Dispersão Humana
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Parque Arqueológico do Vale do Côa.
Origem e Dispersão
do Homem
De África
ao Vale do Côa
2 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Conteúdo Introdução ..................................................................................................................................... 3
A dispersão humana ...................................................................................................................... 4
Evolução em África ................................................................................................................ 5
Fora de África Primeiro Ensaio. ............................................................................................. 6
Em África, o desenvolvimento cognitivo ............................................................................... 7
Definitivamente Fora de África. ............................................................................................ 8
Colonização da Europa ............................................................................................................ 10
Protocolonização da Europa ............................................................................................... 12
Doze mil anos de colonização ............................................................................................. 15
O Gravetense ....................................................................................................................... 15
O Máximo glaciar .................................................................................................................... 17
A Península Ibérica .............................................................................................................. 18
Montanhas Ibéricas, refúgios no refúgio. ........................................................................... 19
A Desglaciação ......................................................................................................................... 21
O Magdalenense ................................................................................................................. 21
Recolonização da Europa ........................................................................................................ 23
O Vale Do Côa no contexto das Migrações Humanas. ........................................................ 25
Filogeografía ................................................................................................................................ 27
Propriedades do ADN .................................................................................................................. 28
Bibliografia .................................................................................................................................. 33
3 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Introdução A espécie a que pertencemos parece ter-se diferenciado filogeneticamente, há
aproximadamente duzentos mil anos, em África. Desde a sua especiação até aos primeiros
vestígios do seu trânsito no meato do Vale do Côa passaram perto de cento e sessenta mil
anos. As marcas antigas da presença humana no continente africano e noutras partes do
mundo testemunham os seus movimentos e modos de vida. Essas marcas ajudam-nos a
compreender melhor a história da nossa evolução e particularidades, enquanto indivíduos e
seres sociais. Particularidades que fazem de nós membros da espécie humana.
As marcas do passado do Homem não estão apenas registadas nos objectos que no passado
construiu ou manipulou ou nos fósseis que deixaram. Na matriz genética da população que
actualmente constituímos está registada a nossa origem enquanto espécie e muita da história
da população a que pertencemos. A origem biológica, os momentos de crescimento, as fases
de decréscimo e padrões de migração, desde as populações actuais até ao antepassado
comum das actuais populações, podem ser inferidos a partir da comparação de sequências
características do nosso ADN.
Os mais de 20 anos que marcam o início da sequenciação das regiões hipervariaveis do
genoma mitocondrial têm trazido uma luz nova à pré-história humana. Toda esta nova
dimensão ainda não foi explorada no Museu do Côa. É aqui feito um resumo que, não sendo
exaustivo, constitui o que achamos ser essencial do que é actualmente conhecido nas áreas da
filogeografía humana e da arqueologia acerca dos movimentos migratórios das populações,
desde o aparecimento do Homem e sua migração para fora de África até à sua chegada à
região do Vale do Côa, ainda no início do paleolítico superior médio. O papel das populações
do Vale do Côa no evento de repovoamento do centro e norte da Europa, no final da época
glaciar, é também mencionado.
4 PAVC – Origem e dispersão do Homem
A dispersão humana Das teorias que se propõem explicar a origem e dispersão do Homem pelo Mundo, duas há
que são entendidas como as mais comprováveis. Das duas, o modelo de substituição é a teoria
que neste momento nos parece reunir maior consenso.
O modelo de substituição, proposto por Stringer e Andrews em 1988, também conhecido
como o cenário “Fora de África”, defende que o Homem anatomicamente moderno terá
evoluído em África e daí se terá dispersado pelo mundo, acabando por substituir outras
espécies de Homo existentes. Este modelo presume que H. sapiens sapiens terá emergido em
África como uma espécie distinta, não se reproduzindo com outras espécies de Homo suas
contemporâneas, mas terá competido com elas, acabando por as substituir.
O modelo da continuidade regional, proposto por Wolpoff em 1994, também conhecido como
o Modelo Multiregional, opõe-se ao modelo de substituição no sentido em que defende que as
várias populações de Homo sapiens actualmente existentes se terão originado por evolução
convergente em diferentes partes do mundo a partir de fluxos genéticos normais entre
populações pré-modernas de Homo (Homo heidelbergensis e Neandertal). Segundo o modelo
multiregional, uma grande mobilidade genética entre diferentes populações de Homo na
Europa, Ásia e África resultaria no agregado genético uniforme de Homo sapiens sapiens actual
(Holmes, 2009).
Ambos modelos reúnem defensores e opositores, mas enquanto o cenário “fora de África”,
descrito no modelo de substituição, é apoiado por uma grande quantidade de dados genéticos
e arqueológicos, o cenário da continuidade regional sustenta-se sobretudo em dados
arqueológicos (Stefoff, 2010).
No texto seguiremos o paradigma proposto pelo modelo de substituição, uma vez que é o que
reúne maior consenso multidisciplinar.
5 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Evolução em África
Durante o período mais frio do estádio glaciar de Riss e submetidos às forças naturais que
moldam a evolução das espécies, as primeiras populações de Homo sapiens sapiens terão
emergido enquanto espécie em África há perto de duas centenas de milhares de anos,
constituindo-se como um ramo taxonómico próprio de um tronco que aproximadamente cem
mil anos antes já teria dado origem ao homem de Neandertal (Macdougall, 2005). O
aparecimento do Homem enquanto espécie independente não aconteceu de modo
instantâneo, deve antes ter ocorrido de forma lenta e gradual.
Contemporâneos aos primeiros Homem, viviam em África algumas outras espécies do género
Homo tais como Homo erectus ou Homo heidelbergensis e muito provavelmente outras
espécies ainda por descrever. Também contemporânea dos primeiros Homens encontramos
evidências de uma era glaciar que se teria iniciado 50.000 anos antes da sua especiação e
apenas terminaria 50.000 anos depois, tendo o período mais adverso acontecido na segunda
metade do fenómeno climático há aproximadamente 120.000 anos atrás. A data de ocorrência
do estádio glaciar de Riss e em particular o seu momento mais hostil coincidem com os valores
estimados para a coalescência das sequências de ADN mitocondriais até a “Eva mitocondrial” o
que indicia uma possível associação entre este evento climático e o fenómeno da emergência
de Homo sapiens sapiens.
De que maneira terá surgido a espécie um taxon separado? Entre os organismos vivos os
fenómenos de especiação estão associado muitas vezes associados a efeitos de forte redução
populacional. Quando isto acontece por causa de variações ambientais drásticas e
prolongadas, a capacidade de resistência e adaptação das populações à alteração é muito
baixa, podendo acontecer que numa região apenas uma fracção da população sobreviva,
causando que apenas um fragmento do agregado genético inicial da população sobreviva.
Estes acontecimentos de rápido declínio populacional associados a fenómenos de selecção
natural e drift genético levam ao aumento da taxa de fixação de características novas nas
gerações seguintes e à consequente especiação. Estes grupos humanos, cujas mulheres
transportavam as sequencias mais antigas de ADN mitocondrial, são o povo do Clã Eva (Fig 1).
A resiliência destes primeiros grupos face à adversidade ambiental está na origem da nossa
existência enquanto espécie.
Os primeiros vestígios arqueológicos da presença de Homo s. s. Consistem de ossos
desenterrados em dois locais na Etiópia, datados directamente por carbono 14, tendo-se
estabelecido terem 165.000 anos. Na altura as condições de vida para os hominídeos
deterioravam-se, os biomas alteravam-se devido à fraca pluviosidade, o Sahara expandia-se
para norte e sul de África e os ecossistemas desagregavam-se, tornando a sobrevivência difícil
(Van Alden, 1996). Estes primeiros Homens, ainda muito à mercê dos elementos, não deixaram
evidências de possuírem qualquer vantagem tecnológica sobre outras populações suas
contemporâneas de outras partes do mundo, não tendo ainda ultrapassado o nível
acheuliense de tecnologia que também caracterizava os utensílios dos seus “primos” Homo
sapiens neanderthalensis.
6 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Fig 1. Local de provável origem do Clã Eva na região do Grande Vale do Rift (adaptado de Behar, 2008).
Fora de África Primeiro Ensaio.
A descoberta e colonização de novas terras parece ser um desígnio do género Homo. Antes de
nós, Homo s. sapiens, termos colonizado a Europa e Ásia já por lá tinham estado Homo erectus,
Homo heidelbergensis e Homo neanderthalensis, todos, exceptuando o homem de Neandertal,
migrantes do grande continente Africano.
A descoberta de duas cavernas em Israel, Skhul e Qafzeh, com vestígios ósseos de H. s.
sapiens, datados de aproximadamente 100.000 anos, sugerem um breve episódio migratório
para fora de África entre 130.000 e 80.000 anos antes do presente. Este primeiro momento
para fora de África pode estar associado a um breve mas pronunciado melhoramento climático
conhecido como interglaciar Eemiano, que se caracteriza por ter permitido temperaturas
semelhantes às que hoje conhecemos. A indústria lítica encontrada, de nível tecnológico
mousteriense, semelhante àquela usada por Homo s. neanderthalensis, mostra que estas
populações ainda não teriam desenvolvido a sua tecnologia para além daquilo que era
conhecido por outros hominídeos. No entanto, conchas de moluscos marinhos perfuradas e
pintadas com ocre vermelho, encontradas nos sítios de Skhul e Oued Djabbana (este último na
Argélia), indiciam a existência de pensamento simbólico entre estes primeiros migrantes
(Tattersall, 2009; Bouzouggar et al., 2007).
A primeira saída de África de Homo. s. sapiens não foi consequente. A migração seria
abruptamente interrompida, possivelmente devido à deterioração climática que se seguiu ao
episódio interglaciar e ao facto de, aparentemente, Homo s. sapiens não possuir superioridade
competitiva. Eliminadas ou empurradas de volta para África, ou para o sul da Península
Arábica, há aproximadamente 80.000 anos, tanto as populações de H. s. sapiens que
ocupavam estes locais, como o bioma a ele associado terão sido completamente substituídos
por biota paleartico onde se incluía o Homem de Neandertal, biologicamente mais adaptado
ao frio (Ambrose, 1998).
Eva
mt
7 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Em África, o desenvolvimento cognitivo
Há aproximadamente 70.000 anos, em substituição do interglaciar Eemiano, começa a
estabelecer-se pelo planeta um clima mais frio, caracterizado nos Alpes pelo Wurm I. A esta
deterioração climática associa-se a mais violenta explosão do pleistoceno. O efeito de inverno
vulcânico provocado pelas cinzas emitidas durante a erupção do monte Toba, na Indonésia,
terá levado a um súbito arrefecimento resultando em algumas das temperaturas mais baixas
registadas para o pleistoceno superior (Ambrose, 1998).
Aparentemente refugiados na África subsaariana, grupos de homens começam a evidenciar
modernização no modo de subsistência aprendendo a utilizar os recursos do mar e
desenvolvendo técnicas de uso de osso que apenas estariam generalizadas na Eurásia algumas
dezenas de milhares de anos mais tarde (Yellen, 1995; Tattersal, 2009). Na África do Sul nos
sítios de Boomplaas, Rio Klasies, Blombos e Diepkloof, novos métodos de lascar a pedra, novos
géneros de raspadeiras para tratar as peles, utensílios em osso usados como pontas de lanças,
furadores em osso para trabalhar as peles, conchas de moluscos perfuradas, usadas como
peças ornamentais, e representações abstractas gravadas em peças de ocre vermelho
parecem confirmar o estabelecimento de uma maior modernidade de comportamento e
cognição entre populações de Homo sapiens (Henshilwood et al., 2002, Soares, et al., 2010,
Mellars, 2004).
Fig 2. Primeiros movimentos migratórios de Homo s. s. para alem do Grande Vale do Rift (Adaptado de Behar, 2008).
Este aparente desenvolvimento tecnológico e cognitivo surge a par da expansão populacional
dos marcadores mitocondriais L2 e L3 (Clãs L2 e L3). Os Clãs L2 e L3 descendem do Clã L1, um
haplogrupo primordial, directamente descendente da Eva mitocondrial, que anteriormente se
teria espalhado pelo Sul de África (Fig 2). Entre 80.000 e 60.000 anos atrás o aumento
populacional dos clãs L2 e L3 é notável, ocorrendo a sua expansão pela totalidade do
Clã L0
Clã L1
Eva
mt
8 PAVC – Origem e dispersão do Homem
continente africano (Fig 3). O Homem aparece mudado e parece menos condicionado pelas
circunstâncias ambientais. As causas desta resiliência e aparente prosperidade numa época de
provável limitação de recursos não estão completamente definidas, mas a possibilidade de
estarem relacionadas com o desenvolvimento tecnológico e cognitivo ocorrido à época não
devem ser deixadas de parte (Mellars, 2005).
Definitivamente Fora de África.
O caminho usado pelo homem para fora de África não é consensual, no entanto o modelo que
propõe uma via a sul, pelo corno de África é aquele que mais apoio tem recebido (Macaulay et
al., 2005).
Equipados com tecnologia e cognição precursores daqueles que caracterizarão o paleolítico
superior eurasiático, membros do clã L3, que tinha vindo a prosperar em África durante os
últimos 20.000 anos, continuam a sua expansão populacional para fora de África. Os
descendentes deste grupo serão os únicos representantes de H. s. sapiens a sobreviver fora do
continente africano o que faz com que todos os não africanos actuais sejam descendentes
deste clã L3 (Fig 3).
Um pouco antes ou pouco depois deste primeiro passo na jornada de colonização mundial,
duas mutações ocorridas no genoma mitocondrial de mulheres deste clã e fixam-se nas novas
populações migrantes dando origem às linhagens M e N, aqui tratados como clãs M e N.
Ambos clãs terão saído do continente pelo do corno de África, uma região a nordeste de
África, onde se incluem as actuais Somália e Etiópia, chegando à península arábica entre 70 a
50 mil anos atrás (Maca-Mayer et al., 2001; Mellars, 2005).
Fig 3- Expansão populacional dos clãs L2 e L3 (adaptado de Behar, 2008).
Na península arábica os clãs M e N encontram condições propícias para o crescimento e ambos
se estabelecem, colonizando esta nova região e aumentando a sua população e alcance
Clã L2
Clã L3 Clã L3
Clã L1
9 PAVC – Origem e dispersão do Homem
geográfico. Na península arábica um novo clã surge dentro do clã N. A linhagem mitocondrial
do Clã R aparece há 52.000 mil anos. De fundação contemporânea ao processo de saída de
África, estes três superhaplogrupos são também conhecidos como grupos fundadores. Todas
as populações não africanas actuais descendem de um destes três superhaplogrupos.
A colonização do sudeste asiático abriu as portas a um novo e generoso continente. As
condições de subsistência no novo território seriam de tal maneira favoráveis à nossa espécie
que a população cresce (Atkinson, 2008). Não tardaria que alguns grupos dos clãs fundadores
explorassem esse admirável mundo novo. A migração a norte, para a Eurásia, não terá
exercido, na altura, apelo, muito provavelmente devido à aridez e escassez de recursos que
deveriam caracterizar a paisagem de deserto e semideserto do norte de África e Próximo
Oriente (Macaulay et al, 2005; Soares, 2010), mas o comprimento da costa do oceano Índico
seria explorado numa jornada que conduziria membros dos três clãs até à longínqua Austrália,
ao abrigo do clima mais hostil do norte (Fig 4). Pelo caminho, os descendentes destes grupos
de gente colonizam a índia e sudeste Asiático num crescimento populacional sem precedentes
na história do Homem. Há aproximadamente 38 mil anos 60% da população mundial vivia no
continente indiano e nas penínsulas da Tailândia e Malásia conferindo a esta parte do mundo
um lugar de destaque na história da nossa espécie, reflectindo também as maiores
dificuldades que enfrentavam as populações noutros quadrantes do mundo (Van Alden, 1996,
Atkinson et al, 2009) (Fig 8).
Fig 4. Movimento migratório que levou à colonização do Sul e Sudeste Asiatico e da Australia levado a cabo maioritariamente pelo
Clã M.
A colonização do interior Eurasiático esperou pelo melhoramento climático, que terá
coincidido com o MIS 3 (Marine Isotope Stage 3, Fig X Anexo III), há aproximadamente 45.000
Clã M Clã N Clã R
Clã M
Clãs M N
R
10 PAVC – Origem e dispersão do Homem
anos atrás. Muito certamente tirando partido do aumento da temperatura e precipitação que
parecem ter ocorrido durante esta fase, populações costeiras do golfo Pérsico perecem ter
subido os vales dos maiores rios. Dois desses rios, o Tigre e o Eufrates, terão conduzido os Clãs
M, N e R aos Montes Taurus, um sistema montanhoso na actual Turquia (Torroni et al., 2006;
Macaulay, 2005; Shulz et al., 1998; van Andel, 1996) (Fig 5). Não é sem interesse apontar que o
monte Ararat, contíguo, a leste, deste sistema montanhoso é o local descrito pela bíblia como
sitio onde a arca de Noé terá fundeado e é também tido pela mitologia Persa, como sendo o
berço da espécie humana.
Colonização da Europa Grupos dos Clãs M, N e R, os três grandes clãs fundadores emergentes de África, sobem o Tigre
e o Eufrates em direcção ao Noroeste, numa jornada que os terá levado até à actual Turquia.
Estes Homens, muito provavelmente equipados com um conjunto de ferramentas distintas
daquelas usadas pelos seus “primos” europeus, o Homem de Neandertal, e com uma maneira
de pensar aparentemente também distinta, onde uma cognição complexa proveniente de
processos mentais, apelidados de recursivos, lhe permite criar na sua mente representações
de representações e compreensões sociais altamente complexas, acabariam por entrar na
Europa, aparentemente pelo Próximo Oriente, e colonizar o continente (Corballis, 2003;
Mellars, 2006; Hoffecker, 2009; Mellars, 2004).
Fig 5. Movimento migratório dos Clãs M, N e R desde a península Arabica até à região da actual Turquia. A migração está associada
ao aparecimento do haplogrupo U dentro do haplogrupo H.
N; R; M; U Clãs
M N R
Clãs
11 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Não existe ainda consenso acerca do momento da entrada da H. s. sapiens na Europa. É aceite,
no entanto, que esta deverá ter acontecido entres 45.000 (Bar-Yosef et al, 2007) e 42.000 anos
atrás (Zilhão et al., 2007), sendo que o primeiro registo inequívoco de H. s. sapiens na Europa é
encontrado na Roménia, no sítio de Pestera cu Oase (Caverna dos Ossos), uma caverna que
serviria de refugio de hienas. Os vestígios deste homem, que teria sido presa de animais
selvagens, datam de aproximadamente 41.000 anos atrás (Hoffencker, 2009; Soares et al.,
2010; Mellars, 2004; Svoboda, 2004).
Os Europeus partilham um mesmo conjunto de haplogrupos mitocondriais com as populações
do próximo oriente, conjunto de marcadores genéticos ausente nas populações da África
subsaariana e do leste asiático (Torroni et al., 1996). Por outro lado o genoma mitocondrial das
populações europeias, quando comparado com aquele das populações da Ásia do sul, é muito
pobre em relação às linhagens basais existentes na diversidade genómica mitocondrial global
actual (Torroni et al, 2006). Esta escassez deve ser entendida como resultado da pressão
ecológica que se fazia sentir neste quadrante do mundo sobre os primeiros humanos, na altura
da sua colonização, como resultado da localização periférica da Europa, aquando da
colonização do globo e também como resultado do reduzido apelo que o continente terá
exercido nas populações antigas. Na Europa H. s. sapiens teria de superar a escassez de
recursos e competir com outra taxa, entre os quais o Homem de Neandertal, pelos grandes
herbívoros. Este conjunto de factores está reflectido na muito reduzida diversidade em
haplogrupos mitocondriais de base. A análise da extensa filogenia mitocondrial disponível
mostra que a grande maioria das linhagens europeias actuais são descendem quase
exclusivamente do super clã R.
A colonização da Europa parece ter sido um evento complexo que terá ocorrido em múltiplas
vagas, caracterizado por substanciais retrocessos populacionais de volta para o próximo
oriente demonstrado pela evolução conjunta das linhagens hoje povoam o continente
europeu com as linhagens do médio oriente. Um evento fundador ocorrido durante o ultimo
máximo glaciar terá homogeneizado a agregado genético europeu sendo que a contribuição
genética do neolítico representa menos de um quarto do agregado genético Europeu actual
(Richards et al., 2000).
O Homem, sensu stricto, terá entrado na Europa há aproximadamente 45.000 anos. Estes
pioneiros, provenientes do Próximo Oriente, onde novas indústrias líticas, como a cultura
Ahmariana, já se teriam desenvolvido, deixaram vestígios da sua passagem na região da
Bulgária e Republica Checa (Bar Yosef, 2006).
Como resultado do fluxo genético aparentemente contínuo e bidireccional entre as
populações do Próximo Oriente e do Leste Europeu, novas culturas, reflectidas em novos
métodos de trabalhar a pedra, vão progressivamente avançando na exploração do continente.
A cultura Bohuniciana, aparentemente derivada da indústria de Boker Tachtit, desenvolvida no
sul do Próximo Oriente, penetra até à Europa Central, na região do Médio Danúbio (Richter,
2008).
12 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Protocolonização da Europa
A maneira como esta primeira fase da colonização do continente se processou não está, no
melhor dos nossos conhecimentos, completamente descrita. No entanto, com os dados
arqueológicos e genéticos disponíveis foi possível construir um modelo verosímil deste
processo.
Um ou mais grupos de pessoas do mesmo Clã podem ter entrado em definitivo no continente,
tornando-se residentes permanentes. No entanto, e tendo em conta os padrões dos
marcadores antigos no genoma mitocondrial actual, é mais provável que a colonização se
tenha realizado por incursões periódicas a partir de uma área com maior densidade
populacional numa zona mais recuada, provavelmente no Próximo Oriente. Aquilo que é
possível deduzir a partir da diversidade genética das actuais populações é que durante a fase
inicial de ocupação da Europa, substanciais retrocessos populacionais de volta ao próximo
oriente aconteceram (Richards et al., 2000).
Um dos Clãs candidatos a ter entrado no continente e a conseguir deixar descendência é, pela
sua grande representação na população europeia existente e a sua antiguidade (tempo de
coalescência de 52.000 anos), o Clã U.
Originado dentro do grande clã fundador R, que milénios antes teria subido pelos vales do
Tigre e do Eufrates, o Clã U origina-se na região do Próximo Oriente Mediterrâneo, no Médio
Oriente (Loogvali et al., 2004, Soares et al., 2010). Alguns membros do Clã U transitam para e
Europa e imediatamente se dividem em duas linhagens: O clã U8 é a mais antiga linhagem de
origem Europeia. Está representado com maior frequência entre os Bascos mas distribui-se por
toda a Ibéria, Europa Central e o Báltico (Fig 6). A expansão do Clã U na Europa tem sido, com
reservas de alguns autores, associada à expansão da cultura Aurignacence no continente, que
parece ter ocorrido há aproximadamente 37.000 anos (Gonzaláz et al., 2006; Bar-Yosef, 2006;
Zilhão, 2006) (Fig 7).
A cultura Aurignacence representa, na Europa, o florescimento de todas as características
tipicamente humanas, reunindo numa só cultura utensílios cuidadosamente talhados em osso,
hastes e marfim; a proliferação de adornos pessoais, como dentes de animais perfurados,
conchas marinhas, esferas de marfim cuidadosamente talhadas; o transporte a longa distância
destes ornamentos e o aparecimento de formas muito sofisticadas de arte abstracta e
figurativa como aquelas encontradas no sul da Alemanha (Fig 9) ou na caverna de Chauvet, na
França (Mellars, 2004; Mellars, 2006; Soares et al., 2010).
13 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Fig 6. Migrações que levaram à colonização do Norte de África e primeira grande migração para o interior Europeu. A colonização
pelo Clã U8 do norte Ibérico está associada à grande Expansão Aurignacence há aproximadamente 40.000 anos atrás.
Fig 7.Datação por 14C. As datas de dispersão são baseadas nas datações de 14C calibradas segundo a curva de calibração da bacia
de Cariaco. A distribuição de vestígios do Aurignacence é apresentada para comparação e podem não estar directamente
associadas às datas adjacentes (Fonte: Mellars, 2006).
A primeira grande vaga colonizadora do continente terá levado os limites da ocupação humana
até aos Pirenéus e montes cantábricos, constituindo o rio Ebro a fronteira natural entre a
Clã U8
Clãs N
R U
M Clã U6
14 PAVC – Origem e dispersão do Homem
ocupação do homem moderno a nordeste e os territórios do homem de Neandertal a sudoeste
que subsistia ainda na Europa no sudeste Ibérico (Zilhão, 1997). Até que ponto existiram
contactos entre as duas espécies não é consensual, continuando ainda o debate acerca da
provável miscigenação entre as duas espécies.
Fig 8.Evolução demográfica da população humana na Europa e Sudoeste Asiático estimada usando Bayesian Skyline Plot. A linha
central a preto representa a média estimada da população enquanto as linhas laterais a cinzento representam os limites máximo e
mínimo da população (Fonte: Drummond et al., 2005).
Fig 9. Animais e figuras humanas talhadas em marfim descobertas em sítios arqueológicos do sul da Alemanha. a-c, Caverna de
Vogelherd; d, Caverna de Hohlenstein–Stadel. As esculturas representam a cabeça de um leão das cavernas (a), um cavalo (b); um
mamute (c), uma figura humana masculina com cabeça de leão das cavernas (d) (Fonte: Mellars, 2004).
Po
pu
laç
ão
efe
cti
va e
m m
ilh
are
s
15 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Doze mil anos de colonização
A maioria das linhagens hoje existentes parece ter entrado na Europa em distintas e sucessivas
vagas, na passagem dos milénios que antecederam e se seguiram à expansão Aurignacence.
Provavelmente movidos pelas variações climáticas, substanciais retrocessos populacionais
parecem ter ocorrido para o próximo oriente. Apesar disso a quantidade de indústrias
contemporâneas do Aurignacence, aparentemente distintas e espacialmente separadas entre
si, que entretanto foram surgindo na Europa indicia um igual número de reentradas de grupos
de culturas diferentes e deve estar relacionado com a diversidade genética mitocondrial
encontrada nas populações europeias da actualidade.
Os registos arqueológicos mostram que a zona do Próximo Oriente esteve continuamente
ocupada, enquanto os registos evolutivos dentro dos grupos filogenéticos mitocondriais
presentes na actual população europeia mostram uma continuidade genética caracterizada
por padrões de contracção e expansão de Clãs mitocondriais, com epicentro na região do
Próximo oriente, para dentro e fora da Europa, que se traduz numa evolução conjunta dos
actuais europeus com populações do Próximo Oriente (Hewitt, 2000).
Apesar da progressiva colonização da Europa o aumento populacional dos nossos
antepassados é relativamente tímido quando comparado com aquele que experimentavam as
populações do sudoeste asiático e é testemunha da elevada pressão ecológica que o Homem
sentia na Europa. Aquando da primeira presença da Península Ibérica, há aproximadamente
40.000 anos atrás, a população Europeia total não ultrapassaria em número os 10.000
indivíduos (Fig 8) (Atkinson et al., 2008).
O Gravetense
A população europeia manteve-se relativamente constante nos 20.000 anos que se seguiram à
difusão do Aurignacence (Drummond et al., 2005). No entanto uma demografia estável não
deve ser confundida como uma população estática. O último terço do MIS3, é um período do
tempo geológico que vai desde os trinta e oito até aos vinte e sete mil anos atrás e é
caracterizado por um grande número de flutuações climáticas. Apesar de ser um período
glaciar, uma grande quantidade de fases de aquecimento como o Hengelo (39-36.000 anos
atrás) ou o Denekamp (32-28.000 anos atrás) em que a temperatura estaria apenas em média
4º abaixo das actuais, ocupam uma grande proporção deste estádio, montando o palco para
muitos episódios de migração (Meerbeeck et al., 2009). Tendo em conta as idades de
coalescência dos haplogrupos que caracterizam as populações europeias actuais, é possível
concluir que as várias vagas de colonização que se seguiram à expansão Aurignacence
trouxeram para a Europa os clãs T (~36.500 anos atrás) e I (~34.000 anos atrás) a par com
reentradas dos descendentes do clã U (Richards et al., 2000).
O Gravenetense surge no corredor do Danúbio há perto de 28.000 anos de radiocarbono
calibrado atrás. Tecnologicamente fundamentado em culturas do Próximo Oriente (Ahmarian,
Lagaman e Dabban) o Gravetense aparece como uma entidade de origem Europeia. Se
anteriormente, no continente, o Aurignacence representou o grande salto entre o arcaísmo e a
modernidade, o Gravetense representa o aparecimento da sofisticação e da adaptação. Os
grandes assentamentos ao ar livre, a baixa altitude e ao longo dos vales dos rios, como aquele
16 PAVC – Origem e dispersão do Homem
encontrado no Vale do Côa, são caracteristicamente Gravetenses, tal como também o são o
transporte a longas distâncias de material lítico, a cerâmica, o calçado e a sofisticação da
indústria dos materiais orgânicos. Testemunhados pela profusão de instrumentos com
variadas funções, parecem ter surgido no contexto Gravetense actividades como a tecelagem,
a cordoaria e o fabrico de redes para caça. Os Gravetenses também parecem ter sido os
primeiros Europeus a saberem usar os tubérculos de plantas para fabricar farinha,
conhecimentos que seriam de grande importância ao conferir a estas populações maior
autonomia perante o ambiente e as variações sazonais. A generalização de instrumentos
musicais como as flautas construídas com osso de abutre também parece ter acontecido
dentro do contexto Gravetense (Svodoba, 2007; Bougard, 2011; Soffer et al., 2000; Trinkaus,
2005; Connard, 2009; Revedin et al., 2010).
O passo evolutivo cultural que estes grupos representam é evidente no seio Europeu e está
bem representado pela sua área de influência no continente (fig 10).
Fig 10. Mapa esquemático dos sítios de ocupação Gravetense e das industrias mediterrâneas às quais a sua a sua origem esta
associada. Adaptado de Svoboda (2004).
O Clã H* surge no Médio Oriente da descendência do Clã R há aproximadamente 30.000 anos
e distribui-se nessa região que parece ter sido o local central da evolução biológica e
tecnológica europeia do inicio do paleolítico superior. Em conjunto com os Clãs H, seu
descendente e pré-V, que terão surgido há aproximadamente 24.000 e 26.000 anos,
respectivamente, no médio oriente ou sudoeste asiático, penetra na Europa pelas regiões da
17 PAVC – Origem e dispersão do Homem
península balcânica e do Cáucaso provavelmente aproveitando um melhoramento climático
ocorrido entre 33 e 25 mil anos antes do presente (Roostalu et al., 2007) (Fig 11).
Contemporâneos à cultura Gravetense, Os clãs H e Pre V entram na Europa, expandem-se e
diversificam-se numa aparente adaptação a um clima gradualmente mais frio e seco (Torroni
et al., 2001) (Fig 11). À medida que a degradação climática se acentua pela aproximação do
último máximo glaciar, há aproximadamente 20.000 anos, as populações vão-se gradualmente
refugiando nas regiões mais amenas do sudoeste europeu e, seguindo a costa do
mediterrâneo, pela península itálica e balcânica até ao Próximo Oriente e planícies do leste
europeu, sendo provável a existência de refúgios crípticos na tundra (Achilli et al., 2004;
Soares et al., 2010).
Fig 11. Movimentos migratórios dos Clã H e Pré V contemporâneos à expansão da cultura Gravetense há aproximadamente 27.000
anos atrás.
O Máximo glaciar As alterações climáticas do quaternário influenciaram a distribuição da biodiversidade na
Europa. Os sucessivos ciclos de aquecimento e arrefecimento, particularmente intensos nos
últimos 700.000 anos, ditaram a expansão e contracção das calotes polares árcticas e Alpinas
num movimento contínuo que só abrandaria com o inicio do holoceno há 10.000 anos atrás.
Por altura do último máximo glaciar, entre 20.000 a 14.000 anos atrás, a temperatura média
do solo estaria entre 10 a 20 ºC abaixo das temperaturas do presente, a calote polar árctica
recobria Escandinávia e chegava ao sul de Inglaterra enquanto chão permanentemente
congelado (permafrost) se estendia pela Alemanha e França num corredor delimitado a sul
pela calote alpina, e a calotes dos Pirenéus (Fig 12). Do sul da França desaparecem os auroques
e os veados, que não se adaptavam ao extremo ecológico, e aparecem as saigas, renas,
rinocerontes lanudos e mamutes mais adaptados ao bioma árctico. A vegetação torna-se
Clã H
Clã H
Clã H
Clã Pré V
Clã Pré V
18 PAVC – Origem e dispersão do Homem
herbácea e limitada aos períodos mais quentes da primavera e verão (Delpech, 1987; Kurtén,
2007).
Este foi um período de enorme pressão sobre os grupos humanos europeus onde se registam
baixas demográficas (Fig 8). Mas se a norte a tundra e o gelo dominavam, a sul das grandes
cordilheiras europeias vestígios animais e polínicos tornam claro que a maior parte da
diversidade faunística e florística que hoje conhecemos na Europa continuava a existir
(Santucci et al, 1998, Taberlet et al, 1998, Hewitt, 1999,Willis & Whittaker, 2000).
Fig 12- Extensão do gelo e do permafrost no ultimo máximo glaciar no continente Europeu. As linhas a picotado fino delimitam os
terrenos emersos resultado do decréscimo da linha do mar. As linhas a picotado grosso delimitam a extensão do permafrost a sul.
As zonas a tracejado representam zonas de presença de gelos permanentes. Os símbolos triangulares representam gelo oceânico.
(fonte: Hewitt, 1999)
A Península Ibérica
Situada no extremo Sudoeste da Europa, rodeada a Norte e Oeste pelo oceano Atlântico e a
sul e sudeste pelo mar Mediterrâneo, a Península Ibérica é a maior em área das três grandes
penínsulas do sul da Europa e esta ligada ao restante continente Europeu por um istmo,
constituído pela cordilheira dos Pirenéus, que hoje liga a Espanha aos territórios Franceses.
Três quartos da península são constituídos pela Meseta Central, uma unidade de relevo com
orogenia no Maciço Hespérico, uma cordilheira formada pela colisão da Laurásia com o
Gondwana durante o paleozóico que é caracterizada por rochas de tipo granítico e xistico. A
erosão continuada durante o Mesozóico terá transformado o maciço num planalto ondulado
posteriormente alterado, durante o cenozóico, pela orogenia alpina que terá produzido o
Maciço Galaico, os Montes de Leão, os Montes Vascos, a Cordilheira Cantábrica a norte, o
19 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Sistema Ibérico (onde nascem os rios Douro e Tejo) a nordeste, a Sierra Morena a sul e o
Sistema central no centro, do qual a Serra da Estrela é a extensão portuguesa. O resultado
destes processos geológicos foi um planalto com uma altitude média de 600m orlado por
montanhas cujos picos facilmente atingem 2000m de altitude (Fig 13).
Para alem dos sistemas formados durante a orogenia Alpina outros são encontrados a Sul e a
Este. O Sistema Bético, que se estende paralelo à costa até se fundir com o Sistema Ibérico a
Este, compreende o pico mais elevado da Península Ibérica, atingindo 3479m de altitude, e
outros que várias vezes ultrapassam os 3000m. A Cordilheira dos Pirenéus é outro sistema
montanhoso que facilmente ultrapassa os 3000m em vários dos seus picos.
Fig 13. Relevo resumido da Península Ibérica.
Dada a posição geográfica e orografia a Península possui uma grande quantidade de climas
distintos. Segundo a classificação Köppen-Geiger, e apesar de aproximadamente 40% da
península possuir clima temperado com verão seco e quente, encontramos aqui climas secos,
climas temperados e até climas polares. A grande variedade climática que se faz sentir na
Península permitiu a sobrevivência, em estádios glaciares e interestádios temperados, de
muitas espécies de animais e plantas. A esta grande capacidade tampão face às variações
climáticas estão associados os grandes maciços montanhosos.
Montanhas Ibéricas, refúgios no refúgio.
As cordilheiras e montanhas Ibéricas têm sido importantes sistemas de preservação da
biodiversidade ao longo dos tempos. Isto acontece porque se por um lado a bacia do
Cordilheira Cantábrica Pirenéus
Sistema Central
Sistema Bético
Sierra Morena
20 PAVC – Origem e dispersão do Homem
mediterrâneo está na intersecção de duas enormes massas continentais (Eurásia e África) que
contribuem para a enorme diversidade biológica da península, por outro lado as elevações
funcionam como condensadores de humidade e captadores de água de nuvens de baixa
altitude. Nos sistemas de montanha, a diferentes altitudes correspondem diferentes
temperaturas e regimes pluviométricos, o que permite, ao subir e descer uma montanha,
experimentar biomas de regiões quentes, no sopé, a poucos quilómetros de biomas de regiões
frias, nas zonas mais altas. As particularidades destes sistemas montanhosos Ibéricos são
preciosas em momentos de bruscas alterações climáticas, como aquelas que se pensa terem
ocorrido no decurso do pleistoceno, uma vez que as montanhas servem desta maneira de
sistema tampão às variações. A natureza fragmentar dos biomas de montanha estimula a
diversidade vegetal e animal disponibilizando um variado leque de oportunidades nutricionais
(Garcia-Guixé et al., 2009).
Muitos dos sítios que retratam a dispersão humana no paleolítico superior Ibérico encontram-
se nos sopés, encostas ou vales de rios originários destes sistemas de conservação da
biodiversidade, como sejam, a título de exemplo; A gruta de Nerja, na encosta da serra de
Almijara (1791m); Domingo Garcia, na serra de Guaderrama (2428m); Milhão, Pousadouro,
Fraga Escrevida e Ribeira da Sardinha, na serra de Montesinho (1486m); Poço do Caldeirão, na
serra da Estrela (1993m); Fornols Haut, nos Pirenéus (3402); Piedras Blancas, Sierra de Baza
(2269m); Molino Manzanes, na Sierra Morena (1324m) ou a Gruta de Altamira, no sopé da
cordilheira Cantábrica (2648m). Seja quais forem as razões pelas quais as antigas populações
de caçadores-recolectores decidiram ocupar estes sítios, não será alheio à sua decisão o facto
de aí encontrarem à sua disposição um reservatório de agua, diversidade alimentar e locais de
protecção contra predadores naturais.
A Península Ibérica foi um dos refúgios glaciares mais importantes da flora europeia durante o
máximo glaciar. A actual existência de espécies mesófilas e termófilas numa Europa central
onde a possibilidade de vegetação se reduzia a uma língua de tundra com solos de permafrost
entre os glaciares da Escandinavia e dos Alpes e Pirenéus só foi possível pela existência de
refúgios a sul. Áreas de refúgios foram identificadas para uma multiplicidade de organismos
(Tab 1). Sequências de pólen num depósito lacustre, no Charco da Candieira, Serra da Estrela,
atestam uma ocupação contínua de Quercus entre 14800 e 9525 BP enquanto a Oeste,
depósitos de carvão do paleolítico na Buraca Grande, Estremadura, demonstram a
sobrevivência de Pinus sylvestris (Pinheiro da Escócia), leguminosas e Olea europeae (Oliveira)
como taxa dominante numa paisagem com presença de Quercus (Carvalho), Arbutus unedo
(Medronheiro), Erica (Urze), Pistacia lentiscus (Pistacheira), Prunus Espinosa (Abrunheiro),
Phyllirea/Rhamnus (Lentisco/Espinheiro) e Crataegus (Espinheiro Branco) (Van der Knaap &
Van Leeuwen, 1997).
21 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Tab. 1. Espécies presentes, em refúgios, na Península Ibérica durante o ultimo Máximo Glaciar (Carrión, 2008).
A Desglaciação A desglaciação que se terá iniciado à aproximadamente 18.000 anos atrás, terá levado ao
recuo lento dos calotes e da tundra até latitudes mais a norte do que aquelas que hoje
conhecemos. Mapas de pólen mostram que espécies como o carvalho, o pinheiro o ulmeiro ou
o amieiro estavam presentes na franja atlântica das ilhas britânicas, talvez transportados pelas
correntes marítimas há 13.000 anos atrás. Algumas espécies de coleópteros tipicamente
mediterrânicos também estavam presentes nas ilhas britânicas por essa mesma altura,
sugerindo que o clima poderia estar mais quente do que no presente (Hewitt, 1999). O avanço
da floresta seria mais tarde interrompido por um brusco arrefecimento conhecido por
“Younger Dryas” (~10,5 Ka atrás com a duração de 1000 anos). Numa altura em que a floresta
boreal se expandia já no norte europeu, apenas um século foi necessário para que a
degradação climática obrigasse ao seu retrocesso e a uma nova expansão da tundra a sul. O
regresso a norte da floresta temperada só seria possível no final do “Younger Dryas”, época
que marca o inicio do holoceno. Há aproximadamente 6.000 anos atrás a vegetação Europeia
seria semelhante àquela que hoje conhecemos (Randi, 2007, pag 101-102; Van Andel, 1996).
O Magdalenense
A cultura Magdalenense parece surgir em simultâneo no sudeste francês, no norte e no leste
da Península Ibérica na transição entre o máximo glaciar e o inicio da desglaciação, há
aproximadamente 17.000 anos atrás (Garralda, 1988). Não se sabendo até que ponto as duas
culturas estariam interligadas mas a industria lítica Magdalenense parece derivar da cultura
Badegouliense, uma outra cultura que sobreviveria mais a norte em refúgios crípticos na
tundra (Pozzi, 2004; Pereira, 2005; Soares, 2009). O Magdalenense pode ter surgido por
22 PAVC – Origem e dispersão do Homem
resultado de uma migração a sul dos Badegoulienses, mas também é possível que contactos
tenham existido entre as duas culturas durante expedições de caça proto-magdalenenses ao
Nordeste francês (Pozzi, 2004).
Tal como os Aurignacences, ou outras culturas conhecidas que os precederam, os
Magdalenenses foram caçadores-recolectores. No entanto, enquanto culturas anteriores
podiam tirar partido de uma panóplia mais ou menos alargada de oportunidades nutricionais,
os Magdalenenses, resultado do contexto climático, dependiam fortemente da Rena, animal
que teria migrado do norte onde as condições de sobrevivência lhe eram hostis, de tal maneira
que alguns investigadores baptizaram a cultura magdalenense de Cultura da Rena.
No entanto, e ainda que não tenham sido encontrados indícios de que domesticassem
animais, os Magdalenenses podem estar de algum modo associados a uma stockagem de
animais. É provável que durante a caça os Magdalenenses empurrassem e retivessem animais
durante algum tempo em cercados naturais onde pasto e agua corrente existissem para depois
fecharem a saída com pedras e paus. Existem evidências de Lagopus sp, uma ave da família das
perdizes, com uma fractura no fémur, resultado de uma armadilha, que teria sido curada antes
da morte do animal, indiciando desta maneira uma permanência demorada num local livre de
predadores (Pozzi, 2004).
Os Magdalenenses mostraram ser uma cultura muito inventiva. Aperfeiçoaram a indústria do
osso e foram eles que desenvolveram os arpões em osso que desde então nunca deixaram de
ser usados na pesca dos mamíferos marinhos (Stefoff, 2010) (Fig 14).
Durante a desglaciação a “nação” Magdalenense protagonizou uma das maiores expansões
démicas de que há registo na Europa. Desde os seus abrigos no sudoeste Europeu, os
Magdalenenses começaram a colonizar a Europa central e do norte expandindo-se até à
Polónia. Estes movimentos migratórios deixaram marcas genéticas no ADN mitocondrial
europeu actual. Três Clãs, que hoje perfazem perto de 50% da população da Europa ocidental
iniciaram uma jornada de expansão Há aproximadamente 15.000 anos atrás. Enquanto os Clãs
H1 e H3 se espalharam num gradiente que apenas começa a esbater-se (Achilli et al, 2004;
Torroni et al, 2001).
Fig 14. Arpoes em madeira e propulsor de lança em forma de mamute (Fonte Stefoff, 2010)
23 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Recolonização da Europa O período que correspondeu ao máximo de frio do último estádio glaciar viu acontecer a
desertificação da maior parte da Europa. Os grupos humanos que perfaziam a provável
totalidade da população europeia encontravam-se refugiados a sul das grandes cordilheiras
dos Alpes e Pirenéus ou a leste dos Cárpatos. Muitos dos grupos que ocuparam a Europa,
descendentes das grandes expansões Aurignacence e Gravetense podem também ter
regredido para o Próximo Oriente.
Os Clãs V, H1 e H3 surgem na península Ibérica/Sudoeste Francês quase em simultâneo há
aproximadamente 16.000 anos atrás resultando da migração destes povos para norte e
constituem os marcadores que nos permitem reconstituir, pelo menos em parte, como se terá
processado a jornada de recolonização (Fig 15).
Fig 15- Caminhos de colonização tomados pelos Clãs H V e U durante a recolonização da Europa. As linhas a
tracejados são indicativas dos prováveis caminhos tomados pelas populações migrantes. Fonte Achilli et al., 2004;
Torroni et al., 2001, Pereira et al., 2005)
Há aproximadamente 15.000 anos atrás, já ultrapassado o difícil momento do máximo glaciar e
á medida que as condições climáticas melhoravam, as populações arrestadas no sudoeste
Europeu começam a reocupar o norte livre de gelo e a recolonizar uma Europa que se
começava a reflorestar. Este episódio da pré-história humana está marcado na matriz genética
da actual população Europeia (Fig 16).
U5 V
H3
H3
H1
24 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Demonstrativo desta migração do paleolítico final é o caminho percorrido pelo Clã V desde a
sua origem, na região dos Pirenéus até ao seu actual sítio de maior frequência, o norte da
Noruega e Finlandia (Fig 16).
Fig 16 – Distribuição em percentagem da população portadora do marcador genético, dos haplogrupos H; H1; H3; e
V. V1 mostra a distribuição europeia do haplogrupo V. V2 mostra a distribuição europeia do haplogrupo V
exceptuando o povo Saami da Noruega. Fontes: Achilli et al, 2004; Torroni et al, 2001.
V1 V2
25 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Os clãs H1 e H3 também são representativos do movimento migratório que o fim da idade do
gelo permitiu às populações anteriormente detidas na Península Ibérica.
Enquanto o Clã H constitui hoje cerca de 50% da totalidade da população europeia numa
distribuição muito homogénea, os Clãs H1 e H3, surgidos na Península Ibérica são os
marcadores da expansão démica protagonizada pela “Civilização” Magdalenense, mostrando
uma frequência maior na Península Ibérica que se vai diluindo à medida que dela nos
afastamos (Fig 16).
O Vale Do Côa no contexto das Migrações Humanas.
A ocupação do Vale do Côa parece ter-se iniciado há aproximadamente 30.000 anos atrás por
grupos culturais Gravetenses (Aubry et al, 2002, 2004). Estes primeiros Côenses devem ter
integrado a segunda grande vaga migratória do paleolítico Europeu que teria conduzido o Clã
H até ao Vale.
Neste primeiro período da ocupação do Vale, a maneira como os grupos humanos vivia o seu
quotidiano devia ser, idiossincrasias à parte, tipicamente Gravetense, ou seja, é muito provável
usassem roupa finamente cozida, e tivessem uma proto indústria têxtil e cerâmica. Estes povos
talvez fossem capazes de fazer farinha a partir de tubérculos de plantas e caçavam presas
pequenas com armadilhas e redes. Vestígios de ossos de camurça, veado, coelho e peixe
mostram que estas populações possuíam a técnica necessária para tirar partido dos recursos
que a região do Vale do Côa oferecia. Uma sociedade com este grau de diversificação obriga a
uma organização social bastante complexa e com grande área de influência.
O estudo dos vestígios da actividade humana no vale do Côa indicia que os grupos locais
exploravam os recursos existentes num raio de 50 km enquanto a zona que “administravam”
integrava uma rede social que se estendia pela cordilheira central ibérica numa área de 1000
km2 em que trocas de bens deveriam ocorrer, pelo menos nos limites dos territórios ocupados
(Aubry et al, 2002, 2004).
As gravuras mais antigas que encontramos no vale do Côa foram desenhadas por esta cultura
pré-histórica, e representam na sua grande parte os animais que deveriam fazer parte do seu
modo de vida. O cavalo e o auroque são os motivos aos quais é dada mais importância pelos
artistas desse tempo.
Não se sabe ao certo quanto tempo os Gravetenses ocuparam o vale, o que se sabe é que não
foram eles a única cultura a residir na região. O Solutrense, uma cultura europeia do máximo
glaciar, parece ocupar a península e sudeste francês, aparece no Côa a seguir ao Gravetense
deixando marcas arqueológicas e artísticas nos painéis de xisto das encostas do vale.
À medida que o máximo glaciar se aproximava e o clima se tornava mais frio e seco, as zonas
habitáveis da Europa emagreciam e grandes transformações ocorriam nas partes ainda
habitáveis. Há 23.000 anos aproximadamente em França, o avanço do gelo a norte, a
desertificação no centro e a formação de glaciares nos Pirenéus e Alpes levou à deflorestação
e consequente abandono dos animais associados aos bosques ao sul. Do Sudoeste francês
desaparecem corços e javalis. O auroque, que não consegue suportar condições tão extremas
26 PAVC – Origem e dispersão do Homem
também desaparece da região. Em substituição, das estepes asiáticas, chegam animais
resistentes ao frio como o mamute, o rinoceronte lanudo e a saiga. È por esta altura que surge,
aparentemente em França, o Magdalenense, a ultima grande cultura paleolítica a deixar
marcas no Vale. O Magdalenense representa no Vale do Côa o segundo grande momento
artístico do paleolítico (Baptista, 2006).
À medida que o gelo retrocede para as latitudes setentrionais, os grupos Magdalenenses
também iniciam o repovoamento da Europa central e do norte a partir do seu refúgio Ibérico,
tendo este fenómeno migratório ficado registado na matriz genética da actual população
Europeia.
O facto de a arte encontrada do Vale do Côa ter sido produzida pelos povos dos quais
descendem a maior parte dos habitantes da Europa ocidental, aliado à enorme dimensão
deste sítio arqueológico e à excelente preservação das suas obras tornam o Vale do Côa num
sítio impar no contexto da pré-história europeia e um local de passagem obrigatória para
todos os europeus que queiram conhecer as suas origens.
27 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Anexo I
Filogeografía A filogeografía é uma disciplina relativamente jovem que se debate com os processos e
princípios que governam as distribuições geográficas de linhagens de genes e revolucionou o
modo de abordagem à genética populacional e aos estudos de especiação.
São várias as razões para o grande crescimento que esta disciplina tem conhecido, mas a mais
importante de todas foi sem dúvida o inicio das análises de ADN mitocondrial há perto de três
décadas atrás. Graças às novas dimensões dadas pelos genomas citoplasmáticos ao nível da
genética das populações, é possível conhecer partes da história evolutiva da fauna e da flora
que hoje nos rodeiam e que antes estavam inacessíveis.
A seguir faremos um breve resumo do que são estes genomas citoplasmáticos, como se
organizam e de que modo as suas características particulares ajudam a conhecer a história da
evolução e expansão populações de plantas e animais que actualmente nos rodeiam.
28 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Anexo II
Propriedades do ADN ADN é um polímero de ácido desoxirribonucleico constituído em cadeia dupla, com bases
nitrogenadas (nucleótidos), associadas ao açúcar (Ribulose), cuja sequência constitui a
informação genética do organismo. Esta informação, codificada sob a forma de tripletes de
nucleótidos é transmitida da progénie para a prole e dá origem às proteínas que possibilitam o
funcionamento normal das células e promovem a vida.
No reino animal o ADN pode ser encontrado no núcleo das células (ADN nuclear ou nADN) ou
no citoplasma da célula e em pequenos organelos produtores de energia denominados por
mitocondrias (ADN mitocondrial ou mtADN).
O código genético é conservado quase inalterado através das gerações.
A informação contida no código genético é preservada e transmitida através das gerações de
uma maneira muito eficiente, sendo que os pequenos erros que acontecem periodicamente
são prontamente corrigidos por enzimas especiais (Polimerases do ADN) de maneira a evitar
mutações. No entanto durante o processo de duplicação do ADN (replicação do ADN) alguns
erros que acontecem não são corrigidos pela polimerase e ocorrem mutações. As mutações,
quando acontecem em regiões de codificação de genes, são quase sempre prejudiciais para o
organismo, causando a sua inviabilidade ou diminuindo a sua competitividade. Neste caso, a
variação genética é normalmente neutralizada pela eliminação do organismo portador por
selecção natural. Quando a mutação acontece numa região não codificante da cadeia de ADN,
ela é denominada de mutação neutra e pode ser transmitida, mas apenas se ocorrer em
células germinais (e.g. espermatozóide ou óvulo). De outro modo também esta se perde pela
morte natural do organismo.
Nem todo o ADN codifica proteínas.
Nem todo o ADN é codificante. Mais de 98% do ADN nuclear humano é constituído por
sequências não codificantes, uma grande parte das quais não possuem qualquer função
aparente. Estas sequências, porque não estão sujeitas à pressão da selecção natural, possuem
taxas de mutação acumuladas muito superiores às sequências codificantes do ADN (Elgar et al,
2008).
Propriedades do ADN mitocondrial
O ADN mitocondrial, normalmente representado pela sigla mtADN possui 16,6 kb de extensão
dos quais 1,1 kb são de região não codificante e possuem por isso taxas de mutação muito
maiores que as regiões codificantes sujeitas à pressão da selecção natural. Por outro lado o
mecanismo de reparação dos erros da replicação do mtADN é muito menos eficiente do que o
mecanismo do ADN nuclear, levando a que a frequência de mutação seja maior na mitocondria
do que no núcleo (Oven et al, 2008).
29 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Entre as regiões não codificantes do mtADN, como algumas partes da região de controlo da
transcrição e replicação do mtADN (mtADN RCTR), existem ainda regiões de hipervariabilidade
(HVR – Hypervariable regions). Devido às suas maiores taxas de mutação, as mtADN-RCTR
estão enriquecidas em sequências variadas. São estas sequências que são usadas para a
descrição dos haplogrupos que constituem a árvore filogenética do mtADN (Oven et al, 2008;
Avise et al, 1987).
A ausência de recombinação genética e a transmissão uniparental fazem do ADN
mitocondrial uma ferramenta única para a filogeografía.
É característica dos animais (e das plantas vasculares) o facto de possuírem cromossomas aos
pares (e.g. os humanos possuem 23 pares de cromossomas num total de 46 cromossomas),
sendo que um dos membros do par é redundante na função ou supre uma deficiência do seu
homólogo. Isto acontece por estes organismos se reproduzirem, normalmente, sexuadamente,
i.e., pela fusão entre gâmetas masculinos (e.g. espermatozóide) e gâmetas femininos (e.g.
óvulo) constituídos no seu património genético por cromossomas sem par homólogo (os
espermatozóides e óvulos humanos apenas possuem 23 cromossomas e não 46 como as
células que os produzem). Esta fusão de núcleos irá dar origem à primeira célula do embrião,
que contará com 46 cromossomas (23 pares).
Os gâmetas são células especiais dos organismos que resultam de um processo especial
denominado de meiose. A meiose é o processo pelo qual uma célula com pares de
cromossomas dá origem a células com cromossomas sem par. Durante a meiose ocorre o
fenómeno da recombinação genética em que os genes dos pares de cromossoma são
misturados de maneira que o resultado final será a produção de cromossomas com sequências
misturadas dos cromossomas parentais homólogos que lhes dão origem. Devido a este
processo de recombinação, as variações genéticas encontradas num cromossoma têm origem
nos dois cromossomas parentais e não podem ser usados para rastrear migrações com
precisão.
Uma vez que a mitocondria se reproduz por duplicação simples do seu cromossoma (mitose),
o ADN mitocondrial não sofre de recombinação genética. Esta característica permite que as
variações encontradas na sequência genética do seu cromossoma não sejam diluídas, perdidas
ou alteradas, sendo sim transmitidas intactas de pais para filhos. Por outro lado, uma vez que
o ADN mitocondrial é apenas transmitido por via materna, as variações genéticas encontradas
neste ADN mostram os padrões migratórios das mulheres ao longo do tempo (Cooper, 2000;
Avise et al, 1987). Estas duas propriedades, também partilhadas pelo cromossoma Y (mas aqui
no contexto masculino), associadas ao conhecimento das taxas de substituição de nucleótidos
no ADN, permitem usar estas sequências para criar linhagens rastreáveis no espaço e no
tempo (Zhivotovsky, 2004).
Haplogrupos
Haplogrupo é o nome dado a um conjunto de haplotipos semelhantes num mesmo
cromossoma.
30 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Como já foi referido, o ADN é um polímero constituído, entre outros, por bases puricas
(adenina (A) e guanina (G)) e pirimidicas (citosina (C) e timina (T)). Estas bases dispõem-se em
sequências ordenadas ao longo do polímero de maneira a formar um código que quando
traduzido por enzimas nucleares dará origem às proteínas e enzimas que permitem o normal
funcionamento do organismo no meio em que se insere. Desta maneira o código genético é a
relação entre a sequência de bases nucleicas na molécula de ADN e a sequência de
aminoácidos na proteína resultante da tradução do código. Uma vez que o código genético é
redundante, existem mais do que uma sequência de bases capazes de codificar o mesmo
aminoácido (e.g. CCC e CCA codificam o mesmo aminoácido, neste caso a prolina).
Um haplotipo é um arranjo específico de uma sequência de ADN, (e.g. ACAAAAAGA) que é
preservado e pode codificar uma sequência de aminoácidos; neste caso treonina, lisina e
arginina. Quando acontece uma mutação numa única base da sequência (SNP - Single
Nucleotide Polymorphism) é criado um novo haplotipo (e.g. ACCAAAAGA) (Richards & Hawley,
2011) (Fig. 1).
Haplotipo 1: ACAAAAAGA
Haplotipo 2: ACCAAAAGA
Haplotipo 3: ACCAAAAGG
Haplotipo 4 ACAAAGAGA
Fig. 1- Quatro haplotipos de uma sequência. O haplotipo 2 origina-se do haplotipo 1 pela substituição da terceira base (G por A); O
haplotipo 3 tem origem no haplotipo 2 por substituição da nona base (A por G); O haplotipo 4 origina-se do haplotipo 1 por
substituição da sexta base (A por G). Devido à redundância do código genético as quatro sequências codificam a mesma sequência
de proteínas (treonina, lisina e arginina).
Na mitocondria, uma vez que não existe recombinação genética, os haplotipos, e por
conseguinte os haplogrupos, formados nas regiões não sujeitas à selecção natural (regiões não
codificantes) são conservados inalterados através das gerações.
O relógio mitocondrial
Apesar dos seus mecanismos de reparação e do seu extraordinário poder de conservação, o
ADN é susceptível de mudar e de facto muda. As mutações acontecem das mais variadas
maneiras e podem ter origens exógenas ou endógenas. Contam-se entre as causas exógenas a
exposição a radiações U.V, produtos químicos ou a produtos carcinogénicos; Já por dentro
ocorrem erros de replicação e recombinação e a exposição a radicais livres de oxigénio. O ADN
mitocondrial, por estar num meio rico em radicais livres de oxigénio, por ter ciclos de
replicação muito superiores ao ADN nuclear e por ter mecanismos de reparação e protecção
menos eficientes que o ADN nuclear é ainda mais susceptível à mutação, mas é importante
manter presente que se, na sua grande maioria, as mutações são deletérias para o organismo,
são também elas que provêem a adaptabilidade dos organismos às variações ambientais.
31 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Dado que as mutações ocorrem a um ritmo constante, a acumulação de mutações num dado
segmento de ADN pode ser usado como um relógio molecular.
O relógio comummente usado é aquele descrito por Forster et al (1996) e que estima uma
mutação na região hipervariavel I (HSV-I) por cada 20.180 ± 1000 anos.
32 PAVC – Origem e dispersão do Homem
Anexo III
33 PAVC – Origem e dispersão do Homem
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