

intacta a unidade da Constituição. Em sendo assim, perfeitamente crível que para

o fiel exercício de seu mister possa o Judiciário apreciar, observado o caso con-

creto, o ato administrativo, ainda que discricionário, para certificar a aderência do

mesmo ao ordenamento legal, na forma como fixado pela Constituição.

Há, portanto, uma nova concepção no que se refere aos atos admi-

nistrativos discricionários, com flagrante alargamento do controle jurisdicional,

como será mais detidamente abordado no 3.º Capítulo. Essa visão contemporâ-

nea deve-se ao compromisso constitucional de preservação do interesse público

envolvido, ao qual a Administração encontra-se inexoravelmente vinculada, bem

assim em razão da garantia de proteção aos direitos fundamentais dos cidadãos,

os quais, na hipermodernidade, devem ser efetivamente tratados como destinatá-

rios de direitos e de garantias individuais.

Este poder-dever do Judiciário de apreciar os atos da Administração

não representa uma indevida intromissão na seara alheia. Como será visto no 2.º

Capítulo, já não prevalece a concepção construída por MONTESQUIEU da ampla,

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geral e irrestrita divisão dos Poderes. No Direito da hipermodernidade que se al-

meja, os poderes são instituídos para dividirem funções, que serão sempre disci-

plinadas e regradas pela Constituição, sendo certo, daí, que qualquer ato admi-

nistrativo sofre a influência direta dos princípios, das regras e do respeito aos di-

reitos fundamentais, sem que com isso haja uma indesejada alteração na inde-

pendência de um Poder sobre o outro.

Enfim. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema jurídico,

integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. Na trajetória

que os conduziu a posição de destaque que hoje ocupam, tiveram que superar o

preconceito de que teriam uma dimensão puramente ética, sem eficácia jurídica

ou aplicabilidade direta e imediata, para assumir o significado de verdadeira sín-

tese dos valores abrigados no ordenamento jurídico, espelhando a ideologia da

sociedade, seus postulados básicos, seus reclamos, seus fins.

1.4 Ronald Dworkin e a hipermodernidade

A Constituição na hipermodernidade, como assinalado, passa a ser

encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores

jurídicos supra-positivos, no qual as idéias de Justiça e de realização dos direitos

fundamentais desempenham papel central. Essa mudança de paradigma deve

especial tributo à sistematização de RONALD DWORKIN, cuja elaboração acerca dos

diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal.

OTHON DE AZEVEDO LOPES (2005:3) bem comenta os estudos desen-

volvidos nesse sentido por DWORKIN:

Dworkin inicia sua crítica ao positivismo clássico assinalando queo direito não é apenas um sistema de normas, mas principalmenteum arranjo de princípios. Com isso, a unidade do direito ultrapas-sa as formas lógicas e sintáticas do neopositivismo para abrangeruma coerência axiológica, numa perspectiva sincrônica e comuma coerência narrativa, na forma de uma verdadeira harmonia, aser estabelecida entre todas as normas jurídicas sucessivamenteeditadas no curso do tempo.

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A teoria do Direito como Integridade, desenvolvida por DWORKIN,

pugna pela caracterização do Direito como um sistema único e harmonioso, que

objetiva alcançar, a partir de uma interpretação construtiva, uma adequada pro-

porção entre a justiça, eqüidade e devido processo legal.

Nessa concepção de integridade do Direito, há que se respeitar a

perspectiva temporal. É que o Direito como Integridade olha tão-só para o pre-

sente, voltando-se para o passado apenas quando seu enfoque contemporâneo

assim o demanda, no afã de garantir um futuro honrado, na expressão de

DWORKIN (2003).

Para possibilitar a construção do Direito como Integridade, o proces-

so de elaboração jurídica é compreendido a partir da metáfora do romance em

cadeia. Em um romance em cadeia, cada autor de um novo capítulo tem de se

preocupar na fiel construção de uma obra única, coerente e integrada, a partir de

capítulos anteriormente redigidos por outros atores jurídicos, sejam legisladores,

juízes ou administradores. Antes de editar um novo capítulo, deve o autor se pre-

ocupar com a coerência axiológica e narrativa deste, do sistema considerado em

sua integralidade. A todo tempo, pois, os textos jurídicos devem ser reputados

como de um único autor, expressando uma concepção coerente com o ideário de

justiça.

O Direito como Integridade, portanto, oferece ao aplicador um roteiro

para que se exercite o Direito, para que se busque a Justiça. A partir de uma in-

terpretação construtiva essa teoria exibe sua essência e sua funcionalidade, pro-

pondo uma solução baseada na aplicação dos princípios jurídicos. É em razão

desse fato que o pensamento de DWORKIN permeará o presente estudo. Por toda

sua trajetória será abordada a teoria do Direito como Integridade, contextualizada

ao que for debatido em cada capítulo lançado. Dos referidos ensinamentos se

buscará a força teórica a dar sustentação a argumentos e conclusões desafiados

ao longo do texto em evidência.

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2.º CAPÍTULO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E DIREITO COMO INTEGRIDADE

O conceito de Estado de Direito, segundo CANOTILHO (1993), é de

origem germânica4, fruto da sedimentação de mais de um século. Foi na França,

todavia, com a introdução da noção de legalidade (légalité) que tal concepção

acabou por exercer papel fundamental.

IRENE PATRÍCIA NOHARA (2004) historia com esmero a evolução do

que se entende por Estado de Direito. Para a autora, atribui-se a Kant o mérito da

fixação desse conceito, porque a partir da elaboração de uma teoria geral da mo-

ral o filósofo foi o primeiro a reputar o princípio da supremacia das leis como per-

tencente ao campo geral da ética. Demais disso, a edição por Frederico II do Có-

digo Civil de 1751 – que deu início ao movimento de codificação legal – e a edi-

ção da Lei da Prússia, de 1797 - que determinou a sujeição de todas as contro-

vérsias entre os cidadãos e as autoridades administrativas aos tribunais ordinários

- são outros acontecimentos que denotam a inspiração germânica já no século

XVIII do referido conceito. Apesar destes avanços, fracassou a esperança da

instauração de uma monarquia constitucional pautada nos ideais do Estado de

Direito naqueles Estados alemães. Não obstante a presença da Constituição, o

Estado-polícia vigorou no mundo germânico por longo período.

O ideal de liberdade, entretanto, estava com as raízes lançadas,

com a noção de que o homem é um ser livre, mas que a liberdade não pode ser

absoluta, por ser incompatível com a vida social. Formava-se, então, o conceito

moderno de liberdade, sobretudo na Inglaterra do século XVII, nas idéias trazidas

por JOHN LOCKE5.

4 A expressão Estado de Direito (Rechtstaat) apareceu pela primeira vez na obra Die letzten Grün-de von Recht, Staat und Strafe (1831), de Welcker.5 No pensamento de LOCKE, transcrito por NOHARA (1994:133), o governo civil representa a "so-lução adequada para as inconveniências do estado de natureza" que é "regido por um direito natu-ral que se impõe a todos, e com respeito à razão, que é este direito, toda humanidade aprende

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Segundo LOCKE, a razão para o homem renunciar à sua liberdade e

sujeitar-se ao governo civil relaciona-se a que o gozo efetivo dos direitos é muito

precário e exposto a invasões de outros povos. Daí a necessidade de os homens

se unirem em sociedade, com vistas à proteção de suas vidas, liberdades e bens.

Ao Poder Legislativo resta a responsabilidade, mediante a edição de leis, de sal-

vaguardar a sociedade. A atuação de tal poder, no Estado de Direito, obedece ao

princípio da legalidade, que decorre da igualdade, de uma igualdade universal6.

De fato, no Estado de Direito o conceito de igualdade está irremedi-

avelmente ligado à lei, pois a noção de lei encontra-se diretamente relacionada à

idéia de justiça, que decorre da igualdade. Apesar dos avanços observados no

contexto anglo-saxão, o princípio da legalidade recebe sua forma definitiva tão-só

na França, mais especificamente nos termos dos artigos 5º e 7º, da Declaração

de 1789:

Art. 5°: Tudo o que não é proibido pela lei não pod e ser impedido,e ninguém pode ser constrangido a fazer o que esta não ordena.

Art. 7°: Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão noscasos determinados pela lei e de acordo com as formas por estaprescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandamexecutar ordens arbitrárias serão castigados; porém todo o cida-dão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imedi-atamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.

A partir desses preceitos nasceu o constitucionalismo moderno, mo-

vimento político, social e cultural que, a partir do século XVIII, questiona os mo-

delos tradicionais de domínio político, traduzidos, em especial, pelo absolutismo

real. As bases desse movimento foram forjadas a partir das idéias de MON-

TESQUIEU (separação dos poderes) e de ROUSSEAU (supremacia da lei). A Consti-

tuição, a partir de então, representa o papel fundamental de impor limites ao Es-

tado, necessários à salvaguarda das liberdades individuais.

que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sualiberdade e seus bens".6 Confira-se do art. 6°, da Declaração de Direitos d o Homem e do Cidadão, verbis: “A lei é a ex-pressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm direito a concorrer, pessoalmente ou através demandatários, para a sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja para proteger, sejapara punir. Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas as digni-dades, lugares e empregos públicos, segundo a sua capacidade e sem outra distinção que nãoseja a das suas virtudes e dos seus talentos".

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Foi exatamente no ventre desse movimento constitucionalista que

restou gerado o princípio da legalidade, para já no século XVIII proceder-se à

transição do Estado de Polícia ao Estado de Direito, a partir da formulação de

uma novel estrutura da ordem jurídica7. De registrar, por fim, que a Carta France-

sa de 1871, originada desse movimento, acabou por fixar rigorosa separação de

poderes, com evidente predomínio do Poder Legislativo. Mas o respeito à separa-

ção dos poderes e o estar sujeito às regras da lei, embora traduzissem condição

necessária, não representavam condição suficiente para caracterizar um Estado

de Direito. Imprescindível se fazia, ainda, a presença do juiz natural e imparcial.

Leciona CANOTILHO (1993), as dimensões fundamentais do Estado

de Direito seriam a juridicidade (matéria, procedimento e forma) e a constituciona-

lidade (presença necessária de uma Constituição). Ou seja, o Estado de Direito,

por ser um Estado Constitucional, pressupõe a existência de uma Carta Política

que sirva de ordem jurídico-normativa fundamental, vinculativa de todos os pode-

res públicos e sistema de direitos fundamentais. Para o mestre de Coimbra, os

subprincípios concretizadores do Princípio do Estado de Direito são:

a) Princípio da legalidade da Administração, representado pelo prin-

cípio da supremacia da lei e no princípio da reserva legal;

b) Princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança dos ci-

dadãos, traduzidos no princípio da precisão das leis (clareza das leis) e no princí-

pio da proteção da confiança (leis estáveis e previsíveis, não retroativas para pio-

rar a situação do cidadão);

c) Princípio da proibição do excesso ou, em outros termos, princípio

da proporcionalidade;

7 NOHARA (2004:129) relata que os revolucionários franceses preconizavam “um sistema jurídicode bases novas em que as diversas produções normativas se encontravam em um conjunto coe-rente e hierarquizado. No topo, localizam-se os direitos naturais, inalienáveis e sagrados, que fo-ram reconhecidos e declarados ontologicamente pela Declaração de Direitos do Homem e do Ci-dadão; abaixo da declaração situa-se a Constituição, que tem por objeto garantir esses direitos -agora transformados por ela em direitos civis, assim como realizar a separação dos poderes; de-pois vem a lei, adotada pelo corpo legislativo, dispondo de uma autoridade superior na regula-mentação do exercício dos direitos naturais e civis; e na base da pirâmide encontram-se os atosemanados pelo Executivo, que não dispõe de verdadeiro poder normativo, mas possibilita a exe-cução das leis”.

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d) Princípio da proteção jurídica e das garantias processuais, cons-

tituído nas garantias processuais e procedimentais, tais como garantias de pro-

cessos penal, judicial e administrativo;

e) Princípio da garantia da via judiciária, fundamentado em um ver-

dadeiro direito ou pretensão de defesa das posições juridicamente lesadas, le-

galmente protegidas (direito subjetivo público).

Mas qual a diferença então entre Estado de Direito e Estado Demo-

crático de Direito? - O Estado Democrático de Direito pressupõe, além dos requi-

sitos inerentes ao Estado de Direito, a existência de Democracia, de um poder

que emane direta ou indiretamente do povo. Ademais, há que estar presente um

sistema de direitos fundamentais formalmente expressos na Constituição, e que

esses direitos sejam realmente respeitados.

Assim, num Estado Democrático de Direito é de restar observada a

efetiva aplicação de mecanismos que objetivem, entre outros, a garantia de direi-

tos fundamentais, a realização social profunda pela prática dos direitos sociais e

pelo exercício dos instrumentos que garantem a cidadania, que possibilitam con-

cretizar as exigências de um Estado de justiça social fundado na dignidade da

pessoa humana. O Estado Democrático de Direito funda-se no princípio da sobe-

rania popular, que abrange a participação real e operante do povo no trato da coi-

sa pública.

Quanto à origem, MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1999:63)

aduz que a expressão Estado Democrático de Direito foi pela vez primeira formu-

lada pelo espanhol ELÍAS DIAZ, que a empregou no livro “Estado de Derecho y So-

ciedad Democrática”. A partir de então, essa concepção de Estado Democrático

de Direito foi adotada, entre outras, pela Constituição alemã (de 1949), espanhola

(de 1978), portuguesa (de 1976) e brasileira (de 1988).

No Estado de Democrático de Direito, além de não se estar sujeito

ao império da lei, realiza-se o princípio de igualdade e justiça. A lei continua sen-

do o ato oficial de maior realce na vida política, por meio da qual se dão as inter-

venções que alteram a situação dos administrados. A diferença é que agora

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regras. Aristotelicamente defendia-se uma sociedade equilibrada e pragmática,

em que a escolha deliberada do indivíduo com relação ao certo e ao errado re-

presentava preceito central na filosofia do Ocidente. Para CÍCERO (século II A.C.),

a posse comum da razão tornou todos iguais, mas não numa igualdade absoluta,

de vez que para o referido pensador os homens teriam diferenças quanto ao in-

telecto, à força e à riqueza, mas apresentariam igualdade nos direitos básicos.

Enquanto para o povo hebreu a Justiça era um princípio sagrado,

para o mundo romano nada mais era do que um comando universal, base primá-

ria para o conceito de devido processo, que o sistema do “common law” acabou

por adotar – e desenvolver - quase um milênio depois. Já o conceito do devido

processo legal tem gênese posterior. Explica ANTÔNIO ROBERTO SAMPAIO DÓRIA

(1986), a expressão “per legem terrae” (“law of the land”) surge na Carta Magna

Inglesa (1215), de cunho conservador, tanto que redigida em latim, sendo certo

que limitava tão-só a ação real, mas não a do Parlamento, e muito menos objeti-

vava proteger os direitos individuais dos cidadãos. Relata o referido autor que foi

somente em 1354, durante o reinado de Eduardo III, por obra de “some unknow

draftsman”, que se substituiu a frase “per legem terrae” pela expressão “due pro-

cess of law”.

A citada locução foi depois assimilada pelo constitucionalismo norte-

americano, herdeiro direto dessa garantia constitucional, com o mérito de fazê-la

florescer com extrema criatividade. Consoante SIQUEIRA CASTRO (1989), enquanto

o “Bill of Rights” inglês simboliza a vitória sobre a monarquia, a cláusula do “due

process of law” no contexto norte-americano expressa uma conquista da socieda-

de sobre o Estado, cuja condução final é confiada ao Poder Judiciário como de-

positário fiel das liberdades individuais.

Assim, a cláusula “due process of law”, formalmente incorporada ao

direito constitucional norte-americano, por intermédio da 5.ª e 14.ª emendas8,

passou a experimentar com o passar do tempo diversas variações no tratamento

jurisprudencial, fortalecendo-se, inclusive, na passagem do Estado Liberal para o

8 5º Emenda: “No person shall... be deprived of life, liberty or property, without due process of law”;14ª Emenda: “To any person within its jurisdiction the equal protection of law”.

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Estado Social, traduzindo novas e mais aprimoradas condições de relaciona-

mento do Poder Público com os indivíduos e a sociedade civil. Transformou-se de

mera garantia processual para um princípio substantivo e limitador do poder do

Estado.

Para tal, a garantia do devido processo legal como mecanismo de

controle da razoabilidade dos atos não necessitou assentar-se na doutrina jusna-

turalista. Ao contrário, pautou-se nos princípios gerais da hermenêutica, em parti-

cular nos valores de justiça que emanam do sistema jurídico positivo, cuja revela-

ção incumbe de ordinário aos julgadores. A cláusula “due process of law” alcan-

çou o status de verdadeiro “standard” de justiça, ao sabor das variantes histórico-

culturais de cada tempo e lugar. Ou seja, de uma garantia em face do juízo

(acepção adjetiva), passa a assegurar igualdade de tratamento frente a qualquer

autoridade, assumindo uma nítida postura substantiva, limitadora do mérito das

ações estatais.

A concepção substantiva, pois, revelou-se uma inesgotável fonte de

criatividade constitucional, a ponto de se haver transformado no mais importante

instrumento jurídico protetor das liberdades públicas, com destaque para sua

nova função de controle do arbítrio legislativo e da discricionariedade administrati-

va, notadamente pela utilização de elementos integradores como a igualdade , a

razoabilidade , a proporcionalidade e a motivação das normas e dos atos em

geral do Poder Público. Tais elementos integradores apresentam acentuada ca-

pacidade expansiva para a assimilação de novas realidades, no contínuo proces-

so de mudança sociocultural observado na realidade contemporânea.

Em primeiro lugar, na concepção substantiva do devido processo le-

gal, a igualdade tem especial relevo, passando a significar “igualdade na lei” e

não “igualdade perante a lei”.

SAN TIAGO DANTAS (1953) aborda com mestria o problema da lei ar-

bitrária, aquela que reúne formalmente todos os elementos da lei, mas fere a

consciência jurídica pelo tratamento absurdo e caprichoso. As leis, para serem

consideradas adequadas ao devido processo legal, devem ser gerais e abstratas,

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isto é, têm que ser extensivas a todos que se encontrem em situação similar; têm

que ser racionais, despir-se de quaisquer arbitrariedades ou desvios.

A partir da igualdade podemos melhor aferir a cláusula do devido

processo legal, em sua acepção substantiva, para o efetivo controle judicial de

normas e atos da Administração, bastando para isso verificar se a diferenciação

implementada fere o princípio da igualdade proporcional, que não é cartesiana ou

matemática.

A razoabilidade representa outro elemento essencial para o desen-

volvimento da cláusula do devido processo legal em sua acepção substantiva. Foi

a partir da noção da aplicação dos valores do homem médio aos casos concretos,

às situações postas, que se buscou aprimorar a prestação jurisdicional na tentati-

va de se alcançar um ideal de justiça, de devido processo legal.

Quanto à proporcionalidade , traduz-se no dever não só do intér-

prete, mas de qualquer aplicador do direito, de guardar a sempre almejada justa

medida no trato intersubjetivo: a idéia de dosimetria e equilíbrio na conduta. A

idéia de proporcionalidade prende-se à noção de bom senso jurídico, como algo

que emana do sentimento de repulsa diante de um absurdo ou de uma arbitrarie-

dade, e.g., o ato que não desafie o bom senso eqüitativo das pessoas medianas,

valor essencial para que não se viole o devido processo legal.

Por fim, a necessidade de motivação , tanto das decisões adminis-

trativas quanto das judiciais9, é sem dúvida elemento de relevo do devido proces-

so legal. Ao tempo em que “a fundamentação do acto constitui um meio impor-

tante para o apuramento da sua legalidade, constituindo o quadro dentro do qual

se deverá primeiramente desenvolver o controle jurisdicional” (JOSÉ OSVALDO

GOMES, 1981:149), a menção dos motivos, de acordo com MICHEL STASSINO-

9 No caso brasileiro, a necessidade de motivação, tanto das decisões judiciais quanto administrati-vas, encontra-se expressamente disposta no artigo 93, X, da CF/88. Se a decisão não for motiva-da, estar-se-á limitando o acesso à jurisdição. É que, consoante os termos do art. 5º, XXXV, daCF/88, deve ser garantido o amplo acesso à jurisdição quando houver lesão ou ameaça de lesão,o que se tornará de difícil comprovação acaso a decisão não esteja devidamente fundamentada.Da mesma forma, os princípios do contraditório e da ampla defesa, constitucionalmente assegura-dos, restariam malferidos, acaso não fundamentada a decisão.

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POULOS (1973:249), “presta serviços à própria Administração”, uma vez que ao

deixar claras as razões de suas ações o Poder Público orienta os órgãos inferio-

res quanto à forma de aplicar a lei em casos similares: “ao expor as justificativas

de suas ações, o agente público é forçado a maior cuidado, no exame das ques-

tões da legalidade, conveniência e oportunidades de seus atos” (FLORIVALDO

DUTRA ARAÚJO, 2005:106). Integrada no espírito do sistema, a motivação significa

para a Administração, nas palavras de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE

(2003:399), “o dever de dar conta à comunidade da razão de ser dos seus actos”,

o que revela a missão ativa da função administrativa na busca da realização do

Estado de Direito material. E como bem alude LÚCIA VALLE FIGUEIREDO (2002), a

motivação atende às faces do devido processo legal: a formal, porque está ex-

pressa no texto constitucional; a substancial, porque sem motivação não há pos-

sibilidade de aferir-se a legalidade ou a ilegalidade de decisões administrativas ou

judiciais.

Desta feita, o princípio do devido processo legal, em sua acepção

substantiva, além de se constituir num inesgotável manancial de inspiração e cri-

atividade hermenêutica, acaba por se tornar um amálgama entre a igualdade, a

razoabilidade, a proporcionalidade e a motivação, para o efetivo controle da vali-

dade dos atos normativos e da generalidade das decisões estatais, fazendo das

Cartas Constitucionais verdadeiras “constituições vivas”, estatutos imprescindíveis

num Estado Democrático de Direito.

A cláusula “due process of law” tornou-se, desta feita, princípio ba-

silar e orientador na concepção do Direito como Integridade, no qual princípios e

regras são fundamentais na técnica de interpretação a ser aplicada nos casos

difíceis, procedimento como se disse essencial à busca do ideário de justiça no

mundo contemporâneo.

2.2 A separação de poderes e a contemporaneidade

Os complexos sistemas de controle, fiscalização e representativida-

de, bem como os mecanismos de equilíbrio e harmonia, traduzidos no conceito

dos “checks and balances”, objetivaram garantir o bom relacionamento entre os

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poderes, assegurando a fiel observância dos princípios fundamentais trazidos nas

constituições.

Com essa divisão dos poderes, com a criação de uma estrutura

constitucional com funções, competências e legitimação de órgãos, obteve-se,

nas palavras de CANOTILHO (1993:366), um controle recíproco do poder, “uma es-

trutura controlante-cooperante de funções”.

Não é incontroversa, todavia, a origem da doutrina da separação de

poderes. Para alguns autores, teria nascido na Inglaterra com a revolução purita-

na10. Seria, assim, contemporânea do liberalismo, do constitucionalismo e do Es-

tado de Direito Burguês. Para outros, suas raízes deverão ser buscadas na Anti-

guidade Clássica. As razões da divergência provêm da circunstância de a separa-

ção dos poderes oferecer uma vertente jurídica e outra política, decorrendo duas

teorias diversas.

Na sua vertente jurídica, vista como instrumento de limitação do po-

der político do Estado, aflora em POLÍBIO (século II A.C.) a idéia de constituição

mista, de uma certa balança entre os poderes. Nesse sentido, enquanto doutrina

jurídica a serviço da “rule of law”, traduz-se como marco essencial e definitivo do

Estado de Direito, permeando as concepções jurídicas desenvolvidas e positiva-

das durante a revolução ocorrida na Inglaterra no fim do século XVII, que viria a

sepultar o absolutismo para lançar as bases da idéia de uma constituição mista.

Essa nova concepção, pautada nos conceitos de elaboração, execução e aplica-

ção da lei ganha significado a partir do trinômio funcional legislação, execução e

jurisdição, em que as duas últimas são funções de certa maneira subordinadas à

primeira11.

10 O princípio da separação dos poderes teria surgido expresso, pela vez primeira, nas Leis Fun-damentais do protetorado de Cromwell e nas setecentistas das Colônias da Nova Inglaterra. Denotar, entretanto, que tão-somente após as Revoluções Americana e Francesa tal princípio passoua integrar as Cartas escritas do modelo de Estado de Direito Liberal.11 GORDILLO (1966:37) assinala que não obstante se costumasse colocar em nível de igualdadeos órgãos dos poderes, na verdade, pela natureza de suas funções, o Poder Legislativo ficava emposição preponderante, vez que aos demais, Executivo e Judiciário, restaria a função de aplicar alei.

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Já a vertente política não só está desassociada da tripartição funcio-

nal, como com essa se mostra particularmente inadequada se tomada em termos

absolutos, com a pretensão de esgotar a totalidade das funções do Estado. Daí

porque o sentido preciso e o alcance da doutrina da separação dos poderes, sob

a óptica política, só se obtém a partir da relativização das três categorias funcio-

nais: legislação, execução e jurisdição. Em suma: a separação de poderes pode

ser concebida segundo uma de suas perspectivas básicas. Como doutrina políti-

ca, o seu objeto é a estrutura orgânico-formal do Estado-poder; observada como

doutrina jurídica (princípio constitucional) traduz-se como característica marcante

da forma de governo democrático-representativa e pluralista do mundo ocidental.

Não obstante essa controvérsia quanto à origem, dúvidas não há no

sentido de que se deve a MONTESQUIEU a formulação clássica da doutrina da se-

paração dos poderes12. Para esse pensador, a liberdade política não consistia em

fazer o que se quisesse, mas no direito de fazer tudo o que as leis permitissem:

Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o Poder Legislati-vo, o Poder Executivo das coisas que dependem do direito dasgentes, e o Executivo das que dependem do direito civil. Pelo pri-meiro, o príncipe ou magistrado faz leis por certo tempo ou parasempre e corrige ou ab-roga as que estão feitas. Pelo segundo,estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro puneos crimes ou julga as querelas dos indivíduos. Chamaremos esteúltimo o poder de julgar e, o outro, simplesmente, o Poder Execu-tivo do Estado. A liberdade política num cidadão é esta tranqüili-dade de espírito que provém da opinião que cada um possui desua segurança: e, para que se tenha esta liberdade, cumpre que ogoverno seja de tal modo, que um cidadão não possa temer outrocidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de ma-gistratura o Poder Legislativo está reunido ao Poder Executivo,não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarcaou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para exe-cutá-las tiranicamente. Não haverá também liberdade se o poderde julgar não estiver separado do Poder Legislativo e do Executi-vo. Se estivesse ligado ao Poder Executivo, o juiz poderia ter aforça de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homemou mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exer-cesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resolu-ções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indi-víduos.

12 Capítulo VI, do Livro XI, do “O Espírito das Leis”.

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Acreditava-se que a liberdade política só seria encontrada nos go-

vernos moderados, sendo necessário que eles não abusassem do poder. Na rea-

lidade, a liberdade com que se preocupa MONTESQUIEU é a jurídica, a liberdade

para todos numa sociedade regida e limitada pelo Direito. Na mesma linha, o arti-

go 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, preconiza

que: "qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos,

nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição".

O século XVIII, portanto, pode ser considerado como o do culto à lei,

tendo esta o objetivo de limitar o poder do Estado e assegurar alguma liberdade

humana. A lei teria viés formal, ou seja, a visão de norma aprovada pela vontade

geral manifestada pelos representantes do povo, como também retrataria a noção

de conteúdo traduzida na expressão da razão e na busca de justiça. Em última

análise: a supremacia da lei significaria a prevalência da razão para se realizar

justiça.

EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA (1998) assinala que essa noção liberal

de que toda a ação do poder justifica-se por uma lei prévia baseava-se em duas

premissas: a da lei prévia como princípio técnico da divisão dos poderes e a da

legitimidade do poder como vontade comunitária. Essa idéia, que hoje se afigura

clara, foi revolucionária para a época. É que no Estado Absoluto o Direito não era

visto como expressão da legalidade, mas como o conjunto de direitos subjetivos

do monarca, sendo certo que, a par da teoria do fisco, das leis nunca derivaram

direitos subjetivos de natureza patrimonial para a coletividade. Da mesma forma,

a noção de que a legitimidade do poder seria originária de uma vontade de todos,

cuja expressão seria a lei, não era corrente àquela época.

Quanto ao ponto, o moderno pensamento da doutrina, na expressão

de ADÉLIO PEREIRA ANDRÉ (1989:79), registra duas idéias fundamentais que cons-

tituem a essência do Estado de Democrático de Direito:

(...) a de limitação do poder político - mesmo do poder políticodemocraticamente legitimado – em ordem a prevenir o seu arbítrioe abuso, inevitáveis na ausência dela, mediante a sua institucio-nalização plural e a atribuição a cada um dos pólos de poder dos

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meios de reciprocamente se fiscalizar e controlar (...); a de liber-dade individual, ao serviço da qual o poder estadual, pluralmenteestruturado, é colocado como condição de eficácia e garantia (...).

A separação dos poderes como catálogo de direitos fundamentais

tornou-se o cerne do constitucionalismo moderno, um verdadeiro princípio estrutu-

rante do Estado Democrático de Direito, consagrado na quase generalidade das

constituições do século XX. – Mas qual a abordagem a ser conferida ao conceito

neste início de século XXI, na hipermodernidade, na perspectiva do Direito como

Integridade? – Com certeza o relevo antes dado ao Poder Legislativo e à legali-

dade não poderá ser o mesmo. Novos horizontes se avizinham e a legalidade es-

trita já vem de experimentar a concorrência da aplicação de outros princípios de

igual valor e significado, numa visão sistêmica, integrada, na linha do pensamento

de DWORKIN, na tônica da atualidade.

2.3 A legalidade e os novos tempos

Objetivando a realização do interesse público, a Administração esta-

va até bem pouco vinculada estritamente à lei. Daí porque os órgãos e agentes do

Estado, no exercício de suas funções, só poderiam atuar com fundamento na lei,

dentro dos limites por essa impostos. O princípio da legalidade, portanto, consistia

no dever cego da Administração de agir em conformidade com a lei escrita, não

com o Direito. A evolução do conceito foi paulatina. No chamado Estado de polí-

cia, correspondente à monarquia absoluta, o poder era caracterizado pelo arbítrio,

uma vez que não era limitado pela lei nem pelos direitos subjetivos dos particula-

res. Com efeito, nos Estados absolutistas, a Administração Pública não estava

vinculada a nenhum tipo de norma que não à vontade do monarca.

A Revolução Francesa é que mudou o paradigma. A subordinação

da Administração à Lei, emanação da vontade geral, representada no Parlamen-

to, tornou-se um limitador da atividade administrativa, para proteger os direitos

dos cidadãos face ao Estado. O sentido geral do princípio da legalidade advém da

Administração como criação abstrata do Direito e não da emanação pessoal do

soberano. Como resquício do período anterior, passados os anos, mesmo no Es-

tado de Direito, continuou-se a reconhecer à Administração uma esfera de atua-

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ção livre de vinculação à lei e de qualquer controle judicial. E mais. A Administra-

ção podia fazer não só o que a lei autorizasse, como também tudo aquilo que a lei

não proibisse13. A atividade administrativa era vista vinculada à lei, mas a discrici-

onariedade podia ser exercida de forma isenta de limites legais e de controle judi-

cial. Assim, apesar do avanço possibilitado pela sujeição da Administração à égi-

de da lei, esta restou desvinculada de seu conteúdo de justiça.

Foi tão-somente no Estado Democrático de Direito que a Adminis-

tração passou a ser submetida não apenas à lei em sentido formal, mas a todos

os princípios que consagram os valores expressos ou implícitos no ordenamento

jurídico. Como conseqüência disso, a discricionariedade passou a ser limitada

também pela idéia de justiça.

Hoje o conteúdo da legalidade administrativa está em plena trans-

formação. Ao Estado é permitido apenas aquilo que o Direito autoriza. Cumpre à

Administração, na execução de suas atividades, atuar de acordo não só com a lei

e com suas finalidades, mas sobretudo com as regras e os princípios presentes

no sistema jurídico a partir de uma abordagem integradora. Nesse sentido a lição

de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (2001:59):

(...) o princípio da legalidade não significa que, para cada ato ad-ministrativo, cada decisão, cada medida, deva haver uma normalegal expressa vinculando a autoridade em todos os aspectos. Oprincípio da legalidade tem diferentes amplitudes, admitindo maiorou menor rigidez e, em conseqüência, maior ou menor discriciona-riedade. Não é por outra razão que se distingue legalidade e re-serva da lei, a primeira admitindo que o legislador estatua de for-ma mais genérica, deixando maior discricionariedade à Adminis-tração Pública para regular a matéria, e, a segunda, exigindo le-gislação mais detalhada, com pouca margem de discricionarieda-de administrativa; neste caso fala-se em legalidade estrita, tendoem vista que a Constituição é que reserva a matéria à competên-cia do legislador.

Não obstante ser correto o entendimento no sentido de que a ativi-

dade administrativa há de ser precedida pela legislativa, também é correto que as

13 É exatamente o que se pode extrair do art. 52 da Declaração de 1789: ''A lei não proíbe senãoas ações nocivas à sociedade. Tudo que não é vedado pela lei não pode ser obstado e ninguémpode ser constrangido a fazer o que ela não ordene".

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exigências da sociedade moderna têm levado a uma evolução da doutrina e con-

seqüentemente da jurisprudência, no sentido de que poderá haver eventual miti-

gação do princípio da legalidade estrita considerado o caso concreto, momento

em que deverá ser sopesada a legalidade com outros princípios de igual impor-

tância, tais como o do devido processo legal, da segurança jurídica, da proteção à

confiança, da dignidade da pessoa humana, dentre outros. É que o exercício abu-

sivo de um princípio, mesmo o da legalidade, esbarra na rejeição da ordem jurídi-

ca presidida pela Constituição, em razão da exigência de compatibilizar-se vários

dispositivos, princípios e fundamentos constitucionais, que constituem pressu-

postos lógicos e inarredáveis do ordenamento jurídico.

Assim, o princípio da legalidade estrita, que nos países de tradição

jurídica positivista se fazia até bem pouco insuperável, por ser princípio que en-

cerrava fórmula de contenção e disciplina do exercício do poder estatal, acaba por

se render à aplicação sopesada de outros princípios constitucionais, sem que isso

venha gerar qualquer malferimento à separação dos poderes, de observação es-

sencial nos sistemas republicanos. Como conseqüência dessa nova abordagem

para a jurisdição percebe-se uma maior intervenção do Poder Judiciário no con-

trole dos atos da Administração, inclusive nos discricionários, que passaram a ser

interpretados não apenas pelos parâmetros objetivos de legalidade, mas também

face a outros princípios contemplados, de modo explícito ou implícito, nas consti-

tuições em vigor na hipermodernidade.

Como visto, umbilicalmente relacionados com o advento do Estado

Democrático de Direito, os conceitos de legalidade e de discricionariedade acaba-

ram por alterar, em primeiro lugar, as relações entre o Poder Legislativo e o Poder

Executivo, pois a assunção pelo Estado de novos encargos passou a justificar o

aumento da competência normativa e a ampliação da área de autonomia do Po-

der Executivo, a quem a lei conferiu maior grau de discricionariedade ou de liber-

dade de atuação.

O uso abusivo da ampliação da área de autonomia do Poder Execu-

tivo no Estado de Democrático de Direito e o desrespeito aos direitos fundamen-

tais, entretanto, ocasionaram uma valorização do Poder Judiciário com vistas,

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exatamente, ao controle desses excessos e aos abusos dos administradores. Re-

agindo contra os abusos do Poder Executivo, desta feita, o Poder Judiciário ado-

tou novos critérios além do da legalidade estrita, para controle da atuação da Ad-

ministração, deslocando o cidadão para o centro da questão via aplicação inte-

grada de princípios e de regras. O princípio da legalidade, portanto, inobstante

seu papel fundamental de controle do absolutismo monárquico, não se mostrou

por si só suficiente para deter ou prevenir os abusos do Estado.

Hoje, ao regular a atuação administrativa, a legalidade além de

guardar total identidade com as leis também se refere aos princípios, de modo

que a atuação da Administração venha a ser sempre em conformidade com o

sistema jurídico em vigor. Para tal há que se permitir ao juiz que além de verificar

a vinculação do ato administrativo à lei possa promover o exame da compatibili-

dade desse ato com outros princípios constitucionais.

Dessa nova modelação do princípio da legalidade, ressalte-se, de-

correm conseqüências importantes, particularmente no tocante às zonas de dis-

cricionariedade e à conseqüente ampliação do controle jurisdicional da atividade

administrativa, como será enfrentado 3.º Capítulo do presente trabalho.

2.4 Neopositivismo e Direito como Integridade

Na era da supremacia do Direito positivo, como asseverado, as re-

gras passaram a ditar as relações inclusive perante o Estado, imperando o forma-

lismo jurídico. Pregava-se simplesmente o cumprimento regular das leis. A Cons-

tituição revelava a estrutura do Estado e poderes constituídos, legitimando a or-

dem estabelecida, mas aos princípios nela trazidos, implícita ou explicitamente,

não eram destinadas as atenções devidas. Esse quadro, acabou por levar alguns

Estados modernos, ainda que submetidos à ordem constitucional, a praticarem

regimes excessivos, autoritários. BARROSO (2003:324) discorre sobre o assunto:

(...) o fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positi-vismo jurídico, serviram de disfarce para autoritarismos de matizesvariados. A idéia de que o debate acerca da justiça se encerrava

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quando da positivação da norma tinha um caráter legitimador daordem estabelecida.

Tal fato, inclusive, é responsável pela crise que se instaurou no posi-

tivismo a partir da inoperância do Estado em prover respostas imediatas aos cres-

centes reclamos sociais, bem como em razão da impossibilidade de os legislado-

res editarem, na premência demandada pela coletividade, um conjunto de normas

necessárias para garantir a efetiva concretização dos direitos sociais.

A interpretação constitucional em um ambiente de supremacia do le-

galismo puro, porque valorizada em demasia a forma e a técnica, restou distancia-

da do contexto político e social da hipermodernidade. O Direito era analisado de

maneira racional, neutra, técnica e sobretudo insuficiente. Daí a eclosão do movi-

mento denominado neopositivismo, no qual a interpretação passa a sofrer uma

evolução crítica que prestigia a aplicação de princípios e regras, à luz do caso

concreto e da realidade social e política.

Isto porque a técnica interpretativa clássica não logrou perceber os

anseios atuais da sociedade moderna em constante mutação, que reclamava pela

realização de uma justiça efetivamente social. O neopositivismo buscou um novo

alinhamento da Constituição com a sociedade, revelando a superação do libera-

lismo e do positivismo puros, fazendo com que a Carta da República, sistema

aberto de valores, fosse posta em prática em sua integralidade de sentidos, por

intermédio da interpretação baseada em regras, princípios e direitos fundamentais.

CRISTINA QUEIROZ (2000:85) afirma que a interpretação no mundo

contemporâneo deve levar em conta que:

(...) a escolha entre uma norma válida e outra inválida obedece aconsiderações que se encontram para além das próprias normas:a ética, se se admitir que o direito contém uma representação daobrigação fundada no respeito pelos outros e pelo seu projeto devida comum; a política, se se admitir que esta se encontra, emparte, vinculada a formas institucionais preestabelecidas, ordena-das em função de uma comunidade que pretende, ela própria,apagar os traços da violência originária do poder. A partir daí,mesmo de um ponto de vista desvio, deve admitir-se que o direitocontém princípios metajurídicos para além da norma, voltados para

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uma idéia comum, chegando-se à conclusão de que o sistema ins-titucional repousa também ele numa teoria moral particular: a deque os homens possuem direitos morais contra o Estado.

Daí a importância na hipermodernidade do pensamento de DWORKIN,

para quem o positivismo puro assentava-se numa falsa concepção de autonomia

do sistema jurídico, uma vez que a aplicação específica de normas se dava num

sistema normativo fechado que, em caso de colisão, acabava por significar uma

decisão lançada na forma do "tudo ou nada", denotando um modelo escravo das

regras, incapaz de solver os crescentes conflitos vivenciados no mundo contempo-

râneo.

Na teoria do Direito como Integridade, ao contrário, a consideração

dos princípios na interpretação liberta os operadores do estrito texto da norma,

valorizando a aplicação dos princípios, aproximando-os ao ideal de justiça. Para

ilustrar sua teoria, DWORKIN cria a figura hipotética de um juiz perfeito. Batiza-o

Hércules. Hércules constrói um sistema de princípios que fornece uma justificação

coerente e racional para os precedentes judiciais, partindo do pressuposto de que

a resposta correta para todos os problemas está sempre contida nesse sistema. A

missão de Hércules é descobrir essa resposta, levando em consideração as maté-

rias jurídicas relevantes envolvidas, a dimensão de justiça, a garantia procedi-

mental, os princípios éticos de justiça etc.

No afã de reconstruir o próprio Direito, DWORKIN oferece, então, uma

análise crítica do sistema a partir da valorização dos princípios. Hércules se utiliza-

rá desses princípios não para validar todas as normas jurídicas, mas para o efetivo

exercício do seu poder de interpretação. Nesse contexto, os princípios jogam um

papel significativo em relação à função judicial. É que, entendidos como normas,

regulam matéria no interesse de todos. Compreendidos como valores, constroem

uma ordem que postula uma identidade de vida de uma comunidade jurídica parti-

cularizada, i.é, os princípios têm a vantagem de apresentar uma dinamicidade

hermenêutica necessária e aderente aos novos tempos.

Outra característica do Direito como Integridade de DWORKIN é que

mesmo para Hércules a interpretação conferida ao caso concreto deve permane-

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cer como uma construção transitória, que traduz a interpretação realizada naquele

caso e naquele determinado momento. É o Direito aplicado ao caso específico,

marcando a posição do autor, seja ele juiz ou administrador, no curso da história,

escrevendo o seu capítulo na novela inacabada, da metáfora do romance em ca-

deia, à luz dos argumentos éticos e políticos de seu tempo.

Para DWORKIN, no neopositivismo a interpretação a ser levada a

efeito tanto pelos julgadores quanto pelos administradores haverá que ser pautada

na visão integrada de regras e princípios do ordenamento jurídico considerado em

sua natureza sistêmica, tornando-se daí mais importante do que a própria produ-

ção legislativa. Isto porque teria o condão de transferir a soberania do legislador

para o intérprete, dando azo a uma interpretação constitucional ampla, construtiva

e assente na busca do ideal de justiça, afinada, portanto, com os reclamos da hi-

permodernidade.

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3.º CAPÍTULO

DISCRICIONARIEDADE NA HIPERMODERNIDADE

O surgimento do Direito Administrativo foi contemporâneo à Revolu-

ção Francesa, trazendo como fundamento filosófico a doutrina da separação dos

poderes desenvolvida por MONTESQUIEU, base do Estado de Direito, a partir da

qual o “governo do Rei” acabou transmudado para o “governo da lei”. Tal altera-

ção de paradigma não ocorreu de pronto. Foi resultado de um longo processo que

objetivava, além do prestígio à legalidade, a preservação da segurança jurídica e

a previsibilidade das decisões, na busca de garantir liberdade e proteção à nova

classe dominante, essencialmente composta pelos burgueses.

É que o Estado de Direito dos primeiros tempos trazia ínsito o com-

promisso de limitar a ação do Estado por intermédio da previsibilidade de seus

atos, reduzindo a insegurança jurídica reinante no período anterior à Revolução

Francesa. A legalidade passou, assim, a ser o princípio basilar do Estado de Di-

reito e, via de conseqüência, do regime jurídico-administrativo. O princípio da le-

galidade tornou-se de grande valia, ao impedir qualquer eventual tendência de

cunho personalista do administrador, fazendo prevalecer a “rule of law” em detri-

mento da "rule of men”.

Daí o relevo deste capítulo, cujo objetivo é analisar o ato discricioná-

rio praticado pelos administradores à luz da hipermodernidade, na qual se propõe

um relativo afastamento do positivismo jurídico puro sem prejuízo da legalidade e

da segurança jurídica, com a vantagem de agregar maior dinamicidade ao siste-

ma de normas e valores vigente, na linha do neopositivismo.

Em face do cunho eminentemente legalista do Direito Administrativo,

o administrador se caracterizava até bem pouco tempo como um ser positivista na

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própria origem e suas decisões deviam ser tomadas em conformidade com a lei,

sempre em acordo com o seu texto expresso. Com a aplicação não só das regras,

mas também dos princípios jurídicos na apreciação de determinado caso concre-

to, entretanto, evita-se a tendência predominante da Administração de agir estri-

tamente pautada nos parâmetros positivados no ordenamento jurídico, unica-

mente prestigiando o princípio da legalidade estrita.

Essa postura não significa, como ressaltado, o abandono ao princí-

pio da legalidade, mas uma nova exegese constitucional imposta pelos novos

tempos à Administração, na qual a observância de outros princípios de igual

prestígio ao da legalidade não pode ser desconsiderada14. Muito pelo contrário.

Neste início de milênio hão que ser observados pelo administrador os instrumen-

tos desenvolvidos pela moderna hermenêutica, que prestigiam a aplicação dos

princípios, e não só das regras, porquanto inconcebível se cogitar da noção de

Direito de forma desassociada das demais atividades humanas e da realidade

social, sendo certo que os princípios têm essa indiscutível capacidade de amal-

gamar os reclamos da coletividade manifestados nos novos tempos às respostas

que devem ser dadas prontamente pelo Estado contemporâneo.

Nas palavras elucidativas de DROMI (2005:59-60):

Os valores tradicionais suportam um forte embate. Isto obriga auma nova reflexão acerca de suas conseqüências para o homemda hipermodernidade. Os novos ‘códigos’ devem traduzir outroscomponentes culturais, pois a prática necessita de uma coberturalegal ou positivação jurídica possível e eficaz (...).

A fé no Direito exige a continuidade do Direito, em sua adaptaçãoas ‘circunstâncias’; por essa não se deve temer as mudanças,desde que a finalidade da mudança do Direito justifique a suaadaptação à realidade. A modificação no Direito é uma conse-qüência da mudança no Estado (...).

Há algo de novo debaixo do sol, e o Direito não é um ser estra-nho. Uma segurança jurídica injusta é precisamente o contrário doDireito, pois segurança jurídica e justiça são duas dimensões radi-cais do Direito, dos estamentos ontológicos que lhe transcendem,

14 Fazem parte ilustrativa desse rol de princípios o do devido processo legal, em sua acepçãosubstantiva, o da dignidade da pessoa humana, o da segurança jurídica, o da proteção à confian-ça do administrado e outros.

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porque a justiça só existe enquanto pautada sobre uma ordem se-gura, e a segurança só é pensável em um ordenamento justo15.

Mais uma vez o pensamento de RONALD DWORKIN será pano de fun-

do para robustecer as considerações trazidas a debate. A teoria do Direito como

Integridade denota, sem subterfúgios, a necessidade da Administração moderna

afastar-se do positivismo puro, na busca que deve ser sempre incansável pelo

ideal de justiça, que é a razão de ser e o fim da própria Ciência do Direito.

No começo deste século, época de significativas transformações em

todos os ramos das relações humanas e sociais, há de se alcançar caminho al-

ternativo para, longe do abandono do positivismo puro, mas tão-só da visão ex-

clusivamente formalista desse, integrá-lo às novas concepções trazidas pela apli-

cação conjugada de princípios e regras, na forma como prestigiada no trabalho de

DWORKIN.

3.1 O Direito como Integridade e a discricionarieda de

O Direito como Integridade, como já referido nos Capítulos 1.º e 2.º,

é a denominação que DWORKIN (2003:XI) adota para a sua teoria jurídica. Trata-se

de uma teoria que busca descrever o direito como "exercício de interpretação

construtiva”, como "a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas"

e ainda como "a narrativa que faz dessas práticas as melhores possíveis". Nesse

sentido, DWORKIN inicia sua crítica ao positivismo assinalando que o Direito não é

apenas um sistema de normas, mas principalmente um arranjo de princípios. No

Direito Administrativo, não obstante ser o mesmo informado por diversos princípi-

15 “Los valores tradicionales suportan um fuerte embate. Esto obliga a uma nueva reflexión acerca

de su implicancia para el hombre del hipermodernismo. Los nuevos ‘códigos’ deben traducirotros componentes culturales, pues la praxis necesita una cobertura legal o positivización jurí-dica posible y eficaz (...).

La fe em el Derecho exige la continuidade del derecho, en su adaptación a las ‘circunstancias’;por ello no debe temerse a los cambios, en tanto e fin de los cambios del Derecho justifique suadaptación a la realidad. El cambio en el Derecho es uma consecuencia del cambio en el Esta-do (...).

Hay algo nuevo bajo el sol, y el Derecho nos es un extraño. Una seguridad injusta es precisa-mente lo contrario del Derecho, pues seguridad e justicia son dos dimensiones radicales delDerecho, dos estamentos ontológicos que le trascienden, porque la justicia sólo existe en cu-anto está montada sobre un orden seguro, y la seguridad sólo es pensable en un orden justo”.

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os, a importância desses foi minimizada por muitos anos pelo positivismo jurídico.

Com o declínio do formalismo, todavia, a força dos princípios surge com vigor,

passando a realçar valores, finalidades e interesses.

Daí a importância dos princípios na aplicação dos atos administrati-

vos, que devem sempre observar o regramento moral previsto nas constituições,

uma vez que o Direito não pode nunca se apartar da moral e da ética. Desta feita,

quando o ato administrativo, apesar do respeito à legalidade estrita, violar um

princípio, estará a Administração afrontando a essência do Direito. Assinale-se

ademais que faz parte da vida do Administrador defrontar-se com várias normas

que determinam ações administrativas distintas ou mesmo contraditórias. Essas

situações configurariam os “hard cases” da análise dos quais surgiria uma única

resposta correta.

Para ilustrar essa teoria, como narrado no 2.º Capítulo, o referido

autor cria a idéia de um superjuiz denominado Hércules, capaz de solucionar os

casos difíceis. No que diz com o Direito Administrativo, tal figura transmudar-se-ia

na do administrador intérprete, que deve exercer a função de Hércules na medida

de sua competência administrativa. Para DWORKIN, os casos difíceis devem ser

solucionados pelos juízes ou pelos administradores, por intermédio da aplicação

integrada dos princípios e das regras. A partir de um afastamento gradual do po-

sitivismo jurídico puro, procura-se encontrar o ideal de justiça, reconhecendo a

importância da aplicação dos princípios, pelo simples fato de trazerem esses os

valores que se espraiam por todo o ordenamento jurídico, conferindo-lhe coerên-

cia e unidade.

É que o positivismo puro possui vício insuperável. Por não admitir a

presença de lacunas, não apresenta qualquer solução acaso esses vazios (au-

sência de regras expressas) se tornem evidentes. Afastados dos métodos clássi-

cos de interpretação, nos quais se objetivava unicamente a segurança jurídica,

há, portanto, que se apartar do positivismo puro e do formalismo exacerbado para

alcançar-se nova hermenêutica afinada com os novos tempos.

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Assim, todo esse formalismo positivista, que por muito tempo con-

taminou o Direito Administrativo, há de ser hoje posto de lado, considerada a ri-

queza dos casos concretos. Tal assertiva justifica plenamente a existência de atos

discricionários passíveis de apreciação pelo Poder Judiciário, de vez que, a

exemplo dos juízes, na hipermodernidade os administradores não podem assumir

a superada figura, trazida por MONTESQUIEU, de meros “bocas da lei”16. Deste

modo, a visão integrada do Direito, a aplicação conjugada de princípios e regras

ensejando a possibilidade de apreciação de atos administrativos pelo Poder Judi-

ciário, inclusive os discricionários, é o desafio que se queda trazido no presente

capítulo.

3.2 Poder vinculado e poder discricionário

O poder da Administração é vinculado quando a lei não deixa op-

ções: a lei estabelece que, diante de determinados pressupostos, a Administração

deve agir de tal forma. Os atos expedidos no exercício da competência vinculada

não permitem que o administrador exerça maiores liberdades de escolha. A nor-

ma apresenta-se completa e limitativa das opções e possibilidades de ação do

agente público.

Por outro lado, o poder é discricionário quando a lei deixa certa mar-

gem de liberdade de decisão diante do caso concreto, de tal modo que a autori-

dade poderá optar por uma dentre várias soluções possíveis, todas válidas pe-

rante o Direito.

A adoção de uma ou de outra solução é baseada em critérios de mé-

rito – oportunidade, conveniência, justiça, igualdade etc. – a serem esquadrinha-

dos pela autoridade, porque não definidos propositadamente pelo legislador, que

deixou intencionalmente a decisão à Administração, segundo elementos que só

essa poderia levar em consideração adequadamente, diante do caso concreto. O

legislador deixou tal decisão à Administração pela impossibilidade de prever todas

16 Para MONTESQUIEU, os principais aplicadores do direito, os juízes, eram meramente os “bocasda lei”, ou seja: “(...) pode suceder que a lei, que é ao mesmo tempo clarividente e cega, seja emcertos casos rigorosa demais. Mas os Juízes da Nação, como dissemos, são apenas a boca quepronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não lhe podem moderar nem a força, nem origor”.

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as situações ou para não usurpar a competência do Executivo, que tem a função

constitucional de administrar, encontrando-se mais apto, inclusive, a atender às

infinitas, complexas e sempre crescentes necessidades da coletividade. Essa in-

vasão de competência, com conseqüente violação da noção de separação de po-

deres, não seria assim justificável, pois o Administrador restaria convertido em

mero cumpridor de ordens concretamente emanadas pelo Poder Legislativo.

O fundamento da discricionariedade administrativa, portanto, segun-

do DI PIETRO (2002:75), “se encontra no ordenamento jurídico positivo; é a própria

lei que deixa ao administrador espaço para apreciação discricionária; trata-se de

decorrência do princípio da legalidade”.

Se a Administração não puder chegar a uma solução única, mas a

várias soluções igualmente válidas perante o Direito – devendo a escolha ser feita

por critérios puramente administrativos – estar-se-á, portanto, diante do campo da

discricionariedade. Nas palavras precisas de STASSINOPOULOS (1973:151), “o do-

mínio do poder discricionário começa onde termina o da interpretação”. Assim,

onde houver interpretação, caberá ao Poder Judiciário a palavra final; onde hou-

ver de fato discricionariedade, a decisão administrativa será a princípio definitiva e

inatacável judicialmente.

O juiz, pois, tem que interpretar a norma jurídica, extraindo do orde-

namento seu sentido preciso, como se fosse o próprio legislador. A Administra-

ção, por sua vez, na atividade discricionária, pode escolher entre duas ou mais

soluções consideradas válidas pelo Direito, sendo a opção feita segundo critérios

de oportunidade e conveniência não outorgados ao Poder Judiciário, no exercício

da função tipicamente jurisdicional. Na visão de GARCÍA DE ENTERRÍA (1998), a de-

cisão judicial sempre comporta um processo interpretativo que inclui valorações.

Já a decisão discricionária, em geral, comporta estimativa subjetiva da Adminis-

tração. A discricionariedade não é liberdade da Administração em face da norma,

mas um caso de remissão legal. É a lei que indica para a Administração a utiliza-

ção da estimativa subjetiva, não realizada pela via geral, mas caso a caso. Discri-

cionariedade, pois, não ocorre à margem da lei, mas em face da lei. Em suma:

discricionariedade é liberdade de ação limitada por lei.

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3.3 A nova concepção da discricionariedade adminis trativa

ANDRÉ (1989) traça interessante perspectiva histórica do ato discrici-

onário. Para o autor português, da discricionariedade-regra do Estado de polícia à

discricionariedade administrativa de agora, longo foi o percurso. Tendo acompa-

nhado a evolução do Estado de Direito e, naturalmente, do princípio da legalida-

de, o poder discricionário da Administração hoje já não pode ser arbitrário, uma

vez que tem o seu fundamento na própria legalidade, ou seja, no poder de esco-

lha entre decisões ou comportamentos (pelo menos dois) desde que atendida à

legalidade. Não existe, desta feita, poder discricionário em que a lei não o confira,

sendo certo que, mesmo onde a lei permitir, deverão ser observados elementos

igualmente vinculados à lei, como a competência, os motivos e os fins.

Dentre as várias regras a que está sujeita a Administração no exer-

cício de poderes discricionários, cumpre referir o dever de fundamentar o ato, es-

pecialmente quando possa afetar direitos e interesses legalmente protegidos dos

administrados. De notar que hoje a doutrina e a jurisprudência contemporâneas,

sobretudo a alemã, apresentam-se tendentes à redução da esfera do que antes

se reputava puramente como ato discricionário, inclusive considerando a possibi-

lidade, em alguns casos, de apreciação judicial. Isso não quer dizer que essa

mesma corrente de vanguarda entenda que não mais existam atos exclusiva-

mente discricionários, os quais o Poder Judiciário não pode apreciar, sob pena de

usurpação de competência. Ao contrário: existem ainda atos tipicamente discrici-

onários, cuja adoção de uma ou de outra solução é baseada em critérios de mé-

rito a serem perquiridos pela autoridade pública, porque não definidos proposita-

damente pelo legislador.

Não obstante, como asseverado alhures, a doutrina e a jurisprudên-

cia na hipermodernidade vêm demonstrando efetiva diminuição na parcela de dis-

cricionariedade dos atos da Administração, a partir da interpretação dos mesmos

pautada na aplicação de princípios, bem assim no que diz com a apreciação pelo

Poder Judiciário dos ditos conceitos jurídicos indeterminados e de alguns atos

antes reputados meramente políticos. Com efeito, a matéria relativa à diminuição

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da parcela da discricionariedade se encontra em fase de plena sedimentação,

apesar da existência de correntes doutrinárias ainda em franca divergência.

3.4 Os conceitos jurídicos indeterminados e os atos políticos

No que se refere à possibilidade de apreciação pelo Poder Judiciário

dos conceitos jurídicos indeterminados, aqueles vocábulos ou expressões que

não têm sentido preciso, mas que são encontrados com grande freqüência no

direito positivado (boa-fé, interesse público, moralidade etc.), a doutrina e a juris-

prudência contemporâneas apresentam pelo menos duas posições: (1.ª) daqueles

que entendem que os conceitos indeterminados não conferem discricionariedade

à Administração, porque diante deles o administrador haverá de fazer um trabalho

de interpretação que leve a uma única solução válida possível (parte da corrente

do Direito alemão e parte do espanhol, representada por TEZNER e GARCÍA DE

ENTERRÍA); (2.ª) daqueles que acreditam que os conceitos indeterminados podem

conferir discricionariedade à Administração, desde que se refiram a conceitos de

valor que impliquem a possibilidade de apreciação do interesse público em cada

caso concreto, afastada tão-só a discricionariedade diante de certos conceitos de

experiência ou de conceitos técnicos que não admitem soluções alternativas (cor-

rente do Direito italiano e parte do alemão).

Quanto aos doutrinadores brasileiros, BANDEIRA DE MELLO (2006-1),

com pensamento mais próximo da segunda corrente, demonstra preocupação em

colocar a discricionariedade dentro de certos limites, apelando para princípios

como o do interesse público, da proporcionalidade e da razoabilidade para, ao

contrário de GARCÍA DE ENTERRÍA, entender que os conceitos indeterminados não

necessariamente vislumbram uma única solução após a intelecção. É que para o

referido autor (2006-2:5), termos vagos inseridos em um conceito indeterminado

podem levar o administrador à escolha discricionária, cuja apreciação é de todo

vedada ao Poder Judiciário. Nesse sentido, o seguinte trecho:

(...) Outros - e é o ponto de vista que adotamos - admitirão queembora caiba ao Poder Judiciário tentar reconduzir os casos con-cretos a uma zona de certeza (positiva e negativa) casos haveráem que tal procedimento só será possível até um certo ponto,

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além do qual as dúvidas são inelimináveis e o juízo administrativohaverá de prevalecer, por ser o administrador o encarregado desopesar com exclusividade as circunstâncias do caso, ante a im-possibilidade do juiz pretender que a intelecção dada pela autori-dade administrativa desbordou dos limites do direito - ressalvadasempre a hipótese de identificação de desvio de poder.

DI PIETRO (2002), ao seu turno, entende que só a partir do exame da

lei, em cada caso, poder-se-á aferir a existência, em face de conceitos indetermi-

nados, de discricionariedade da Administração. VALLE FIGUEIREDO (2006), na linha

de GARCÍA DE ENTERRÍA, aduz que todo conceito é finito. Há nele um núcleo de

certeza positiva, um núcleo de certeza negativa e uma zona intermediária, uma

faixa cinzenta diante da qual se vai colocar o problema. Assim, faz-se necessário,

prima facie, interpretar o dito conceito indeterminado, localizá-lo na zona de certe-

za, para depois verificar se a norma outorgou a possibilidade de decisão ao admi-

nistrador. É que a existência de conceitos indeterminados, na opinião da autora,

não induz necessariamente à discricionariedade.

No afã de bem desenvolver o argumento ora trazido à baila, melhor

fixar-se na posição de GARCÍA DE ENTERRÍA: os conceitos jurídicos indeterminados

postulariam uma única solução justa. Para este autor, os conceitos indetermina-

dos reclamariam, como dito, uma única solução justa segundo várias condutas

possíveis. Há, assim, uma zona de certeza positiva, uma de certeza negativa e

uma de incerteza, na busca do que a escola alemã chama de “redução a zero”.

Para GARCÍA DE ENTERRÍA, portanto, os conceitos jurídicos indeterminados postu-

lam uma única solução justa, como explica a tradicional doutrina alemã quanto ao

tema. Quer dizer, após a devida “apreciação por juízos disjuntivos”, uma conduta

ou é ou não é, nada mais que isso.

A discricionariedade, por ser essencialmente uma liberdade de elei-

ção entre alternativas igualmente justas, porque a decisão se fundamenta em cri-

térios extrajurídicos (oportunidade e conveniência etc.) não incluídos na lei e re-

metidos a juízos subjetivos da Administração, não seria, a princípio, passível de

apreciação judiciária. Logo, no que tange aos conceitos jurídicos indeterminados,

por ser um caso de aplicação da lei e porque se subsumem, em uma categoria

legal, a circunstâncias reais determinadas, pode o juiz fiscalizar sempre a aplica-

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ção, valorando a solução a que chegou como a única solução justa que a lei per-

mite. A utilização que a lei faz destes conceitos aponta inequivocamente a uma

realidade concreta, perfeitamente indicada como determinada, uma vez que limita

o alcance para mais ou para menos.

Na visão de GARCÍA DE ENTERRÍA, os conceitos indeterminados são

perfeitamente controláveis pelo juiz, como ocorre com qualquer outra interpreta-

ção da lei que a administração haja realizado. Este controle não é faculdade, mas

obrigação do juiz, em razão de sua função constitucional.

Nesse sentido vale também o pensamento de DWORKIN, para quem

todos os casos jurídicos, em especial os mais complicados, têm sempre solução

possível e admissível, recorrendo-se a diretrizes e princípios que proporcionam ao

juiz critérios para resolver adequadamente o caso, sem que se tenha que atribuir

para esse qualquer discricionariedade ou liberdade de decidir. O juiz controla a

aplicação do conceito jurídico indeterminado tanto no sentido de sua anulação ou

de seu acatamento, dependendo do caso concreto. Não se trata, desta forma, de

substituir a interpretação conferida pelo Administrador ao conceito indeterminado

pela do juiz, mas de identificar se houve transgressão nessa aplicação aos limites

da lei. Por intermédio do aprofundamento da técnica dos conceitos indetermina-

dos, portanto, a idéia de discricionariedade tenderia a reduzir-se de forma signifi-

cativa, tornando-se passível de revisão pelo Judiciário, considerado o caso con-

creto, aquela apreciação do conceito levada a cabo pela Administração.

Há, todavia, pontos ainda controvertidos. Seria possível pretender

resolver de um lance todos os complexos problemas da aplicação dos conceitos

jurídicos indeterminados com uma fórmula radical? Seria possível entender que

há uma parte dos conceitos jurídicos indeterminados que por estar incluída na-

quilo que se costuma chamar de ato político teria apreciação vedada aos Juízes,

por representar patrimônio exclusivo e reservado ao Governo e à Administração?

Quanto ao primeiro ponto em tela, GARCÍA DE ENTERRÍA (2001) é di-

reto: seria injustificável, em face da noção de Estado Democrático de Direito, bem

como em razão da submissão da Administração à Lei e ao Direito, entender-se

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inapreciáveis pelo Poder Judiciário qualquer conceito jurídico indeterminado. No

que diz com os atos políticos, a questão vem se tornando controvertida. Na Euro-

pa, até pouco tempo, atos ditos políticos não eram passíveis de controle judicial.

Historicamente, a doutrina dos atos políticos foi introduzida pelo Conselho de Es-

tado francês, tendo sido desenvolvida a partir da teoria do móvel político, medi-

ante a qual, independentemente do objeto material dos atos, sempre que os go-

vernantes os editassem em função de um fim político, os atos deixavam de ser

administrativos e se convertiam em atos políticos, isentando-se do controle judici-

ário.

GARCÍA DE ENTERRÍA e THOMÁS-RAMÓN FERNANDEZ (2005:533-599)

relembram que a doutrina, em sua primeira interpretação do instituto, seguiu, por

inércia, a pregação do móvel político, aplicando-a a toda matéria repressiva (san-

ções, questões militares, impugnação de regulamentos etc.), na medida em que

consistiam na expressão de uma determinada política. Estes autores repudiam o

absurdo dessa interpretação tão abrangente. Baseado na exposição de motivos

da atual Lei Jurisdicional Espanhola, para eles os atos políticos não constituíram

uma espécie do gênero dos atos administrativos discricionários, mas atos essen-

cialmente distintos, por terem função política confiada unicamente aos órgãos su-

periores estatais. Mas de qualquer forma, em razão dos dispositivos constitucio-

nais posteriores que atribuíram ao Tribunal Constitucional Espanhol o controle da

atuação administrativa, sem qualquer exceção, assim como a submissão integral

da Administração aos ditames da lei, albergada no Estado de Direito, não se ha-

veria de falar em total ausência de controle judicial dos atos políticos no atual ce-

nário do direito positivo espanhol.

Quanto à natureza dos atos políticos, ANDRÉ (1989:121) assinala que

a questão é controvertida: haveria dúvida se os referidos atos “significam, quanto

ao princípio da legalidade, um limite ou uma excepção, ou se diversa é a sua na-

tureza”. Para o referido autor, enquanto alguns entendem que os atos políticos

significam um limite ao princípio da legalidade, para outros seria mera exceção

aos princípios da juridicidade, da legalidade e da acionabilidade, havendo ainda

aqueles que não os consideram exceção, por não se tratarem de atos praticados

no exercício da função administrativa, mas no quadro da função política do Esta-

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do, daí porque, segundo essa última corrente, serem os mesmos insidicáveis, não

colocando em crise o princípio da legalidade. No pensar de BANDEIRA DE MELLO

(2006), todavia, os atos políticos estariam sujeitos ao controle do Judiciário, à luz

dos estatutos que regem os Estados Democráticos de Direito, como é o caso da

Carta Republicana do Brasil, em que tais atos não se furtam ao controle judicial,

tendo em vista o teor do art. 5°, XXXV, da CF. Além disso, como bem salienta

VALLE FIGUEIREDO (2006), estes atos necessitam da essencial motivação, não

obstante diretamente jungidos à Constituição. Serão, portanto, não controláveis

pelo Judiciário se forem efetivamente atos políticos puros (declaração de guerra,

convocação do Congresso etc.). Se não for esse o caso, terão o mesmo trata-

mento dos atos administrativos, com a conseqüente submissão ao crivo do Judi-

ciário.

Ou seja, ainda que considerados por alguns como atos “mais discri-

cionários” do que os atos tipicamente discricionários, os atos políticos podem – e

devem – estar sujeitos, dadas as circunstâncias do caso concreto, ao devido con-

trole judicial, como exigência à observância ao devido processo legal e demais

princípios constitucionais, de imprescindível atenção num Estado de Democrático

de Direito.

3.5 Atos discricionários e controle Jurisdicional

Merecem ser de GARCÍA DE ENTERRÍA (2001:47-48) as palavras inau-

gurais desse tópico:

O problema do controle judicial do exercício dos poderes discrici-onários da Administração é um tema clássico da teoria do Direito.Está presente na própria origem do Direito Administrativo e cadaépoca foi deixando nele a marca de suas reflexões teóricas, bemcomo das sucessivas experiências práticas e jurisprudenciais (...).Recentemente, instalou-se em nosso meio uma polêmica can-dente sobre esse velho tema (...). As discrepâncias, com suasrespectivas polêmicas, constituem o caldo de cultivo necessáriode todas as ciências e o instrumento imprescindível para seu des-envolvimento e progresso. Não é diferente na ciência jurídica. Oajuste sucessivo, a reconfiguração dos conceitos, a adaptação àstransformações circunstanciais da sociedade às quais serve o Di-reito (art. 3 do Código Civil), as descobertas inesperadas da ca-suística, a depuração de soluções, é a própria vida do Direito. Se-

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ria inimaginável a sacralização absoluta de qualquer doutrina(uma nova “Ley de citas”, como as que tiveram lugar em outrosmomentos históricos), doutrina que exigisse submissão incondici-onal a seus cultuadores; seria a morte certa da ciência jurídica,num prazo não muito longo. (...) Portanto, há que saudar com ale-gria e esperança a nova oportunidade de refletir sobre os velhostemas, que esse debate veio abrir entre nós17.

Como bem assentado pelo mestre espanhol, o controle judicial do

exercício do poder discricionário pelo Judiciário está a enfrentar relevante debate

doutrinário e construção jurisprudencial, em razão dos novos e importantes re-

clamos sociais, sendo tal debate essencial para a própria dinâmica da Ciência

Jurídica. Também GOMES DE MATTOS (2005) assinala que a atual discricionarieda-

de do poder público não pode continuar entendida como uma liberdade essencial,

incondicionada e impenetrável pelo Poder Judiciário, porquanto se assim for será

incompatível com o Estado Democrático de Direito. Para o citado autor, discricio-

nariedade ampla, desgarrada do direito e da lei, na qual a oportunidade e a con-

veniência administrativa imperavam na tomada do ato, deve ser tratada como

passado, pertencente à arqueologia jurídica.

Da mesma forma é a linha de raciocínio de ARAÚJO (2005), para

quem, uma vez conhecido o ato discricionário e verificada sua desconformidade

aos ditames da lei, seja por não obedecer à vinculação que o caracteriza, seja

porque a opção adotada não se insere no leque de comportamentos alternativos,

todos eles previamente validados pela norma, pode e deve o Judiciário apreciar

seu conteúdo. No mesmo passo, VASCO MANUEL PASCOAL DIAS PEREIRA DA SILVA

17 “La cuestión del control judicial del ejercicio de las potestades discrecionales de la

Administración es un tema clásico de la teoría del Derecho. Está en los orígenes mismos delDerecho Administrativo y cada época ha ido dejando en él la huella de sus propias reflexionesteóricas, así como de las sucesivas experiencias prácticas y jurisprudenciales (...). Últimamenteha saltado entre nosotros la chispa de una viva polémica sobre este viejo tema (...). Lasdiscrepancias y las correlativas polémicas constituyen el necesario caldo de cultivo de todas lasciencias y el instrumento imprescindible de su desarrollo y progreso. No otra cosa ocurre en laciencia jurídica. El sucesivo ajuste, la reconfiguración de los conceptos, la adaptación a lascambiantes circunstancias de la sociedad a que el Derecho sirve (art. 3 del Código Civil), losdescubrimientos inesperados de la casuística, la depuración de soluciones, es la vida mismadel Derecho. Sería inimaginable la sacralización absoluta de cualquier doctrina (una nueva«Ley de citas», como las que se dieron en otros momentos históricos), doctrina que exigiesesumisión incondicional a sus cultivadores; sería la muerte segura de la ciencia jurídica en unplazo no muy largo. (...) Hay que saludar, pues, con alegría y con ilusión la nueva ocasión dereflexionar sobre los viejos temas que ese debate ha venido a abrir entre nosotros”.

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(2003:89-90) assinala que a evolução do Direito Administrativo, no sentido de vin-

cular todos os atos públicos aos princípios e às normas, faz com que "o poder

discricionário que não é assim nenhuma realidade extrajurídica, antes algo que se

enxerta no processo de reconstituição, que é a interpretação e aplicação do di-

reito (...)” deva sofrer a devida fiscalização jurisdicional, para que assim o poder

discricionário cumpra o objetivo de ser exercido em conformidade com a lei e com

o Direito.

Tal mudança de paradigma, desta feita, veio a ser reforçada justa-

mente pela constitucionalização do direito público, a partir da qual houve a valori-

zação dos princípios, ao lado das regras, no sentido do que pugnado por diversas

novas correntes de pensamento, inclusive a encabeçada por DWORKIN, traduzida

no Direito como Integridade.

Nesse novo paradigma, o intérprete há de se afastar do modelo po-

sitivista puro para buscar exatamente nos princípios, vetores que são da Ciência

do Direito, o verdadeiro fundamento de validade do sistema jurídico, as proposi-

ções básicas e fundamentais a serem seguidas pelo Poder Público.

Assim, à luz dessa novel exegese, na tônica do neopositivismo, os

princípios acabaram por se transformar nos pilares do Direito Administrativo da

contemporaneidade, trazendo substancial alteração neste ramo do Direito, que

passa a ser totalmente associado a essa nova filosofia de conceitos. Nesse novo

contexto é que o controle jurisdicional dos atos administrativos, ainda que discrici-

onários, é imperioso para o equilíbrio das forças postas em jogo, pois é exata-

mente amparado nos princípios que o administrado encontra a garantia de que

não será oprimido pelo Estado.

Em pleno Estado Democrático de Direito não há mais espaço para

a criação de atos administrativos desvinculados dos princípios e das normas

constitucionais, observados de maneira integrada. A vinculação do Estado à le-

galidade constitucional retira do Administrador a condição de promover uma es-

colha livre na concretização do ato administrativo, mesmo que de natureza dis-

cricionária, que não seja em acordo com os princípios constitucionais, uma vez

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que a sua liberdade encontra-se de todo vinculada à Constituição.

Isto não quer significar que a livre escolha administrativa deixa de

existir, mas tão-só que essa escolha se encontra vinculada a todas as regras e

princípios da Administração, para que a coletividade se quede garantida quanto

à aderência dos atos ao interesse público, evitando-se os indesejados desvios

de finalidade.

Consoante de há muito asseverado por ERNST FORSTHOFF (1958), o

direito de exercitar o poder discricionário não libera a Administração de um com-

portamento adequado nem da observância do Direito, de vez que o exercício do

poder discricionário se move dentro do marco da ordem jurídica. Para o referido

autor, o poder discricionário estaria submetido à chamada moralidade adminis-

trativa. Ou seja, não seria mera conseqüência do dever profissional do funcioná-

rio, mas efetivo compromisso com o Estado de Direito, significando que a Admi-

nistração não poderia proceder nem caprichosamente nem arbitrariamente.

Assim é plenamente possível, como explica ARAÚJO (2005), o con-

trole de todo e qualquer ato administrativo pelo Poder Judiciário, seja por ações

ordinárias, seja especiais. Como bem assinala o autor, ao apreciar o ato adminis-

trativo o julgador acaba por examiná-lo como um todo, em seus requisitos, em

seu conteúdo e em sua forma. Desse exame, realizado perante a legislação apli-

cável, verificará o juiz quais os aspectos vinculados e quais os discricionários do

ato.

Relativamente aos atos vinculados, não há dúvida quanto à possibi-

lidade e o alcance da apreciação judicial. A questão residia nos casos relativos

aos atos discricionários. Mas, como já asseverado, no Direito da hipermodernida-

de não há mais espaço para simplesmente se dizer que ao juiz é vedado o co-

nhecimento dos atos discricionários. O conhecimento de todo e qualquer ato ad-

ministrativo levado ao julgador é não só possível, mas necessário ao cumprimento

das suas funções jurisdicionais. De notar, todavia, que uma vez conhecido o ato e

verificada sua conformidade aos ditames da lei e dos princípios, nada poderá ser

feito pelo Poder Judiciário.

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Quanto ao ponto, a teoria do Direito como Integridade apresenta jus-

tificação. Como a função do juiz que realiza o controle judicial de um ato adminis-

trativo é a de escrever mais um capítulo do romance em cadeia, que tem como

capítulo anterior exatamente aquele redigido pelo Administrador, esse juiz, co-

autor do romance, não tem poder ilimitado. Pode apenas censurar o capítulo ante-

rior acaso esse esteja incompatível com o ordenamento jurídico. Se, noutra ban-

da, o administrador cumpriu adequadamente com a sua função, aplicando coe-

rentemente o Direito aos casos difíceis, não poderá jamais ser censurado pelo

Poder Judiciário.

3.6 Os limites na apreciação jurisdicional da discr icionariedade

Das considerações supracitadas, não há mais dúvidas quanto à

possibilidade de apreciação, dadas as circunstâncias do caso concreto, pelo Po-

der Judiciário dos atos discricionários. Mas quais seriam os limites dessa aprecia-

ção? – A fronteira do Poder Judiciário, no que se refere ao controle dos atos dis-

cricionários, encontra-se ainda em debate. Para alguns autores, ainda que possí-

vel em certos casos a apreciação do ato, o Judiciário não pode deliberar efetiva-

mente quanto a eles, mas tão-só anulá-los.

Segundo esses doutrinadores, não pode o Judiciário invadir espaço

reservado pela lei ao Administrador, pois, caso contrário, estar-se-ia substituindo,

por outros critérios de escolha, a opção legítima feita pela autoridade competente,

com base em razões de oportunidade e conveniência que essa, melhor do que

ninguém, deve apreciar diante de cada caso concreto. É o que ECKART HEIN

(2004) chamou de zona de tensão entre a separação de poderes e a garantia da

via judicial.

Daí porque assinala GARCÍA DE ENTERRÍA (2001) que o desfecho de

um processo relativo a uma decisão discricionária será normalmente tão-só a

anulação da referida decisão que escape ou exceda os limites em questão. Isto é,

se em caso de discricionariedade o juiz verificar que a opção do administrador

não se acha entre as resguardadas pelo ordenamento, anulará o ato. Não se

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substituirá, entretanto, à Administração suprindo-lhe a vontade defeituosa. Ape-

nas invalidará seu comportamento anterior, deixando-lhe a oportunidade de prati-

car novo ato, contido entre os limites opcionais previstos na lei. Assim estará ga-

rantida a não-invasão das funções administrativas pelo Judiciário. Trata-se do

controle dos limites externos da discricionariedade modalidade do controle de as-

pectos vinculados do ato.

GERMANA DE OLIVEIRA MORAES (2004:160), por sua vez, relata que a

diferença entre o controle jurisdicional da atividade administrativa vinculada e o

controle jurisdicional daquela não vinculada traduz-se nos limites e nas conse-

qüências desse controle e não na possibilidade ou impossibilidade de apreciação

judicial. Como bem salienta, a possibilidade de apreciação judicial da atuação

administrativa não vinculada não mais se discute: foi viabilizada por novos parâ-

metros jurídicos como os princípios gerais do Direito, em grande parte constituci-

onalizados após lenta construção jurisprudencial. Com isso, restou deslocada a

discussão para os efetivos limites e as conseqüências dessa fiscalização judicial

dos desempenhos não vinculados da Administração Pública, in verbis:

A extensão do controle jurisdicional da atividade administrativanão vinculada, vale dizer, dos atos emanados da competênciadiscricionária ou decorrentes da valoração administrativa de con-ceitos verdadeiramente indeterminados, não se delimita a partir daexclusão de determinados atos administrativos do crivo do PoderJudiciário. Atualmente, à luz da moderna compreensão do Direito,todo e qualquer ato administrativo, inclusive o discricionário e oresultante da valoração de conceitos indeterminados, é suscetívelde revisão judicial, muito embora nem sempre plena, por meio daqual o Poder Judiciário examinará a compatibilidade de seu con-teúdo com os princípios gerais de Direito, para além da verificaçãodos aspectos vinculados do ato.

Isto porque, segundo a referida autora:

(...) a densidade da decisão do Poder Judiciário dos atos não vin-culados depende diretamente do preenchimento semântico doconteúdo dos princípios constitucionais da Administração Pública.A limitação desse controle jurisdicional das decisões exercidas noterreno da atividade administrativa não vinculada, condicionadapelos métodos ditados pelos princípios e pelo tipo de conceito in-determinado, projeta-se sobre suas conseqüências, que se res-tringem, na grande maioria das vezes, apenas a invalidar o atoimpugnado, sem determinar sua substituição por outro.

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Os atos administrativos discricionários, assim, não obstante passí-

veis de revisão judicial, tem que observar regra básica. Ao proceder à revisão do

ato discricionário, se o julgador concluir que o ato administrativo está conforme o

sistema de princípios e regras do ordenamento jurídico posto, deverá se abster de

continuar a questionar a validade do conteúdo do ato administrativo. Se concluir,

noutro passo, que esse ato feriu os princípios jurídicos, poderá exercer um con-

trole meramente negativo, restringindo-se a determinar a invalidação do ato, ca-

bendo à Administração Pública renovar sua expedição, excluído, por evidente, o

conteúdo anterior.

Ou seja, o julgador declara que o ato administrativo é inválido, mas

não pode apontar como deverá ser editado o novo ato. A partir daí caberá tão-só

ao administrador expedir outro ato, porquanto remanesce intocável certa área de

liberdade de decisão administrativa em cada caso concreto. O Poder Judiciário

verifica – conforme escreve EROS ROBERTO GRAU (1995:331) – se o ato é incorre-

to, mas não confirma qual o ato correto.

MORAES (2004:163) assinala, todavia, que em alguns casos excepci-

onais poderá o Poder Judiciário avançar à mera invalidação do ato impugnado:

Entretanto, em certas situações excepcionais, a depender das cir-cunstâncias de cada caso concreto e do modo de vulneração aosprincípios constitucionais da Administração, é possível ao Juiz in-ferir, da realidade e da ordem jurídica, qual a única decisão com-portável pelo Direito para solucionar o caso.

É que os princípios constitucionais da Administração, de caráter

instrumental, consoante assinala a citada autora, impõem certos parâmetros de

racionalidade ao processo de tomada de decisão. Em sendo assim, somente em

situações excepcionais, como por exemplo “sucede na aplicação do princípio da

igualdade, de natureza material, quando se equipara um caso a outros idênticos,

têm a virtualidade de apontar qual solução o órgão administrativo deva adotar no

caso concreto”.

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Compreendido o tema dos limites do controle da discricionariedade

dessa maneira, restará satisfeita a preocupação de não se exagerar o papel do

Judiciário e esgotar a função administrativa na execução estrita de mandamentos

expressos da lei.

Assim, embora haja sempre controle dos aspectos discricionários do

ato, isso só se dá na medida necessária da verificação de sua restrição aos limi-

tes impostos à discricionariedade pelo direito positivo. E a motivação é elemento

indispensável a essa análise pelo Judiciário, porque quanto menos intensamente

regrado o ato, mais a motivação far-se-á necessária ao seu controle e à sua vali-

dade.

Ao discorrer sobre o tema, ADILSON DE ABREU DALLARI (apud DUTRA

DE ARAUJO, 2005:135) leciona:

Exatamente a discricionariedade, longe de dar uma liberdade maior, obrigaa um maior rigor. Exatamente porque eu posso decidir de diferentes ma-neiras é que eu preciso deixar bem claro por que estou decidindo destadeterminada maneira e não de outra.

Entenda-se: porque a discricionariedade dá maior liberdade não se

pode confundir tal liberdade com imunidade jurisdicional, sendo daí maior o dever

de bem motivar o ato discricionário como requisito de sua validade.

Como antes disposto, a motivação dos atos administrativos tem o

papel de demonstrar que a interpretação se deu segundo a lógica do razoável,

que os fatos pressupostos do ato existem e estão aptos a deflagrar determinados

efeitos,que o agente tinha competência para atuar e que há coerência entre o

motivo e o conteúdo, tudo com vistas à finalidade legal. É pela motivação que o

administrador buscará persuadir os destinatários do ato e a comunidade em geral

de que sua decisão é a melhor. A partir da motivação é que o Poder Judiciário

poderá verificar a aderência do mesmo às regras e aos princípios, ou seja, sua

validade perante a ordem jurídica. Se ao final do processo são possíveis várias

soluções, mas aquela escolhida não se encontra albergada pelo sistema jurídico,

deve o Poder Judiciário limitar-se a anular a concreta solução impugnada, a fim

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de que a própria Administração, no uso do poder discricionário que a própria lei

reconhece, eleja posteriormente uma nova solução.

Outra preocupação crescente diz com o temor de muitos em relação

ao agigantamento e politização do Poder Judiciário. Para MORAES (2004:111):

Sob outra vertente, é mister perquirir até que ponto os Tribunaispodem controlar a Administração, sem que a transformem no "gi-gante atado de Lilliput", ao qual já foi comparada, a ponto de to-lher seu funcionamento. É certo que os princípios constitucionaisda Administração Pública, dentre os quais o da legalidade, e asnormas constitucionais protetoras dos direitos fundamentais, pro-piciam ao Poder Judiciário apreciar qualquer lesão ou ameaça adireito, potenciando, inclusive, o reconhecimento e a garantia doexercício dos direitos lesionados ou ameaçados. Contudo, a im-possibilidade de o julgador renovar os juízos de prognose doagente administrativo, durante a valoração dos conceitos indeter-minados e, de ponderação, durante o exercício da discricionarie-dade, para fins de constituir nova decisão, quando do Direito nãoé possível se inferir outra objetivamente, constitui o ponto de equi-líbrio que resguarda a autonomia da Administração, pois continua-rá competindo a ela, após a remoção do ato impugnado judicial-mente, reeditá-lo, ainda que sempre adstrita às limitações jurídi-cas contrastáveis jurisdicionalmente.

Compete registrar, entretanto, que a novel doutrina não pugna a

substituição da função administrativa pela jurisdicional, mas o simples controle

das hipóteses de ilegalidade, em função de normas e princípios contidos no sis-

tema jurídico posto. Como bem alude NOHARA (2004:204), as novas técnicas de

interpretação, que incorporam os princípios, “acirraram as hipóteses de controle,

porém, isso não implica que o Judiciário deva determinar como a Administração

deve agir, ou mesmo quais as melhores decisões a serem tomadas, quando estas

existem e são legítimas”.

3.7 Conseqüências para o Direito Administrativo

A significativa aproximação, observada nos últimos tempos, do Di-

reito Administrativo ao Direito Constitucional, mediante a qual os princípios assu-

mem parte significativa no sistema jurídico, acabou por produzir uma considerável

revisão dos conceitos nucleares desse ramo da Ciência Jurídica, dentre esses a

doutrina da discricionariedade administrativa. Nesse novo paradigma, os atos

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administrativos, mesmos os discricionários que extrapolem o mérito e maculem o

ato de ilegitimidade18 podem e devem ser controláveis pelo Poder Judiciário.

Nessa concepção, todo e qualquer ato administrativo é suscetível de

um controle jurisdicional mínimo, baseado nos princípios constitucionais e nos

princípios gerais de Direito. Na atual fase neopositivista, que pauta a hipermoder-

nidade, os atos discricionários devem ser controlados no que tange não só à sua

legalidade, mas também à sua adequação ao sistema jurídico. Como conseqüên-

cia dessa valorização dos princípios, revela-se um aumento na margem de vin-

culação dos atos discricionários.

Na busca do reencontro dos conceitos de Direito com o ideário de

Justiça, posição destacada nesse rol de princípios a serem controlados pelo Po-

der Judiciário, ocupa o princípio da moralidade, da proporcionalidade, da razoabi-

lidade, da fundamentação, da dignidade da pessoa humana, da proteção à confi-

ança, dentre outros. É que, como antes dito, no Estado Democrático de Direito a

atividade das autoridades administrativas nunca é completamente livre, mesmo as

discricionárias, uma vez que estão sempre vinculadas à Justiça.

Com efeito, num Estado Democrático de Direito o Poder Judiciário é

depositário do poder-dever indelegável de manter intacta a unidade da Constitui-

ção. Nesse passo, plenamente possível a apreciação do ato administrativo para

que esse não se desgarre dos princípios e das normas interpretados à luz do sis-

tema legal vigente. Os conceitos de conveniência e oportunidade do ato discricio-

nário já não mais podem ser vistos como suficientes e inatacáveis, pois de todo

vinculados aos dogmas constitucionais. E tal mudança deve-se, na visão de

MATTOS (2005:XLII-XLIII):

18 Segundo BANDEIRA DE MELLO (2006-2:82-83), é o que se passa naqueles atos: “(a) contamina-dos por intuitos pessoais - pois a lei está a serviço da coletividade e não do agente; (b) correspon-dentes a outra regra de competência, distinta da exercitada - pois à lei não são indiferentes osmeios utilizados; (c) que revelam opção desarrazoada - pois a lei não confere liberdade para pro-vidências absurdas; (d) que exprimem medidas incoerentes: 1. com os fatos sobre os quais oagente deveria exercitar seu juízo; 2. com as premissas de que o ato deu por estabelecidas; 3.com decisões tomadas em casos idênticos, contemporâneos ou sucessivos - pois a lei não sufra-ga ilogismos, nem perseguições, favoritismos, discriminações gratuitas à face da lei, nem soluções

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(...) ao compromisso constitucional a que todos os homens públicosestão vinculados quando da realização de seus atos, bem como agarantia objetiva de proteção aos direitos fundamentais da parte,que deixou de ser vista como um administrado, mero objeto do po-der, para ser destinatário de direitos e garantias individuais. Estasubstancial alteração colocou um ponto final na doutrina clássicadefendida por Maurice Hauriou do "processo ao ato", que via noprocesso administrativo uma soberania do Estado, atacável so-mente para a verificação da legalidade.

Esse pleno e eficaz exercício constitucional trazido ao âmbito do Di-

reito Administrativo contemporâneo aumenta a responsabilidade do Poder Judici-

ário de fiscalizar a Administração no que diz com a edição de atos discricionários

em conformidade com preceitos e princípios constitucionais. Mas esse poder-

dever do Judiciário não pode representar uma indevida intromissão na dinâmica

da independência de um Poder sobre o outro. Ao contrário: cabe por certo ao Po-

der Judiciário, como responsável pela salvaguarda da Constituição, fiscalizar o fiel

cumprimento dos ditames constitucionais, entre esses, se o ato discricionário foi

exercido dentro da sistemática constitucional.

Essa apreciação dos atos discricionários pelo Poder Judiciário não

representa uma invasão no poder alheio, como demonstrado no 2.º Capítulo, uma

vez que não mais prevalece a concepção construída por MONTESQUIEU, da ampla,

geral e irrestrita divisão dos Poderes. No Direito Administrativo da hipermoderni-

dade os Poderes são instituídos para dividirem funções que serão sempre disci-

plinadas e regradas pela Constituição, sendo certo daí que qualquer ato adminis-

trativo, exarado por quaisquer dos Poderes, estará sujeito à influência direta dos

princípios e das normas conjuntamente interpretados, à moda do Direito como

Integridade, de DWORKIN.

Há de se concluir, portanto, pela possibilidade de apreciação do ato

administrativo discricionário, que não mais poderá ficar imune ao controle judicial,

porquanto a verdadeira liberdade consiste exatamente em fazer tudo aquilo que a

Constituição estabelece. Com este eficaz controle do ato discricionário não se

está cerceando a Administração nem reduzindo a esfera de influência do Direito

aleatórias; (e) que incidem em desproporcionalidade do ato em relação aos fatos, pois a lei nãoendossa medidas que excedem ao necessário para atingimento de seu fim”.

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Administrativo, mas apenas garantindo ao Poder Judiciário seu dever-poder de

manter a unidade da Constituição, traduzida na aplicação conjugada dos princípi-

os e das regras do ordenamento jurídico, no afã de melhor atender aos anseios

da coletividade nesses tempos de tantas angústias e transformações.

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4.º CAPÍTULO

INTERPRETAÇÃO, JURISPRUDÊNCIA E HIPERMODERNIDADE

Como assinala ALFREDO CANELLAS SILVA (2005), o positivismo clássi-

co limitava a atividade jurisdicional às operações lógico–dedutivas do ordena-

mento legal editado pelo Estado. Alcançava-se a paz jurídica, mas não necessari-

amente a paz social. A decisão no caso concreto, apartada da responsabilidade

de se fazer justiça, resultava unicamente em expressa atenção ao princípio da

legalidade estrita.

Na hipermodernidade, entretanto, a sujeição da Administração à lei

não deve ser como no paradigma do positivismo puro, ou seja, na fiel e irrestrita

sujeição à letra da lei. Ao contrário, deve a Administração sujeitar-se à lei, mas

tão-só enquanto esta for válida na expressão do sistema jurídico no todo conside-

rado. Essa validade da lei, pois, não é um dogma ligado à simples existência for-

mal da lei, mas uma qualidade ligada à sua coerência ao ordenamento jurídico

posto, analisada e valorada caso a caso.

Nesse contexto, como já pontificado nos 2.º e 3.º Capítulos, não se

pugna o retorno à insegurança jurídica existente no período que antecedeu à Re-

volução Francesa. Há que se notar que à Administração, nos tempos de hoje, é

inconcebível a tomada de decisões arbitrárias, não obstante possam parecer le-

gais à luz do positivismo puro.

Na hipermodernidade deve ser perseguida a interpretação integrada

de normas e princípios, à maneira de DWORKIN, de vez que num Estado Demo-

crático de Direito a Administração deve sempre buscar atender aos crescentes

reclamos da coletividade, por intermédio dessa nova hermenêutica, que acaba

por representar efetivo aumento da própria segurança jurídica dos administrados,

tornando o Direito mais efetivo.

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Esse novo paradigma de valorização dos princípios, na linha do Di-

reito da Integridade, como já se disse, torna-se particularmente aplicável aos atos

discricionários, em especial aos casos difíceis, que representam os maiores de-

safios ao Administrador contemporâneo, porque neles há uma área de liberdade

que não é francamente definível à primeira vista.

Assim, face à nova hermenêutica, traduzida na aplicação integrada

de regras e princípios, o administrador possui área de discricionariedade mais

reduzida, porque injustificável que atue contrariamente ao sistema jurídico ao

mero argumento de que respeitada a legalidade estrita. Conclui-se que o controle

dos atos discricionários pelo Poder Judiciário se torna perfeitamente não só acei-

tável, mas necessário na hipermodernidade.

Sob essa óptica, as novas técnicas de interpretação, ao reduzir a li-

berdade do Administrador em favor de uma visão integrativa do Direito, acabaram

por aumentar a legitimidade dos atos discricionários da Administração, tornando-

os juridicamente consistentes com o ordenamento jurídico, consideradas as re-

gras e os princípios. Note-se que os princípios se prestam muito bem a essa fina-

lidade de busca do ideário de justiça. Além da força normativa que carreiam, são

mandados de máxima aplicação no caso concreto, coordenáveis com outros prin-

cípios eventualmente contrapostos, em especial ao da legalidade, mediante o uso

da técnica da ponderação.

O afastamento do positivismo jurídico não implica, portanto, na redu-

ção na segurança jurídica, mas sim num incremento dela para os administrados,

bem assim para a própria Administração. A interpretação e a conseqüente aplica-

ção do Direito sem considerar os princípios contidos no sistema jurídico podem

possibilitar a tomada de decisões injustas, embora lançadas em nome da lei. Po-

dem conduzir a atos sem validade plena, porque contrários à dimensão do Direito,

que deve ser sempre integrativa.

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4.1 A técnica da ponderação

Na hipermodernidade é inevitável que se promova a valorização da

unidade da Constituição, traduzida na integração sistêmica das regras e dos prin-

cípios contidos no ordenamento jurídico. Inadmissível, pois, que ocorram antino-

mias reais no sistema. Nesse sentido, as palavras de KONRAD HESSE (apud

SIQUEIRA CASTRO, 2005:60):

Todas as normas constitucionais devem ser interpretadas de talmaneira que se evitem contradições com outras normas constitu-cionais. A única solução do problema coerente com este princípioé a que se encontre em consonância com as decisões básicas daConstituição e evite sua limitação unilateral a aspectos parciais.

Na visão de SIQUEIRA CASTRO (2005:63), todo o confronto entre nor-

mas sediadas na Constituição configura mero conflito aparente, jamais um conflito

real de normas solucionável pela técnica da ponderação de valores e pela aplica-

ção do princípio da especialização temática:

(...) o abuso de direito, isto é, o exercício abusivo de um direitofundamental, esbarra na rejeição (explícita ou tácita) da ordem ju-rídica presidida pela Constituição em razão da exigência de com-patibilização entre as várias esferas jurídicas individuais, queconstitui pressuposto lógico e inarredável do sistema de liberda-des individuais.

Com o objetivo de resolver esse aparente conflito de normas, a ju-

risprudência desenvolveu a técnica da ponderação de princípios, pela qual se

busca aferir o alcance e a extensão daquele que, em dado caso concreto, possa

estar em confronto sem que um exclua o outro, mas que venham a ser tão-

somente sopesados considerada a importância relativa de cada um, para decidir

qual deles deve prevalecer ou sofrer menor constrição naquela situação concreta.

Nesse sentido, vale reproduzir o preciso comentário de KARL LARENZ

(2005:575):

Os direitos cujos limites não estão fixados de uma vez por todas,mas que em certa medida são 'abertos', 'móveis', e, mais preci-samente, esses princípios podem, justamente por esse motivo,

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entrar facilmente em colisão entre si, porque sua amplitude nãoestá de antemão fixada. Em caso de conflito, se se quiser que apaz jurídica se restabeleça, um ou outro direito (ou um dos bensjurídicos em causa) tem que ceder até um certo ponto perante ooutro ou cada um entre si. A jurisprudência dos tribunais consegueisto mediante uma ponderação dos direitos ou bens jurídicos queestão em jogo conforme o peso que ela confere ao bem respectivona respectiva situação. Mas ponderar e sopesar é apenas umaimagem; não se trata de grandezas quantitativamente mensurá-veis, mas do resultado de valorações que - nisso reside a maiordificuldade - não só devem ser orientadas a uma pauta geral, mastambém à situação concreta em cada caso.

BARROSO (2006:55) entende que o Direito, por ser um sistema de

normas harmonicamente articuladas, não permite que uma determinada situação

possa ser regida simultaneamente por duas disposições legais que se contrapo-

nham. A técnica da ponderação pode ser descrita como sendo:

(...) uma técnica de decisão própria para casos difíceis (do inglês"hard cases"), em relação aos quais o raciocínio tradicional dasubsunção não é adequado. A estrutura geral da subsunção podeser descrita da seguinte forma: premissa maior - enunciado nor-mativo – incidindo sobre a premissa menor - fatos - e produzindocomo conseqüência a aplicação da norma ao caso concreto. Oque ocorre comumente nos casos difíceis, porém, é que convi-vem, postulando aplicação, diversas premissas maiores igual-mente válidas e de mesma hierarquia, que todavia indicam solu-ções normativas diversas e muitas vezes contraditórias. A sub-sunção não tem instrumentos para produzir uma conclusão queseja capaz de considerar todos os elementos normativos perti-nentes; sua lógica tentará isolar uma única norma para o caso.

O propósito da ponderação é solucionar conflitos normativos da ma-

neira menos traumática para todo o sistema, de modo que as normas em oposi-

ção continuem a conviver, sem a negação de qualquer delas, ainda que em de-

terminado caso concreto possam ser aplicadas em intensidades diferentes.

No pensamento de BARROSO (2006:339-340), o modelo de interpre-

tação tradicional19 foi concebido para a aplicação de regras. No entanto:

(...) o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuiçãoequilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempe-

19 São, segundo este autor, três critérios de interpretação tradicional: o da hierarquia, pelo qual alei superior prevalece sobre a inferior; o cronológico, mediante o qual a lei posterior prevalece so-bre a anterior; e o da especialização, em que a lei específica prevalece sobre a lei geral.

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nham o papel referente à segurança jurídica - previsibilidade eobjetividade das condutas - e os princípios, com sua flexibilidade,dão margem à realização da justiça do caso concreto.

Em suma. A ponderação pode ser descrita como a técnica pela qual

se procura estabelecer o peso relativo de cada um dos princípios considerados no

caso concreto. Não existe um critério abstrato que imponha a supremacia de um

sobre o outro. Deve-se, por isso, fazer concessões recíprocas, de modo a produ-

zir um resultado socialmente desejável, sacrificando o mínimo de cada um dos

princípios envolvidos. Não há superioridade formal de um em relação a outro, mas

a simples determinação da solução que melhor atende ao ideário de justiça na

situação apreciada.

Há que registrar que a técnica da ponderação, como mecanismo de

convivência de normas que tutelam valores ou bens jurídicos contrapostos, con-

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ção à legalidade pura, a técnica de ponderação faz exatamente a diferença entre

o Estado meramente de Direito e o Estado Democrático de Direito.

Como aduz OSWALDO LUIZ PALU (2005:112-113), se o Estado de Di-

reito era vinculado ao princípio da legalidade, o Estado Democrático de Direito

prende-se ao princípio da constitucionalidade. A mudança é “radicalmente pertur-

badora nas intercorrências entre as funções estatais, especialmente pela aceita-

ção - implícita ou explícita - do princípio da ampla jurisdicionalidade”.

Discorrendo sobre essa questão, PALU (2005:113-115) é contun-

dente ao tecer críticas ao que chama de Estado Legal:

O Estado Legal esgarçou completamente alguns elementos fun-dantes do Estado de Direito: erodiu o princípio da legalidade edesfigurou da lei o vetor Justiça. A separação de poderes já esta-va relativamente claudicante, eis que não havia mais Executivo eLegislativo separados, mas um amálgama de ambos, o "Governo";seria, aliás, difícil acreditar que um dia pudesse haver existido, naprática, uma tal divisão teórica. Mas o Estado legal fez coisa pior.Levou à obsolescência a própria legalidade - como limitação aoarbítrio -, novamente engendrando uma nova concentração dopoder. Esvaziada a legalidade, destruída estava a idéia de Justiça,em substância, relativizando-a e reduzindo-a à norma, na concep-ção de Hobbes e de Kelsen. Qualquer conteúdo poderia ser lei; alei não era mais garantia alguma, seu conteúdo tinha por limites,apenas, a vontade de quem detivesse o poder.

E prossegue o autor:

E estes fatores refletiram também na razão pela qual foi concebi-do o Estado de Direito, o controle do poder. Se o conteúdo da leiera incerto (tudo poderia ser lei), enfraquecido estava o controledos atos estatais. Tanto o Legislativo (em realidade, "Governo")como a Administração necessitavam agora apenas de sua vonta-de para transformá-la em obrigação jurídica (lei), bem assim oatuar administrativo: não havia mais parâmetros para controlar avontade administrativa; este parâmetro não era mais fornecidopela lei, não havia mais lei, mas vontade governamental normati-zada. Se a Administração poderia fazer tudo o que a lei não proi-bisse (vinculação negativa da Administração, "negativa Bindung"),o governo elaborava a lei à sua vontade, qualquer lei.

No Estado Democrático de Direito a questão é de todo diferente. A

Administração não mais se assenta no princípio da legalidade, mas se submete

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ao Direito entendido como um todo, em uma visão sistêmica, integrada. Enquanto

o Estado de Direito pautava-se na desconfiança em relação ao Estado, procuran-

do, daí, conter o poder público, para que esse não se tornasse opressivo, o Esta-

do Democrático de Direito surgiu para não só garantir a segurança jurídica, mas

também para se evitar o arbítrio e garantir uma atuação estatal com base no ideal

de justiça.

E é exatamente por isso que, na hipermodernidade, na linha da teo-

ria do Direito como Integridade, tão importante como a legalidade dos atos é a

conformação desses com os princípios e regras contidos no ordenamento jurídico,

o que torna os atos administrativos, inclusive os discricionários, plenamente con-

troláveis pelo Poder Judiciário, como se observa em decisões recentes das cortes

superiores pátrias.

4.3 A construção da jurisprudência da hipermodernid ade

A título de reforço de argumentação, demonstrando que as transfor-

mações que se dizem presentes na hipermodernidade, além de afetarem a dou-

trina já estão alcançando as decisões das cortes superiores, é que se trazem a

lume três exemplos de recentes julgados, mediante os quais a legalidade estrita,

em atos discricionários, veio a ser mitigada a part

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servados, traduzidos no princípio da dignidade da pessoa humana e nos direitos

fundamentais.

Ressalte-se que todos os precedentes em evidência denotam ade-

rência à teoria de DWORKIN, com o prestígio à técnica da ponderação de valores

constitucionais, considerado o caso concreto.

CASO 1: A contraposição do princípio da legalidade estrita com a cláusulado devido processo legal e com princípio da dignida de da pessoa humana –A redução da discricionariedade nos atos relativos à nomeação nos concur-sos públicos:

A acessibilidade aos cargos e empregos da Administração mediante

concurso público representa uma das mais expressivas normas constitucionais

que dispõem sobre o regime jurídico dos servidores públicos. A Constituição Fe-

deral é expressa ao estabelecer o princípio da ampla acessibilidade aos cargos e

empregos públicos àqueles que preencherem os requisitos estabelecidos em lei,

mediante concurso de provas ou de provas e títulos.

Confira-se do texto constitucional:

Art. 37.

(...)

I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos

brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, as-

sim como aos estrangeiros, na forma da lei;

II – a investidura em cargo ou emprego público depende de apro-

vação prévia em concurso público de provas ou de provas e títu-

los, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou em-

prego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para

cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exone-

ração;

III – o prazo de validade do concurso público será de até dois

anos, prorrogável uma vez, por igual período;

IV – durante o prazo improrrogável previsto no edital de convoca-ção, aquele aprovado em concurso público de provas ou de pro-

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vas e títulos será convocado com prioridade sobre os novos con-cursados para assumir cargo ou emprego, na carreira; (...)

Assim, os concursos públicos, em atenção ao princípio da legalidade

e à cláusula do devido processo legal, devem conferir tratamento igualitário e im-

pessoal aos participantes (incisos I e II), à mingua de restar malferida a finalidade

pública, e terão prazo de validade de até dois anos, prorrogáveis por igual período

(inciso III), sendo certo que, durante sua vigência, os candidatos aprovados terão

precedência para nomeação sobre quaisquer novos concursados (inciso IV).

Segundo BANDEIRA DE MELLO (2006:266), o que a Constituição obje-

tivou com os citados princípios da acessibilidade e do concurso público foi:

(...) de um lado, ensejar a todos iguais oportunidades de disputarcargos ou empregos na Administração direta ou indireta. De outrolado, propôs a impedir tanto o ingresso sem concurso, ressalvadaas exceções previstas na Constituição, quanto obstar a que o ser-vidor habilitado por concurso para cargo ou emprego de determi-nada natureza viesse depois a ser agraciado com cargo ou em-prego permanente de outra natureza, pois seria uma forma defraudar a razão de ser do concurso público.

Por sua vez, o estatuto jurídico do servidor público civil (Lei n.°

8112/90), também detalha regras relativas aos certames de acesso ao serviço

público:

Art. 11. O concurso será de provas ou de provas e títulos, poden-do ser realizado em duas etapas, conforme dispuserem a lei e oregulamento do respectivo plano de carreira, condicionada a ins-crição do candidato ao pagamento do valor fixado no edital, quan-do indispensável ao seu custeio, e ressalvadas as hipóteses deisenção nele expressamente previstas.(Redação dada pela Lei nº9.527, de 10.12.97)

Art. 12. O concurso público terá validade de até 2 (dois ) anos,podendo ser prorrogado uma única vez, por igual período.

§ 1.º O prazo de validade do concurso e as condições de sua rea-lização serão fixados em edital, que será publicado no Diário Ofi-cial da União e em jornal diário de grande circulação.§ 2.º Não se abrirá novo concurso enquanto houver candidatoaprovado em concurso anterior com prazo de validade não expi-rado.

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Da leitura dos dispositivos legais supra, depreende-se que o legisla-

dor objetivou reiterar os comandos constitucionais relativos à matéria, em especial

aquele que proíbe a Administração de abrir novo certame enquanto houver candi-

dato aprovado em concurso anterior, com prazo ainda vigente (§ 2.°). Considera-

da a prioridade na convocação dos candidatos aprovados, a Administração só

poderá preencher as vagas existentes dentro do período de validade do concurso,

com aqueles candidatos aprovados no certame, em atenção, inclusive, ao enten-

dimento sumulado trazido no Enunciado n.º 15, do eg. STF20.

Quanto ao prazo de validade do concurso, não poderá o administra-

dor deixá-lo escoar em vão, sem qualquer justificativa, para evitar a regra de prio-

ridade, nomeando os candidatos aprovados no concurso sucessivo, uma vez que

isto seria, no sentir de BANDEIRA DE MELLO (2006-1), um desvio de finalidade. O

desrespeito à ordem classificatória para nomeação decorrente de concurso públi-

co, pois, acarretaria a efetiva nulidade do ato.

A matéria concernente à discricionariedade nos atos relativos à no-

meação de candidatos aprovados nos concursos públicos, que era tida como pa-

cífica nas cortes superiores, vem sofrendo modificações de relevo, em razão da

aplicação da cláusula do devido processo legal em sua acepção substantiva, face

ao exame pelo Judiciário de seus elementos integradores, traduzidos em igualda-

de, razoabilidade, proporcionalidade e motivação, bem como em razão da ponde-

ração do princípio da dignidade da pessoa humana com o da legalidade estrita.

Com efeito, de um entendimento praticamente consolidado na juris-

prudência das cortes superiores pátrias, no sentido de entender que o ato de no-

meação - porque a posse em concurso representaria mera expectativa de direito -

era tipicamente discricionário, que não se submetia, pois, à apreciação judicial,

passa-se, na contemporaneidade, a uma abordagem exegética em que tais atos,

não obstante o mérito administrativo, podem e devem ser apreciados pelo Judiciá-

rio, em homenagem tanto à cláusula do devido processo legal quanto ao princípio

20 Súmula 15: “Dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem o direito anomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação”.

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da dignidade da pessoa humana, sopesados, no caso concreto, com o princípio

da legalidade estrita.

A importância do princípio do devido processo legal, em sua acep-

ção substantiva, e a função de seus elementos integradores (igualdade, razoabili-

dade, proporcionalidade e motivação) já foi objeto de análise no 2.º CAPÍTULO.

Quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, algumas linhas merecem

ser trazidas.

A dignidade da pessoa humana é um dos princípios constitucionais

que orientam a construção e a interpretação de um sistema jurídico. Representa,

segundo os ensinamentos de JOSÉ AFONSO DA SILVA (2002:105), "um valor supre-

mo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o

direito à vida".

Para LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO (2006), o referido princípio consti-

tucional significa que o Estado se erige sob a noção da dignidade da pessoa hu-

mana, i.é, que é um dos fins do Estado propiciar as condições para que as pes-

soas se tomem dignas. Para DROMI (2005:35), “os direitos fundamentais derivam

exatamente da dignidade da pessoa humana, destinatário principal e derradeiro

da proteção do Estado”. E mais: da dignidade da pessoa humana “emana a igual-

dade essencial de todos os homens, enquanto seres livres e com capacidade de

razão”. BARROSO (2006:38-39) identifica como elemento instrumental da dignidade

humana o acesso à Justiça, indispensável para que se possa exigir e efetivar di-

reitos dos administrados:

Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valorescivilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conte-údo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais,envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais.Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existência,locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas paraa subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liber-dade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência,não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o míni-mo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva dequem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que in-clui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há

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ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indis-pensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos.

JESÚS PÉREZ (1986:19) bem sintetiza a necessidade de se prestigiar

o princípio da dignidade da pessoa humana:

O ser humano, sua dignidade e os direitos que lhe são inerentesconstituem temas centrais da Ciência e da Filosofia do Direito.Mas seu interesse ultrapassa os limites estritamente científicos,para integrar-se na área da problemática especificamente huma-na. Nos últimos anos, erigiram-se em valores políticos supremos,que é necessário consagrar, garantir e proteger. Chegou-se mes-mo a acreditar que a dignidade da pessoa não alcançara o reco-nhecimento pleno no Direito; que no mundo de trevas que nos

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Sob o arrastão do princípio da dignidade humana efetivou-se nãoapenas a superação da tradicional divisão entre o domínio do Es-tado e o domínio da sociedade civil, que por sua vez embasara aseparação entre o direito público e o direito privado.

O princípio da dignidade do homem, pois, fornece o instrumental ne-

cessário para a melhor interpretação do caso concreto, transmitindo valores, indi-

cando o caminho correto a ser seguido pelo Estado. No caso específico, conside-

rada a importância da cláusula do devido processo legal e do princípio da digni-

dade da pessoa humana, é que a antiga jurisprudência encontra-se em franca

transformação. Na hipermodernidade já não há mais como se defender a tese de

que a aprovação em concurso público não gera direito adquirido à convocação no

prazo de validade do certame, representando tão-só expectativa de direito e que

tal expectativa apenas merece guarida jurisdicional acaso venha a ocorrer preteri-

ção na ordem de convocação.

Essa mudança de paradigma não foi rápida: é produto de longa

maturação. A título de ilustração, confira-se o até bem pouco tempo consolidado

entendimento jurisprudencial das cortes superiores, da leitura das ementas a se-

guir transcritas.

Do eg. Supremo Tribunal Federal:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO:CONCURSO PÚBLICO. DIREITO À NOMEAÇÃO. SÚMULA 15-STF.I. - A aprovação em concurso público não gera, em princí pio,direito à nomeação, constituindo mera expectativa d e direito.Esse direito surgirá se for nomeado candidato não a provadono concurso, se houver o preenchimento de vaga sem obser-vância de classificação do candidato aprovado (Súmu la 15-STF) ou se, indeferido pedido de prorrogação do pra zo doconcurso, em decisão desmotivada, for reaberto, em seguida,novo concurso para preenchimento de vagas oferecida noconcurso anterior cuja prorrogação fora indeferida em deci-são desmotivada .II. - Precedentes do STF: MS 16.182/DF, Ministro Evandro Lins(RTJ 40/02); MS 21.870/DF, Ministro Carlos Velloso, "DJ" de19.12.94; RE 192.568/PI, Ministro Marco Aurélio, "DJ" de 13.9.96;RE 273.605/SP, Ministro Néri da Silveira, "DJ" de 28.6.02. III. -Negativa de seguimento ao RE. Agravo não provido (RE 419013AgR/DF, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJU 25-06-2004, p. 59) –grifou-se –

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RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ADVOGADO-DE-OFÍCIO SUBSTITUTO DA JUSTIÇA MILITAR: NÃO PROVIMEN-TO DOS CARGOS POR ATO DA ADMINISTRAÇÃO; DESNE-CESSIDADE DE PROVIMENTO DOS CARGOS VAGOS PARAOS QUAIS FOI REALIZADO CONCURSO PÚBLICO DE PROVASE TÍTULOS. ENTENDIMENTO DA SÚMULA Nº 15 DO STF. IN-DENIZAÇÃO POR FALTA DE NOMEAÇÃO.1- A doutrina e a jurisprudência têm-se orientado no sentido dadiscricionariedade quanto à oportunidade e conveniê ncia deprover os cargos públicos . I- Não vicia a legalidade e a legitimi-dade o ato administrativo que, fundamentado na inexistência denecessidade, decide não prover os cargos vagos. II- A simplesconvocação, sem motivo explicitado, de candidato classificado emsituação inferior não significa certeza de nomeação nem demons-tra interesse da Administração em preencher as vagas existentes,não gerando direito ao provimento do cargo.2- Na interpretação da Súmula nº 15, desta Corte, o que se as-segura ao concursado habilitado é o direito à nomea ção, noprazo de validade do concurso, quando ele é preteri do porcandidato em situação inferior na ordem de classifi cação dosaprovados .3- A norma constitucional ínsita no art. 37, § 6º, refere-se à res-ponsabilidade civil do Estado por danos causados a terceiros naprestação de serviços públicos, não ensejando qualquer indeniza-ção ao candidato habilitado em concurso público mas não nomea-do por interesse da Administração. 4- Recurso ordinário improvi-do. (RMS 22063/RJ, Relator designado para o acórdão Min.MAURÍCIO CORRÊA, DJU 07-12-1995, p.42608). – grifou-se –

Do eg. Superior Tribunal de Justiça:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SE-GURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. EXPECTATIVA DE DIREI-TO. NOMEAÇÃO. ATO DISCRICIONÁRIO. PRAZO DE VALIDA-DE. PRORROGAÇÃO. DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATI-VA. ORDEM DENEGADA.1 - Consoante entendimento doutrinário e jurisprudencial, os con-cursandos não possuem direito subjetivo à nomeação, masapenas expectativa. Assim sendo, não há qualquer im posiçãoà Administração de nomear os aprovados dentro do pr azo devalidade do certame, a menos que tenha havido prete rição naordem classificatória ou contratação a título precá rio, o quenão se verifica na hipótese dos autos . Precedentes.2 - O surgimento de novas vagas, dentro do prazo de validade doconcurso, não impõe à Administração o dever de preenchê-las,porquanto a nomeação dos aprovados sujeita-se ao juízo discrici-onário da Administração. Precedentes.3 - A prorrogação do concurso público constitui faculdade outor-gada à Administração Pública, que a exerce consoante critérios deconveniência e oportunidade, os quais escapam ao reexame feito

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pelo Poder Judiciário, que está adstrito à verificação da legalidadeextrínseca do ato. Precedentes.4 - Ordem denegada (MS 9909/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ,TERCEIRA SEÇÃO, DJ 30.03.2005, p. 131) – grifou-se –

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO PARA FISCAL DERENDAS DO MUNICÍPIO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES/RJ.CANDIDATO APROVADO E CLASSIFICADO DENTRO DO NÚ-MERO DE VAGAS PREVISTO NO EDITAL. EXPECTATIVA DEDIREITO À NOMEAÇÃO. RECURSO EM MANDADO DE SEGU-RANÇA.1. É unânime na doutrina e na jurisprudência o entendi mentode que o êxito no concurso, por si só, não gera dir eito adqui-rido para o habilitado ser nomeado dentro do seu pr azo devalidade; tal direito só emerge quando o candidato é preteridoem benefício de outro com classificação inferior .2. A competência do Município para organizar o seu funcionalismoé consectário da autonomia administrativa de que dispõe (CF, Art.30, I); para o provimento de seus cargos públicos, deve o Municí-pio estar adstrito apenas ao que dispõe sua Lei Orgânica, atéonde guarde consonância com a norma constitucional. Inaplicabi-lidade à hipótese do Art. 77, VII, da Constituição do Estado do Riode Janeiro, que garante o direito de nomeação aos candidatosaprovados dentro do número de vagas. 3. Recurso não provido.(QUINTA TURMA – RMS 9539/RJ – Rel. Min. EDSON VIDIGAL –DJU 28.02.2000). – grifou-se –

Tal entendimento, entretanto, foi alterado recentemente. Com efeito,

a moderna jurisprudência assinala ao candidato aprovado, desde que dentro do

número de vagas previsto no edital, direito à nomeação, consoante as mais re-

centes decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal Superior Eleitoral.

É o que se verifica da leitura da ementa que restou redigida no RMS

nº 15.034-RS, da relatoria do Ministro Felix Fischer, publicada no DJU de

29/03/04:

ADMINISTRATIVO. CONCURSO PÚBLICO. NOMEAÇÃO. DI-REITO SUBJETIVO. CANDIDATO CLASSIFICADO DENTRODAS VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. ATO VINCULADONão obstante seja cediço, como regra geral, que a a provaçãoem concurso público gera mera expectativa de direit o, tem-seentendido que, no caso do candidato classificado de ntro dasvagas previstas no Edital, há direito subjetivo à n omeaçãodurante o prazo de validade do concurso. Isso porqu e, nessahipótese, estaria a Administração adstrita ao que f ora esta-belecido no edital do certame, razão pela qual a no meação

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fugiria ao campo da discricionariedade, passando a ser atovinculado. Precedentes do STJ e STF . Recurso provido. - grifou-se –

Para melhor compreensão dos fundamentos trazidos no voto con-

dutor do referido acórdão, cumpre destacar o seguinte trecho, verbis:

A República Federativa do Brasil, constituindo-se em Estado De-mocrático de Direito, tem como um dos fundamentos, a dignidadeda pessoa humana – artigo 1º, inciso III da Constituição Federal.Na realização de um concurso público, que muito tem a ver comesse direito natural do homem, as normas de regência fazem-sedirecionadas ao equilíbrio da relação jurídica candidato-Estado. Éessa a premissa a nortear a definição de possíveis conflitos surgi-dos na angustiante caminhada no sentido de alcançar-se, medi-ante ocupação de cargo público, a almejada segurança jurídica.Pois bem, o recorrente acorreu ao chamamento da AdministraçãoPública para participar do concurso destinado ao preenchimentode cargos de Fiscal do Trabalho. Fê-lo, certamente, após sopesaras balizas objetivas do certame, as possibilidades de, ante ao nú-mero de vagas, vir a lograr êxito. Desnecessário é dizer as limita-ções, na vida gregária, decorrentes do engajamento em um con-curso. Considerando o grau maior ou menor de dificuldades, ocandidato dedica-se, de corpo e alma, às provas, impondo limita-ções à convivência com terceiros e, quase sempre, desligando-sede atividade econômico-financeira para melhor aplicar-se nessaverdadeira via crucis. Uma certa expectativa é formada, e o míni-mo que se pode desejar é a ausência de mudanças de enfoques,de surpresas que acabem por afastar as premissas primeiras eque vieram a estimular o candidato a inscrever-se.

Também no eg. Supremo Tribunal Federal, ainda que em voto ven-

cido, da lavra do em. Ministro Marco Aurélio, em sede do AI 381.529 AgR/SP, da

relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, publicado no DJU de 03-06-2005, p. 41,

a nova tendência já transparece. Confira-se de trecho extremamente didático ex-

traído do referido voto:

(...) A premissa de meu voto é de que a Administração Públicanão pode brincar com o cidadão que se inscreve para fazer umconcurso. Se anuncia no edital o número de vagas e diz que ocertame é para o preenchimento, fica o Estado, do qual espera-mos postura exemplar, compelido a nomear (...).

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A bem da verdade, a tese sustentada pelo em. Ministro Marco Auré-

lio, vencida no acórdão referenciado, já havia sido sustentada com êxito, em situ-

ação que recebeu, entretanto, tratamento excepcional, no julgamento do RE

192.568/PI, publicado em 13/09/96. Do voto condutor desse julgado, colhem-se

as seguintes passagens:

Todos nós sabemos as dificuldades enfrentadas quando da feiturade qualquer concurso, a exacerbarem-se quanto maior for a es-colaridade exigida. Os candidatos, almejando melhoria quer sob oângulo profissional, quer sob o ângulo econômico, quase semprededicam-se com exclusividade aos estudos, especialmente quan-do em jogo cargos de difícil acesso como são os compreendidosno âmbito da magistratura, do Ministério Público e das Procurado-rias Estaduais. Desligam-se das atividades que viabilizam o pró-prio sustento, passando a depender dos familiares, cuja convivên-cia, ainda que de forma momentânea, sacrificam, em face da elei-ção de um objetivo maior. Por outro lado, conforme ressaltado nainicial de folhas 2 a 21, confiam nos parâmetros constantes dasnormas regedoras do concurso, procedimento que é antecedidoda análise das chances havidas.

Em um Estado Democrático de Direito, exsurge a constância namanutenção da dignidade do homem, exigindo-se, por isso mes-mo, postura exemplar. O caso dos autos é típico, no que o Tribu-nal de Justiça do Estado do Piauí, o Poder Judiciário desse Esta-do, acabou por tripudiar, colocando em plano secundário condi-ções divulgadas. (...)

A interpretação de dispositivo legal ou constitucional há de fazer-se de modo sistemático e teleológico, métodos aos quais não sesobrepõe o alusivo à interpretação verbal. Se a Carta assegura,no prazo de validade do concurso, a convocação de candidatosnele aprovados com prioridade sobre novos concursados, ou seja,candidato aprovados em concurso posterior, é de concluir-se quea inércia, intencional, ou não, da administração pública, deixandode preencher cargos existentes, leva à convicção sobre a titulari-dade do direito subjetivo de ser nomeado. No campo da atuaçãoadministrativa, não se pode admitir atos que consubstanciem ter-giversação, verdadeiro drible a normas imperativas como são asconstantes da Carta de 1988. (...)

A hipótese vertente não pode ficar na vala comum da jurisprudên-cia engessada na máxima de que os concursados têm simplesexpectativa e não o direito à nomeação. As singularidades queacabo de ressaltar, fazendo-o até mesmo com tintas um poucofortes, porquanto presente o sentido pedagógico, conduzem apostura diversa, restabelecendo-se a confiança dos Recorrentes,no que resolveram abraçar a carreira em que tal predicado exsur-ge, com insuplantável valia.

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No âmbito do Tribunal Superior Eleitoral, entretanto, em recente

acórdão22, a tese do Ministro Marco Aurélio sagrou-se vencedora, por maioria,

modificando a posição daquela Corte23.

Eis a ementa do julgado:

CONCURSO PÚBLICO - PRAZO DE VALIDADE - EXAURIMEN-TO - INTERESSE DE AGIR. Na dicção da ilustrada maioria, ven-cido o relator, o exaurimento do prazo de validade de concursopúblico é elemento neutro em termos de impetração superveni-ente visando a alcançar nomeação.CONCURSO PÚBLICO - EDITAL - VAGAS - DIREITO SUBJETI-VO À NOMEAÇÃO. Obrigando o edital de concurso a administra-ção pública e candidatos, a existência de vagas, previamenteanunciadas, no prazo de validade gera o surgimento do direito ànomeação.

Os fundamentos do voto condutor do citado RMS 339/PR24, cujo jul-

gamento restou finalizado em 24/11/05, no ponto, foram os seguintes:

É fundamento da República a preservação da dignidade do ho-mem, é o que nos vem do primeiro artigo da Constituição Federal,que Ulysses Guimarães apontou como Constituição cidadã.

Tenho sustentado, a partir dessa visão, que o Estado não podebrincar, tripudiar, em cima do cidadão. Tenho sustentado que háde se evoluir, considerada vetusta jurisprudência, segundo a qual,apenas em caso de preterição se tem o direito subjetivo à nomea-ção.

O edital é lei entre as partes. É a lei do certame: obriga candidatose também a administração pública. E se a administração públicasinaliza, visando arregimentar, para os respectivos quadros, certo

22 RMS 339/PR, publicado no DJU de 17/02/2006, p. 126.23 Em 12/05/2005, o TSE negou provimento, por maioria, vencidos os Min. Marco Aurélio e Hum-berto Gomes de Barros, ao RMS 343, cuja ementa restou vazada nos seguintes termos, verbis:

“FUNCIONARISMO PÚBLICO. JUSTIÇA ELEITORAL. CARGO. PREENCHIMENTO. CONCURSOPÚBLICO. CANDIDATOS APROVADOS. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO. INEXISTÊNCIA.PRAZO DE VALIDADE DO CONCURSO. NÃO-PRORROGAÇÃO. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMI-NISTRAÇÃO PÚBLICA. CRIAÇÃO ULTERIOR DE NOVOS CARGOS. IRRELEVÂNCIA.MANDADODE SEGURANÇA DENEGADO. RECURSO IMPROVIDO. VOTOS VENCIDOS. Candidato aprovadoem concurso público não tem direito subjetivo a ser nomeado após a não-prorrogação, pela Adminis-tração Pública, do prazo de validade, não obstante a criação ulterior de novos cargos”.

24 O referido RMS foi provido por maioria de votos, para conceder a ordem, vencidos os MinistrosCarlos Britto e Marcelo Ribeiro, tendo acompanhado o Relator, Ministro Marco Aurélio, os Minis-tros Gomes de Barros, José Delgado e Gerardo Grossi.

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número de servidores, os candidatos, aprovados e classificados,têm em patrimônio ação exercitável para lograrem as nomeações.(...)

Em síntese, Senhor Presidente, não posso sufragar vetusta juris-prudência que restou assentada na premissa de que somente hádireito subjetivo à nomeação, ocorrida a preterição. Aqueles quetêm vivência no âmbito administrativo, que se preocupam com avida gregária, sabem o que é a feitura, a mobilização gerada pelafeitura de um concurso. Se a administração, objetivando arregi-mentar, se propõe a realizar um concurso público, existentes va-gas, não o faz para brincar com o candidato, não o faz simples-mente para aferir se o candidato tem condições ou não de assumiro cargo. Ela o faz para, uma vez aprovados os candidatos, numaverdadeira via-crúcis, vir a nomeá-los, e não simplesmente brincarcom esses mesmos candidatos (...).

Assim, não obstante por muito tempo a doutrina e a jurisprudência

pátrias terem firmado entendimento no sentido de que a aprovação em concurso

público geraria mera expectativa de direito à nomeação, sendo certo que a apre-

ciação pelo Judiciário só poderia ocorrer acaso violada a ordem de classificação,

nos tempos de hoje a questão tem sido endereçada em sentido diverso.

Esse novo posicionamento, na tônica da hipermodernidade e da teo-

ria do Direito como Integridade, de DWORKIN, objetiva evitar situações lesivas ao

direito subjetivo dos candidatos, os quais, após intensa dedicação, devidamente

aprovados dentro do número de vagas oferecidas pela Administração, acabavam

por experimentar as agruras de ver esgotar-se o prazo de validade do concurso,

sem a almejada – e merecida - nomeação. É que, se a Administração oferece no

edital determinado número de vagas, os candidatos aprovados naquele limite têm

inegável direito subjetivo à nomeação.

Desta feita, a evolução da jurisprudência pátria acaba por reconhe-

cer que a aprovação em concurso público pode dar ao candidato o direito de ser

aproveitado nas vagas ativas que existirem, sendo certo que a contraposição do

princípio da legalidade à cláusula do devido processo legal (observados os seus

elementos integradores: igualdade, razoabilidade, proporcionalidade e motiva-

ção), bem assim ao princípio da dignidade da pessoa humana, é de todo possível

e necessária, a partir da técnica da ponderação, podendo ser apreciada pelo Po-

der Judiciário, consideradas as circunstâncias do caso concreto.

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A título de conclusões quanto ao ponto, pode-se então assinalar:

1) A moderna linha de entendimento dos tribunais pátrios encontra-

se em franco processo de mudança. De fato, não é mais razoável acatar-se, sem

qualquer discussão, a máxima de que “o candidato aprovado em concurso público

não tem direito à nomeação, mas mera expectativa de direito”;

2) No Brasil, em especial, tendo em vista as dificuldades para in-

gresso no mercado de trabalho, o acesso aos cargos públicos vem exigindo um

preparo cada vez maior por parte dos candidatos. Trata-se de grande sacrifício

exigido do administrado, que não pode ser tratado com desprezo pela Administra-

ção Pública, sob o véu da discricionariedade;

3) Diante desse contexto, novel orientação se faz necessária no or-

denamento jurídico, sob pena de o direito mostrar-se não apenas anacrônico, mas

sobretudo injusto;

4) Tal o quadro, é necessário que a autoridade pública, no exercício

da função administrativa, observe, em todos os atos que revestem os concursos

públicos, à cláusula do devido processo legal em sua acepção substantiva, assim

como compreenda o relevo do princípio da dignidade da pessoa humana;

5) No caso das nomeações dos candidatos aprovados, a mesma ne-

cessidade de demonstração do interesse público para a abertura do certame deve

ser observada quando da eventual impossibilidade da Administração proceder a

tais nomeações. Já que havia interesse público em realizar provimento de cargos,

há que ser devidamente justificada a razão, face ao mesmo interesse público,

para o não-preenchimento integral dos mesmos.

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CASO 2: A contraposição do princípio da legalidade estrita com o princípioda proteção à confiança, considerado o conceito jur ídico indeterminado da“boa-fé”:

As bases do Estado Democrático do Direito estão lançadas sob dois

pilares: legalidade e segurança jurídica. Nessa linha de raciocínio, esses dois

conceitos jurídicos freqüentemente se complementam, na busca do ideal de Justi-

ça.

A segurança jurídica, entretanto, tem significado especial, porque é a

partir desse princípio que a relação que têm os cidadãos com o Estado pode ser

regulada. Ou seja, a presunção de legalidade que têm os atos emanados do Es-

tado acaba por ser contraposta à necessidade de que sejam os particulares de-

fendidos, em determinadas circunstâncias, contra fria e mecânica aplicação da lei.

Para se entender o princípio da segurança jurídica, necessário se

faz, desde logo, distinguir precisamente o significado das expressões boa-fé, se-

gurança jurídica e proteção à confiança.

Na lição de ALMIRO COUTO E SILVA (2005), fala-se de boa-fé desde o

mundo romano, tendo sido firmado tal conceito no Direito Privado. Há dois senti-

dos: sentido subjetivo (p.ex. usucapião); sentido objetivo (p.ex. respeito à lealda-

de, correção e lisura do comportamento das partes, reciprocamente).

O segundo sentido de boa-fé, o objetivo que interessa a esta dis-

sertação, foi primeiramente adotado no Código Civil Alemão, a partir do qual foi

reproduzido no ordenamento jurídico em outros países, como é o caso do novo

Código Civil Brasileiro25.

Não obstante o conceito jurídico de boa-fé ter sua aplicação, em um

primeiro lance, restrita ao Direito Privado, com o passar do tempo tal proceder

veio a ser estendido ao âmbito do Direito Público, sendo de há muito percebido

25 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar desua celebração.

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nos contratos administrativos e na responsabilidade pré-negocial do Estado. A

partir dessa concepção objetiva – de que nas relações jurídicas, as partes envol-

vidas devem proceder corretamente, com lealdade e lisura – é que resulta a ne-

cessidade de que nas relações entre o Estado e os cidadãos deva restar assegu-

rada certa previsibilidade da ação estatal, certa coerência na conduta do Estado.

A segurança jurídica, por sua vez, também se ramifica em duas na-

turezas, que a doutrina moderna prefere chamar de princípio da segurança jurídi-

ca e princípio da proteção à confiança.

O princípio da segurança jurídica diz respeito à feição objetiva da

segurança jurídica, que envolve questão relativa aos limites à retroatividade dos

atos do Estado, até mesmo quando esses se qualifiquem como atos legislativos,

referindo-se à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa jul-

gada26.

O princípio da proteção à confiança, por sua vez, diz com a visão

subjetiva da segurança jurídica e se refere ao respeito à confiança das pessoas,

no que se trata aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferen-

tes aspectos de sua atuação.

CANOTILHO (1993:371-373), por sua vez, entende que os princípios

da confiança e da segurança jurídica representam elementos essenciais para a

defesa dos interesses dos administrados em relação ao Estado:

O homem necessita de uma certa segurança para conduzir, plani-ficar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Porisso, desde cedo se considerou como elementos constitutivos doEstado de Direito o princípio da segurança jurídica e o princípio daconfiança do cidadão (...).

Os princípios da protecção da confiança e da segurança jurídicapodem formular-se assim: o cidadão deve poder confiar em queaos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seusdireitos, posições jurídicas e relações, praticados ou tomados de

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como emsua execução, os princípios de probidade e boa-fé.26 No caso brasileiro, a previsão é expressa no art. 5°, XXXVI, da CF/88.

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acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurí-dicos duradouros, previstos e calculados com base nessas mes-mas normas. Estes princípios apontam basicamente para (1) aproibição de leis retroactivas; (2) a inalterabilidade do caso julga-do; (3) a tendencial irrevogabilidade de actos administrativosconstitutivos de direitos.

Trabalhando o tema da segurança jurídica no contexto dos tempos

de hoje, BARROSO (2005) assinala que, no seu desenvolvimento doutrinário e ju-

risprudencial, a importante expressão em debate passou a designar um conjunto

abrangente de idéias e conteúdos, que incluem:

a) Existência de instituições dotadas de poder e garantias, assim

como sujeitas ao princípio da legalidade;

b) Confiança nos atos do Poder Público, que deverão reger-se pela

boa-fé e pela razoabilidade;

c) Estabilidade das relações jurídicas, manifestada na durabilidade

das normas, na anterioridade das leis em relação aos fatos sobre

os quais incidem e na conservação de direitos em face da lei

nova;

d) Previsibilidade dos comportamentos, tanto os que devem ser se-

guidos como os que devem ser suportados;

e) Igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções isonômi-

cas para situações idênticas ou próximas.

Ao seu turno, referindo-se à importância do princípio da proteção à

confiança num Estado Direito, JUDITH MARTINS-COSTA (2004:116) assevera:

A confiança dos cidadãos é constituinte do Estado de Direito, queé, fundamentalmente, estado de confiança. Seria mesmo impen-sável uma ordem jurídica na qual não se confie ou que não viabili-ze, por meio de seus órgãos estatais, o indispensável estado deconfiança. A confiança é, pois, fator essencial à realização da jus-tiça material, mister maior do Estado de Direito. De resto, a exi-gência de um comportamento positivo da Administração Públicana tutela da confiança legitima dos cidadãos corre paralela aocrescimento, na consciência social, da extremada relevância daconexão entre a ação administrativa e o dever de proteger de ma-neira positiva os direitos da personalidade, constituintes do eixocentral dos direitos fundamentais.

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Em suma: no nosso contexto social complexo, multiforme, instávele conflituoso, a Administração Pública não pode - para garantir aconfiança, fundamento do Direito – limitar-se a uma abstenção,antes devendo estar presente na regulação e na garantia dos va-riados mecanismos de realização dos direitos fundamentais e daslegítimas expectativas que gera na esfera jurídica dos particulares.

Quanto ao princípio da proteção à confiança propriamente dito, é de

se notar que nas últimas décadas do século XX tal idéia ganhou mais nitidez,

destacando-se da segurança jurídica em si, tendo notável expansão na Europa,

onde conquistou sucesso retumbante.

Na Alemanha desde há muito afirmava-se que a faculdade que tem

o Estado de anular seus próprios atos deve ter como limites não apenas os direi-

tos subjetivos gerados, mas o interesse de proteger a boa-fé e a confiança dos

seus súditos.

Na visão de OTTO BACHOF (apud COUTO E SILVA, 1988:20), o princípio

da necessidade de anulação foi substituído, em alguns casos, pelo da impossibili-

dade de anulação, em homenagem à boa-fé e à segurança jurídica, só se deven-

do dar prevalência ao princípio da legalidade sobre a proteção da confiança

quando a vantagem for obtida de forma ilícita.

No Direito Francês, a solução é bem mais simples. Entende-se que

o ato só pode ser revogado/anulado se não houver direito subjetivo, e se a Admi-

nistração o realizar no prazo de dois meses, o mesmo lapso temporal concedido

aos particulares em recurso contencioso de anulação.

STASSINOPOULOS (1973) afirma que o Direito grego segue a mesma

orientação do francês, respeitando os direitos subjetivos, desde que se tenha

transcorrido razoável lapso de tempo da edição do ato, desde que o beneficiário

se encontre em boa-fé.

No Direito Italiano a posição é mais cautelosa. Aceita-se sem con-

trovérsia que a Administração tem a faculdade e não o dever de anular seus atos

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ilegais, havendo situações relevantes em que o interesse público estaria em re-

comendar o não-exercício daquela faculdade. Não há fixação, entretanto, de tem-

po para a anulação de ofício dos atos administrativos inválidos. Contudo, na apli-

cação do princípio da necessidade de certeza das situações jurídicas, admite-se –

seja na doutrina, seja na jurisprudência – que não são mais anuláveis os atos

que, embora inválidos, tenham irradiado os seus efeitos por um longo período de

tempo, sendo certo que haverá que se ponderar as conseqüências caso a caso,

observado o interesse público.

No Brasil, quiçá pela antiga tradição jurídica de proteção ao direito

adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (aspecto objetivo da segurança

jurídica), não houve até bem pouco tempo preocupação na aplicação da seguran-

ça jurídica sob a óptica subjetiva (princípio da proteção à confiança). Hoje esta

situação encontra-se em franca mudança. Em textos legislativos recentes, os

conceitos de segurança jurídica, em especial na sua acepção subjetiva (proteção

à confiança), considerada a boa-fé, encontra-se expressamente valorado. Confira-

se do art. 2º e do art. 54, ambos da Lei 9.784/99, que regula o processo adminis-

trativo no âmbito da Administração Pública Federal.

Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aosprincípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, pro-porcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, seguran-ça jurídica, interesse público e eficiência.

Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrati-vos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários de-cai em cinco anos, contados da data em que foram praticados,salvo comprovada má-fé . – grifou-se -

Há outros textos legislativos mediante os quais a proteção à confian-

ça resta observada:

Lei 9.868/99:Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de in-constitucionalidade e da ação declaratória de const itucionali-dade perante o Supremo Tribunal Federal.

Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normati-vo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcio-nal interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por mai-

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oria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daqueladeclaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seutrânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Lei 9.882/99:Dispõe sobre o processo e julgamento da argüição de des-cumprimento de preceito fundamental, nos termos do § 1.º doart. 102 da Constituição Federal.

Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normati-vo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fun-damental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou deexcepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal,por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitosdaquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir deseu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fi-xado.

Da jurisprudência, de igual sorte, há recentes precedentes nos quais

o princípio da proteção à confiança quedou reforçado pela apreciação in casu do

conceito de boa-fé, analisado na hipótese concreta pelo Poder Judiciário. Confira-

se de ilustrativo julgado do Supremo Tribunal Federal:

1. Mandado de Segurança. 2. Acórdão do Tribunal de Contas daUnião. Prestação de Contas da Empresa Brasileira de Infra-estrutura Aeroportuária - INFRAERO. Emprego Público. Regulari-zação de admissões. 3. Contratações realizadas em conformidadecom a legislação vigente à época. Admissões realizadas por pro-cesso seletivo sem concurso público, validadas por decisão admi-nistrativa e acórdão anterior do TCU. 4. Transcurso de mais dedez anos desde a concessão da liminar no mandado de seguran-ça. 5. Obrigatoriedade da observância do princípio da segurançajurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito. Necessidadede estabilidade das situações criadas administrativamente. 6.Princípio da confiança como elemento do princípio da segurançajurídica. Presença de um componente de ética jurídica e sua apli-cação nas relações jurídicas de direito público. 7. Concurso decircunstâncias específicas e excepcionais que revel am: aboa-fé dos impetrantes; a realização de processo se letivo ri-goroso; a observância do regulamento da Infraero vi gente àépoca da realização do processo seletivo; a existên cia decontrovérsia à época das contratações, quanto à exi gência,nos termos do art. 37 da Constituição, de concurso públicono âmbito das empresas públicas e sociedades de eco nomiamista. 8. Circunstâncias que, aliadas ao longo perí odo detempo transcorrido, afastam a alegada nulidade das contrata-ções dos impetrantes . 9. Mandado de Segurança deferido. (MS22.357/DF, Relator Min. Gilmar Mendes, DJU 05/11/04, p. 06) –grifou-se –

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Para melhor compreensão da controvérsia trazida no precedente ci-

tado, vale esclarecer que se trata de mandado de segurança mediante o qual se

discutia a manutenção dos atos de admissão de empregados de empresas públi-

cas e de sociedades de economia mista (INFRAERO), sem concurso público, em

contraponto com outros princípios constitucionais (CF, art. 37, I - requisitos em lei

para o cargo; II - ingresso por concurso público), ou seja, todos correlatos ao prin-

cípio da legalidade.

É que, no passado, havia controvérsia sobre a aplicação dos supra-

referidos dispositivos constitucionais às empresas públicas e às sociedades de

economia mista, em face do disposto no art. 173, § 1º, que dispunha, na sua re-

dação originária, que “a empresa pública, a sociedade de economia mista e ou-

tras entidades que explorem atividade econômica sujeitam-se ao regime jurídico

das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações trabalhistas e tributárias”.

Essa discussão restou pacificada pela decisão do Supremo Tribunal

Federal no Mandado de Segurança n° 21.322, Relator Min. Paulo Brossard, que

subordinou a admissão de empregados naquelas entidades à exigência constitu-

cional do serviço público, sendo certo que o Tribunal de Contas da União também

já havia chegado à mesma conclusão, tendo o il. Relator do caso em tela, em.

Min. Gilmar Mendes, expressamente acatado tal posição:

(...) Dessa forma, meu voto é no sentido do deferimento da ordem,tendo em vista as específicas e excepcionais circunstâncias docaso em exame. E aqui considero sobretudo: a boa-fé dos impe-trantes; a existência de processo seletivo rigoroso e a contrataçãoconforme o regulamento da INFRAERO; a existência de contro-vérsia, à época da contratação, quanto à exigência de concursopúblico, nos moldes do art. 37, II, da Constituição, no âmbito dasempresas públicas e sociedades de economia mista; o fato de quehouve dúvida quanto à correta interpretação do art. 37, II em facedo art.. 173, § 1°, no âmbito do próprio TCU; o lon go período detempo transcorrido das contratações e a necessidade de garantirsegurança jurídica a pessoas que agiram de boa-fé (...). – gri-fou-se.

Outros julgados da Suprema Corte encerram abordagem no mesmo

sentido. É o caso da PET-QO 2900/RS27, da Relatoria do Ministro Gilmar Mendes,

27 Julgado em 27/05/2003, Segunda Turma, DJ de 01/08/2003, p. 142.

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em que se pleiteava concessão de efeito suspensivo a recurso extraordinário in-

terposto por estudante do Curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas

que pedira transferência para o da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,

em razão de haver sido aprovada em concurso público realizado pela Empresa

Pública de Correios e Telégrafos. A transferência foi acatada em primeiro grau,

mas reformada no âmbito do Tribunal Regional Federal. O Supremo Tribunal Fe-

deral decidiu em favor da impetrante, fundamentando no princípio da segurança

jurídica, em sua acepção objetiva (proteção à confiança), uma vez que a interes-

sada já havia cursado, àquela altura, de boa-fé, praticamente todo o curso na

Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O eg. Supremo Tribunal Federal ao assim decidir, portanto, trouxe a

fundamentação adequada para o deslinde da controvérsia, que identificou, no or-

denamento constitucional, princípio do mesmo nível hierárquico do que o da lega-

lidade estrita, no caso o da segurança jurídica. A partir da devida ponderação en-

tre os referidos princípios, num “balancing test”, considerada a situação concreta

em exame, carreou o Supremo Tribunal Federal elemento motivador da decisão,

no caso o conceito jurídico da boa-fé, valorando-o como entendeu correto.

Acórdãos como esse do Supremo Tribunal Federal dão notícia da

importância hoje levada a cabo pelos Tribunais no que se refere à aplicação sis-

têmica de princípios constitucionais em casos concretos, na busca da melhor de-

cisão, ou seja, daquela que realize a justiça material.

Desta feita, a evolução da doutrina e da jurisprudência pátrias aca-

bam por reconhecer nova concepção aos atos antes tidos por discricionários, tra-

zendo nova abordagem no que diz com os conceitos jurídicos indeterminados e a

possibilidade de sua apreciação pelo Poder Judiciário.

A título de conclusões quanto ao ponto, pode-se então assinalar:

1) O eg. Supremo Tribunal Federal, a partir da aplicação de princípi-

os e da valoração do conceito de boa-fé, imprimiu a fundamentação adequada

para o deslinde da controvérsia, evitando soluções precárias como aquelas pau-

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tadas na teoria do fato consumado e na tese da irredutibilidade de vencimentos,

identificando no ordenamento constitucional princípio do mesmo nível hierárquico

do que o da legalidade estrita, no caso o da proteção à confiança, sopesando um

em relação ao outro;

2) A evolução da doutrina e da jurisprudência pátrias reconhece no-

vel concepção à aplicação de princípios, inclusive no âmbito do Direito Adminis-

trativo contemporâneo, trazendo nova abordagem no que diz com a ponderação

entre o princípio da legalidade estrita, que exercia, até bem pouco, absoluta pri-

mazia, com outros de igual relevo, como o da proteção à confiança, tudo em

atenção à necessária observância também do cumprimento do princípio do devido

processo legal, em sua acepção substantiva;

3) O princípio da proteção à confiança dos administrados reveste-se

de valor constitucional que se qualifica como essencial no Direito Administrativo

contemporâneo ao lado, e no mesmo nível hierárquico, do princípio da legalidade,

sendo ambos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito;

4) O princípio da legalidade passou a ser contraposto a outros prin-

cípios de igual importância, em razão do interesse público relevante e do conceito

amplo de segurança jurídica observados no caso concreto. E não podia ser dife-

rente, já que um dos fundamentos do princípio da legalidade é que este se radica

na proteção dos indivíduos contra as arbitrariedades do Estado, ensejando, no

caso, o fortalecimento da tese da permanência de efeitos jurídicos de atos que

não observaram a legalidade, mas que geraram efeitos a beneficiários de boa-fé;

5) Em sendo assim, não é mais razoável acatar-se, sem qualquer

discussão, a máxima de que os conceitos jurídicos indeterminados, em razão da

discricionariedade do administrador, não podem ser apreciados pelo Poder Judi-

ciário, sendo de se concluir, por intermédio dos exemplos trazidos à baila, que a

articulação de regras conjugada com princípios ilumina sobremaneira a compre-

ensão da Constituição, assegurando uma aplicação aderente ao ideal de justiça

condizente ao Estado Democrático de Direito.

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CASO 3: A visão integrada de princípios e direitos fundamentais em contra-posição ao princípio da legalidade estrita. A reduç ão da discricionariedadenos atos políticos:

Consoante os ensinamentos de MORAES (2004), no Direito Positivo

Brasileiro inexiste qualquer regra acerca dos limites do controle jurisdicional da

discricionariedade dos ditos atos políticos. As Constituições Brasileiras de 1934 e

1937 vedavam expressamente o Poder Judiciário de conhecer questões exclusi-

vamente políticas. Essa vedação persiste, no entender de MIGUEL SEABRA

FAGUNDES (2005), porque não obstante o silêncio da atual Carta Política, decorre

da índole do regime e dos imperativos do seu funcionamento. Para o ilustre autor,

as atribuições de cunho estritamente político dos Poderes Legislativo e Executivo

são incompatíveis com a interferência do Poder Judiciário.

De toda sorte, a construção dogmática28 referida no CAPÍTULO III,

somada à experiência dos Tribunais, vem fornecendo seguras pistas para a de-

tecção das hipóteses de invalidação dos atos ditos políticos, competindo, pois, ao

Poder Judiciário penetrar no ato administrativo de natureza política, para con-

frontá-lo com o que vem estatuído na Constituição Federal.

Em precedente histórico (RE n° 167.137/TO), relator o Ministro

Paulo Brossard, o Supremo Tribunal Federal enfrentou questão relativa à discrici-

onariedade para análise das exigências subjetivas para nomeações políticas. Na

hipótese, os requisitos subjetivos da nomeação política, tais como notório saber

jurídico, notórios conhecimentos jurídicos, econômicos, financeiros e contábeis ou

de administração pública, reputação ilibada, idoneidade moral, haviam sido des-

prezados pelo Chefe do Executivo quando da nomeação de Conselheiro do Tri-

bunal de Contas do recém-criado Estado de Tocantins. O Supremo Tribunal Fe-

deral, todavia, ao apreciar o caso, entendeu que, apesar da discricionariedade do

Poder Executivo em analisar esses requisitos, haveria na hipótese a "necessidade

28 Vale relembrar que para BANDEIRA DE MELLO (2006-1) os atos políticos estariam sujeitos ao con-trole do Judiciário, à luz dos estatutos que regem os Estados Democráticos de Direito, como é ocaso da Carta Republicana do Brasil, em que tais atos não se furtam ao controle judicial, tendo emvista o teor do art. 5°, XXXV, da CF.

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de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectuais dos nomeados e o

ofício a desempenhar".

Eis a ementa do referido acórdão:

TRIBUNAL DE CONTAS. NOMEAÇÃO DE SEUS MEMBROS EMESTADO RECÉM-CRIADO. Natureza do ato administrativo. Pa-râmetros a serem observados. AÇÃO POPULAR desconstitutivado ato. TRIBUNAL DE CONTAS DO ESTADO DE TOCANTINS.PROVIMENTO DOS CARGOS DE CONSELHEIROS. A nomea-ção dos membros do Tribunal de Contas do Estado recém-criadonão e ato discricionário, mas vinculado a determinados critérios,não só estabelecidos pelo art. 235, III, das disposições gerais,mas também naquilo que couber, pelo art. 73, par. 1º, da CF. No-tório Saber - Incisos III, art. 235 e III, par. 1º, art. 73, CF. Necessi-dade de um mínimo de pertinência entre as qualidades intelectu-ais dos nomeados e o oficio a desempenhar. Precedente histórico:parecer de Barbalho e a decisão do Senado. AÇÃO POPULAR. Anão-observância dos requisitos que vinculam a nomeação, ensejaa qualquer do povo sujeitá-la a correção judicial, com a finalidadede desconstituir o ato lesivo à moralidade administrativa. Recursoextraordinário conhecido e provido para julgar procedente a ação.

O Poder Judiciário, como visto, acabou por estancar o abuso de po-

der do ato administrativo discricionário revestido de político, já que desviado por

finalidades pessoais, contrárias ao interesse público.

Há, ademais, recente precedente do Supremo Tribunal Federal ain-

da mais contundente. Trata-se do RE 410.715-AgR/SP, da relatoria do em. Minis-

tro Celso de Mello, mediante o qual restou afastada in casu a tese da “reserva do

possível”, tendo aquela Corte apreciado o mérito do ato administrativo, de nature-

za política (execução de política pública), à luz dos direitos fundamentais e do

respeito à dignidade da pessoa humana .

Cuida de recurso extraordinário interposto pelo Município de Santo

André, estado de São Paulo, que deixara de incluir no orçamento verba destinada

à educação de crianças até seis anos de idade. Ao apreciar o feito, o eg. Supre-

mo Tribunal Federal entendeu que por ser a educação infantil direito assegurado

pelo próprio texto constitucional, haveria dever jurídico da Administração de exe-

cução dessa política pública.

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É que, segundo o voto condutor do julgado, a educação infantil re-

presentaria prerrogativa constitucional indisponível, uma vez qualificar-se como

direito fundamental de toda criança (art. 208, IV, da CF), sob pena de configurar-

se “inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia,

o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o

próprio texto da Constituição Federal (...)”. Não se expõe, portanto, “(...) em seu

processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Adminis-

tração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental”.

Muito embora seja dos Poderes Legislativo e Executivo a prerrogati-

va de formular e executar políticas públicas, “revela-se possível, no entanto, ao

Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente

nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição”, venham a

ser essas levadas a efeito pelos entes federativos inadimplentes, cuja omissão,

“por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles

incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a in-

tegridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional”.

Nesse sentido, a ementa do referido acórdão é deveras elucidativa:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOSDE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA -EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓ-PRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COM-PREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDU-CAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AOPODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART.211, § 2°) - RECURSO IMPROVIDO.

A educação infantil representa prerrogativa constitucional indispo-nível que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito deseu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processode educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, arte 208, IV).Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe ao Estado,por efeito da alta significação social de que se reveste a educaçãoinfantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas quepossibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zeroa seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e aten-dimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de confi-

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gurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, in-justamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Pú-blico, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Cons-tituição Federal.A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental detoda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, aavaliações meramente discricionárias da Administração Pública,nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino funda-mental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2°) - não poderãodemitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante,que lhes foi outorgado pelo arte 208, IV, da Lei Fundamental daRepública, e que representa fator de limitação da discricionarieda-de político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tra-tando-se do atendimento das crianças em creche (CF, arte 208,IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoioem juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a efi-cácia desse direito básico de índole social.Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executi-vo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, aindaque em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de polí-ticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas im-plementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão -por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicosque sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta acomprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e cultu-rais impregnados de estatura constitucional. – questão pertinenteà "reserva do possível". Doutrina.

Colhe-se do voto condutor do aresto o relevo reputado pela Supre-

ma Corte ao direito à educação e o dever do Administrador de efetivar esse direi-

to:

(...) sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitosde segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento im-põe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação po-sitiva, consistente num "facere", pois o Estado dele só se desin-cumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titularesdesse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional, in-clusive ao atendimento, em creche e pré-escola, ‘às crianças dezero a seis anos de idade’ (CF, art. 208, IV).

E mais. No que tange à “reserva do possível”, o voto condutor regis-

tra a sua posição taxativa no sentido de que:

Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais eculturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu pro-

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2) O prestigio aos princípios e aos direitos fundamentais, numa visão

integrada do sistema jurídico, representa a pedra de toque no sentido da busca

pela melhor Administração;

3) A não-observância ao ordenamento jurídico, considerado em seu

aspecto sistêmico, abrirá, por certo, a possibilidade de apreciação do ato político,

antes de todo discricionário, pelo Poder Judiciário. Isto porque as relações na hi-

permodernidade entre a Administração e os administrados têm que restar pauta-

das na confiança e no respeito mútuos;

4) O descumprimento da política pública de educação infantil, en-

quanto direito fundamental essencial à preservação da dignidade da pessoa hu-

mana, pode ser combatido pelo Poder Judiciário, considerado o caso concreto,

realizada a devida ponderação de valores, afastada, portanto, a cláusula da “re-

serva do possível”.

5) Os atos ditos políticos, pois, não obstante o caráter discricionário,

podem e devem, dadas as circunstâncias, ser valorados pelo Poder Judiciário, na

óptica do Direito como Integridade, de RONALD DWORKIN.

Como síntese geral, pode-se assentar que a linha de interpretação

dos tribunais pátrios encontra-se em franco processo de mudança. De fato, não é

mais razoável acatar-se, sem qualquer discussão, a máxima de que outros princí-

pios constitucionais não teriam, em determinados casos, o mesmo relevo jurídico

do princípio da legalidade. Nesse sentido, nova orientação se vem construindo na

jurisprudência pátria, trazendo uma visão integrada do Direito, servindo-se da téc-

nica de ponderação de princípios e da valorização dos direitos fundamentais. Nas

palavras de BARROSO (2006:35-36):

O novo século se inicia fundado na percepção de que o Direito éum sistema aberto de valores. A Constituição, por sua vez, é umconjunto de princípios e regras destinados a realizá-los, a despeitode se reconhecer nos valores uma dimensão suprapositiva. Aidéia de abertura se comunica com a Constituição e traduz a suapermeabilidade a elementos externos e a renúncia à pretensão dedisciplinar, por meio de regras específicas, o infinito conjunto de

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possibilidades apresentadas pelo mundo real. Por ser o principalcanal de comunicação entre o sistema de valores e o sistema jurí-dico, os princípios não comportam enumeração taxativa. Mas,naturalmente, existe um amplo espaço de consenso, onde têm lu-gar alguns dos protagonistas da discussão política, filosófica e ju-rídica do século que se encerrou: Estado de Direito Democrático,liberdade, igualdade, justiça.

Tal o quadro, no caso do Direito Administrativo, demonstrado o ar-

gumento por intermédio dos exemplos dados, é de se concluir que a ponderação

de princípios constitucionais ilumina sobremaneira a compreensão da Constitui-

ção, assegurando uma aplicação aderente ao ideal de justiça condizente ao Esta-

do Democrático de Direito. Um sistema legalista ao tempo em que resguardada a

tão almejada segurança jurídica traria prejuízo inestimável ao ideário de justiça,

pois não haveria qualquer espaço livre para a complementação e o desenvolvi-

mento de um sistema aberto, como deve ser o constitucional, que objetiva a re-

solução dos conflitos, a busca das concordâncias, enfim, o balanceamento de

valores e interesses de uma sociedade pluralista e aberta.

Imprescindível, portanto, num Estado Democrático de Direito, a apli-

cação conjugada, integrada e sistêmica de princípios e regras, bem como a ob-

servância aos direitos fundamentais, tarefa indiscutivelmente complexa, mas ne-

cessária para preservar uma constituição efetivamente viva. Tal conclusão restou

demonstrada nos precedentes demonstrados, mediante os quais a evolução da

interpretação constitucional, com a valoração de regras e princípios, como pugna-

do por DWORKIN, serviu, com sobras, para fundamentar o argumento desafiado.

O desrespeito aos princípios, aos direitos fundamentais ou à cláu-

sula do devido processo legal, em sua acepção substantiva, abrirá hoje, por certo,

a possibilidade de apreciação dos atos administrativos discricionários pelo Poder

Judiciário. Esse controle não é faculdade, mas obrigação do julgador, em razão

de sua função constitucional, utilizando-se, para tal, de diretrizes e princípios que

lhe proporcionam critérios para resolver adequadamente o caso concreto, em

acordo com o sistema da Constituição, para balizar os atos da Administração,

para servir precisamente ao interesse público.

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Assim os princípios do devido processo legal, em sua acepção

substantiva, da dignidade da pessoa humana, da proteção à confiança dos admi-

nistrados, da segurança jurídica, da boa-fé, entre outros, revestem-se de valor

constitucional que se qualifica como essencial no Direito Administrativo contempo-

râneo ao lado, e no mesmo nível hierárquico, do princípio da legalidade, sendo

pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito.

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CONCLUSÃO

No prelúdio desse terceiro milênio abre-se um novo receituário de di-

reitos já exaltados na Constituição de 1988, mas que agora são reclamados na

razão direta dos conflitos que emergem do meio social. Para dar respostas imedi-

atas às crescentes demandas da coletividade percebe-se, tanto na doutrina

quanto na jurisprudência, um recente fenômeno traduzido na aplicação integrada

de princípios e regras. A síntese construtiva deste modelo é promover a reformu-

lação do próprio Direito a partir de novel concepção conferida ao Direito Público,

em especial ao Direito Administrativo, que impõe a implementação de uma agen-

da para esse novo tempo, a ser seguida por legisladores, juízes e, acima de tudo,

pela própria Administração. Na hipermodernidade o Direito tem como desafio uma

perspectiva: alcançar a idéia de Constituição viva, construída a partir da visão de

uma sociedade aberta, pluralista, democrática, tolerante e sobretudo estabelecida

como compromisso de esperança.

A aplicação de princípios, consoante demonstrado, vem de trazer

novo alcance ao Direito Público, de vez que os princípios, como vetores da ciên-

cia jurídica, são proposições fundamentais a serem por todos observadas, inclusi-

ve e sobremodo pelo Estado, sob pena de cometimento de ato distanciado do

ideário de justiça. Os princípios, assim, são diretrizes fundamentais da Adminis-

tração, de maneira que só se poderá considerar válida a conduta administrativa

se compatível com o sistema jurídico como concebido num Estado Democrático

de Direito. Isto porque os princípios dão unidade e harmonia ao sistema jurídico,

integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. Enfim, tradu-

zem verdadeira síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico, espe-

lhando a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus reclamos, seus

fins.

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Essa mudança de paradigma deve especial tributo à sistematização

de RONALD DWORKIN, cuja elaboração acerca dos diferentes papéis desempenha-

dos por regras e princípios ganhou curso universal. Daí a teoria do Direito como

Integridade ter permeado este trabalho. Nos ensinamentos extraídos da obra de

DWORKIN buscou-se a força teórica a dar sustentação a argumentos e conclusões

desafiados em todos os capítulos.

A partir dessa filosofia de valorização dos princípios, procurou-se

demonstrar substancial alteração no Direito Administrativo, que passa a ser mais

vinculado, afastando a antes inalcançável discricionariedade administrativa. Nes-

se contexto, o controle jurisdicional torna-se fundamental para estabelecer o equi-

líbrio das forças em jogo. O administrado possui nos princípios a garantia de que

não será oprimido pela força do Poder Público. Nessa quadra não há mais espaço

para qualquer ato administrativo, mesmo que discricionário, que se apresente dis-

sociado do ordenamento jurídico analisado como sistema de valores. Retira-se,

portanto, do Poder Público, a faculdade de livre escolha inclusive nos atos discri-

cionários, se esses restarem afastados dos princípios constitucionais. A liberdade,

hoje, não é total: encontra-se vinculada aos instrumentos contidos na própria

Constituição.

Nesse contexto, o Poder Judiciário, como asseverado, tem papel de

destaque. Para cumprir a tarefa de fiscalização dos atos administrativos, o Estado

Democrático de Direito dotou exatamente esse Poder de um dever indelegável de

manter intacta a unidade da Constituição, surgindo daí a possibilidade de o Judi-

ciário adentrar, observado o caso concreto, no mérito do ato administrativo, ainda

que discricionário, para certificar sua aderência ao sistema de valores legais.

Há, pois, uma nova concepção relativa aos atos administrativos dis-

cricionários, com flagrante alargamento do controle jurisdicional. Essa visão con-

temporânea deve-se ao compromisso constitucional de preservação do interesse

público envolvido, ao qual a Administração encontra-se inexoravelmente vincula-

da, como à garantia de proteção aos direitos fundamentais dos cidadãos, que são

seus verdadeiros destinatários.

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Este poder-dever do Judiciário de apreciar os atos da Administração

não representa, como visto, uma indevida intromissão na esfera de atuação

alheia. No Direito da hipermodernidade os poderes são instituídos para dividirem

funções que serão sempre disciplinadas e regradas pela Constituição. Logo,

qualquer ato administrativo sofre a influência direta dos princípios, das regras e do

respeito aos direitos fundamentais, sem que com isso haja uma indesejada alte-

ração na independência de um Poder sobre o outro.

Como assinalado, a adoção dessa postura não significa o abandono

ao princípio da legalidade, mas uma nova exegese constitucional imposta pelos

novos tempos à Administração, na qual a observância de outros princípios de

igual prestígio ao da legalidade não pode ser desconsiderada. Nesse rol de prin-

cípios ocupa destaque o princípio do devido processo legal, em sua acepção

substantiva, traduzido em seus elementos integradores, i.é, a moralidade, a pro-

porcionalidade, a razoabilidade e a fundamentação, bem assim os princípios da

dignidade da pessoa humana, da segurança jurídica, da proteção à confiança, da

boa-fé, dentre outros.

Sob essa óptica, os novos métodos de interpretação que utilizam a

técnica da ponderação de valores, considerado o caso concreto, se prestam so-

bremaneira ao controle dos atos administrativos. Ao reduzir-se a liberdade do

Administrador em favor de uma visão integrativa do Direito, promove-se o au-

mento da legitimidade dos atos discricionários da Administração, tornando-os juri-

dicamente consistentes com o ordenamento jurídico e, assim, aos anseios da co-

letividade. O afastamento do positivismo jurídico puro, na tônica do neopositivis-

mo, não implica, conforme pontuado, redução na segurança jurídica, mas incre-

mento desta para os administrados, bem como para a própria Administração.

Com o objetivo de evidenciar que as transformações que se afirma-

vam presentes na hipermodernidade, além de afetarem a doutrina alcançaram as

decisões da Cortes Superiores, se demonstrou, a partir de três exemplos colacio-

nados da recente jurisprudência, a mitigação, à moda do Direito como Integridade

de DWORKIN, do princípio da legalidade estrita, a partir da ponderação do mesmo

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amadurecer do tempo, estará consolidada a nossa tão esperada chegada a um

Estado verdadeiramente Democrático de Direito, no qual a coletividade é a efetiva

destinatária dos direitos e das garantias constitucionais.

E não poderia ser diferente. Em uma sociedade pautada na espe-

rança, a partir de uma Constituição que se diz cidadã, a hipermodernidade deve

incitar a vôos mais altos. As mudanças, embora difíceis, são de fato imperiosas e

inevitáveis. As resistências serão sempre desafiantes, mas como asseverou

HERÁCLITO (século IV A.C.), “não há no mundo nada mais permanente que a mu-

dança...”.

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