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Referências: GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Vega, 1995. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria narrativa. São Paulo: Ática, 2000. p. 12 Aspectos de ordenação - percepção do sentido de encadeamentos, ou seja, o estudo da articulação temporal e não lógica (não se refere à definição do encadeamento, mas à percepção). Como o encadeamento é percebido. Aspectos de duração - o tempo encarado em função do estabelecimento de um ritmo da narrativa, de uma alternância de situações de relato (tônicas e átonas) através dos meios de discurso. Aspectos de freqüência - relação entre a narrativa e a diegese, ou seja, a história na narrativa : como a narrativa distende, condensa, puveriza, repete, entrecorta ou transcreve a história. p. 13 Aspectos de modo - relacionado ao ponto de vista condutor. (Quem vê?) Aspectos de voz - condições de enunciação pela instância narrativa. (Quem fala?) Diegese - procedimento de organização lógico-temporal. Objetivo do trabalho – integrar o estudo do tempo na narrativa, não enquanto diegese, mas enquanto elemento de alteração na seqüência do dito e não-dito e de suas implicações. Estuda fenômenos como os efeitos de ordem (analepses e prolepses) e o ritmo (relacionado à alternância e seguimento). Introdução p. 25 História - significado ou conteúdo narrativo ; Narrativa - o significante: enunciado, discurso ou texto narrativo em si . Implica também o estudo de sua relação com os acontecimentos que relata (história) e com o ato que o produz (narração); Narração - ato narrativo produtor , o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar.

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Referências:

GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Vega, 1995.

REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de teoria narrativa. São Paulo: Ática, 2000.

p. 12

Aspectos de ordenação - percepção do sentido de encadeamentos, ou seja, o estudo da

articulação temporal e não lógica (não se refere à definição do encadeamento, mas à percepção). Como

o encadeamento é percebido.

Aspectos de duração - o tempo encarado em função do estabelecimento de um ritmo da

narrativa, de uma alternância de situações de relato (tônicas e átonas) através dos meios de discurso.

Aspectos de freqüência - relação entre a narrativa e a diegese, ou seja, a história na narrativa:

como a narrativa distende, condensa, puveriza, repete, entrecorta ou transcreve a história.

p. 13

Aspectos de modo - relacionado ao ponto de vista condutor. (Quem vê?)

Aspectos de voz - condições de enunciação pela instância narrativa. (Quem fala?)

Diegese - procedimento de organização lógico-temporal.

Objetivo do trabalho – integrar o estudo do tempo na narrativa, não enquanto diegese, mas

enquanto elemento de alteração na seqüência do dito e não-dito e de suas implicações. Estuda

fenômenos como os efeitos de ordem (analepses e prolepses) e o ritmo (relacionado à alternância e

seguimento).

Introduçãop. 25

História - significado ou conteúdo narrativo;

Narrativa - o significante: enunciado, discurso ou texto narrativo em si. Implica também o

estudo de sua relação com os acontecimentos que relata (história) e com o ato que o produz (narração);

Narração - ato narrativo produtor, o conjunto da situação real ou fictícia na qual toma lugar.

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Paradoxo: História e narração só existem por intermédio da narrativa, do discurso narrativo. Por

outro lado, a narrativa só pode sê-lo enquanto conta uma história (sem a qual não seria narrativo) e

porque é proferido por alguém (sem o que não seria um discurso).

Análise do discurso narrativo é o estudo das relações entre a narrativa e história, narrativa e

narração e história e narração.

p. 27

Genette parte da divisão adiantada de Todorov em 1966.

Tzvetan Todorov: problema da narrativa divide-se em três categorias = do tempo (relação

tempo da história e tempo do discurso), do aspecto (maneira pela qual a história é percebida pelo

narrador, ponto de vista) e do modo (tipo do discurso utilizado pelo narrador, distância).

Showing: representação, para Todorov, e mímesis (imitação perfeita), para Platão.

Telling: narração, diegesis (narrativa pura), para Platão.

p. 29

Genette: Três categorias = tempo (relação temporal entre narrativa e diegese), modo

(modalidades de representação da narrativa) e voz (situação ou instância narrativa e seus dois

protagonistas: o narrador e o destinatário real ou virtual; relação com o sujeito da enunciação).

Tempo e modo: relação entre história e narrativa; Voz: relação entre narração e narrativa e entre

narração e história.

1. ORDEM

A narrativa é uma seqüência duas vezes temporal: há o tempo da coisa-contada, o significado, e

da narrativa, o significante. Essa dualidade possibilita as distorções temporais.

A narrativa não pode ser consumida a não ser num tempo que é o da leitura.

Pseudo-tempo: O texto narrativo não tem outra temporalidade senão aquela que toma

metonimicamente de empréstimo à própria leitura. (p. 33)

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Anacronias (-Ana: inversão, -Cronos: tempo)

Refere-se à “ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso

narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos temporais na história,

na medida em que é indicada explicitamente pela própria narrativa ou pode ser inferida deste ou aquele

indício indirecto.” (p. 33)

É todo tipo de alteração da ordem dos eventos da história, quando da sua representação pelo

discurso. Refere-se à ordem temporal de uma narrativa, ou seja, à confrontação da disposição dos

acontecimentos/segmentos temporais no discurso narrativo com a ordem de sucessão desses mesmos

acontecimentos/segmentos temporais na história.

É necessário pensar nas relações de antes e depois: contraste ou discordância entre um e outro.

A anacronia não é uma raridade ou invenção moderna: é um recurso tradicional da narração.

Grau-zero: “estado de perfeita coincidência temporal entre narrativa e história. Tal estado de

referência é mais hipotético que real.” (p. 34)

“Uma anacronia pode ir, no passado como no futuro, mais ou menos longe do momento

<presente>, isto é, do momento da história em que a narrativa se interrompeu pra lhe dar lugar:

chamaremos alcance da anacronia a essa distância temporal. Pode igualmente recobrir uma duração de

história mais ou menos longa: é aquilo a que chamaremos a sua amplitude.” (p. 46)

Narrativa primeira: “[...] nível temporal de narrativa em relação ao qual uma anacronia se define

enquanto tal.” (p. 47)

Prolepse“[...] toda manobra narrativa consistindo em contar ou evocar de antemão um acontecimento

ulterior” (p. 38). Ou seja, é todo movimento de antecipação, pelo discurso, de eventos cuja ocorrência,

na história, é posterior ao presente da ação. Conota uma atitude irônica, desinibida ou sarcástica do

narrador em apresentar uma história que domina de forma “totalitária”. “A narrativa em primeira

pessoa presta-se melhor que qualquer outra à antecipação, pelo próprio facto do seu declarado carácter

retrospectivo, que autoriza o narrador a alusões ao futuro e particularmente à situação presente [...]” (p.

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66). Observar que a prolepse não pode ser confundida com a profecia ou premonição. Trata-se de

prever acontecimentos que transcendem o narrador. As antecipações são uma marca de impaciência

narrativa ou também, um sentimento nostálgico.

“O limite do campo temporal da narrativa primeira é claramente marcado pela última cena não

proléptica [...]” (p. 66-67).

Prolepse Externa (ou Heterodiegética)Prolepse que se projeta para além do encerramento da ação e refere-se com freqüência ao presente da

instância narrativa. “A sua função é, as mais das vezes, de epílogo: servem para conduzir até ao seu

termo lógico tal ou tal linha da acção [...]” (p. 67). “[...] são testemunhos sobre a intensidade da

recordação actual, que vêm, de alguma maneira, autenticar a narrativa do passado.” (p. 68).

Prolepse Interna (Heterodiegética ou homodiegética)Antecipação de informações inscritas no corpo da narrativa primeira. Dentro desta categoria

temos:

Prolepse completiva (ou heterodiegética)Vem “preencher de antemão uma posterior lacuna [...]” (p. 69-70).

Prolepse repetitiva (ou homodiegética)“[...] dobram, por pouco que seja, um segmento narrativo a vir [...]” (p. 70). Tem o “papel de

anúncio” (p. 72).

Prolepse MistaModalidade em princípio apenas hipotética; teria que decorrer desde o interior da narrativa

primeira até para além do seu final.

Ainda ligado à prolepse, temos o anúncio, que é uma alusão explícita a algo ainda por vir que

causa o efeito de expectativa no leitor. Não se pode confundi-lo com esboço, que é um simples marco

de espera sem antecipação, que mais tarde encontrará sua significação e que releva a arte da preparação

[como a tesoura em Ensaio sobre a cegueira]. O esboço é “um germe insignificante” (p. 75) e

imperceptível que só mais tarde será reconhecido retrospectivamente.

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Para Genette, parece que todas as prolepses são do tipo parcial, interrompidas de forma tão

franca como aquela por que foram abertas.

Analepse“[...] toda a ulterior evocação de um acontecimento anterior ao ponto da história em que se está”

(p. 38). É o movimento temporal retrospectivo, ou seja, é destinada a relatar eventos anteriores ao

presente da ação e mesmo, em alguns casos, anteriores ao seu início. Toda analepse constitui, em

relação à narrativa na qual se insere, uma narrativa temporalmente segunda, subordinada à primeira. A

determinação do alcance de uma analepse faz com que possamos dividi-la em dois tipos: interna e

externa.

Analepse Externa (ou Heterodiegética)“[...] aquela analepse cuja amplitude total permanece exterior à da narrativa primeira.” (p. 47) O

lapso temporal a que a analepse se refere é inteiramente exterior à totalidade da ação narrativa primeira,

ou seja, não interfere com a narrativa primeira. Sua função é, então, completar, esclarecer o leitor sobre

algum antecedente (p. 48);

Analepse Interna (Homodiegética ou heterodiegética)“[...] campo temporal está compreendido no da narrativa primeira, e que apresentam um risco

evidente de redundância ou de colisão” (p. 48) O raio de alcance da analepse não excede o ponto de

partida, ou seja, apresenta risco de redundância ou colisão. Dentro desta categoria temos:

Analepse interna completiva (ou heterodiegética)“[...] compreende os segmentos retrospectivos que vêm preencher mais tarde uma lacuna

anterior da narrativa, a qual se organiza, assim, por omissões provisórias e reparações mais ou menos

tardias, segundo uma lógica narrativa parcialmente independente da passagem do tempo. Tais lacunas

anteriores poder ser elipses puras e simples, ou sejam, falhas na continuidade temporal.” (p. 49) O

segmento vem preencher mais tarde uma lacuna anterior da narrativa, que pode ser uma elipse.

Contudo, há outro tipo de lacuna, que não consiste na elisão, mas na omissão de um elemento. A

“narrativa não salta, como na elipse, por cima de um momento, passa ao lado de um dado.” (p. 50)

Temos aí a paralipse.

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Analepse interna repetitiva (ou homodiegética)[...] a narrativa regressa abertamente, e por vezes explicitamente, ao que foi dito.” (p. 53) Indica

uma economia na narrativa e “função de retorno” (p. 72).

Analepse Mista“[...] ponto de alcance é anterior e o ponto de amplitude posterior ao começo da narrativa

primeira [...]” (p. 48). Seu alcance excede o ponto de início da narrativa e sua amplitude a leva até o

interior da narrativa primeira, ou seja, o ponto de alcance é anterior e o ponto de amplitude posterior ao

começo da narrativa primeira.

Uma possível função para a analepse pode ser o de ela vir a modificar ulteriormente a

significação dos acontecimentos passados, “quer tornando significante aquilo que não o era, quer

refutando uma primeira interpretação e pondo outra no seu lugar.” (p. 54-55)

A analepse também pode ser parcial, quando termina numa elipse, sem alcançar a narrativa

primeira, ou completa, quando há religação à narrativa primeira. “[...] o primeiro serve unicamente para

trazer ao leitor uma informação isolada, necessária para a inteligência de um elemento preciso da

acção, o segundo, ligado à prática do começar in media res, visa a recuperar a totalidade do

<antecedente> narrativo [...]” (p. 61)

Condição para analepse e prolepse: consciência temporal perfeitamente clara e relações sem

ambigüidade entre o presente, passado e futuro.

É possível analepses prolépticas e prolepses analépticas.

Acronia: um acontecimento sem data e sem idade, ou seja, sem relação temporal

2. DURAÇÃO

Anisocronia(-An: privação; -Iso: igual; -Cronos: tempo)

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Tem a ver com a velocidade imprimida à narrativa. É toda a alteração, no discurso, da

DURAÇÃO da história, aferindo-se essa alteração em função do tempo da leitura. Que de certo modo

concretiza o tempo da narrativa e determina sua duração.

Há quatro processos narrativos ligados à anisocronia: pausa, sumário, extensão e elipse, que

decorrem de uma atitude fortemente intrusiva do narrador, que subverte o regime durativo da história,

fazendo valer prerrogativas de perspectivação adequadas a tal manipulação.

O ponto de referência, ou grau zero, em matéria de ordem é a coincidência entre sucessão

diegética e sucessão narrativa: isocronia. Assim, tal grau zero hipotético seria uma narrativa de

velocidade igual, sem acelerações nem abrandamentos, em que a relação entre duração de história e

extensão da narrativa permanecesse constante, ou seja, pretende incutir no discurso uma duração

idêntica à da história relatada: uma tentativa de sincronização.

Contudo, isso não existe: “uma narrativa pode passar sem anacronias, mas não pode proceder

sem anisocronias, ou, se se preferir (como é provável), sem efeitos de ritmo.” (p. 87). A leitura, por

exemplo, desenvolve-se num tempo próprio e variável de leitor para leitor, inviabilizando o

estabelecimento de uma duração discursiva rigorosamente isócrona. Tem a ver com a isocronia a

predileção de Henry James pelo showing, que inspira normalmente um ponto de vista inserido na ação

como testemunha que mostra, em detrimento do telling, cujo narrador distancia-se da história e se

responsabiliza pela sua representação, reduzindo as intervenções das personagens.

Elipse“[...] um segmento nulo da narrativa corresponde a uma qualquer duração de história [...]” (p.

93). Compreendida no domínio da VELOCIDADE, é toda forma de supressão de lapsos temporais

mais ou menos alargados; supressão essa que é denunciada de modo variavelmente transparente. Ou

seja, um segmento nulo de narrativa corresponde a qualquer duração de história. Tem-se três tipos de

elipses:

Elipse ExplícitaClaramente manifesta pelo discurso (“dois anos depois”, “meses mais tarde”) quer por indicação

(determinada ou não) do lapso de tempo que elidem (“passaram alguns anos”), quer por elisão pura

e simples e indicação do tempo decorrido (“dois anos depois”);

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Elipse Implícita Não expressa pelo discurso, mas pode ser inferida pelo desenrolar da história;

Elipse HipotéticaInsuscetível de ser delimitada de forma rigorosa e apenas intuída de forma difusa.

Importa, prioritariamente, relacionar a elipse com outros signos do código temporal, como a

pausa, que em alguma medida se lhe opõe, ou o sumário, que se aproxima da elipse.

A elipse também pode fingir omitir: “Não digo que pensei que aquele tempo era agradável”.

“[...] saber se essa duração está indicada (elipses determinadas) ou não (elipses

indeterminadas).” (p. 106)

Pausa“[...] qualquer segmento do discurso narrativo corresponde a uma duração diegética nula.” (p.

93) É do domínio da VELOCIDADE e representa uma forma de suspensão do tempo da história, em

benefício do tempo do discurso, interrompendo momentaneamente o desenrolar da história. É quando o

narrador alarga-se em reflexões ou em descrições que, logo que concluídas, dão lugar ao

desenvolvimento das ações narradas. Ou seja, qualquer segmento do discurso corresponde a uma

duração diegética (história) nula.

Remete diretamente para dois movimentos: a descrição e a digressão.

É necessário analisar as motivações que presidem a sua utilização e os significados que ela

insinua.

Lembrar que “nunca o trecho descritivo se evade da temporalidade da história” (p. 100). É

necessário perceber que, se uma personagem olha ao seu redor, em um quarto, por exemplo, e descobre

quadros nas paredes, que são descritos à medida que ela os vê, isso não estabelece uma pausa

descritiva, pois tal descrição acompanha o olhar da personagem. Lembrar Proust, cujas descrições

podem ser tudo, menos uma pausa na narrativa.

“Com efeito, a <descrição> proustiana é menos uma descrição do objecto contemplado que uma

narrativa, e uma análise da actividade perceptiva da personagem contemplante, das suas impressões,

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descobertas progressivas, mudanças de distâncias e de perspectiva, erros e correcções, entusiasmos e

decepções, etc.” (p. 102) Comparação James e Proust.

Sumário“[...] forma de movimento variável (ao passo que os três outros têm um movimento

determinado, pelo menos em princípio), que cobre com grande adaptabilidade de regime todo o campo

compreendido entre a cena e a elipse.” (p. 94) “[...] a narração em alguns parágrafos ou algumas

páginas de vários dias, meses ou anos de existência, sem pormenores de acção ou de palavras.” (p. 95)

Signo temporal do âmbito da VELOCIDADE; toda forma de resumo da história, de tal modo que o

tempo desta aparece reduzido, no discurso, a um lapso durativo sensivelmente menor do que aquele

que a sua ocorrência exigiria.

O sumário estabelece conexões opositivas com a cena e é tal alternância que define o tecido da

narrativa romanesca. O resumo implica um distanciamento por parte do narrador, que opta por uma

atitude redutora. Instaura-se, então, uma espécie de desvalorização da matéria narrada em relação ao

narrador, desvalorização que pode ser explicada em função da economia da história.

“[...] o tecido conjuntivo por excelência da narrativa romanesca, cujo ritmo fundamental se

define pela alternância entre o sumário e a cena.” (p. 96-97).

As funções mais freqüentes do sumário são a ligação entre episódios, resumo de acontecimentos

subalternos, rápida preparação de ações relevantes.

Cena“[...] realiza convencionalmente a igualdade de tempo entre narrativa e história [...]” (p. 94).

Compreendida no domínio da VELOCIDADE, a cena é a tentativa mais próxima de imitação da

duração da história no discurso. É a reprodução do discurso das personagens com respeito integral das

suas falas e da ordem do seu desenvolvimento. Ou seja, igualdade do tempo da narrativa e do tempo da

história. Aproxima-se da isocronia. São os diálogos. Implica que o narrador desapareça parcial ou

totalmente da cena do discurso. A intervenção do narrador é limitada ou nula.

As motivações que suscitam a cena não podem ser dissociadas dos outros signos narrativos,

como pausa, elipse e sumário.

A oposição cena/resumo traduz a alternância de uma representação dirigida por um narrador

distanciado e dotado de um pendor redutor (resumo) dessa outra cena que pode conjugar-se com o

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recurso à visão de uma personagem da história, investida na função de testemunha. Tal alternância

provoca uma oposição de conteúdo entre dramático e não dramático.

“Na narrativa romanesca, tal como funcionava antes da Recherche, a oposição de movimento

entre cena detalhada e narrativa sumária reenviava quase sempre para uma oposição de conteúdo entre

dramático e não dramático, coincidindo os tempos fortes da acção com os momentos mais intensos da

narrativa enquanto os tempos fracos eram resumidos a traços largos e como de muito longe [...]” (p.

109-110).

3. FREQÜÊNCIA

SINGULATIVO/ITERATIVO

A freqüência narrativa refere-se à repetição: “Um acontecimento não só pode produzir-se, pode

também reproduzir-se, ou repetir-se: o sol nasce todos os dias.” (p. 113) Tais múltiplas ocorrências

referem-se a acontecimentos idênticos ou recorrência de um mesmo acontecimento.

“[...] consideração dos meios de escrita que homologam a história na narrativa ou, pelo

contrário, a distendem ou condensam, a pulverizam, a repetem, a entrecortam ou simplesmente a

transcrevem a partir duma idealidade [...]” (p. 12)

Narrativa singulativa“Contar uma vez aquilo que se passou uma vez [...]” (p. 114); é o caso mais corrente. Também é

singulativo o caso de se contar n vezes o que se passou n vezes. Em contraste com um comportamento

durativo (“deitava”, “ia”), o singulativo representa a singularidade de gestos esgotados, como o

perfeito (“pegou”, “trouxe”). Tal discurso singulativo se expressa normalmente através de tempos

verbais com uma coloração de momentaneidade, como o pretérito perfeito ou o presente histórico.

Identifica-se com o tipo de discurso que a crítica norte-americana chama de showing.

Narrativa repetitiva“Contar n vezes aquilo que só se passou uma só vez [...]” (p. 115). Além de variantes

estilísticas, o acontecimento pode apresentar variantes de narrador. Assim, o discurso se refere, em

vários momentos, a um determinado evento ocorrido em certo momento da narrativa. É dotada de

inegável intencionalidade estética.

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Narrativa iterativa“Contar uma única vez (ou antes: numa única vez) aquilo que se passou n vezes [...]” (p. 116),

ou seja, uma só emissão narrativa assume em conjunto várias ocorrências do mesmo evento. Constitui

uma modalidade econômica. O discurso iterativo é expresso normalmente por formas verbais do tipo

do imperfeito (“quebrava ovos”, “jogava tênis”), reforçado por advérbios freqüentativos como

“habitualmente”, “todos os dias”, “muitas vezes”. Apontam para a rotina de certas ações, para a

monotonia repetitiva de certos gestos, para a erosão exercida por esta monotonia, etc.

Pseudo-Iterativo: “[...] a apresentação de cenas, particularmente pela sua redacção no

imperfeito, como iterativas, ao passo que a riqueza e a precisão dos pormenores fazem com que

nenhum leitor possa seriamente crer que elas se verificaram e reverificaram, várias vezes, sem qualquer

variação.” (p. 121) Na narrativa clássica se apresenta como uma figura de retórica, que não exige ser

tomado à letra. (p. 122)

Iteração: o que a define é uma repetição regular, ou seja, é necessário que obedeça a uma lei de

freqüência, que, por sua vez, tem que ser destrinçável e formulável, logo, previsível nos seus efeitos.

(p. 124)

Coleridge: suspensão voluntária da incredulidade.

DETERMINAÇÃO, ESPECIFICAÇÃO E EXTENSÃO

DeterminaçãoRefere-se ao início e ao término de uma série, ou seja, aos seus limites diacrônicos. Por

exemplo: “a partir de certo ano”, “quando a primavera chegar”. A determinação não só marca os

limites de uma série, mas também pode escandir suas etapas e dividi-la em subséries.

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EspecificaçãoRefere-se à freqüência de uma série. É marcada por advérbios do tipo “por vezes”, “certos

dias”, “freqüentemente”, “todos os dias”.

ExtensãoRefere-se à duração da unidade iterativa.

Pode ocorrer de aparecer o paradoxo de um iterativo no pretérito perfeito: “passei por vezes”,

“durante muito tempo deitei-me”. (p. 132).

O singulativo pode estar a serviço do iterativo e vice-versa. Pode-se evocar um acontecimento

singular, ou como ilustração/confirmação de uma série iterativa (“é assim que”) ou como exceção à

regra que se acaba de estabelecer (“uma vez, porém”).

Diacronia interna e externaA narrativa iterativa pode ter em conta a diacronia real e integrá-la na sua própria progressão

temporal.

Põe-se, então, inevitavelmente, a questão das relações entre diacronia interna (a da unidade

sintética) e a diacronia externa (a da série real) e suas eventuais interferências.

Exemplo: durações do dia, estações, Páscoa, Ascensão, época de lilases, chuvas de outono

[diacronia externa], comportamento infantil de manhã e juvenil à tarde, criança [diacronia interna].

Pensar dois momentos, característica da Recherche, indica a lei própria do iterativo.

Alternância, transiçãoPerceber se o ritmo da narrativa repousa na alternância entre sumário/cena ou

iterativo/singulativo. Esta última alternância geralmente recobre um sistema de subordinações já visto:

a cena singulativa com função ilustrativa subordinada a um segmento iterativo. Há outro tipo de

subordinação: o iterativo com função descritiva ou explicativa, subordinada uma cena singulativa (p.

143).

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Verificar se o narrador não pretende camuflar as ações únicas em ações repetidas e se não torna

tal segmento inverossímil. Na Recherche, por exemplo, “os imperfeitos e os pretéritos perfeitos

sucedem-se sem razão aparente, como se o autor, incapaz de adotar definitivamente um ponto de vista

em vez de outro, tivesse deixado inacabadas as suas transposições temporais.” (p. 145)

Em outro exemplo, temos “De repente, o ar rasgava-se”. A presença do advérbio impede que

se leia esse imperfeito como durativo, obrigando, pois, a que se interprete como iterativo.

Entre a alternância singulativo/iterativo, temos elementos neutros, como 1) As divagações

discursivas no presente; 2) O diálogo; 3) Imperfeitos cujo valor aspectual não é determinável.

Jogo com o tempo“[...] na narrativa tradicional, a analepse (caso de ordem) toma na maior parte das vezes a forma

da narrativa sumária (caso de duração, ou de velocidade), o sumário recorre não raro aos serviços do

iterativo (caso de freqüência), a descrição é quase sempre, ao mesmo tempo, pontual, durativa e

iterativa, sem nunca evitar ensaios de movimento diacrônico [...]”. (p. 153)

Podem existir interpolações, distorções, condensações temporais na narrativa.

O narrador pode, por uma motivação realista, invocar ora o cuidado em contar as coisas como

tais foram vividas no momento, ora tais como são ulteriormente memoradas. (p. 155)

O papel do analista não é o de ficar satisfeito com os jogos do tempo, nem ignorá-los; mas

antes, uma vez posto a nu o processo, ver como é que a motivação invocada funciona na obra como

médium estético.

4. MODO

“[...] uma vez que a função da narrativa não é dar uma ordem, formular um desejo, enunciar

uma condição, etc., mas, simplesmente, contar uma história, logo <relatar> factos (reais ou fictícios), o

seu modo único, ou pelo menos característico, só pode ser, em rigor, o indicativo [...]” (p. 159).

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Genette atribui a “modo” definição diferente daquelas categorias meta-históricas e universais

como modo narrativo, modo dramático e modo lírico, cujas constantes são atualizadas nos gêneros.

Littré define o sentido gramatical de modo: “nome dado às diferentes formas do verbo

empregadas para afirmar mais ou menos a coisa de que se trata, e para exprimir... os diferentes pontos

de vista dos quais se considera a existência ou a acção” (p. 160).

“[...] a narrativa pode fornecer ao leitor mais ou menos pormenores, e de forma mais ou menos

directa, e assim parecer (para retomar uma metáfora espacial corrente e cômoda, na condição de a não

tomar à letra) manter-se a maior ou menor distância daquilo que conta; pode, também, escolher o

regulamento da informação que dá, já não por essa espécie de filtragem uniforme, mas segundo as

capacidades de conhecimento desta ou aquela das partes interessadas na história (personagem ou grupo

de personagens), da qual adoptará ou fingirá adoptar aquilo a que correntemente se chama a <visão> ou

o <ponto de vista>, parecendo então tomar em relação à história (para continuar a metáfora espacial)

esta ou aquela perspectiva. <Distância> e <perspectiva>, assim provisoriamente nomeadas e definidas,

são as duas modalidades essenciais dessa regulação da informação narrativa que é o modo, como a

visão que tenho de um quadro depende, quanto à precisão, da distância que me separa dele, e, quanto à

amplitude, da minha posição em relação a certo obstáculo parcial que mais ou menos o esconde.” (p.

160)

Modo rege a regulagem da informação narrativa; pode, com efeito, contar-se mais ou menos o

que se relata e contá-lo segundo tal ou tal ponto de vista. A visão que tenho de um quadro depende,

quanto à precisão, da distância que me separa dele, por exemplo. “Modo” é usado no sentido preciso de

seleção quantitativa e qualitativa daquilo que é narrado e também se refere à determinação da

distância e da perspectiva narrativa.

DistânciaSegundo Platão:

Quando o poeta fala em seu nome sem procurar fazer-nos crer que é outro – Narrativa pura.

Poeta se esforça para dar a ilusão de que não é ele quem fala – Mímesis.

A narrativa pura é tida por mais distante que a imitação. Ela diz menos, diz de uma forma mais

mediata.

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A oposição entre narrativa pura e narrativa mimética “[...] ressurgiu bruscamente na teoria do

romance, nos Estados Unidos e na Inglaterra, no fim do século XIX e no princípio do século XX, em

Henry James e seus discípulos, sob os termos meramente transpostos de showing (mostrar) vs. telling

(contar), que depressa se tornaram, na vulgata normativa anglo-saxônica, o Ormuzd e o Ahriman da

estética romanesca.” (p. 161)

“Desse ponto de vista normativo, Wayne Booth criticou de forma decisiva essa valorização neo-

aristotélica do mimético ao longo de sua Retórica da Ficção. Do ponto de vista puramente analítico

que é o nosso, há que acrescentar (o que, aliás, a argumentação de Booth não deixa de revelar, de

passagem) que a própria noção de showing como a de imitação ou de representação narrativa (e mais

ainda, por causa do seu caráter ingenuamente visual) é perfeitamente ilusória: contrariamente à

representação dramática nenhuma narrativa pode <mostrar> ou <imitar> a história que conta. Mais não

pode que contá-la de modo pormenorizado, preciso, <vivo>, e dar assim mais ou menos a ilusão de

mimese que é a única mimésis narrativa possível, pela razão única e suficiente de que a narração, oral

ou escrita, é um facto de linguagem, e que a linguagem significa sem imitar.” (p. 161-162).

Showing: imitação ou representação narrativa. Contudo, é um conceito ilusório: tem um caráter

ingenuamente visual e, além disso, somente a arte dramática pode mostrar ou imitar a história que

conta. Ela fornece, então, uma ilusão de mimese.

Narrativa de acontecimentosA narrativa de acontecimentos é sempre narrativa/transcrição do (suposto) não-verbal em

verbal: a sua mimese nunca será mais que uma ilusão de mimese.

Ao considerar os comentários de Platão, Genette percebe os fatores miméticos implícitos: “a

quantidade da informação narrativa (narrativa mais desenvolvida, ou mais pormenorizada) e a ausência

(ou presença mínima) do informador, quer dizer, do narrador. <Mostrar> não pode ser senão uma

forma de contar e essa forma consiste ao mesmo tempo em dizer o mais possível sobre, mas dizê-lo o

menos possível: <fingir, diz Platão, que não é o poeta quem fala> – ou seja, fazer esquecer que é o

narrador quem conta. Donde estes dois preceitos cardinais do showing: a dominância jamesiana da

cena (narrativa pormenorizada) e a transparência (pseudo-) flaubertiana do narrador [...]” (p. 164)

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Narrativa proustiana consiste quase exclusivamente em “[...] cenas (singulativas ou iterativas),

isto é, na forma narrativa que é mais rica em informação, logo a mais <mimética>; mas, por outro lado

[...]” a presença do narrador é aí constante, e de intensidade inteiramente contrária à regra

<flaubertiana>.

Narrador: fonte de informação, organizador da narrativa, analista e comentador, estilista e

produtor de metáforas.

“Sabe-se que, para os partidários pós-jamesianos do romance mimético (e para o próprio

James), a melhor forma narrativa é aquilo a que Norman Friedmann chama <a história contada por uma

personagem, mas na terceira pessoa> (fórmula inábil que designa, evidentemente, a narrativa

focalizada, contada por um narrador que não é uma das personagens mas adopta o ponto de vista de

uma delas). Assim, prossegue Friedmann, resumindo Lubbock, <o leitor dá conta da acção filtrada pela

consciência de uma das personagens, mas dá conta dela directamente, tal qual ela afecta essa

consciência, evitando a distância que inevitavelmente implica a narração retrospectiva na primeira

pessoa>.” (p. 166). OBS.: em James tem distância e proximidade.

Narrativa de falasSe a imitação verbal de acontecimentos não verbais é utopia ou ilusão, a narrativa de falas

parece condenada a priori a essa imitação.

Os discursos são imitados, ou seja, ficticiamente relatados, tal como é supostos ter sido

pronunciado pela personagem.

Há três tipos de estados do discurso:

1) Discurso narrativizado ou contado: é o mais distante, por ex.: “Contei a minha mãe que

desposei Albertine” em vez de “É necessário que eu despose Albertine”.

2) Discurso transposto, em estilo indireto: “Disse a minha mãe que era necessário que eu

desposasse Albertine”. A presença do narrado é muito sensível.

3) Discurso relatado ou reportado: Narrador finge ceder a palavra literalmente a sua

personagem. É a forma mais mimética para Platão: “Disse a minha mãe: é necessário que despose

Albertine.”

Page 17: discurso-da-narrativa-gerard-genette-

“ [...] uma das grandes vias de emancipação do romance moderno terá consistido em levar ao

extremo, ou ao limite, melhor, essa mimese do discurso, diluindo as últimas marcas da instância

narrativa e dando logo à primeira a palavra à personagem.” (p. 171). Por exemplo (sem aspas): É

absolutamente necessário que despose Albertine...

Isso foi batizado de monólogo interior. Contudo, para Genette, deveria ser chamado de

discurso imediato, pois, como Joyce já havia observado, “não é o ser interior, mas o surgir logo à

primeira (<desde as primeiras linhas>) emancipado de qualquer patrocínio narrativo, o ocupar logo ao

primeiro lance a frente da <cena>.” (p. 172)

O monólogo não tem que ser extensivo a toda obra para ser recebido como imediato; basta que

se apresente por si mesmo, sem a interposição de uma instância narrativa reduzida ao silêncio.

É diferente, também, do discurso indireto livre, em que “o narrador assume o discurso da

personagem, ou, se se preferir, a personagem fala pela voz do narrador, e as duas instâncias vêem-se

então confundidas; no discurso imediato, o narrador dilui-se e a personagem substitui-se-lhe.” (p. 172-

173).

Discurso imediato/Monólogo interior: pensamento no estado nascente, traduzido por um fluxo

infraverbal reduzido ao mínimo sintaxial. Definição por Proust (p. 178).

“O discurso <estilizado> é a forma extrema da mimese de discurso, em que o autor <imita> a

sua personagem não somente no tecido dos seus dizeres, como também nessa literalidade hiperbólica

que é a do pastiche, sempre um pouco mais idiolectal que o texto autêntico, como a <imitação> é

sempre uma paródia por acumulação e acentuação de traços específicos.” (p. 182)

PerspectivaRefere-se à “escolha (ou não) de um <ponto de vista> restritivo.” (p. 183)

Modo: “qual é a personagem cujo ponto de vista orienta a perspectiva narrativa?” (p. 184)

Quem vê?

Voz: quem é o narrador? Quem fala?

Perspectiva é também designado por outros teóricos como foco narrativo ou ponto de vista.

Acontecimentos analisados do Acontecimentos analisados do

Page 18: discurso-da-narrativa-gerard-genette-

interior exteriorNarrador como personagem Herói conta sua história Testemunha conta história do

heróiNarrador ausente como personagem

Autor analista/onisciente conta a história

Autor conta a história do exterior

Em 1955, Stanzel distingue três tipos de situações narrativas:

- autor onisciente;

- narrador é uma das personagens;

- narrativa na terceira pessoa: “ponto de vista duma personagem (tipo: The Ambassadors).” (p.

185).

Norman Friedman:

- narração onisciente com intrusão de autores;

- narração onisciente sem intrusão de autores;

- narração onisciente seletiva com ponto de vista restrito múltiplo;

- narração onisciente seletiva com ponto de vista restrito único;

- narração na primeira pessoa com eu-testemunha;

- narração na primeira pessoa com eu-herói;

- narração objetiva com modo dramático;

-narração objetiva com modo câmara (registro puro e simples, sem seleção ou organização).

“Recordemos que Friedman descreve o seu sexto tipo (Portrait of the Artist) como <história

contada por uma personagem, mas na terceira pessoa>, fórmula que testemunha uma confusão evidente

entre a personagem focal (aquilo que James chamava o <reflector>) e o narrador.” (p. 185)

Todorov:

- Narrador > Personagem: narrador sabe mais que a personagem ou diz mais do que aquilo que

qualquer personagem sabe. A crítica anglo-saxônica chama de narrador onisciente;

- Narrador = Personagem: narrador apenas diz aquilo que certa personagem sabe. É a narrativa

de ponto de vista, segundo Lubbock, ou de campo restrito, segundo Blin e visão com segundo Pouillon;

- Narrador < Personagem: narrador diz menos do que sabe a personagem. É a narrativa

objetiva ou behaviourista, a que Pouillon chama de visão de fora.

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FocalizaçõesGenette renomeia a qualificação de Todorov:

Narrativa não-focalizada, ou focalização zeroNarrador > Personagem

Narrativa de focalização internaNarrador = Personagem

Pode ser fixa (The Ambassadors), variável (Madame Bovary) ou múltipla (como nos romances

por cartas: mesmo acontecimento pode ser evocado várias vezes segundo o ponto de vista de várias

personagens.). A focalização interna só se encontra plenamente realizada na narrativa em monólogo

interior.

Narrativa de focalização externaNarrador < Personagem

“[...] o herói age à nossa frente sem que alguma vez sejamos admitidos ao conhecimento dos

seus pensamentos ou sentimentos [...]” (p. 188), que pode conduzir à adivinha. Ou, em outras palavras,

é quando o narrador ignora os pensamentos autênticos do herói. Não se deve confundir essa categoria

com o romance de intriga ou aventura, em que o autor não diz de um momento para o outro tudo o que

sabe.

“Não age já, em contrapartida, em James, que mergulha desde o primeiro lance na intimidade

dos seus heróis: <O primeiro cuidado de Strether, ao chegar ao hotel...>” (p. 189).

A diferença entre focalização interna variável (narrador = personagem) e não focalização

(narrador > personagem) é muito difícil de estabelecer, podendo a não focalização analisar-se como

uma narrativa multifocalizada, segundo o princípio de quem mais pode, menos pode.

Na visão com (focalização interna ou narrador = personagem), segundo Pouillon, a personagem

é vista não na sua interioridade, mas na imagem que um dos outros forma.

Roland Barthes define o modo pessoal da narrativa. “Esse critério é a possibilidade de

reescrever o segmento narrativo considerado (se o não foi já) na primeira pessoa, sem que essa

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operação acarrete <qualquer outra alteração do discurso além da própria mudança dos pronomes

gramaticais>: desse modo, uma frase como <James Bond notou um homem de uns cinqüenta anos,

de modos ainda jovens, etc.> é traduzível em primeira pessoa (<Notei, etc.>) e releva para nós,

portanto, da focalização interna. Pelo contrário, uma frase como <o tilintar contra o vidro pareceu dar a

Bond uma brusca inspiração> é intraduzível em primeira pessoa sem incongruidade semântica

evidente. Aqui, estamos de modo típico em focalização externa, por causa da ignorância marcada do

narrador em relação aos pensamentos autênticos do herói.” (p. 191-192).

Alterações“[...] uma mudança de focalização, sobretudo se surgir isolada num contexto coerente, pode

também ser analisada como uma infracção momentânea ao código que rege esse contexto, sem que a

existência desse código seja só por isso posta em questão, do mesmo modo que, numa partitura

clássica, uma mudança momentânea de tonalidade, ou mesmo uma dissonância recorrente, se definem

como modulação ou alteração, sem que seja contestada a tonalidade do conjunto.” (p. 193)

“Os dois tipos de alteração concebíveis consistem quer em dar menos informação do que aquela

que é, em princípio, necessária, quer em dar mais do que o é, em princípio, autorizado pelo código de

focalização que rege o conjunto” (p. 193):

- Dar menos informação: omissão lateral, ou paralipse.

- Dar mais informação: paralepse.

ParalipseConsiste em facultar menos informação do que a normalmente permitida pela focalização. “O

tipo clássico de paralipse, recordemos, é, no código da focalização interna, a omissão de certa acção ou

pensamento importante do herói focal, que nem o herói nem o narrador podem ignorar, mas que o

narrador prefere esconder do leitor.” (p. 194).

Quando a paralipse acontece na focalização onisciente, ou focalização zero, acontece uma

infração momentânea. A paralipse não precisa ser necessariamente involuntária; pode se revelar como

incapacidade ou desinteresse irônico do narrador ou ser exigida por economia ou lógica do

desenvolvimento da história.

Page 21: discurso-da-narrativa-gerard-genette-

ParalepseÉ o excesso de informação, ou seja, é mostrada mais informação do que a focalização instituída

permite. Assim, é pertinente tratar somente de paralepse na focalização interna e externa, já que na

focalização zero o autor onisciente tudo pode.

Ela “pode consistir numa incursão na consciência de uma personagem no decorrer de uma

narrativa geralmente conduzida em focalização externa [...]” (p. 195, grifo nosso) (Não conhecemos

pensamentos das personagens). Pode ocorrer paralepse também em focalização interna quando aparece

“uma informação incidente sobre os pensamentos de uma personagem que não a personagem focal, ou

sobre um espetáculo que ela não pode ver.” (p. 195, grifo nosso) (What Maisie Knew).

“A narrativa diz sempre menos do que aquilo que sabe, mas faz muitas vezes saber mais do que

aquilo que diz” [p.196).

Polimodalidade“[...] o emprego da <primeira pessoa>, por outras palavras, a identidade de pessoa do narrador e

do herói não implica nenhuma focalização da narrativa sobre o herói.” (p. 196)

Por outro lado, a narrativa impessoal tende para a focalização interna pelo lado simples da

discrição e do respeito por aquilo a que Sartre chamaria a “liberdade”, ou seja, a ignorância das

personagens. Ora, o narrador autobiográfico não tem qualquer dever de discrição em relação a si

próprio.

As locuções modalizantes (talvez, sem dúvida, como se, parecer, aparecer como) “permitem ao

narrador dizer hipoteticamente aquilo que não poderia afirmar sem sair da focalização interna, e que

Marcel Muller não deixa de ter razão de considerar como <álibis do romancista>, que impõe a sua

verdade sob uma cobertura algo hipócrita, para além de todas as incertezas do herói, e talvez também

do narrador: porque, também aqui, a ignorância do texto não nos permite decidir se o <talvez> é um

efeito de estilo indirecto, logo, se a hesitação que denota convém apenas ao herói. Falta ainda observar

que o carácter muitas vezes múltiplo dessas hipóteses atenua fortemente a sua função de paralepse

inconfessada, e acentua, pelo contrário, o seu papel de indicadores de focalização.” (p. 201).

A ignorância é, de algum modo, partilhada, ou, mais exatamente, a ambigüidade do texto não

nos permite decidir se o talvez é um efeito de estilo indireto, logo, se a hesitação convém apenas ao

herói.

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“[...] a multiplicidade das hipóteses contraditórias sugere muito mais a insolubilidade do

problema, e num mínimo, a incapacidade do narrador para o resolver.” (p. 201).

As indiscrições são o testemunho da dificuldade que o herói experimenta em satisfazer a sua

curiosidade e em penetrar na existência de outrem. Deverão, pois, ser atribuídas à focalização interna.

A única focalização logicamente implicada pela narrativa na primeira pessoa é a focalização

sobre o narrador.

Quando há algum anúncio (como já visto no capítulo de ordem), essa advertência não pode ser

do campo do herói, mas sim do narrador, como todas as formas de prolepses que excedem sempre as

capacidades de conhecimento do herói. (p. 203)

O crítico pode contestar a oportunidade desses complementos de informação, mas não a sua

legitimidade ou sua verossimilhança numa narrativa de forma autobiográfica.

A verdadeira dificuldade, referente à paralepse, começa quando a narrativa autobiográfica

(como a Recherche) nos relata, de repente e sem qualquer subterfúgio perceptível, os pensamentos de

outra personagem no decurso de uma cena em que o próprio herói está presente. Tal paralepse deve ser

atribuída ao romancista onisciente (o que prova que Proust sabe transgredir os limites do seu próprio

sistema narrativo).

Essa dupla focalização indica um narrador onisciente que é capaz de ver para além dos

comportamentos e sondar fins e corações.

5. VOZ

A voz pode se referir a dois planos. O primeiro refere-se à voz do narrador, a propósito de toda

a manifestação da sua presença observável ao nível do enunciado. Trata-se, então, das intrusões do

narrador, enquanto afloramento de uma subjetividade.

O segundo diz respeito à teoria do Genette: a voz engloba as questões que respeitam à maneira

como se encontra implicada na narrativa a narração, isto é, a situação ou instância narrativa e com ela

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os seus dois protagonistas: o narrador e o narratário. Assim, a voz tem a ver com um processo e com

as circunstâncias em que ele se desenrola; o processo é o da enunciação narrativa, o ato de narração.

“Benveniste chamou a subjectividade na linguagem, ou seja, a passar da análise dos enunciados

à das relações entre esses enunciados e a sua instância produtiva – o que se chama hoje a sua

enunciação.” Narração é seu termo paralelo. (p. 212).

“Uma situação narrativa, como qualquer outra, é um conjunto complexo no qual a análise, ou

simplesmente a descrição, só pode distinguir retalhando-o um tecido de relações estreitas entre o acto

narrativo, os seus protagonistas, as suas determinações espácio-temporais, a sua relação com as outras

situações narrativas implicadas na mesma narrativa, etc. As necessidades da exposição constrangem-

nos a essa violência inevitável pelo simples facto de o discurso crítico, não mais que qualquer outro,

não conseguir dizer tudo ao mesmo tempo.” (p. 214) Ou seja, como artifício didático, utiliza-se a

separação, a análise.

A voz abarca três domínios fundamentais para a caracterização da comunicação narrativa:

- o tempo em que decorre a narração, relativamente àquele em que ocorre a história;

- o nível narrativo;

- a pessoa responsável pela narração.

Tempo de narraçãoPode-se muito bem “contar uma história sem precisar o lugar onde

sucede [...] ao passo que me é quase impossível não a situar no tempo em relação ao meu acto

narrativo, pois devo, necessariamente, contá-la num tempo do presente, do passado ou do futuro.” (p.

214-215)

A principal determinação temporal da instância narrativa é sua posição relativa em relação à

história. Parece evidente que a narração não pode senão ser posterior àquilo que conta, mas tal

evidência é desmentida pela existência da narrativa preditiva.

Mais especificamente, há quatro tipos de narração:

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Ulterior(posterior) “posição clássica da narrativa no passado, sem dúvida, e de muito longe, a mais

freqüente.” (p. 216) “O emprego de um tempo do pretérito basta para a designar como tal, sem por isso

indicar a distância temporal que separa o momento da narração do da história.” (p. 219) Na narrativa

clássica em terceira pessoa, essa distância é geralmente como que indeterminada.

“Acontece, todavia, ser revelada uma relativa contemporaneidade da acção pelo emprego do

presente [...]” (p. 220) quer no começo, quer no fim da narrativa.

“Esses efeitos de convergência final, os mais arrebatadores, jogam com o facto de que a duração

própria da história diminui progressivamente a distância que a separa do momento da narração. Mas

sua força está na revelação inesperada de uma isotopia temporal (e logo, numa certa medida, diegética)

até então disfarçada – ou, no caso de Bovary, esquecida há muito tempo – entre a história e o seu

narrador.” (p. 220).

“Essa isotopia é, pelo contrário, evidente desde logo na narrativa <de primeira pessoa>, em que

o narrador é dado de uma vez como personagem da história, e onde a convergência final é quase de

regra [...]” (p. 220)

Contrariamente à narração simultânea ou intercalada, que vive da sua duração, a narração

ulterior vive de do paradoxo de possuir ao mesmo tempo uma situação temporal (em relação à história

passada) e uma essência intemporal, já que sem duração própria.

Anterior“[...] narrativa predictiva, geralmente no futuro, mas que nada proíbe que seja conduzida no

presente [...]” (p. 216). A característica comum dessas narrativas é a de “serem predictivas em relação à

sua instância narrativa imediata (Aarão, sonho de Jocabel), mas não em relação à instância última (o

autor implícito de Moyse sauvé, que aliás se identifica explicitamente com Saint-Amant): exemplos

manifestos de predição do passado.” (p. 219)

SimultâneaNarrativa no presente, contemporânea da ação. É o tipo mais simples, pois a “[...] coincidência

rigorosa da história e da narração elimina toda a espécie de interferência e de jogo temporal.” (p. 218).

Uma narrativa no presente pode parecer o cúmulo da objetividade, pois a última marca da enunciação

que subsistia (emprego do pretérito) desaparece numa transparência da narrativa, que se apaga em

proveito da história: assim foram recebidas as obras do Nouveau Roman. (p. 218)

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“Tudo se passa, pois, como se o emprego do presente, aproximando as instâncias, tivesse por

efeito romper o seu equilíbrio e permitir ao conjunto da narrativa, segundo o mais pequeno

deslocamento de acento, o balouçar ou para o lado da história ou para o lado da narração, isto é, do

discurso: e a facilidade com a qual o romance francês destes últimos anos passou de um extremo ao

outro ilustra talvez essa ambivalência e essa reversibilidade” (p. 218).

IntercaladaEntre os momentos da ação. É “o tipo mais complexo, dado tratar-se de uma narração de várias

instâncias, podendo a história e a narração enredar-se nela a um ponto tal que a segunda reaja sobre a

primeira: é o que se passa, em particular, no romance epistolar de vários correspondentes [...]” (p. 216).

A carta é o meio da narrativa e elemento de intriga.

Níveis narrativosNível narrativo refere-se a uma concepção da narrativa como entidade estruturada, organismo

construído e comportando diversos estratos de inserção dos componentes que o integram.

Para Barthes, há três níveis: o das funções (mesmo sentido a que lhe atribui Propp, unidade

mínima narrativa); o das ações (mesmo sentido a que lhe atribui Greimas, personagens como actantes)

e o nível da narração (sentido de discurso, para Todorov).

Para Todorov, há dois sentidos para níveis narrativos: as conexões entre nível da história e nível

do discurso e, em segundo lugar, de entender a narrativa como um grande sintagma.

Para Greimas, os níveis narrativos são vistos como “patamares” de constituição da

narratividade. A estrutura elementar é o quadro semiótico.

Para Genette, “O domínio específico que aqui interessa é o da voz, englobando-se nela as

circunstâncias que condicionam a enunciação narrativa e as entidades que nela intervêm; em certos

relatos, verifica-se um desdobramento de instâncias narrativas, pela ocorrência de mais de um ato

narrativo, enunciados por narradores colocados em níveis distintos.”( Reis; Lopes, 2000, p. 133) Assim

se criam diferenças de níveis que permitem afirmar que: “[...] o narrador da segunda já é uma

personagem da primeira [...]” (p. 227) e que “[...] todo acontecimento contado por uma narrativa está

num nível diegético imediatamente superior àquele em que se situa o acto narrativo produto dessa

narrativa.” (p. 227).

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“A instância narrativa de uma narrativa primeira é, pois, por definição, extradiegética, como a

instância narrativa de uma narrativa segunda (metadiegética) é por definição diegética, etc.” (p. 228).

“[...] é propriedade do discurso imediato o excluir toda a determinação de forma da instância

narrativa que o constitui.” (p. 229)

“Inversamente, toda a narração intradiegética não produz necessariamente, como a de Des

Grieux, uma narrativa oral: pode consistir num texto escrito, como a memória sem destinatário redigida

por Adolphe, ou mesmo num texto literário fictício, obra na obra, como a <história> do Curioso

Impertinente descoberta numa / mala pelo padre do Don Quijote [...]” (p. 229-230)

N (extradiegético) [P/N2 (Intradiegético) [P2/P3 (hipodiegético) [ P3...

N é um narrador do nível extradiegético, relatando uma história em que pode ter tomado parte

ou não; P é uma personagem no nível intradiegético, à qual cabe o papel de narrador dentro da história.

Abre-se então um nível hipodiegético, em que se encontram personagens, ações, espaços. O narrador

da segunda é personagem da primeira.

A análise dos vários níveis narrativos não deve restringir-se a uma atitude formalmente

descritiva. Tal análise deve ser um estádio que conduza ao desvelar das relações temáticas que entre

os vários níveis narrativos se esboçam.

Nível extradiegético É “[...] o primordial, aquele a partir do qual pode(m) constituir-se outro(s) nível(is)

narrativo(s).” (Reis; Lopes, 2000, p. 126). É aquele em que “[...] se situa o narrador ‘exterior’ à diegese

que narra, colocando-se quase sempre (mas não obrigatoriamente) numa posição de ulterioridade [...]

que favorece essa posição de exterioridade.” (Reis; Lopes, 2000, p. 126).

Um narrador autodiegético pode encontrar-se ao nível extradiegético, assim como um narrador

heterodiegético pode encontrar-se ao nível extradiegético. Esquematicamente:

N (extradiegético) { P/N2 (Intradiegético) [P2 (hipodiegético)] }

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Nível intradiegético“[...] refere-se à localização das entidades (personagens, ações, espaço) que integram uma

história e que, como tal, constituem um universo próprio. No que à distinção de níveis narrativos diz

respeito, as entidades do nível intradiegético são as que se colocam no plano imediatamente seguinte ao

nível extradiegético e precedendo imediatamente o nível hipodiegético (quando ele existe) subordinado

ao intradiegético.” (Reis; Lopes, 2000, p. 130).

“No caso das narrativas de narrador homodiegético (e também, obviamente, nas de narrador

autodiegético), não deve estabelecer-se uma relação de vinculação rígida entre a pessoa da narração e o

nível narrativo. Isto significa que a pessoa que no presente relata a história (no nível extradiegético)

refere-se a eventos em que participou, como personagem, no nível intradiegético.” (Reis; Lopes, 2000,

p. 131).

N (extradiegético) { P/N2 (Intradiegético) [P2 (hipodiegético)] }

Nível hipodiegético/metadiegéticoGenette propôs a expressão metadiegético. Contudo, como propõe Bal, tal expressão não é

pacífica, se considerarmos que meta- significa “sobre”, “acerca de”. (Reis; Lopes, 2000, p. 128)

“Com o prefixo hipo-, representa-se de forma mais nítida a situação de dependência e

subordinação do nível hipodiegético ao nível intradiegético ou diegético.” (Reis; Lopes, 2000, p. 128).

Nível hipodiegético é “[...] aquele que é constituído pela enunciação de um relato a partir do

nível intradiegético: uma personagem da história, por qualquer razão específica e condicionada por

determinadas circunstâncias, é solicitada ou incumbida de contar outra história, que assim aparece

embutida na primeira.” (Reis; Lopes, 2000, p. 128) Relacionar com as analepses e espaços por

lembranças para reforçar o ponto de vista de Strether.

A narrativa hipodiegética apresenta diversas funções: explicativa, preditiva, temática,

persuasiva, distrativa e de obstrução.

N (extradiegético) { P/N2 (Intradiegético) [(hipodiegético) Personagens/Ações/Espaços] }

“A famosa estrutura em abismo, tão prezada dantes pelo nouveau roman dos anos 60, é

evidentemente uma forma extrema dessa relação de analogia, levada até aos limites da identidade.” (p.

232) / do nível hipodiegético ou metadiegético, para Genette.

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Metalepses“Significando etimologicamente "transposição", a metalepse é um movimento de índole

metonímica que consiste em operar a passagem de elementos de um nível narrativo a outro nível

narrativo.” (Reis; Lopes, 2000, p. 264)

“[...] toda intrusão do narrador ou do narratário extradiegéticos no universo diegético (ou de

personagens diegéticas num universo metadiegético, etc.), ou inversamente, como em Cortázar, produz

um efeito de bizarria umas vezes bufa (quando é apresentado, como por Sterne ou Diderot, em tom de

brincadeira) outras fantástica.” (p. 234).

“Procedimentos metalépticos de certo modo moderados verificam-se freqüentemente, quando o

narrador, em diálogo ameno com o leitor, faz menção de o conduzir pelos meandros da história, assim

se insinuando discretamente as relações que podem existir entre o nível extradiegético e o nível

diegético [...]” (Reis; Lopes, 2000, p. 264): "Se isso agradar, reponhamos a camponesa...", "Voltemos

aos viajantes", "Que me impediria de o tornar corno?"

“Todos esses jogos manifestam, pela intensidade dos seus efeitos, a importância do limite que

se esforçam por transpor a expensas da verossimilhança, e que é precisamente a narração (ou a

representação) em si própria; fronteira oscilante, mas sagrada entre dois mundos: aquele em que se

conta, aquele que se conta.” (p. 235)

“Aquilo que na metalepse é mais perturbador está de facto nessa hipótese inaceitável e

insistente de que o extradiegético é talvez sempre já diegético, e que o narrador e seus narratários, quer

dizer, eu, vós, pertencemos talvez ainda a alguma narrativa.” (p. 235)

Pseudodiegético: A narração em que a “estação metadiegética, mencionada ou não, se acha ime

diatamente excluída em proveito do primeiro narrador, o que faz, de alguma maneira, a

economia de um (ou, por vezes, de vários) nível narrativo, metadiegética reduzida (subentendido: ao

diegético) ou pseudo-diegética.” (p. 235-236).

É uma narrativa segunda no seu princípio, mas imediatamente trazida ao nível primeiro e

tomada a seu cargo, qualquer que seja a fonte, pelo herói-narrador.

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Em outras palavras: “[...] resulta de uma operação de redução de uma narrativa de nível

hipodiegético (metadiegético na terminologia de Genette) ao nível intradiegético ou diegético.” (Reis;

Lopes, 2000, p. 134-135) Então, “[...] em vez de se abrir expressamente um nível narrativo

hipodiegético, verifica-se que, através da redução pseudodiegética, o narrador controla o ritmo da

narração e o desenvolvimento da ação; conseqüentemente, evidenciam-se com nitidez as conexões

existentes entre personagens e eventos desse nível hipodiegético eliminado e as personagens e eventos

do nível diegético assim colocados praticamente ao mesmo nível, sem que entre ambos se institua um

corte brusco que só por metalepse seria compensado.” (Reis; Lopes, 2000, p. 135).

Pessoa

Genette optou por mencionar narrativas em primeira ou terceira pessoa somente entre aspas,

como protesto. Vai contra tal terminologia.

“A escolha do romancista não é feita entre duas formas gramaticais, mas entre duas atitudes

narrativas (de que as formas gramaticais são apenas uma conseqüência mecânica): fazer contar a

história por uma das suas <personagens>, ou por um narrador estranho a essa história.” (p. 243)

Os verbos na primeira pessoa apontam duas situações diferentes, que a gramática confunde, mas

a análise narrativa deve distinguir: “[...] a designação do narrador enquanto tal por si mesmo, como

quando Virgílio ao escrever <Arma virumque cano...> e a identidade de pessoa entre o narrador e uma

das personagens da história, como quando Crusoe escreve <Em 1632, nasci em York> O termo

<narrativa na primeira pessoa> não se refere, muito evidentemente, senão à segunda dessas situações,

dissimetria que confirma a sua impropriedade.” (p. 243).

“Na medida em que o narrador pode a todo instante intervir como tal na narrativa, toda a

narração é, por definição, virtualmente feita na primeira pessoa (mesmo que seja no plural acadêmico,

como quando Stendhal escreve: <Confessaremos que... começamos a história do nosso herói...>). A

verdadeira questão é a de saber se o narrador tem ou não ocasião de empregar a primeira pessoa para

designar uma de suas personagens.” (p. 243)

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Narrador heterodiegéticoÉ o “narrador ausente da história que conta” (p. 244), que relata uma história a qual é estranho,

uma vez que não integra nem integrou, como personagem, o universo diegético em questão. É uma

entidade largamente privilegiada, nos planos quantitativo e qualitativo.

As linhas de força de uma narrativa com narrador heterodiegético são a polaridade entre

narrador e universo diegético, uma relação de alteridade em princípio irredutível. Tal narrador tende a

adotar uma atitude demiúrgica, dotado de uma autoridade que normalmente não é posta em causa. É ele

quem rege a perspectiva narrativa. Em algumas vezes o narrado heterodiegético prefere perfilhar o

ponto de vista de uma personagem inserida na história e adota também o código de valores por que

rege tal personagem.

A objetividade narrativa é um limite inatingível: o narrador protagoniza, de forma mais ou

menos visível, intrusões, que traduzem juízos.

Narrador homodiegético“[...] narrador presente como personagem na história que conta [...]” (p. 244).

“[...] narrador homodiegético é a entidade que veicula informações advindas da sua própria

experiência diegética; quer isto dizer que, tendo vivido a história como personagem, o narrador retirou

daí as informações de que carece para construir o seu relato, assim se distinguindo do narrador

heterodiegético.” (Reis; Lopes, 2000, p. 124).

Embora se assemelhe ao “narrador autodiegético, o narrador homodiegético difere dele por ter

participado na história não como protagonista, mas como figura cujo destaque pode ir da posição de

simples testemunha imparcial a personagem secundária estreitamente solidária com a central.” (Reis;

Lopes, 2000, p. 124).

Tal narrador patenteia a oscilação entre narrating self e experiencing self (Stanzel), ou seja, o

eu-narrador e o eu-narrado. Ele também valorizará a imagem do protagonista a partir de um critério de

observação testemunhal e exterior, o que implicará a análise dos registros da subjetividade. O que está

em causa será um confronto de personalidades.

[Essa idéia acima foi extraída do livro de Dicionário de Teoria da Narrativa, que discorda de

Genette:]

Para Genette, contudo, temos que distinguir duas variedades de narrador homodiegético: “[...]

uma em que o narrador é o herói de sua narrativa [...]” (p. 244) (que recebe o nome de autodiegético) e

a outra em que não desempenha senão um papel secundário, de observador testemunha.

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Narrador autodiegético“[...] o narrador é o herói da sua narrativa [...]” (p. 244).

“O narrador da história relata as suas próprias experiências como personagem central dessa

história.” (Reis; Lopes, 2000, p. 118).

Assim, “o registro de primeira pessoa gramatical que em tais narrativas se manifesta é, pois,

uma conseqüência natural da coincidência narrador/protagonista; conseqüência natural, mas não

obrigatória [...]” (Reis; Lopes, 2000, p. 118) (A Peste) ou o narrador heterodiegético pode se

pronunciar na primeira pessoa (Camilo Castelo Branco).

Monólogo interior: “modalidade de narração simultânea em que o sujeito da enunciação

coincide com o do enunciado. Muitas vezes, porém, não é isso que ocorre; o narrador autodiegético

aparece então como identidade colocada num tempo ulterior em relação à história que relata, entendida

como conjunto de eventos concluídos e inteiramente conhecidos.” (Reis; Lopes, 2000, p. 119)

Surge então a distância temporal entre o passado da história e o presente da narração. Dessa

distância temporal pode decorrer outras, como ética, afetiva, moral, ideológica, etc. O sujeito que no

presente recorda já não é mais o mesmo que viveu ou fatos.

Pode optar-se por uma focalização interna ou focalização onisciente.

Na focalização interna ou na focalização onisciente, privilegia-se a imagem da personagem e

abdica-se da prematura revelação de eventos posteriores a esse tempo da experiência em decurso.

(Reis; Lopes, 2000, p. 119) A subjetividade projetada no enunciado remete para o eu-personagem em

ação e não para o eu-narrador; por outro lado, a focalização interna da personagem arrasta uma

focalização externa sobre o que a rodeia.

A focalização onisciente, “[...] quando ativada por um narrador autodiegético revela-se

quantitativa e qualitativamente muito distinta da que é protagonizada por um narrador

heterodiegético.” (Reis; Lopes, 2000, p. 120) O máximo potencial informativo de que o narrador

autodiegético pode desfrutar deriva da situação de ulterioridade em que se encontra e mesmo da sua

variável capacidade de retenção memorial. Sua onisciência, só denominada como tal quando possui

uma aquisição de um saber superior ao de sua condição de personagem, consente que o narrador

exponha prolepses, analepses, resumo, cena, etc.

Extra ou Intradiegético refere-se ao nível narrativo.

Hetero ou Homodiegético refere-se è relação do narrador à história:

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Extradiegético – heterodiegético: Homero, do 1º nível, que conta uma história da qual está

ausente;

Extradiegético – homodiegético: Narrador do 1º nível que conta sua própria história;

Intradiegético – heterodiegético: Xerazade, do 2º grau, que conta histórias das quais está

ausente;

Intradiegético – homodiegético: Ulisses, do 2º grau, que conta sua própria história.

Situação paradoxal nas narrativas proustianas: discurso teórico omnipresente, que se acomoda

mal à narração <objectiva> clássica e que exige que a experiência do herói se confunda com o passado

do narrador, que poderá assim comentá-la sem a aparência de intrusão (donde a adopção final de uma

narração autodiegética directa [...]). (p. 250).

Funções do narradorAlém do papel da narração, o fato de contar a história propriamente dita, o narrador pode ter

várias funções de acordo com os diversos aspectos da narrativa:

* Aspecto da história: função narrativa, quando o aspecto ressaltado é a história;

* Aspecto do texto narrativo: função de regência. O discurso pode ser, de alguma maneira,

metalingüístico para ressaltar suas articulações, conexões, a organização interna.

* Aspecto da situação narrativa: Os dois protagonistas são o narratário e o narrador. Lembra a

função fática (contato) e conativa (agir sobre o destinatário) de Jakobson.

Orientação do narrador para o narratário: função de comunicação.

Orientação para ele próprio: função parecida com aquela que Jakobson designa por função

emotiva. “[...] é ela que dá conta da parte que o narrador, enquanto tal, toma na história que conta, na

relação que mantém com ela: relação afectiva, claro, mas igualmente moral e intelectual, que pode

tomar a forma de um simples testemunho, como quando o narrador indica a fonte de onde tirou a sua

informação, ou o grau de precisão das suas próprias memórias, ou os sentimentos que tal episódio

desperta em si; há aí algo a que se poderia chamar função testemunhal ou de atestação.” (p. 255) As

intervenções directas ou indirectas do narrador a respeito da história podem tomar a forma de um

comentário autorizado e, com isso, afirma-se a função ideológica do narrador.

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Sobre essas funções: “[...] nenhuma, por mais cuidado que nisso se ponha, é inteiramente

evitável. Antes se tratará de uma questão de acento e peso relativo [...]” (p. 255).

Narratário“Como o narrador, o narratário é um dos elementos da situação narrativa, e coloca-se,

necessariamente, no mesmo nível diegético; quer dizer que não se confunde mais, a priori, com o leitor

(mesmo virtual) de que o narrador com o autor, pelo menos não necessariamente.” (p. 258).

O narrador intradiegético designará tão somente aqueles a quem se referem nas marcas de

segunda pessoa, eventualmente presentes no texto do mesmo modo que aquelas que se encontram num

romance por cartas somente podem designar o correspondente epistolar. “Nós, leitores, não podemos

identificar-nos mais com esses narratários fictícios do que esses narradores intradiegéticos se nos

podem dirigir, ou, sequer, supor a nossa existência” (p. 258).

O narrador extradiegético “outra coisa não pode senão visar um narratário extradiegético, que se

confunde aqui com o leitor virtual, e a quem qualquer leitor real pode identificar-se. Esse leitor virtual

é, em princípio, indefinido, apesar de acontecer a Balzac voltar-se de modo mais particular quer para o

leitor de província quer para o leitor parisiense, e de Sterne o chamar por vezes Senhora, ou Senhor

Crítico.” (p. 259).