Dissertação Bruno Evangelista

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS BRUNO EVANGELISTA DA SILVA A REPRESENTAÇÃO DA MODERNIDADE EM DZIGA VERTOV SALVADOR 2013

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O presente trabalho visa investigar as representações da modernidade em Dziga Vertov. Nessesentido, selecionamos três películas emblemáticas que manifestam o processo dedesenvolvimento das forças produtivas na Rússia Soviética, a saber, A Sexta Parte do Mundo,Um Homem com uma Câmera e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass.

Transcript of Dissertação Bruno Evangelista

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    BRUNO EVANGELISTA DA SILVA

    A REPRESENTAO DA MODERNIDADE EM DZIGA VERTOV

    SALVADOR

    2013

  • BRUNO EVANGELISTA DA SILVA

    A REPRESENTAO DA MODERNIDADE EM DZIGA VERTOV

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal da Bahia como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Cincias Sociais. Orientador: Prof. Dr. Antnio da Silva Cmara

    SALVADOR 2013

  • _____________________________________________________________________________ Silva, Bruno Evangelista da S586 A representao da modernidade em Dziga Vertov / Bruno Evangelista da Silva. Salvador, 2013. 132f. : il. Orientador: Prof. Dr. Antnio da Silva Cmara Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2013.

    1. Vertov, Dziga, 1896-1954. 2. Representao cinematogrfica. 3. Cinema

    Produo e direo. 4. Modernidade. 5. Autonomia. 6. Esttica. I. Cmara, Antnio da Silva . II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDD 791.43

    _____________________________________________________________________________

  • Para Lidi, minha vida, meu sonho e

    realizao.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a todos que direta ou indiretamente contriburam para a concluso de mais

    uma etapa da minha passagem acadmica. Agradeo enfaticamente ao amigo e orientador

    Antnio Cmara pela sensibilidade, pacincia, companheirismo e, sobretudo, por me

    proporcionar um crescimento acadmico e pessoal.

    Agradeo ao CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e

    Tecnolgico) pelo financiamento da pesquisa atravs da bolsa acadmica.

    Agradeo ao Programa de Ps-Graduao, aos professores que o compem e aos seus

    funcionrios, em especial ao professor Clvis Zimmermann e a Dra, pelo apoio e respaldo

    acadmico.

    Agradeo aos companheiros do Grupo de Pesquisa do NUCLEAR pelo entusiasmo,

    alegria e compartilhamento do conhecimento, principalmente ao Professor Srgio, ao amigo

    Rodrigo Lessa pela riqueza e vivacidade nas nossas pesquisas e a Pedro Salles pela incrvel

    ajuda na edio dos filmes.

    Agradeo aos colegas do mestrado pelas trocas nas diversas disciplinas que

    estudamos.

    Agradeo a contribuio dos professores Milton Moura e Mahomed Bamba, sobretudo

    pela leitura atenta do material da qualificao, sugestes e crticas. Agradeo a ateno e

    disponibilidade dos professores Mahomed Bamba e Jair Batista em participar da defesa.

    Agradeo ao brilhante amigo socilogo Tiago BAND pelos infindveis dilogos

    sobre a academia e sobre a vida. Por extenso agradeo aos instantes de alegria dos amigos

    Jess e Cleiton nos encontros de amigos, na UFBA e no estdio de futebol.

    Agradeo com grande nfase a minha famlia. Ao meu pai Eliezer, a minha me

    Ariadine, a minha irm, professora e Artista Plstica, Lorena a grande responsvel pela

    minha iniciao arte e a minha companheira de vida e de luta, Lidiane. Tambm agradeo

    a ajuda dos meus tios e primos durante o meu percurso acadmico.

  • RESUMO

    O presente trabalho visa investigar as representaes da modernidade em Dziga Vertov. Nesse

    sentido, selecionamos trs pelculas emblemticas que manifestam o processo de

    desenvolvimento das foras produtivas na Rssia Sovitica, a saber, A Sexta Parte do Mundo,

    Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass. Esses filmes evocam o

    processo de transformao moderna do perodo revolucionrio medida que associa

    revoluo socialista e desenvolvimento produtivo numa espcie de modernidade socialista,

    atravs da qual demonstra a incompatibilidade da nova realidade com a reproduo ampliada

    do capital. Alm disso, representa a desconstruo de formas anacrnicas, tradicionais e

    antigas atribudas ao perodo imperial em nome de expresses imagticas de racionalizao,

    secularizao e, sobretudo, da edificao de um novo homem moderno, consciente,

    produtivo e aliado dos instrumentos tecnolgicos considerados revolucionrios. Por outro

    lado, a associao do cineasta com novas possibilidades estticas construdas na arte moderna

    permitiu a composio flmica pautada em perspectivas crticas assentadas na perspectiva de

    autonomia esttica, apesar do comprometimento ideolgico das construes imagticas com

    a dinmica de superao das condies materiais da revoluo de 1917.

    Palavras-Chave: Dziga Vertov. Representao. Cinema. Modernidade. Autonomia Esttica.

  • ABSTRACT

    This present study aims to investigate the representations of modernity according to

    DzigaVertov. In order to accomplish it, we have selected three films that show the

    emblematic process of development of productive forces in Soviet Russia, namely, The Sixth

    Part of the World, Man with a Movie Camera and Enthusiasm or Dombass Symphony. These

    movies evoke the process of modern transformation of the revolutionary period as they

    associate socialist revolution and productive development in a kind of socialist modernity,

    through which they demonstrate the incompatibility between the new reality and the capital

    extended reproduction. Besides, they represent the deconstruction of anachronistic, traditional

    and ancient forms assigned to the imperial period on behalf of imagistic expressions of

    rationalization, secularization and above all the building of a modern, aware and productive

    "new man", an ally of technological instruments considered as revolutionary. On the other

    hand, the filmmaker association with new aesthetic possibilities built upon modern art, made

    it possible a filmic composition guided by critical perspectives based on an aesthetic

    autonomy perspective, despite ideological commitment of the imagery constructions with the

    dynamics of overcoming the material conditions of the 1917 revolution.

    Keywords: Dziga Vertov. Representation. Cinema. Modernity. Aesthetics Autonomy.

  • SUMRIO

    INTRODUO ...................................................................................................................... 08

    CAPTULO 1: A MODERNIDADE E A POLTICA DE MODERNIDADE SOCIALISTA NA RSSIA SOVITICA: A RELAO HOMEM-MQUINA A SERVIO DA REVOLUO. ............................................................................................. 18

    1.1 A complexidade do processo de modernidade ............................................................... 19

    1.2 A modernidade na variante Sovitica ............................................................................. 29

    CAPTULO 2: DA HETERONOMIA AUTONOMIA, DA REPRODUO REPRESENTAO: UMA DIALTICA QUE ENVOLVE ARTE, CINEMA E MODERNIDADE. .................................................................................................................. 45

    2.1 O movimento para a autonomia...................................................................................... 46

    2.2 O movimento para a Representao Flmica. ................................................................. 60

    CAPTULO 3: A EXPERINCIA CINEMATOGRFICA DA MODERNIDADE EM REPRESENTAES NOS FILMES A SEXTA PARTE DO MUNDO, UM HOMEM COM UMA CMERA E ENTUSIASMO. ............................................................................. 73

    3.1 A Sexta Parte do Mundo: a sinfonia ou cine-poema de um novo domnio da vida. ...... 74

    3.1.1 Instante de superao: a diversidade para a modernidade ....................................... 77

    3.1.2 Imagtica das contradies do processo revolucionrio: evidncias de autonomia esttica. ............................................................................................................................. 81

    3.2 Um Homem com uma Cmera: a sinfonia visual urbano-industrial. .............................. 89

    3.2.1 Da contramo aos impulsos modernos destruio criativa dos espaos. .......... 94

    3.2.2 A constituio de um novo homem moderno e revolucionrio ............................. 101

    3.3 Entusiasmo: secularizao e racionalizao numa sinfonia sonoro-visual. ................. 106

    3.3.1 Metfora do czarismo: alienao e sujeio aos ditames da tradio.................... 110

    3.3.2 Introjeo de cones revolucionrios associados transformao moderna ......... 113

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................... 123

    REFERNCIAS ................................................................................................................... 128

    REFERNCIAS AUDIOVISUAIS ..................................................................................... 132

  • 8

    INTRODUO

    O cinema desde a sua origem constituiu-se em uma mquina da modernidade que

    captou as mudanas sociais preponderantes para o seu prprio surgimento. Nesse sentido, a

    produo cinematogrfica corresponde esteticamente ao desenvolvimento das foras

    produtivas e, mais precisamente, aos avanos tcnicos, ao uso de mquinas, busca

    incessante pela velocidade e ao movimento de novos aparelhos tecnolgicos; por outro lado,

    representa as novas concepes de espao/tempo, decorrentes da acelerao do

    desenvolvimento das foras produtivas. O surgimento do cinema garantia a identificao

    imediata do movimento dos fotogramas com o movimento da vida, na medida em que

    fragmentos das relaes sociais eram apreendidos filmicamente no que tange s suas

    manifestaes mais significativas. Nesse contexto, as transformaes sociais da modernidade

    eram capturadas conforme a necessidade de evidenciar aspectos de sociabilidade imersos em

    emergentes instrumentos funcionais.

    A mquina o objeto de contemplao nas mais variadas correntes cinematogrficas.

    Revela-se pelo grande entusiasmo em proporcionar imageticamente o aparecimento desses

    novos instrumentos no cotidiano por uma mquina de captao. A relao homem e mquina

    torna-se o mote composicional de pelculas que se deleitam com as experincias sociais de

    usufruto de instrumentos modernos, de forma a reverberar a eficiente adequao das mquinas

    ao meio social. A chegada de um comboio a estao mostrada pelos irmos Lumire; o

    foguete de Melis em Viagem lua; ou at mesmo a narrativa ficcional de Fritz Lang em

    Metrpolis, na qual um rob surpreende at os futuristas, evoca a dimenso cinematogrfica

    do processo de transformao objetiva dos novos tempos. O cinema acompanha com

    vivacidade e intensidade o processo de modernidade luz das condies tcnicas disponveis.

    A corrente Construtivista no cinema no s persegue o resultado do desenvolvimento

    das foras produtivas como tambm venera s suas transformaes. O Construtivismo uma

    corrente alada pelas condicionantes propostas pelo modernismo na arte, segundo a qual a

    esttica possui uma dimenso autnoma das relaes sociais existentes. Evidentemente, a arte

    moderna no deixa de exprimir as condies objetivas de existncia, mas constri uma

    fronteira da qual somente compete a ela interferir. O Construtivismo se desenvolve numa aura

    de complexidade que envolve o comprometimento com o processo revolucionrio da Rssia

    em 1917, o fascnio a aplicao de pressupostos modernos na conduo poltica do regime,

  • 9

    entretanto, totalmente contagiado por possibilidades formais de transcender a incondicional

    concordncia ideolgica com o regime bolchevique. O cineasta Dziga Vertov um exemplo

    inconteste de representao efusiva das transformaes modernas, da defesa da autonomia

    sustentada pelo construtivismo modernista e, sobretudo, de soerguimento do cinema enquanto

    instrumento de percepo criativa do real.

    A presente dissertao pretende investigar as representaes da modernidade no

    cinema de Dziga Vertov. Como se trata de um cineasta produto da revoluo russa de 1917, a

    pesquisa torna-se desafiadora na medida em que a representao da modernidade no seu

    cinema passa pela aquisio de significados condizentes com a nova ordem instaurada. Com

    efeito, so analisados os filmes mais emblemticos do cineasta sovitico no tocante

    representao desses cones modernos caractersticos de uma nova poca histrica.

    Dziga Vertov nasceu em Byalisto, na Polnia, no ano de 1896. Em 1915, passou a

    morar em Moscou, onde se interessou pela captao de imagens. Com a revoluo de 1917

    passou a trabalhar em revistas especializadas em cinema, tais quais a Kinodelia (cine-

    semanal) e Kinopravda (cinema-verdade). A partir da captao de diversas tomadas em

    lugares distintos da Rssia, comeou a se enveredar pelas atualidades cinematogrficas, isto ,

    vdeos reportagens nos quais capturava momentos importantes do processo revolucionrio.

    Com o acmulo de tomadas significativas, iniciou a sua jornada pela cinematografia conforme

    as prerrogativas do cinema construtivista, ganhando notoriedade por execrar filmes ficcionais.

    A sua filmografia constituda por vrias pelculas, dentre as quais, destacam-se: Histria da

    Guerra Civil (1922), Cine-Olho(1924), Kino-Pravda(1925), A Sexta Parte do Mundo(1926),

    O Homem com uma Cmera(1929), Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass(1930/31), Trs

    Canes para Lnin(1934), Memrias de Sergo Ordjonikidze (1937).

    Dziga Vertov como representante da corrente moderna construtivista estabeleceu uma

    metodologia flmica calcada num processo contnuo e permanente de montagem. Preocupou-

    se em evidenciar nas suas diversas pelculas o processo de modernizao das cidades

    soviticas e, para isso, utilizou-se de forte apologia s mquinas e ao desenvolvimento

    tecnolgico de uma modernidade sedenta por inovao, movimento e velocidade. Nesse

    contexto, o presente trabalho buscou elucidar essas representaes da modernidade em trs

    filmes emblemticos de Dziga Vertov, a saber, A Sexta Parte do Mundo, de 1926, Um homem

    com uma cmera, de 1929, e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass, de 1930/311.

    1 O filme fora lanado em duas oportunidades. Cada lanamento no seu respectivo ano.

  • 10

    A Sexta Parte do Mundo explora diversos espaos da Rssia ps-revolucionria para

    apresentar o que seria a sexta parte do mundo, um mundo no qual a lgica do capital de

    apropriao e explorao do trabalho seria completamente suprimida. O filme evidencia

    diversos locais onde o capital utiliza instrumentos modernos de explorao da classe

    trabalhadora e, inversamente, espaos em que tais instrumentos esto a servio da revoluo.

    Nesse sentido, a ideologia da esttica construtivista de Dziga Vertov apresenta sentidos de

    modernidade para os soviticos distintos daqueles adotados pelo capitalismo.

    Um homem com uma cmera, por seu turno, o filme mais conhecido de Dziga

    Vertov. Constitui-se numa obra em que um operador de cmera percorre a cidade de Odessa,

    na Ucrnia, com o intuito de captar as suas significativas mudanas. A introduo de trens a

    vapor, bondes eltricos, redes complexas de comunicao e transporte, alm da evidncia de

    um novo homem no processo de trabalho so representados a partir de uma cmera

    avanada passvel de transcorrer por todos os espaos de captao.

    Em Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass, Dziga Vertov reconstitui o processo de

    secularizao pelo qual a Rssia passara aps a revoluo. A referncia venerao de

    imagens que remetem a smbolos tradicionais eclesisticos substituda por imagens que

    evocam o Estado Sovitico. Nesse sentido, o cineasta pretende contrapor o novo ao velho, e

    necessidade de destruio de hbitos e crenas do passado; novamente, estes dois tempos so

    mediados pela acelerao tecnolgica e, sobretudo, pelo uso racional das mquinas operadas

    por novos trabalhadores.

    O estudo dessas pelculas procurou responder questes acerca das representaes pelo

    cinema num dado momento histrico em que a modernizao das estruturas produtivas

    impunha diversas transformaes sociedade. Essas questes permitem estruturar uma

    anlise pautada na representao da modernidade no cinema de Dziga Vertov, levando em

    considerao alguns pontos de grande relevncia, dentre os quais se encontram: a

    reinterpretao da modernidade pelo socialismo; a imbricao entre a esttica e modernidade

    tpicas dessa conjuntura; a rejeio ao antigo atravs da apologia ao novo; a reorganizao do

    tempo/espao face aos artifcios de montagem; a expresso de princpios racionais de conduta

    e sociabilidade no mbito da relao com novas tecnologias; e a expresso idiossincrtica dos

    trabalhadores em conformidade com uma nova conjuntura e com o apelo harmonia

    ideolgica com as mquinas.

    Tendo em vista a confluncia entre modernidade/modernismo, representao e

    cinema, o presente trabalho visa contribuir substancialmente para os estudos atinentes

  • 11

    Sociologia da Arte. A perspectiva de representao flmica a linha terica adotada no

    mbito de uma Sociologia do Cinema. Segundo Casetti e Chio (1990), da mesma maneira

    que a histria compreende o filme como um documento histrico passvel de investigao, a

    lingstica preocupa-se com a semitica, e a psicanlise com o onrico no cinema, a sociologia

    procura investigar as representaes do mundo no filme, na medida em que se constitui como

    uma refigurao que tornam visveis processos sociais reveladores das condies materiais de

    existncia. O entendimento do filme enquanto representao, nesse sentido, implica numa

    postura sobre a qual o ponto de partida para a anlise sociolgica a prpria pelcula, tendo

    em vista o seu carter singular e autnomo em relao realidade exterior. O filme, portanto,

    realidade condensada e determinada, mas passa necessariamente por uma espcie de leitura

    criativa que o situa na condio de uma moderna obra de arte. Isso no compromete o fato do

    filme ser uma expresso paradigmtica do mundo.

    Necessita-se utilizar os instrumentos da sociologia, revestindo o filme como uma representao mais ou menos completa do mundo em que vivemos, como um espelho e as vezes como um modelo (para alguns se tratar mais de um espelho e para outros de um modelo) do social (CASETTI E CHIO, 1990, p. 29, traduo nossa).

    A Sociologia do Cinema envereda-se em investigar as experincias sociais objetivas

    imersas em composies expressivas condicionadas ao tratamento criativo do real. Nesse

    contexto, as contribuies de Lukcs (1982) face o entendimento do filme como uma

    refigurao do real - de modo que a constituio da linguagem cinematogrfica a

    confluncia do desenvolvimento tcnico com a atividade racional do pensar - evidencia a a

    formao de uma linha terica pautada no pressuposto de representao flmica. Nichols

    (2005), por seu turno, delimita a emergncia de uma perspectiva acerca do processo de

    representao medida que o cineasta passa a manifestar a sua voz enquanto um processo em

    que se permite exprimir argumentos e pontos de vista sobre o mundo histrico. Portanto, o

    cinema segue o curso das provocaes modernistas de autonomia, destituindo a ferramenta do

    imediato e absoluto registro objetivo e fotogrfico da realidade.

    Com efeito, a proposta de um estudo calcado em representaes da modernidade no

    cinema leva em considerao a maneira pela qual o objeto das tomadas passvel de uma

    interveno criativa do sujeito da cmera2 (RAMOS, 2008) que produz uma refigurao da

    realidade (LUKCS, 1982) com relativa autonomia em relao ao mundo objetivo. Falar em

    2 O sujeito da cmera uma meno direta a subjetividade do idealizador da pelcula.

  • 12

    autonomia artstica implica considerar a liberdade formal do sujeito criador em representar o

    mundo circundante tal qual o concebe. No entanto, essa liberdade esttica relativa, visto que

    a representao artstica no se constitui somente da subjetividade do sujeito criador, mas

    evoca a realidade externa com o seu devido contedo de verdade. Assim, um estudo desse

    gabarito envolve o entendimento imagtico atravs da articulao entre forma e contedo.

    Para o presente objetivo, a saber, investigar as representaes da modernidade em

    Dziga Vertov, as imerses tericas no se encerram na perspectiva de representao. Nesse

    sentido, necessrio estabelecer uma articulao do objeto com pressupostos tericos acerca

    da modernidade. Nesse quesito, a referncia a Habermas (2000) precisa e fundamental no

    tocante a perspectiva de normatividade da vida social pautada por processos de

    racionalizao; Harvey (2007), por sua vez, contribui para o entendimento de modernidade

    associada a destruio criativa e a complexidade relativa s determinaes do

    espao/tempo; e Sevcenko (2000), discorre sobre as transformaes sociais, econmicas e

    urbansticas do desenvolvimento tecnolgico e do processo de transformao moderna dos

    espaos Essas contribuies foram fundamentais no sentido de confrontar a teoria sociolgica

    com as representaes da modernidade socialista em Dziga Vertov.

    A presente dissertao tem a relevncia de buscar entender de modo mais aprofundado

    a proposta esttica deste cineasta, sobretudo naquilo que apresenta de sociolgico, qual seja, a

    de compreender essa imagtica enquanto expresso da racionalidade moderna em

    determinado momento histrico. Essa pesquisa surge no mbito da pesquisa desenvolvida

    pelo grupo Representaes Sociais: arte, cincia e ideologia, em projeto sobre as

    representaes sociais no cinema documentrio O recorte de pesquisa sugerido foi abordar a

    contribuio clssica de Dziga Vertov, resultando no meu trabalho monogrfico concludo em

    2010 acerca das contribuies terico-metodolgicas de Dziga Vertov para o cinema

    documentrio.

    Dziga Vertov constri uma imagtica flmica pautada em aspectos terico-

    metodolgicos fundamentais para o desenvolvimento esttico do cinema, os quais tem

    ressonncia em correntes estticas significativas, tais quais o cinema-verit e nouvelle vague

    que apesar de no se constituir em documentrio, possui uma veia documental expressiva -,

    alm das contribuies substanciais montagem televisiva e da noo ainda corrente da

    montagem em processo. A monografia permitiu perceber diversos elementos relativos

    esttica de Dziga Vertov que puderam ser aprofundados e explorados na pesquisa de

    mestrado, suscitando ainda questes mais amplas que dizem respeito apropriao e

  • 13

    interpretao de Vertov de cones da modernidade no interior de uma sociedade que se

    pretendia socialista. Logo, imps como necessrio entender, de modo mais preciso, como

    aspectos da modernidade encontram-se representados no cinema de Dziga Vertov tomados

    como referenciais de transformaes de ordem material e social.

    Assim posto, o objetivo da presente dissertao foi delineado no sentido de investigar

    as representaes da modernidade nos filmes do cineasta. Para tanto, selecionamos trs

    pelculas emblemticas que exprimem imageticamente um sistemtico processo de

    desenvolvimento das foras produtivas, a saber, os filmes A Sexta Parte do Mundo (1926),

    Um Homem com uma Cmera (1929) e Entusiasmo ou Sinfonia de Dombass (1930/31).

    Outros filmes do cineasta poderiam ser contemplados, tendo em vista que a sua filmografia

    est concentrada em captaes que representam inovaes e transformaes sociais e

    tecnolgicas de uma determinada conjuntura. No entanto, a escolha no foi aleatria. O

    processo de seleo das pelculas seguiu um critrio histrico e esttico no sentido de

    aambarcar diferentes contextos de representao concomitante a uma ntida transformao

    esttica. Logo, a seleo das pelculas de Dziga Vertov percorreu a clarividncia de um

    movimento transitrio do contexto sovitico e do desenvolvimento interno da sua

    cinematografia.

    No primeiro plano, os trs filmes decorrem de um momento histrico especfico de

    afirmao da Rssia socialista que evoca circunstncias de auge - A Sexta Parte do Mundo -

    , declnio - O Homem com uma Cmera - e desconstruo - Entusiasmo - do modelo NEP

    (Nova Poltica Econmica), com a qual o regime buscava impulsionar o desenvolvimento da

    dbil indstria russa, transformar as relaes de trabalho por intermdio de um sistema

    pragmtico-racional e secular de eficincia, e modificar o espao a partir da introduo de

    elementos tecnolgicos. Nesse contexto, a pesquisa deve apreender as representaes da

    modernidade partindo de pelculas produzidas nos trs momentos sensveis da histria russa.

    No segundo momento, a confluncia entre os filmes expressa um movimento interno

    de desenvolvimento esttico da arte cinematografia. A sexta parte do mundo um filme

    estritamente mudo e desprovido do som; Um homem com uma cmera, por sua vez, um

    filme sonoro a partir da posterior introduo extra-diegtica de msica orquestrada luz de

    indicaes do prprio cineasta; Entusiasmo, por ltimo, uma pelcula eminentemente sonora

    e falada. Isto , a seleo dos filmes procurou tambm dar conta das transformaes tcnicas e

    artsticas da mquina-cmera enquanto um produto da modernidade e que sofre das

    transformaes propiciadas por esta.

  • 14

    A compreenso esttica das obras de Dziga Vertov, outrossim, dependeu

    inevitavelmente de um estudo acurado dos seus pressupostos terico-metodolgicos presentes

    nos seus diversos manifestos e artigos. Ademais, o entendimento da sua concepo terico-

    metodolgica foi fundamental para os processos subseqentes de apreciao da pelcula, uma

    vez que suas teorias esto imersas nos filmes para uma representao auspiciosa dos

    contedos imanentes realidade objetiva. Para efeito de registro, Dziga Vertov (1983) amplia

    o entendimento do procedimento de montagem - enquanto organizao dos pedaos filmados

    - em diversas estratgias terico-metodolgicas, entre as quais so destacadas:

    Cine Olho: Aparece como uma perspectiva que demonstra as capacidades

    infindveis da manipulao da cmera pela montagem e que difere do olho humano

    pela sua perfeio em representar o que o limitado olho humano no pode perceber.

    o eu vejo da cmera.

    Rdio Ouvido: Funciona no meio sonoro da mesma forma que o cine-olho no

    visual. Enquanto o primeiro tem a caracterstica do eu vejo, o segundo possui a

    caracterstica do eu ouo.

    Rdio Olho: a sincronia entre imagem e som. A sntese numa pelcula que exprime

    a experincia imagtico-sonora no movimento entre as imagens.

    Cinema Verdade: a verdade construda atravs da tomada da realidade ao natural

    ou na vida tomada ao improviso. o produto cinematogrfico pronto, acabado e

    objetivo.

    Teoria dos Intervalos: A passagem adequada de um plano para o outro, de forma que a

    intercesso destes traduz a essncia de uma idia.

    Dentre uma gama de tcnicas de leitura e apreciao que podem ser operacionalizadas

    nos filmes A Sexta Parte do Mundo, Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo, busca-se

    um eixo centrado no aspecto da narratividade no sentido de selecionar o caminho mais

    condizente com o contedo das representaes em Dziga Vertov. A montagem do cineasta

    est pautada em choques entre planos produzindo efeitos de descontinuidade narrativa. Logo,

    o filme no precipuamente narrativo. No entanto, a pelcula percorre um encadeamento

    lgico que no suficiente para situ-la numa esfera anti-narrativa. Deste modo, os filmes do

    cineasta se aproximam muito mais de um domnio semi-narrativo, de forma que tanto tcnicas

    de anlise de narrativa como de banda de imagem no so exeqveis para a obteno de

    resultados.

  • 15

    Enquanto a anlise da narrativa aplicada ao filme considera o texto flmico em sua

    unidade composicional respeito a linearidade e harmonia entre planos -, a tcnica de banda

    de imagem visa apreender a essncia flmica a partir de alguns planos isolados, uma vez que

    pressupe a inexistncia de lgica narrativa. Aumont e Marie (2004) chegaram a utilizar a

    anlise de banda de imagem em Um homem com uma cmera, considerando o filme como

    anti-narrativo. No entanto, ambos no conseguiram visualizar no filme um interno movimento

    lgico de uma narrativa permeada por tenses, dissonncias e descontinuidades. Esses

    elementos, inclusive, perpassam toda a sua cinematografia. Nesse sentido, consideramos a

    estratgia metodolgica mais adequada assentar as pelculas na condio de semi-narrativas.

    A semi-narratividade dos filmes de Dziga Vertov conduz o discurso analtico ao

    usufruto de uma tcnica bastante eficaz para a leitura flmica: a decupagem. Essa tcnica

    respeita as particularidades de uma pelcula que se impe pela complexidade das suas

    representaes. Deste modo, a pesquisa utilizou esse recurso cuja ao permitir desnudar as

    estratgias sintticas e analticas de apreenso de uma realidade movida por transformaes e,

    sobretudo, evidenciar os efeitos produzidos no sentido de refigurar uma realidade dada e

    historicamente determinada.

    Segundo Casetti e Chio (1990) decupar um filme implica num conjunto de operaes

    permeado por processos de decomposio e recomposio. efetivamente uma maneira

    slida de desfrutar de um conhecimento pleno do objeto medida que esmia a sua estrutura

    interna. De maneira que se obtm uma maior inteligibilidade conforme todos os componentes

    do objeto investigado sejam isolados do vetor de movimento dos fotogramas. Portanto, a

    decupagem o princpio analtico que d visibilidade s engrenagens que produzem o efeito

    de realidade.

    No primeiro momento, a pesquisa decomps o material flmico em edies

    fragmentadas, permitindo a apreciao de elementos que evidenciam a proposta esttica, os

    princpios ideolgicos explcitos e escamoteados, os recursos tcnicos que propiciam a

    explanao, a expresso e a representao artstica do cineasta. Constituiu-se como o

    momento de seleo e descrio do material editado do filme atravs do agrupamento dos

    objetos representados (contedo) associados aos elementos formais de movimento de cmera,

    ngulos, enquadramento, planos e as elipses.

    Martin (2003) acredita que o entendimento desses aspectos formais especficos do

    filme fundamental para a compreenso da linguagem cinematogrfica e do papel criador da

    cmera. Nesse sentido, a pesquisa no negligenciou os eventuais movimentos de cmera

  • 16

    (travelling, trajetria ou panormica) enquanto definidores de relaes espaciais entre cmera

    e objeto de captao; os ngulos (plonge e contra-plonge) enquanto significados valorativos

    dados aos sujeitos e aos elementos plsticos; os enquadramentos como determinados pontos

    de vista da ao cinematogrfica; os planos (plano geral, plano mdio, plano conjunto, plano

    americano, primeiro plano e close-up) enquanto definidores da distncia da cmera para com

    o objeto; e, sobretudo, as elipses, pois se tratam de instrumentos que o cineasta recorre para

    sugerir e aludir determinados acontecimentos que no esto ao seu alcance ou passaram

    despercebidos durante a filmagem. A importncia deste ltimo recurso recrudescida pelo

    fato de ser a estratgia de decupagem utilizada pelo prprio idealizador da pelcula na medida

    em que oferece a audincia um material submetido a diversos cortes temporais. Inclusive a

    carga ideolgica e idiossincrtica do cineasta geralmente percebida atravs das elipses.

    O estgio seguinte constituiu-se na reagregao do material editado a partir da

    recomposio do produto numa espcie de sntese. efetivamente essa atividade que propicia

    o incio de uma anlise e interpretao do documento condensado (CASETTI e CHIO, 1990),

    possibilitando estabelecer uma linha narrativa, de modo a reconstituir o filme visando uma

    lgica adequada ao recorte da pesquisa. O trabalho de interpretao na recomposio um

    dilogo sistemtico com o texto flmico com o objetivo de captar com exatido o sentido do

    texto. Nesse processo de recomposio, a reagregao dos elementos mais significativos

    numa estrutura editada permitiu desvelar a lgica que os une. Todo o material precedente de

    descrio foi confrontado, interpretado e analisado. A grade de interpretao desse material

    imagtico cuidou do resto, apresentando um formato inteligvel dos resultados atinentes a

    investigao do fenmeno.

    No contexto da sociologia da arte, o cinema carrega a mediao entre a arte e a

    sociedade. Desse modo, a produo dos captulos seguiu o critrio do movimento condizente

    esttica e histria, permeado por teorias sociolgicas acerca da modernidade no mbito

    dos processos sociais e nos desdobramentos intra-estticos. Essa conduo postulou uma

    articulao imediata com a anlise flmica das pelculas trabalhadas, uma vez que a sua leitura

    dependeu inexoravelmente da compreenso de fragmentos significativos da histria e das

    caractersticas de consolidao da arte moderna.

    No primeiro captulo, as discusses tericas acerca da modernidade so confrontadas

    com o processo histrico de conformao a uma espcie de modernidade socialista pelos

    revolucionrios de 1917. Com efeito, o regime bolchevique ao utilizar-se de um prisma

    moderno de desenvolvimento da indstria, dos espaos e de socializao de um novo cidado

  • 17

    sovitico, buscou reproduzir uma ideologia moderna transmutada ideologicamente conforme

    as convenincias do regime. O segundo captulo, por sua vez, recorre a relao entre a arte, o

    cinema e a modernidade no sentido de evocar a constituio de uma teoria da sociologia da

    arte centrada nas representaes flmicas medida que o cinema se aproxima de pressupostos

    modernos de autonomia esttica. O terceiro captulo, por fim, analisa as representaes da

    modernidade em A Sexta Parte do Mundo, Um Homem com uma Cmera e Entusiasmo ou

    Sinfonia de Dombass, considerando o momento especfico de cada produo cinematogrfica

    e o desenvolvimento esttico interno a sua cinematografia, de maneira a visualizar em que

    medida o cineasta sovitico desenvolve um tratamento imagtico dos elementos atinentes a

    modernidade luz das condies ideolgicas concernentes s produes clssicas na Unio

    Sovitica.

  • 18

    CAPTULO 1: A MODERNIDADE E A POLTICA DE MODERNIDADE SOCIALISTA NA RSSIA SOVITICA: A RELAO HOMEM-MQUINA A SERVIO DA REVOLUO As discusses sobre a modernidade referem-se sempre s mudanas profundas

    ocorridas ou ainda em curso na sociedade na era capitalista. O desenvolvimento das foras

    produtivas determina novas diretrizes de socializao de indivduos sujeitos s imposies de

    um mercado sedento pela apropriao dos excedentes do trabalho. O indivduo considerado

    livre submetido s instncias verticais de produo e controle, cuja reproduo ampliada do

    capital se desdobra em modificaes estruturais, espaciais e tecnolgicas. De maneira que a

    modernidade compele o indivduo a uma aproximao imediata com instrumentos modernos e

    racionais, mediante os quais se sustentam a ideologia de normatizao da vida social. A

    relao homem/mquina uma confluncia caracterstica dos tempos modernos que se

    apresenta socialmente no bojo das transformaes sistemticas da realidade objetiva,

    escamoteando princpios ideolgicos de dominao subjacentes ao sistema.

    O caso sovitico fora emblemtico em funo da sustentao de pressupostos

    instrumentais utilizados com o fito de consolidar o processo revolucionrio. Para tanto, o

    desenvolvimento das foras produtivas tornava-se uma obsesso na medida em que o pas

    passava por um processo de debilidade industrial, dependncia agrria e formas

    idiossincrticas do regime czarista. No entanto, o estabelecimento de instrumentos modernos

    na vida cotidiana preconizava a consolidao do regime socialista, de modo que o Estado

    passou a reinterpretar elementos tcnicos e ideolgicos oriundos do desenvolvimento do

    capitalismo. A execrao de smbolos tradicionais, a construo de mquinas a servio da

    revoluo e a emergncia de um novo homem voltado para o trabalho, aparecem no Estado

    Sovitico sob um discurso oficial pautado numa gide revolucionria, cujo significado visava

    dissoci-los dos parmetros estabelecidos pelo sistema capitalista de produo. Nesse sentido,

    tendo em vista que o presente trabalho procura investigar as representaes da modernidade

    no cinema do sovitico Dziga Vertov, o captulo em questo visa mostrar como o regime ao

    utilizar-se de um prisma moderno de desenvolvimento da indstria, dos espaos e de

    socializao de um novo cidado sovitico, pretende construir uma moderna concepo

    socialista; no entanto, se utiliza de noes ideolgicas oriundas do prprio capitalismo, que

    aqui adquirem a conformao necessria para justificar as convenincias do novo regime

    social.

  • 19

    1.1 A complexidade do processo de modernidade

    As transformaes sociais implicadas pelo fluxo da modernidade reverberam

    substancialmente nas instncias do saber. As novas caractersticas de conduta, dos jogos

    simblicos de sociabilidade e das relaes sociais e de poder, estabelecem contornos precisos

    das variantes do sistema. Este emana como um elemento expressivo que agrilhoa

    ideologicamente indivduos submetidos a um processo de reproduo social. O saber

    cientificamente sistematizado desvela as constituies imanentes da era moderna, apropria-se

    fundamentalmente da dinmica instrumental de um novo tempo, cujo clculo racional das

    experimentaes sustenta a caracterstica de uma nova sociedade e de um novo saber

    cientfico. Por outro lado, a configurao de um saber pautado pelos condicionantes

    ideolgicos do sistema, provoca, indiretamente, a assuno de um plo oposto, no qual a

    cincia aparece como livre e desinteressada dos domnios instrumentais. Desse modo, tanto

    nas relaes sociais como na produo do conhecimento, a profuso do moderno implica

    numa nova dinmica de transformao. O movimento de um processo calcado na

    variabilidade e complexificao da vida e do saber constitudo, representa traos exponenciais

    de experincias modernas.

    Habermas (2000) evidencia que a modernidade tornara-se tema filosfico desde os

    fins do sculo XVIII. O destaque discusso do processo de desencantamento do mundo em

    Weber, possibilita uma resposta analtica crescente secularizao e laicizao do Estado. A

    substituio de formas de vida tradicionais por crculos burocrticos traduz em parte o

    processo de desenvolvimento das sociedades modernas. Habermas resgata Hegel enquanto o

    primeiro filsofo a estabelecer a relao entre modernidade e racionalidade, na medida em

    que desenvolve um conceito claro do processo emergente e o emprega luz da definio de

    tempos modernos. De maneira que a questo do tempo torna-se a estrutura basilar de

    entendimento da velocidade dos acontecimentos. [...] o tempo experenciado como um

    recurso escasso para a resoluo dos problemas que surgem, isto , como presso do tempo

    (HABERMAS, 2000, p.10).

    o mundo novo, o mundo moderno para o qual provoca a ateno da produo do

    saber filosfico. Abre-se uma janela para o futuro e o presente ganha destaque no raio da

    poca moderna. A relao costumeira com o esttico conduz a modernidade a questionar

    valores tradicionais, distanciando-se dos problemas relativos aos modelos antigos. Habermas

    evoca esses elementos que remontam s discusses acerca da racionalidade presentes em

  • 20

    Weber at os debates em torno do conhecimento e interesse. Portanto, diversos elementos

    novos emergem dos domnios modernos para as condies objetivas de existncia. Ademais,

    o autor enfatiza as instncias de relaes comunicativas que no esto presentes no mtodo de

    compreenso weberiano, tampouco no interesse do agir teleolgico. Deste modo,

    problematiza as implicaes sociais e ideolgicas do prprio fazer cientfico no escopo de

    produes advindas da modernidade.

    Habermas (2009) - numa outra obra de grande relevncia - levanta o conceito de

    racionalidade nos moldes definidos por Weber, segundo o qual a racionalidade est

    relacionada forma da atividade econmica capitalista, aos caminhos estabelecidos pelo

    direito privado burgus, da dominao burocrtica e, sobretudo, o trabalho social luz dos

    critrios da ao instrumental. De maneira que a difuso da racionalizao depende

    exclusivamente da institucionalizao do progresso cientfico e tcnico, desmoronando as

    antigas legitimaes e as bases de dominao de outrora. O dilogo com Marcuse

    importante no sentido de ponderar que o conceito de racionalidade assume uma forma

    ideolgica de dominao poltica oculta, cujo emprego da tcnica exige um tipo de dominao

    que abarca a natureza e a sociedade. Em nome do aspecto racional do capitalismo avanado, a

    dominao escamoteia o cunho explorador e opressor, possibilitando elementos econmicos

    de crescimento pela produtividade e o deleite de uma vida mais cmoda. A modernidade

    ambienta-se na sustentao ideolgica da produo e da reproduo do avano burgus de

    imposio da tcnica e do discurso.

    No que tange ao modelo de cincia moderna, Habermas (2009) devassa a dominao

    perpetrada pelas cincias empricas. Segundo ele, a dominao eterniza-se e ganha dimenses

    incomensurveis mediante e como tecnologia, de forma que a racionalidade protege a

    legalidade do processo de dominao luz de uma razo eminentemente instrumental.

    Portanto, h uma confluncia evidente entre tcnica e dominao, na medida em que no

    interior do empreendimento cientfico se esconde um projeto ideolgico determinado, no qual

    interesses de classe interferem sistematicamente na sua produo. Com efeito, a cincia de

    base teleolgica uma via instrumental e ideolgica de manuteno do estado de coisas; o

    interesse em torno do conhecimento, por fim, desvia-se das suas condies ontolgicas de

    emancipao.

    Em Conhecimento e interesse, Habermas (1982) argumenta que todo conhecimento

    produzido mobilizado por interesses que o orientam. Para tanto, ele recorre a historia do

    conhecimento positivista para analisar as relaes de interesse pautadas na ao instrumental -

  • 21

    para a qual a confluncia entre as cincias naturais e as cincias sociais produziria um saber

    tecnicamente explorvel e como a emergncia da hermenutica movimenta o conhecimento

    em torno da ao comunicativa na qual os interesses esto voltados para a emancipao. Isto

    , parmetros fundamentais para compreender um eventual dualismo do saber na

    modernidade.

    A ao comunicativa o elemento substancial de reviso do conceito de

    racionalizao em Weber. Isso permite ponderar que o agir instrumental no corresponde na

    sua plenitude s relaes desencadeadas na modernidade. Assim posto, Habermas sugere

    outro enquadramento categorial, partindo da distino fundamental entre trabalho e interao.

    O trabalho estaria situado na ao teleolgica, impulsionado por regras tcnicas de

    sustentao do saber emprico, ao passo que a interao apoiada por instncias

    simbolicamente mediadas da comunicao, cujo processo de auto-reflexo fundamental para

    o estabelecimento de acordos e consensos intersubjetivos.

    Desse modo, a auto-reflexo cientfica um componente essencial para

    consubstanciar o interesse de transformao para um saber que possui o germe da autonomia.

    Segundo Habermas (1982), as cincias hermenuticas interpretam a realidade conforme a

    gramtica que desvela o mundo e da prxis que lhe correspondente, enquanto as cincias

    emprico-analticas apreendem a realidade de acordo com a possvel disponibilidade tcnica.

    Nesse contexto, a lgica instrumental subsume o carter emancipatrio do conhecimento

    pautado na ao comunicativa.

    O conceito de interesse no deve ser conclusivo no tocante s redues empricas, uma

    vez que so os interesses que orientam o saber, seja na promoo reflexiva da emancipao ou

    no carter teleolgico de dominao. Chamo de interesses as orientaes bsicas que aderem

    a certas condies fundamentais da reproduo e da autoconstituio possveis da espcie

    humana: trabalho e interao (HABERMAS, 1982, p. 217). Nesse sentido, assim como a

    problematizao do conceito de racionalidade, a noo de interesse evoca tambm a

    contribuio acerca do dualismo presente na modernidade, a saber, razo instrumental e razo

    comunicativa ou, simplesmente, sistema e mundo da vida.

    Na contramo do processo de plenitude da racionalizao moderna, faz-se necessrio

    ter a compreenso de instncias de relaes que ocorrem independentemente das imposies

    do sistema. A ao instrumental um recurso nos parmetros do sistema que se desdobra em

    posies teleolgicas, submetendo os indivduos aos ditames normativos na realidade

    objetiva. No entanto, o sistema convive com uma ao e um espao voltado para o

  • 22

    entendimento e a busca intermitente do consenso nas interaes dialgicas: a ao

    comunicativa e o mundo da vida.

    Embora ganhem ares de convivncia e complementaridade dentro de uma estrutura

    social, sistema e mundo da vida so antinomias pautadas pela distino do uso racional da

    ao. Habermas3 (1987) discute a relao trabalho e interao luz das condies empricas

    existentes entre as etapas da diferenciao sistmica e as bases de integrao social. O

    primeiro se realiza pela conduo normativa de formas impositivas s objetividades

    condicionadas ao sustentculo de relaes de produo no sistema. Habermas resgata,

    inclusive, Durkheim para evocar a externalidade dessas relaes coercitivas. O segundo, por

    seu turno, compreende elementos cujo uso da linguagem oferece recursos compelidos por

    uma autoconscincia.

    El analisis de esas relaciones solo s posible si se distingue entre los mecanismos de coordinacin de la accin que harmonizan entre s las orientaciones de accin de los participantes y aquellos otros mecanismos que a travs de un entrelaziamento funcional de las consecuencias agregadas de la accin estabilizan plexos de accin no-pretendidos (HABERMAS, 1987, p. 163).

    A razo instrumental a expresso no-comunicativa de um saber arraigado. Este visa

    produo meio-fim de uma determinada ao subjacente a uma lgica determinada pelo

    sistema. A eficcia de sua ao possui uma ntima relao com os pressupostos de

    racionalidade implicadas, de modo que a ao cotidianamente deve cumprir os atributos

    instrumentais para os quais os esforos so mensurados. A razo instrumental , portanto, a

    manifestao teleolgica diante dos caracteres sistemticos de ao na vida cotidiana

    enquanto modos de reproduo do sistema social vigente.

    A razo comunicativa, por sua vez, consiste num processo solidrio de interpretao

    do mundo objetivo, cujo entendimento e obteno de acordos e consensos so consequncias

    da eficincia da ao. Os participantes perseguem insistentemente o comum acordo luz de

    uma definio de situao. Logo, so instncias de relaes que se distanciam de uma viso

    instrumental do mundo. Os conflitos latentes do sistema so dirimidos por meio de

    argumentaes calcadas em situaes ideais da fala. Desse modo, a ao comunicativa

    compele o sujeito autoconscincia, determinando os caminhos ideais para o processo de

    emancipao.

    Trata-se do segundo volume da obra Teoria da Ao Comunicativa. No existe edio em portugus desse trabalho.

  • 23

    No que tange ao processo da modernidade, Habermas evidencia uma dicotomia que

    no se estabelece nos termos de interdependncia de categorias. Sistema e mundo da vida

    convivem, mas dialeticamente se opem em torno de premissas definidoras das aes para as

    quais esto voltadas. Enquanto o sistema reverbera aes instrumentais que submetem os

    indivduos s engrenagens sistmicas da sociedade e das implicaes do mundo capitalista, o

    mundo da vida emerge para conceber a comunicao como o fator de integrao e

    emancipao da sociedade.

    Nesse sentido, as consideraes de Habermas acerca da modernidade no tocante a

    dinmica inerente ao sistema e mundo da vida, possui, portanto, um grande interesse

    sociolgico, uma vez que exprime um movimento calcado em rupturas, cises, dissensos e

    submisses a um novo em detrimento de um todo superado. Essas postulaes so

    significativas para as reflexes a respeito do presente objeto. O moderno desconstri o

    anterior, transforma-o em tradicional e segue um curso de demandas aambarcadas pelos

    impulsos totalizantes do capital. A evidncia da razo instrumental manifesta a ideologia

    totalizante do sistema, dialeticamente sujeita aos impulsos emancipatrios, os quais desvelam

    a desconstruo e a superao de estruturas antigas, tradicionais e anteriores s pulses do

    capital.

    O sistema e mundo da vida provocam a complexificao das relaes sociais e das

    instncias do saber, a determinao e consolidao dos tempos modernos. O dualismo de

    Habermas coloca em evidncia novas categorias sociais caractersticas do desenvolvimento

    do capitalismo, tais quais a tcnica, racionalizao, secularizao e emancipao. Imprime

    marcas indelveis a revoluo e destaca a conservao reacionria; impe a classe

    trabalhadora a condio de sujeito histrico e evoca a dominao atravs da ideologia. Nada

    to significativo para um objeto permeado por representaes pautadas em mudanas

    objetivas concernentes s inovaes trazidas por ocasio das profuses modernas.

    A modernidade um sistema global, temporal e espacial. Desenvolve-se luz das

    necessidades de um novo sistema que tangencia as transformaes. Condies de mobilidade

    continental, comunicao global, velocidade dos acontecimentos, controle das manifestaes

    e a construo ou renascimento de um novo homem, sustentam as transformaes advindas do

    desenvolvimento das foras produtivas. A modernidade produz o amlgama entre homem e

    mquina num contexto de produo, consumo e sustentao ideolgica dos emergentes

    processos de sociabilidade.

  • 24

    O vetor de uma chamada ideolgica de progresso est condicionado s transformaes

    tecnolgicas. Na modernidade as foras produtivas atuam como espinhas dorsais de um

    sistema aberto a produo massiva de riquezas. A mquina resultado e princpio ativo da

    produo; a redefinio da configurao das classes sociais implicar no surgimento do

    proletariado, engrenagem de sustentao de um sistema, cujas mudanas histricas

    expressivas desencadeiam o recrudescimento dos potenciais produtivos e os fluxos de

    recursos.

    Segundo Sevcenko (2001), a ebulio moderna acarreta em diversas pulses

    estruturais provocadas pelas correlaes entre mquinas, massas, percepes e mentes.

    Transformaes estruturais tm correspondncia direta com a formao gradativa de

    conglomerados econmicos, concentrao de trabalhadores, exploso demogrfica, de modo

    que uma organizao de demandas administra e controla recursos tecnolgicos de servios

    essenciais. As necessidades impostas pelo capital so determinantes para a alterao da vida

    em sociedade. O processo de modernidade cria uma nova ambincia e um novo ritmo para o

    qual as pessoas devem se adaptar.

    Toda essa vasta populao, portanto, tem sua vida administrada por uma complexa engenharia de fluxos, que controla os sistemas de abastecimento de gua corrente, esgotos, fornecimento de eletricidade, gs, telefonia e transportes, alm de planejar as vias de comunicao, trnsito e sistemas de distribuio de gneros alimentcios, de servios de sade, educao e segurana pblica. [...]. Esse controle tecnolgico pleno do ambiente em que vivem as pessoas acaba, por conseqncia, alterando seus comportamentos. Nessa sociedade altamente mecanizada, so os homens e mulheres que devem se adaptar ao ritmo e acelerao das mquinas, e no o contrrio (SEVCENKO, 2001, p. 62).

    O soerguimento das mquinas nas mudanas de comportamento implica numa

    fetichizao do olhar. As qualidades inerentes aos indivduos so substitudas pelo potencial

    de consumo. O olhar dominante impe maneiras habituais e elegantes de exibio publica, da

    escolha da indumentria e das formas de se vestir. Cria uma afluncia (SALLINS, 1978) e

    uma necessidade pelo desejo de obteno. A lgica sistmica direciona as pessoas a

    passividade do ato produtivo, no qual a reproduo social acompanhada por sonhos de

    consumo, isto , desejos pautados pela inconscincia oferecida pelo capital. Segundo

    Sevcenko (2001), as condies de aproximao e a comunicao que antecedem a fala so

    construdas por smbolos exteriores, de forma que o carter pessoal definido por aquilo que

    consumido.

  • 25

    Os ritmos acelerados na modernidade permitem conceber pelo olhar a dicotomia entre

    o movimento moderno e o esttico tradicional. O ritmo desenfreado estimula uma

    sensibilidade atinente s novas transformaes sociais, desenvolvendo uma ruptura entre

    formas convencionais, tradicionais e buclicas de sociabilidade, a uma pulso temporal do

    clculo racional do contato entre os indivduos em plena acelerao da vida. A modernidade

    promove uma reao absoluta aos aspectos que remontem um passado considerado deletrio

    aos ritmos acelerados do desenvolvimento fabril, da linearidade temporal, da explorao dos

    espaos e do novo papel do cidado e da classe trabalhadora.

    Nesse contexto, Harvey (2007) acredita que a modernidade caracterizada por uma

    destruio criativa, na medida em que se afirma a partir da destruio de modos de vida de

    outrora. Criativa por se configurar como uma arte das cidades, convicta da potencialidade

    da esttica no rearranjo estrutural e da fora simblica da arte moderna emergente, a qual

    reivindicava autonomia, mas que poderia, concomitantemente, experimentar funcionalidades

    extra-estticas4. A destruio criativa sustentada como um dilema prtico da modernidade

    no enfrentamento das novas diretrizes modernistas nas cidades.

    Afinal, como poderia um novo mundo ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes? Simplesmente no se pode fazer um omelete sem quebrar os ovos, como o observou toda uma linhagem de pensadores modernistas de Goethe a Mao. O arqutipo literrio desse dilema como Berman (1982) e Lukcs (1969) assinalam, o Fausto de Goethe. Um heri pico preparado para destruir mitos religiosos, valores tradicionais e modos de vida costumeiros para construir um admirvel mundo novo a partir das cinzas do antigo, Fausto , em ltima anlise, uma figura trgica (HARVEY, 2007, p.26).

    A funo herica de criar destruindo apresentada acima por Harvey sob a tica de

    Goethe, compartilhada por Benjamin (2000) face leitura de Baudelaire. A preocupao da

    literatura com os novos tempos uma resposta esttica a profuso de novos valores

    estabelecidos na sociedade. Para Benjamin (2000), o poeta sublima a sua personalidade

    sujeio herica de viver na modernidade, de modo que a formao desse heri perpassa a

    constituio de um ser social no sistema capitalista. A modernidade rompe com o mundo da

    ociosidade, revelando a fatalidade do heri. Ideologicamente, o heri romanceado da

    literatura, subvertido na materialidade pela reconstruo herica operada pelo Estado. O

    planejamento racional, a padronizao das formas e condutas e a reorganizao dos espaos

    4 No foi sem fundamento que Habermas (2000) ponderou que o discurso filosfico da modernidade cruza-se frequentemente com o esttico.

  • 26

    sobretudo no perodo ps-guerras mundiais consolidam a destruio criativa enquanto

    projeto de subsuno do antigo pelo moderno.

    O moderno impe pela manipulao racional e estruturada das cidades novas

    concepes de tempo e espao. O desenvolvimento das foras produtivas possibilitou uma

    integrao instrumental dos espaos em detrimento da certeza do espao absoluto. A incerteza

    espacial implica na insegurana de um espao permanentemente passvel de mudana.

    Segundo Harvey (2007), a modernidade impele o indivduo a se adaptar a uma espcie de

    espao relativo no qual inovaes nos transportes e nas comunicaes so acompanhadas por

    uma reorganizao do lugar do homem, dos objetos e das estruturas urbanas. De maneira que

    o aperfeioamento dos sistemas de comunicao agiliza a troca e o consumo.

    Nesses moldes, a reproduo ampliada do capital conduz o tempo linearidade

    convergente com as progresses tcnicas em detrimento do tradicional tempo cclico. O

    movimento atinente reproduo social tende a acelerar o ritmo de vida, comprimindo a

    relao tempo-espao. Nesse sentido, o homem moderno para no capitular diante das

    necessidades dos novos tempos, precisa tambm se adaptar acelerao das inmeras

    possibilidades apresentadas pela modernidade. Harvey (2007) em dilogo permanente com

    diversos autores salienta que a modernidade uma forma peculiar de experenciar o espao e o

    tempo, cuja relao fundamental para o processo de reproduo da vida social. Logo,

    concepes de tempo e espao modificam-se com as necessidades de reproduo, provocando

    a apropriao dessas condies modernas pelo homem.

    O tempo acelerado serve to somente para maximizar o fluxo produtivo, isto , uma

    necessidade premente do capital. Desmoronam-se antigas representaes do mundo

    substitudas por projees do vindouro luz das transformaes do presente. A racionalizao

    da relao espao-tempo determina novas convergncias de territrios, expressiva mobilidade

    e excedentes de produtos; a condio de inspito torna o lugar um retrocesso, o bucolismo

    passa a ser um pernicioso resgate da tradio. Com efeito, a modernidade se satisfaz com o

    controle racional das pulses sociais, seja em qualquer esfera, categoria ou instituio.

    Harvey (2007, p. 227) explicita de forma inequvoca o movimento gradativo de

    desmoronamento de antigas legitimaes na modernidade em paralelo as convulses estticas

    modernistas:

    A revoluo renascentista dos conceitos de espao e de tempo assentou os alicerces conceituais em muitos aspectos para o projeto do Iluminismo. Aquilo que muitos encaram hoje como a primeira grande manifestao do pensamento modernista considerava o domnio da natureza uma condio necessria da emancipao

  • 27

    humana. Sendo o espao um fato da natureza, a conquista e organizao racional do espao se tornaram parte integrante do projeto modernizador. A diferena, desta vez, era que o espao e o tempo tinham de ser organizados no para refletir a glria de Deus, mas para celebrar e facilitar a libertao do homem como indivduo livre e ativo, dotado de conscincia e vontade.

    Os tempos modernos inauguram uma nova relao entre o Estado e a religio. A

    modernidade concede s estruturas formais e jurdicas desse estado moderno um impulso

    necessrio a laicizao. Todos os esforos se dirigem para estabelecer um campo livre de

    avano do capitalismo contra o qual no haja interferncia dos dogmas cerceadores da

    religio. A tradio do pecado ser substituda pela aquiescncia do consumo, de tal modo

    que um novo cidado e uma nova classe trabalhadora devem ser socializados para enfrentar os

    dilemas, os embates e a dinmica produtiva capitalista.

    Com efeito, no processo histrico de desenvolvimento do capitalismo, meios foram

    sistematicamente pensados para conformar o cidado considerado livre na condio de fora

    produtiva. Rompe-se, nesse sentido, com estruturas anteriores das relaes de trabalho

    sobretudo servis para a constituio de um trabalhador moderno, com contrato de trabalho,

    dispondo de vigor e fora para mover com segurana as engrenagens do sistema. Mercadoria

    preciosa para os intentos capitalistas de acumulao, motivando uma suposta necessidade de

    regulao. Harvey (2007) enftico ao ponderar que as intensas modificaes internas do

    capitalismo reverberam diretamente nas relaes de trabalho, haja vista que o lucro sempre foi

    o seu princpio bsico na vida econmica.

    H duas amplas reas de dificuldades num sistema econmico capitalista que tm de ser negociadas com sucesso para que o sistema permanea vivel. A primeira advm das qualidades anrquicas dos mercados de fixao de preos, e a segunda deriva da necessidade de exercer suficiente controle sobre o emprego da fora de trabalho para garantir a adio de valor na produo e, portanto, lucros positivos para o maior nmero possvel de capitalistas (HARVEY, 2007, p. 117-118).

    Percebe-se o quo fundamental para a sustentao do sistema, o estabelecimento de

    contornos e controles no processo de constituio e reconstituio da classe trabalhadora.

    Desse modo, conveniente, sobretudo em termos ideolgicos, que a classe trabalhadora esteja

    imersa numa dinmica normativa de produo, cuja conscincia da situao seja determinada

    pela base das relaes de produo. Evidentemente que a estrutura instrumental no retira a

    condio do homem de sujeito histrico e sua busca inerente pela emancipao. O fato que

    se sentir trabalhador na modernidade implica, necessariamente, em assumir a postura de um

    novo homem em uma nova poca. Para o capital, isto significa um homem produtivo, alheio

  • 28

    ao objeto de sua produo, no reconhecendo o resultado do trabalho como fruto de sua

    atividade, no percebendo a totalidade do processo produtivo. Isto , o controle indelvel das

    relaes de trabalho que desfiguraria a organizao em torno de relaes comunicativas entre

    trabalhadores.

    Harvey (2007) sublinha os componentes significativos da acumulao de capital, a

    saber, a mistura expressiva de represso, familiarizao, cooptao institucionalizada que se

    espraia em toda sociedade, ou seja, elementos idealizados dominantes na modernidade que se

    tornam dominantes para todo o corpo social. Nesse sentido, a constituio desse novo homem

    depende de uma severa socializao, cujas condies de produo compreendam o domnio e

    o controle das capacidades fsicas e mentais do trabalhador. Segundo o autor, a identidade

    pelo trabalho construda paulatinamente luz da educao, do treinamento e da

    internalizao de valores que dignificam o processo de explorao, consubstanciando a

    formao de ideologias pelo aparelho de Estado. Tambm aqui o modo de regulamentao

    se torna uma maneira til de conceituar o tratamento dado aos problemas de organizao da

    fora de trabalho para propsitos de acumulao do capital em pocas e lugares particulares

    (HARVEY, 2007, p. 119).

    Na modernidade, o desenvolvimento das foras produtivas depende da convergncia

    dos homens com as mquinas e os meios tecnolgicos, reproduzindo e movimentando um

    sistema complexo, pautado em contradies explcitas que so escamoteadas por uma

    ideologia reinante. A racionalizao do processo de trabalho concedeu um ingrediente

    adicional a uma dinmica de disciplinarizao moderna do corpo de trabalho a partir dos

    intentos fordistas. A discusso mais emblemtica sobre o Fordismo est em Cadernos do

    Crcere de Gramsci, com o qual Harvey (2011) tambm dialogou. Gramsci (2001), no

    captulo intitulado Americanismo e Fordismo, revela que esse modelo uma necessidade

    imanente do capital para alcanar uma economia programtica. Isto se daria pela manipulao

    e racionalizao das foras subalternas, organizando metas para desenvolver um novo tipo de

    trabalhador. Com efeito, combina-se a fora repressiva, persuaso, interferncias na

    sexualidade e na famlia, centrando o capital social todo na produo.

    Forjar um novo tipo de trabalhador tornou-se uma ambio moderna do capital para a

    sobrevivncia do sistema, evitando as possibilidades anrquicas que poderiam provocar seu

    eventual fracasso. O capital criou as condies de valncia de um modelo que proporcionou a

    organizao cientfica do trabalho operada pelo taylorismo. A conduo de ambos os modelos

    transformava o trabalhador num harmnico cidado consumidor, dava supostas condies de

  • 29

    dignidade do trabalho, alm de se preocupar com a postura do operrio nos diversos

    crculos de sociabilidade externos ao ambiente da empresa capitalista.

    A modernidade se espraia em diversas frentes face transformaes tecnolgicas,

    manipulao dos espaos, modificao nas relaes sociais e na reconfigurao de um

    trabalhador, reverberando inclusive em experincias socialistas da Rssia Sovitica. A

    modernidade socialista apresentou-se enquanto uma maneira instrumental de

    desenvolvimento das foras produtivas russas a partir de iniciativas da fora do Estado, de

    modo que o vis planificado das transformaes enredou-se em polticas sui generis de

    imposio de singulares pulses modernas nas dinmicas de sociabilidade e socializao, nos

    modos de vida, no trato com as indstrias e tecnologia e, sobretudo, na formao de um

    homem voltado para o trabalho. A modernidade pelo vis socialista emerge como uma

    adaptao das concentraes burguesas de transformao pela mxima do mercado e da

    propriedade, cujo protagonismo estatal consolidou uma ideologia modernizante a luz de um

    discurso revolucionrio.

    1.2 A modernidade na variante Sovitica

    Encarar os tempos modernos foi uma dificuldade russa desde o czarismo.

    Possibilitar mudanas sociais e econmicas que interviessem no real estado de coisas do

    imprio do czar tornou-se um tabu do qual o regime no queria superar. A Rssia Czarista

    era formada fundamentalmente por quatro aparelhos - a burocracia civil, a polcia poltica, as

    foras armadas e a igreja ortodoxa - de sustentao do sistema poltico, os quais exprimiam a

    manuteno de recursos tradicionais na conduo do pas. A burocracia civil constitua a

    referncia poltica do regime. Segundo Reis Filho (2003), esta funcionava com uma fora

    simblica das tradies conservadoras da sociedade russa, sobretudo em torno da resistncia

    aos processos de modernizao. A polcia poltica e as foras armadas funcionavam como

    instrumentos de represso e intimidao, alm de entusiastas de ambies expansionistas. A

    igreja ortodoxa, por fim, servia como uma ferramenta transcendental do regime para a

    manuteno da ordem, de modo que no interessava politicamente um emergente processo de

    modernidade com sopros de secularizao. No mbito do objeto da pesquisa5 e das pretenses

    5 Objeto flmico exaustivamente trabalhado em Entusiasmo de Vertov.

  • 30

    do captulo, mostra-se necessria uma imerso mais cuidadosa acerca da importncia da igreja

    ortodoxa para o czarismo.

    Segundo Reis Filho (2003), a igreja ortodoxa russa auxiliava a manuteno do

    controle sobre a populao baseada numa religiosidade conformista e resignada, condicionada

    estritamente ao poder do czar. De tal maneira que a religio oficial situava o czar na condio

    de um soberano de direito divino. Isto , o czar legitimava a sua autoridade conforme as

    prerrogativas concedidas por uma estrutura que reivindicava a excelncia da mediao do

    sagrado no plano material.

    A divisa oficial do imprio um Tsar, uma nao, uma f e a convico de que Moscou era a encarnao da Terceira Roma, sede de um cristianismo ntegro, ainda no corrompido pelas tentaes do mundo fazia da Ortodoxia uma religio oficial, mesmo porque o tsar era um soberano de direito divino, o que trazia bvias implicaes nas relaes entre o Poder e a Religio (REIS FILHO, 2003, p.18).

    No entanto, esse jogo de relaes de poder solidamente construdo no se deu numa

    esfera harmnica, sendo resultado de uma histrica ligao movida por instabilidades,

    conflitos e de um jogo de poder reciprocamente fortalecido para uma estrutura slida de

    dominao. O cristianismo chega Rssia no sculo X em perodo de intensificadas relaes

    militares, polticas e comerciais com Bizncio. Segundo Tragtemberg (2007), a introduo do

    cristianismo na Rssia inicia-se como um assunto de prncipes, doravante espraiados pela

    populao eslava que, pelo fato de no possurem uma tradio ao sacerdcio, aceitaram a

    penetrao da nova religio. O fato que a maior resistncia para a consolidao da igreja

    estava na vaidade dos prncipes e nos diversos conflitos gerados entre eles. Um campo frtil

    de fortalecimento do papel poltico da igreja que passou a mediar esses embates, tornando-se

    porta-voz de uma suposta harmonia e prosperidade russa. Para Tragtemberg (2007), os

    tribunais eclesisticos que serviam como severos observadores da moral e dos bons costumes

    garantiram a fora poltica necessria da igreja entre os povos eslavos.

    A poltica de servido do sculo XVII outro fator que evidencia o poder

    desempenhado pela igreja ortodoxa. A sua influncia e nmero de servos ultrapassava a

    quantidade dos latifundirios leigos. Alm disso, Tragtemberg (2007) pondera a dependncia

    cultural da Rssia construda luz das tradies da bblia e dos compndios religiosos. A

    religio passou a dar contornos significativos aos desenhos arquitetnicos, s pinturas de

    cavalete e aos traos literrios, combatendo eventuais desvios pagos.

  • 31

    A intensificao do nacionalismo da igreja acontece com o Conclio de Florena. Esse

    o momento caracterstico de ligao da igreja com o Estado a partir da figura do czar, de

    forma que Moscou se torna a Terceira Roma, a Santa Rssia. O poder poltico da Igreja

    recrudesce em conformidade com o poderio econmico. A igreja dava sustentao ao regime

    do czar na mesma medida em que era agraciada com facilidades advindas de relaes

    consistentes com o imprio.

    Um antigo crente via a Igreja russa nos seguintes termos: A chamada f ortodoxa uma extenso da coroa e do Tesouro, um smbolo oficial. No est fundada em sincera convico, mas limita-se a cumprir com seu dever como um instrumento do Estado para preservao da ordem. A partir de 1824 o Snodo ser dirigido por um produtor-chefe do Estado que era na realidade o ministro do czar para assuntos religiosos. A igreja identificou-se com a autocracia e o nacionalismo russos. Os povos no-russos que antes dispunham de liberdade religiosa, a partir de Nicolau I (1825-55) foram obrigados a adotar a ortodoxia russa como religio, tanto quanto os ucranianos (TRAGTEMBERG, 2007, p. 81).

    As decises dos bolcheviques durante o processo revolucionrio de 1917 em proibir a

    prtica da religio e a atuao das escolas religiosas no se reduzem aos motivos obviamente

    ideolgicos. A substituio de smbolos da tradio religiosa por materiais que representam a

    revoluo6 evoca a capitulao do regime czarista que tinha a igreja como sustentao e fora

    poltica. Trotsky (2006) sublinhou as dificuldades enfrentadas pela revoluo em desconstruir

    costumes internalizados pela igreja ortodoxa. A relao do cidado russo com a igreja foi

    garantida pelo hbito e pela reproduo de prticas que no condiziam com os novos tempos.

    [...] a igreja atrai devido toda uma srie de motivos scio-estticos, que nem a fbrica, nem a

    famlia, nem a rua oferecem (TROTSKY, 2006, p. 44).

    Com efeito, percebe-se o importante papel desempenhado pela igreja na manuteno

    de um sistema movido pelos aspectos da tradio e na imobilidade de um estado de coisas

    bastante convenientes aos interesses do czar. Na Rssia imperial, havia uma discrepncia

    entre o seu modelo semi-feudal com o nvel de desenvolvimento das foras produtivas em

    vrios pases da Europa. Segundo Reis Filho (2003), o que havia de moderno na conduo

    poltica dos czares era apenas a ganncia de lucratividade em torno de uma dbil burguesia

    russa. No interessava ao poder imperial a aceitao de uma modernidade e um processo de

    modernizao, cujos domnios estivessem entregues s leis de mercado e alheios as vontades

    do soberano.

    6 Entusiasmo de Dziga Vertov representa o processo de transio do czarismo para o socialismo a partir da retirada de objetos dos templos que se transformam em prdios a servio da revoluo.

  • 32

    Desse modo, reproduzia-se um modelo servil distinto da relao senhor-vassalo, no

    qual as decises tinham o crivo absoluto do czar. A servido manifestava-se como um

    instrumento lucrativo que assegurava uma arrecadao estvel. Em contrapartida, os meios de

    produo no campo exprimiam simbolicamente o contexto scio-econmico de dependncia

    agrria. As tcnicas de produo eram ineficientes, os instrumentos de trabalho impediam a

    produtividade e ainda havia uma instabilidade na posse de terras, ou seja, elementos que

    trariam ojeriza a um sistema capitalista de produo, sobretudo no que se refere ao direito

    inalienvel de propriedade.

    Introduzira-se naquelas quatro dcadas, entre 1815 e 1855, um descompasso que se tornara histrico entre a Rssia Tsarista e as potncias capitalistas mais dinmicas da Europa. Como se a Rssia no tivesse sido capaz de acompanhar o processo de modernizao (a Revoluo Industrial) que estava mudando a paisagem econmica e social da Europa ocidental desde os fins do sculo XVIII (REIS FILHO, 2003, p. 22).

    A guerra da Crimia de 1855 possibilitou um caminho de reformas e inquietudes em

    relao s polticas do czar. Reis Filho (2003) chama de modernidade alternativa as

    mudanas operadas pela corte no sentido de conter os nimos dos vidos entusiastas da

    modernidade. O programa reformista pretendia mexer na concepo do papel da servido sem

    mudar a perspectiva de recusa modernizante. As reformas parciais tiveram impactos em

    articulaes comerciais globalizantes, subordinando um relativo desenvolvimento do

    capitalismo aos interesses estatais.

    No entanto, alm de no resolver problemas histricos, contribuiu para

    descontentamentos de diversos setores da sociedade russa. As rebelies camponesas

    tornaram-se mais freqentes, o dbil industrialismo carecia de estmulos desenvolvimentistas

    e grupos polticos se formaram para combater as condies vigentes. No que concerne a

    proposta do presente captulo, apresentar o antagonismo entre o populismo revolucionrio

    russo e a social democracia russa interessante no que diz respeito apropriao das

    concepes de modernidade para grupos que reivindicavam o papel de vanguarda na

    construo de conscincia de classe entre os trabalhadores. Tendo em vista, obviamente, a

    resistncia do sistema czarista em implantar transformaes modernas que fugissem ao seu

    controle.

    O Populismo Revolucionrio Russo emerge do desejo de sublevao do czarismo

    russo. O movimento se afirmou mediante a propaganda revolucionria, a organizao, greves

  • 33

    e atentados a prepostos do imprio. No entanto, no se diferenciava da ordem vigente no que

    concerne a recusa do fluxo da modernidade na sociedade russa. Segundo Reis Filho (2003), os

    populistas procuravam arregimentar uma nova modernidade luz de uma recusa ao

    capitalismo, de forma que a superao das condies objetivas dar-se-ia pela adoo do

    socialismo sem o desenvolvimento do capitalismo. A base poltica da transformao

    revolucionria estaria calcada no comunitarismo campons. No entanto, a contradio da

    promoo de uma impondervel modernidade sem o desenvolvimento das foras produtivas

    se estabeleceu rapidamente face o conflito com teses marxistas, uma vez que ainda no havia

    o prenncio de uma revoluo internacional que resgataria a Rssia do passado servil e de

    uma dbil industrializao. Ou seja, uma das poucas possibilidades admitidas por Marx de

    uma revoluo socialista desprovida das superaes atinentes a um capitalismo desenvolvido.

    A SocialDemocracia Russa aparece com propostas que divergem dos populistas

    revolucionrios, pois tinha a convico de que o socialismo seria o resultado do progresso

    urbano e da atividade da classe operria na fbrica. A derrubada da autocracia czarista

    decorreria do desenvolvimento do capitalismo, da burguesia e da classe operria, respeitando

    um movimento dialtico de constituio de uma repblica democrtica, a luta de classes e do

    socialismo. Desse modo, as pulses modernas de transformao seriam apropriadas no mbito

    de um projeto do qual o socialismo emergiria das condies materiais da conscincia de

    classe de superao do sistema capitalista de produo. Portanto, mesmo com a posterior

    separao dos social-democratas nas alas bolchevique e menchevique, as concepes relativas

    ao processo de modernidade continuavam distintas do populismo revolucionrio.

    As teses da revoluo em duas etapas demarcaram os campos entre populistas e marxistas. Para os primeiros, os marxistas no passavam de mais uma verso da tradio ocidentalizante. Fantasiados de revolucionrios, iriam, de fato, paralisar as energias revolucionrias e induzir ao conformismo histrico, espera da consecuo da primeira etapa. Para Plekhanov e seus discpulos, em contraste, os populistas no passavam de socialistas utpicos, abnegados, sem dvida, mas incapazes de compreender as novas circunstncias histricas. Queriam fazer a roda da histria voltar para trs. Nesse sentido, eram reacionrios, no sentido prprio da palavra (REIS FILHO, 2003, p. 37)

    Ademais, concepes modernas de liberdade jurdica e poltica, constituio de uma

    classe operria homognea, eleies e assemblias democrticas ganhavam corpo no bojo das

    inquietaes em torno do retrocesso da poltica dos czares. O aparecimento dos sovietes

    remonta esse cenrio. O processo revolucionrio deflagrado pelos bolcheviques propunha a

    adoo de uma severa modernidade apoiada no proletariado industrial. No entanto, rejeitava

  • 34

    os princpios de uma modernidade pautada nos preceitos do capital, oferecendo, assim, uma

    modernidade alternativa, com polticas, discursos e prticas peculiares para recrudescer o

    processo revolucionrio em vista da socializao da concepo de um novo homem.

    Como foi amplamente discutido acima, a modernidade se constitui num processo

    histrico de destruio criativa (HARVEY, 2007), no qual aspectos da tradio so

    superados pelo impulso transformador das variantes modernas a partir de um processo

    imanente de desenvolvimento das foras produtivas. Logo, a modernidade se afirma nesse

    contexto de reproduo ampliada do capital. Os revolucionrios de 1917 apelam para um

    radical processo de destruio criativa do escopo de sociedade deixado pelos czares,

    manifestando a clara inteno modernizante da estrutura social russa. Por outro lado, em razo

    dos seus manifestos princpios, revelava a clarividncia da superao do modo de produo

    capitalista traduzido na busca incessante do lucro, de excedentes, do princpio de propriedade,

    e da explorao do trabalho.

    A superao para um sistema essencialmente socialista s seria possvel a partir do

    desenvolvimento da dbil indstria sovitica. Aps o Comunismo de Guerra, a constituio

    da NEP7 (Nova Poltica Econmica) aparece para estimular o desenvolvimento das indstrias

    e o fomento a transformao tecnolgica. Alm disso, a adoo das pulses modernas j

    implica na compreenso da classe trabalhadora ou operria enquanto sujeito revolucionrio.

    No sentido de no confundir a modernidade capitalista com a modernidade instrumental dos

    revolucionrios, os soviticos classificam as mquinas8 e os trabalhadores sob a gide da

    transformao socialista de produo. Nesse contexto, a mquina sovitica considerada um

    instrumento da revoluo por no estar a servio da explorao da classe trabalhadora, da

    mesma maneira que o cidado sovitico deve emergir convicto da condio de um trabalhador

    ativo e consciente do processo de produo. A fuso do trabalhador com as mquinas o

    dispositivo ideolgico de formao da sociedade sovitica.

    A NEP foraria uma espcie de acumulao socialista primitiva a partir da taxao dos

    campesinos. O contexto de dificuldades abarcava um extenso desemprego e a atividade dos

    execrados comerciantes especuladores9. Ademais, forou o aparecimento de grupos com

    7 Converge com o incio da produo da pelcula A Sexta Parte do Mundo de Dziga Vertov. 8 A Sexta Parte do mundo evoca uma suposta distino entre as mquinas socialistas com as mquinas do capitalismo. 9 Objeto de um filme de Dziga Vertov chamado Cine-Olho (1924) que no est presente na pesquisa. Nesse filme, crianas intituladas como pioneiras da revoluo devassam as reas de especuladores, combatendo o intenso comrcio contra-revolucionrio.

  • 35

    mentalidades comerciais chamados de nepmen10. A ascenso de Stlin aps a morte de Lnin

    envolve um amplo processo de debates em torno dos investimentos em planejamento

    urbanstico das cidades e da acelerao da industrializao. A idia constante de superar os

    pases capitalistas avanados pairava nas posies polticas evidenciadas nos diversos

    Congressos do Partido Comunista. Segundo Reis Filho (2003), o avano estaria condicionado

    aos investimentos nas indstrias pesadas e na ampla publicidade de ter um domnio mais

    incisivo na anarquia campesina. A modernidade sovitica tambm fora organizada face

    hostilizao dos kulaks e das ameaas freqentes de coletivizao de um espao sobre o qual

    o regime entendeu ser fundamental para a captao de recursos para a industrializao.

    Nessa atmosfera carregada, em abril de 1929, o Comit Central do Partido aprovou o I Plano Qinqenal, na verso mxima. Em cinco anos, a partir de outubro de 1928, os investimentos cresceriam 237%, a renda nacional, 506%, a produo industrial, 136%, a produo da energia eltrica, 335%, a de carvo, 111%, a de petrleo, 88%, a de ao, 160%. As previses, embora altas, caam sintomaticamente, em relao aos bens de consumo, 104 %, e a produo agrcola, 55% (REIS FILHO, 2003, p. 85).

    As dificuldades em torno da consolidao da NEP em virtude das relaes com o

    campo foram superadas com os planos qinqenais. A modernidade sovitica se afirmava

    com base na imposio estatal. Para Reis Filho (2003), a URSS funda um modelo singular a

    partir dos anos 30 de transformao moderna da mquina pblica, manifestando a plenitude

    do vis socialista da mudana, mesmo que na essncia no o fosse. O processo de

    modernizao, proposto desde Pedro, O Grande, em fins do sculo XVII, e impulsionado

    pelas reformas do sculo XIX, sempre oscilando entre a cpia do ocidente e a formulao de

    uma modernidade alternativa, seria agora retomado de uma forma decisiva e numa escala

    inaudita (REIS FILHO, 2003, p. 86). Obviamente que no se deve ignorar todo o processo

    revolucionrio, de modo a associar inextricavelmente as formulaes de Pedro, O Grande

    com a posteridade, mas perceber com exatido a paralisia revolucionria do stalinismo em

    nome do aparato burocrtico.

    O fato que os paradigmas ocidentais das pulses modernas seriam incorporados no

    s de uma maneira instrumental, como tambm sob uma apropriao em cujo significado

    tornar-se-ia conveniente ideologicamente para o regime. Nesse sentido, as incurses

    modernas seriam pautadas no suposto de descontaminao de princpios e hbitos

    burgueses, envolvendo o produto das riquezas produzidas na economia planificada em 10 De maneira geral, so os homens da NEP. Empresrios e grandes executivos que ganharam terreno na esteira do comrcio planificado da URSS.

  • 36

    tradues socialistas e revolucionrias. Logo, o desenvolvimento das foras produtivas era

    essencialmente tratado conforme o contexto profcuo ao regime, de modo que a coletivizao

    forada e a industrializao acelerada contriburam decisivamente para o seu estabelecimento.

    O controle do Estado sob a produo provocou o pagamento de altos tributos do

    campons ao processo de acumulao socialista primitiva. A obsesso de Stlin pelo

    desenvolvimento planejado das cidades atrelado a um padro de crescimento acentuado da

    produo industrial11 se deu pela insistncia nas cooperativas (kolkhozes) e nas fazendas

    coletivas (sovkhozes). A anarquia camponesa de boicote a sustentao da NEP fora

    substituda por uma dinmica de entregas obrigatrias, independente de um eventual sucesso

    ou fracasso da produo.

    Entre os mujiks acorrentados s unidades coletivas de produo, os que logravam migrar para as cidades, empregados nos trabalhos mais pesados e rudes das indstrias, e os Zeks nos campos de trabalho forado, formou-se uma estranha simbiose: a da construo da modernidade socialista com base na radicalizao de formas de explorao que faziam pensar no Antigo Regime (REIS FILHO, 2003, p. 91).

    O crescimento industrial repercutiu diretamente no processo de transformao das

    cidades, sobretudo com o vertiginoso povoamento dos centros urbanos. A mobilidade espacial

    construiu novos hbitos de sociabilidade pelos quais o regime procurou acompanhar. No

    bastava somente introduzir formas de desenvolvimento capitalista, mas tambm fortalecer o

    Estado a partir de reformas na formao do cidado sovitico em consonncia com as

    transformaes operadas. O ideal socialista deveria ser evocado na construo de um novo

    homem, moderno, contudo, diferente do homem moderno dos pases capitalistas. Um homem

    que pensasse na socializao dos meios de produo e na ditadura do proletariado, e no na

    superao individual da ideologia do capital; um homem cujo modo de vida o modo de vida

    do seu companheiro revolucionrio, execrando as particularidades das desigualdades de

    classe.

    O regime, deste modo, forma um cidado movido pela ebulio de uma modernidade

    sob o vis do socialismo. O suposto de liberdade do homem moderno no capital redefinido

    para o homem sovitico em comprometimento com o ideal revolucionrio. A modernidade

    molda um comportamento social adequado s novas contingncias sociais, sobretudo no que

    se refere ao avano da reproduo ampliada do capital. Os soviticos, neste sentido,

    apreendem os pressupostos modernos de sociabilidade, dando contornos singulares a

    11 Obsesso flmica de Dziga Vertov em O homem com uma Cmera no qual a cidade ucraniana de Odessa representada.

  • 37

    formao de um novo cidado i