Dissertação de Mestrado de Otávio Luiz Machado

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE CINCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

OTVIO LUIZ MACHADO

FORMAO PROFISSIONAL, ENSINO SUPERIOR E A CONSTRUO DA PROFISSO DO ENGENHEIRO PELOS MOVIMENTOS ESTUDANTIS DE ENGENHARIA: A EXPERINCIA A PARTIR DA ESCOLA DE ENGENHARIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (19581975)

ORIENTADORA: Prof Dr. Silke Weber ALUNO: Otvio Luiz Machado

Recife, 30 de Setembro de 2008.

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OTVIO LUIZ MACHADO

FORMAO PROFISSIONAL, ENSINO SUPERIOR E A CONSTRUO DA PROFISSO DO ENGENHEIRO PELOS MOVIMENTOS ESTUDANTIS DE ENGENHARIA: A EXPERINCIA A PARTIR DA ESCOLA DE ENGENHARIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (19581975)

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco para obteno do ttulo de Mestre em Sociologia. Orientadora: Silke Weber

Recife, 30 de Setembro de 2008.

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FICHA BIBLIOGRFICA

Machado, Luiz Otvio Formao profissional, ensino superior e a construo da profisso do engenheiro pelos movimentos estudantis de engenharia : a experincia a partir da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Pernambuco (1958-1975) / Luiz Otvio Machado. Recife : O Autor, 2008. 140 folhas Dissertao (mestrado) Universidade Federal de Pernambuco. CFCH. Sociologia, 2008. Inclui: bibliografia e anexos. 1. Sociologia. 2. Juventude. 3. Juventude Atividades polticas. 4. Participao poltica. 5. Movimentos estudantis Pernambuco. 6. Ensino superior. 7. Escola de Engenharia de Pernambuco Estudantes. I. Ttulo. 316 301 CDU ed.) CDD (22. ed.) (2. UFPE BCFCH2008/112

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr Silke Weber Presidente/Orientadora PPGS/UFPE ________________________________________ Prof Dr. Michel Zaidan Filho Titular Externo PPCP/UFPE ________________________________________ Prof. Carla de SantAna Brando Titular Externo UEPB ________________________________________ Prof. Dr Eliane Veras Soares Suplente Interno PPGS/UFPE ________________________________________ Prof. Maria Creuza de Arajo Borges Suplente Externo UFPB

vi RESUMO

O estudo que desenvolvemos teve como objeto o movimento estudantil da Escola de Engenharia de Pernambuco entre 1958 e 1975. O principal objetivo foi captar as propostas de formao profissional que estavam ento sendo apresentadas pelos estudantes, aspecto pouco tratado na literatura. Para tanto procedemos anlise de documentos institucionais e estudantis, depoimentos e entrevistas com participantes do movimento estudantil. Tomamos o movimento estudantil como um ator social envolvido no debate sobre as mudanas sociais e na busca de uma nova configurao do ensino superior, representando a sua participao poltica o principal canal de expresso dos jovens brasileiros. Suas lutas trouxeram preocupaes das camadas mdias em ampliar suas oportunidades educacionais e ascender socialmente, bem como possibilitaram a construo de um discurso focado na construo de novos desenhos formativos que antecipavam questes do campo profissional em que os atores ainda no estavam inseridos. Consideramos que um projeto de mobilidade social coletiva foi construdo porque o movimento estudantil defendia a atualizao da formao como condio de insero no mercado de trabalho criado pelo desenvolvimento industrial. Palavras Chave: Engenharia; Movimento Estudantil; Profisses; Juventude; Universidade;

vii ABSTRACT

This study focused on the student movement of the Engineering School of Pernambuco between 1958 and 1975. The main aim was to identify the professional formation proposals, which were being presented by the students, a scarce theme in the literature. For that we have proceeded the analysis of institutional and student documents, declarations and interviews with student movement militants. We took the student movement as a social actor involved in the debate about social change and for a new configuration of the higher studies, understanding the political participation as the Brazilian youngsters main way of expression. Their demands highlighted medium classes concern on amplifying their educational opportunities and improve their social status, as well as made possible building a discourse focused on the construction formation perspectives that anticipated questions of the professional field in which the actors were not still engaged. We have found out that it was built a collective social mobility project since the student movement fought for updating formation as a condition of insertion in the work market created by the industrial development. Key-words: Student Movement; Professions; Youth; University; Engineering.

viii LISTA DAS SIGLAS UTILIZADAS ADUSP: Associao dos Docentes da USP AI: Ato Institucional ALN: Aliana Libertadora Nacional ANDES: Associao Nacional de Docentes de Ensino Superior AP: Ao Popular APEJE: Arquivo Pblico Estadual de Pernambuco Jordo Emerenciano C.A: Centro Acadmico CAASO: Centro Acadmico Armando Sales de Oliveira CAp/UFRJ: Colgio de Aplicao da Universidade Federal do Rio de Janeiro CAPES: Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior CCC: Comando de Caa Comunista CEB: Casa do Estudante do Brasil CEBs: Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Catlica do Brasil CHESF: Companhia Hidroeltrica do So Francisco CIA: Central Intelligence Agency CNE: Conselho Nacional de Educao CNEE: Congresso Nacional dos Estudantes de Engenharia CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico CODENO: Conselho de Desenvolvimento do Nordeste CODI: Centro de Operaes de Defesa Interna CONFEA: Conselho de Engenharia e Arquitetura COSUPI: Comisso Supervisora do Plano dos Institutos CPC: Centro Popular de Cultura CPI: Comisso Parlamentar de Inqurito CREA: Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia CRUB: Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras CSN: Conselho de Segurana Nacional CTG: Centro de Tecnologia e Geocincias da UFPE D.A.: Diretrio Acadmico D.A.E.P: Diretrio Acadmico da Escola de Engenharia de Pernambuco DCE: Diretrio Central de Estudantes DOI CODI: Destacamento de Operaes e Informaes Centro de Operaes de Defesa Interna DOPS: Departamento de Ordem Poltica e Social EEP: Escola de Engenharia de Pernambuco EMOP: Escola de Minas de Ouro Preto ESALQ: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz FAC: Frente Anti-Comunista FEURGS: Federao dos Estudantes da Universidade do Rio Grande do Sul FUEC: Frente Unida dos Estudantes do Calabouo FUNDAJ: Fundao Joaquim Nabuco GTDN: Grupo de Estudos do Desenvolvimento do Nordeste IAB: Instituto dos Arquitetos do Brasil IME: Instituto Militar de Engenharia IPMs: Inquritos Policiais Militares JEC: Juventude Estudantil Catlica JUC: Juventude Universitria Catlica LDB: Lei de Diretrizes e Bases (da Educao Nacional)

ix MAC: Movimento Anti-Comunista MCP: Movimento de Cultura Popular MDB: Movimento Democrtico Brasileiro ME: Movimento Estudantil MEC: Ministrio da Educao MEC: Ministrio da Educao e Cultura MR-8: Movimento Revolucionrio 8 de outubro OAB: Ordem dos Advogados do Brasil OBAN: Operao Bandeirantes OLAS: Organizao Latino Americana de Solidariedade OTAN: Organizao do Tratado do Atlntico Norte PC do B: Partido Comunista do Brasil PCB: Partido Comunista Brasileiro PCBR: Partido Comunista Brasileiro Revolucionrio POLOP: Poltica Operria PPGS: Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE PT: Partido dos Trabalhadores PUC-RJ: Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro PUC-SP: Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo SBPC: Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia SEC: Servio de Extenso Cultural da Universidade do Recife SNI: Servio Nacional de Informao SUDENE: Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste UBES: Unio Brasileira dos Estudantes Secundaristas UEE: Unio Estadual de Estudantes UEP: Unio dos Estudantes de Pernambuco UFBA: Universidade Federal da Bahia UFF: Universidade Federal Fluminense UFJF: Universidade Federal de Juiz de Fora UFMG: Universidade Federal de Minas Gerais UFPE: Universidade Federal de Pernambuco UFPR: Universidade Federal do Paran UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro UME: Unio Metropolitana de Estudantes UnB: Universidade de Braslia UNE: Unio Nacional dos Estudantes UNESCO: United Nations Educational Scientific and Cultural Organization UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas UNIFEI: Universidade Federal de So Joo Del Rei UNISAL/SP: Universidade Salesiana de So Paulo USAID: United States Agency for International Development USP: Universidade de So Paulo VPR: Vanguarda Popular Revolucionria

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AGRADECIMENTOS

bom ficar registrado em primeiro lugar que, na criao das condies para que pudssemos chegar at a presente dissertao, sempre foi fundamental o conhecimento que adquirimos de todos os Professores e Professoras do corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Sociologia da UFPE (PPGS/UFPE). Em especial Professora Silke Weber, pela orientao correta, sua extrema pacincia e o seu exemplo de dedicao e de compromisso com a Universidade pblica brasileira. Assim como aos Professores Remo Mutzenberg, Eliane Veras Soares e Acio Mattos, que foram importantes para que tivssemos um estmulo inicial no Programa. O corpo administrativo do PPGS tambm foi imprescindvel para o desenvolvimento do nosso trabalho no interior do PPGS, por meio tanto das funcionrias, Vnia Vasconcelos, Andra Costa e Zuleika Elias, como dos bolsistas, Priscila Braz e Jozaf Gomes e Marcelo. Tambm no poderia deixar de agradecer funcionria que presta servio ao PPGS, Zenilde Alves, nem antiga funcionria da Secretaria do PPGS, Ceres Ferreira de Paula. Todos foram responsveis pelo bom andamento das nossas atividades. Aos colegas do curso uma ateno especial, pois logo no incio da jornada me escolheram para representante dos estudantes do Mestrado no Colegiado do Curso. Cumpri o que todos esperavam. Os colegas ainda foram alm: souberam compartilhar sonhos, dvidas, angstias e estudos. Tambm no poderia deixar de agradecer aos demais funcionrios da UFPE que colaboram comigo durante o curso, em especial aos ascensoristas do elevador, os seguranas, os motoristas que fizeram o nosso trajeto dirio dentro do campus e os (as) secretrios (as) de diversos departamentos que nos atenderam para as mais diversas demandas. Minha gratido tambm ao pessoal da Fundao de Apoio ao Desenvolvimento da UFPE (FADE/UFPE), sobretudo Rbia Siqueira, Mariana Campelo, Suelda Costa Lima e Flvia Machado. Aos companheiros Michel Zaidan Filho e Luis Antnio Groppo, que mesmo antes da minha entrada no Mestrado, o compartilhar de nossas pesquisas e publicaes tambm foram fundamentais como estmulo no decorrer do Curso de Mestrado e da produo da dissertao.

xi O Professor Ricardo Santiago (Departamento de Cincias Sociais), juntamente com os alunos e alunas da disciplina Desigualdade Social matriculados (as) no 2 semestre de 2006, tenho tambm um respeito muito especial, pois me permitiram desenvolver o lado da docncia. Muitos rgos foram imprescindveis para o xito da pesquisa que agora aparece como dissertao: Arquivo Central/UFPE (em especial o apoio de Rogrio Assuno de Farias), Centro de Tecnologia e Geocincias/UFPE (em especial ao Professor Edmilson Santos de Lima), Centro de Documentao da Fundao Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e Arquivo Pblico Estadual de Pernambuco (em especial funcionria Marclia Gama em nome de todos). No poderia deixar de agradecer ao ento estagirio do DNPM pela digitalizao de diversos documentos no Arquivo Pblico Estadual. Aos funcionrios das bibliotecas do Centro de Filosofia e Cincias Humanas CFCH, do Centro de Cincias Sociais Aplicadas (CCSA), Central (BC), do Centro de Educao (CED) e do Centro de Artes, Cultura e Comunicao (CAC), todas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); Coordenao de Aperfeioamento do Pessoal de Educao Superior (CAPES) pelo apoio dado por meio da bolsa neste momento do curso de ps-graduao, o que aumenta o nosso compromisso com a produo do conhecimento e com a formao de uma nova gerao de brasileiros nas nossas universidades. Agradecemos imensamente a interlocuo fundamental na pesquisa aos nomes de Jos Jorge de Seixas, lvaro Alves Camello, Romildo Maranho do Vale, Iber Batista da Costa, Carlos Alberto Soares, Carmen Chaves, Francisco das Chagas Pinto Coelho, Genival Barbosa Guimares, Guilherme Robalinho, Moema So Thiago, Kleber Farias Pinto, Jader Nunes de Oliveira, Jos Antnio Feij de Melo, Jos Antnio de Albuquerque Arajo (Bolinha), Antonio Modesto da Silveira, Abdias Vilar Carvalho, Jos Osael Farias, Marcelo Santa Cruz, Maria Yara Campos Matos, Merval Jurema, Pedro Eugnio de Castro Toledo, Moema Mattos, Nelson Rosas Ribeiro, Norman Barbosa Costa, Srgio Costa (Serjo), Jos Antnio Gonalves, Jos Moura e Fontes, Cludio Dubeux, Adriano Batista Dias, Antnio Carlos Maranho de Aguiar, Telga Arajo, Paulo Jaime Alheiros, Jos Fernando Coura, Fernando Teixeira, Tnia Bacelar, Luiz Costa Lima, Jurandir Freire Costa, Lauro Morhy, Simone Tenrio Rocha e Silva, Maria de Lourdes Fvero, Elimar Pinheiro Nascimento, Jacob Gorender, Michel Thiollent, Anbal Frias, Maria Brayner, Craig Hendricks, Nadja Brayner, Marcelo Mrio Melo, Airton Queiroz e Alexandre Santos, Abelardo Baltar, Ana Maria Arajo

xii Freire, Joana Melo, Cludio Pinto, Felcia Soares, Clia Linhares, Lucila Bezerra, Lcia Pelegrino, Rassa Pelegrino, Miriam Falco, Clia Rands, Maurcio Rands, Edmo de Abreu Mendes, Genival Barbosa de Guimares, Jaime Galvo, Eduardo da Mota e Jos Jorge de Seixas. E tantos outros que tambm deveriam estar aqui citados. A alguns Professores ou pesquisadores tambm agradecemos pelas sugestes dadas ou pela referncia intelectual aos nosso projeto de dissertao: Afonso Celso Scocuglia, Marcelo Siqueira Ridenti, Roberto Romano, Heloisa Starling, Marcos Ribeiro Mesquita, Simon Schwartzman, Jos Murilo de Carvalho, Janice Tireli, Jos de Souza Martins, Snia Marques, Marcius Cortez e Octavio Ianni (in memorian). A pontualidade na colaborao Marcos Galindo, Maria de Lourdes Florncio dos Santos (Lourdinha) e Antnio Duprat e Marcos Ferreira. O que segue tambm para entidades como a Propesq, a Proext e a Editora Universitria. Tambm no poderia deixar de agradecer banca de defesa do projeto, que alm de guiar os novos caminhos tericos da dissertao, tambm me fez ver alguns pontos que at ento no havia enxergado. Minha gratido a aos seguintes Professores: Carla Brando (UEPB), Michel Zaidan Filho (UFPE) e Arthur Perrusi (UFPB). Foi importante a troca de conhecimentos com o pessoal do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Foi muito generoso o convite para minha breve estadia num importante evento realizado. A o meu agradecimento especial a Elsio Estanque, Boaventura de Sousa Santos, Alexandra Silva, Hugo Dias, Rui Bebiano e Rui Namorado. Por fim, ao indispensvel apoio familiar, pois sem o amor e o respeito dos familiares em nenhum momento no teria tido nenhuma perspectiva naquilo que fao e sonho fazer. Ao meu pai, minha irm e aos meus cunhados em especial. Ana Maria da Mota Silveira Correia obrigado pelo convvio fraterno nos momentos da redao final da dissertao. E a Rafaela, que com o seu carinho forneceu-me uma grande dose de inspirao e de felicidades num momento de grande esforo intelectual e fsico, que foi o momento de produo da dissertao. Ao final no poderia ficar sem agradecer aos vendedores ambulantes que trabalham diariamente com dignidade em torno do CFCH/UFPE. Como parte do povo brasileiro, tambm so, na verdade, os grandes financiadores do nosso estudo e do nosso trabalho, o que nos fornece todas as condies de faz-los com os privilgios essenciais para o pleno desenvolvimento.

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SUMRIO

RESUMO ................................................................................................................... p. iv ABSTRACT .................................................................................................................p. v LISTA DAS SIGLAS UTILIZADAS ........................................................................ p. vi AGRADECIMENTOS ............................................................................................. p. viii

1. INTRODUO: A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA ............... p. 1

2. TEORIA SOCIOLGICA: BUSCANDO APROXIMAR JUVENTUDE, PROFISSES E EDUCAO .............................................................................. p. 10 2.1. O debate sociolgico sobre Juventude Universitria.......................................... p. 12 2.2. Um dilogo com a Sociologia das Profisses .................................................... p. 17 2.3. Caminhos da Pesquisa......................................................................................... p. 23

3. A CONSTRUO DO ENSINO DE ENGENHARIA E DO MOVIMENTO ESTUDANTIL NO BRASIL .................................................................................. p. 31 3.1. A construo do campo da Engenharia no Brasil e o debate sobre a Formao Profissional do Engenheiro........................................................................................ p. 31 3.2. A formao como tema de Congressos............................................................... p. 42 3.3. Os estudantes de Engenharia e projeto de Pas................................................... p. 49 3.4. Movimento Estudantil no incio dos anos 1960: a Reforma Universitria em questo ....................................................................................................................... p. 54 3.5. Movimento Estudantil e a ditadura militar de 1964 ........................................... p. 60 3. 6. O Movimento Estudantil e ensino superior entre 1968 e 1975.......................... p. 64

4. MOVIMENTO ESTUDANTIL E O DEBATE EM TORNO DA FORMAO PROFISSIONAL NA ESCOLA DE ENGENHARIA DE PERNAMBUCO (195873) .............................................................................................................................. p. 76 4. 1. Caracterizao dos ex-militantes entrevistados.................................................. p. 77 4.2. A Escola de Engenharia e sua importncia para os Estudantes ......................... p. 78 4.3. A luta pela persistncia do protagonismo estudantil .......................................... p. 90

xiv 4.4. O Diretrio Acadmico e a formao profissional.............................................. p. 95 4.5. Escola de Engenharia e Movimento Estudantil a Partir de 1969 ....................... p. 98 4.6. A chapa Voz na atuao do D.A.E.P (1974-1975) .......................................... p. 105

CONSIDERAES FINAIS ................................................................................ p. 113

FONTES...................................................................................................................p. 116

DEPOIMENTOS COLETADOS ......................................................................... p. 117 DOCUMENTOS .................................................................................................... p. 118 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ................................................................ p. 121

ANEXOS ................................................................................................................ p. 136 ANEXO 1: Roteiro de Entrevistas 1 ........................................................................ p.136 ANEXO 2: Roteiro de Entrevistas 2 ....................................................................... p. 137 ANEXO 2: Questionrio Utilizado ........................................................................ p. 138

1 1. INTRODUO: A CONSTRUO DO OBJETO DE PESQUISA

Sempre tivemos um interesse enorme em compreender alguns momentos singulares da realidade brasileira, principalmente aquele quando houve uma tentativa significativa da classe mdia brasileira de ascender socialmente via ensino superior, ao considerar que seus anseios de alguma forma estavam ligados a uma pretenso de participar no processo de transformao da sociedade brasileira. A busca do aumento da oferta de escolarizao, sobretudo a de nvel superior, acompanha geralmente os momentos de busca de desenvolvimento econmico. E atores importantes presentes no contexto universitrio em determinados perodos, como o movimento estudantil, de certa forma produzem um discurso sobre a questo, pois os sujeitos ao proporem mudanas a partir da universidade tambm respondem a necessidades e expectativas oriundas dos seus meios sociais de origem. O interesse em apreender a dinmica interna dos mecanismos de acesso, de socializao e de futuro uso de conhecimentos e saberes disponveis e acumulados ao longo de sua existncia pelos atores que por ela passaram, nos conduz ao estudo do movimento estudantil entre 1958 a 1975. Consideramos que tais processos sociais tambm so produzidos e constitudos na relao que instituies e sujeitos travam socialmente, pois, para Florestan Fernandes, foram criadas naquele perodo condies materiais e intelectuais para o florescimento de um movimento estudantil renovado e importante para a quebra da acomodao conservadora e muito pautado em termos de renovao cultural (FERNANDES, 1978). No panorama geral do estudo procuramos os elementos que tornaram o movimento estudantil um ator social importante no debate sobre a Universidade, a formulao de um iderio sobre a carreira do engenheiro, a constituio de novas relaes sociais no interior de instituies de ensino superior e a construo de uma articulao entre Universidade e Sociedade. O movimento estudantil se constituiu em dcadas passadas como uns dos fenmenos sociais por excelncia. Os atores sociais envolvidos construram novos sentidos sobre o espao universitrio ao articularem interesses acadmicos e polticos para atender a uma expectativa coletiva.

2 Assim, o que se pretende questionar at que ponto a experincia universitria de grupos juvenis universitrios em torno do movimento estudantil possibilitou a construo de um discurso focado na construo de novos desenhos formativos que antecipavam questes do prprio campo profissional em que os atores ainda no estavam inseridos. Voltamo-nos para a experincia universitria a partir do Diretrio Acadmico (D.A.) da Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP) da UFPE, procurando analisar como os discursos de seus ex-militantes entre os anos 1958 e 1975 foram construdos e quais dimenses foram fundamentais para a constituio dos mltiplos aspectos que envolvem a sua aproximao e participao efetiva no movimento estudantil. O papel do Diretrio Acadmico fundamental para a anlise, pois era o espao de concentrao de todos os debates do movimento estudantil (dentro e fora da universidade), de aglutinao das idias dos estudantes de Engenharia, de sociabilidades,

homogeneizavam as relaes sociais no interior da universidade e tambm como espao de unidade de uma memria discursiva da prpria UFPE. Admite-se que um projeto de mobilidade coletiva foi construdo ao longo desse processo de socializao profissional do estudante daquele perodo. Vale dizer que tal processo tinha como pano de fundo o aumento dos investimentos no ensino superior, tal como se verificou aps a Segunda Guerra Mundial. O papel estratgico da Universidade tornou-se, ento, evidente para o Estado, tendo a reforma universitria passado a ser o tema central de suas polticas entre 1958 at 1975, com os encaminhamentos finais do projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional (LDB) e a sua promulgao em 1961, a incluso da questo universitria como um dos pontos das Reformas de Base de Goulart em 1963 e o acordo MEC-Usaid aps o incio da ditadura militar e a concomitante criao de um Grupo de Trabalho da Reforma Universitria e a promulgao da Reforma Universitria em 1968, a CPI do Ensino Superior que concluiu seus trabalhos em 1969 e os decretos de 1973 (N 73.079) e de 1975 (N 75.369). A edio desses Decretos vem sendo interpretada como a adequao do ensino superior s transformaes ocorridas no capitalismo brasileiro, que naquele momento se consolidava com a entrada de grandes corporaes multinacionais, a expanso do consumo de produtos durveis e no-durveis e um significativo desenvolvimento das foras produtivas.

3 Ao mesmo tempo, o Estado antecipava nos anos 1950 a demanda de novos profissionais que iria ser mobilizada nas duas dcadas seguintes para os novos projetos de desenvolvimento. A Universidade tornou-se o lugar da formao profissional daquelas camadas sociais a que ela conseguiam chegar, bem assim prover formao de tcnicos e criar um campo de trabalho especializado necessrio acelerao do processo de desenvolvimento econmico. Para o movimento estudantil, sobretudo a Unio Nacional dos Estudantes (UNE), houve tambm interesse enorme quanto reforma do ensino superior no perodo estudado, sendo exemplos a realizao do I Seminrio de Reforma do Ensino (1957), a participao na Campanha em Defesa da Escola Pblica (que atuou de 1958 a 1961). O envolvimento de muitos estudantes em movimentos culturais como o Movimento de Cultura Popular (MCP) e o Servio de Extenso Cultural (SEC) da ento Universidade do Recife (entre 1960 e 1964), trs seminrios sobre reforma universitria (1961, 1962 e 1963), Greve de 1/3, UNE-Volante (que buscou mobilizar todo o pas em relao ao tema da Universidade), projetos de alfabetizao de adultos entre 1962 e 1964, mobilizaes de massa contrrias Lei Suplicy entre 1965 e 1968, o acordo MEC-Usaid, o projeto de Reforma Universitria e a favor dos excedentes, assim como tentativas de mobilizao dos Diretrios Acadmicos e das Executivas de Curso contrrios implantao da reforma universitria, notadamente no perodo compreendido entre 1970 e 1975, constituem outros exemplos significativos a sua tomada de conscincia em relao urgncia da reforma da universidade converge para o debate intenso relacionado com a formao profissional (FVERO, 1994 e 2007; POERNER, 2005; MESQUITA, 2007), no slogan do Documento de janeiro de 1964: Reforma Universitria: dever da nossa gerao. A Universidade como principal instituio que credenciava via diploma parcela da juventude brasileira que permitia o seu acesso rpido ao mercado de trabalho apresentavase, ento, como o principal canal de ascenso social dessa juventude. O profissional formado no interior da Universidade tinha ento status elevado e possibilidade de ocupar posies importantes na estrutura social, em decorrncia do crescimento de empregos formais no Estado e na economia privada. A concepo de universidade como formadora de elites passava, assim, a sofrer alguns abalos, quando era pleiteada a democratizao do acesso de parcelas que

4 historicamente foram deixadas de fora (CUNHA, 1989; FERNANDES, 1966; WEBER, 1976). Mas a Universidade tambm encarnava um projeto de mudana social, considerando as novas demandas de conhecimento para a construo de uma cincia e tecnologia voltadas aos interesses do pas, como estava em voga. No decorrer do debate sobre a ampliao do acesso de estudantes s universidades, o movimento estudantil tambm passou por alteraes. Ao tentar construir consenso entre os estudantes sobre a necessidade de formao em nvel superior de parcelas excludas da populao uma das bandeiras do movimento estudantil, foi aprofundado o debate sobre as mudanas do ensino superior no pas, para fazer face s mudanas do perfil dos estudantes e escassez de tcnicos para suprir a oferta de empregos abertos com o desenvolvimento econmico. A manuteno de um padro de qualidade dos cursos tradicionais (Engenharia, Direito e Medicina) estava posto pelo movimento estudantil em suas reivindicaes de atualizao do ensino como forma de assegurar a sua futura insero na sociedade via mercado de trabalho. Essa viso era reforada pela sociabilidade no ambiente escolar voltado para a construo do seu projeto profissional. Como sabido, os estudantes se agrupam de forma a alcanarem seus objetivos e pelo fato de viverem a mesma experincia transitria da vida universitria. A vida universitria constitui momento em que jovens de diversas camadas sociais passam a ter uma atuao muitas vezes incompatvel com a sua condio social de origem, suas vinculaes familiares e sua prpria expectativa de insero na sociedade global. O inconformismo juvenil est ligado de alguma forma maneira como os indivduos globalizam a situao social, porque no momento em que se inicia o ingresso na sociedade ampla, o jovem descortina condies e possibilidades de existncia que o tornam consciente tanto das condies reais como das emergentes (IANNI, 1968, p. 228-229). Da poder assumir posies, inclusive, radicais. Na anlise acerca do movimento estudantil brasileiro e da reforma universitria de 1968, h varias vertentes. Uma delas a representada por Souza Martins (1976), autora que concebe a prxis estudantil como definidora de um projeto de reforma estudantil e de afirmao da condio estudantil. Concluiu que a ao dos estudantes, por meio de

5 contestaes e reivindicaes visando uma reforma da universidade, era resultado de sua insatisfao com as suas condies econmicas, sociais e polticas e de vislumbrarem um horizonte de ascenso social, afirmao profissional e desempenho na sociedade. Uma outra vertente a de Paula (2003), que considera o movimento estudantil uma instncia formativa privilegiada, sobretudo na constituio de uma elite entre os estudantes universitrios. Interpreta o autor que o movimento estudantil insurge-se contra o elitismo (privilgios sociais restritos), o pouco acesso universidade e a formao precria dos profissionais, mas ao mesmo tempo tende a reproduzir o status quo em seus quadros mediante trajetrias de distino e formao de uma elite no meio estudantil pelo acmulo de diversos capitais (PAULA, 2003, p. 13). Outra vertente aquela representada por Foracchi (1977), para quem a universidade, por meio do movimento estudantil seria o canal de ascenso social do seu grupo familiar. Observa-se, por outra parte, que incipiente a vertente de estudos acadmicos que relaciona profisses e movimento juvenil, aspecto que explorado neste estudo visando compreender os processos sociais que tinham no ensino superior um instrumento de diferenciao social, considerando que o tema da formao profissional estava posto como ponto fulcral de reflexo da juventude brasileira, tanto do ponto de vista da sua adequao s necessidades sociais, quanto s oportunidades ocupacionais (BRANDO, 2004, p. 21). O enfoque nas profisses como grupos de interesses pode esclarecer que as preocupaes estudantis buscavam acumular benefcios econmicos e status na sociedade, na perspectiva da mobilidade coletiva, conforme discutido por Larson (1976). Assim, a escolha da anlise do movimento estudantil de Engenharia da UFPE foi aqui enfocada por trs motivos: 1) Os estudantes de Engenharia discutiam a questo da profisso desde os anos 1930, quando da regulamentao da profisso do engenheiro, passando pelos congressos nacionais de Engenharia dos anos 1950 e os Seminrios Nacionais de Engenharia nos anos 1970; 2) As entidades estudantis das escolas de Engenharia, oficialmente, desde os anos 1940, vinham atuando atravs dos congressos brasileiros de ensino de Engenharia e Arquitetura, participando nos anos 1950 dos congressos de Diretores de Escolas de Engenharia; 3) O curso de Engenharia esteve entre aqueles que tiveram a maior ateno do Estado, tanto

6 na regulamentao, como na sua expanso. Faz-se, no entanto, necessria uma rpida contextualizao de aspectos da histria brasileira para privilegiar a anlise sociolgica do debate sobre a formao e o papel do engenheiro nessa sociedade. No plano nacional, a passagem dos anos 1950 e 1960 representou um momento de intenso debate sobre a conduo do processo de desenvolvimento econmico, no qual o Estado tinha papel fundamental mediante a construo de infra-estrutura na rea energtica (petrleo e energia) e explorao mineral (minrio de ferro e outros). A consolidao da Chesf e da Vale do Rio Doce, bem como da criao da Petrobras e da Eletrobras so alguns exemplos (MELO et al, 1994) dessa atuao. Nesse contexto, a falta de tcnicos era indicado como problema a enfrentar. A adaptao do ensino de Engenharia realidade do pas, por exemplo, foi captulo de Documento do MEC em 1958. De carter nacionalista, o Documento final apontava a ausncia de desenvolvimento tecnolgico como principal responsvel pela manuteno do subdesenvolvimento. A Comisso Supervisora do Plano dos Institutos (COSUPI), coordenadora do Documento, orientou o Estado a aumentar a capacidade das escolas de Engenharia mediante a criao de novas especialidades visando a ampliao da oferta de formao na rea (OLIVEIRA JUNIOR, 1959; CUNHA, 1989). Vale lembrar que a criao da Chesf em 1948, assim como da Usina de Paulo Afonso em 1955, motivaram setores significativos da sociedade e geraram intensos debates no movimento estudantil que viam em iniciativas como essas a redeno do Nordeste, e demonstravam que a regio precisava para se desenvolver de uma srie de aes (CENTRO DE MEMRIA DA ELETRICIDADE, 1993) para, pelo menos, se igualar s demais regies do pas. Mas foi um plano de desenvolvimento regional para o Nordeste voltado para enfrentamento dos impasses provocados pela extrema misria e pelo baixo

desenvolvimento das foras produtivas que envolveu o movimento estudantil, sobretudo, o de Engenharia. Quando a Sudene foi criada, em 1959, o Brasil estava no auge da industrializao pesada, concentrada na Sudeste do pas, enquanto no Nordeste, o crescimento econmico ocorria em ritmo lento, permeado pelo crescimento das tenses sociais (BACELAR, 2007).

7 A forte atuao das foras progressistas na regio, tambm, propiciou a criao da Sudene. Havia um clamor por mudanas, oriundo do sentimento de que o dinamismo industrial no chegara no Nordeste, quando se fazia comparao com o Sudeste. A partir do Grupo de Estudos do Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) criado por Juscelino Kubitschek (JK), em 1958, coordenado por Celso Furtado, foi institudo o Conselho de Desenvolvimento do Nordeste (CODENO), resultando em seguida na Sudene, que teve Furtado como seu primeiro Superintendente. A Sudene no teve a simpatia dos inmeros interessados na "indstria da seca", pois se houvesse a resoluo e dos problemas da seca, que estavam intimamente ligados estrutura social e agrria vigentes, isso contrariava seus interesses. Assim, os setores conservadores da sociedade nordestina reagiram a tal iniciativa, mas encontraram resistncia muito grande vinda de sindicatos rurais e urbanos, jornalistas e entidades estudantis em defesa da Sudene, o que emitia uma mensagem muito clara de mudana social da regio Nordeste (CAVALCANTI, 1978). A oposio forte do Senador Argemiro Figueiredo foi contestada pelo movimento estudantil que, concentrados em manifestaes em vrios pontos nas ruas de Recife, diziam no tentativa de impedir a criao da Sudene. O protesto foi marcado pela proclamao do Senador como persona non grata na cidade. Com a Sudene, o Nordeste foi colocado como umas das preocupaes nacionais. Diferentemente de alguns dos principais Estados da Federao, a ascenso de Pelpidas Silveira Prefeitura do Recife e de Miguel Arraes ao Governo do Estado, trouxera mudanas institucionais significativas para Pernambuco, representadas por uma srie de polticas pblicas voltadas para o avano de um projeto de governo progressista (CAVALCANTI, 1978). O MCP (Movimento de Cultura Popular), o Servio de Extenso Cultural (SEC) e a proliferao das Ligas Camponesas esto relacionados ao contexto da ascenso da esquerda em Pernambuco. As propostas includas nas Reformas de Base do Presidente Joo Goulart resgatavam uma srie de questes urgentes para a sada do pas do subdesenvolvimento, que o golpe de Estado 1964 contestaria, provocando cises significativas no projeto poltico e social at ento construdo, o que veio a afetar significativamente a construo de um projeto nacional autnomo at ento delineado com a participao de diversas foras populares.

8 A considerao das imbricaes entre o movimento estudantil da Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP) com os diversos movimentos sociais presentes no perodo ser, portanto, essencial, pois a construo do discurso local foi feito com

elementos discursivos que nele ento ganhavam destaque. Entre eles, cabe mencionar a definio das fronteiras entre profisses, a luta pelo profissionalismo, na qual a formao profissional e as lutas empreendidas pela construo de novos desenhos de formao ganham relevo. Os estudantes no apenas reproduzem as relaes existentes na estrutura social, mas as transformam a partir do seu contato com os outros sujeitos; a socializao desenvolvendo nos sujeitos condies de sua futura condio social. Assim, tendo como suporte sociolgico os estudos de Marialice Mencarini Foracchi, que vinculou o iderio do movimento estudantil com uma concepo de ensino superior voltado para a mobilidade social, focaremos as principais aes da juventude universitria no enfrentamento da problemtica universitria, dos desafios nacionais de superao das desigualdades e de suas principais tenses e questionamentos acerca da articulao entre sociedade, educao e profissionalizao. Para verificar esta suposio procuramos obter informaes via entrevistas com antigos militantes da EEP no perodo de 1958 a 1975, bem como em alguns documentos produzidos pelo movimento estudantil, tendo como foco a luta em torno da formao profissional numa das primeiras escolas de Engenharia do pas, criada em 1895. No recorte temporal trabalhamos dois extremos. De um lado, 1958, o embate do Diretrio Acadmico com a direo da EEP exigindo melhorias dos equipamentos escolares. Por outro lado, 1975, o D.A da chapa Voz clama pela participao maior dos estudantes no movimento estudantil, ao tentar reativar o Diretrio Acadmico nos mesmos moldes em que estava assentado antes da Lei Suplicy (1964). A questo foi analisada a partir da greve estudantil (1958) e da campanha eficincia versus imponncia (1960) num primeiro momento; a luta contra a transferncia da Escola de Engenharia de Pernambuco para o campus universitrio e o desmantelamento da instituio pela Lei Suplicy (19645 e 1965), assim como a tentativa de refundar o antigo modelo de Diretrio Acadmico, que ocorreu entre 1974 e 1975. Este estudo recupera qualitativamente um debate sobre formao profissional num

9 perodo relativamente recente, que associou qualidade do ensino, adequao dos currculos e situao dos profissionais a um projeto de pas. Ao mesmo tempo, o nosso trabalho procura desvendar quais os projetos profissionais dos entrevistados e sua consistncia em relao situao profissional desenvolvida mais adiante, interessando, sobretudo, o impacto desses projetos profissionais na prpria experincia universitria por eles vivenciada. Ao tratarmos do discurso sobre a formao profissional do movimento estudantil da Escola de Engenharia de Pernambuco pretendemos investigar se a preocupao com a condio futura de profissional teria sido um fator significativo para que os temas educativos e profissionais ganhassem importncia nas preocupaes tericas e prticas dos estudantes. A dissertao foi dividida em quatro captulos: introduo (1), teoria sociolgica e metodologia (2), o ensino de engenharia e movimento estudantil (3) e movimentos estudantil da EEP (4). Na introduo fazemos consideraes sobre a problemtica e as hipteses de estudo. O referencial terico, com nfase na aproximao entre juventude, profisses e educao, e a metodologia adotados so objeto do captulo 2. No captulo 3, discutimos a relao entre educao superior e profisso, identificando os modelos de formao profissional postos naquele momento para o curso de Engenharia. No ltimo captulo, nos detemos na discusso sobre o movimento estudantil da Escola de Engenharia da UFPE.

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2. TEORIA SOCIOLGICA: PROFISSES E EDUCAO

BUSCANDO

APROXIMAR

JUVENTUDE,

O movimento estudantil foi abordado no plural por no se tratar de uma categoria homognea, pois so vrios os movimentos estudantis, diferentes pautas, formas de atuao, influncias de formao e concepo de lutas. Os movimentos estudantis so movimentos de juventude, que buscam intervir em instituies procurando alterar a situao existente, bem como na formao de sujeitos visando sua participao, envolvimento ou adeso a um ou vrios projetos de sociedade. A forma de atuar e de impor questes a serem tratadas tambm dimensiona o alcance do movimento estudantil. Os movimentos estudantis podem ser analisados a partir de uma problemtica sociolgica construda a partir do espao escolar, desde que tais aspectos sejam localizados no tempo e no espao. A questo da instituio escolar merece ateno, pois passou ser um novo espao de segmentao e de elaborao das identidades e das relaes solidrias necessrias transio de uma faixa etria para outra, pois sua funo a transmisso de conhecimentos e valores para o desempenho da vida futura, inclusive profissional (ABRAMO, 1994, p. 3). Aris (2006) correlaciona condio juvenil separao social imposta pela escola, o que nos permite pensar a construo social da juventude como problema surgido na sociedade moderna e intensamente ligado educao:

como um fenmeno da sociedade moderna, portanto, que a juventude emerge como tema para a sociologia. Na verdade, esta disciplina se interessa pela juventude na medida em que determinados setores juvenis parecem problematizar o processo de transmisso das normas sociais, ou seja, quando se tornam visveis jovens com comportamentos que fogem aos padres de socializao aos quais deveriam estar submetidos (ABRAMO, 1994, p. 8).

Assim, ao discutirmos juventude tambm se est analisando a diferenciao das sociedades modernas, pois a acentuada diviso de trabalho e a especializao econmica, a

11 segregao da famlia das outras esferas institucionais e o aprofundamento das orientaes universalistas agudizam a descontinuidade entre o mundo das crianas e o mundo adulto (ABRAMO, 1994, p. 3). O debate sobre juventude tem tido marcado pela multiplicidade de vises, sendo a mais usual a que trata a categoria juventude a partir de um ciclo biolgico e psicolgico (faixa de idade, perodo de vida, mudanas psicolgicas etc) (ABRAMO, 1995, p. 1). Mas no campo da sociologia tem prevalecido a viso da juventude como categoria social (ABRAMO, 1994, 1995; GROPPO, 2000; PAIS, 1999; SOUSA, 1999). Para a categoria juventude precisamos recorrer a noes como transitoriedade (perodo de preparao para a vida adulta), que est relacionada idia de suspenso da vida social, dada principalmente pela necessidade de um perodo escolar prolongado, como um tempo para o treinamento da atuao futura (ABRAMO, 1994, p. 12). Outra noo a de individuao, na questo da identidade prpria, de recusa de valores e normas considerados fundamentais pelos pais e a importncia dos grupos de pares. Tambm poderamos recorrer noo de crise potencial, ou mesmo de socializao, porque

O destaque do grupo de idade correspondente adolescncia, na sociedade moderna, aparece como fruto do desenvolvimento da sociedade industrial que, ao criar a disjuno entre a infncia e a maturidade, tornou necessrio um segundo processo de socializao. Esta consiste, fundamentalmente, na preparao dos jovens para a assuno dos papis modernos relativos profisso, ao casamento, cidadania poltica etc, que os coloca diante da necessidade de enfrentar uma srie de escolhas e decises. Dessa maneira, por ocupar um status ambguo, between and betwixt, os jovens constroem redes de relaes particulares com seus companheiros de idade e de instituio, marcadas por uma forte afetividade, nas quais, pela similaridade de condio, processam juntos a busca de definio dos novos referenciais de comportamento e de identidade exigidos por tais processos de mudana (ABRAMO, 1994, p. 17).

Ao tratarmos a noo de juventude ao invs do seu carter geracional e biolgico no aspecto histrico, social e cultural, trazemos o debate para a compreenso como parte de grupos sociais e culturais especficos (CARDOSO & SAMPAIO, 1995, p. 18.) Ou seja:A juventude s pode ser entendida em sua especificidade, em termos de segmentos de grupos

12sociais mais amplos. Os jovens passam, assim, a ser vinculados a suas experincias concretas de vida e adjetivados de acordo com o lugar que ocupam na sociedade. No se fala mais em juventude em abstrato, como uma espcie de energia potencial de mudanas, ainda que culturalmente construda, mas das mltiplas identidades que recortam a juventude (idem, p, 18).

As transformaes no ensino superior brasileiro, portanto, estiveram associadas s reivindicaes do movimento estudantil, pois ele era o nico canal de expresso e de participao poltica dos jovens brasileiros no perodo estudado e suas lutas traziam preocupaes das camadas mdias com expectativas de que as bandeiras estudantis fincassem suas aspiraes nas pautas da sociedade.

2.1. O Debate sociolgico sobre Juventude Universitria

Os trabalhos sobre a juventude, movimento estudantil e processos de transformao social do final dos anos 1960, e as duas dcadas que se seguiram (POERNER, 1968; GUILHON ALBUQUERQUE, 1977; MARTINS, 1979; MARTINS FILHO, 1987; SANFELICE, 1985; RIBEIRO NETO, 1985) mostraram a presena de estratgias em aes coletivas, marcadas em diversos perodos pelas atuaes de toda uma gerao que cruzou sua identidade com a das sociedades brasileira e latino-americana (ANTUNES, MACHADO e PINTO, 2007). A observao do movimento juvenil no espao regulador como a universidade, a famlia, o trabalho, e fora dele, nos espaos culturais, sociais e de lazer (ABRAMO, 1994; SOUSA, 1999) mostra que os binmios dependncia/autonomia; tradio/ruptura; produo/reproduo esto presentes nas prticas socioculturais juvenis, colocando para a pesquisa social a necessidade da compreenso terica a partir das diferentes condies juvenis. Para a autora, o interesse da sociologia aqui recaiu sempre, na verdade, sobre o papel da juventude como agente poltico, sobre sua capacidade de desenvolver uma postura crtica e transformadora da ordem vigente (ABRAMO, 1994, p. 21-22).

13 Para Abramo,

A questo da juventude emergiu como tema no bojo da preocupao com as questes colocadas pelo processo de modernizao desencadeado nos anos 50. A tese a de que a configurao da condio juvenil est vinculada ao processo de modernizao social ocorrido no ciclo de transformaes estruturais desencadeado no perodo posterior Segunda Guerra Mundial (ABRAMO, 1994, p. 22).

Ou seja, o jovem passou a ganhar visibilidade como sujeito social a partir do momento em que ele era visto como capaz de provocar mudanas por estar situado dentro de uma estrutura de ascenso social que tinha na escola o seu principal canal:

A percepo da presena do jovem nas sociedades latino-americanas, que se estruturou nos anos 50 e, de certa forma, vigorou at os anos 70, articula um conjunto de noes que vincula as idias de modernizao a projetos de mudana, apoiados sobre a figura do jovem estudante. Num plano, projetos pessoais e familiares de ascenso social pela escolarizao. Noutro, projetos de desenvolvimento e mudana social, pelo exerccio de novas funes profissionais com base tcnica e cientfica modernas, e pelas mobilizaes estudantis que postulam transformaes de carter progressista e democrtico. A vinculao da idia de juventude e modernidade aparece tambm pela percepo de sua especial sintonia com a difuso de novos hbitos urbanos (ABRAMO, 1994, p. 23).

O jovem passou a ser visto como elemento dinmico na estrutura vigente a partir dos anos 1950, embora a dvida quanto ao papel protagonista desses jovens tambm remetam marginalidade, embora o que prevaleceu foi o entendimento da sua insero no processo de mudana social da sociedade brasileira:

De qualquer ngulo sob o qual seja analisado, o jovem aparece como sujeito em busca de mobilizao e de mudana social. Toda a preocupao acadmica do perodo est dirigida anlise das suas potencialidades nesse sentido, atravs de dois pares de dicotomias: um entre integrao e marginalidade, relacionadas com a possibilidade de acesso dos diferentes grupos juvenis aos mecanismos de incorporao social ; outro, entre radicalismo e alienao, como chaves para interpretar o sentido da atuao dos grupos juvenis (ABRAMO, 1994, p. 23).

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A autora refere-se principalmente aos trabalhos de Marialice Mencarini Foracchi. Dentre os movimentos juvenis, o movimento estudantil visto por Foracchi como a forma predominante assumida pela rebelio juvenil na sociedade moderna (ABRAMO, 1994, p. 25). Foracchi encontra ali lugar especial, pois

A autora esclarece que a sua anlise se refere aos setores urbanos privilegiados, que tm acesso formao universitria, pois nesse setor que a crise moderna da condio juvenil se faz sentir de forma mais aguda, uma vez que o esforo de criao, emulado pela Universidade, no encontra acolhida na estrutura institucional, desenvolvendo-se, assim, uma postura de rejeio simultnea do modo de ser adulto e do sistema social. nessa situao que a contestao juvenil pode assumir um sentido ativo de engajamento, atravs do qual a juventude se impe como categoria histrica, como no caso dos movimentos estudantis (ABRAMO, 1994, p. 25).

Foracchi foi assistente de Florestan Fernandes na antiga cadeira de Sociologia I da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, dirigida por Florestan Fernandes, posteriormente Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas (FFLCH/USP), que surgiu das mudanas, em 1969, por meio dos primeiros impactos da reforma universitria na USP.

A contribuio de Foracchi foi fundamental para a compreenso da condio juvenil nos anos 60, profundamente marcada pela participao poltica dos jovens no movimento estudantil. Essa autora referncia contempornea neste final de dcada por desenhar com clareza terica os traos sociolgicos da problemtica da juventude em suas relaes com a estrutura da sociedade, com a universidade e com a famlia e com seu grupo poltico de referncia. Para ela, houve em cada sociedade um dilogo singular com a juventude, colocada no palco de relaes consigo mesma e com outras geraes que representavam a cristalizao de normas, valores e expectativas. Para a autora, os jovens vivem a ambivalncia de terem um papel social atribudo e delimitado pela idade e pelo direito, protagonizando em alguns momentos as relaes societrias e culturais, percebendo, porm, que a intensidade de suas experincias depende destas mesmas relaes, que os preparam para a vida adulta (SOUSA,

151999, p. 18).

Foracchi identificou nos seus estudos a questo dos conflitos entre as geraes, sobretudo em relao ao difcil dilogo entre jovens e adultos:

Crescer e tornar-se adulto so tarefas terrivelmente difceis em nossa sociedade (...) H, assim, um enorme desperdcio de potencial humano, incapaz de ser criadoramente absorvido pelo sistema social, e a juventude parcela considervel, desse potencial (FORACCHI, 1972, p. 3)

Seu trabalho fundamental para entender as transformaes da sociedade moderna, inclusive a participao dos estudantes nesse processo transformador:

Foracchi (1965, 1972) tinha como referncia a sociedade moderna, mas suas afirmaes podem nos remeter a uma dimenso ontolgica e para uma compreenso abrangente dos jovens de diferentes pocas da histria social. Em cada sociedade, houve um dilogo singular com eles, que os colocou no palco de relaes consigo mesmos e com geraes outras que representavam a cristalizao das normas, valores e expectativas da sociedade inclusiva. E mais, a abordagem centrada no movimento estudantil deu uma dimenso da participao social dos jovens e de suas possibilidades de interveno, alm de ter demonstrado como eles podem, mediados pela poltica, conduzir e propor contedos de uma nova sociabilidade (SOUSA, 1999, p. 22).

Na anlise da juventude enquanto categoria a contribuio de Foracchi foi importante, pois

As relaes interpessoais e as manifestaes vinculadas situao de classe, alm da referncia aos processos de transformao da sociedade inclusiva, foram os pontos destacados na anlise do estudante como categoria social (cf. Foracchi, 1965, "Introduo"). De certo modo, articulando esses trs nveis que permitiam equacionar de forma abrangente o processo de construo dessa categoria, a autora ps em relevo a dinmica educacional, na medida em que a educao vista, com freqncia, como capaz de propiciar a ascenso social, tanto do indivduo como do grupo (OLIVA AUGUSTO, 2005).

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No seu principal trabalho, O estudante e a transformao da sociedade brasileira, a autora ao apresentar os principais resultados de sua tese uma pesquisa sociolgica sobre os estudantes paulistas buscando determinar o significado da ao estudantil na sociedade brasileira , constatou que a opo por uma carreira profissional tinha uma influncia muito forte da famlia, pois da que vinha o estmulo para a busca de garantia da posio social a ser conquistada ou mesmo a aquisio de melhores condies para preserv-la. O movimento estudantil analisado a partir das deficincias da formao universitria, que se transforma numa fora radicalizadora crucial (FORACCHI, 1972, p. 12). O estudante percebido como responsvel pela manuteno ou ascenso social de seu grupo familiar. Ao buscar analisar os processos de transio para a vida adulta, o estudante como categoria social e o significado dos movimentos juvenis no mundo contemporneo Foracchi no descura da relao estabelecida entre as dimenses do presente e do futuro que marcam as trajetrias dos estudantes, onde o curso universitrio torna-se um divisor de guas. Para Foracchi (1977, p. 13), ao ser compreendida em conexo com o projeto de carreira e com as oportunidades de profissionalizao que a classe mdia acalenta, a ao do estudante evidencia sua conotao pequeno-burguesa, considerando assim o movimento estudantil como uma manifestao de setores mdios no sentido de consolidar sua ascenso social, embora carregado de todas as ambigidades possveis na busca, principalmente, da ampliao das oportunidades de escolarizao. A contribuio do estudante na transformao da sociedade brasileira confundida com a questo da transformao da sociedade:

A dinmica das transformaes que revolucionaram o presente brasileiro contm aspectos vitais que podem ser observados na ao do estudante universitrio fazendo, por sua vez, com que esta s possa ser entendida como produto desse presente (FORACCHI, 1977, p. 14).

Utilizamos como referencial ou marco terico deste estudo a Sociologia da Juventude de Marialice Mencarini Foracchi, levando-se em considerao que sua obra explica a participao do jovem universitrio no debate das questes gerais da sociedade e da universidade naquele contexto, assim como retrata a juventude nas sociedades

17 modernas. Entretanto, para explorar o conceito de juventude universitria de Foracchi precisamos entender alguns outros pilares por que passam a explicao sociolgica como as profisses, por exemplo.

2.2. Um dilogo com a Sociologia das Profisses

Ao aceitarmos a perspectiva de Foracchi de que o estudante responsvel pela ascenso social de seu grupo familiar cabe explorar contribuies sociolgicas que relacionam formao universitria e mobilidade coletiva, bem como contribuies relativas socializao profissional, e, por conseguinte, consideram o mercado profissional. Tal debate tende a ser realizado no mbito da Sociologia das Profisses e a se nortear por duas nfases: 1) Dimenso cognitiva; 2) Dimenso organizacional ou institucional. Para os limites da dissertao, nos fixaremos na dimenso cognitiva porque entendemos que conhecimentos e prticas sao potencialmente monopolizveis pelos seus criadores-possuidores. A relao da profisso com o conhecimento que ela monopoliza ter efeitos na transformao desse conhecimento formal, pois certos grupos so mais capazes que outros de estabelecer ou impor suas posies no quadro de necessidades sociais. Utilizamos como principal referncia Larson (1977), cuja teoria tem alimentado o debate sobre profisses na atualidade. Para Larson, as profisses ao voltarem-se ao mercado profissional necessitam de uma negociabilidade (marketability) dos

conhecimentos que sero trocados, enfatizando tambm o papel do sistema de ensino na produo de um saber unificado, condio essencial para a fundao do mercado (BARBOSA, 1993, p. 11). O que diferencia as profisses o tipo de conhecimento necessrio para a deteno de determinadas possibilidades na unificao do seu campo profissional, pois no projeto de mobilidade coletiva o contedo do saber fundamental para a produo do mercado. Ou seja, os prprios produtores tm de ser produzidos, pois sua mercadoria intangvel e eles tm de ser adequadamente treinados e socializados de modo a poderem oferecer servios no mercado (idem, p. 11). Quando os mercados so inexistentes, no so unificados ou so

18 instveis, necessrio a definio de padres comuns unificados para que o saber e as necessidades possam atender ao mercado de forma satisfatria e atender s expectativas profissionais, pois,

... a criao do mercado e a padronizao da mercadoria esto vinculados a uma outra questo que a da busca de garantias para o investimento e o sacrifcio implicados na educao do produtor. O mercado se produz tambm pela instituio de padres de recompensas adequados dos diversos grupos (idem).

Para a criao de mercados, segundo Larson (1977), o estabelecimento da credibilidade social e a formatao de um produto a ser trocado no mercado teria que ser controlado ainda no ponto de produo, para padronizar e deixar claro a mercadoria que os profissionais iro oferecer (BARBOSA, 1993, p. 11). Assim, a reivindicao de cada profisso por um certo tipo de conhecimento para produzir seu mercado fundamental para a afirmao do seu monoplio (LARSON, 1977, p. 15). O papel das instituies de ensino, com o credenciamento via diploma, bem como o treinamento determinado por um currculo unificado, essencial para o processo de unificao do campo cognitivo e o conseqente monoplio do mercado a partir de critrios comuns de validao e credibilidade (BARBOSA, 1993, p. 12). O efeito da base cientfica eficaz, pois qualifica a profisso e ao mesmo tempo permite o seu reconhecimento por meio da cincia:At the same time, these scientific bases qualify a profession for affiliation more readily than any other, in a world where science is the cardinal system of cognitive validation and legitimation. Entry into the university gives any profession a core of educators; because of the university's apparent universalism and independence from lay demands and private interests, these educators are in the best position to defend the universalistic guarantees of professional competence and to legitimize the professionals' claim of autonomy and monopoly. As professionals themselves, they are interested in the market in which their products the graduates will have to secure income and status. In the modern university, which centralizes the production of knowledge as well as that of producers, scientific educators control and produce a constantly changing body of knowledge (LARSON, 1977, p. 34).

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Como a base cognitiva para Larson o seu contedo que define a forma como os seus portadores negociaro a sua condio no mercado, bem como se tornaro os agentes essenciais da formatao de determinados padres de sociabilidade e de organizao das relaes sociais, todas as dimenses envolvidas na criao e organizao do mercado so dependentes do tipo de conhecimento com que lida a profisso (BARBOSA, 1993, p. 12). O espao universitrio torna-se importante para a formatao do projeto profissional, pois Larson focando o sculo XIX ao analisar a fora do movimento estudantil percebeu que o mesmo foi baseado em grande parte nos princpios de solidariedade e moralidade dos jovens profissionais, sendo uma referncia na etapa de passagem dos outros indivduos nas universidades:

The often profound impact of the student movements of the nineteen sixties was based, in large part, on the alternative sources of morality and solidarity they offered to professional apprentices. Despite the transiency of their personnel, student movements arise in situations that do bring people together: unlike schools and universities, many professional work situations maintain isolation among individuals. This is one the important reasons why dissent within a profession lends of originate in its student wing (LARSON, 1977, p. 228).

Nessa perspectiva, a formao profissional representa o aprendizado de um corpo de conhecimentos e qualificaes, cujo contedo ministrado visando ao treinamento institucionalizado de uma profisso e de suas novas formas de domnio. O contedo cognitivo de saberes e prticas do ensino superior, portanto, est associado com valores e preocupaes da sociedade, o que significa dizer que as preocupaes dos estudantes universitrios matriculados em cursos superiores tambm se voltam aos valores do mercado e o seu conseqente controle. No interior das universidades so construdos padres de comportamentos e uma srie de aes para uma maior aproximao com o que seria necessrio enfrentar aps a sada da universidade e a posterior entrada no mercado de trabalho. Nesse sentido, o processo de profissionalizao identificado como um processo em que determinadas reas so mobilizadas visando o monoplio do mercado e a mobilidade social coletiva (BARBOSA, 1993b; BONELLI, 1999); consiste num processo

20 monopolista em que os seus envolvidos buscam transformar order of scarse resources special knowledge and skills into another social and economic rewards (LARSON, p. xvii). O processo de profissionalizao tem sua base nas escolas superiores e nas associaes profissionais e buscaria criar mercado para os seus membros e no um ideal de servio aos que pretendem passar a tornar-se um deles. O que significa dizer que atravs do conhecimento abstrato gerado nas universidades que so produzidos o monoplio do mercado, a organizao para controlar acesso a credenciais, ttulos e postos de trabalho (BONELLI, 1999). Ao pensarmos a questo posta por Larson de associar profissionalizao a projeto de mobilidade coletiva de grupos mdios e de controle de mercado (idem), possvel afirmar que, com a maior oferta de escolarizao, novas disputas se instauram visando ao caminho do credenciamento e do domnio de certa rea de competncia; a luta pelo monoplio, pela constituio de um mercado razoavelmente fechado e protegido, a marca distinta das profisses enquanto grupos profissionais (BARBOSA, 1993b, p. 8). Em outras palavras, como o controle sobre uma determinada rea do saber o elemento essencial para a organizao de um grupo profissional (idem), o monoplio de conhecimentos e prticas permite ao mesmo tempo a expertise (domnio do saber) e a acumulao de status no sistema de estratificao, pois o projeto profissional visa recompensas econmicas e sociais que sero dadas a partir da sada da escola e da entrada no mercado de trabalho. As profisses, nesse sentido, so constitudas por grupos sociais com um projeto de mobilidade coletiva que buscam acumular benefcios econmicos e status na sociedade (idem), justificado pelo seu longo treinamento e pela aquisio de habilidades especiais. Outro aspecto a ressaltar o do profissionalismo, que concebido como um projeto coletivo de mobilidade social articulado em torno de um determinado tipo de conhecimento, cujo monoplio permite controlar um mercado definido (idem). Como aspectos que fundam o profissionalismo temos a formao de um tipo de solidariedade, de uma fonte de significado que hierarquiza saberes e um sistema de regulao de crenas na sociedade moderna. Ao evocar a sociedade buscando uma clientela que aceite os servios de um grupo social com formao reconhecida e tambm capaz de traar uma srie de atividades de

21 interesse social, os profissionais buscam demonstrar que o seu conhecimento, as suas competncias e o seu projeto profissional so os legtimos e devem ser compartilhados por todos. O interesse pblico comum nos discursos profissionais, sobretudo para justificar os privilgios obtidos na sociedade e a necessidade de corporativismo dos seus membros que estariam agindo a servio da sociedade, bem como para manter o monoplio do conhecimento adquirido. Para muitos autores que esto presentes na discusso sociolgica, as profisses so ocupaes que so bem sucedidas em seu projeto de fechamento com base em credenciais educacionais, e de controle das condies de seu mercado (DINIZ, 2001, p. 31), dependendo do apoio do Estado para o sucesso do projeto profissional. Por outro lado, o restrito acesso ao ensino superior, a manuteno de poucas vagas, o monoplio do conhecimento em rea especfica, o fechamento da carreira em rea especfica, o tipo de formao, generalista ou no, o controle de determinado campo do saber correspondente so elementos fundamentais para se compreender desenhos de formao ou formao profissional. No caso do Brasil, o debate sobre profisses, sobretudo a de Engenharia, ganhou destaque nas ltimas dcadas especialmente com as mudanas ali ocorridas (DINIZ, 2001; BARBOSA, 2003, COELHO, 1999), atuando o Estado de forma regulatria na alterao dos currculos, expanso do nmero de vagas, legitimao do diploma, definio das competncias profissionais, aspectos importantes na criao e manuteno do poder e prestgio de uma profisso (DINIZ, 2001, p. 173). A questo da dimenso cognitiva das profisses e o ensino superior enfrentado por Freidson. Para este autor, a credencial utilizada para amparar sua reserva de mercado de trabalho criada por um programa de treinamento que se desenrola fora do mercado de trabalho, em escolas associadas a universidades (FREIDSON, 1996, p. 153). Assim, o credenciamento individual pelo diploma universitrio constitui uma forma de fechamento destinado a controlar e monitorar o acesso a posies-chave na diviso do trabalho (DINIZ, 2001, p. 31). Para Freidson (1996), a entrada dos futuros membros numa profisso exige treinamento com base em sistema apropriado de seleo e socializao, o que envolve controle da entrada educacional a partir de trs objetivos: desenvolvimento, definio e

22 monopolizao do conhecimento profissional. Pe-se, ento, a questo do elitismo, pois para Brint (2000), no treinamento da profisso, sobretudo Strong technical training and internal policing to encourage loyalty to professional standards of conduct can go only so far to counter of elitism (idem, s.p), considerando que the reward structure and interaction structure of professions fosters elitism, because professional rewards tend to be reserved for elites and interactions are also highly stratified (idem). Uma profisso monopolizada depende do reconhecimento do Estado para a aquisio de status e de autoridade moral. Freidson considera o controle do saber um elemento fundamental para a organizao de um grupo profissional. um enfoque muito aceito no Brasil por diversos estudiosos, como indica Bonelli (1999). O monoplio do saber por determinados grupos responde ascenso do profissionalismo como forma distinta de organizao profissional. O conhecimento abstrato aprendido em instituies formais de educao sobretudo em escolas tradicionais pois, fundamental, desde que seguido do poder do Estado para garantir legalmente o uso e a avaliao desse corpo de conhecimento pelos profissionais. Para Freidson (1986), atravs do conceito de profisso possvel ligar corpos de conhecimento, discurso, disciplinas e campos aos meios sociais, econmicos e polticos por meio dos quais seus expoentes humanos podem ganhar poder e exerc-lo. Dessa forma, as instituies educacionais institucionalizam corpos de conhecimento, disciplinas, campos discursivos de modo a gerar ou reproduzir determinada profisso, impondo o tipo de conhecimento, as habilidades necessrias para o membro da profisso. No caso brasileiro, possvel pensar que dado o restrito acesso s universidades no perodo dos anos 1960 a 1980, os estudantes universitrios procuravam explorar as condies que lhes eram oferecidas no mbito formador para discutir projetos de formao profissional. Tal debate seria mais intenso entre os estudantes que vislumbravam oportunidade de atuao profissional no contexto da implantao de projetos de desenvolvimento, como o da Engenharia, por exemplo. Este estudo busca observar o contedo desse debate por aqueles que naquele momento estavam liderando na Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP). Demos destaque s reivindicaes referentes a reformas da universidade, currculos e formaes com vistas a compreender o seu sentido ou seja, at que ponto tal debate relacionava

23 credenciais educacionais e controle do mercado profissional, na perspectiva de mobilidade coletiva ou visava assegurar a prpria ascenso social. Nesta anlise a nfase ser dada ao projeto profissional delineado, bem como sua participao na consecuo dos objetivos do projeto profissional que futuramente seria compartilhado com os demais membros. Partimos da suposio que os estudantes universitrios neste caso os militantes estudantis da Escola de Engenharia de Pernambuco construram uma importante anlise da universidade brasileira que associava universidade e sociedade, profisso e interveno social, carreira e participao poltica, formao profissional e projeto de pas. Para demonstrar a validade de tal suposio debruamo-nos sobre estudos relativos Engenharia no Brasil, bem como a documentao que restou do perodo 1958/1975 tais como boletins, atas, discursos escritos, panfletos e manifestos, alm de memrias de ex-alunos, e ainda de depoimentos de estudantes que muitas vezes produziram o material informativo com o objetivo de apreender o seu sentido.

2.3. Caminhos da Pesquisa

Temos como foco grupos profissionais formados na Escola de Engenharia de Pernambuco que tiveram participao no movimento estudantil nessa escola entre 1958 e 1975, sobretudo a partir do Diretrio Acadmico, que concentrou todos os debates do movimento estudantil. O contato inicial com muitos desses ex-alunos que estiveram presentes na Escola de Engenharia da UFPE no perodo de 1958 a 1971 foi feito por meio de realizao de entrevistas, que totalizam dezessete (17) depoimentos. Tambm foram repassados alguns questionrios. Buscamos apreender suas vises de mundo, lembranas e domnios do tema. As entrevistas tiveram carter no-estruturado, ou seja, entrevistas em profundidade, quando realizamos uma conversao guiada sem a exposio sistemtica de perguntas pr-formuladas , para a obteno de informaes detalhadas e propcias a uma anlise qualitativa. Entretanto, alguns pontos comuns foram abordados: a) Imagem sobre a Escola de Engenharia; b) Pontos discutidos pelo movimento estudantil que tratavam de desenhos de formao; c) Peso da formao profissional nas

24 preocupaes cotidianas dos estudantes; d) Ponto de encontro da formao profissional com um projeto de pas; e) Preocupao com a realidade brasileira; f) Papel do engenheiro na sociedade; g) Importncia da universidade para o desenvolvimento brasileiro; h) Contribuio dos estudantes para a efetivao de uma reforma universitria. Foi estabelecido um ambiente favorvel para entrevistar esse grupo de ex-alunos da Escola de Engenharia da Escola de Engenharia de Pernambuco, ou seja, um "rapport" positivo entre pesquisador e cada depoente, o que permitiu a criao de uma relao de confiana, reforada pelo fato de o contato ter sido feito ou mediado por pessoas que mantm relaes com os mesmos, conhecedores da realidade que eles prprios contracenaram. Tratamos seus relatos como depoimentos, tendo em vista que eles puderam narrar de forma livre sobre os desenhos de formao na Escola de Engenharia de Pernambuco do perodo em pauta. Ainda tivemos acesso, via depoimento de terceiros, menes s atuaes de dois lderes estudantis que ocuparam a presidncia da Unio dos Estudantes de Pernambuco (UEP). O uso de depoimentos pode fornecer ao pesquisador maior segurana no tratamento de questes obscuras nos documentos, j previamente levantados nos arquivos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Arquivo Pblico Estadual de Pernambuco (APEJE) e Fundao Joaquim Nabuco (FUNDAJ), alm dos diversos arquivos particulares, alargando o conhecimento do universo em que elas estavam imersas e das possveis interpretaes a realizar. Vale dizer que muitos dos documentos foram produzidos pelos prprios entrevistados tempos atrs. Ento, os depoimentos, no caso, auxiliam a reconstruo do contexto histrico, social, cultural e poltico em que o debate sobre formao do engenheiro era posto. Embora o uso de entrevistas ou depoimentos nas Cincias Sociais constitua uma tcnica para se registrar o que ainda no se cristalizara em documentao escrita, o noconservado, o que desapareceria se no fosse anotado (PEREIRA DE QUEIROZ, 1991, p. 1-2), para o caso em estudo, o recurso a esta tcnica visou a esclarecer os pontos que orientaram os projetos de formao ento em debate. Dessa forma, os registros orais uma vez transcritos tornam-se igualmente documento, e o seu aproveitamento na pesquisa depende de anlise rigorosa, o que significa

25 a devida decomposio do texto, a fragmentao de seus elementos fundamentais para que se possa utilizar o que compatvel com o problema estudado. De todo modo, especfico das cincias sociais necessitar sempre o pesquisador de dados colhidos de fontes as mais variadas, quando quer abarcar de forma ampla a realidade que estuda (idem, 1991, p. 12). O pesquisador precisa ter a responsabilidade de que est construindo um documento, que inclusive ser estudado por outros pesquisadores em suas pesquisas. As narrativas (no caso dos ex-alunos) no constituem por si uma forma de explicao da realidade, mas um procedimento expressivo que visa a explicar uma mudana sucedida entre dois pontos terminais (LIMA, 1988, p. 46). Alis, a narrativa histrica, embora exija um aparato documental (idem, p. 50), ultrapassa a anlise do acontecido, e busca a sua significao. Nesse tipo de narrativa so trazidos elementos histricos que tm significado nas experincias dos depoentes, o que pode ser observado nas falas, nos gestos, nos silncios e na prpria nfase dada a cada questo levantada na relao entre pesquisador e entrevistado e prpria relao estabelecida entre eles. A memria posio social do presente. A relao entre presente e passado em cada texto vai explicitando as marcas da prpria vivncia de quem vai narrar. Assim, certamente so inevitveis anacronismos, pois ao se lembrar de determinados fatos ao mesmo tempo se apagam diversas trilhas da memria. Um outro aspecto a considerar que os informantes narram aspectos ocorridos h mais de quarenta anos, que certamente so releituras e ressignificaes de outras leituras que interferem na leitura daquele passado.

Ora, devemos considerar que aquilo que se torna uma marca, um registro na memria resulta de operaes complexas, seletivas. Desde o momento inicial da percepo de algo, desencadeia-se uma construo em que as memrias que trazemos (que so de maneira indissocivel individuais e coletivas) atuam reelaborando e ressignificando aquilo que se apresenta os sentidos. Em outros termos, no h percepo pura e no h tambm memria pura (MONTENEGRO, 2007, p. 273).

No contato com diversos personagens da histria do movimento estudantil da

26 Escola de Engenharia de Pernambuco percebemos surpresa de sua parte porque um pesquisador se interessava em abrir um espao para que compartilhassem experincias de um perodo estimulante e enriquecedor de suas vidas. E isto teria mobilizado a disposio para retrabalhar a memria da prpria Escola de Engenharia, pela indicao de outros informantes e de outros documentos. Mas como nos interessa apenas a compreenso dos discursos dos ex-estudantes, pensamos inicialmente ser conveniente no citar o nome dos depoentes para resguardar a identidade daquele que narrou to livremente as suas experincias, evitando gerar algum constrangimento, mas conclumos que tambm seria importante registrar os nomes para que outros pesquisadores do tema tenham a oportunidade de encontrar tais personagens e realizar novas entrevistas. Embora:Para a Sociologia, a identificao do narrador no seria muito importante. Fundamental, sim, a da caracterizao scio-econmica do narrador e o delineamento do contexto em que se insere, pois se trata, para a Sociologia de apreender relaes sociais, de atravs delas conhecer a sociedade. O indivduo portador da ideologia de sua classe social, apresentando caractersticas comuns a outros do mesmo grupo. Interessa, pois, a definio do grupo em que o indivduo se insere e, em menor medida, sua identidade (LANG, 1998, p. 20);

As condies favorveis reflexo sobre a sua formao fizeram da entrevista um caminho para o acesso a documentos importantes para a anlise da questo, complementando os parcos arquivos universitrios e pblicos do Recife. Desse modo, foi possvel trabalhar com documentao oriunda de arquivos particulares, que se tornou fonte documental relevante. Com o objetivo de conhecer como o debate empreendido pelo movimento estudantil possibilitou a construo de novos desenhos de formao, trabalhamos tambm com boletins, panfletos, teses, discursos em formaturas ou em outros cerimoniais acadmicos. A busca da produo do conhecimento, que uma busca na qual o pesquisador tambm acaba encontrando-se consigo mesmo, o pesquisador estar exposto s mais diversas experincias e transformaes pessoais. E da qual no sai impune, pois na relao que mantida com os mais diversos sujeitos envolvidos na produo do conhecimento inevitvel a presena da subjetividade:

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Parece fundamental que o pesquisador esteja consciente de que respeitar as regras de cada jogo e a coerncia do mtodo o que importa. Assim sendo, ao propor trabalhar com mtodos nos quais a subjetividade instrumento de conhecimento, devem ser levadas s ltimas conseqncias as implicaes dessa postura. Portanto, por mais que procure captar dados reais e objetivos, o resultado sempre uma interpretao, uma verso dos fatos, que poder ser confrontada com outras. Assim, os esforos no devem ser mobilizados no sentido de anular as interferncias da subjetividade, mas sim de conhec-las e transformlas em instrumento de conhecimento. No limite, seria possvel dizer que o compromisso com o conhecimento no implica necessariamente a anulao das crenas e emoes do pesquisador, mas sim a tomada de conscincia de si, do outro e da prpria interao (BRIOSCHI e TRIGO, 1992, p. 31).

Portanto, o pesquisador no apenas o meio do conhecimento, mas o fim. Em suma,O conhecimento e o reconhecimento profundos de nossos prprios sentimentos, medos, invejas, fragilidades, amores, dios, ambies, ambigidades, ambivalncias, entre tantos outros, uma postura de abertura, de corpo e alma, para o Outro, sem antecipaes ou preconceitos, podem tornar o Ns uma realidade. A idia de inveno est ligada de destruio da relao de dominao-subordinao. Simone de Beauvoir acreditava que era possvel construir relaes de amor e de amizade sem dominao. Ns acreditamos que possvel fazer pesquisas lutando constantemente, e conscientemente, para encontrar um caminho de reconhecer o eu-tu em todas as suas dimenses, sem adotar a postura de que preciso dominar os nossos objetos de estudo, ou ter a nica verdade sobre eles, para conquistar a legitimidade no campo cientfico (GOLDENBERG & LEITHUSER, 2007, p. 24-25).

Na anlise das informaes recolhidas trabalhamos com anlise de discurso (AD) de cunho baktiniano. Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin refora que o ser humano um ser de linguagem, ou seja, um ser que se comunica, embora reconhea suas limitaes, pois a palavra no verbal, mas a expresso de uma linguagem,que no s a palavra verbal. Assim, toda a relao social se coloca em termos de comunicao, que vincula sujeito e sociedade. Os sujeitos sentem e se manifestam alm das palavras. O sujeito nasce num mundo de linguagem: antes de vir ao mundo h sentidos disponveis.

28 Para Bakhtin, a palavra est em todas relaes entre sujeitos e so tecidos por fios ideolgicos, e ser sempre o indicador mais sensvel de todas as transformaes sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda no tomaram forma, que ainda no abriram caminho para sistemas ideolgicos estruturados e bem formados

(BAKHTIN,1992, p. 41). Por outro lado, a lngua um fato social e fundada nas necessidades de comunicao entre os sujeitos. Aponta para o enunciado (que verbal), mas tambm para o contexto da enunciao, que no verbal. Para ele a vida dialgica por natureza. E preciso centrar na questo da interao e da vida cotidiana, pois a linguagem criada coletivamente. Ele trata do textual, do intertextual e do contextual, da linguagem como uma resposta a alguma coisa, um dilogo cumulativo entre o eu e o outro. Um dilogo sempre um dilogo com outros textos. Com a anlise de discurso pretendemos compreender como os discursos foram construdos e no a sua significao e contedos em si. fundamental percebermos que os sentidos so construdos a partir de outros discursos, ou melhor dizendo, o interesse est focado em como o significado construdo neste processo. Pretendemos ir alm do que est posto nos textos, diferentemente da chamada Anlise de Contedo, pois o que nos importa na anlise so as formas como esse contedo foi construdo, a posio assumida pelos sujeitos e as inferncias necessrias para a construo do discurso propriamente dito. Assim, consideramos que os sujeitos atuam dentro de uma formao discursiva que gera processos discursivos efetivos (EAGLETON, 1997, p. 173), e que o que falam nos remete polifonia, conceito elaborado inicialmente por Bakhtin, que pensa um discurso sempre tecido pelo discurso do outro, ou melhor, toda fala atravessada pela fala do outro. Assim, o locutor no fala diretamente, mas atravs de vrias fontes enunciativas. A AD ao conceber a linguagem como o encontro do homem e sua realidade natural e social atravs de uma mediao que possibilita a permanncia e a continuidade quanto o deslocamento e a transformao da realidade em que ele vive (ORLANDI, 1999, p. 15), tambm indica que a lngua, ao produzir sentidos para os sujeitos, tambm os constituem.

Na pesquisa que envolve a anlise de atos humanos buscamos perceber como os mesmos se do numa certa constncia e repeties (SOBRAL, 2007, p. 11). Se cada ato

29 nico e construdo a partir de uma teia de relaes, importante compreender as suas mais diversas influncias, levando-se em considerao que o ser no age sozinho, mas a partir do dilogo que mantm com diversos sujeitos ao longo de sua existncia.

O dialogismo diz respeito ao permanente dilogo, nem sempre simtrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem (BRAIT, 1997).

Na comunicao entre os seres humanos no se pode reduzir tudo a uma nica voz, pois a diversidade e a riqueza existente nesse processo (SCHNAIDERMAN, 1997, p. 16) so imensas, pois a partir da compreenso de que existe uma multiplicidade de vozes que se comunicam entre si que fez Bakhtin construir o conceito de dialogismo, embora o faa a partir de duas consideraes:

Ao tratar, em seus escritos, do texto como objeto das cincias humanas, Bakhtin aponta j as duas diferentes concepes do princpio dialgico, a do dilogo entre interlocutores e a do dilogo entre discursos, pois considera que nas cincias humanas o objeto e o mtodo so dialgicos (PESSOA DE BARROS, 1997, p. 28).

Na Anlise de Discurso no o discurso em si mesmo que interessa, mas os efeitos de sentido, ou seja, o estabelecimento das relaes entre um discurso e suas condies de produo dentro de condies scio-histricas determinadas, pois todo discurso se estabelece na relao com um discurso anterior e aponta para outro. No h discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se pode recortar e analisar estados diferentes (ORLANDI, 1999, p. 62). Assim, o discurso no fechado em si mesmo e nem do domnio do locutor: aquilo que se diz significa em relao ao que no se diz, ao lugar social do qual se diz, para quem se diz, em relao a outros discursos (ORLANDI apud BRANDO, 2002, p. 90). Enfim, discurso definido como efeito de sentidos entre locutores (ORLANDI, 1999, p. 69), interessando aos analistas os resultados produzidos pelo discurso, pois os sujeitos no podem ser vistos assim isoladamente, mas a partir de como seu discurso

30 construdo e modificado a partir da relao com os outros sujeitos, o que significa que na construo dos mecanismos fundamentais de significao importante compreender como os sentidos se constituem.

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3. A CONSTRUO DO ENSINO DE ENGENHARIA E DO MOVIMENTO ESTUDANTIL NO BRASIL

Nesta parte pretendemos apresentar a construo do debate da formao na rea de Engenharia no Brasil e o que caracterizava a rea nos diferentes momentos dessa discusso sobre a temtica, que envolvia, tambm, a regulamentao da profisso. Ao mesmo tempo, mostraremos como o movimento estudantil de Engenharia esteve presente ao longo da evoluo do ensino superior brasileiro contribuindo na construo de um discurso sobre a formao profissional do engenheiro com a reforma do ensino superior. A seguir veremos que o movimento estudantil faz o seu discurso dialogar com o conjunto dos estudantes e com outros setores da sociedade tendo como tema privilegiado o projeto de profisso e de ensino superior adequados s suas demandas e expectativas.

3.1. A construo do campo da Engenharia no Brasil e o debate sobre a Formao Profissional do Engenheiro

A Engenharia passou a ser ensinada, no Brasil, numa instituio que poderia ser considerada de nvel superior, em 1792, na chamada Real Academia de Artilharia, Fortificao e Desenho, no Rio de Janeiro, que foi a primeira escola de Engenharia de todas Amricas, alm da terceira do mundo. Para as atribuies do Estado, formariam militares para trabalhar com armamentos, assim como engenheiros que fariam as mais diversas atividades no campo da Engenharia (site: www.ime.eb.br). Da Real Academia surgiu a Academia Real Militar, em 1811 que, sob outras denominaes, deixou de funcionar como instituio militar e com fins blicos, e passou a formar engenheiros civis a partir de 1874. a origem da Escola Politcnica do Rio de Janeiro, atualmente pertencente UFRJ (CUNHA, 1989, p. 155). A Escola de Minas de Ouro Preto (EMOP) foi criada em 1876, por deciso de Dom Pedro II, que tinha o interesse em conhecer e explorar as riquezas minerais do Brasil. Enquanto a EMOP representou uma escola modelo no estudo de questes especficas na rea mnero-metalrgica, a Escola Politcnica da USP criada em 1894 tinha como

32 projeto de formao de elites, suas vagas sendo cobiadas pelos filhos das elites paulistas. A Escola de Engenharia de Pernambuco, fundada em 1895, foi a quarta escola de Engenharia criada no Brasil. Sob a gesto do Governo do Estado de Pernambuco, foi ento, a nica escola do ramo no Nordeste brasileiro. Os seus primeiros cursos estavam voltados para a engenharia civil e a agronomia, que tinham programas idnticos aos das demais faculdades do pas (MAIA, 1960, p. 4-5). Outras escolas de Engenharia foram fundadas no final do sculo XIX e nas primeiras dcadas do sculo XX no Brasil: Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie (1896); Escola de Engenharia de Porto Alegre UFRGS, (1896); Escola Politcnica da Bahia UFBA (1897); Escola Livre de Engenharia UFMG (1911); Faculdade de Engenharia do Paran UFPR (1912); Escola Politcnica de Pernambuco UPE (1912); Instituto Eletrotcnico de Itajub UNIFEI (1913); Escola de Engenharia de Juiz de Fora UFJF (1914); Instituto Militar de Engenharia - IME (1928). A partir do final dos anos 1940 foram criadas muitas outras escolas de Engenharia no Brasil, como foi o caso do ITA (1950), da Escola de Engenharia da USP de So Carlos (1952), do Centro de Tecnologia da UFRN (1959), da Escola de Engenharia da Unicamp (1966), do Centro de Tecnologia da UFC (1959) e da Faculdade de Tecnologia da UnB (1977), sendo possvel perceber tambm o crescimento de cursos, na regio Nordeste. O crescimento das engenharias no perodo foi significativo. Se em 1945 havia 48 cursos de Engenharia, em 1973 j eram 235 cursos. O desenvolvimento do modo de produo capitalista no Brasil tem sido utilizado como argumento para explicar a criao de novas escolas ou a abertura de novas vagas que ensinavam o ofcio de Engenharia. bom ressaltar a atuao do Estado na promoo da Engenharia brasileira. O debate sobre a formao profissional dos engenheiros esteve presente desde o as primeiras instituies formadoras de Engenharia e ele j vinha associado ao desenvolvimento econmico e necessidade de tcnicos para a conduo desse processo, como foi o caso da Escola de Minas de Ouro Preto (BARBOSA, 1993) e da Escola de Engenharia de Pernambuco (EEP/CTG, 1995). Um ator social importante no debate foi o movimento estudantil, cuja presena pode ser observada com as primeiras entidades estudantis instaladas nas Escolas desde o incio do sculo XX, que contribuiu para a circulao de um debate vindo a partir daqueles que

33 estavam se profissionalizando, o que certamente influiu na produo de um discurso sobre o ensino superior e as profisses em si, pois as entidades estudantis vieram a ter papel destacado nos acontecimentos que marcaram o desenvolvimento do ensino superior (CUNHA, 1983, p. 17). As entidades estudantis surgiram dentro de um quadro de transformaes da sociedade brasileira desde a primeira repblica, e criaram condies para que os estudantes das escolas superiores constitussem uma fora ativa no campo poltico, deixando de ser apenas sustentao mobilizvel por outras foras (idem). o caso das entidades de Engenharia fundadas no incio do sculo XX, como o Grmio Politcnico da USP (1903), o Centro de Estudantes Universitrios da UFRGS (1903), o Centro Acadmico Horace Lane da Escola de Engenharia