DISCURSO EUGENISTA E REGULAÇÃO DA INFÂNCIA: … · 2017-06-22 · “Vagas não trazem pobres à...

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DISCURSO EUGENISTA E REGULAÇÃO DA INFÂNCIA: NOTAS SOBRE A PRODUÇÂO DO DISCURSO DO FRACASSO ESCOLAR MARIA DO SOCORRO NÓBREGA QUEIROGA [email protected] RESUMO: O meu propósito mais geral neste ensaio é tratar dos discursos sobre a infância produzidos pelas ciências humanas no contexto específico das enunci- ações sobre crianças com histórias de trajetórias minoritárias na escola, consubs- tanciadas nos discursos do fracasso escolar. O referencial no qual me acosto é o estudo realizado na Tese de doutoramento, o qual compreende a arqueologia e genealogia do conceito de fracasso escolar, na perspectiva teórica dos estudos pós-estruturalistas, sobretudo das proposições de Michel Foucault. A partir da análise dos documentos estabeleci três eixos a partir dos quais pude fazer uma leitura dos discursos produzidos sobre as crianças com trajetórias minoritárias na escola: a infância, a educação escolar e o fracasso escolar. A formação discursiva sobre as crianças com trajetórias minoritárias na escola, produziu arquivos dos quais selecionei os saberes da psicologia e da pedagogia, estabelecendo a série histórica do “eugenismo”, predominante desde meados do século XIX até a déca- da de trinta do século XX; a série do “planejamento”- que compreende o período entre a década de 1960 e 1980 - e a série da eficácia - de meados dos anos 1980 até a contemporaneidade. Descrevo a constituição da infância como catego- ria social, tomando como suporte a história sociológica de Norbert Elias e Philippe Ariès, para delinear o momento na história das sociedades européias ocidentais, de invenção da infância e da constituição da escola moderna como lugar de pro- dução de novas formas de disciplinamento das crianças. Para a leitura arqueoló- gica dos discursos elegi um acontecimento que deu substância a cada uma das séries históricas: as teses da “I Conferência Nacional de Educação”, para a série histórica do eugenismo; a teoria da “privação cultural”, para a série do planeja- mento e o “discurso construtivista” para a série da eficácia. Contudo, faço um re- corte para o discurso eugenista em educação, e me acercando das ferramentas genealógicas construídas por Michel Foucault, analiso esse discurso em seu fun- cionamento, em cenário específico de relações de poder, e os efeitos que produz, ligados a redes de governo da infância, como equipamento coletivo criado para disciplinar a criança, funcional à legitimação de processos de exclusão e de inclu- são social e escolar. Palavras-Chave: Trajetórias minoritárias na escola; Fracasso escolar; Arqueolo- gia; Genealogia; Infância.

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DISCURSO EUGENISTA E REGULAÇÃO DA INFÂNCIA: NOTAS

SOBRE A PRODUÇÂO DO DISCURSO DO FRACASSO ESCOLAR

MARIA DO SOCORRO NÓBREGA QUEIROGA [email protected]

RESUMO: O meu propósito mais geral neste ensaio é tratar dos discursos sobre a infância produzidos pelas ciências humanas no contexto específico das enunci-ações sobre crianças com histórias de trajetórias minoritárias na escola, consubs-tanciadas nos discursos do fracasso escolar. O referencial no qual me acosto é o estudo realizado na Tese de doutoramento, o qual compreende a arqueologia e genealogia do conceito de fracasso escolar, na perspectiva teórica dos estudos pós-estruturalistas, sobretudo das proposições de Michel Foucault. A partir da análise dos documentos estabeleci três eixos a partir dos quais pude fazer uma leitura dos discursos produzidos sobre as crianças com trajetórias minoritárias na escola: a infância, a educação escolar e o fracasso escolar. A formação discursiva sobre as crianças com trajetórias minoritárias na escola, produziu arquivos dos quais selecionei os saberes da psicologia e da pedagogia, estabelecendo a série histórica do “eugenismo”, predominante desde meados do século XIX até a déca-da de trinta do século XX; a série do “planejamento”− que compreende o período entre a década de 1960 e 1980 − e a série da eficácia − de meados dos anos 1980 até a contemporaneidade. Descrevo a constituição da infância como catego-ria social, tomando como suporte a história sociológica de Norbert Elias e Philippe Ariès, para delinear o momento na história das sociedades européias ocidentais, de invenção da infância e da constituição da escola moderna como lugar de pro-dução de novas formas de disciplinamento das crianças. Para a leitura arqueoló-gica dos discursos elegi um acontecimento que deu substância a cada uma das séries históricas: as teses da “I Conferência Nacional de Educação”, para a série histórica do eugenismo; a teoria da “privação cultural”, para a série do planeja-mento e o “discurso construtivista” para a série da eficácia. Contudo, faço um re-corte para o discurso eugenista em educação, e me acercando das ferramentas genealógicas construídas por Michel Foucault, analiso esse discurso em seu fun-cionamento, em cenário específico de relações de poder, e os efeitos que produz, ligados a redes de governo da infância, como equipamento coletivo criado para disciplinar a criança, funcional à legitimação de processos de exclusão e de inclu-são social e escolar. Palavras-Chave: Trajetórias minoritárias na escola; Fracasso escolar; Arqueolo-gia; Genealogia; Infância.

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INTRODUÇÃO

Não escrevo a partir de um lugar privilegiado, neutro, incontami-nado; não tenho [...] a ilusão de que possa deles me afastar ou que possa, em algum momento, estar livre de seu poder constitui-dor. [...] Não há lugar isento de poder e exterior ao campo de in-fluência do saber. No entanto, [...] sou suficientemente livre para tentar descrever e analisar alguns efeitos de tais discursos, não para destruí-los mas, quem sabe, para trazer à discussão outras possibilidades de compreendê-los (BUJES, 2003, p. 15-16).

Abro a Internet. Na página “Educação” encontro elencados centenas

de itens sobre problemáticas educacionais, principalmente sobre as crianças,

adolescentes e jovens com histórias escolares minoritárias. Grande parte dessas

produções discursivas refere-se ao fracasso escolar: são livros, Teses, artigos,

Dissertações: “Má qualidade da educação afeta futuro dos brasileiros”; “Atraso

escolar afeta 53% dos adolescentes”; “Aluno de Federal tem um perfil menos eli-

tista”. “Vagas não trazem pobres à universidade”. “Para MEC, aprendizado é uma

tragédia”. “Para MEC, professor, idade e família determinam o desempenho de

aluno”. “Só 2% de alunos da 4ª série no Nordeste têm habilidade de leitura satis-

fatória”. “59% dos alunos na 4ª série têm desempenho precário, diz MEC”.

Como fazer uma leitura desses discursos? O que eles comunicam?

Na perspectiva de Foucault, o discurso

[...] não é um conjunto de signos (elementos significantes que re-metem a conteúdos ou a representações), mas práticas que for-mam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que eles fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os tornam irredutíveis à língua e ao ato de fala (FOUCAULT , 2000a, p. 56).

Que sentidos esses textos produzem? Sendo o enunciado do fracasso

escolar invenção e efeito de determinadas práticas1 produzidas em cenários de

relações de poder e de produção de saber, cabe perguntar: a quem interessa o

discurso do fracasso escolar e a posição de sujeito que fracassa na escola? 1 O sentido de “prática” é aqui compreendido como não relacionado à atividade de um sujeito, antes referindo-se “a existência objetiva e material de certas regras a que o sujeito está submeti-do desde o momento em que pratica o ‘discurso’. Os efeitos dessa submissão do sujeito são ana-lisados sob o título: ‘posições do sujeito’” (LECOURT, 1980, apud VEIGA-NETO, Alfredo. Fou-cault & a educação . Belo Horizonte: Autêntica, 2003, p. 54).

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Essas questões querem provocar um diálogo que se articula com as

ferramentas teórico-metodológicas de Michel Foucault, na perspectiva dos estu-

dos sobre a infância, os quais enredam boa parte da minha trajetória acadêmica,

mais precisamente desde o Doutorado (2005).2 Este ensaio se constitui em um

fragmento das minhas inquietações naquele momento, no qual discuto a emer-

gência das práticas discursivas que tratam do desempenho escolar em diferentes

séries históricas, consubstanciado, sobretudo na formação discursiva do “fracasso

escolar”, inserido em narrativas de poder-saber mais amplas sobre trajetórias −

que chamo de “minoritárias” − de crianças na escola. Contudo, a proposta deste

ensaio é problematizar o discurso do fracasso escolar especificamente na pers-

pectiva dos enunciados eugenistas no campo da educação.

Enredar esses discursos em relações de poder significa pensar o

poder não como uma propriedade ou uma coisa que se transmite, mas como uma

relação.

[...] não o entendo como um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre outro e cujos efeitos, por deriva-ções sucessivas, atravessem o corpo social inteiro. [...]. (FOUCAULT, 2001, p. 88-89). [...] (Mas) estudar o poder em sua face externa [...] como funcionam as coisas ao nível do processo de sujeição ou dos processos contínuos e ininterruptos que sujei-tam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc. [...] não tomar o poder como um fenômeno de dominação de um indivíduo sobre os outros, de um grupo sobre os outros, de uma classe sobre as outras; [...] não é algo que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submetidos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. [...] O poder funciona e se exerce em rede (FOUCAULT, 2000b, p. 182-83).

Sob a ótica foucaultiana interessa-me analisar como as transforma-

ções nas relações de poder-saber favoreceram historicamente importantes deslo-

camentos em relação à significação da infância. Uma infância − no ocidente euro-

peu do século XVI − diluída nos espaços públicos e no mundo adulto, no qual as

2 Refiro-me à tese de Doutorado intitulada O discurso do fracasso escolar como tecnologia de governo da infância : a arqueologia de um conceito (2005a), na qual faço uma análise arqueoló-gica e genealógica do conceito de fracasso escolar, a partir dos discursos sobre as crianças com histórias de trajetórias minoritárias na escola; e à outras produções (1993; 2005b; 2006;2008a; 2008b; 2009a; 2009b).

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crianças faziam parte sem qualquer constrangimento; portanto de início, uma in-

fância livre, e posteriormente uma infância a ser cuidada, a ser protegida e disci-

plinada, sobretudo em lugares fechados, o mais privilegiado deles, a escola

(ARIÈS, 1978; ELIAS, 1993; 1994).

Esse espaço imensamente valorizado desde a modernidade − a es-

cola − vai servir de cenário para parte significativa do desenrolar da história da

infância, espaço de produção da vida, de identidades, de estigmas, de desistên-

cias, de realização e de inviabilização de sonhos, de definição de trajetórias de

escolarização e de vida. Espaço, portanto de regulação cujas demandas possibili-

tam a necessidade de esquadrinhamento da criança pelos especialistas, os quais

produzem sentidos sobre a infância, valorizados e ampliados socialmente segun-

do os regimes de verdade de cada série histórica que os empreenderam e legiti-

maram, sob a tutela de diferentes campos do saber das ciências humanas, em

sucessivos processos de classificação e de criação de novas cartografias e de

novas identidades infantis − e para o interesse desse estudo, principalmente na

condição de crianças “inadaptadas”, “anormais”, “desajustadas” etc.

Compreendo ser fundamental traçar a teia das relações de poder e

da produção de saber que tomaram como foco a infância e para tal novamente

me aproprio da analítica de Foucault, através das estratégias metodológicas da

arqueologia e da genealogia. A análise arqueológica,3 possibilita “estabelecer a

constituição dos saberes privilegiando as interrelações discursivas e sua articula-

ção com as instituições”, e assim responde ao “como” “os saberes aparecem e se

transformam” (MACHADO, 2000, p. x, grifo do autor). Para o interesse desse es-

tudo, a arqueologia permite compreender as articulações entre as práticas discur-

sivas e as práticas não-discursivas que enredam os discursos sobre as crianças

com histórias de trajetórias escolares minoritárias e a produção de equipamentos

educacionais de regulação4 da infância, no sentido de “escavar verticalmente as

camadas descontínuas de discursos já pronunciados, muitas vezes de discursos

3 A arqueologia, enquanto história dos discursos ou dos saberes, se constitui em uma ruptura em relação à epistemologia, ao se colocar como independente em relação a qualquer ciência e como uma crítica da própria idéia de racionalidade ao desconstruir a idéia de verdade, formulando seu objeto no nível anterior ao da história epistemológica (MACHADO, 2000, p. x). 4 A noção de regulação não serve para atribuir distinções de bom/mau ou moral/imoral quando se fala do processo de escolarização. Ela é utilizada para reconhecer uma premissa sociológica de que todas as situações sociais têm restrições e constrições historicamente inscritas sobre nossa individualidade. (POPKEVITZ, 1998, p. 191).

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do passado, a fim de trazer à luz fragmentos de idéias, conceitos, discursos já

esquecidos” (VEIGA-NETO, 2003, p. 54).

A perspectiva genealógica tem aqui sua importância pois relaciona-

se ao “porquê” do poder, aos modos como fazemos a leitura do poder e dos “sa-

beres dominados”, rompendo com o discurso histórico “como reconstituição de

encadeamentos, de continuidades ou sucessões ininterruptas” (SMEJA & TÉLLEZ

1997, p. 84).

Seu objetivo não é principalmente descrever as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes a partir da configuração de suas positividades (mas) [...] explicar o aparecimento de saberes a par-tir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que imanentes a eles − pois que não se trata de consi-derá-lo como efeito ou resultante − os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente estratégica (MACHADO, 2000, p. x).

A constituição dos discursos sobre a criança no campo da educação se

deu em cenários diferenciados de relações de poder e sob a ordem e regimes de

verdade5 diversos, portanto cenários e discursos envoltos em continuidades, des-

continuidades e rupturas. São discursos com diferentes significações em diferen-

tes tempos e em práticas sociais diversas, e envolvendo temáticas que teem sido

objeto de interesse por parte de estudiosos da educação em diferentes campos

do saber, principalmente nas ciências humanas e sociais.

De modo mais amplo o objeto da minha investigação envolve o deli-

neamento da cartografia (arqueológica e genealógica) da trajetória das formas

disciplinares que enredaram a produção de dispositivos escolares de regulação e

controle da infância, como os discursos sobre suas necessidades, suas caracte-

rísticas em diferentes estágios da vida, ou seja, a colonização da infância pelo

saber médico, psicológico e pedagógico. E, num sentido estrito meu interesse é

cotejar as análises do “porquê” a partir de um certo momento na história das soci-

edades a infância foi inventada e, como o regime de verdade de uma determinada

época vem a definir a necessidade de proteger a criança e possibilitar que a esco-

5 Utilizo aqui o termo “regime de verdade” para referir-me ao que “pode” ser dito em um determi-nado momento histórico (FOUCAULT, 2001).

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la moderna se constitua em lugar privilegiado de produção de sentidos; e mais:

fazer o deciframento da emergência do desempenho escolar das crianças como

objeto de preocupação e subjetivado em pesquisas e discursos.

Para Foucault, a institucionalização do internamento no século XVIII foi

o meio termo, a fórmula intermediária entre as formas de controle das sociedades

de soberania e os procedimentos de correção. O internamento se constituiu em

uma tecnologia singular de governo dos indivíduos que se legitima a partir da “jus-

tificativa da necessidade de corrigir, de melhorar, de conduzir à resipiscência, de

fazer voltar aos “bons sentimentos” (ibidem, p. 415, grifos do autor).

O traçado do caminho arqueológico na Tese (2005) teve como lastro a

análise de documentos que compõem os discursos produzidos nos campos da

pedagogia e da psicologia, seja em livros, em artigos de revistas, em Disserta-

ções e Teses, bem como nos discursos jurídicos. Ao focar a formação discursiva

sobre a infância e o desempenho escolar das crianças, adotei a perspectiva teóri-

ca dos estudos pós-estruturalistas, dialogando com as proposições de Michel

Foucault sobre a fabricação do sujeito moderno, que é o foco dos seus escritos, o

qual é “dito e escrito” segundo as lutas travadas em cenários econômicos, sociais

e educacionais e em tramas de relações de poder.

Outro ponto de referência para a minha escritura é a instituição dos

discursos sobre o “anormal”, ancorada na problemática que o filósofo tratou como

“formas microfísicas do poder”6 estabelecidas pelos diversos sistemas de gover-

no, como as tecnologias de governo do eu representadas pelos saberes “psi” e

pedagógicos e os aparatos materiais produzidos a partir desses saberes, os quais

esquadrinham a infância e a desterritorializam. Trata-se, portanto da trajetória ge-

nealógica do homem anormal – ou como o homem anormal foi constituído nas

práticas e nos saberes do século XVIII, tendo como elementos ou figuras articula-

doras o “monstro”, “o indivíduo a ser corrigido” e o “masturbador” (FOUCAULT,

2002a).

O indivíduo anormal do século XIX é forjado, é produzido a partir do

eixo, do jogo de incorrigibilidade e de corrigibilidade que constitui o indivíduo a ser 6 A microfísica do poder (refere-se tanto ao) “deslocamento do espaço da análise quanto ao nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados: a consideração do poder em suas ex-tremidades, a atenção de suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discurso” (MACHADO, 1988, p. 189).

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corrigido do século XVIII: [...] “um incorrigível que vai ser posto no centro de uma

aparelhagem de correção [...] ele é marcado por esse segredo comum e singular,

que é a etiologia geral e universal das piores singularidades” (ibidem, p. 73-75).

O indivíduo a corrigir nasce com a instauração das técnicas de discipli-

namento − primeiro nas escolas e depois nas famílias: “os novos procedimentos

de disciplinamento do corpo, do comportamento, das aptidões, abrem o problema

dos que escapam dessa normatividade que não é mais a soberania da lei”

(loc.cit.). O tipo de saber que se refere ao indivíduo a corrigir se constituiu muito

lentamente no século XVIII: “é o saber que nasce das técnicas pedagógicas, das

técnicas de educação coletiva, de formação de aptidões” (ibidem, p.77). Assim, as

instâncias de saber e de poder que no século XVIII estão dispersas quanto ao seu

funcionamento, vão ser organizadas, codificadas e articuladas a partir da organi-

zação dos controles de anomalia, como técnica de poder e de saber no século

XIX.

É a idéia do indivíduo “anormal” e a percepção da infância, sobretu-

do das crianças das massas, “da rua” como portadoras de uma interioridade des-

viante − junto com os loucos, os ladrões, os mendigos, os selvagens, − que faz

surgir a escola (e novos equipamentos de governo das crianças) como lugar ideal

para discipliná-las. A partir de então, a infância é classificada como “‘infância de-

linqüente’ − as crianças que estão fora da escola − e ‘infância anormal’ − aque-

las que estão na escola, mas que constituem a legião dos ‘inadaptados’, dos ‘a-

trasados escolares’” (VARELA & ALVAREZ-URIA, 1994, p. 248, grifos dos auto-

res). A invenção da escola na modernidade vai reforçar a idéia de êxito e fracas-

so; sobretudo da escola obrigatória criada com os sistemas nacionais de ensino,

como mecanismo de disciplinamento do corpo a ser controlado e preparado inte-

lectualmente para ideais burgueses, lugar de “regeneração” das massas “desvian-

tes” e “incultas” e importante maquinaria no delineamento dos elementos a com-

por as práticas de classificação dos sujeitos.

Trazendo essas reflexões para a análise da emergência da preocupa-

ção com a criança com problemas escolares ou mais contemporaneamente da

constituição do lugar de “aluno fracassado”, como presente nos discursos peda-

gógicos, o sujeito a ser corrigido assim se apresenta quando “fracassaram todas

as técnicas, todos os procedimentos, todos os investimentos familiares e corri-

queiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo” (FOUCAULT,

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2002a, p. 73). Processo que possibilitou a construção de novos territórios e códi-

gos que passaram a instituir a infância como categoria social, como objeto de in-

vestigação, proporcionando uma nova visão sobre a educação, sobre as crianças

e suas necessidades, sobre os métodos de ensino etc.

Assim, tratar do que foi escrito sobre e para a infância significará deli-

near a ordem dos discursos sobre a educação escolar quanto à sua função social,

as continuidades e rupturas que as constituiu; compreender a proliferação da pro-

dução de uma pluralidade de maquinarias de regulação, produzidas em diferentes

momentos, tratando das crianças com trajetórias minoritárias na escola na reali-

dade européia, mas sobretudo na realidade brasileira. Esses diferentes momentos

foram por mim categorizados em três diferentes formações discursivas consubs-

tanciadas em três séries históricas: o discurso do “eugenismo”, predominante

desde finais do século XIX até início dos anos 1920; o discurso do “planejamen-

to”, predominante a partir da década de sessenta até os anos 1980 e o discurso

da “eficácia” presente a partir de meados dessa mesma década até a contempo-

raneidade (QUEIROGA, 2005).

Ao situar cada um dos diferentes discursos sobre as crianças com tra-

jetórias minoritárias na escola em um tempo histórico particular, não significa uma

homogeneidade ou uma continuidade das enunciações, como formas estratégicas

únicas e singulares de cada período. Isso porque, dentro de uma mesma série

histórica e de uma modalidade discursiva particular, os “ditos” sobre as crianças

apresentam descontinuidades que eu as chamaria de “parciais”, já que, em al-

guns casos, co-existem em uma mesma série enunciados que caracterizam uma

outra modalidade discursiva. Ou seja, a referência a uma determinada série histó-

rica significou tratar do discurso hegemônico em cada uma delas. Assim, identifico

nas três séries históricas, diferentes elementos recorrentes ou regularidades entre

eles, como também rupturas e descontinuidades. O que permeia, o que funciona

como eixo articulador dessas séries históricas é o percurso ou a trajetória escolar

do sujeito, das crianças − para os diferentes saberes e práticas.

Para cartografar as novas configurações e a produção de novos territó-

rios da infância possibilitados pela emergência do discurso eugenista escolhi dis-

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cutir os Anais da “I Conferência Brasileira de Educação”7, como dispositivo tecno-

lógico que configura um cenário dos discursos educacionais no qual a vitimização

da infância é colocada a partir de enunciados evolucionistas, marcados pela ne-

cessidade de passagem de uma condição de degenerescência das raças para

outra, de purificação e de constituição de uma nação “genuinamente brasileira”.

Mesmo essas teses tendo sido produzidas no século XX, serão analisadas no

contexto eugenista – que tão bem encarnam – como uma continuidade e centrali-

dade desses enunciados do século XIX. É sobre essa série histórica particular

que versará o presente ensaio. Contudo, considero importante tratar mesmo que

de forma resumida da transformação dos códigos de saber e de verdade propici-

ados pelos discursos que deram corpo a segunda e terceira séries históricas, ou

seja, do planejamento e da eficácia.

Para se compreender a emergência do discurso do fracasso escolar na

perspectiva do discurso do planejamento, é importante situar as teorizações acer-

ca do “déficit cultural” – também nomeado de teoria da “privação cultural”, a qual

surge na década de sessenta nos Estados Unidos, com os estudos antropológi-

cos sobre a “cultura da pobreza”. Através de discursos que davam visibilidade aos

mecanismos que produziam as altas taxas de repetência, evasão e reprovação,

os resultados escolares das crianças que não respondiam aos padrões e exigên-

cias da escola começam a ser significados negativamente, instituindo a noção de

fracasso escolar.

Tendo como base de legitimação os discursos da psicologia e da pe-

dagogia, começa assim o esquadrinhamento minucioso da infância no sentido de

buscar a chave explicativa para as supostas “deficiências” das crianças, em as-

pectos sensoriais, físicos, motores, perceptivos, cognitivos, emocionais e intelec-

tuais, processando-se a partir daí a fabricação e utilização de novos códigos e de

novas identidades escolares, cujo efeito foi a classificação, e, na maioria dos ca-

sos, a estigmatização e exclusão dessas crianças.

O discurso da eficácia teve como foco de análise e quadro de referên-

cia para a compreensão de sua produção de sentidos, a Epistemologia Genética,

de Jean Piaget − conhecida nos meios acadêmicos como construtivismo, e que 7 Este evento ocorreu em Curitiba no ano de 1927 e foi organizado pela Associação Brasileira de Educação (ABE). Composta de mais de 100 Teses, discorrendo sobre educação é um rico docu-mento sobre as preocupações da época.

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compõe essa série histórica entre meados dos anos de 1980 até os dias atuais,

tal como essa teoria foi apropriada e utilizada no Brasil. A escolha desta teoria

como instrumento para pontuar o conjunto de enunciações presentes no discurso

da eficácia se deu pela visibilidade que a mesma veio a ter na última década do

século XX, entre educadores e administradores das políticas públicas em educa-

ção, da suposta capacidade dos conhecimentos sobre o desenvolvimento da inte-

ligência servirem de suporte para a transformação da realidade educacional, e

que colocamos em suspenso como discurso de verdade hegemônico em todos os

espaços de produção de saber, como nos cursos de formação docente, nas Li-

cenciatura, nas práticas pedagógico-didáticas que se desenvolve na escola etc

(SILVA, 1998).

As ferramentas teóricas das teorias eugenistas, da teoria do “capital

humano” e da “privação cultural” utilizadas para a presente série histórica do “pla-

nejamento” e o construtivismo, na série da “eficácia”, bem como os experts que as

produzem e utilizam e os aparatos de regulação produzidos para colocar esse

discurso em movimento são sistemas de governo que ao organizar e classificar as

crianças, seu desempenho escolar etc, põem em movimento as políticas públicas,

os projetos e os programas em educação, inclusive àqueles governados pelo Es-

tado.

Desse modo, problematizo a emergência da preocupação com o de-

sempenho escolar, consubstanciado nos discursos que tratam de trajetórias esco-

lares minoritárias, em diálogo com os enunciados eugenistas, os quais são hege-

mônicos na primeira série histórica, para posteriormente, já na série do planeja-

mento discorrer sobre a fabricação do conceito e das crenças sobre o fracasso

escolar, o qual relaciona-se a um conjunto de enunciados sobre o “desenvolvi-

mento deficitário” das crianças em relação ao processo de aprendizagem envol-

vendo elementos distribuídos em territórios que se entrecruzam: “baixo rendimen-

to”, “reprovação”, “repetência” e “evasão escolar”. Visões que se colam a um devir

articulado a um lugar ideal de aluno, prescrevendo um dever ser; “ditos” que in-

terditam outras possibilidades e o naturalizam na perspectiva de algo inerente ao

processo educativo e às pessoas “ordinárias”.

A análise arqueológica e genealógica do conceito de fracasso esco-

lar possibilitou uma maior compreensão da história da produção dos saberes e a

elucidação dos jogos de poder no campo educacional; um maior conhecimento

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acerca da produção de uma multiplicidade de dispositivos científicos, políticos e

pedagógicos de regulação que viabilizaram a construção desse campo; e talvez

mais importante para os meus interesses de pesquisadora, a possibilidade de a-

nalisar a escola como maquinaria de disciplinamento da infância, em cujo interior

encontram-se articulados mecanismos de poder-saber, como os rituais, a organi-

zação dos tempos e dos espaços, os conteúdos a serem ensinados, a classifica-

ção realizada através de processos avaliativos, a relação que se estabelece entre

os atores envolvidos nesse processo, entre outros equipamentos de governo que

têm garantido o funcionamento da escola.

A forma escolar de educação da infância inaugurada pela Moderni-

dade caracterizou-se pelo disciplinamento dos corpos, através, entre outras coi-

sas, da demarcação rígida dos espaços, do tempo, da hierarquização dos pode-

res, agora distribuídos nas relações estabelecidas em todo o corpo social, trans-

formando os escolares em sujeitos autogovernáveis. A escola passa a ser o dis-

positivo e o lugar a partir do qual vão se operando as transformações necessárias

para a formação da base de funcionamento da razão de Estado (ROSE, 1998).

Um elemento importante para a emergência dos saberes modernos,

sobretudo, para o que interessa nesse momento, à emergência dos saberes das

ciências humanas, foi a entrada em cena da população como alvo de intervenção

da governamentalidade8 estatal e a necessidade de

[...] isolá-la como um setor da realidade, identificar certas caracte-rísticas e processos próprios dela, fazer com que seus traços se tornem observáveis, dizíveis, escrevíveis, explicá-los de acordo com certos esquemas explicativos [...] de verdades que encarnam aquilo que deve ser governado, que o tornam pensável, calculável e praticável (ROSE, 1998, p. 37).

8 A noção de “governo” refere-se aos desdobramentos da noção de poder − ou das diferentes formas de exercício do poder: do poder soberano e disciplinar, para uma arte de governar cuja racionalidade tem por princípio e campo de aplicação o funcionamento do Estado e se inicia entre o final do século XVI e início do XVII. [...] coloca pela primeira vez o problema da “população”, isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos de direito ou a categoria geral da “espécie humana”, mas o objeto construído pela gestão política global da vida dos indivíduos (biopolítica) (REVEL, 2005, p. 54-55, grifos da autora). Compreende ainda o controle das estraté-gias que os indivíduos podem utilizar em relação a eles mesmos e em relação aos outros. Fou-cault trata da noção de “governo” tal como era significada no século XVI: “se referia não apenas às estruturas políticas ou à administração dos estados; designava, em vez disso, a forma pela qual a conduta dos indivíduos ou grupos podia ser dirigida; o governo das crianças, das almas, das co-munidades, das famílias, dos doentes... Governar, nesse sentido é estruturar o campo possível de ação dos outros” (DREYFUS & RABINOW, 1995, p. 87).

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Processo − para o qual foi fundamental a figura dos especialistas − que não o-

correu de forma intencional e calculada, pois que se inscreve na superfície “das

conexões que estabelecem entre as aspirações das autoridades e os projetos das

vidas individuais [...]. (Esses saberes) “forjam novos alinhamentos entre os siste-

mas de justificação e as técnicas de poder e os valores e a ética das sociedades

democráticas” (ibidem, p. 35). Para o que interessa à discussão neste momento,

as características da subjetividade humana, ou o seu conhecimento, passaram a

abranger vastos campos do conhecimento e das práticas sociais, como a econo-

mia, a educação, o mercado de trabalho, entre outros; também “a psique humana

se tornou um domínio possível para o governo sistemático, em busca de fins só-

cio-políticos” (ROSE, 1998, p. 38).

Nas sociedades modernas ocidentais o “eu” ou “os aspectos subjetivos

das vidas dos indivíduos” passam a se constituir em objeto de problematização e

de interesse a partir do momento em que os indivíduos são provocados a relacio-

nar-se com outros e consigo mesmos, através das trocas que estabelecem com o

mundo. Nesse sentido, torna-se importante a compreensão de como se deu a

produção dos saberes nas suas conexões com relações de poder, dos regimes de

verdade postos em funcionamento pelo “conhecimento da subjetividade” − a qual

a partir de certo momento se constitui no centro ou na “medida” dos sistemas polí-

ticos e das relações de poder.

Para Rose (1998) esse processo não deve ser significado como uma

forma de dominação ou repressão por parte dos sistemas políticos sobre a subje-

tividade, mas de como os sistemas de expertise do eu operam na “estimulação da

subjetividade, provendo a auto-inspeção e a autoconsciência, moldando desejos,

buscando maximizar as capacidades intelectuais” (ibidem, p. 34). O esquadri-

nhamento da infância por um corpo de especialistas relaciona-se com a sua in-

venção na modernidade, junto com a emergência do governo e da governamenta-

lidade. Foram as diferentes significações sobre a infância as condições de possi-

bilidade para a necessidade de governá-la, o que exigia primeiro conhecê-la para

melhor discipliná-la, e concomitantemente um aparato envolvendo especialistas,

conhecimentos e estratégias.

14

A ligação entre os sistemas de expertise e seus experts com o governo

estatal, como já tratado antes, não se dá sob a forma de uma coerção planejada

sobre a população e/ou os sujeitos; no governo da subjetividade as autoridades

direcionam as escolhas, os desejos e a conduta dos indivíduos de modo indireto.

E para isso, é fundamental o papel da expertise a qual − “através da persuasão

inerente às suas verdades, das ansiedades estimuladas por suas normas e das

atrações exercidas pelas imagens da vida e do eu” que oferece − garante a dis-

tância necessária, funcional, entre os múltiplos dispositivos distribuídos na socie-

dade e a moldagem e remodelação das atividades dos sujeitos (ROSE, 1998, p.

43).

São essas as condições de possibilidade de instituição dos saberes

sobre a infância nas sociedades ocidentais a partir do século XVIII, as quais sob

outros regimes de verdade, constroem os discursos sobre as crianças que não

correspondem aos padrões de desempenho esperado pelas escolas em diferen-

tes momentos históricos, sobre os quais tratarei a seguir.

A Produtividade dos Discursos Eugenistas

Ao traçar o percurso arqueológico do discurso do fracasso escolar, vin-

culado à discussão mais ampla sobre a preocupação moderna com o desempe-

nho dos indivíduos na sociedade e posteriormente na escola, que nomeio na Tese

(2005) já referida de “trajetórias minoritárias na escola”, registro nos documentos

enunciações que caracterizam diferentes séries históricas, as quais são instituí-

das em diferentes cenários econômicos, culturais, sociais e formas de sociabilida-

de diversas. Discursos que “moldam as maneiras de constituir o mundo, de com-

preendê-lo e de falar sobre ele” (VEIGA-NETO, 1996), construindo verdades so-

bre a infância e sobre as crianças.

Na escolha de alguns acontecimentos e narrativas para configurar e

cartografar os discursos sobre as crianças com trajetórias minoritárias na escola

considerei o fato de se constituírem em dispositivos de governo da infância pre-

dominantes em cada uma das séries históricas; como artefatos que disputavam a

hegemonia da produção de sentidos, caracterizando um movimento de constante

desterritorialização e de fabricação de novos territórios da educação, da infância e

15

das trajetórias minoritárias na escola – os três eixos enunciativos que compunham

minha investigação.

Pretendo problematizar os discursos que tratam das crianças com tra-

jetórias minoritárias na escola, fabricados em diferentes tempos históricos, e os

conceitos que os articulam: “problemas de rendimento escolar”, “problemas de

aprendizagem”, mas, sobretudo o conceito de “fracasso escolar”, interrogando

sobre o “como” e o “porquê” da sua constituição através dos saberes construídos

pelas ciências humanas em contextos específicos de relações de poder.

Em se tratando da arqueologia do discurso do fracasso escolar, perce-

be-se uma homogeneidade ou uma continuidade nos textos no que se refere ao

eixo que os articula, cuja enunciação refere-se a uma suposta “incompetência”

dos alunos e alunas; ora na relação consigo mesmo ora na sua relação com o

social, com o “outro”, com o exterior − como nas visões da psicologia interacionis-

ta e da pedagogia crítica.

O caráter “redentor” da educação escolar se constitui na regularidade

que atravessa todos os discursos; assim, à escola é creditada a possibilidade de

formar o indivíduo para a vida em todos os seus aspectos, daí porque os “desvi-

os” devem ser “tratados”. Percebe-se uma continuidade dessas características

dos enunciados dos discursos sobre a infância, as quais estão presentes desde o

século XIX, e que vai se configurar, sobretudo, pela preocupação em “descobrir

qual o fundo de monstruosidade que existe por trás das pequenas anomalias, dos

pequenos desvios, das pequenas irregularidades” (FOUCAULT, 2002a, p. 71).

Ou seja, outra importante regularidade, ou elemento que atravessa e tem continu-

idade nas diferentes séries históricas é a preocupação com a criança como objeto

de regulação e governo, como objeto de intervenção higiênica e disciplinar.

Em relação aos conteúdos, outra característica desses discursos diz

respeito aos enunciados com forte teor normativo, prescritivo e ufanista quanto às

possibilidades redentoras da educação e à influência dos saberes psicológico e

pedagógico presentes nas três modalidades de discurso. Contudo, fica claro que

se processa um deslocamento em relação aos temas e enunciados com acento

“psicologizante” e para cada tipo de discurso. O que não quer dizer uma absoluta

homogeneização e uniformidade mesmo dentro de uma mesma modalidade dis-

cursiva. O que se percebe dos enunciados desses discursos de modo geral é que

as ciências que os produzem ao discorrerem sobre as supostas razões e causas

16

para as trajetórias minoritárias na escola, o fazem sempre na perspectiva de um

sujeito que deve ser cuidado, educado, melhorado, enfim, disciplinado

(ALVAREZ-URIA & VARELA, 1991).

Que articulações, que estratégias das relações de poder-saber prepa-

raram um chão fértil para a constituição de formações discursivas as quais possi-

bilitaram a atribuição de diferentes sentidos às “diferenças individuais”, sobrema-

neira no que se refere ao “êxito escolar”, como um problema relativo à diferenças

de “raça”, de “inteligência”, de “condições econômicas” etc; um fator de entrave ao

“desenvolvimento” da sociedade, principalmente no aspecto econômico; e, final-

mente, um elemento catalisador da “eficácia” dos “mercados” − como aparece nas

três séries históricas estudadas?

As mudanças e transformações que marcaram o movimento da história

das sociedades, dos costumes, das formas de educar, etc não compõem uma

cartografia linear, e com um sentido evolutivo. As descontinuidades, em qualquer

aspecto que as consideremos, não ocorreram atingindo simultaneamente todas

as camadas sociais, mas se constituem sempre em novos ordenamentos parciais

históricos. O mesmo pode ser dito das formas de disciplinamento da infância e

das transformações dos costumes, os quais não atingiram ao mesmo tempo e do

mesmo modo os diferentes estratos sociais.

Vê-se no interior da escola a necessidade no seu modo de organiza-

ção, de fixar regras morais e pedagógicas, fundamentando uma formação basea-

da no autocontrole ou no autogoverno da criança. Esse processo vai ser desen-

cadeado na escola através de procedimentos de vigilância e autovigilância, de

avaliação e auto-avaliação e de autonarração (de confissão), e de inúmeras práti-

cas aí desenvolvidas: nas relações de reconhecida autoridade entre professor e

alunos, como, por exemplo, no processo de exames nos quais os educandos

“confessam” não apenas seus conhecimentos, mas “é como se a educação, além

de construir e transmitir uma experiência objetiva do mundo exterior construísse e

transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos ou-

tros como sujeitos” (LARROSA, 2000, p. 45).

Em relação à série histórica do discurso eugenista e do documento que

elegi para discuti-lo, os Anais da “I Conferência Brasileira de Educação”, seus

conteúdos de poder-saber configuram e ressignificam o cenário nacional, com o

republicanismo − ainda recente em suas conseqüências para o quadro da educa-

17

ção nacional − quando tempo, espaço e totalidade são desarrumados, tomam ou-

tras configurações. A República como querendo limpar pela higienização tudo o

que era diferente dos paradigmas inaugurados pela modernidade, enaltece o higi-

enismo, do qual o eugenismo é herdeiro, passam a ser poderosos micropoderes

do poder do estado e processos fundamentais de normatização da sociedade.

Tempo de construção nacional, caracteriza-se pela desterritorialização

provocada pelo discurso científico na vida da sociedade e da escola – tradução

das inquietações e das perplexidades seculares. Tempo de mudanças, portanto

em vários aspectos no campo das relações sociais e ao nível do público e do pri-

vado; no campo de trabalho, a criação de novas funções e à crescente demanda

de força de trabalho nos setores da produção industrial e de serviços fazendo

surgir novos estratos sociais; e no campo da educação, novas possibilidades de

se rever e ampliar o acesso das crianças à educação, como forma de moralização

e regeneração das raças.

A razão iluminista e a crença no progresso na produção e no comércio,

eram vistos como resultado da nova racionalidade econômica e científica. Esse foi

um passo decisivo para que às novas posições-de-sujeito, construídas a partir de

uma leitura liberal e burguesa de mundo fossem atreladas determinadas visões

dos desempenhos ao nível individual – sobre àqueles que conseguiam ascender

na escala social – pautados na “capacidade” e no “mérito” pessoal, e em uma vi-

são de mundo na qual a “liberdade individual” era colocada como valor máximo,

requisito para o progresso científico, técnico e econômico.

Sob a ótica de Foucault (1977) visualizamos estas mudanças como e-

feitos da passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplina-

res e no acionamento de uma nova tecnologia de regulação, o biopoder, no qual

dois eixos se articulam como instrumentos de moralização: as disciplinas do corpo

e as práticas de higienização, elementos estratégicos de investimento sobre a

vida; quando o corpo passa a ser objeto e alvo de poder: “corpos dóceis que se

manipulam, se modelam, se treinam, que obedecem, respondem, se tornam há-

beis ou cujas forças se multiplicam” (Ibidem, p. 125), tal como aparece nas teses

da Conferência, em vários momentos, mas os destaco em uma das teses:

O educador moderno sabe que a sua autoridade não o levará ao ponto de infligir aos seus discípulos dor ou sofrimento físico. Hoje

18

ele não necessita empregar castigos corporais para manter na sua classe o respeito e a ordem (PRADO, apud COSTA, 1997, p. 104).

É a disciplina, como forma moderna de exercício do poder, que articula

as tecnologias de controle e sujeição do corpo; a internalização do poder possibili-

ta que os indivíduos passem a auto regular-se e a regular os outros; no contexto

das relações capitalistas, essa nova forma de governo é fundamental para a e-

mergência da idéia de “desempenho”, de “sucesso” e de “fracasso” – inicialmente

atrelada ao corpo coletivo, quando os indivíduos ainda não se constituíam em pe-

ças chaves da engrenagem do desenvolvimento industrial capitalista; e depois a

um corpo individualizado em um sujeito e em sua capacidade intelectual, proces-

so intensificado com o surgimento da escola e de sua significação – hegemônica

naquele momento, como capaz de produzir desenvolvimento e como mecanismo

de ascensão social.

A compreensão da funcionalidade dos enunciados burgueses da “i-

gualdade de oportunidades” na construção dos saberes e conceitos das ciências

humanas e sociais que tratam das “diferenças individuais” é importante para com-

preendermos a continuidade desse conceito nos discursos sobre os anormais.

Assim, compreendo a produção do discurso do “eugenismo” como parte das regu-

laridades da trajetória genealógica de fabricação do homem anormal, como já tra-

tado antes. A educação escolar, como forma moderna de disciplinamento dos su-

jeitos se coloca como a maquinaria privilegiada para a produção de discursos e

de práticas “regenerativos” “que possibilitam a transformação de uma massa

composta de “selvagens” e “perigosos”; é a partir da invenção da escola, que

passa a ter visibilidade no seu interior os enunciados das “diferenças individuais”

e a necessidade de seu esquadrinhamento.

Os saberes, teorias e conceitos que tratavam de desvendar a origem

do homem, como forma de estabelecer formas de controle sobre a população ca-

racterizavam a modernidade. Nesse sentido, dois campos do saber disputavam

um lugar legitimado de verdade: as idéias monogenistas, ligadas ao pensamento

religioso da doutrina cristã, predominantes até meados do século XIX na Grã-

Bretanha; e o poligenismo, que representava o pensamento leigo e secular, ele-

mento desencadeador das descontinuidades nas produções de saber no campo

19

das ciências biológicas e sociais; este dominava o cenário das produções discur-

sivas na França, aonde o domínio das idéias se dava no campo do determinismo

social, tendo influenciado as pesquisas no campo da frenologia e da antropome-

tria – estas passam a interpretar a capacidade humana a partir do tamanho e da

proporção do cérebro dos diferentes povos.

As pesquisas pautadas nos discursos da frenologia desencadearam a

fabricação de outros equipamentos de governo, como as teorias sobre a doença

mental, de modo geral e, de modo particular os discursos sobre as crianças “a-

normais” no campo educacional. São essas teorias racistas que vão direcionar e

disciplinar sobre a questão das “diferenças” de modo que estas passam a ser na-

turalizadas e tratadas a partir de categorias e conceitos universais e totalizantes.

Essas considerações são relevantes para a análise dos discursos so-

bre as crianças com trajetórias minoritárias na escola na série histórica da euge-

nia, tendo em vista que, é a partir, principalmente do saber antropológico na sua

linhagem biológica, que são produzidos os discursos na perspectiva do eugenis-

mo – e não somente essa modalidade discursiva, pois as ciências “psi” de modo

geral, a pedagogia, o discurso da Escola Nova em uma de suas vertentes, e as

teorias mais recentes sobre essas crianças trazem o crivo dos modelos biológi-

cos; é o caso, por exemplo, da teoria da “privação cultural”, hegemônica na déca-

da de sessenta do século passado, a qual serviu de base para os discursos do

fracasso escolar.

Como campo discursivo, a “eugenia” emerge atrelada aos discursos do

“determinismo racial” – também chamado de “darwinismo social” ou “teoria das

raças”, o qual toma como base teórica a antropologia biológica. O determinismo

racial dava visibilidade a existência de “tipos puros” – e, portanto não sujeitos a

processos de miscigenação –, compreendendo a mestiçagem como sinônimo de

degeneração não só racial como social. As transformações no campo educacio-

nal, trazidas com esse acontecimento tiveram como efeito a necessidade de ex-

plicar as diferenças individuais de rendimento no âmbito escolar, bem como de

buscar justificativas para as diferenças de acesso e das formas diferenciadas de

educação para as crianças de extratos sociais diversos.

Os dispositivos que vieram a possibilitar a emergência dos discursos e

das práticas envolvendo a educação das crianças, numa perspectiva do eugenis-

mo foram os conhecimentos científicos sobre o darwinismo social e o biologismo

20

sociológico. Durante todo o século XIX, com o desenvolvimento das ciências bio-

lógicas e da medicina, sobretudo da psiquiatria, as questões educacionais escola-

res − no que diz respeito às crianças com histórias escolares “irregulares” – pas-

sam a ser “ditos e escritos” no campo dos saberes e das práticas pedagógicas, ou

seja, passam dos hospitais para a escola.

Nomeados de “problemas de aprendizagem”, as histórias escolares

minoritárias contadas pelo discurso médico e biológico são explicadas a partir das

teorias sobre as aptidões, de forte teor racista; e pelos discursos da psicologia e

da pedagogia, de início atrelados à “hereditariedade”, e mais tarde, aos “fatores

ambientais”. Contudo, o que caracteriza os discursos sobre as crianças com traje-

tórias minoritárias na escola na série histórica do eugenismo é o seu ordenamento

pelo saber médico, mais diretamente, a psiquiatria – além da neurologia, neurofi-

siologia e neuropsiquiatria que emergiam nos laboratórios anexos a hospícios.

Os discursos na perspectiva das teorias racistas predominaram no ce-

nário da produção dos saberes no século XIX. É durante essa época, que são

produzidos equipamentos teóricos de regulação, os quais buscam comprovar em-

piricamente as teses da inferioridade racial de pobres e não-brancos. Assim, os

discursos e as práticas racistas, na emergência das sociedades industriais capita-

listas, antes de se constituírem em “uma ideologia para justificar a conquista de

outros povos, foi muitas vezes uma forma de justificar as diferenças entre classes,

principalmente nos países em que a linha divisória das classes sociais tende a

coincidir com a linha divisória das raças” (POLIAKOV, apud PATTO, 1996, p. 32).

Os discursos sobre a infância, na perspectiva de formar uma nação

têm um campo fértil nesse período, quando se inicia uma nova fase: à dispersão

anterior segue-se um período de investimentos, no qual a “riqueza” e o “progres-

so” da nação são os dois eixos a partir dos quais os discursos são produzidos,

articulando novas práticas de disciplinamento da infância no campo educacional.

Momento que coincide com a intensificação de problemáticas sociais, como a pro-

liferação de doenças endêmicas, a elevação das taxas de mortalidade infantil e a

delinqüência juvenil, decorrentes do modo como foi sendo ocupado o espaço ur-

bano, sem qualquer organização em um tempo em que a população era predomi-

nantemente rural e o processo migratório se intensificava.

É nesse cenário de mudanças nas relações de poder e nas formas de

sociabilidade, que se intensificam as preocupações com a infância, era propício

21

ao acolhimento eufórico das teorias racistas do século XIX, as quais já não tinham

tanta aceitação na Europa desde meados desse século. Principalmente a infância

“vadia”, “ignorante” e “pobre”, processo circularmente ligado à emergência de es-

quadrinhamento da população de modo geral e da infância em particular, pela

medicina social. Discursos mais enfáticos quando tratam das crianças negras e

trabalhadoras, vistas como “um selvagem entre os selvagens pelo seu modo de

vida, sua escassa alimentação e o deplorável meio em que vive”. As narrativas de

viajantes se constituem em documentos importantes nesse sentido.

Os discursos da I Conferência enunciam e capilarizam a constituição

de novos regimes de verdade no campo educacional e possibilitam compreender

os anseios, as aspirações, as formas de pensar a educação e a infância na épo-

ca; que verdades esses discursos enunciavam e o que silenciaram? As temáticas

das teses apresentadas, como reflexo dos jogos de poder que articulavam as re-

lações entre os extratos sociais dão visibilidade aos aspectos que a sociedade

passava a definir como prioridades no redirecionamento das políticas educacio-

nais e na construção de um projeto de educação nacional – o sistema nacional de

educação, o qual só foi viabilizado na década de trinta do século XX.

No início do século XX, o Brasil republicano vivia a perspectiva de con-

solidação do Estado nacional e o problema de não ter um sistema nacional de

educação. Muito para fazer, muitas demandas sociais mobilizavam: as epidemias,

a criação de escolas etc. Os discursos no campo da educação fluíam com todas

as colorações políticas, mas um elemento os unificava: a idéia da educação como

“formação”, instrumento de educação das massas, valioso dispositivo de integra-

ção da nação ao mundo da ciência e à modernidade e corolário do seu progresso.

Todas essas enunciações se fazem presentes no texto, através de inúmeras te-

máticas reveladoras das inquietações desses tempos de rupturas. Intelectuais,

professores do ensino primário, de escolas do ensino normal, médicos, engenhei-

ros, diretores e diretoras de escolas e de faculdades, religiosos e políticos, inter-

ventores, todos falavam do lugar de patriotas ferrenhos em busca do “engrande-

cimento da grandeza da pátria que tanto estremecemos”.

O maior número de teses tinha suas temáticas incluídas nos “temas ge-

rais”, signo das diversas problemáticas que os educadores e a sociedade se colo-

cavam naquele momento. As metáforas médicas constroem os sentidos dos tex-

tos, caracterizando-se por forte teor prescritivo e normatizador e apontam para

22

uma significação da educação inicialmente como maquinaria para a purificação e

aperfeiçoamento da raça. O que caracteriza os discursos é a regularidade nos

enunciados, de uma candente preocupação com os pobres, “desvairados”, “pro-

míscuos”, “irregulares”, necessitados de cuidados especiais. Daí a necessidade

de criar programas de higienização e de eugenização “para melhorar a própria

vida, da família, da sociedade e da espécie”.

Os enunciados desse discurso são fortemente preconceituosos e racis-

tas, polarizando as diferenças cidade/campo, apresentando a cidade e significa-

do-a como o “outro”, o “civilizado” – portanto um parâmetro para se definir o mo-

delo idealizado de educação − mesmo quando apresenta a cidade enfatizando

aspectos negativos, como pode ser visto em outro fragmento de outra tese:

E o sertanejo, ainda piscando do sono em que o surpreende a ci-vilização barulhenta e indiscreta, vai recebendo a assimilando a vida nova sem estar absolutamente preparado para isso. Daí o grande perigo nessa transição violenta. Esmaece uma população de costumes simples e ingênuos para florescer outra com os feios vícios de centros populosos, de civilização avariada (ALENCAR, apud COSTA, 1997, p. 63).

A infância passa a ser problematizada e necessário se faz esquadri-

nhá-la para depois classificá-la e subjetivá-la em diferentes identidades infantis:

“delinqüente”, “abandonada”, “viciosa”, “doente”, “ingênuos”, “enjeitados”, “expos-

tos”, para as quais são criados inúmeros dispositivos de regulação, como a escola

– e o internato, como espaço privilegiado para a nova educação higiênica das cri-

anças e mecanismo ideal para se disseminar a idéia de saúde e limpeza, de mo-

do a produzir corpos saudáveis.

Uma preocupação que tem visibilidade nos discursos eugenistas é a

vigilância das condutas: aconselhava-se os professores a surpreender os peque-

nos vícios dos escolares, como a posição ao sentar; colocar o lápis na boca; pôr

os dedos na boca, nariz olhos ou ouvidos; cuspir no chão, deixar cair tinta sobre o

material escolar; espirrar ou tossir sem proteger-se com o lenço; ao comer, masti-

ga mal; beber água suado.... São inúmeros e incontáveis os comportamentos

prescritivos, em aspectos inimagináveis. Esse detalhamento das condições de

higiene também está presente na inspeção do espaço escolar, feita pelos alunos,

23

que deveriam percorrer todas as dependências da escola, observando suas con-

dições de ventilação, claridade, etc.

A subjetivação das crianças pelos discursos como tendo “problemas de

aprendizagem” emerge, portanto no século XIX fortemente atrelada a uma con-

cepção biológico-organicista e aos discursos médico-higienistas, os quais vêm a

provocar uma preocupação crescente com a organização do espaço escolar; seus

pressupostos sobre a saúde e higiene infantil invadem o espaço da casa, discipli-

nando os saberes e as práticas aí desenvolvidas). Se nos tempos coloniais o di-

reito e o castigo são os mecanismos de regulação dos indivíduos, agora a produ-

tividade das estratégias de poder envolve procedimentos que funcionam pelas

técnicas minuciosas de controle. “Uma tecnologia de sujeição própria que, embo-

ra possa incluir em suas táticas ações repressivas, não deve simplesmente con-

denar ou tolerar, mas gerir, fazendo funcionar os corpos segundo um padrão óti-

mo” (DEL PRIORI, 1997, p. 293).

O “novo homem” exigido pela burguesia deveria ser formado segundo

as demandas relacionadas aos padrões administrativos encontrados nas socie-

dades em processo de transformação, o que envolve uma relação de poder-

saber. É assim que artifícios são criados para dar conta das exigências colocadas

por essa nova realidade: a produção de novos saberes e de aparatos disciplinares

como instituições relacionadas ao trabalho, à saúde e educação as quais “ligavam

os novos objetivos de bem-estar social do estado aos princípios de auto-reflexão

e de autogoverno da individualidade” (POPKEWITZ, 1998, p. 96). Os investimen-

tos são deslocados do corpo e a produção das subjetividades vai se dar no en-

contro do sujeito com ele mesmo, no “conhecer-se a si mesmo”, na interiorização

que este faz de algum dos modelos de experiência de si presentes no amplo re-

pertório de que dispõe como membro de uma cultura. É o processo normalizador

desencadeado por esses saberes que vai produzir uma infância “anormal”, “ina-

daptada” e produzir e tratar de uma criança portadora de “dificuldades de aprendi-

zagem” ou de “problemas escolares”, e bem posteriormente, como crianças que

“fracassam” na escola.

É no contexto dessas configurações e desses movimentos no âmbito

político, cultural, econômico e educacional que emergem as preocupações com

as “diferenças” entre os escolares; e, num processo que envolve continuidades e

descontinuidades, quanto à produção discursiva e conceitual, sedimentado pelas

24

ciências que passam a cuidar da infância e de sua educação e escolarização, que

emerge a preocupação científica, ou melhor, a transformação da infância escolar

em objeto de investigação − como um dos dispositivos históricos produzidos para

explicar, justificar e legitimar experiências minoritárias existentes no espaço esco-

lar.

Vejo os discursos como acontecimentos passíveis de reversibilidade,

como tem sido mostrado pela história; como dispositivos que podem ser instru-

mentalizados em função de poderes e interesses específicos, passíveis de análi-

se. O que significa igualmente pensar em intervir nas instituições, como a escola,

no sentido de, não somente mudá-las, mas de viabilizá-las para todos, garantindo

“espaços de indagação e de exploração, de construção de novos saberes e práti-

cas”, de modo que as crianças dela não sejam expulsas, sob o ordenamento de

discursos de verdade.

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