Disertacao Definitiva DAYSILANE 2012
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SO JOO DEL-REI UFSJ
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO
MESTRADO EM EDUCAO
DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA
APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE
INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DO CONHECIMENTO
QUMICO: FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM
So Joo del-Rei
2012
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DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA
APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE
INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DO CONHECIMENTO
QUMICO: FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao: Processos Socioeducativos e Prticas Escolares da Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Discursos e Produo de Saberes nas Prticas Educativas Orientador: Prof. Dr. Murilo Cruz Leal
So Joo del-Rei
Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ
2012
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DAYSILANE DAS MERCS FRADE SILVA
Apropriao por Docentes do Ensino Mdio da Ideia de Integrao dos Trs
Aspectos Constituintes do Conhecimento Qumico: Fenmenos, Teorias e
Linguagem
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao em Educao: Processos Socioeducativos e Prticas Escolares da Universidade Federal de So Joo del-Rei UFSJ, como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao. Linha de pesquisa: Discursos e Produo de Saberes nas Prticas Educativas
Banca examinadora constituda pelos professores:
Orientador: Prof. Dr. Murilo Cruz Leal
Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ)
Prof. Dr. Orlando Gomes de Aguiar Jnior
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Prof. Dr. Paulo Csar Pinheiro
Universidade Federal de So Joo del-Rei (UFSJ)
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DEDICATRIA:
Dedico esta pesquisa ao meu esposo Neilson, que
compartilhou comigo cada angstia e cada alegria dessa
caminhada sempre acreditando na possibilidade de uma vitria.
Dedico ao meu filho Thales, que aprendeu desde cedo o
sentido discursivo dos verbos: estudar e pesquisar. Em meio a
tantos estudos, o computador, que s vezes ele queria desligar
para a mame dar-lhe mais ateno, proporcionou momentos
de afeto durante a descoberta do mundo virtual das cantigas e
dos desenhos infantis.
Dedico tambm aos meus pais:
Ao meu pai Joo Frade, por seu exemplo que o faz eterno em
meu corao.
minha me Neusa de Oliveira, pela explicao do
attachement materno que a fez receber-me em sua casa
como nos bons tempos de colgio.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, toda honra e toda glria!
Nossa Senhora das Mercs, pela graa da minha vida.
minha famlia: esposo, filho, me, irmos, sobrinhos (as), sogra e cunhados (as)
pela compreenso e pela forte torcida para conquista do ttulo de mestre.
Ao meu orientador Murilo Cruz Leal, professor de admirvel concepo educacional,
pela sua dedicao, ateno e parceria imensurveis.
Universidade Federal de So Joo del-Rei, UFSJ, por sua excelncia na minha
formao: Graduao em Qumica e Mestrado em Educao.
SEE-MG por garantir meu afastamento para cursar o Mestrado.
CAPES por conceder-me bolsa.
Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG, pela parceria.
Aos professores de Qumica do Ensino Mdio, colaboradores da parte emprica
deste trabalho pelo compromisso com a Educao.
Ao Prof. Dr. Paulo Csar Pinheiro por sua singularidade em minha formao
acadmica (Graduao e Qualificao de Mestrado).
Ao Prof. Dr. Orlando Aguiar pela sua ateno e sugesto de fontes bibliogrficas
sobre Anlise de Discurso.
Ao prof. Dr. cio Portes, ao Prof. Dr. Wanderley Oliveira e Profa. Dra. Christianni
Morais pelas aulas interativo-discursivas, durante o Mestrado em Educao na
UFSJ.
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Ao Prof. Dr. Antnio Batista (Dute) e ao Prof. Dr. Claudio Nogueira pelas aulas de
Sociologia de Pierre Bourdieu na UFMG.
s secretrias da PPEDU Roberta, Simone e Ludmila pelo profissionalismo.
Silvana da SRE/Metropolitana B e Sirlene da DCRH/SEE por esclarecer sobre o
pedido de Afastamento para cursar Mestrado.
Ao Prof. Dr. Eduardo Mortimer por sugerir leituras e disciplina a ser cursada na
UFMG, por disponibilizar fontes bibliogrficas e por participar de minha Qualificao.
Profa. Dra. Nilma Soares por sua simpatia em orientar-me durante o Estgio de
Docncia realizado na UFMG.
Profa. Dra. Andrea Machado por disponibilizar materiais para a parte emprica
desta pesquisa.
Profa. Dra. Penha Silva e Profa. Dra. Rosaria Justi da UFMG pelo apoio
oferecido.
Ao Prof. Dr. Paulo Porto da USP pela indicao de literatura sobre Filosofia da
Qumica.
Aos bibliotecrios da FAE/UFMG, Karllos Oliveira e Marli Lopes, pelo empenho em
conseguir artigos internacionais.
direo, professores, alunos e demais funcionrios da Escola Estadual Deputado
Renato Azeredo que torceram pelo xito dessa pesquisa de Mestrado.
Aos colegas do mestrado pelos momentos em que s ns nos entendamos.
Ao Colgio So Judas Tadeu, em especial Profa. Maria e Irm Simone
(Irmzinha) pelo carinho e cuidados dedicados ao meu filho Thales.
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Tenho medo de escrever. to perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no
que est oculto e o mundo no est tona, est oculto em suas razes
submersas em profundidade do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio.
Neste vazio que existo intuitivamente. Mas um vazio terrivelmente perigoso:
dele arranco sangue. Sou um escritor que tem medo das palavras: as palavras
escondem outras quais? talvez as diga. Escrever uma pedra lanada no poo
fundo.
Clarice Lispector
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RESUMO
Este trabalho apresenta resultados da pesquisa de mestrado sobre a apropriao,
por docentes do Ensino Mdio da rede pblica estadual de Minas Gerais, dos trs
aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem,
em suas interaes, tanto na estruturao da Qumica quanto na organizao de
seu ensino. A metodologia utilizada a anlise de discurso embasada na filosofia da
linguagem de Mikhail Bakhtin, sobretudo nos conceitos de apropriao, polifonia ou
multiplicidade de vozes sociais, alteridade, dialogismo e compreenso. Estes
conceitos bakhtinianos no so estanques, pelo contrrio so imbricados uns nos
outros e nos oferecem fundamentao terica para leitura dos enunciados dos
professores e identificao de sentidos produzidos. Resgatamos a correspondncia
da trade fenmenos, teorias e linguagem aos nveis de compreenso da natureza
da Qumica macroscpico, microscpico e representacional, com o propsito de
fortalecer a dimenso epistemolgica deste tringulo. Assim, podemos mostrar que
a discusso destes aspectos da Qumica se d alm da Proposta Curricular de
Qumica de Minas Gerais, apresentada inicialmente em 1998 e vrias vezes
reeditada, e que sua compreenso torna-se relevante para o ensino desta cincia.
Numa perspectiva dialgica, constatamos que a apropriao da ideia de integrar o
fenomenolgico, o terico e o representacional ocorre num clima de tenso entre
compreenses, convices e condies de trabalho. O processo de colocao em
prtica, de maneira integral e contnua, de um ensino de Qumica fundamentado
nessa trilogia percebido como desafio complexo.
Palavras chave: apropriao, docentes, fenmenos, teorias, linguagem qumica
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ABSTRACT
This investigation presents results of Masters research on the appropriation by
secondary school teachers of the public network Minas Gerais state of the three
constituents aspects of chemical knowledge: phenomena, theories and language, in
their interactions, both in the structuring of Chemistry, as in organization his teaching.
The methodology used is discourse analysis based on the philosophy of language of
Mikhail Bakhtin, mainly in concepts of appropriation, of polyphony or multiplicity of
social voices, of otherness, of dialogism and of understanding. These bakhtinian
concepts are not watertight, rather they are imbricate each other and us offer
fundamentation theoretical for reading the enunciates of the teachers and
identification of the produced meanings. We rescued the correspondence of the triad
phenomena, theories and language to levels of understanding of the nature of
chemistry macroscopic, microscopic and representational, in order to strengthen the
epistemological dimension of the triangle. Thus, we can show that the discussion of
these aspects of chemistry takes place beyond the Chemistry Curriculum Proposal of
Minas Gerais, submitted in 1998 and reissued several times, and that his
understandings is relevant to the teaching of the idea of integrating the
phenomenological, the theoretical and the representational occurs a context of
tension between understandings, beliefs and working conditions. The process of
collocation into practice, of manner in fully and continuous, of a chemistry teaching
based on this trilogy is perceived as complex challenge.
Key words: appropriation, teachers, phenomena, theories, chemical language
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LISTA DE FIGURAS E QUADROS
FIGURA 1 - Os trs aspectos do conhecimento qumico ..........................................20
FIGURA 2 - The new chemistry has three basic components: macrochemistry,
submicrochemistry, and representational chemistry ..36
FIGURA 3 - Focos Conceituais .................................................................................50
FIGURA 4 - Formas de Abordagem ..........................................................................51
QUADRO 1 - Perspectiva Estruturalista e Perspectiva Bakhtiniana ........................29
QUADRO 2 - Grupos de professores entrevistados .................................................71
QUADRO 3 - Marcadores e sinais utilizados nas transcries de
Conversaes .........................................................................................................143
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CBC Contedo Bsico Comum
CRV Centro de Referncia Virtual do Professor
CTS Cincia, Tecnologia e Sociedade
CTSA Cincia, Tecnologia, Sociedade e Ambiente
DCRH Diretoria de Capacitao de Recursos Humanos
ENEM Exame Nacional do Ensino Mdio
GDP Grupos de Desenvolvimento Profissional
IMERSO Educao Continuada de Professores: Estudos dos Contedos
Bsicos Comuns da SEE-MG
MEC Ministrio de Educao e Cultura
PCN Parmetros Curriculares Nacionais
PDP Programa de Desenvolvimento Profissional
PROMDIO Programa-Piloto de Inovao Curricular e de Capacitao
Docente para o Ensino Mdio
REE-MG Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais
SEE-MG Secretaria de Estado de Educao de Minas Gerais
SRE Superintendncia Regional de Ensino
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SindUTE Sindicato nico dos Trabalhadores em Educao de Minas Gerais
UNESCO Organizao das Naes Unidas para Educao, Cincia e Cultura
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SUMRIO
INTRODUO ..........................................................................................................15
CAPTULO 1
EPISTEMOLOGIA E CURRCULO DE QUMICA: O TEMA E O OBJETO
DESTA PESQUISA E O REFERENCIAL TERICO ADOTADO EM
SUA PROBLEMATIZAO .....................................................................................18
1.1. Sobre epistemologia e currculo de Qumica .....................................................18
1.2. Sobre a teoria da enunciao de Mikhail Bakhtin ..............................................27
CAPTULO 2
CONSIDERAES ACERCA DE FUNDAMENTOS FILOSFICOS PARA
A QUMICA E O SEU ENSINO ................................................................................32
2.1. O reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica ................................33
2.2. Os nveis de compreenso da natureza da Qumica ........................................35
2.3. A propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica ..............................41
2.4. Reflexo sobre a dimenso axiolgica ..............................................................44
CAPTULO 3
TEXTOS E CONTEXTOS DO DISCURSO QUE INTEGRA OS TRS
ASPECTOS DO CONHECIMENTO QUMICO ........................................................48
3.1. Possveis convergncias na questo epistemolgica da Qumica
nos documentos curriculares de 1998, 2004, 2005 e 2007 da SEE-MG ................49
3.2. Os programas de formao continuada de professores em Minas Gerais .......57
3.2.1. O Programa-Piloto de Inovao Curricular e de Capacitao Docente
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para o Ensino Mdio - Promdio (1997) ..................................................................58
3.2.2. O Projeto de Desenvolvimento Profissional PDP (2004), desenvolvido
nas diversas regies de Minas Gerais ......................................................................60
3.2.3. O programa Educao Continuada de Professores: Estudos dos
Contedos Bsicos Comuns da SEE-MG ou Imerso, realizado em Belo
Horizonte no decorrer de 2006/2007 ........................................................................61
CAPTULO 4
APROPRIAO POR DOCENTES DO ENSINO MDIO DA IDEIA DE
INTEGRAO DOS TRS ASPECTOS CONSTITUINTES DA QUMICA:
FENMENOS, TEORIAS E LINGUAGEM ...............................................................63
4.1. O percurso terico-metodolgico .......................................................................64
4.2. Os discursos dos professores: vozes prprias e alheias ...................................72
4.2.1. O professor Ansio ...........................................................................................75
4.2.2. O professor Darcy ...........................................................................................83
4.2.3. A professora Ceclia ........................................................................................90
4.2.4. O professor Mrio ............................................................................................94
4.2.5. O professor Fernando .....................................................................................99
4.2.6. A professora Maria ........................................................................................108
4.3. A multiplicidade de significaes no processo de apropriao .....................121
CONSIDERAES FINAIS ....................................................................................128
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .......................................................................132
ANEXOS
Anexo A Roteiro de Entrevista ...............................................................................141
Anexo B Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .........................................142
Anexo C Quadro de Marcadores e Sinais Utilizados nas Transcries
de Conversaes ....................................................................................................143
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INTRODUO
Nesta pesquisa, analisamos a apropriao, por docentes do Ensino Mdio, da ideia
de integrao dos trs aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos,
teorias e linguagem. Partimos da indagao: houve ou no apropriao? Qual a
relao dos docentes com a ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem?
Como os professores enunciam sua apropriao?
A articulao dos aspectos do conhecimento qumico apresentada na Proposta
Curricular de Qumica Ensino Mdio, na estrutura de um tringulo, com a
denominao de Formas de Abordagem (MINAS GERAIS, 2007, p. 17). Uma
primeira verso de proposta curricular contendo o tringulo foi apresentada aos
professores em 1998 e a verso mais atual, publicada pela SEE-MG em 2007, foi
distribuda s escolas em 2008. Tal publicao inclui os Contedos Bsicos Comuns
da Qumica, conhecidos como CBCs da Qumica.
Esta trade chamou nossa ateno pelo fato de possibilitar discusses a respeito das
relaes entre o conhecimento cientfico da Qumica e o sujeito deste conhecimento
(professor e/ou aluno), passando a ser o cerne da nossa pesquisa.
Assim, torna-se oportuno salientar que no temos a pretenso de responder qual
deve ser o currculo de Qumica no Estado de Minas Gerais. E, ainda, que tomamos
nosso objeto de pesquisa segundo o pensamento de Mikhail Bakhtin que concebe
tudo em confronto, em dilogo, [que] o importante , sobretudo, a manifestao das
diferentes vozes (SCHNAIDERMAN, 2008, p. 17, grifos nossos). Desse modo,
nossa pesquisa caminhou rumo s diferentes vozes sociais (da Proposta, da
formao inicial, da formao continuada, do livro didtico etc.) presentes nos
discursos dos professores entrevistados que de um modo ou de outro discursaram
sobre a epistemologia do/no ensino de Qumica.
Realizamos entrevistas semiestruturadas com seis professores de Qumica do
Ensino Mdio. As entrevistas foram gravadas em udio e transcritas para realizao
da anlise de discurso, esta fundamentada na filosofia da linguagem de Mikhail
Bakhtin, em sua compreenso de apropriao do discurso do outro e, ainda, em sua
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16
concepo de polifonia (multivocalidade) ou vozes sociais que caracterizam as
produes discursivas. Para realizar a transcrio dos enunciados dos professores,
buscamos os marcadores e sinais utilizados em anlise de conversaes
desenvolvidos por Marcuschi (2000).
No primeiro captulo trazemos a construo da reviso bibliogrfica e a
apresentao do referencial terico. Dialogamos com pesquisadores, enfatizando
suas concepes de epistemologia e de currculo de Qumica, a fim de subsidiar
nossos questionamentos. E, tambm, destacamos os principais conceitos
bakhtinianos que fundamentam nossas discusses e compreenses dispostas nesta
pesquisa.
O captulo dois abre espao para problematizar algumas consideraes a propsito
da fundamentao filosfica da Qumica e de seu ensino. Refletimos sobre a
questo que envolve o reducionismo epistemolgico e o reducionismo ontolgico da
Qumica Fsica. Refletimos tambm sobre os nveis macroscpico, microscpico e
simblico no entendimento conceitual da Qumica e de sua natureza, bem como a
respeito da possvel autonomia ontolgica da Qumica e, ainda, sobre sua dimenso
axiolgica. Buscamos conduzir este conjunto de reflexes em estreita relao com
possveis implicaes no ensino de Qumica.
O captulo trs constitui uma busca dos textos e dos contextos da enunciao
acerca da integrao de fenmenos, teorias e linguagem para os professores de
Qumica. Analisamos possveis convergncias de significados e sentidos sobre esta
trade nos documentos de proposta curricular de Qumica da SEE-MG de 1998,
2004, 2005 e 2007. E caracterizamos os trs momentos chaves de formao
continuada que proporcionaram contextos para a elaborao e discusso da referida
integrao: o Promdio (1997), o PDP (2004) e o Imerso (2006/2007).
No quarto captulo, fizemos nossa anlise dos discursos produzidos pelos docentes
do Ensino Mdio a respeito de suas relaes estabelecidas com a ideia de integrar
os aspectos do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem. Nossas
compreenses, no sentido bakhtiniano, encontram-se abertas a outras como
possibilidade de continuidade do dilogo.
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17
Por fim, apresentamos nossas consideraes finais. Nesta, realamos as snteses
das discusses abordadas; as possveis contribuies desta dissertao para a
pesquisa em Educao e em Ensino de Qumica, bem como alguns apontamentos
para novas pesquisas.
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CAPTULO 1
EPISTEMOLOGIA E CURRCULO DE QUMICA: O TEMA E O OBJETO DESTA
PESQUISA E O REFERENCIAL TERICO ADOTADO EM SUA
PROBLEMATIZAO
Neste captulo, desenvolvemos a reviso bibliogrfica no mbito da atualidade das
discusses epistemolgicas em sua relao com o Ensino de Qumica,
considerando suas implicaes na complexa questo curricular. E, tambm,
realizamos a apresentao do nosso referencial terico: a filosofia da linguagem de
Mikhail Bakhtin. A partir das noes de apropriao, vozes sociais, alteridade e
dialogismo, apresentadas por Bakhtin, foi possvel analisar os enunciados dos
professores colaboradores desta pesquisa.
1.1. Sobre epistemologia e currculo de Qumica
A Educao nas escolas de Minas Gerais vem passando por tentativas de
reformulao curricular e, consequentemente, o ensino de Qumica. A Proposta
Curricular de Qumica Ensino Mdio da Secretaria de Estado de Educao de
Minas Gerais (SEE-MG), de 2007, apresenta um diferencial ao possibilitar a
participao de alguns professores, que vivenciam a realidade da sala de aula, no
processo de sua elaborao. O Programa-Piloto de Inovao Curricular e de
Capacitao Docente para o Ensino Mdio - Promdio (1997) marca o incio de
discusses e de problematizaes das ideias bsicas da inovao curricular de
Qumica. Estas ideias foram retomadas em 2002 com o objetivo de reiniciar um
movimento de inovao curricular para o Ensino Mdio em todo o Estado (MINAS
GERAIS, 2007, p. 11). Desse modo, a SEE-MG organizou outros momentos para
promover encontros entre consultores e professores de Qumica do Ensino Mdio da
Educao Bsica que estivessem vinculados s Escolas-Referncia ou Escolas
Associadas1, como: o Projeto de Desenvolvimento Profissional PDP,
desenvolvido nas diversas regies de Minas Gerais a partir de 2004 e o programa
1 O Projeto Escolas-Referncia e Escolas Associadas faz parte de uma poltica do governo de Minas
Gerais implantada a partir de 2003.
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19
Educao Continuada de Professores: Estudos dos Contedos Bsicos Comuns da
SEE-MG ou Imerso, realizado em Belo Horizonte no decorrer de 2006/2007.2 Os
referidos consultores e professores, balizados na filosofia dos Parmetros
Curriculares Nacionais (PCN, PCN+ e PCN 2006) (MINAS GERAIS, 2007, p. 12) e
nos princpios e pressupostos das discusses do Promdio (1997), elaboraram e
reelaboraram o documento da proposta curricular mencionada. Em 2008, a verso
final desse documento foi distribuda nas escolas a fim de ser compartilhada com os
demais professores de Qumica da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais (REE-
MG).
O documento, supracitado, traz o discurso de inovao curricular do ensino de
Qumica, fundamentado na ideia de integrao dos trs aspectos constituintes do
conhecimento qumico: fenomenolgico, terico e representacional como tentativa
de superar a prtica tradicional centrada no aspecto simblico:
A tradio que a maioria dos professores de Qumica ainda mantm [...] a de no fazer presentes, em sala de aula ou no seu ensino, fenmenos relacionados com essa cincia. O aspecto representacional da Qumica sobremaneira enfatizado, em detrimento dos outros dois (MINAS GERAIS, 2007, p. 17).
Nossa pesquisa se insere no contexto das reflexes epistemolgicas e curriculares
de Qumica, no que tange a natureza do ensino dessa cincia que integra os
aspectos fenmenos, teorias e linguagem, que vincula os eixos conceituais e
contextuais e busca a articulao cincia, tecnologia, sociedade e ambiente num
compromisso tico.
Muitas so as contribuies de diversos autores, em torno da problematizao sobre
o qu e como ensinar Qumica (JOHNSTONE, 1982 e 2000; KOZMA et. al.,1997;
ROSA e SCHNETZLER, 1998; MORTIMER et. al., 2000; CHITTLEBOROUGH et. al.,
2002; MACHADO, 2004; LEAL e MORTIMER, 2008 e LEAL, 2009, dentre outros).
Alex Johnstone, no artigo Macro-and microchemistry, j em 1982 explicita e destaca
os trs diferentes nveis do conhecimento qumico: o macroscpico e o sub-
microscpico, que tratariam de aspectos reais, e o simblico, que trata do aspecto
representacional. Para ele, os trs nveis propiciam um modelo que tem relaes
2 Os momentos de formao continuada (Promdio (1997), PDP (2004) e Imerso (2006)) sero
abordados, com mais detalhes, no captulo 3.
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20
com a natureza da Qumica (JOHNSTONE, 2000, p. 35). A forma de abordagem do
conhecimento qumico apresentada no documento curricular de Minas Gerais de
1998 e de 2007, que destaca em esquema triangular os aspectos fenomenolgico,
terico e representacional, guarda forte correspondncia com o modelo de
Johnstone.
Figura 1. Formas de abordagem ou Aspectos do conhecimento qumico.
Fonte: MORTIMER, MACHADO E ROMANELLI, 2000, p. 277.
De acordo com a bibliografia estudada, o ensino de Qumica descuidado dessa inter-
relao pode levar o educando a apresentar dificuldades na compreenso dos
limites e continuidades entre o real e o representacional. possvel verificar, pelo
menos, duas situaes em que o ensino parece tornar-se manco: de um lado, a
ausncia dos fenmenos nas salas de aula pode fazer com que alunos tomem por
reais as frmulas das substncias, as equaes qumicas e os modelos para a
matria (MORTIMER et. al., 2000, p. 277); por outro lado, o ensino de fenmenos
isolados impede que os(as) alunos(as) construam modelos explicativos coerentes
que se aproximem mais dos modelos cientficos (ROSA e SCHNETZLER, 1998, p.
34). Ainda com base nesse panorama de reflexes epistemolgicas, a cincia
Qumica transposta pela didtica para a Qumica escolar, numa perspectiva que
propicie o entendimento dos aspectos fenomenolgico, terico e representacional
em suas relaes, pode contribuir para um ensino-aprendizagem mais dinmico,
atraente e significativo. Podendo, tambm, propiciar ao educando, ser sujeito do seu
processo de ensino aprendizagem. Assim:
-
21
A produo de conhecimento em Qumica resulta sempre de uma dialtica3 entre teoria e
experimento, pensamento e realidade. Mesmo porque no existe uma atividade experimental sem uma possibilidade de interpretao. Ainda que o aluno no conhea a teoria cientfica necessria para interpretar determinado fenmeno ou resultado experimental, ele far com suas prprias teorias implcitas, suas ideias de senso comum, pois todo processo de compreenso ativo. Para que a interpretao do fenmeno ou resultado experimental faa sentido para o aluno, desejvel manter essa tenso entre teoria e experimento, percorrendo constantemente o caminho de ida e volta entre os dois aspectos. O aspecto representacional tambm resulta dessa tenso, fornecendo as ferramentas simblicas para representar a compreenso resultante desses processos de idas e vindas entre teoria e experimento (MORTIMER et. al., 2000, p. 277).
Salientamos que nosso entendimento de dialtica entre teoria e experimento
ultrapassa uma relao de foras que necessariamente resulta numa sntese ou com
sobreposio de uma fora sobre a outra e caminha rumo noo bakhtiniana de
dialogia. Para Bakhtin, a dialogia tambm uma relao de foras, porm nessa
relao no h a sobrevivncia de uma e a morte da outra, ao contrrio, na relao
dialgica as foras convivem, interagem (GEGe, 2010, p. 18). Contudo, essa
interao dialgica ocorre no de uma forma pacfica, mas de uma forma tensa e
contraditria. [...] As duas foras se transformam de alguma maneira, no de forma
consensual, mas de uma forma dissensual (GEGe, 2010, p. 19).
Nesse sentido, a abordagem do conhecimento qumico didatizado a partir do trip
fenomenolgico, terico e representacional, que compem o nvel de articulao da
Qumica, ou seja, da natureza e do funcionamento dessa cincia (epistemologia)
(LEAL e MORTIMER, 2008, p. 214), requer uma considerao epistemolgica,
sociolgica e histrica do processo educacional e curricular dessa cincia. Nas
palavras de Alice Casimiro Lopes:
[Nas] pesquisas em Educao [...] em ensino de Qumica, especialmente, ainda h uma dedicao quase exclusiva aos problemas metodolgicos, importantes para um projeto mais amplo de melhoria da qualidade da educao no pas, mas insuficientes para a compreenso do espao da sala de aula. A resoluo desses mesmos problemas metodolgicos exige que no sejam desconsiderados os aspectos epistemolgicos, sociolgicos e histricos que permeiam o fenmeno educacional (LOPES, 2007, p. 100).
Lopes (2007), em sua obra Currculo e Epistemologia, discute a epistemologia e a
epistemologia escolar, alertando para a importncia da dimenso histrica nas
construes do saber didatizado e das pesquisas em Educao. Segundo a autora o
3 A Proposta curricular de Qumica: Ensino Mdio CBC (2007) contm esta mesma citao, contudo
extrada do PROMDIO de 1997, onde consta ao lado da palavra dialtica o termo [unidade](MINAS GERAIS, 2007, p. 18).
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22
professor pode vir a ser um dos maiores obstculos aprendizagem, caso se
prenda ao dogmatismo (p. 60). Sugere que a associao histrica das cincias ao
fazer (o pragmatismo cientfico) pode ser uma hiptese para a predominncia no
ensino de Qumica de uma concepo epistemolgica emprico-descritiva (p. 82). E
questiona que no processo de transposio didtica do conhecimento cientfico h
uma acentuada marca emprico-positivista. Logo, aponta a importncia da dimenso
histrica e humana para pensar o conhecimento na perspectiva do pluralismo
cultural [...] que pressupe questionamentos de um saber a outro, negociaes de
sentidos e significados e conflitos entre finalidades distintas (p. 202). Parece que
Lopes prope uma reflexo epistemolgica que sugere carter provisrio e
contingente das cincias ditas naturais no processo da transposio para o ensino
escolar.
Ainda nessa mesma perspectiva, Leal destaca o potencial da reflexo
epistemolgica para uma melhor abordagem da Qumica no Ensino Mdio (2009, p.
32) e que a falta de orientao epistemolgica pode conduzir a erros grosseiros (p.
33). O autor cita, como exemplo, um erro comum que ocorre na referncia feita s
palavras regra, modelo e teoria ao tratar da regra do octeto, como se elas fossem
equivalentes.
Uma diferenciao entre conhecimento ritual e conhecimento de princpios que
nos ajuda a questionar o dogmatismo no ensino tradicional de Qumica, bem como a
nfase memorizao sem sentido pode ser encontrada no documento da SEE-MG
de 1997, Pressupostos Gerais e Objetivos da Proposta Curricular de Qumica4.
Conhecimento ritual um tipo particular de conhecimento relacionado aos procedimentos, ao saber fazer alguma coisa. O conhecimento de princpios essencialmente explicativo, orientado para o entendimento de como os procedimentos e os processos funcionam, porque certas concluses so vlidas e necessrias. Em muitos contextos, obviamente os procedimentos so inteiramente adequados e necessrios. Os procedimentos se tornam rituais quando passam a ser um substituto para o entendimento dos princpios subjacentes. [...] No caso particular da regra do octeto, por exemplo, esse procedimento til para a previso da valncia e das frmulas de compostos de elementos tpicos da tabela peridica se transforma num ritual, um verdadeiro dogma para explicar a estabilidade dos compostos qumicos, substituindo princpios mais gerais como as variaes de energia envolvidas na formao de ligaes
4 Este documento teve como equipe responsvel pela sua concepo e elaborao: Prof. Dr. Eduardo
Fleury Mortimer (Faculdade de Educao da UFMG), Profa. Dra. Andra Horta Machado e Profa. Dra. Lilavate Izapovitz Romanelli (Colgio Tcnico da UFMG).
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entre tomos. Esse e outros fatos contribuem para aprofundar a m fama da Qumica, entre os estudantes do Ensino Mdio: algo desinteressante e sem sentido, que apenas exige esforo de memria (MINAS GERAIS, 1998, p. 11).
As discusses apresentadas sugerem a reflexo epistemolgica como contribuio
para problematizar a temtica que envolve o currculo. Contudo, a questo curricular
desenvolve-se em meio polmico, e o conceito de currculo muito amplo e
complexo. Como afirma Tomaz Tadeu Silva em seu texto Educao, Trabalho e
Currculo na Era do Ps-Trabalho e da Ps-Poltica: Se no passado, a questo
qual conhecimento, qual currculo? nunca pde ser respondida de forma tranquila,
sem conflitos e disputas, sem dvidas e incertezas, ela, se torna, hoje, ainda mais
problemtica (SILVA, 1999, p. 83). Ainda nessa linha de raciocnio, Sacristn coloca
que de alguma forma, o currculo reflete o conflito entre os interesses de uma
Sociedade e os valores dominantes que regem o processo educativo (SACRISTN,
2007, p. 18, grifo do autor).
No artigo Os Parmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Mdio e a Submisso
ao Mundo Produtivo: O Caso do Conceito de Contextualizao, 2002, Lopes
argumenta que Propostas curriculares oficiais, como os PCNEM, podem ser
interpretadas ento como um hbrido de discursos curriculares, produzido por
processos de recontextualizao. [...] Por isso, as ambiguidades so obrigatrias (p.
389).
Mais adiante, Lopes discute tais ambiguidades:
Defendo que o discurso dos PCNEM apresenta ambiguidades de forma a se legitimar junto a diferentes grupos sociais, sejam aqueles que trabalharam em sua produo ou aqueles que trabalharam na sua implementao e anlise. Para produo de uma proposta curricular como a dos PCNEM, so apropriados e hibridizados discursos acadmicos, ressignificando-os de forma a atender s finalidades educacionais previstas no momento atual (p. 389).
Nogueira e Nogueira (2006) mostram que numa anlise ampla da questo curricular,
Bourdieu fala que os contedos curriculares seriam selecionados em funo dos
conhecimentos, dos valores e dos interesses das classes dominantes e, portanto,
no poderiam ser entendidos fora do sistema mais vasto das diferenciaes sociais
(p. 94).
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Leal (2003) problematiza a demanda da autoridade cientfica e a legitimidade do
discurso de inovao da proposta curricular de Qumica (1997). Segundo seus
estudos, a posio de autoridade demandada aos professores universitrios
respaldada nos seus ttulos de doutor, nas suas produes acadmicas e no
reconhecimento oficial do Estado que lhes atribui o lugar de especialistas (certo tipo
de perito). Por outro lado, a posio de destinatrios para os professores do Ensino
Mdio, numa perspectiva academicista se deve a um considervel dficit de
formao (p. 148). Nesse aspecto haveria legitimidade para ambas as posies
acima colocadas. Quanto situao da proposta curricular, considerando a ocasio
da reestruturao dos anos 90 em que a educao tambm se reestruturava, foi
assegurada, devido a tais circunstncias, a sua legitimidade. A partir do aporte
terico da sociologia de Pierre Bourdieu, Leal faz algumas consideraes:
Num processo de inovao curricular como o do que estamos tratando, podemos considerar que campo acadmico (ou campo universitrio) e campo escolar (relacionado ao ensino fundamental e mdio) entram em uma relao de fora em que bem ntida a superioridade de capital simblico nas mos do campo acadmico e dos professores da universidade em comparao, respectivamente, com o campo escolar e os professores do Ensino Mdio (LEAL, 2003, p. 149).
A proposta curricular de Qumica, analisada por Leal, encontrava-se em fase de
elaborao. No contexto atual, as ideias iniciais de inovao curricular passaram por
outros espaos e tempos para discusso entre consultores do Estado (professores
universitrios) e professores do Ensino Mdio at sua enunciao como documento
oficial de Proposta Curricular de Qumica e, em sequncia, sua disseminao nas
escolas do Ensino Mdio de Minas Gerais, em 2008. Pode-se ressaltar que alm
desse novo contexto, surge, ainda, a necessidade de considerar um subgrupo dos
agentes destinatrios, ainda mais desprovido de capital simblico5 (ttulos, produo
acadmica, conhecimentos e reconhecimentos). Esse subgrupo composto pelos
professores do Ensino Mdio que no tiveram sua participao, assegurada pelo
Estado, nos encontros de Formao Continuada, palco dos possveis embates
epistemolgicos e polticos que originaram a proposta mencionada.
Segundo Bourdieu, a definio do que est em jogo na luta cientfica faz parte do
jogo da luta cientfica (BOURDIEU, 1930/1983, p. 128). E, ainda, que invlida a
5 Tomamos o sentido de capital simblico em Bourdieu.
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tentativa de legitimar qualquer grupo envolvido em um campo cientfico. Nas
palavras de Bourdieu:
Tanto no campo cientfico quanto no campo das relaes de classe no existem instncias que legitimam as instncias de legitimidade; as reivindicaes de legitimidade tiram sua legitimidade da fora relativa dos grupos cujos interesses elas exprimem: medida que a prpria definio dos critrios de julgamento e dos princpios de hierarquizao esto em jogo na luta, ningum bom juiz porque no h juiz que no seja, ao mesmo tempo, juiz e parte interessada (BOURDIEU, 1930/1983, p. 130, grifo do autor).
Deste modo, a Qumica entendida como saber escolar passa por transposies
didticas. Este processo aparentemente neutro, possivelmente, ocorre em meio a
conflitos, disputas e estratgias polticas. Nas palavras de Lopes:
Na escola, e muitas vezes no contexto educacional mais amplo, frequentemente se considera que tais discursos so independentes o que ensinar e os valores. Uma das formas de afirmar essa independncia considerar que as regras de transmisso de um conhecimento escolar - o ritmo das atividades de ensino, a lgica de organizao desses saberes - derivam dos saberes de referncia, associados ao discurso instrucional. No entanto, na medida em que o discurso instrucional deslocado de seu contexto original e relocalizado no contexto educacional produzida sua transformao em outro discurso: o discurso pedaggico. Tal transformao desenvolvida por sua associao ao discurso regulativo e pela intervenincia da ideologia, um conjunto particular de efeitos dentro dos discursos. (LOPES, 2005, p. 54).
Lopes nos conduz a uma concepo de currculo que passa por produes e
transformaes de discursos. Isto nos remete noo de polifonia (vozes sociais) de
Mikhail Bakhtin. Assim, podemos pensar a proposta curricular de Qumica de Minas
Gerais como um discurso em que se manifestam uma multiplicidade de vozes
sociais. De acordo com Bakhtin o discurso no finito e sempre se renova num novo
contexto, pois o grande tempo permite que todo sentido festeje sua renovao.
Nem os sentidos do passado, isto , nascidos no dilogo dos sculos passados, podem jamais ser estveis (concludos, acabados de uma vez por todas): eles sempre iro mudar (renovando-se) no processo de desenvolvimento subsequente, futuro do dilogo. Em qualquer momento do desenvolvimento do dilogo existem massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do dilogo, em seu curso, tais sentidos sero relembrados e revivero em forma renovada (em novo contexto). No existe nada absolutamente morto: cada sentido ter sua festa de renovao. Questo do grande tempo (BAKHTIN, 1979/2010, p. 410, grifos do autor).
Dentro da amplitude epistemolgica e de renovao curricular da Qumica, balizados
em Bakhtin, centramos nosso objeto de pesquisa nos aspectos constituintes do
conhecimento qumico: fenmenos, teorias e linguagem. Estes aspectos foram
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discutidos na proposta de 1998, 2004, 2005 e, tambm, na de 2007 que se encontra,
atualmente, distribuda nas escolas da REE-MG. Cabe ressaltar que no nos
prendemos polmica: se a Proposta Curricular de Qumica e o Contedo Bsico
Comum CBC, contido nesta, tratam de prescrio, receita engessada, matriz de
referncia padro, controle de professores ou se a mesma flexvel e os
professores se sentem integrantes da sua construo como coautores desse
documento. Interessamo-nos pelos enunciados dos docentes a propsito de suas
relaes com os trs aspectos, pelas palavras do outro assimiladas (minhas-
alheias) que renovam-se criativamente em novos contextos (BAKHTIN,
1979/2010, p. 408).
A literatura mais recente aponta o impacto das tentativas de mudanas educacionais
no ensino de Qumica. Nesse sentido (MORTIMER; MACHADO; ROMANELLI, 2000;
LEAL, 2003 e MENDONA, 2010) identificam uma tenso entre limites e
possibilidades na propagao de uma inovao curricular: ausncia de um projeto
poltico pedaggico construdo coletivamente na escola, a falta de condies de
trabalho, dificuldade em organizar um espao de aprendizagem com turmas
menores, organizao linear e sequencial do contedo da maioria dos livros
didticos, e tempo rgido que impossibilita encontros coletivos para a elaborao de
projetos.
Leal (2003) analisou a apropriao do discurso de inovao curricular de Qumica
por professores do Ensino Mdio da Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais. Ele
entrevistou doze professores participantes do Promdio e ou do Pr-Cincias (1997
a 1999) e percebeu que vrios temas introduzidos nesses programas de
capacitao docente, estiveram ausentes de seus enunciados. Entre esses temas
encontra-se a discusso do modelo integrado dos aspectos da Qumica:
fenomenolgico, terico e representacional como forma de abordagem do
conhecimento dessa cincia no cotidiano escolar.
Sabendo que a proposta curricular do Estado de Minas Gerais foi elaborada a partir
das ideias bsicas problematizadas no Promdio (1997) e, uma dcada depois, em
2008, distribuda nas escolas de todo o Estado, e tambm, considerando os limites
apontados, no dilogo com pesquisadores da rea, para o processo de
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disseminao de uma nova proposta curricular, e em destaque as constataes de
Leal em seu doutoramento (2003), torna-se relevante e pertinente analisar, no
contexto atual, a apropriao6 do discurso de inovao curricular de Qumica.
Colocamos nosso foco de interesse nas discusses epistemolgicas que envolvem
os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e
linguagem. Analisaremos principalmente a integrao destes aspectos, entendendo
por integrao a tomada do contexto completo em que tais aspectos se articulam,
considerando como as relaes se constituem e as tenses que se mantm entre os
aspectos. Logo, explicitamos nossos questionamentos: os docentes do Ensino
Mdio se apropriam da ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem (aspectos
do conhecimento qumico ou formas de abordagem da Qumica)7 apresentada na
proposta curricular da SEE-MG? Houve ou no apropriao? Qual a relao dos
docentes com essa ideia de integrar fenmenos, teorias e linguagem? Como os
professores enunciam8 sua apropriao desta ideia?
1.2. Sobre a teoria da enunciao de Mikhail Bakhtin
A fundamentao terica dessa dissertao se encontra na filosofia enunciativa da
linguagem de Mikhail Bakhtin, sobretudo em sua perspectiva discursiva, dialgica e
polifnica e na sua ideia de apropriao.
O erro fundamental dos pesquisadores que j se debruaram sobre as formas de transmisso do discurso de outrem, t-lo sistematicamente divorciado do contexto narrativo. Da o carter esttico das pesquisas nesse campo (o que se aplica igualmente a todas as investigaes em sintaxe). No entanto, o objeto verdadeiro da pesquisa deve ser justamente a interao dinmica dessas duas dimenses, o discurso a transmitir e
6 O conceito de apropriao utilizado conforme definio do filsofo da linguagem Mikhail Bakhtin: A
palavra da lngua uma palavra semi-alheia. Ela s se torna prpria quando o falante a povoa com sua inteno, com seu acento, quando a domina atravs do discurso torna-a familiar com sua orientao semntica e expressiva. At o momento em que foi apropriado, o discurso no se encontra em uma lngua neutra e imparcial (pois no foi do dicionrio que ele tomado pelo falante!), ele est nos lbios de outrem, nos contextos de outrem e a servio das intenes de outrem: e l que preciso que ele seja isolado e feito prprio (BAKHTIN, 1934-35/1993, p.100).
7 A expresso aspectos do conhecimento qumico foi utilizada na Proposta Curricular de Qumica de
1998. A expresso formas de abordagem aparece na Proposta Curricular de Qumica Ensino Mdio, publicada pela SEE-MG em 2007 e distribuda s escolas em 2008. Esta ltima publicao inclui o CBCs, os Contedos Bsicos Comuns da Qumica. As referidas expresses designam o triangulo fenmenos - teorias/modelos - representaes.
8 Para Bakhtin (1992), o enunciado a unidade real da comunicao discursiva, estritamente
delimitada pela alternncia dos sujeitos falantes. A compreenso desse enunciado vivo sempre acompanhada, portanto, de uma atitude responsiva ativa (FREITAS, 2003, p.35).
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aquele [contexto] que serve para transmiti-lo (BAKHTIN e VOLOSHNOV, 1929/1981, p. 152).
Bakhtin e Voloshinov concebem que a lngua vive e evolui historicamente na
comunicao verbal concreta, no no sistema lingustico abstrato das formas da
lngua nem no psiquismo individual dos falantes (BAKHTIN e VOLOSHNOV,
1929/1981, p. 128, grifos dos autores). Esta concepo nos permite estudar a
relao dialgica dos docentes do Ensino Mdio com a ideia de integrar fenmenos,
teorias e linguagem na abordagem do conhecimento qumico. Seguiremos com a
compreenso de que as relaes dialgicas so relaes (semnticas) entre toda
espcie de enunciados na comunicao discursiva (BAKHTIN, 1979/2010, p. 323).
Para Bakhtin ignorar a natureza do discurso o mesmo [...] que apagar a ligao
que existe entre a linguagem e a vida (Bakhtin, 1986: 268, apud BARROS, 1994, p.
2). Sua posio filosfica consiste em evitar dois polos extremos o dogmatismo e o
relativismo, uma vez que sua crtica ao relativismo to clara [...] quanto a crtica ao
dogmatismo. (AMORIM, 2003, p. 13). No prefcio da obra Dialogismo, polifonia,
intertextualidade: em torno de Bakhtin, Luiz Roncari mostra que Bakhtin percorreu
as mais importantes tendncias e correntes do pensamento e da cincia do sculo
XX, evitando por um lado, o dogmatismo, e por outro o relativismo. Segundo o autor
desse prefcio, Bakhtin, na obra Problemas da potica de Dostoiviski, dizia que o
relativismo e o dogmatismo excluem igualmente qualquer discusso, todo dilogo
autntico, tornando-o desnecessrio (o relativismo) ou impossvel (o dogmatismo)
(BARROS, 1994, p. X-XI). Nesse sentido, Bakhtin instaura a importncia do dilogo.
A linguagem torna-se o centro das investigaes e o dialogismo a condio do
sentido do discurso.
Brando (2004) apresenta elementos do crculo de Bakhtin que se contrapem a
elementos da lingustica estrutural. Estes rompem com o monologismo e instauram o
dialogismo. Segundo, a autora os elementos da perspectiva bakhtiniana,
fundamentados numa dimenso social e histrica, constroem uma teoria da
produo do discurso e do sentido. A contraposio entre os elementos da
perspectiva estruturalista e da perspectiva bakhtiniana mostrada no quadro
comparativo a seguir:
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Quadro 1: Perspectiva Estruturalista e Perspectiva Bakhtiniana
Elementos da perspectiva Estruturalista
Elementos da perspectiva Bakhtiniana
monolgico dialgico
monofnico polifnico
nico mltiplo
o um e o outro o outro no um
homogneo heterogneo
imvel conflitual
absoluto relativo
dogmtico crtico
acabado inacabado
Fonte: Quadro adaptado de BRANDO, 2004, p. 63.
Bakhtin com sua perspectiva dialgica, discursiva e polifnica aproxima-se de uma
abordagem scio-histrica da linguagem (FREITAS, 2003), formulando assim a
teoria da enunciao.
O tema da enunciao determinado no s pelas formas lingusticas que entram na composio (as palavras, as formas morfolgicas ou sintticas, os sons, as entoaes), mas igualmente pelos elementos no verbais da situao. Se perdermos de vista os elementos da situao, estaremos to pouco aptos a compreender a enunciao como se perdssemos suas palavras mais importantes (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 132).
Podemos tomar a enunciao, em Bakhtin, como uma unidade de anlise
contextualizada. Sua perspectiva dialgica permite uma anlise das enunciaes
levando-se em conta tanto a posio do locutor quanto do interlocutor.
Na realidade, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciao, no pode de forma alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; no pode ser explicado a partir de condies psicofisiolgicas do sujeito falante. A enunciao de natureza social. (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 112, grifos dos autores).
Barros (1994) esclarece que o dialogismo o princpio constitutivo da linguagem e
de todo discurso. Refere-se interao entre o enunciador e o enunciatrio do texto
e intertextualidade do interior do discurso. Logo, o discurso se tece
polifonicamente num jogo de vrias vozes cruzadas, complementares, concorrentes,
contraditrias (BRANDO, 2004, p. 65). Todo discurso intensamente dialgico,
pois o discurso no se constri sobre o mesmo, mas se elabora em vista do outro.
No sendo, ento, nico e irrepetvel, um discurso discursa outros discursos,
tornando-se, assim, social (BARROS, 1994).
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Bakhtin mostra que a particularidade da polifonia encontra-se na ndole inacabvel
do dilogo polifnico. Neste dilogo o discurso no pode ser simplesmente o
discurso prprio (em nome do eu). A palavra precisa ser fundamentada. A
necessidade de representar algum (BAKHTIN, 1979/2010, p. 388). Nesse sentido,
Bakhtin nos alerta para distino entre dilogo polifnico, marcado pelo conflito das
vozes sociais, e discusso retrica que, contrariamente noo de dilogo, o
importante no se aproximar da verdade, mas vencer o adversrio (BAKHTIN,
1979/2010, p. 389).
A polifonia caracteriza-se pelo discurso textual que deixa mostrar muitas vozes. No
discurso h uma tenso entre palavra prpria e palavra alheia, sendo a conscincia
uma arena de lutas e disputas das diversas vozes alheias a fim de influenciar o
indivduo. Essa influncia pode gerar a palavra alheia-prpria, e esta por sua vez
pode tornar-se palavra prpria (LEAL, 2003).
Ainda na obra Esttica da criao verbal, encontramos nas palavras de Bakhtin:
Nosso discurso, isto , todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas) pleno de palavras dos outros, de um grau vrio de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vrio de aperceptibilidade e de relevncia. Essas palavras dos outros trazem consigo a sua expresso, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos, e reacentuamos (BAKHTIN, 1979/2010, p. 294-295).
Esta discusso nos conduz ao entendimento da noo de apropriao, j mostrada
na nota 6 da presente dissertao.
A palavra da lngua uma palavra semi-alheia. Ela s se torna prpria quando o falante a povoa com sua inteno, com seu acento, quando a domina atravs do discurso torna-a familiar com sua orientao semntica e expressiva. At o momento em que foi apropriado, o discurso no se encontra em uma lngua neutra e imparcial (pois no foi do dicionrio que ele tomado pelo falante!), ele est nos lbios de outrem, nos contextos de outrem e a servio das intenes de outrem: e l que preciso que ele seja isolado e feito prprio (BAKHTIN, 1934-35/1993, p. 100).
Os conceitos bakhtinianos de polifonia, relao dialgica, alteridade e apropriao
so marcantes no nosso embasamento terico. Todavia, ao longo das discusses
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contidas neste trabalho, nos apropriamos, ainda, da noo desenvolvida por Bakhtin
de ato responsvel e responsivo9 e de compreenso.
Compreender a enunciao de outrem significa orientar-se em relao a ela, encontrar o seu lugar adequado no contexto correspondente. A cada palavra da enunciao que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma srie de palavras nossas, formando uma rplica. [...] A compreenso uma forma de dilogo; ela est para a enunciao assim como uma rplica est para a outra no dilogo. Compreender opor a palavra do locutor uma contrapalavra (BAKHTIN e VOLOCHNOV, 1929/1981, p. 135, grifos dos autores).
Assim, nossa anlise do discurso dos professores do Ensino Mdio sobre a ideia de
integrar os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos, teorias e
linguagem, ou melhor, nossa compreenso, nossa rplica s enunciaes dos
professores , tambm, uma forma de dilogo. Um dilogo aberto a outras
compreenses, outras rplicas. Pois, como j citado, anteriormente, o prprio
Bakhtin considera que a particularidade da polifonia encontra-se na ndole
inacabvel do dilogo polifnico (1979/2010, p. 388).
9 Para Bakhtin, nossos atos so nicos. No h um libi, um ser divino que esteja por trs de cada
atitude humana. Cada um de ns responsvel e, por isso, chamado a responder eticamente pelos seus atos, sem libi, sem proteo (GEGe, 2009, p. 76).
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CAPTULO 2
CONSIDERAES ACERCA DE FUNDAMENTOS FILOSFICOS PARA A
QUMICA E O SEU ENSINO
O lugar da filosofia. Ela comea onde termina a cientificidade exata e comea a heterocientificidade. Pode ser definida como metalinguagem de todas as cincias (e de todas as modalidades de conhecimento e conscincia).
Mikhail Bakhtin (2010:400)
Assimilando a epgrafe de Bakhtin, talvez, encontramos abertura para problematizar
sobre o lugar da Filosofia da Qumica. Neste captulo, apontamos algumas
consideraes referentes ao reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica
s leis fundamentais da Fsica. Refletimos sobre a questo epistemolgica da
Qumica, os nveis de compreenso da natureza dessa cincia: macroscpico,
microscpico e simblico/representacional. Balizados na problematizao do mundo
objetivo da cincia como mundo autnomo, mas no separado do mundo da vida,
em Bakhtin e Husserl, problematizamos a propsito da autonomia ontolgica da
Qumica. E, ainda, sob a tica responsiva de Bakhtin, assinalamos a respeito da
dimenso axiolgica na aplicabilidade do conhecimento qumico e de seus produtos.
Ribeiro (2008), em seu artigo Filosofia e Qumica: Miscveis Quais as implicaes
da Filosofia da Qumica para o Ensino de Qumica?, faz referncia a diversos
trabalhos de Schummer que evidenciam a necessidade da Filosofia da Qumica na
pesquisa em Qumica e em Educao Qumica (p. 4). O autor discute, tambm, o
reducionismo das questes filosficas da Fsica recolocado na Qumica. Segundo
Ribeiro, dentre os principais problemas discutidos pela Filosofia da Qumica, desde o
surgimento do An International Journal for the Philosophy of Chemistry (1995),
esto a autonomia da Qumica e sua reduo Fsica (p. 5).
Buscamos o artigo The philosophy of chemistry de Schummer, 2003, para entender
um pouco mais sobre a crtica ao reducionismo da Qumica Fsica e, tambm,
Filosofia da Cincia, direcionada ao enfoque da Mecnica Quntica (Filosofia geral).
De acordo com o autor, esta crtica diz respeito a uma necessidade de investigaes
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histricas e filosficas para desenvolver uma Filosofia especfica da Qumica. Logo,
os conceitos da Filosofia tradicional da Cincia precisam ser revisados antes de
qualquer aplicao Qumica. Schummer argumenta que o interesse de estudos na
Qumica, que tem se concentrado em mtodos prticos (experimentao e
instrumentao) e em mtodos cognitivos (linguagem qumica, construes de
modelos e representaes), ainda so de enfoque classificatrio.
Em 2005, Labarca em seu texto La filosofia de la Qumica en la filosofia de la
Ciencia Comtempornea traz uma concluso importante a respeito do lugar da
Filosofia na Qumica:
A partir do senso comum normalmente se pensa que a filosofia e a qumica so disciplinas completamente alheias entre si. Por outro lado, em geral os prprios qumicos consideram ftil o aporte da filosofia para o que eles consideram como problemas especficos que requerem solues especficas. No entanto, esta perspectiva limita fortemente seu prprio trabalho cientfico. O mundo qumico muito mais que refletir acerca de snteses de substncias, instrumentos, equaes, experimentao e informtica. A qumica, como qualquer disciplina cientfica, tem sua complexidade e suas prprias peculiaridades que a caracterizam como tal. A introduo da filosofia na qumica proporciona uma ferramenta de anlise til tanto aos qumicos como aos educadores da qumica. Felizmente, durante os ltimos anos iniciou-se uma superao dos obstculos que impediam a reflexo filosfica acerca da qumica: o crescente interesse dos filsofos da cincia fez com que a filosofia da qumica adquirisse forte momento, sendo a subdisciplina que mais cresce dentro da filosofia da cincia contempornea (p. 167).
A partir dos escritos de Labarca possvel pensar a importncia da fundamentao
filosfica em Qumica. Esta fundamentao contribui tanto para compreender
melhor e mais amplamente uma cincia natural quanto para compreenso geral do
pensamento cientfico (p. 167). De acordo com o autor, uma fundamentao
filosfica pode tambm produzir efeitos positivos sobre a educao atravs de uma
concepo mais abrangente e profunda (p. 167) da Qumica.
2.1. O reducionismo epistemolgico e ontolgico da Qumica
No artigo, Es posible una filosofia de la qumica?, de Anna Estany (2011)
encontramos uma anlise sobre as principais razes da falta de interesse pela
Qumica por parte da filosofia da cincia e o apontamento de uma srie de
desafios que a filosofia da qumica deve enfrentar no sculo XXI. Diante do
esquecimento da Qumica pela Filosofia da Cincia, a autora distingue as razes
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que se referem a questes epistemolgicas, ontolgicas e metodolgicas
relacionadas com a qumica aplicada. A propsito do reducionismo, a autora refere-
se a dois grupos de pesquisadores: um partidrio do reducionismo do qual se tem
frente H. Eyring, J. Walter e E. Kimball e outro que conta com os especialistas G.
K. Vemulapally e Byerly que consideram que devemos distinguir o reducionismo
epistemolgico do ontolgico e que refutar o primeiro suficiente para garantir a
autonomia da qumica (p. 52). Neste segundo grupo, a autora inclui alguns filsofos
como Olmpia Lombardi da Universidade de Buenos Aires e Martn Labarca da
Universidade Nacional de Quilmes que vo mais alm, ou seja, refutam tambm o
reducionismo ontolgico e defendem o pluralismo ontolgico em qumica (p. 52-53).
Quanto aos desafios da Filosofia da Qumica, Estany enumera cinco:
Em primeiro lugar, dado o desenvolvimento da qumica terica, se espera uma consequente reflexo filosfica da qumica, sem a restrio do reducionismo. [...] Em segundo, a qumica proporciona parte da base terica de concepes de cincias como a farmacologia, a medicina e as cincias ambientais, entre outras. Uma reflexo filosfica deve considerar isto. Em terceiro lugar, indiscutvel que a filosofia da cincia experimental tem constitudo quadro para a filosofia da qumica, j que pode fornecer estudos, histricos e atuais, nos quais os experimentos desempenham uma funo relevante. Um quarto desafio consiste em melhorar a visibilidade da qumica naqueles campos disciplinares de que faz parte. E, por ltimo, tendo em conta a importncia da qumica para a indstria, resulta imprescindivelmente uma reflexo tica sobre suas aplicaes. Isso poderia resultar-se num campo filosfico denominado quimiotica, da mesma forma que j existe a biotica (2011, p. 53).
Mikhail Bakhtin em sua obra Para uma Filosofia do Ato Responsvel apresenta uma
tese que diz respeito a no separao dos atos que realizamos de seus produtos.
Tomando os estudos de Amorim (2003), entendemos que a dimenso tica em
Bakhtin est vinculada responsabilidade. No tpico 2.4 considerando o fazer
Qumica, bem como seu ensino, como ato que realizamos, faremos uma breve
problematizao referente a esta dimenso axiolgica em Qumica fundamentada na
tese de Bakhtin.
Voltando ao reducionismo, Labarca (2005) confirma que, embora os argumentos
particulares diferem entre si, h uma concordncia de vrios autores em considerar
que as descries e os conceitos qumicos no podem derivar-se dos conceitos e
das leis da fsica tal como supem o reducionismo epistemolgico (p. 161). Por
outro lado, nos diz que os filsofos da qumica no duvidam acerca da reduo
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ontolgica: quando se analisa, com profundidade, as entidades qumicas no so
mais que entidades fsicas (p. 162).
Olmpia Lombardi e Martn Labarca (2006) argumentam que a noo de
dependncia ontolgica filosoficamente clara e significativa, contudo, esses
autores referem-se s ontologias descritas por teorias no relacionadas com a
reduo epistemolgica para defender o pluralismo ontolgico. Dependncia
ontolgica uma relao assimtrica entre ontologias. De acordo com o pluralismo
ontolgico, defendido por Lombardi e Labarca, tem-se o contrrio dessa relao
assimtrica, ontologias so simetricamente relacionadas: mesmo que
ontologicamente ligadas, nenhuma delas depende das outras para existir (p. 86).
Os autores, ainda, nos dizem: obviamente as concluses fundamentadas em
consideraes epistemolgicas no provam a tese ontolgica, mas pensamos que
elas oferecem bons argumentos para defender o pluralismo ontolgico (p. 88).
A propsito do impacto das reflexes filosficas na educao Qumica, Labarca
(2005) pondera10:
Em geral, a qumica continua sendo considerada pelos estudantes como uma disciplina difcil. Isso compreensvel na medida em que a aprendizagem da qumica exige operar e inter-relacionar trs nveis diferentes de pensamento: a) o nvel macroscpico (tangvel), b) o nvel microscpico (atmico e molecular), e c) o nvel simblico e matemtico (p. 165-166).
No tpico a seguir, abordaremos estes trs nveis de compreenso epistemolgica
da Qumica.
2.2. Os nveis de compreenso da natureza da Qumica
Johnstone (1982) escreveu um artigo Macro- and microchemistry com o objetivo de
apresentar um trabalho sobre Qumica para todos. De acordo com seu
entendimento, qumicos acadmicos como ele veem a Qumica pelo menos em trs
nveis: o nvel macroscpico (descritivo e funcional) em que podemos ver os
materiais, manuse-los e descrever suas propriedades como densidade,
10
A referncia dos nveis macroscpico, microscpico e simblico feita a Johnstone, 2000.
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36
inflamabilidade, cor e assim por diante; o nvel simblico em que ns tentamos
representar as substncias qumicas por frmulas e suas transformaes por meio
de equaes; e o nvel microscpico (atmico e molecular, explanatrio) em que ns
tentamos explicar o comportamento das substncias qumicas, recorrendo s teorias
dos tomos, molculas, ons, estruturas, ismeros, polmeros etc. O autor argumenta
que uma Qumica descritiva e funcional seria suficiente numa educao para
todos, podendo ou no ser associada ao nvel de representao. Ele ainda
considera que o nvel explicativo no seria necessrio para a educao dos
cidados em geral. Ao concluir seu artigo, Johnstone pondera que a termodinmica
clssica mostrou-se eficaz quando no havia necessidade de recorrer ao nvel
explicativo (microscpico). Ele esclarece que a termodinmica estatstica [que
desenvolve relaes entre grandezas macroscpicas e diretamente observveis com
conceitos e grandezas microscpicas] utiliza os trs nveis, possibilitando novas
perspectivas (1982, p. 379).
Outro artigo de Johnstone (1993) The Development of Chemistry Teaching traz os
trs nveis: macroscpico, microscpico e representacional dispostos nos vrtices de
um tringulo.
Figura 2. The new chemistry has three basic components: macrochemistry,
submicrochemistry, and representational chemistry.
Macro
Sub Micro Representation
Fonte: JOHNSTONE, 1993, p. 703.
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37
Nesse estudo sobre desenvolvimento do ensino de Qumica, Johnstone considera
que, durante muitos anos, o ensino de Qumica centrou interesse apenas nos
vrtices Macro e Representacional. J o vrtice Sub Micro, a parte estrutural da
Qumica, esteve muitas vezes ausente e, por isso, o meio do tringulo nunca foi
explorado (p. 703). Em outras palavras, o ensino de Qumica enfrenta dificuldades
de chegar ao nvel das inter-relaes entre o Macro, o Sub Micro e o
Representacional.
No nosso entendimento, esse tringulo com os trs nveis de compreenso da
Qumica proposto por Johnstone (1982, 1993) possui uma dimenso epistemolgica
que pode contribuir para o conhecimento da dimenso ontolgica da Qumica, seu
mundo autnomo, porm no isolado do mundo real. Neste tpico, discutiremos a
respeito da dimenso epistemolgica desse trip e no tpico seguinte abordaremos
consideraes a propsito do mundo objetivo da Qumica.
A discusso do trip macroscpico, microscpico e simblico tornou-se relevante em
nosso trabalho por corresponder ao tringulo das formas de abordagem do
conhecimento qumico: fenomenolgico, terico e representacional que o cerne do
nosso estudo. Esse tringulo encontra-se, de forma re-sigificada, na proposta
curricular de Qumica de Minas Gerais.
Johnstone prope que o conhecimento qumico seja classificado em trs nveis: macroscpico, microscpico e representacional. Na concepo que adotamos no texto elaborado para a Proposta Curricular de Qumica do Estado de Minas Gerais (Mortimer, Romanelli & Machado, 1998) redimensionamos nosso entendimento em relao a esses aspectos do conhecimento, denominando-os: fenomenolgico, terico e representacional (MACHADO, 2004, p. 162).
Assim, de acordo com Machado (2004), o aspecto fenomenolgico do conhecimento
qumico inclui a dimenso macroscpica considerada por Johnstone. Esta
dimenso constituda por tpicos do conhecimento passveis de visualizao
concreta, bem como de anlise ou determinao das propriedades dos materiais e
de suas transformaes. (p. 163-164). No nvel microscpico para Johnstone [...]
encontram-se informaes de natureza atmico-molecular, envolvendo, portanto,
explicaes baseadas em termos abstratos como tomo, molcula, on, eltron (p.
167). Tal nvel recebe significao mais ampliada na Proposta Curricular de Minas
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Gerais: neste nvel, estariam includos os aspectos tericos do conhecimento
qumico (p. 168). Finalmente, o nvel representacional de Johnstone, que trata dos
componentes simblicos, compreende informaes inerentes linguagem qumica,
como frmulas e equaes qumicas (MACHADO, 2004, p. 169).
Lombardi e Caballero (2007) destacam o carter representacional presente nos trs
nveis e ainda detalha o nvel simblico em pelo menos dois subsistemas:
Explicar a matria e suas transformaes impe restries linguagem qumica, as quais devem permitir representar a matria e suas mudanas em trs nveis: macroscpico, microscpico e simblico; este ltimo constitudo por dois diferentes sistemas de representaes: a) um sistema de smbolos lingustico-matemtico expresso como frmulas e equaes, e b) um sistema de diagramas em que os tomos se comparam a figuras geomtricas como crculos de diferentes tamanhos e cores, que permite descrever as substncias e as reaes, ambos sistemas permitem descrever a matria e suas transformaes em termos qualitativos e quantitativos (p. 391).
Ribeiro (2008) discute a necessidade de modelos como recurso
didtico/metodolgico para explicar a relao de supervenincia [macro e micro]
dos diferentes nveis de descrio e anlise da Qumica (p. 3). Contudo, o autor
alerta para possveis problemas de aprendizagem em Qumica ao referenciar a
confuso de modelos 11:
esta confuso de modelos gera outra possvel fonte de problemas de aprendizagem, os lingusticos: a camada de eltron entendida s vezes como uma proteo; A reao de neutralizao entendida como atingir uma soluo neutra. Esta confuso de modelos ofusca tambm o problema central nas explicaes Qumicas: A regra de octeto generalizada para racionalizar a ligao qumica, ofuscando as interaes eltricas; a explicao da eletronegatividade explicada por esquemas ofuscando sua natureza eltrica (p. 3).
Dorothy Gabel (1999), em seu artigo Improving Teaching and Learning through
Chemistry Education Research: A Look to the Future, tambm considera os trs
nveis: macroscpico, microscpico e simblico como nveis de representao da
matria. A autora diz que embora seja certo, como indicado por Johnstone, que no
necessrio sempre vincular os trs nveis no ensino, importante que os
professores compreendam a relao dessa trade para lecionar Qumica aos seus
alunos. Segundo Gabel, no a existncia dos trs nveis de representao da
matria a principal barreira para compreenso conceitual em Qumica, mas o fato
11
De acordo com Ribeiro (2008) a confuso de modelos uma noo estudada por Car em 1984.
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que o ensino de qumica ocorre predominantemente no nvel mais abstrato, no nvel
simblico (p. 549). De acordo com a autora, uma anlise superficial de qualquer
livro introdutrio de qumica corrobora essa afirmao. Gabel destaca o quo
complexo para os alunos a conjugao desses trs nveis de representao da
matria em Qumica; alm do mais, os smbolos usados pelos qumicos podem ser
interpretados de mais de uma maneira (p. 549). Pra exemplificar, a autora cita o
smbolo do elemento qumico ferro, Fe, que representa tanto um tomo de ferro
quanto uma barra de ferro. Para Gabel, os alunos no conseguem integrar os
nveis de representao, levando-os a uma viso fragmentada da qumica com
muitos enigmas, que parecem no ser articulveis, devido s vrias possibilidades
de interpretao desses nveis de representao e, ainda, porque os professores
lecionam aulas de Qumica sem saber articular um nvel ao outro (p. 549).
Gabel (1998) aponta, tambm, que alm da complexidade do ensino e
aprendizagem da qumica ocorrer pelo fato das observaes serem feitas no nvel
macroscpico, enquanto as explicaes e teorias que os alunos devem entender
dependem do nvel atmico e molecular e que, por sua vez, representado
simbolicamente, no podemos desconsiderar que alguns equvocos e mesmo
algumas concepes errneas podem decorrer de um aprendizado em contextos
limitados e generalizados para alm destes mesmos contextos. Segundo Gabel os
livros didticos apresentam contextos limitados que carregam a pretenso de
generalizar determinadas transformaes qumicas que nem sempre correspondem
ao que ocorre no cotidiano. Estas generalizaes podem ser encontradas em alguns
livros didticos que contribuem para a aquisio de concepes errneas. Gabel
alerta que no de admirar que, mesmo professores de qumica podem ser uma
das causas de equvocos (p. 233-234). A autora explica que certos docentes no
estimulam e nem realizam crticas a essas generalizaes errneas no ensino-
aprendizado de Qumica.
Nessa mesma linha da discusso proposta pela Gabel, acreditamos na necessidade
de definir e integrar os aspectos constituintes do conhecimento qumico: fenmenos,
teorias e linguagem. Esta abordagem epistemolgica pode contribuir para o
conhecimento qumico mais significativo e dinmico, ou seja, menos mecnico, no
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conduzido memorizao de curto prazo que pode levar os educandos a confuses
entre o real e o representacional. Machado (2004) fala da fundamental necessidade
das inter-relaes entre linguagem e mundo dos fenmenos e teorias. Esta relao
mundo linguagem pensamento uma questo epistemolgica bsica na
construo do conhecimento nas aulas de Qumica (p. 171).
Kozma et al (1997), no artigo: Use of Simultaneous-Synchronized Macroscopic,
Microscopic and Learning of Chemical concepts, defendem a articulao desses trs
nveis da Qumica e sua associao com o cotidiano dos alunos para melhorar a
compreenso conceitual no ensino-aprendizagem de Qumica. O artigo trata de um
projeto baseado em um software que prev articulaes explcitas entre os trs
nveis e possibilita a representao simultnea do nvel microscpico e do nvel
macroscpico. Alm disso, esse projeto ajuda os alunos a entenderem, atravs de
modelos, como os especialistas acreditam ser a Qumica microscopicamente. Os
autores apresentam um software denominado 4M: CHEM, utilizando computador
que permite a diviso da tela em quatro janelas. Deste modo, possvel mostrar, ao
mesmo tempo, vdeos de experincias reais, animaes em nvel molecular destas
experincias, e as representaes simblicas como equaes, grficos ou
diagramas das propriedades ou estruturas macroscpicas. As quatro janelas podem
ser mostradas individualmente ou em qualquer combinao, possibilitando vises
sincronizadas dos fenmenos qumicos nestas aes combinadas entre janelas. O
processo de combinao das janelas pode ser pausado e reiniciado a fim de auxiliar
as discusses de articulaes entre o macroscpico, o microscpico e o
simblico/representacional.
A respeito de dificuldades em desenvolver compreenso conceitual em Qumica,
Kozma et al (1997) enumeram trs possveis causas:12
Primeira, o ensino de Qumica pode simplesmente enfatizar o nvel simblico e resoluo de exerccios em detrimento dos fenmenos e do nvel de partculas. Segunda, se o ensino de Qumica ocorre nos nveis macroscpico, microscpico e simblico, conexes insuficientes so feitas entre os trs nveis e a informao permanece compartimentada na memria de longo prazo dos estudantes. Terceira, estudantes podem no entender mesmo com instrues em todos os trs nveis que
12
Consta no artigo que as trs causas foram atribudas por GABEL, em 1993.
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enfatizem as inter-relaes, se os fenmenos considerados no forem relacionados ao cotidiano dos estudantes (p. 330).
De acordo com os autores, a proposta de usar tecnologia computacional (como
simulaes de experincias) no requer a eliminao de demonstraes e
experincias realizadas na sala de aula, mesmo se considerando a diminuio de
custos, problemas de segurana e o extenso tempo de preparao e limpeza. O uso
de tecnologia ajuda os alunos a visualizarem fenmenos qumicos que ocorrem no
cotidiano e suas relaes microscpicas, melhorando a compreenso de conceitos
qumicos.
Segundo Vicente Talanquer (2011) no artigo Macro, submicro, and Symbolic: The
many faces of the Chemistry triplet, a ideia de que o conhecimento qumico pode
ser representado de trs maneiras principais: macro, submicro e simblica (trip da
qumica) tornou-se paradigmtica em qumica e em educao cientfica. Esta ideia
vem sendo utilizada tanto como base de referenciais tericos que orientam
pesquisas em educao qumica quanto como ideia central em diversos projetos
curriculares (p. 179).
Embora, nosso contato com a ideia de integrao dos aspectos constituintes do
conhecimento qumico, fenmenos, teorias e linguagem, foi propcio pelo texto da
Proposta Curricular de Qumica de Minas Gerais (1998, 2004, 2005 e 2007),
ressaltamos que nosso estudo interessa por extrapolar os limites desse documento.
Percebemos que esta ideia trata-se de uma questo epistemolgica de grande
abrangncia e repercusso nacional e internacional. Tomando o artigo de Johnstone
de 1982 e o artigo de Talanquer de 2011, podemos enfatizar que esta questo vem
sendo discutida por trs dcadas num contexto de melhoramentos na compreenso
da natureza do conhecimento qumico. Desse modo, nosso estudo encontra-se num
patamar de reflexo atual e relevante.
2.3. A propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica
Os estudos de SCHUMMER, 2003; LABARCA, 2005; LOMBARDI e LABARCA,
2006; RIBEIRO 2008 e ESTANY, 2011, entre outros, envolvendo Filosofia da
Qumica, so consideravelmente recentes. Devido a isto no nos propusemos a
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defender nenhuma posio, pelo contrrio apresentamos apenas algumas
consideraes destes pesquisadores. Contudo, pensamos na convenincia de
refletir a propsito da possvel autonomia ontolgica da Qumica. Para tal reflexo,
buscamos a problematizao referente ciso entre mundo da cincia e mundo
vivido, proposta tanto por Bakhtin, nosso referencial terico, como por Husserl nos
seus estudos de fenomenologia.
Mikhail Bakhtin, em sua obra Para uma Filosofia do Ato Responsvel, preconiza que
o mundo como o contedo do pensamento cientfico um mundo particular,
autnomo, mas no separado, e sim integrado ao evento singular e nico do existir
atravs de uma conscincia responsvel em um ato-ao real (1920-24/2010, p.
58). Em Husserl encontramos a recomendao: voltar s coisas mesmas, fazer um
retorno ao mundo-da-vida (Lebenswelt) (OLIVEIRA, 2006, p. 148). No entanto, tal
recomendao no deve ser entendida como algo da ordem do concreto, o que
poderia conduzir a um empirismo ingnuo. Assim, a fenomenologia no consiste em
abdicar da objetividade da cincia, mas reatar a cincia ao mundo vivido.
Ao invs de anular o saber cientfico, o retorno ao mundo-da-vida leva-nos a consider-lo no como um saber dogmtico que quer encarcerar o mundo em suas representaes rgidas e fechadas, mas como se constituindo, a partir do mundo percebido, sempre como um saber aproximado, aberto (OLIVEIRA, 2006, p. 149).
A vizinhana, que apontamos entre Bakhtin e Husserl, pode ser encontrada na nota
16 da obra Para Uma Filosofia do Ato13, uma reflexo proposta por S. Averintsev:
a sequncia inteira do pensamento de Bakhtin como um todo est essencialmente prxima da abordagem de Husserl. A fenomenologia de Husserl orienta-se para a unidade indivisvel da experincia vivida (Erlebnis) e a inteno contida nela. Os conceitos chaves de Bakhtin (evento, eventicidade, uma ao realizada: postupok) so similares nesse aspecto ao Erlebnis de Husserl (1993, p. 97).
E, tambm, no prefcio do tradutor Vadim Liapunov da edio americana:
O resultado ltimo da separao entre o contedo de um ato e a sua realizao-experimentao nica que ns nos encontramos divididos entre dois mundos no comunicantes e mutuamente impenetrveis: o mundo da cultura (no qual os atos de nossa atividade so objetivados) e o mundo da vida (no qual ns realmente criamos, conhecemos, contemplamos, vivemos nossas vidas e morremos isto , o mundo no qual os atos de nossa atividade so realmente realizados uma vez e uma nica vez). (o
13
Nossas citaes da nota 16 e do prefcio do tradutor da edio americana so referentes verso da obra Para uma Filosofia do Ato traduzida para fins didtico e acadmico.
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leitor pode notar aqui a antecipao de Bakhtin do conceito de Husserl do Lebenswelt) (1993, p. 13).
Lombardi e Caballero (2007) consideram que a qumica como cincia experimental
constri seu discurso a partir da caracterizao de uma realidade concreta, as
substncias e suas transformaes, o que exige falar de diferenas e interaes (p.
389). Assim, podemos pensar o mundo da Qumica a partir dos trs nveis:
macroscpico, microscpico e representacional, porm entendendo as diferenas
entre o real e o simblico e as interaes necessrias para a compreenso dessa
cincia que pode possibilitar importantes conhecimentos no nosso mundo vivido.
O mundo como objeto de cognio terica no deve se fazer passar como o mundo inteiro, pois ele apenas um constituinte do mundo real. A cognio terica no a ltima cognio; ela est integrada no contexto nico, individual do pensamento real como evento (AMORIM, 2003, p. 17).
Ainda na perspectiva da experincia vivida, Pierre Laszlo afirma que o homem o
ser que encontra sentido no mundo e que para compreend-lo utiliza cdigos e
ressalta analogias (LASZLO, 1995, p. 21). Mais adiante, na mesma obra, As
palavras das Coisas ou a linguagem da Qumica, Laszlo comenta:
A qumica construda sobre ambivalncias, a comear por aquela do esttico e do dinmico: como posso dar uma representao unitria das molculas, sob o aspecto de uma frmula ou de um modelo, uma vez que preciso conceb-las quer quando em repouso, imveis, e por assim dizer encravadas, quer nas suas efuses de reatividade, assim que so estimuladas por outra molcula ou pela ao de uma radiao? (p. 83, grifo do autor).
Uma vez problematizada a ambivalncia esttico-dinmica, possvel salientar que
o ensino de Qumica centralizado em memorizaes de smbolos, frmulas e regras
de nomenclaturas tende a separar o mundo do conhecimento e o mundo que
habitamos, chegando a transformar cdigos descritivos em representao
inquestionvel do real.
A linguagem qumica no importante apenas porque vai registrar o fenmeno de uma forma mais concisa e simplificada, mas que ao registrar o fenmeno dessa forma vai configurar os limites e as possibilidades de um certo lugar de observao desse fenmeno (MACHADO, 2004,p. 172).
A preocupao com a separao da Qumica e do seu Ensino de nosso mundo
vivido, tanto no sentido mais restrito apresentado por Lombardi e Caballero, Laszlo e
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Machado, quanto naquele mais amplo das preocupaes de Bakhtin e da
Fenomenologia, pode ser identificada nos Parmetros Curriculares Nacionais do
Ensino Mdio PCNEM:
no Brasil, a abordagem da Qumica escolar continua praticamente a mesma. Embora s vezes maquiada com uma aparncia de modernidade, a essncia permanece a mesma, priorizando as informaes desligadas da realidade vivida pelos alunos e pelos professores (BRASIL, 1999, p. 239, grifos nossos).
Oliveira (2009) chama ateno para uma concepo do saber cientfico construdo e
se construindo que nos permite refletir a preocupao descrita no PCNEM (1999) a
respeito do ensino de Qumica que vem priorizando as informaes desligadas da
realidade vivida.
No se trata de negar o olhar desencarnado, mas de despert-lo do sonho de um conhecimento soberano e de uma objetividade absoluta; de contest-lo em sua viso de mundo, quando se esquece de sua origem secundria e construtivista, para fechar-se sobre si mesmo e colocar-se como modelo absoluto da realidade ou viso universal de mundo. O que, na perspectiva do olhar encarnado no podemos admitir na cincia que ela tenha a exclusividade do verdadeiro. No se trata de ser contra a cincia, de neg-la ou mesmo de desacreditar o saber cientfico (OLIVEIRA, 2009, p. 8).
Entendendo a autonomia ontolgica da Qumica, ou seja, o mundo da Qumica, luz
das contribuies bakhtiniana e fenomenolgica, parece possvel uma tentativa de
interao entre a cincia (Qumica), seu fazer (seu Ensino, entre outros) e o mundo-
da-vida. Todo fenmeno particular est imerso no elemento dos primrdios do ser
(BAKHTIN, 1979/2010, p. 398). Como nos diz Labarca e Lombardi a noo de
dependncia ontolgica filosoficamente clara e significativa, contudo num
pluralismo ontolgico das cincias mesmo que ontologicamente ligadas, nenhuma
delas depende das outras para existir (p. 86). Desse modo, o possvel pluralismo
ontolgico das cincias: o mundo autnomo da Qumica, o mundo autnomo da
Fsica e etc. so ontologicamente dependentes, ou melhor, no separados do
mundo da vida.
2.4. Reflexo sobre a dimenso axiolgica
Uma vez problematizada as implicaes epistemolgicas e ontolgicas para a
Qumica e seu ensino, julgamos necessrio refletir outra dimenso: a axiolgica.
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Esta torna possvel discutir implicaes de natureza tico-moral14 nas prticas
cientficas e educacionais. A revista Qumica Nova (2011) traz em seu Editorial uma
discusso envolvendo Responsabilidade, tica e Progresso Social:
A tica se constitui em um conjunto de valores morais que procuram orientar o comportamento dos seres humanos em toda as situaes. Desta forma, influencia a sociedade assim como influenciada pela prpria vivncia dos cidados. A responsabilidade e a tica caminham juntas, da mesma forma que o desenvolvimento das cincias e a tica (p. 1489).
Sabemos que a Declarao Final das Naes Unidas para a educao, a Cincia e
a Cultura Unesco de 1999 sobre Cincia para o sculo XXI: um novo compromisso
trouxe consideraes que estabelecem relaes entre cincias e tica. Tais
consideraes tm repercutido no meio acadmico. Estany (2011) ao considerar a
importncia da qumica para a indstria, prope uma reflexo tica sobre suas
aplicaes. A autora chega a enunciar a possibilidade de uma quimiotica (p. 53).
Em Cachapuz e Praia (2005), encontramos a compreenso de CTS como um
compromisso tico. Para estes autores, a relao Cincia-Tecnologia se d num
contexto societal que indissocivel de um compromisso tico de sentido coletivo
(p. 174). Eles percebem a
trilogia CTS como um compromisso tico, que obriga a uma interveno social, marcada por um saber que prepara para uma cidadania responsvel e para a tomada de decises. A no termos em conta tal compromisso a Cincia pode tornar-se vtima do seu prprio desenvolvimento (p. 173).
Nesse sentido da dimenso axiolgica prepusemos o estudo15: Articulao CTS no
Ensino de Qumica sob a tica Responsiva de Mikhail Bakhtin, onde tratamos da
articulao CTS, com nfase em Qumica, num compromisso tico entendido
atravs da noo de ato responsvel de Bakhtin. Sua reflexo sobre a tecnologia
divorciada da vida, proposta na obra Para uma Filosofia do Ato Resp