Disertacao Definitiva DAYSILANE 2012

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI UFSJ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MESTRADO EM EDUCAÇÃO DAYSILANE DAS MERCÊS FRADE SILVA APROPRIAÇÃO POR DOCENTES DO ENSINO MÉDIO DA IDEIA DE INTEGRAÇÃO DOS TRÊS ASPECTOS CONSTITUINTES DO CONHECIMENTO QUÍMICO: FENÔMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM São João del-Rei 2012

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Dissertação sobre a Política e as reformas educacionais (PCNS) e PCN+.

Transcript of Disertacao Definitiva DAYSILANE 2012

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI UFSJ

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    MESTRADO EM EDUCAO

    DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA

    APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE

    INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DO CONHECIMENTO

    QUMICO: FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM

    So Joo del-Rei

    2012

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    DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA

    APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE

    INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DO CONHECIMENTO

    QUMICO: FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao: Processos Socioeducativos e Prticas Escolares da Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Discursos e Produo de Saberes nas Prticas Educativas Orientador: Prof. Dr. Murilo Cruz Leal

    So Joo del-Rei

    Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ

    2012

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    DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA

    Apropriao por Docentes do Ensino Mdio da Ideia de Integrao dos Trs

    Aspectos Constituintes do Conhecimento Qumico: Fenmenos, Teorias e

    Linguagem

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao: Processos Socioeducativos e Prticas Escolares da Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Discursos e Produo de Saberes nas Prticas Educativas

    Banca examinadora constituda pelos professores:

    Orientador: Prof. Dr. Murilo Cruz Leal

    Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ)

    Prof. Dr. Orlando Gomes de Aguiar Jnior

    Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

    Prof. Dr. Paulo Csar Pinheiro

    Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ)

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    DEDICATRIA:

    Dedico esta pesquisa ao meu esposo Neilson, que

    compartilhou comigo cada angstia e cada alegria dessa

    caminhada sempre acreditando na possibilidade de uma vitria.

    Dedico ao meu filho Thales, que aprendeu desde cedo o

    sentido discursivo dos verbos: estudar e pesquisar. Em meio a

    tantos estudos, o computador, que s vezes ele queria desligar

    para a mame dar-lhe mais ateno, proporcionou momentos

    de afeto durante a descoberta do mundo virtual das cantigas e

    dos desenhos infantis.

    Dedico tambm aos meus pais:

    Ao meu pai Joo Frade, por seu exemplo que o faz eterno em

    meu corao.

    minha me Neusa de Oliveira, pela explicao do

    attachement materno que a fez receber-me em sua casa

    como nos bons tempos de colgio.

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    AGRADECIMENTOS

    A Deus, toda honra e toda glria!

    Nossa Senhora das Mercs, pela graa da minha vida.

    minha famlia: esposo, filho, me, irmos, sobrinhos (as), sogra e cunhados (as)

    pela compreenso e pela forte torcida para conquista do ttulo de mestre.

    Ao meu orientador Murilo Cruz Leal, professor de admirvel concepo educacional,

    pela sua dedicao, ateno e parceria imensurveis.

    Universidade Federal de So Joo del-Rei, UFSJ, por sua excelncia na minha

    formao: Graduao em Qumica e Mestrado em Educao.

    SEE-MG por garantir meu afastamento para cursar o Mestrado.

    CAPES por conceder-me bolsa.

    Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, pela parceria.

    Aos professores de Qumica do Ensino Mdio, colaboradores da parte emprica

    deste trabalho pelo compromisso com a Educao.

    Ao Prof. Dr. Paulo Csar Pinheiro por sua singularidade em minha formao

    acadmica (Graduao e Qualificao de Mestrado).

    Ao Prof. Dr. Orlando Aguiar pela sua ateno e sugesto de fontes bibliogrficas

    sobre Anlise de Discurso.

    Ao prof. Dr. cio Portes, ao Prof. Dr. Wanderley Oliveira e Profa. Dra. Christianni

    Morais pelas aulas interativo-discursivas, durante o Mestrado em Educao na

    UFSJ.

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    Ao Prof. Dr. Antnio Batista (Dute) e ao Prof. Dr. Claudio Nogueira pelas aulas de

    Sociologia de Pierre Bourdieu na UFMG.

    s secretrias da PPEDU Roberta, Simone e Ludmila pelo profissionalismo.

    Silvana da SRE/Metropolitana B e Sirlene da DCRH/SEE por esclarecer sobre o

    pedido de Afastamento para cursar Mestrado.

    Ao Prof. Dr. Eduardo Mortimer por sugerir leituras e disciplina a ser cursada na

    UFMG, por disponibilizar fontes bibliogrficas e por participar de minha Qualificao.

    Profa. Dra. Nilma Soares por sua simpatia em orientar-me durante o Estgio de

    Docncia realizado na UFMG.

    Profa. Dra. Andrea Machado por disponibilizar materiais para a parte emprica

    desta pesquisa.

    Profa. Dra. Penha Silva e Profa. Dra. Rosaria Justi da UFMG pelo apoio

    oferecido.

    Ao Prof. Dr. Paulo Porto da USP pela indicao de literatura sobre Filosofia da

    Qumica.

    Aos bibliotecrios da FAE/UFMG, Karllos Oliveira e Marli Lopes, pelo empenho em

    conseguir artigos internacionais.

    direo, professores, alunos e demais funcionrios da Escola Estadual Deputado

    Renato Azeredo que torceram pelo xito dessa pesquisa de Mestrado.

    Aos colegas do mestrado pelos momentos em que s ns nos entendamos.

    Ao Colgio So Judas Tadeu, em especial Profa. Maria e Irm Simone

    (Irmzinha) pelo carinho e cuidados dedicados ao meu filho Thales.

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    Tenho medo de escrever. to perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no

    que est oculto e o mundo no est tona, est oculto em suas razes

    submersas em profundidade do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio.

    Neste vazio que existo intuitivamente. Mas um vazio terrivelmente perigoso:

    dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo das palavras: as palavras

    escondem outras quais? talvez as diga. Escrever uma pedra lanada no poo

    fundo.

    Clarice Lispector

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    RESUMO

    Este trabalho apresenta resultados da pesquisa de mestrado sobre a apropriao,

    por docentes do Ensino Mdio da rede pblica estadual de Minas Gerais, dos trs

    aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem,

    em suas interaes, tanto na estruturao da Qumica quanto na organizao de

    seu ensino. A metodologia utilizada a anlise de discurso embasada na filosofia da

    linguagem de Mikhail Bakhtin, sobretudo nos conceitos de apropriao, polifonia ou

    multiplicidade de vozes sociais, alteridade, dialogismo e compreenso. Estes

    conceitos bakhtinianos no so estanques, pelo contrrio so imbricados uns nos

    outros e nos oferecem fundamentao terica para leitura dos enunciados dos

    professores e identificao de sentidos produzidos. Resgatamos a correspondncia

    da trade fenmenos, teorias e linguagem aos nveis de compreenso da natureza

    da Qumica macroscpico, microscpico e representacional, com o propsito de

    fortalecer a dimenso epistemolgica deste tringulo. Assim, podemos mostrar que

    a discusso destes aspectos da Qumica se d alm da Proposta Curricular de

    Qumica de Minas Gerais, apresentada inicialmente em 1998 e vrias vezes

    reeditada, e que sua compreenso torna-se relevante para o ensino desta cincia.

    Numa perspectiva dialgica, constatamos que a apropriao da ideia de integrar o

    fenomenolgico, o terico e o representacional ocorre num clima de tenso entre

    compreenses, convices e condies de trabalho. O processo de colocao em

    prtica, de maneira integral e contnua, de um ensino de Qumica fundamentado

    nessa trilogia percebido como desafio complexo.

    Palavras chave: apropriao, docentes, fenmenos, teorias, linguagem qumica

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    ABSTRACT

    This investigation presents results of Masters research on the appropriation by

    secondary school teachers of the public network Minas Gerais state of the three

    constituents aspects of chemical knowledge: phenomena, theories and language, in

    their interactions, both in the structuring of Chemistry, as in organization his teaching.

    The methodology used is discourse analysis based on the philosophy of language of

    Mikhail Bakhtin, mainly in concepts of appropriation, of polyphony or multiplicity of

    social voices, of otherness, of dialogism and of understanding. These bakhtinian

    concepts are not watertight, rather they are imbricate each other and us offer

    fundamentation theoretical for reading the enunciates of the teachers and

    identification of the produced meanings. We rescued the correspondence of the triad

    phenomena, theories and language to levels of understanding of the nature of

    chemistry macroscopic, microscopic and representational, in order to strengthen the

    epistemological dimension of the triangle. Thus, we can show that the discussion of

    these aspects of chemistry takes place beyond the Chemistry Curriculum Proposal of

    Minas Gerais, submitted in 1998 and reissued several times, and that his

    understandings is relevant to the teaching of the idea of integrating the

    phenomenological, the theoretical and the representational occurs a context of

    tension between understandings, beliefs and working conditions. The process of

    collocation into practice, of manner in fully and continuous, of a chemistry teaching

    based on this trilogy is perceived as complex challenge.

    Key words: appropriation, teachers, phenomena, theories, chemical language

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    LISTA DE FIGURAS E QUADROS

    FIGURA 1 - Os trs aspectos do conhecimento qumico ..........................................20

    FIGURA 2 - The new chemistry has three basic components: macrochemistry,

    submicrochemistry, and representational chemistry ..36

    FIGURA 3 - Focos Conceituais .................................................................................50

    FIGURA 4 - Formas de Abordagem ..........................................................................51

    QUADRO 1 - Perspectiva Estruturalista e Perspectiva Bakhtiniana ........................29

    QUADRO 2 - Grupos de professores entrevistados .................................................71

    QUADRO 3 - Marcadores e sinais utilizados nas transcries de

    Conversaes .........................................................................................................143

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    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    CBC Contedo Bsico Comum

    CRV Centro de Referncia Virtual do Professor

    CTS Cincia, Tecnologia e Sociedade

    CTSA Cincia, Tecnologia, Sociedade e Ambiente

    DCRH Diretoria de Capacitao de Recursos Humanos

    ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio

    GDP Grupos de Desenvolvimento Profissional

    IMERSO Educao Continuada de Professores: Estudos dos Contedos

    Bsicos Comuns da SEE-MG

    MEC Ministrio de Educao e Cultura

    PCN Parmetros Curriculares Nacionais

    PDP Programa de Desenvolvimento Profissional

    PROMDIO Programa-Piloto de Inovao Curricular e de Capacitao

    Docente para o Ensino Mdio

    REE-MG Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais

    SEE-MG Secretaria de Estado de Educao de Minas Gerais

    SRE Superintendncia Regional de Ensino

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    SindUTE Sindicato nico dos Trabalhadores em Educao de Minas Gerais

    UNESCO Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura

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    SUMRIO

    INTRODUO ..........................................................................................................15

    CAPTULO 1

    EPISTEMOLOGIA E CURRCULO DE QUMICA: O TEMA E O OBJETO

    DESTA PESQUISA E O REFERENCIAL TERICO ADOTADO EM

    SUA PROBLEMATIZAO .....................................................................................18

    1.1. Sobre epistemologia e currculo de Qumica .....................................................18

    1.2. Sobre a teoria da enunciao de Mikhail Bakhtin ..............................................27

    CAPTULO 2

    CONSIDERAES ACERCA DE FUNDAMENTOS FILOSFICOS PARA

    A QUMICA E O SEU ENSINO ................................................................................32

    2.1. O reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica ................................33

    2.2. Os nveis de compreenso da natureza da Qumica ........................................35

    2.3. A propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica ..............................41

    2.4. Reflexo sobre a dimenso axiolgica ..............................................................44

    CAPTULO 3

    TEXTOS E CONTEXTOS DO DISCURSO QUE INTEGRA OS TRS

    ASPECTOS DO CONHECIMENTO QUMICO ........................................................48

    3.1. Possveis convergncias na questo epistemolgica da Qumica

    nos documentos curriculares de 1998, 2004, 2005 e 2007 da SEE-MG ................49

    3.2. Os programas de formao continuada de professores em Minas Gerais .......57

    3.2.1. O Programa-Piloto de Inovao Curricular e de Capacitao Docente

  • 14

    para o Ensino Mdio - Promdio (1997) ..................................................................58

    3.2.2. O Projeto de Desenvolvimento Profissional PDP (2004), desenvolvido

    nas diversas regies de Minas Gerais ......................................................................60

    3.2.3. O programa Educao Continuada de Professores: Estudos dos

    Contedos Bsicos Comuns da SEE-MG ou Imerso, realizado em Belo

    Horizonte no decorrer de 2006/2007 ........................................................................61

    CAPTULO 4

    APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE

    INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DA QUMICA:

    FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM ...............................................................63

    4.1. O percurso terico-metodolgico .......................................................................64

    4.2. Os discursos dos professores: vozes prprias e alheias ...................................72

    4.2.1. O professor Ansio ...........................................................................................75

    4.2.2. O professor Darcy ...........................................................................................83

    4.2.3. A professora Ceclia ........................................................................................90

    4.2.4. O professor Mrio ............................................................................................94

    4.2.5. O professor Fernando .....................................................................................99

    4.2.6. A professora Maria ........................................................................................108

    4.3. A multiplicidade de significaes no processo de apropriao .....................121

    CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................128

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................132

    ANEXOS

    Anexo A Roteiro de Entrevista ...............................................................................141

    Anexo B Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .........................................142

    Anexo C Quadro de Marcadores e Sinais Utilizados nas Transcries

    de Conversaes ....................................................................................................143

  • 15

    INTRODUO

    Nesta pesquisa, analisamos a apropriao, por docentes do Ensino Mdio, da ideia

    de integrao dos trs aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos,

    teorias e linguagem. Partimos da indagao: houve ou no apropriao? Qual a

    relao dos docentes com a ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem?

    Como os professores enunciam sua apropriao?

    A articulao dos aspectos do conhecimento qumico apresentada na Proposta

    Curricular de Qumica Ensino Mdio, na estrutura de um tringulo, com a

    denominao de Formas de Abordagem (MINAS GERAIS, 2007, p. 17). Uma

    primeira verso de proposta curricular contendo o tringulo foi apresentada aos

    professores em 1998 e a verso mais atual, publicada pela SEE-MG em 2007, foi

    distribuda s escolas em 2008. Tal publicao inclui os Contedos Bsicos Comuns

    da Qumica, conhecidos como CBCs da Qumica.

    Esta trade chamou nossa ateno pelo fato de possibilitar discusses a respeito das

    relaes entre o conhecimento cientfico da Qumica e o sujeito deste conhecimento

    (professor e/ou aluno), passando a ser o cerne da nossa pesquisa.

    Assim, torna-se oportuno salientar que no temos a pretenso de responder qual

    deve ser o currculo de Qumica no Estado de Minas Gerais. E, ainda, que tomamos

    nosso objeto de pesquisa segundo o pensamento de Mikhail Bakhtin que concebe

    tudo em confronto, em dilogo, [que] o importante , sobretudo, a manifestao das

    diferentes vozes (SCHNAIDERMAN, 2008, p. 17, grifos nossos). Desse modo,

    nossa pesquisa caminhou rumo s diferentes vozes sociais (da Proposta, da

    formao inicial, da formao continuada, do livro didtico etc.) presentes nos

    discursos dos professores entrevistados que de um modo ou de outro discursaram

    sobre a epistemologia do/no ensino de Qumica.

    Realizamos entrevistas semiestruturadas com seis professores de Qumica do

    Ensino Mdio. As entrevistas foram gravadas em udio e transcritas para realizao

    da anlise de discurso, esta fundamentada na filosofia da linguagem de Mikhail

    Bakhtin, em sua compreenso de apropriao do discurso do outro e, ainda, em sua

  • 16

    concepo de polifonia (multivocalidade) ou vozes sociais que caracterizam as

    produes discursivas. Para realizar a transcrio dos enunciados dos professores,

    buscamos os marcadores e sinais utilizados em anlise de conversaes

    desenvolvidos por Marcuschi (2000).

    No primeiro captulo trazemos a construo da reviso bibliogrfica e a

    apresentao do referencial terico. Dialogamos com pesquisadores, enfatizando

    suas concepes de epistemologia e de currculo de Qumica, a fim de subsidiar

    nossos questionamentos. E, tambm, destacamos os principais conceitos

    bakhtinianos que fundamentam nossas discusses e compreenses dispostas nesta

    pesquisa.

    O captulo dois abre espao para problematizar algumas consideraes a propsito

    da fundamentao filosfica da Qumica e de seu ensino. Refletimos sobre a

    questo que envolve o reducionismo epistemolgico e o reducionismo ontolgico da

    Qumica Fsica. Refletimos tambm sobre os nveis macroscpico, microscpico e

    simblico no entendimento conceitual da Qumica e de sua natureza, bem como a

    respeito da possvel autonomia ontolgica da Qumica e, ainda, sobre sua dimenso

    axiolgica. Buscamos conduzir este conjunto de reflexes em estreita relao com

    possveis implicaes no ensino de Qumica.

    O captulo trs constitui uma busca dos textos e dos contextos da enunciao

    acerca da integrao de fenmenos, teorias e linguagem para os professores de

    Qumica. Analisamos possveis convergncias de significados e sentidos sobre esta

    trade nos documentos de proposta curricular de Qumica da SEE-MG de 1998,

    2004, 2005 e 2007. E caracterizamos os trs momentos chaves de formao

    continuada que proporcionaram contextos para a elaborao e discusso da referida

    integrao: o Promdio (1997), o PDP (2004) e o Imerso (2006/2007).

    No quarto captulo, fizemos nossa anlise dos discursos produzidos pelos docentes

    do Ensino Mdio a respeito de suas relaes estabelecidas com a ideia de integrar

    os aspectos do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem. Nossas

    compreenses, no sentido bakhtiniano, encontram-se abertas a outras como

    possibilidade de continuidade do dilogo.

  • 17

    Por fim, apresentamos nossas consideraes finais. Nesta, realamos as snteses

    das discusses abordadas; as possveis contribuies desta dissertao para a

    pesquisa em Educao e em Ensino de Qumica, bem como alguns apontamentos

    para novas pesquisas.

  • 18

    CAPTULO 1

    EPISTEMOLOGIA E CURRCULO DE QUMICA: O TEMA E O OBJETO DESTA

    PESQUISA E O REFERENCIAL TERICO ADOTADO EM SUA

    PROBLEMATIZAO

    Neste captulo, desenvolvemos a reviso bibliogrfica no mbito da atualidade das

    discusses epistemolgicas em sua relao com o Ensino de Qumica,

    considerando suas implicaes na complexa questo curricular. E, tambm,

    realizamos a apresentao do nosso referencial terico: a filosofia da linguagem de

    Mikhail Bakhtin. A partir das noes de apropriao, vozes sociais, alteridade e

    dialogismo, apresentadas por Bakhtin, foi possvel analisar os enunciados dos

    professores colaboradores desta pesquisa.

    1.1. Sobre epistemologia e currculo de Qumica

    A Educao nas escolas de Minas Gerais vem passando por tentativas de

    reformulao curricular e, consequentemente, o ensino de Qumica. A Proposta

    Curricular de Qumica Ensino Mdio da Secretaria de Estado de Educao de

    Minas Gerais (SEE-MG), de 2007, apresenta um diferencial ao possibilitar a

    participao de alguns professores, que vivenciam a realidade da sala de aula, no

    processo de sua elaborao. O Programa-Piloto de Inovao Curricular e de

    Capacitao Docente para o Ensino Mdio - Promdio (1997) marca o incio de

    discusses e de problematizaes das ideias bsicas da inovao curricular de

    Qumica. Estas ideias foram retomadas em 2002 com o objetivo de reiniciar um

    movimento de inovao curricular para o Ensino Mdio em todo o Estado (MINAS

    GERAIS, 2007, p. 11). Desse modo, a SEE-MG organizou outros momentos para

    promover encontros entre consultores e professores de Qumica do Ensino Mdio da

    Educao Bsica que estivessem vinculados s Escolas-Referncia ou Escolas

    Associadas1, como: o Projeto de Desenvolvimento Profissional PDP,

    desenvolvido nas diversas regies de Minas Gerais a partir de 2004 e o programa

    1 O Projeto Escolas-Referncia e Escolas Associadas faz parte de uma poltica do governo de Minas

    Gerais implantada a partir de 2003.

  • 19

    Educao Continuada de Professores: Estudos dos Contedos Bsicos Comuns da

    SEE-MG ou Imerso, realizado em Belo Horizonte no decorrer de 2006/2007.2 Os

    referidos consultores e professores, balizados na filosofia dos Parmetros

    Curriculares Nacionais (PCN, PCN+ e PCN 2006) (MINAS GERAIS, 2007, p. 12) e

    nos princpios e pressupostos das discusses do Promdio (1997), elaboraram e

    reelaboraram o documento da proposta curricular mencionada. Em 2008, a verso

    final desse documento foi distribuda nas escolas a fim de ser compartilhada com os

    demais professores de Qumica da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais (REE-

    MG).

    O documento, supracitado, traz o discurso de inovao curricular do ensino de

    Qumica, fundamentado na ideia de integrao dos trs aspectos constituintes do

    conhecimento qumico: fenomenolgico, terico e representacional como tentativa

    de superar a prtica tradicional centrada no aspecto simblico:

    A tradio que a maioria dos professores de Qumica ainda mantm [...] a de no fazer presentes, em sala de aula ou no seu ensino, fenmenos relacionados com essa cincia. O aspecto representacional da Qumica sobremaneira enfatizado, em detrimento dos outros dois (MINAS GERAIS, 2007, p. 17).

    Nossa pesquisa se insere no contexto das reflexes epistemolgicas e curriculares

    de Qumica, no que tange a natureza do ensino dessa cincia que integra os

    aspectos fenmenos, teorias e linguagem, que vincula os eixos conceituais e

    contextuais e busca a articulao cincia, tecnologia, sociedade e ambiente num

    compromisso tico.

    Muitas so as contribuies de diversos autores, em torno da problematizao sobre

    o qu e como ensinar Qumica (JOHNSTONE, 1982 e 2000; KOZMA et. al.,1997;

    ROSA e SCHNETZLER, 1998; MORTIMER et. al., 2000; CHITTLEBOROUGH et. al.,

    2002; MACHADO, 2004; LEAL e MORTIMER, 2008 e LEAL, 2009, dentre outros).

    Alex Johnstone, no artigo Macro-and microchemistry, j em 1982 explicita e destaca

    os trs diferentes nveis do conhecimento qumico: o macroscpico e o sub-

    microscpico, que tratariam de aspectos reais, e o simblico, que trata do aspecto

    representacional. Para ele, os trs nveis propiciam um modelo que tem relaes

    2 Os momentos de formao continuada (Promdio (1997), PDP (2004) e Imerso (2006)) sero

    abordados, com mais detalhes, no captulo 3.

  • 20

    com a natureza da Qumica (JOHNSTONE, 2000, p. 35). A forma de abordagem do

    conhecimento qumico apresentada no documento curricular de Minas Gerais de

    1998 e de 2007, que destaca em esquema triangular os aspectos fenomenolgico,

    terico e representacional, guarda forte correspondncia com o modelo de

    Johnstone.

    Figura 1. Formas de abordagem ou Aspectos do conhecimento qumico.

    Fonte: MORTIMER, MACHADO E ROMANELLI, 2000, p. 277.

    De acordo com a bibliografia estudada, o ensino de Qumica descuidado dessa inter-

    relao pode levar o educando a apresentar dificuldades na compreenso dos

    limites e continuidades entre o real e o representacional. possvel verificar, pelo

    menos, duas situaes em que o ensino parece tornar-se manco: de um lado, a

    ausncia dos fenmenos nas salas de aula pode fazer com que alunos tomem por

    reais as frmulas das substncias, as equaes qumicas e os modelos para a

    matria (MORTIMER et. al., 2000, p. 277); por outro lado, o ensino de fenmenos

    isolados impede que os(as) alunos(as) construam modelos explicativos coerentes

    que se aproximem mais dos modelos cientficos (ROSA e SCHNETZLER, 1998, p.

    34). Ainda com base nesse panorama de reflexes epistemolgicas, a cincia

    Qumica transposta pela didtica para a Qumica escolar, numa perspectiva que

    propicie o entendimento dos aspectos fenomenolgico, terico e representacional

    em suas relaes, pode contribuir para um ensino-aprendizagem mais dinmico,

    atraente e significativo. Podendo, tambm, propiciar ao educando, ser sujeito do seu

    processo de ensino aprendizagem. Assim:

  • 21

    A produo de conhecimento em Qumica resulta sempre de uma dialtica3 entre teoria e

    experimento, pensamento e realidade. Mesmo porque no existe uma atividade experimental sem uma possibilidade de interpretao. Ainda que o aluno no conhea a teoria cientfica necessria para interpretar determinado fenmeno ou resultado experimental, ele far com suas prprias teorias implcitas, suas ideias de senso comum, pois todo processo de compreenso ativo. Para que a interpretao do fenmeno ou resultado experimental faa sentido para o aluno, desejvel manter essa tenso entre teoria e experimento, percorrendo constantemente o caminho de ida e volta entre os dois aspectos. O aspecto representacional tambm resulta dessa tenso, fornecendo as ferramentas simblicas para representar a compreenso resultante desses processos de idas e vindas entre teoria e experimento (MORTIMER et. al., 2000, p. 277).

    Salientamos que nosso entendimento de dialtica entre teoria e experimento

    ultrapassa uma relao de foras que necessariamente resulta numa sntese ou com

    sobreposio de uma fora sobre a outra e caminha rumo noo bakhtiniana de

    dialogia. Para Bakhtin, a dialogia tambm uma relao de foras, porm nessa

    relao no h a sobrevivncia de uma e a morte da outra, ao contrrio, na relao

    dialgica as foras convivem, interagem (GEGe, 2010, p. 18). Contudo, essa

    interao dialgica ocorre no de uma forma pacfica, mas de uma forma tensa e

    contraditria. [...] As duas foras se transformam de alguma maneira, no de forma

    consensual, mas de uma forma dissensual (GEGe, 2010, p. 19).

    Nesse sentido, a abordagem do conhecimento qumico didatizado a partir do trip

    fenomenolgico, terico e representacional, que compem o nvel de articulao da

    Qumica, ou seja, da natureza e do funcionamento dessa cincia (epistemologia)

    (LEAL e MORTIMER, 2008, p. 214), requer uma considerao epistemolgica,

    sociolgica e histrica do processo educacional e curricular dessa cincia. Nas

    palavras de Alice Casimiro Lopes:

    [Nas] pesquisas em Educao [...] em ensino de Qumica, especialmente, ainda h uma dedicao quase exclusiva aos problemas metodolgicos, importantes para um projeto mais amplo de melhoria da qualidade da educao no pas, mas insuficientes para a compreenso do espao da sala de aula. A resoluo desses mesmos problemas metodolgicos exige que no sejam desconsiderados os aspectos epistemolgicos, sociolgicos e histricos que permeiam o fenmeno educacional (LOPES, 2007, p. 100).

    Lopes (2007), em sua obra Currculo e Epistemologia, discute a epistemologia e a

    epistemologia escolar, alertando para a importncia da dimenso histrica nas

    construes do saber didatizado e das pesquisas em Educao. Segundo a autora o

    3 A Proposta curricular de Qumica: Ensino Mdio CBC (2007) contm esta mesma citao, contudo

    extrada do PROMDIO de 1997, onde consta ao lado da palavra dialtica o termo [unidade](MINAS GERAIS, 2007, p. 18).

  • 22

    professor pode vir a ser um dos maiores obstculos aprendizagem, caso se

    prenda ao dogmatismo (p. 60). Sugere que a associao histrica das cincias ao

    fazer (o pragmatismo cientfico) pode ser uma hiptese para a predominncia no

    ensino de Qumica de uma concepo epistemolgica emprico-descritiva (p. 82). E

    questiona que no processo de transposio didtica do conhecimento cientfico h

    uma acentuada marca emprico-positivista. Logo, aponta a importncia da dimenso

    histrica e humana para pensar o conhecimento na perspectiva do pluralismo

    cultural [...] que pressupe questionamentos de um saber a outro, negociaes de

    sentidos e significados e conflitos entre finalidades distintas (p. 202). Parece que

    Lopes prope uma reflexo epistemolgica que sugere carter provisrio e

    contingente das cincias ditas naturais no processo da transposio para o ensino

    escolar.

    Ainda nessa mesma perspectiva, Leal destaca o potencial da reflexo

    epistemolgica para uma melhor abordagem da Qumica no Ensino Mdio (2009, p.

    32) e que a falta de orientao epistemolgica pode conduzir a erros grosseiros (p.

    33). O autor cita, como exemplo, um erro comum que ocorre na referncia feita s

    palavras regra, modelo e teoria ao tratar da regra do octeto, como se elas fossem

    equivalentes.

    Uma diferenciao entre conhecimento ritual e conhecimento de princpios que

    nos ajuda a questionar o dogmatismo no ensino tradicional de Qumica, bem como a

    nfase memorizao sem sentido pode ser encontrada no documento da SEE-MG

    de 1997, Pressupostos Gerais e Objetivos da Proposta Curricular de Qumica4.

    Conhecimento ritual um tipo particular de conhecimento relacionado aos procedimentos, ao saber fazer alguma coisa. O conhecimento de princpios essencialmente explicativo, orientado para o entendimento de como os procedimentos e os processos funcionam, porque certas concluses so vlidas e necessrias. Em muitos contextos, obviamente os procedimentos so inteiramente adequados e necessrios. Os procedimentos se tornam rituais quando passam a ser um substituto para o entendimento dos princpios subjacentes. [...] No caso particular da regra do octeto, por exemplo, esse procedimento til para a previso da valncia e das frmulas de compostos de elementos tpicos da tabela peridica se transforma num ritual, um verdadeiro dogma para explicar a estabilidade dos compostos qumicos, substituindo princpios mais gerais como as variaes de energia envolvidas na formao de ligaes

    4 Este documento teve como equipe responsvel pela sua concepo e elaborao: Prof. Dr. Eduardo

    Fleury Mortimer (Faculdade de Educao da UFMG), Profa. Dra. Andra Horta Machado e Profa. Dra. Lilavate Izapovitz Romanelli (Colgio Tcnico da UFMG).

  • 23

    entre tomos. Esse e outros fatos contribuem para aprofundar a m fama da Qumica, entre os estudantes do Ensino Mdio: algo desinteressante e sem sentido, que apenas exige esforo de memria (MINAS GERAIS, 1998, p. 11).

    As discusses apresentadas sugerem a reflexo epistemolgica como contribuio

    para problematizar a temtica que envolve o currculo. Contudo, a questo curricular

    desenvolve-se em meio polmico, e o conceito de currculo muito amplo e

    complexo. Como afirma Tomaz Tadeu Silva em seu texto Educao, Trabalho e

    Currculo na Era do Ps-Trabalho e da Ps-Poltica: Se no passado, a questo

    qual conhecimento, qual currculo? nunca pde ser respondida de forma tranquila,

    sem conflitos e disputas, sem dvidas e incertezas, ela, se torna, hoje, ainda mais

    problemtica (SILVA, 1999, p. 83). Ainda nessa linha de raciocnio, Sacristn coloca

    que de alguma forma, o currculo reflete o conflito entre os interesses de uma

    Sociedade e os valores dominantes que regem o processo educativo (SACRISTN,

    2007, p. 18, grifo do autor).

    No artigo Os Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio e a Submisso

    ao Mundo Produtivo: O Caso do Conceito de Contextualizao, 2002, Lopes

    argumenta que Propostas curriculares oficiais, como os PCNEM, podem ser

    interpretadas ento como um hbrido de discursos curriculares, produzido por

    processos de recontextualizao. [...] Por isso, as ambiguidades so obrigatrias (p.

    389).

    Mais adiante, Lopes discute tais ambiguidades:

    Defendo que o discurso dos PCNEM apresenta ambiguidades de forma a se legitimar junto a diferentes grupos sociais, sejam aqueles que trabalharam em sua produo ou aqueles que trabalharam na sua implementao e anlise. Para produo de uma proposta curricular como a dos PCNEM, so apropriados e hibridizados discursos acadmicos, ressignificando-os de forma a atender s finalidades educacionais previstas no momento atual (p. 389).

    Nogueira e Nogueira (2006) mostram que numa anlise ampla da questo curricular,

    Bourdieu fala que os contedos curriculares seriam selecionados em funo dos

    conhecimentos, dos valores e dos interesses das classes dominantes e, portanto,

    no poderiam ser entendidos fora do sistema mais vasto das diferenciaes sociais

    (p. 94).

  • 24

    Leal (2003) problematiza a demanda da autoridade cientfica e a legitimidade do

    discurso de inovao da proposta curricular de Qumica (1997). Segundo seus

    estudos, a posio de autoridade demandada aos professores universitrios

    respaldada nos seus ttulos de doutor, nas suas produes acadmicas e no

    reconhecimento oficial do Estado que lhes atribui o lugar de especialistas (certo tipo

    de perito). Por outro lado, a posio de destinatrios para os professores do Ensino

    Mdio, numa perspectiva academicista se deve a um considervel dficit de

    formao (p. 148). Nesse aspecto haveria legitimidade para ambas as posies

    acima colocadas. Quanto situao da proposta curricular, considerando a ocasio

    da reestruturao dos anos 90 em que a educao tambm se reestruturava, foi

    assegurada, devido a tais circunstncias, a sua legitimidade. A partir do aporte

    terico da sociologia de Pierre Bourdieu, Leal faz algumas consideraes:

    Num processo de inovao curricular como o do que estamos tratando, podemos considerar que campo acadmico (ou campo universitrio) e campo escolar (relacionado ao ensino fundamental e mdio) entram em uma relao de fora em que bem ntida a superioridade de capital simblico nas mos do campo acadmico e dos professores da universidade em comparao, respectivamente, com o campo escolar e os professores do Ensino Mdio (LEAL, 2003, p. 149).

    A proposta curricular de Qumica, analisada por Leal, encontrava-se em fase de

    elaborao. No contexto atual, as ideias iniciais de inovao curricular passaram por

    outros espaos e tempos para discusso entre consultores do Estado (professores

    universitrios) e professores do Ensino Mdio at sua enunciao como documento

    oficial de Proposta Curricular de Qumica e, em sequncia, sua disseminao nas

    escolas do Ensino Mdio de Minas Gerais, em 2008. Pode-se ressaltar que alm

    desse novo contexto, surge, ainda, a necessidade de considerar um subgrupo dos

    agentes destinatrios, ainda mais desprovido de capital simblico5 (ttulos, produo

    acadmica, conhecimentos e reconhecimentos). Esse subgrupo composto pelos

    professores do Ensino Mdio que no tiveram sua participao, assegurada pelo

    Estado, nos encontros de Formao Continuada, palco dos possveis embates

    epistemolgicos e polticos que originaram a proposta mencionada.

    Segundo Bourdieu, a definio do que est em jogo na luta cientfica faz parte do

    jogo da luta cientfica (BOURDIEU, 1930/1983, p. 128). E, ainda, que invlida a

    5 Tomamos o sentido de capital simblico em Bourdieu.

  • 25

    tentativa de legitimar qualquer grupo envolvido em um campo cientfico. Nas

    palavras de Bourdieu:

    Tanto no campo cientfico quanto no campo das relaes de classe no existem instncias que legitimam as instncias de legitimidade; as reivindicaes de legitimidade tiram sua legitimidade da fora relativa dos grupos cujos interesses elas exprimem: medida que a prpria definio dos critrios de julgamento e dos princpios de hierarquizao esto em jogo na luta, ningum bom juiz porque no h juiz que no seja, ao mesmo tempo, juiz e parte interessada (BOURDIEU, 1930/1983, p. 130, grifo do autor).

    Deste modo, a Qumica entendida como saber escolar passa por transposies

    didticas. Este processo aparentemente neutro, possivelmente, ocorre em meio a

    conflitos, disputas e estratgias polticas. Nas palavras de Lopes:

    Na escola, e muitas vezes no contexto educacional mais amplo, frequentemente se considera que tais discursos so independentes o que ensinar e os valores. Uma das formas de afirmar essa independncia considerar que as regras de transmisso de um conhecimento escolar - o ritmo das atividades de ensino, a lgica de organizao desses saberes - derivam dos saberes de referncia, associados ao discurso instrucional. No entanto, na medida em que o discurso instrucional deslocado de seu contexto original e relocalizado no contexto educacional produzida sua transformao em outro discurso: o discurso pedaggico. Tal transformao desenvolvida por sua associao ao discurso regulativo e pela intervenincia da ideologia, um conjunto particular de efeitos dentro dos discursos. (LOPES, 2005, p. 54).

    Lopes nos conduz a uma concepo de currculo que passa por produes e

    transformaes de discursos. Isto nos remete noo de polifonia (vozes sociais) de

    Mikhail Bakhtin. Assim, podemos pensar a proposta curricular de Qumica de Minas

    Gerais como um discurso em que se manifestam uma multiplicidade de vozes

    sociais. De acordo com Bakhtin o discurso no finito e sempre se renova num novo

    contexto, pois o grande tempo permite que todo sentido festeje sua renovao.

    Nem os sentidos do passado, isto , nascidos no dilogo dos sculos passados, podem jamais ser estveis (concludos, acabados de uma vez por todas): eles sempre iro mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do dilogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do dilogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do dilogo, em seu curso, tais sentidos sero relembrados e revivero em forma renovada (em novo contexto). No existe nada absolutamente morto: cada sentido ter sua festa de renovao. Questo do grande tempo (BAKHTIN, 1979/2010, p. 410, grifos do autor).

    Dentro da amplitude epistemolgica e de renovao curricular da Qumica, balizados

    em Bakhtin, centramos nosso objeto de pesquisa nos aspectos constituintes do

    conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem. Estes aspectos foram

  • 26

    discutidos na proposta de 1998, 2004, 2005 e, tambm, na de 2007 que se encontra,

    atualmente, distribuda nas escolas da REE-MG. Cabe ressaltar que no nos

    prendemos polmica: se a Proposta Curricular de Qumica e o Contedo Bsico

    Comum CBC, contido nesta, tratam de prescrio, receita engessada, matriz de

    referncia padro, controle de professores ou se a mesma flexvel e os

    professores se sentem integrantes da sua construo como coautores desse

    documento. Interessamo-nos pelos enunciados dos docentes a propsito de suas

    relaes com os trs aspectos, pelas palavras do outro assimiladas (minhas-

    alheias) que renovam-se criativamente em novos contextos (BAKHTIN,

    1979/2010, p. 408).

    A literatura mais recente aponta o impacto das tentativas de mudanas educacionais

    no ensino de Qumica. Nesse sentido (MORTIMER; MACHADO; ROMANELLI, 2000;

    LEAL, 2003 e MENDONA, 2010) identificam uma tenso entre limites e

    possibilidades na propagao de uma inovao curricular: ausncia de um projeto

    poltico pedaggico construdo coletivamente na escola, a falta de condies de

    trabalho, dificuldade em organizar um espao de aprendizagem com turmas

    menores, organizao linear e sequencial do contedo da maioria dos livros

    didticos, e tempo rgido que impossibilita encontros coletivos para a elaborao de

    projetos.

    Leal (2003) analisou a apropriao do discurso de inovao curricular de Qumica

    por professores do Ensino Mdio da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais. Ele

    entrevistou doze professores participantes do Promdio e ou do Pr-Cincias (1997

    a 1999) e percebeu que vrios temas introduzidos nesses programas de

    capacitao docente, estiveram ausentes de seus enunciados. Entre esses temas

    encontra-se a discusso do modelo integrado dos aspectos da Qumica:

    fenomenolgico, terico e representacional como forma de abordagem do

    conhecimento dessa cincia no cotidiano escolar.

    Sabendo que a proposta curricular do Estado de Minas Gerais foi elaborada a partir

    das ideias bsicas problematizadas no Promdio (1997) e, uma dcada depois, em

    2008, distribuda nas escolas de todo o Estado, e tambm, considerando os limites

    apontados, no dilogo com pesquisadores da rea, para o processo de

  • 27

    disseminao de uma nova proposta curricular, e em destaque as constataes de

    Leal em seu doutoramento (2003), torna-se relevante e pertinente analisar, no

    contexto atual, a apropriao6 do discurso de inovao curricular de Qumica.

    Colocamos nosso foco de interesse nas discusses epistemolgicas que envolvem

    os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e

    linguagem. Analisaremos principalmente a integrao destes aspectos, entendendo

    por integrao a tomada do contexto completo em que tais aspectos se articulam,

    considerando como as relaes se constituem e as tenses que se mantm entre os

    aspectos. Logo, explicitamos nossos questionamentos: os docentes do Ensino

    Mdio se apropriam da ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem (aspectos

    do conhecimento qumico ou formas de abordagem da Qumica)7 apresentada na

    proposta curricular da SEE-MG? Houve ou no apropriao? Qual a relao dos

    docentes com essa ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem? Como os

    professores enunciam8 sua apropriao desta ideia?

    1.2. Sobre a teoria da enunciao de Mikhail Bakhtin

    A fundamentao terica dessa dissertao se encontra na filosofia enunciativa da

    linguagem de Mikhail Bakhtin, sobretudo em sua perspectiva discursiva, dialgica e

    polifnica e na sua ideia de apropriao.

    O erro fundamental dos pesquisadores que j se debruaram sobre as formas de transmisso do discurso de outrem, t-lo sistematicamente divorciado do contexto narrativo. Da o carter esttico das pesquisas nesse campo (o que se aplica igualmente a todas as investigaes em sintaxe). No entanto, o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a interao dinmica dessas duas dimenses, o discurso a transmitir e

    6 O conceito de apropriao utilizado conforme definio do filsofo da linguagem Mikhail Bakhtin: A

    palavra da lngua uma palavra semi-alheia. Ela s se torna prpria quando o falante a povoa com sua inteno, com seu acento, quando a domina atravs do discurso torna-a familiar com sua orientao semntica e expressiva. At o momento em que foi apropriado, o discurso no se encontra em uma lngua neutra e imparcial (pois no foi do dicionrio que ele tomado pelo falante!), ele est nos lbios de outrem, nos contextos de outrem e a servio das intenes de outrem: e l que preciso que ele seja isolado e feito prprio (BAKHTIN, 1934-35/1993, p.100).

    7 A expresso aspectos do conhecimento qumico foi utilizada na Proposta Curricular de Qumica de

    1998. A expresso formas de abordagem aparece na Proposta Curricular de Qumica Ensino Mdio, publicada pela SEE-MG em 2007 e distribuda s escolas em 2008. Esta ltima publicao inclui o CBCs, os Contedos Bsicos Comuns da Qumica. As referidas expresses designam o triangulo fenmenos - teorias/modelos - representaes.

    8 Para Bakhtin (1992), o enunciado a unidade real da comunicao discursiva, estritamente

    delimitada pela alternncia dos sujeitos falantes. A compreenso desse enunciado vivo sempre acompanhada, portanto, de uma atitude responsiva ativa (FREITAS, 2003, p.35).

  • 28

    aquele [contexto] que serve para transmiti-lo (BAKHTIN e VOLOSHNOV, 1929/1981, p. 152).

    Bakhtin e Voloshinov concebem que a lngua vive e evolui historicamente na

    comunicao verbal concreta, no no sistema lingustico abstrato das formas da

    lngua nem no psiquismo individual dos falantes (BAKHTIN e VOLOSHNOV,

    1929/1981, p. 128, grifos dos autores). Esta concepo nos permite estudar a

    relao dialgica dos docentes do Ensino Mdio com a ideia de integrar fenmenos,

    teorias e linguagem na abordagem do conhecimento qumico. Seguiremos com a

    compreenso de que as relaes dialgicas so relaes (semnticas) entre toda

    espcie de enunciados na comunicao discursiva (BAKHTIN, 1979/2010, p. 323).

    Para Bakhtin ignorar a natureza do discurso o mesmo [...] que apagar a ligao

    que existe entre a linguagem e a vida (Bakhtin, 1986: 268, apud BARROS, 1994, p.

    2). Sua posio filosfica consiste em evitar dois polos extremos o dogmatismo e o

    relativismo, uma vez que sua crtica ao relativismo to clara [...] quanto a crtica ao

    dogmatismo. (AMORIM, 2003, p. 13). No prefcio da obra Dialogismo, polifonia,

    intertextualidade: em torno de Bakhtin, Luiz Roncari mostra que Bakhtin percorreu

    as mais importantes tendncias e correntes do pensamento e da cincia do sculo

    XX, evitando por um lado, o dogmatismo, e por outro o relativismo. Segundo o autor

    desse prefcio, Bakhtin, na obra Problemas da potica de Dostoiviski, dizia que o

    relativismo e o dogmatismo excluem igualmente qualquer discusso, todo dilogo

    autntico, tornando-o desnecessrio (o relativismo) ou impossvel (o dogmatismo)

    (BARROS, 1994, p. X-XI). Nesse sentido, Bakhtin instaura a importncia do dilogo.

    A linguagem torna-se o centro das investigaes e o dialogismo a condio do

    sentido do discurso.

    Brando (2004) apresenta elementos do crculo de Bakhtin que se contrapem a

    elementos da lingustica estrutural. Estes rompem com o monologismo e instauram o

    dialogismo. Segundo, a autora os elementos da perspectiva bakhtiniana,

    fundamentados numa dimenso social e histrica, constroem uma teoria da

    produo do discurso e do sentido. A contraposio entre os elementos da

    perspectiva estruturalista e da perspectiva bakhtiniana mostrada no quadro

    comparativo a seguir:

  • 29

    Quadro 1: Perspectiva Estruturalista e Perspectiva Bakhtiniana

    Elementos da perspectiva Estruturalista

    Elementos da perspectiva Bakhtiniana

    monolgico dialgico

    monofnico polifnico

    nico mltiplo

    o um e o outro o outro no um

    homogneo heterogneo

    imvel conflitual

    absoluto relativo

    dogmtico crtico

    acabado inacabado

    Fonte: Quadro adaptado de BRANDO, 2004, p. 63.

    Bakhtin com sua perspectiva dialgica, discursiva e polifnica aproxima-se de uma

    abordagem scio-histrica da linguagem (FREITAS, 2003), formulando assim a

    teoria da enunciao.

    O tema da enunciao determinado no s pelas formas lingusticas que entram na composio (as palavras, as formas morfolgicas ou sintticas, os sons, as entoaes), mas igualmente pelos elementos no verbais da situao. Se perdermos de vista os elementos da situao, estaremos to pouco aptos a compreender a enunciao como se perdssemos suas palavras mais importantes (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 132).

    Podemos tomar a enunciao, em Bakhtin, como uma unidade de anlise

    contextualizada. Sua perspectiva dialgica permite uma anlise das enunciaes

    levando-se em conta tanto a posio do locutor quanto do interlocutor.

    Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciao, no pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; no pode ser explicado a partir de condies psicofisiolgicas do sujeito falante. A enunciao de natureza social. (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 112, grifos dos autores).

    Barros (1994) esclarece que o dialogismo o princpio constitutivo da linguagem e

    de todo discurso. Refere-se interao entre o enunciador e o enunciatrio do texto

    e intertextualidade do interior do discurso. Logo, o discurso se tece

    polifonicamente num jogo de vrias vozes cruzadas, complementares, concorrentes,

    contraditrias (BRANDO, 2004, p. 65). Todo discurso intensamente dialgico,

    pois o discurso no se constri sobre o mesmo, mas se elabora em vista do outro.

    No sendo, ento, nico e irrepetvel, um discurso discursa outros discursos,

    tornando-se, assim, social (BARROS, 1994).

  • 30

    Bakhtin mostra que a particularidade da polifonia encontra-se na ndole inacabvel

    do dilogo polifnico. Neste dilogo o discurso no pode ser simplesmente o

    discurso prprio (em nome do eu). A palavra precisa ser fundamentada. A

    necessidade de representar algum (BAKHTIN, 1979/2010, p. 388). Nesse sentido,

    Bakhtin nos alerta para distino entre dilogo polifnico, marcado pelo conflito das

    vozes sociais, e discusso retrica que, contrariamente noo de dilogo, o

    importante no se aproximar da verdade, mas vencer o adversrio (BAKHTIN,

    1979/2010, p. 389).

    A polifonia caracteriza-se pelo discurso textual que deixa mostrar muitas vozes. No

    discurso h uma tenso entre palavra prpria e palavra alheia, sendo a conscincia

    uma arena de lutas e disputas das diversas vozes alheias a fim de influenciar o

    indivduo. Essa influncia pode gerar a palavra alheia-prpria, e esta por sua vez

    pode tornar-se palavra prpria (LEAL, 2003).

    Ainda na obra Esttica da criao verbal, encontramos nas palavras de Bakhtin:

    Nosso discurso, isto , todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) pleno de palavras dos outros, de um grau vrio de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vrio de aperceptibilidade e de relevncia. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expresso, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 1979/2010, p. 294-295).

    Esta discusso nos conduz ao entendimento da noo de apropriao, j mostrada

    na nota 6 da presente dissertao.

    A palavra da lngua uma palavra semi-alheia. Ela s se torna prpria quando o falante a povoa com sua inteno, com seu acento, quando a domina atravs do discurso torna-a familiar com sua orientao semntica e expressiva. At o momento em que foi apropriado, o discurso no se encontra em uma lngua neutra e imparcial (pois no foi do dicionrio que ele tomado pelo falante!), ele est nos lbios de outrem, nos contextos de outrem e a servio das intenes de outrem: e l que preciso que ele seja isolado e feito prprio (BAKHTIN, 1934-35/1993, p. 100).

    Os conceitos bakhtinianos de polifonia, relao dialgica, alteridade e apropriao

    so marcantes no nosso embasamento terico. Todavia, ao longo das discusses

  • 31

    contidas neste trabalho, nos apropriamos, ainda, da noo desenvolvida por Bakhtin

    de ato responsvel e responsivo9 e de compreenso.

    Compreender a enunciao de outrem significa orientar-se em relao a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciao que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma srie de palavras nossas, formando uma rplica. [...] A compreenso uma forma de dilogo; ela est para a enunciao assim como uma rplica est para a outra no dilogo. Compreender opor a palavra do locutor uma contrapalavra (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 135, grifos dos autores).

    Assim, nossa anlise do discurso dos professores do Ensino Mdio sobre a ideia de

    integrar os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e

    linguagem, ou melhor, nossa compreenso, nossa rplica s enunciaes dos

    professores , tambm, uma forma de dilogo. Um dilogo aberto a outras

    compreenses, outras rplicas. Pois, como j citado, anteriormente, o prprio

    Bakhtin considera que a particularidade da polifonia encontra-se na ndole

    inacabvel do dilogo polifnico (1979/2010, p. 388).

    9 Para Bakhtin, nossos atos so nicos. No h um libi, um ser divino que esteja por trs de cada

    atitude humana. Cada um de ns responsvel e, por isso, chamado a responder eticamente pelos seus atos, sem libi, sem proteo (GEGe, 2009, p. 76).

  • 32

    CAPTULO 2

    CONSIDERAES ACERCA DE FUNDAMENTOS FILOSFICOS PARA A

    QUMICA E O SEU ENSINO

    O lugar da filosofia. Ela comea onde termina a cientificidade exata e comea a heterocientificidade. Pode ser definida como metalinguagem de todas as cincias (e de todas as modalidades de conhecimento e conscincia).

    Mikhail Bakhtin (2010:400)

    Assimilando a epgrafe de Bakhtin, talvez, encontramos abertura para problematizar

    sobre o lugar da Filosofia da Qumica. Neste captulo, apontamos algumas

    consideraes referentes ao reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica

    s leis fundamentais da Fsica. Refletimos sobre a questo epistemolgica da

    Qumica, os nveis de compreenso da natureza dessa cincia: macroscpico,

    microscpico e simblico/representacional. Balizados na problematizao do mundo

    objetivo da cincia como mundo autnomo, mas no separado do mundo da vida,

    em Bakhtin e Husserl, problematizamos a propsito da autonomia ontolgica da

    Qumica. E, ainda, sob a tica responsiva de Bakhtin, assinalamos a respeito da

    dimenso axiolgica na aplicabilidade do conhecimento qumico e de seus produtos.

    Ribeiro (2008), em seu artigo Filosofia e Qumica: Miscveis Quais as implicaes

    da Filosofia da Qumica para o Ensino de Qumica?, faz referncia a diversos

    trabalhos de Schummer que evidenciam a necessidade da Filosofia da Qumica na

    pesquisa em Qumica e em Educao Qumica (p. 4). O autor discute, tambm, o

    reducionismo das questes filosficas da Fsica recolocado na Qumica. Segundo

    Ribeiro, dentre os principais problemas discutidos pela Filosofia da Qumica, desde o

    surgimento do An International Journal for the Philosophy of Chemistry (1995),

    esto a autonomia da Qumica e sua reduo Fsica (p. 5).

    Buscamos o artigo The philosophy of chemistry de Schummer, 2003, para entender

    um pouco mais sobre a crtica ao reducionismo da Qumica Fsica e, tambm,

    Filosofia da Cincia, direcionada ao enfoque da Mecnica Quntica (Filosofia geral).

    De acordo com o autor, esta crtica diz respeito a uma necessidade de investigaes

  • 33

    histricas e filosficas para desenvolver uma Filosofia especfica da Qumica. Logo,

    os conceitos da Filosofia tradicional da Cincia precisam ser revisados antes de

    qualquer aplicao Qumica. Schummer argumenta que o interesse de estudos na

    Qumica, que tem se concentrado em mtodos prticos (experimentao e

    instrumentao) e em mtodos cognitivos (linguagem qumica, construes de

    modelos e representaes), ainda so de enfoque classificatrio.

    Em 2005, Labarca em seu texto La filosofia de la Qumica en la filosofia de la

    Ciencia Comtempornea traz uma concluso importante a respeito do lugar da

    Filosofia na Qumica:

    A partir do senso comum normalmente se pensa que a filosofia e a qumica so disciplinas completamente alheias entre si. Por outro lado, em geral os prprios qumicos consideram ftil o aporte da filosofia para o que eles consideram como problemas especficos que requerem solues especficas. No entanto, esta perspectiva limita fortemente seu prprio trabalho cientfico. O mundo qumico muito mais que refletir acerca de snteses de substncias, instrumentos, equaes, experimentao e informtica. A qumica, como qualquer disciplina cientfica, tem sua complexidade e suas prprias peculiaridades que a caracterizam como tal. A introduo da filosofia na qumica proporciona uma ferramenta de anlise til tanto aos qumicos como aos educadores da qumica. Felizmente, durante os ltimos anos iniciou-se uma superao dos obstculos que impediam a reflexo filosfica acerca da qumica: o crescente interesse dos filsofos da cincia fez com que a filosofia da qumica adquirisse forte momento, sendo a subdisciplina que mais cresce dentro da filosofia da cincia contempornea (p. 167).

    A partir dos escritos de Labarca possvel pensar a importncia da fundamentao

    filosfica em Qumica. Esta fundamentao contribui tanto para compreender

    melhor e mais amplamente uma cincia natural quanto para compreenso geral do

    pensamento cientfico (p. 167). De acordo com o autor, uma fundamentao

    filosfica pode tambm produzir efeitos positivos sobre a educao atravs de uma

    concepo mais abrangente e profunda (p. 167) da Qumica.

    2.1. O reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica

    No artigo, Es posible una filosofia de la qumica?, de Anna Estany (2011)

    encontramos uma anlise sobre as principais razes da falta de interesse pela

    Qumica por parte da filosofia da cincia e o apontamento de uma srie de

    desafios que a filosofia da qumica deve enfrentar no sculo XXI. Diante do

    esquecimento da Qumica pela Filosofia da Cincia, a autora distingue as razes

  • 34

    que se referem a questes epistemolgicas, ontolgicas e metodolgicas

    relacionadas com a qumica aplicada. A propsito do reducionismo, a autora refere-

    se a dois grupos de pesquisadores: um partidrio do reducionismo do qual se tem

    frente H. Eyring, J. Walter e E. Kimball e outro que conta com os especialistas G.

    K. Vemulapally e Byerly que consideram que devemos distinguir o reducionismo

    epistemolgico do ontolgico e que refutar o primeiro suficiente para garantir a

    autonomia da qumica (p. 52). Neste segundo grupo, a autora inclui alguns filsofos

    como Olmpia Lombardi da Universidade de Buenos Aires e Martn Labarca da

    Universidade Nacional de Quilmes que vo mais alm, ou seja, refutam tambm o

    reducionismo ontolgico e defendem o pluralismo ontolgico em qumica (p. 52-53).

    Quanto aos desafios da Filosofia da Qumica, Estany enumera cinco:

    Em primeiro lugar, dado o desenvolvimento da qumica terica, se espera uma consequente reflexo filosfica da qumica, sem a restrio do reducionismo. [...] Em segundo, a qumica proporciona parte da base terica de concepes de cincias como a farmacologia, a medicina e as cincias ambientais, entre outras. Uma reflexo filosfica deve considerar isto. Em terceiro lugar, indiscutvel que a filosofia da cincia experimental tem constitudo quadro para a filosofia da qumica, j que pode fornecer estudos, histricos e atuais, nos quais os experimentos desempenham uma funo relevante. Um quarto desafio consiste em melhorar a visibilidade da qumica naqueles campos disciplinares de que faz parte. E, por ltimo, tendo em conta a importncia da qumica para a indstria, resulta imprescindivelmente uma reflexo tica sobre suas aplicaes. Isso poderia resultar-se num campo filosfico denominado quimiotica, da mesma forma que j existe a biotica (2011, p. 53).

    Mikhail Bakhtin em sua obra Para uma Filosofia do Ato Responsvel apresenta uma

    tese que diz respeito a no separao dos atos que realizamos de seus produtos.

    Tomando os estudos de Amorim (2003), entendemos que a dimenso tica em

    Bakhtin est vinculada responsabilidade. No tpico 2.4 considerando o fazer

    Qumica, bem como seu ensino, como ato que realizamos, faremos uma breve

    problematizao referente a esta dimenso axiolgica em Qumica fundamentada na

    tese de Bakhtin.

    Voltando ao reducionismo, Labarca (2005) confirma que, embora os argumentos

    particulares diferem entre si, h uma concordncia de vrios autores em considerar

    que as descries e os conceitos qumicos no podem derivar-se dos conceitos e

    das leis da fsica tal como supem o reducionismo epistemolgico (p. 161). Por

    outro lado, nos diz que os filsofos da qumica no duvidam acerca da reduo

  • 35

    ontolgica: quando se analisa, com profundidade, as entidades qumicas no so

    mais que entidades fsicas (p. 162).

    Olmpia Lombardi e Martn Labarca (2006) argumentam que a noo de

    dependncia ontolgica filosoficamente clara e significativa, contudo, esses

    autores referem-se s ontologias descritas por teorias no relacionadas com a

    reduo epistemolgica para defender o pluralismo ontolgico. Dependncia

    ontolgica uma relao assimtrica entre ontologias. De acordo com o pluralismo

    ontolgico, defendido por Lombardi e Labarca, tem-se o contrrio dessa relao

    assimtrica, ontologias so simetricamente relacionadas: mesmo que

    ontologicamente ligadas, nenhuma delas depende das outras para existir (p. 86).

    Os autores, ainda, nos dizem: obviamente as concluses fundamentadas em

    consideraes epistemolgicas no provam a tese ontolgica, mas pensamos que

    elas oferecem bons argumentos para defender o pluralismo ontolgico (p. 88).

    A propsito do impacto das reflexes filosficas na educao Qumica, Labarca

    (2005) pondera10:

    Em geral, a qumica continua sendo considerada pelos estudantes como uma disciplina difcil. Isso compreensvel na medida em que a aprendizagem da qumica exige operar e inter-relacionar trs nveis diferentes de pensamento: a) o nvel macroscpico (tangvel), b) o nvel microscpico (atmico e molecular), e c) o nvel simblico e matemtico (p. 165-166).

    No tpico a seguir, abordaremos estes trs nveis de compreenso epistemolgica

    da Qumica.

    2.2. Os nveis de compreenso da natureza da Qumica

    Johnstone (1982) escreveu um artigo Macro- and microchemistry com o objetivo de

    apresentar um trabalho sobre Qumica para todos. De acordo com seu

    entendimento, qumicos acadmicos como ele veem a Qumica pelo menos em trs

    nveis: o nvel macroscpico (descritivo e funcional) em que podemos ver os

    materiais, manuse-los e descrever suas propriedades como densidade,

    10

    A referncia dos nveis macroscpico, microscpico e simblico feita a Johnstone, 2000.

  • 36

    inflamabilidade, cor e assim por diante; o nvel simblico em que ns tentamos

    representar as substncias qumicas por frmulas e suas transformaes por meio

    de equaes; e o nvel microscpico (atmico e molecular, explanatrio) em que ns

    tentamos explicar o comportamento das substncias qumicas, recorrendo s teorias

    dos tomos, molculas, ons, estruturas, ismeros, polmeros etc. O autor argumenta

    que uma Qumica descritiva e funcional seria suficiente numa educao para

    todos, podendo ou no ser associada ao nvel de representao. Ele ainda

    considera que o nvel explicativo no seria necessrio para a educao dos

    cidados em geral. Ao concluir seu artigo, Johnstone pondera que a termodinmica

    clssica mostrou-se eficaz quando no havia necessidade de recorrer ao nvel

    explicativo (microscpico). Ele esclarece que a termodinmica estatstica [que

    desenvolve relaes entre grandezas macroscpicas e diretamente observveis com

    conceitos e grandezas microscpicas] utiliza os trs nveis, possibilitando novas

    perspectivas (1982, p. 379).

    Outro artigo de Johnstone (1993) The Development of Chemistry Teaching traz os

    trs nveis: macroscpico, microscpico e representacional dispostos nos vrtices de

    um tringulo.

    Figura 2. The new chemistry has three basic components: macrochemistry,

    submicrochemistry, and representational chemistry.

    Macro

    Sub Micro Representation

    Fonte: JOHNSTONE, 1993, p. 703.

  • 37

    Nesse estudo sobre desenvolvimento do ensino de Qumica, Johnstone considera

    que, durante muitos anos, o ensino de Qumica centrou interesse apenas nos

    vrtices Macro e Representacional. J o vrtice Sub Micro, a parte estrutural da

    Qumica, esteve muitas vezes ausente e, por isso, o meio do tringulo nunca foi

    explorado (p. 703). Em outras palavras, o ensino de Qumica enfrenta dificuldades

    de chegar ao nvel das inter-relaes entre o Macro, o Sub Micro e o

    Representacional.

    No nosso entendimento, esse tringulo com os trs nveis de compreenso da

    Qumica proposto por Johnstone (1982, 1993) possui uma dimenso epistemolgica

    que pode contribuir para o conhecimento da dimenso ontolgica da Qumica, seu

    mundo autnomo, porm no isolado do mundo real. Neste tpico, discutiremos a

    respeito da dimenso epistemolgica desse trip e no tpico seguinte abordaremos

    consideraes a propsito do mundo objetivo da Qumica.

    A discusso do trip macroscpico, microscpico e simblico tornou-se relevante em

    nosso trabalho por corresponder ao tringulo das formas de abordagem do

    conhecimento qumico: fenomenolgico, terico e representacional que o cerne do

    nosso estudo. Esse tringulo encontra-se, de forma re-sigificada, na proposta

    curricular de Qumica de Minas Gerais.

    Johnstone prope que o conhecimento qumico seja classificado em trs nveis: macroscpico, microscpico e representacional. Na concepo que adotamos no texto elaborado para a Proposta Curricular de Qumica do Estado de Minas Gerais (Mortimer, Romanelli & Machado, 1998) redimensionamos nosso entendimento em relao a esses aspectos do conhecimento, denominando-os: fenomenolgico, terico e representacional (MACHADO, 2004, p. 162).

    Assim, de acordo com Machado (2004), o aspecto fenomenolgico do conhecimento

    qumico inclui a dimenso macroscpica considerada por Johnstone. Esta

    dimenso constituda por tpicos do conhecimento passveis de visualizao

    concreta, bem como de anlise ou determinao das propriedades dos materiais e

    de suas transformaes. (p. 163-164). No nvel microscpico para Johnstone [...]

    encontram-se informaes de natureza atmico-molecular, envolvendo, portanto,

    explicaes baseadas em termos abstratos como tomo, molcula, on, eltron (p.

    167). Tal nvel recebe significao mais ampliada na Proposta Curricular de Minas

  • 38

    Gerais: neste nvel, estariam includos os aspectos tericos do conhecimento

    qumico (p. 168). Finalmente, o nvel representacional de Johnstone, que trata dos

    componentes simblicos, compreende informaes inerentes linguagem qumica,

    como frmulas e equaes qumicas (MACHADO, 2004, p. 169).

    Lombardi e Caballero (2007) destacam o carter representacional presente nos trs

    nveis e ainda detalha o nvel simblico em pelo menos dois subsistemas:

    Explicar a matria e suas transformaes impe restries linguagem qumica, as quais devem permitir representar a matria e suas mudanas em trs nveis: macroscpico, microscpico e simblico; este ltimo constitudo por dois diferentes sistemas de representaes: a) um sistema de smbolos lingustico-matemtico expresso como frmulas e equaes, e b) um sistema de diagramas em que os tomos se comparam a figuras geomtricas como crculos de diferentes tamanhos e cores, que permite descrever as substncias e as reaes, ambos sistemas permitem descrever a matria e suas transformaes em termos qualitativos e quantitativos (p. 391).

    Ribeiro (2008) discute a necessidade de modelos como recurso

    didtico/metodolgico para explicar a relao de supervenincia [macro e micro]

    dos diferentes nveis de descrio e anlise da Qumica (p. 3). Contudo, o autor

    alerta para possveis problemas de aprendizagem em Qumica ao referenciar a

    confuso de modelos 11:

    esta confuso de modelos gera outra possvel fonte de problemas de aprendizagem, os lingusticos: a camada de eltron entendida s vezes como uma proteo; A reao de neutralizao entendida como atingir uma soluo neutra. Esta confuso de modelos ofusca tambm o problema central nas explicaes Qumicas: A regra de octeto generalizada para racionalizar a ligao qumica, ofuscando as interaes eltricas; a explicao da eletronegatividade explicada por esquemas ofuscando sua natureza eltrica (p. 3).

    Dorothy Gabel (1999), em seu artigo Improving Teaching and Learning through

    Chemistry Education Research: A Look to the Future, tambm considera os trs

    nveis: macroscpico, microscpico e simblico como nveis de representao da

    matria. A autora diz que embora seja certo, como indicado por Johnstone, que no

    necessrio sempre vincular os trs nveis no ensino, importante que os

    professores compreendam a relao dessa trade para lecionar Qumica aos seus

    alunos. Segundo Gabel, no a existncia dos trs nveis de representao da

    matria a principal barreira para compreenso conceitual em Qumica, mas o fato

    11

    De acordo com Ribeiro (2008) a confuso de modelos uma noo estudada por Car em 1984.

  • 39

    que o ensino de qumica ocorre predominantemente no nvel mais abstrato, no nvel

    simblico (p. 549). De acordo com a autora, uma anlise superficial de qualquer

    livro introdutrio de qumica corrobora essa afirmao. Gabel destaca o quo

    complexo para os alunos a conjugao desses trs nveis de representao da

    matria em Qumica; alm do mais, os smbolos usados pelos qumicos podem ser

    interpretados de mais de uma maneira (p. 549). Pra exemplificar, a autora cita o

    smbolo do elemento qumico ferro, Fe, que representa tanto um tomo de ferro

    quanto uma barra de ferro. Para Gabel, os alunos no conseguem integrar os

    nveis de representao, levando-os a uma viso fragmentada da qumica com

    muitos enigmas, que parecem no ser articulveis, devido s vrias possibilidades

    de interpretao desses nveis de representao e, ainda, porque os professores

    lecionam aulas de Qumica sem saber articular um nvel ao outro (p. 549).

    Gabel (1998) aponta, tambm, que alm da complexidade do ensino e

    aprendizagem da qumica ocorrer pelo fato das observaes serem feitas no nvel

    macroscpico, enquanto as explicaes e teorias que os alunos devem entender

    dependem do nvel atmico e molecular e que, por sua vez, representado

    simbolicamente, no podemos desconsiderar que alguns equvocos e mesmo

    algumas concepes errneas podem decorrer de um aprendizado em contextos

    limitados e generalizados para alm destes mesmos contextos. Segundo Gabel os

    livros didticos apresentam contextos limitados que carregam a pretenso de

    generalizar determinadas transformaes qumicas que nem sempre correspondem

    ao que ocorre no cotidiano. Estas generalizaes podem ser encontradas em alguns

    livros didticos que contribuem para a aquisio de concepes errneas. Gabel

    alerta que no de admirar que, mesmo professores de qumica podem ser uma

    das causas de equvocos (p. 233-234). A autora explica que certos docentes no

    estimulam e nem realizam crticas a essas generalizaes errneas no ensino-

    aprendizado de Qumica.

    Nessa mesma linha da discusso proposta pela Gabel, acreditamos na necessidade

    de definir e integrar os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos,

    teorias e linguagem. Esta abordagem epistemolgica pode contribuir para o

    conhecimento qumico mais significativo e dinmico, ou seja, menos mecnico, no

  • 40

    conduzido memorizao de curto prazo que pode levar os educandos a confuses

    entre o real e o representacional. Machado (2004) fala da fundamental necessidade

    das inter-relaes entre linguagem e mundo dos fenmenos e teorias. Esta relao

    mundo linguagem pensamento uma questo epistemolgica bsica na

    construo do conhecimento nas aulas de Qumica (p. 171).

    Kozma et al (1997), no artigo: Use of Simultaneous-Synchronized Macroscopic,

    Microscopic and Learning of Chemical concepts, defendem a articulao desses trs

    nveis da Qumica e sua associao com o cotidiano dos alunos para melhorar a

    compreenso conceitual no ensino-aprendizagem de Qumica. O artigo trata de um

    projeto baseado em um software que prev articulaes explcitas entre os trs

    nveis e possibilita a representao simultnea do nvel microscpico e do nvel

    macroscpico. Alm disso, esse projeto ajuda os alunos a entenderem, atravs de

    modelos, como os especialistas acreditam ser a Qumica microscopicamente. Os

    autores apresentam um software denominado 4M: CHEM, utilizando computador

    que permite a diviso da tela em quatro janelas. Deste modo, possvel mostrar, ao

    mesmo tempo, vdeos de experincias reais, animaes em nvel molecular destas

    experincias, e as representaes simblicas como equaes, grficos ou

    diagramas das propriedades ou estruturas macroscpicas. As quatro janelas podem

    ser mostradas individualmente ou em qualquer combinao, possibilitando vises

    sincronizadas dos fenmenos qumicos nestas aes combinadas entre janelas. O

    processo de combinao das janelas pode ser pausado e reiniciado a fim de auxiliar

    as discusses de articulaes entre o macroscpico, o microscpico e o

    simblico/representacional.

    A respeito de dificuldades em desenvolver compreenso conceitual em Qumica,

    Kozma et al (1997) enumeram trs possveis causas:12

    Primeira, o ensino de Qumica pode simplesmente enfatizar o nvel simblico e resoluo de exerccios em detrimento dos fenmenos e do nvel de partculas. Segunda, se o ensino de Qumica ocorre nos nveis macroscpico, microscpico e simblico, conexes insuficientes so feitas entre os trs nveis e a informao permanece compartimentada na memria de longo prazo dos estudantes. Terceira, estudantes podem no entender mesmo com instrues em todos os trs nveis que

    12

    Consta no artigo que as trs causas foram atribudas por GABEL, em 1993.

  • 41

    enfatizem as inter-relaes, se os fenmenos considerados no forem relacionados ao cotidiano dos estudantes (p. 330).

    De acordo com os autores, a proposta de usar tecnologia computacional (como

    simulaes de experincias) no requer a eliminao de demonstraes e

    experincias realizadas na sala de aula, mesmo se considerando a diminuio de

    custos, problemas de segurana e o extenso tempo de preparao e limpeza. O uso

    de tecnologia ajuda os alunos a visualizarem fenmenos qumicos que ocorrem no

    cotidiano e suas relaes microscpicas, melhorando a compreenso de conceitos

    qumicos.

    Segundo Vicente Talanquer (2011) no artigo Macro, submicro, and Symbolic: The

    many faces of the Chemistry triplet, a ideia de que o conhecimento qumico pode

    ser representado de trs maneiras principais: macro, submicro e simblica (trip da

    qumica) tornou-se paradigmtica em qumica e em educao cientfica. Esta ideia

    vem sendo utilizada tanto como base de referenciais tericos que orientam

    pesquisas em educao qumica quanto como ideia central em diversos projetos

    curriculares (p. 179).

    Embora, nosso contato com a ideia de integrao dos aspectos constituintes do

    conhecimento qumico, fenmenos, teorias e linguagem, foi propcio pelo texto da

    Proposta Curricular de Qumica de Minas Gerais (1998, 2004, 2005 e 2007),

    ressaltamos que nosso estudo interessa por extrapolar os limites desse documento.

    Percebemos que esta ideia trata-se de uma questo epistemolgica de grande

    abrangncia e repercusso nacional e internacional. Tomando o artigo de Johnstone

    de 1982 e o artigo de Talanquer de 2011, podemos enfatizar que esta questo vem

    sendo discutida por trs dcadas num contexto de melhoramentos na compreenso

    da natureza do conhecimento qumico. Desse modo, nosso estudo encontra-se num

    patamar de reflexo atual e relevante.

    2.3. A propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica

    Os estudos de SCHUMMER, 2003; LABARCA, 2005; LOMBARDI e LABARCA,

    2006; RIBEIRO 2008 e ESTANY, 2011, entre outros, envolvendo Filosofia da

    Qumica, so consideravelmente recentes. Devido a isto no nos propusemos a

  • 42

    defender nenhuma posio, pelo contrrio apresentamos apenas algumas

    consideraes destes pesquisadores. Contudo, pensamos na convenincia de

    refletir a propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica. Para tal reflexo,

    buscamos a problematizao referente ciso entre mundo da cincia e mundo

    vivido, proposta tanto por Bakhtin, nosso referencial terico, como por Husserl nos

    seus estudos de fenomenologia.

    Mikhail Bakhtin, em sua obra Para uma Filosofia do Ato Responsvel, preconiza que

    o mundo como o contedo do pensamento cientfico um mundo particular,

    autnomo, mas no separado, e sim integrado ao evento singular e nico do existir

    atravs de uma conscincia responsvel em um ato-ao real (1920-24/2010, p.

    58). Em Husserl encontramos a recomendao: voltar s coisas mesmas, fazer um

    retorno ao mundo-da-vida (Lebenswelt) (OLIVEIRA, 2006, p. 148). No entanto, tal

    recomendao no deve ser entendida como algo da ordem do concreto, o que

    poderia conduzir a um empirismo ingnuo. Assim, a fenomenologia no consiste em

    abdicar da objetividade da cincia, mas reatar a cincia ao mundo vivido.

    Ao invs de anular o saber cientfico, o retorno ao mundo-da-vida leva-nos a consider-lo no como um saber dogmtico que quer encarcerar o mundo em suas representaes rgidas e fechadas, mas como se constituindo, a partir do mundo percebido, sempre como um saber aproximado, aberto (OLIVEIRA, 2006, p. 149).

    A vizinhana, que apontamos entre Bakhtin e Husserl, pode ser encontrada na nota

    16 da obra Para Uma Filosofia do Ato13, uma reflexo proposta por S. Averintsev:

    a sequncia inteira do pensamento de Bakhtin como um todo est essencialmente prxima da abordagem de Husserl. A fenomenologia de Husserl orienta-se para a unidade indivisvel da experincia vivida (Erlebnis) e a inteno contida nela. Os conceitos chaves de Bakhtin (evento, eventicidade, uma ao realizada: postupok) so similares nesse aspecto ao Erlebnis de Husserl (1993, p. 97).

    E, tambm, no prefcio do tradutor Vadim Liapunov da edio americana:

    O resultado ltimo da separao entre o contedo de um ato e a sua realizao-experimentao nica que ns nos encontramos divididos entre dois mundos no comunicantes e mutuamente impenetrveis: o mundo da cultura (no qual os atos de nossa atividade so objetivados) e o mundo da vida (no qual ns realmente criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos isto , o mundo no qual os atos de nossa atividade so realmente realizados uma vez e uma nica vez). (o

    13

    Nossas citaes da nota 16 e do prefcio do tradutor da edio americana so referentes verso da obra Para uma Filosofia do Ato traduzida para fins didtico e acadmico.

  • 43

    leitor pode notar aqui a antecipao de Bakhtin do conceito de Husserl do Lebenswelt) (1993, p. 13).

    Lombardi e Caballero (2007) consideram que a qumica como cincia experimental

    constri seu discurso a partir da caracterizao de uma realidade concreta, as

    substncias e suas transformaes, o que exige falar de diferenas e interaes (p.

    389). Assim, podemos pensar o mundo da Qumica a partir dos trs nveis:

    macroscpico, microscpico e representacional, porm entendendo as diferenas

    entre o real e o simblico e as interaes necessrias para a compreenso dessa

    cincia que pode possibilitar importantes conhecimentos no nosso mundo vivido.

    O mundo como objeto de cognio terica no deve se fazer passar como o mundo inteiro, pois ele apenas um constituinte do mundo real. A cognio terica no a ltima cognio; ela est integrada no contexto nico, individual do pensamento real como evento (AMORIM, 2003, p. 17).

    Ainda na perspectiva da experincia vivida, Pierre Laszlo afirma que o homem o

    ser que encontra sentido no mundo e que para compreend-lo utiliza cdigos e

    ressalta analogias (LASZLO, 1995, p. 21). Mais adiante, na mesma obra, As

    palavras das Coisas ou a linguagem da Qumica, Laszlo comenta:

    A qumica construda sobre ambivalncias, a comear por aquela do esttico e do dinmico: como posso dar uma representao unitria das molculas, sob o aspecto de uma frmula ou de um modelo, uma vez que preciso conceb-las quer quando em repouso, imveis, e por assim dizer encravadas, quer nas suas efuses de reatividade, assim que so estimuladas por outra molcula ou pela ao de uma radiao? (p. 83, grifo do autor).

    Uma vez problematizada a ambivalncia esttico-dinmica, possvel salientar que

    o ensino de Qumica centralizado em memorizaes de smbolos, frmulas e regras

    de nomenclaturas tende a separar o mundo do conhecimento e o mundo que

    habitamos, chegando a transformar cdigos descritivos em representao

    inquestionvel do real.

    A linguagem qumica no importante apenas porque vai registrar o fenmeno de uma forma mais concisa e simplificada, mas que ao registrar o fenmeno dessa forma vai configurar os limites e as possibilidades de um certo lugar de observao desse fenmeno (MACHADO, 2004,p. 172).

    A preocupao com a separao da Qumica e do seu Ensino de nosso mundo

    vivido, tanto no sentido mais restrito apresentado por Lombardi e Caballero, Laszlo e

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    Machado, quanto naquele mais amplo das preocupaes de Bakhtin e da

    Fenomenologia, pode ser identificada nos Parmetros Curriculares Nacionais do

    Ensino Mdio PCNEM:

    no Brasil, a abordagem da Qumica escolar continua praticamente a mesma. Embora s vezes maquiada com uma aparncia de modernidade, a essncia permanece a mesma, priorizando as informaes desligadas da realidade vivida pelos alunos e pelos professores (BRASIL, 1999, p. 239, grifos nossos).

    Oliveira (2009) chama ateno para uma concepo do saber cientfico construdo e

    se construindo que nos permite refletir a preocupao descrita no PCNEM (1999) a

    respeito do ensino de Qumica que vem priorizando as informaes desligadas da

    realidade vivida.

    No se trata de negar o olhar desencarnado, mas de despert-lo do sonho de um conhecimento soberano e de uma objetividade absoluta; de contest-lo em sua viso de mundo, quando se esquece de sua origem secundria e construtivista, para fechar-se sobre si mesmo e colocar-se como modelo absoluto da realidade ou viso universal de mundo. O que, na perspectiva do olhar encarnado no podemos admitir na cincia que ela tenha a exclusividade do verdadeiro. No se trata de ser contra a cincia, de neg-la ou mesmo de desacreditar o saber cientfico (OLIVEIRA, 2009, p. 8).

    Entendendo a autonomia ontolgica da Qumica, ou seja, o mundo da Qumica, luz

    das contribuies bakhtiniana e fenomenolgica, parece possvel uma tentativa de

    interao entre a cincia (Qumica), seu fazer (seu Ensino, entre outros) e o mundo-

    da-vida. Todo fenmeno particular est imerso no elemento dos primrdios do ser

    (BAKHTIN, 1979/2010, p. 398). Como nos diz Labarca e Lombardi a noo de

    dependncia ontolgica filosoficamente clara e significativa, contudo num

    pluralismo ontolgico das cincias mesmo que ontologicamente ligadas, nenhuma

    delas depende das outras para existir (p. 86). Desse modo, o possvel pluralismo

    ontolgico das cincias: o mundo autnomo da Qumica, o mundo autnomo da

    Fsica e etc. so ontologicamente dependentes, ou melhor, no separados do

    mundo da vida.

    2.4. Reflexo sobre a dimenso axiolgica

    Uma vez problematizada as implicaes epistemolgicas e ontolgicas para a

    Qumica e seu ensino, julgamos necessrio refletir outra dimenso: a axiolgica.

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    Esta torna possvel discutir implicaes de natureza tico-moral14 nas prticas

    cientficas e educacionais. A revista Qumica Nova (2011) traz em seu Editorial uma

    discusso envolvendo Responsabilidade, tica e Progresso Social:

    A tica se constitui em um conjunto de valores morais que procuram orientar o comportamento dos seres humanos em toda as situaes. Desta forma, influencia a sociedade assim como influenciada pela prpria vivncia dos cidados. A responsabilidade e a tica caminham juntas, da mesma forma que o desenvolvimento das cincias e a tica (p. 1489).

    Sabemos que a Declarao Final das Naes Unidas para a educao, a Cincia e

    a Cultura Unesco de 1999 sobre Cincia para o sculo XXI: um novo compromisso

    trouxe consideraes que estabelecem relaes entre cincias e tica. Tais

    consideraes tm repercutido no meio acadmico. Estany (2011) ao considerar a

    importncia da qumica para a indstria, prope uma reflexo tica sobre suas

    aplicaes. A autora chega a enunciar a possibilidade de uma quimiotica (p. 53).

    Em Cachapuz e Praia (2005), encontramos a compreenso de CTS como um

    compromisso tico. Para estes autores, a relao Cincia-Tecnologia se d num

    contexto societal que indissocivel de um compromisso tico de sentido coletivo

    (p. 174). Eles percebem a

    trilogia CTS como um compromisso tico, que obriga a uma interveno social, marcada por um saber que prepara para uma cidadania responsvel e para a tomada de decises. A no termos em conta tal compromisso a Cincia pode tornar-se vtima do seu prprio desenvolvimento (p. 173).

    Nesse sentido da dimenso axiolgica prepusemos o estudo15: Articulao CTS no

    Ensino de Qumica sob a tica Responsiva de Mikhail Bakhtin, onde tratamos da

    articulao CTS, com nfase em Qumica, num compromisso tico entendido

    atravs da noo de ato responsvel de Bakhtin. Sua reflexo sobre a tecnologia

    divorciada da vida, proposta na obra Para uma Filosofia do Ato Resp