Dissertação - extrafiscalidade - Flávia Caravelli

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  • PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE MINAS GERAIS Programa de Ps-Graduao em Direito

    FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma distino adequada ao contexto da Constituio de 1988

    FLVIA RENATA VILELA CARAVELLI

    BELO HORIZONTE 2010

  • Flvia Renata Vilela Caravelli

    FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma distino adequada ao contexto da Constituio de 1988

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito.

    Orientador: Marciano Seabra de Godoi

    BELO HORIZONTE 2010

  • FICHA CATALOGRFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais

    Caravelli, Flvia Renata Vilela C262f Fiscalidade e extrafiscalidade: em busca de uma distino adequada ao contexto

    da Constituio de 1988 / Flvia Renata Vilela Caravelli. Belo Horizonte, 2010. 153 f. Orientador: Marciano Seabra de Godoi Dissertao (Mestrado) Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. Bibliografia 1. Direito tributrio. 2. Tributos Finalidades e objetivos. 3. Brasil.

    Constituio (1988). I. Godoi, Marciano Seabra de. II. Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais. Programa de Ps-Graduao em Direito. III. Ttulo.

    CDU: 336.2.022

    Bibliotecria: Erica Fruk Guelfi - CRB/MG 6/2068

  • Flvia Renata Vilela Caravelli

    FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: em busca de uma distino adequada ao contexto da Constituio de 1988

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Direito da Pontifcia Universidade Catlica de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Direito, rea de concentrao Direito Pblico, linha de pesquisa Estado, Constituio e Sociedade no paradigma do Estado Democrtico de Direito.

    __________________________________________

    Marciano Seabra de Godoi (orientador) PUC MINAS

    __________________________________________

    Flvio Couto Bernardes PUC MINAS

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    Carlos Palao Taboada UNIVERSIDAD AUTNOMA DE MADRID

    Belo Horizonte, 8 de abril de 2010.

  • AGRADECIMENTOS

    Poder agradecer uma bno divina. Em primeiro lugar, por natural, pelo prprio benefcio alcanado. Mas no s. O simples fato de haver a quem agradecer uma das razes mais importantes para ser grato na vida. Agradecer tambm uma preciosa oportunidade de exercitar a humildade, evitar a soberba e compartilhar a alegria. (BARCELLOS, 2002)

    Agradeo a Deus e a minha querida Me divina por mais uma, dentre tantas bnos, que a todo momento so a minha vida dedicadas. A certeza da presena e guia desde o incio de caminhada s aumenta a confiana, a f e a entrega de tudo que sou e serei, aos seus cuidados.

    Agradeo ao meu orientador, Professor Marciano Seabra de Godoi. Primeiramente, j h muito o admirava como profissional do direito. A oportunidade de ter podido cursar, ainda como aluna no regular do curso de ps-graduao, a disciplina Jurisprudncia constitucional tributria foi um presente que no s aumentou a minha admirao, agora como professor e acadmico, como transformou o meu ponto de vista acerca da forma de pensar o direito tributrio. O seu equilbrio e imparcialidade ao avaliar criticamente as decises do Supremo Tribunal Federal em relao s grandes questes que envolvem os tributos, abalaram as convices de uma advogada tributarista acostumada a simplesmente buscar solues que atendam ao interesse de clientes. O estudo da justia tributria e do fundamento do dever de contribuir, na disciplina A face fiscal do Estado Democrtico de Direito, constituiu a base filosfica e ideolgica que fundamentaram a minha pesquisa. A escolha do Professor Marciano como orientador no foi certamente um mero acaso. Hoje posso afirmar que foi a maior conquista neste caminho. Agradeo-lhe por possibilitar e contribuir de forma substancial para o desenvolvimento e concluso deste estudo.

    Ao Professor lvaro Ricardo de Souza Cruz agradeo tambm a formao do pensamento crtico, a valorizao da base filosfica na fundamentao da dogmtica jurdica. O conhecimento da linha de pesquisa da instituio foi por ele introduzido, alm do preparo para a aprovao no concurso de ingresso no programa.

    A ideia inicial do presente trabalho surgiu das aulas de direito tributrio no Programa de Ps-Graduao da Pontifcia Universidade Catlica, nas quais o Professor Paulo Coimbra me oportunizou conhecer e me interessar pelo tema da extrafiscalidade. Deixo-lhe o meu agradecimento.

  • A minha querida me, Maria Edna Rosa Marques, agradeo a criao e o incentivo palpitante para a formao profissional. Ao meu pai, Pedro Cndido Vilela, agradeo o exemplo de profissional tico e incansvel na busca pelo conhecimento.

    Ao Fbio Caravelli, meu marido, agradeo a tranqilidade necessria para me entregar aos estudos. A sua compreenso foi fundamental para o trmino da pesquisa.

    Ao meu amigo e scio, Jlio Csar Baeta Neves, quero agradecer a compreenso pela ausncia do escritrio durante trs longos anos, o que s um verdadeiro amigo seria capaz de compreender, possibilitando-me realizar mais um sonho.

    Sou grata ainda aos companheiros de escritrio, que envidaram todos os esforos para me disponibilizar o tempo necessrio concluso desta etapa, especialmente a Dr. Bruna Neves. Ao scio empresarial Miguel dos Santos, quero agradecer a compreenso e a autorizao para mudanas estratgicas de horrios que possibilitaram a fluncia dos estudos, bem como afirmar a admirao que por ele tenho como grande e equilibrado empreendedor.

    Ao meu irmo, Leonardo Marques Vilela, agradeo o companheirismo de sempre, os esforos para possibilitar o ingresso no programa e, especialmente, o apoio e engajamento para o caminho que ser trilhado daqui para frente.

    Minha cunhada e amiga Aline Aguiar Mendes Vilela, como j tantas vezes por mim repetido, mereceria no apenas uma meno neste breve agradecimento, mas uma seo da dissertao. Brincadeiras parte, sua disponibilidade infinita, seu doce e meigo amparo nos momentos difceis, seu incentivo nos momentos bons, a experincia acadmica repassada de forma leve, o desejo de sucesso estampado em todas as conversas e sorrisos, foram fundamentais para chegar at aqui. A admirao pela sua pessoa e profissional me inspiraram do incio ao fim deste caminho.

    Ao querido Professor Rosalvo Pinto, por quem minha admirao pessoal e profissional cresce a cada momento, quero agradecer pelo ato generoso e desprendido de revisar o texto deste trabalho. Aos colaboradores, especialmente Janana Aguiar, tambm fica o meu agradecimento.

    Aos amigos Tatiana Neves, Viviane Jabour, Adriana Silva, Alessandra Costa e Pedro Paulo Raimundi agradeo os momentos de relaxamento necessrios fluncia do trabalho e a ateno s angstias divididas e compreendidas. Maira Campolina, alm disso, agradeo a troca de experincias durante todo o percurso da pesquisa: a sua leveza e tranquilidade, ao lado da segurana pessoal e profissional, foram inspirao para prosseguir.

    s amigas que fiz nesta caminhada, Andra Karla Ferraz e Dbora Cardoso de Souza, agradeo a oportunidade de, juntas, aprender e dividir o conhecimento, alm das angstias e

  • alegrias muitas vezes compreensveis apenas por quem vive o mesmo processo. Agradeo ainda aos colegas do mestrado, em especial Luciana Goulart, Thiago Bregunci, Leonardo Varella, Alfredo Vasconcellos, Marcos Antnio e a todos que contriburam de alguma forma para o meu ingresso no programa e para a concluso deste trabalho.

  • Eles ergueram a Torre de Babel Para escalar o Cu,

    Mas Deus no estava l! Estava ali mesmo, entre eles, Ajudando a construir a torre.

    (Mrio Quintana, Construo)

  • RESUMO

    A dissertao objetiva a busca de uma adequada distino entre a fiscalidade e a extrafiscalidade, sob o prisma da Constituio de 1988, promulgada no paradigma do Estado Democrtico de Direito. Tratar o fenmeno da fiscalidade e da extrafiscalidade envolveu a compreenso das correntes doutrinrias que as conceituam, a anlise das normas tributrias vigentes e dos seus efeitos e a verificao do seu tratamento pela jurisprudncia. A partir desse estudo, concluiu-se que os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade, trabalhados sob a forma de contraposio pela doutrina em geral, partem de um equvoco metodolgico, arraigado em concepes superadas do Estado Liberal, como a teoria do interesse tutelado pela norma tributria, o que se buscou desconstruir na pesquisa para, ao final, propor uma definio dos institutos que seja compatvel ao contexto da Constituio de 1988. A fiscalidade e a extrafiscalidade devem ser vistas como funes da norma tributria, em enfoque pragmtico que se interessa pela aptido da norma a produzir resultados. A fiscalidade envolve a funo arrecadatria, essa no apenas relacionada ao simples abastecimento dos cofres pblicos, mas dotada das caractersticas necessrias para atender teleologia da Constituio de 1988 e funo do sistema tributrio nesse contexto, especialmente a promoo de uma sociedade livre, justa e solidria. Envolve, ainda, a funo distributiva, no sentido de se repartir de forma justa a carga tributria estatal na sociedade. A extrafiscalidade, por sua vez, envolve a funo indutora de comportamentos lcitos do contribuinte ou de terceiros, visando promoo de um bem ou direito constitucionalmente legtimo.

    PALAVRAS-CHAVE: DIREITO TRIBUTRIO, FISCALIDADE, EXTRAFISCALIDADE, CONSTITUIO DE 1988.

  • RESUMEN

    El objetivo de esta disertacin de maestra es la bsqueda de una adecuada distincin entre la fiscalidad y la extrafiscalidad, bajo el prisma de la Constitucin de 1988, promulgada en el paradigma del Estado Democrtico de Derecho. Tratar el fenmeno de la fiscalidad y de la extrafiscalidad involucr la comprensin de las corrientes doctrinarias que las conceptualizan, el anlisis de las normas tributarias vigentes y de sus efectos y la verificacin del tratamiento del tema por la jurisprudencia. A partir de ese estudio, se concluy que los conceptos de fiscalidad y extrafiscalidad, trabajados bajo la forma de contraposicin por la doctrina en general, parten de un equvoco metodolgico, arraigado en concepciones superadas del Estado Liberal, como la teora del inters tutelado por la norma tributaria, lo que se busc desconstruir en la investigacin para, al final, concluirse por la definicin de los institutos que se entienden compatibles al contexto de la Constitucin de 1988. La fiscalidad y la extrafiscalidad deben ser vistas como funciones de la norma tributaria, en enfoque pragmtico que se interesa por la aptitud de la norma a producir resultados. La fiscalidad involucra la funcin recaudatoria, esa no solo relacionada al simple abastecimiento de las arcas pblicas, sino tambin dotada de las caractersticas necesarias para atender a la teleologa de la Constitucin de 1988 y a la funcin del sistema tributario en ese contexto, especialmente la promocin de una sociedad libre, justa y solidaria. Involucra, todava, la funcin distributiva, en el sentido de repartirse de forma justa la carga estatal en la sociedad. La extrafiscalidad, por su vez, involucra la funcin inductora de comportamientos lcitos del contribuyente o de terceros y pretende la promocin de un bien o derecho amparados por la constitucin.

    PALABRAS-CLAVE: DERECHO TRIBUTARIO, FISCALIDAD, EXTRAFISCALIDAD, CONSTITUCIN DE 1988.

  • LISTA DE SIGLAS

    ADI - Ao Direta de Inconstitucionalidade

    ADIMC Medida Cautelar em Ao Direta de Inconstitucionalidade

    AFRMM - Adicional ao Frete para Renovao da Marinha Mercante

    CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico

    CPMF - Contribuio Provisria sobre Movimentao Financeira

    CTN Cdigo Tributrio Nacional

    ICMS Imposto sobre a Circulao de Mercadorias e Servios de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de comunicao

    II Imposto de Importao

    IE Imposto de Exportao

    IGF Imposto sobre Grandes Fortunas

    IOF Imposto sobre Operaes de Crdito, Cmbio e Seguro ou relativas a Ttulos e Valores Mobilirios

    IPI Imposto sobre Produtos Industrializados

    IPTU Imposto sobre Propriedade Territorial Urbana

    IPVA IMPosto sobre a Propriedade de Veculos Automotores

    IRPF - Imposto de Renda Pessoa Fsica

    IRPJ Imposto de Renda Pessoa Jurdica

    ISSQN Imposto sobre Servios de Qualquer Natureza

    ITBI Imposto de Transmisso de Bens Imveis e Direitos Reais sobre Imveis

    ITCD Imposto sobre a Transmisso causa mortis e Doao

    ITR Imposto Territorial Rural

    Simples Nacional Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte

    RE Recurso Extraordinrio

    STF Supremo Tribunal Federal

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ...................................................................................................................13

    2 FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: APROXIMAO INICIAL ..................15 2.1 O conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina ........................................15 2.2 Distino entre a fiscalidade e a extrafiscalidade ..........................................................20 2.3 A problematizao da fiscalidade e da extrafiscalidade voltada ao princpio da capacidade contributiva: anlise da doutrina espanhola ...................................................23 2.4 Critrios de distino .......................................................................................................33 2.4.1 Finalidade .......................................................................................................................33 2.4.1.1 Aspectos subjetivos ....................................................................................................33 2.4.1.2 Aspectos objetivos ......................................................................................................35 2.4.2 Capacidade contributiva ................................................................................................36 2.4.3 Funcionalidade ..............................................................................................................38 2.5 Funes da norma tributria segundo a doutrina ........................................................40 2.6 Proposta de classificao .................................................................................................41 2.7 Relevncia da distino ...................................................................................................42

    3 FISCALIDADE ...................................................................................................................44 3.1 Fiscalidade como interesse meramente arrecadatrio: a teoria do interesse tutelado nos moldes do Estado liberal e de acordo com a viso liberista .....................44 3.1.1 A teoria do interesse tutelado pela norma tributria: finalidade arrecadatria nos moldes do Estado liberal .........................................................................................................45 3.1.2 Liberistas x liberais ........................................................................................................46 3.2 Mito do tributo como instrumento de abastecimento dos cofres pblicos: necessria desconstruo da finalidade arrecadatria no paradigma do Estado Democrtico de Direito ..........................................................................................................49 3.2.1 A evoluo do papel do sistema tributrio nos diferentes paradigmas de Estado........49 3.2.2 Qualificao do vnculo jurdico da obrigao tributria e fundamento do dever de contribuir..................................................................................................................................53 3.3 O papel do sistema tributrio na Constituio de 1988.................................................56 3.3.1 Ideologias dialeticamente adotadas................................................................................57 3.3.2 Objetivos e metas detalhadamente positivados: opo do constituinte pela Constituio Dirigente.............................................................................................................60 3.3.3 Interpretao sistemtica da Constituio e as funes do Direito Tributrio..................................................................................................................................62 3.4 Conceito de fiscalidade ....................................................................................................67 3.5 Anlise de casos prticos .................................................................................................71 3.5.1 Legislao infraconstitucional ......................................................................................71 3.5.2 Constituio de 1988: imunidades ................................................................................73

    4 EXTRAFISCALIDADE .....................................................................................................78 4.1 Da natureza jurdico-tributria das normas extrafiscais .............................................78 4.2 Conceito de extrafiscalidade............................................................................................80 4.2.1 Induo de comportamentos atravs do manejo do tributo: agravamento, minorao, excluso, remanejamento .......................................................................................................83 4.2.2 Licitude do comportamento estimulado: conformidade com o art. 3 do CTN............86 4.2.3 Destino da arrecadao: fator irrelevante para a conceituao da extrafiscalidade...89

  • 4.2.4 Anlise crtica dos conceitos doutrinrios sobre a extrafiscalidade ............................92 4.3 Extrafiscalidade e os limites constitucionais ao poder de tributar ..............................93 4.3.1 Princpio da legalidade ..................................................................................................96 4.3.2 Princpio da anterioridade .............................................................................................98 4.3.3 Princpio da irretroatividade ..........................................................................................99 4.3.4 Princpio do no confisco ............................................................................................101 4.3.5 Princpio da igualdade e capacidade contributiva ......................................................103 4.3.6 Imunidades ...................................................................................................................111 4.4 Legitimidade ...................................................................................................................114 4.4.1 Fins buscados pela norma extrafiscal: conformidade com o ordenamento jurdico. Anlise dos chamados impostos moralizadores ...................................................................114 4.4.2 A questo da funo extrafiscal como aptido para induzir comportamentos e produzir resultados quanto ao bem jurdico prestigiado ....................................................120 4.4.3 Razoabilidade: a jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal sobre o controle de legitimidade da extrafiscalidade face ao princpio da igualdade ........................................127 4.5 Algumas consideraes sobre a vantagem do uso de tcnicas indutoras...................131

    5 CONCLUSES .................................................................................................................136

    REFERNCIAS ...................................................................................................................143

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    1 INTRODUO

    A presente pesquisa foi desenvolvida na rea de concentrao em direito pblico, na linha de pesquisa Estado, Constituio e Sociedade no Paradigma do Estado Democrtico de Direito. O trabalho tem como tema e objetivo geral o estudo da fiscalidade e da extrafiscalidade, buscando-se uma distino adequada dos institutos sob o prisma e no contexto da Constituio de 1988, inserida no atual paradigma do Estado Democrtico de Direito.

    Tratar o fenmeno da fiscalidade e da extrafiscalidade envolve a compreenso das correntes doutrinrias que as conceituam, a anlise das normas tributrias vigentes e dos seus efeitos, a verificao do seu tratamento pela jurisprudncia, bem como a definio de regime jurdico prprio aos institutos, o que confere a possibilidade de se afastarem ou mitigarem princpios limitadores do poder de tributar em se tratando das normas extrafiscais.

    O estudo da fiscalidade e da extrafiscalidade envolve o debate de questes complexas nos diversos ramos do conhecimento e objeto de dissenso na comunidade jurdica, o que desperta interesse em sua compreenso, especialmente atravs da perspectiva teleolgica da Constituio de 1988.

    O trabalho buscar demonstrar que os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade, trabalhados sob a forma de contraposio na doutrina, partem de um equvoco metodolgico, arraigado em concepes superadas do Estado Liberal, como a teoria do interesse tutelado pela norma tributria, o que necessita ser revisto em razo da solidificao do Estado Democrtico de Direito, no qual se enquadra a Constituio de 1988.

    Como objetivos especficos da pesquisa, procura-se apontar os conceitos doutrinrios da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina brasileira, delimitar o critrio que se entende como apto diferenciao das normas fiscais das extrafiscais, bem como classificar as normas tributrias segundo a sua funo no ordenamento jurdico - o que realizado na seo 2. Tambm nessa seo objetiva-se analisar o direito comparado, especialmente a doutrina espanhola, em que o epicentro da discusso situa-se na relao entre as normas fiscais e extrafiscais e o princpio da capacidade contributiva.

    Objetiva o estudo, em sua seo 3, desconstruir os fundamentos que embasam o conceito de fiscalidade na doutrina em geral, arraigados na teoria do interesse tutelado

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    pela norma tributria e de acordo com a teoria liberista, consequncias do paradigma liberal ainda presente na seara tributria e que levam ao persistente mito do tributo como instrumento de abastecimento dos cofres pblicos. Na mesma seo pretende-se delimitar os fins do Estado e do direito tributrio na Constituio de 1988 - e, consequentemente, qualificar o vnculo jurdico da relao obrigacional tributria e indicar o fundamento do dever de pagar tributos. Ao fim da seo 3, pretende-se conceituar a fiscalidade e analisar alguns casos prticos.

    So tambm objetivos especficos do trabalho: apontar a natureza jurdico-tributria das normas extrafiscais; conceituar a extrafiscalidade; relacionar a extrafiscalidade com os limites ao poder de tributar, com nfase na capacidade contributiva e delinear a legitimidade das normas extrafiscais no ordenamento jurdico-tributrio. Esses aspectos sero considerados na seo 4. Nesse contexto, busca-se responder a alguns questionamentos relevantes que surgem ao se considerar o lado prtico da aplicao das normas extrafiscais, tais como: a possibilidade de instituio de impostos moralizadores; como tratar a norma que, a pretexto de aumento da carga tributria no exerccio da funo fiscal, revestida da forma de uma pretensa norma extrafiscal, o que poderia flexibilizar alguns dos limites ao poder de tributar - como no caso do aumento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para cigarros, aps o fim da Contribuio Provisria sobre Movimentao Financeira (CPMF) e as consequncias do fato de a norma extrafiscal no ser capaz de promover o bem jurdico que, em princpio, se visa a prestigiar.

    A investigao tem caractersticas interdisciplinares, j que a fiscalidade e a extrafiscalidade, segundo a forma proposta, so temas que, para o tratamento completo e adequado, requerem a coordenao de contedos pertencentes a disciplinas diferenciadas, tais como o direito tributrio, econmico, constitucional e filosofia do direito.

    So dados primrios da pesquisa as normas constitucionais relacionadas fiscalidade e da extrafiscalidade, especialmente as normas de limitao ao poder tributante e as normas legais instituidoras de tributos com a finalidade extrafiscal no ordenamento jurdico brasileiro. Como dados secundrios sero estudados artigos, obras doutrinrias e a jurisprudncia sobre o tema da fiscalidade e da extrafiscalidade.

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    2 FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE: APROXIMAO INICIAL

    2.1 O conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade na doutrina

    O presente trabalho tem como ponto de partida a anlise crtica da fiscalidade e da extrafiscalidade na viso da doutrina jurdica e da jurisprudncia. Justifica-se essa anlise pelo fato de a legislao no cuidar especificamente da definio e diferenciao dos institutos, a no ser prevendo os tributos em espcie e a regulao de cada um pelos entes competentes. Em razo dessa indefinio, cabe aos intrpretes e aplicadores do direito a tarefa de identificar a fiscalidade e/ou extrafiscalidade nos instrumentos normativos que criam, majoram ou minoram cada um dos tributos. Delimitado o conceito da fiscalidade e da extrafiscalidade, o estudo se prope a uma anlise crtica de seu contedo a fim de concluir se a posio da doutrina adequada ou no ao atual paradigma do Estado Democrtico de Direito.

    A princpio, o trabalho se props to somente a investigao da extrafiscalidade; contudo, tendo em vista que esta tratada pela maioria dos autores em contraponto com a fiscalidade, tornou-se inevitvel o estudo de ambos os institutos. Constatou-se, ainda, que muitos autores os confundem ou tendem a considerar a simultaneidade da fiscalidade e da extrafiscalidade obrigatria, justamente por um equvoco quanto aos elementos que definem a primeira, o que vem sendo aceito de forma acrtica pelos operadores do direito. Por isso fundamental a delimitao do conceito da fiscalidade para, posteriormente, se estudar o conceito e os elementos da extrafiscalidade.

    A jurisprudncia raramente aprofunda a discusso sobre a diferenciao entre os institutos. Reconhece, contudo, que a extrafiscalidade est presente em determinados tributos, diferenciando o tratamento desses dos que no possuem tal caracterstica, aspecto que ser examinado no decorrer do trabalho.

    A doutrina tem sido o campo preferencial para a anlise da fiscalidade e extrafiscalidade. Esta seo, sem a pretenso de exaurir o tratamento doutrinrio conferido ao tema, destina-se a apresentar um resumo das diferentes concepes que fundamentam os institutos, destacando a ausncia de consenso jurdico-dogmtico conceitual.

    Diante da existncia de poucas obras especficas sobre o tema na doutrina nacional e da forma sucinta com que abordado nos manuais, muitas vezes difcil

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    definir o pensamento de cada autor. A maioria deles, contudo, considera necessrio diferenciar a norma fiscal da extrafiscal, conceituando os institutos atravs de um critrio de contraposio. A fiscalidade seria a utilizao dos tributos com fins meramente ou simplesmente arrecadatrios, sendo corrente a utilizao da expresso que remete ao uso do tributo como fonte de custeio da mquina estatal. A extrafiscalidade, por sua vez, representaria a utilizao do tributo com fins outros (que no os meramente arrecadatrios), sendo diversificados os elementos que os autores utilizam para complementar a definio do instituto.

    Fanucchi (1976, p. 54) reconhece o tributo como extrafiscal quando se verificam em sua cobrana outros interesses que no sejam os de simples arrecadao de recursos financeiros, que se exteriorizam mediante alvios e agravamentos fiscais.

    Ao estudar a extrafiscalidade nos impostos e o princpio do no confisco, Berti afirma que:

    O uso extrafiscal do tributo significa o alcance de fins distintos dos meramente arrecadatrios mediante o exerccio das competncias tributrias (poder de criar e alterar tributos) outorgados pela Constituio Federal s pessoas polticas da Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios (BERTI, 2006, p. 41, grifo nosso).

    Fica clara nos conceitos acima a viso da fiscalidade como sendo o uso do tributo para interesses meramente ou simplesmente arrecadatrios. Os autores no relacionam a fiscalidade com a persecuo de resultados e fins constitucionais como, por exemplo, igualdade, segurana e erradicao da pobreza.

    No dizer de Carvalho (2007, p. 243), as normas fiscais seriam aquelas voltadas ao fim exclusivo de abastecer os cofres pblicos, sem que outros interesses sociais, polticos ou econmicos interfiram no direcionamento da atividade impositiva. J as normas extrafiscais prestigiariam os interesses referidos, pautando a conduta dos contribuintes atravs do uso favorvel ou gravoso do tributo.

    Em obra especfica sobre o tema da extrafiscalidade, Gouva identifica a fiscalidade com o mero auferimento de recursos para a subsistncia do Estado, enquanto a norma extrafiscal teria a natureza de princpio ligado realizao dos valores constitucionais:

    Verificamos, assim, que a tributao tem dupla finalidade: a) auferir recursos para que o Estado subsista; e b) garantir a realizao dos direitos fundamentais dos cidados, os verdadeiros fins do Estado.

  • 17

    Quando falamos em auferir recursos para o Estado, segundo regras constitucionais, referimo-nos fiscalidade. Consideramos a fiscalidade desvinculada de valores, afeita, apenas, a receitas e despesas. Quando nos referimos efetiva consecuo de fins do Estado, mediante o uso do instrumento fiscal, reportamo-nos extrafiscalidade. Tomamos por extrafiscalidade os objetivos axiolgicos da tributao (GOUVA, 2006, p. 38, grifo nosso).

    O autor enfatiza a despreocupao da fiscalidade com a realizao de valores constitucionais, realizao essa que, na sua opinio, estaria presente apenas na face

    extrafiscal do tributo:

    Para ns, extrafiscal a norma voltada realizao de valores constitucionais. Como no se pode conceber norma jurdica avessa a valores constitucionais, nem norma tributria avessa a arrecadao, conclumos que toda norma tributria ser, a um tempo, fiscal e extrafiscal. A nosso ver, a anlise identificar extrafiscalidade sempre que a norma tributria refletir efetivao concreta de desidrios constitucionais, de realizao dos direitos do cidado, ao passo que identificar fiscalidade verificar o objetivo de obteno de receitas para a subsistncia do Estado (GOUVA, 2006, p. 47, grifo nosso).

    Segundo Machado (1998), os tributos so classificados, conforme a sua funo, em fiscais, extrafiscais e parafiscais. Os primeiros seriam aqueles dotados da funo de angariar recursos para o custeio das atividades prprias do Estado. Os ltimos (que no constituem objeto deste trabalho) se caracterizariam pela obteno de recursos para o financiamento de atividades que, em princpio, no seriam prprias do Estado, mas que so exercidas por este atravs de entidades especficas. Sobre a extrafiscalidade, o autor aduz que:

    No mundo moderno, todavia, o tributo largamente utilizado com o objetivo de interferir na economia privada, estimulando atividades, setores econmicos ou regies, desestimulando o consumo de certos bens e produzindo, finalmente, os efeitos mais diversos na economia. A esta funo moderna do tributo se denomina funo extrafiscal (MACHADO, 1998, p. 52).

    Para Colho (2004, p. 87), a extrafiscalidade se caracteriza justamente pelo uso e manejo dos tributos com a finalidade de atingir alvos diferentes da simples arrecadao de dinheiro, sendo tal afirmao inserida em comentrio sobre o princpio da capacidade contributiva que, segundo o autor, pode ser afastado quando se tratar de agravamento de tributo incidente sobre o comportamento que a norma quer evitar. Verifica-se, novamente, o uso de um conceito de extrafiscalidade como algo oposto ao tributo utilizado para simples arrecadao de dinheiro (fiscalidade).

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    Falco entende ser possvel a distino entre a tributao fiscal e extrafiscal. Afirma que o conceito de fiscalidade, a princpio, ligou-se viso da tributao como um instrumento para prover o errio pblico dos recursos necessrios aos gastos indispensveis (1981, p. 43), como defesa exterior, educao, justia e obras pblicas. Atribua-se a essa tributao a caracterstica de neutralidade, no sentido de que deveria intervir o menos possvel na vida privada e no curso normal do mercado. O autor critica tal raciocnio pela impossibilidade de sua aplicao concreta no mundo ftico (especialmente a neutralidade por compensao, que seria a devoluo, pelo Estado, de igual quantia despendida pelo contribuinte, uma espcie de contraprestao em servios pblicos) e pela injustia decorrente da ideia, que apenas aumentaria a desigualdade entre os indivduos de maior e menor potencial econmico. Falco, ento, define a fiscalidade, seguindo Souto Maior Borges, como aquela que se limita a retirar do patrimnio dos particulares, recursos pecunirios para a satisfao das necessidades pblicas (FALCO, 1981, p. 45).

    J a extrafiscalidade , pelo autor, considerada medida de interveno do Estado no mercado e na livre iniciativa e responsvel por parcela da modificao do conceito de justia fiscal:

    Por extrafiscalidade entender-se- a atividade financeira que o Estado exercita sem o fim precpuo de obter recursos para seu errio, para o fisco, mas sim com vistas a ordenar ou reordenar a economia e as relaes sociais, intervindo, por exemplo, no mercado, na redistribuio de riquezas, nas tendncias demogrficas, no planejamento familiar. No fundo, mas no unicamente, importa em atuar sobre a economia, para mudar o panorama social. Extrafiscalidade conceito bem amplo, que envolve, entre mais coisas, a tributao ordinatria, a aplicao dos recursos provenientes dessa tributao em gastos seletivos, ou sua reteno. Enfim, opes diversas, de respaldo poltico, social, econmico, etc., alheias inteno pura e simples de carrear ingressos para o fisco (FALCO, 1981, p. 48-49, grifo nosso).

    Oliveira (2007), a par de distinguir as normas fiscais das extrafiscais, entende que estas se caracterizam como instrumento de induo ou desestmulo de comportamentos, voltados funo poltica, econmica ou sanitria dos governos. Quanto s primeiras, o autor mantm o entendimento habitual da doutrina de visarem exclusivamente arrecadao para manter os servios pblicos:

    A imposio tradicional (tributao fiscal) visa exclusivamente arrecadao de recursos financeiros (fiscais) para prover o custeio dos servios pblicos. J a denominada tributao extrafiscal aquela dirigida a fins outros que no a captao de dinheiro para o Errio, tais como a redistribuio da

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    renda e da terra, a defesa da indstria nacional, a orientao dos investimentos para setores produtivos ou mais adequados ao interesse pblico, a promoo do desenvolvimento regional ou setorial etc. Como instrumento indeclinvel de atuao estatal, o direito tributrio pode e deve, atravs da extrafiscalidade, influir no comportamento dos entes econmicos, de sorte a incentivar iniciativas positivas, e desestimular as nocivas ao Bem Comum (OLIVEIRA, 2007, p. 47, grifos nossos).

    Esse autor acrescenta que a qualificao jurdica da extrafiscalidade encontra-se na destinao do produto arrecadado para a finalidade objetivada pela norma, devendo a tributao extrafiscal necessariamente ter a sua receita vinculada a alguma despesa, rgo ou programa, mesmo em se tratando de impostos. Considera que a vinculao seria a verdadeira condio de legitimidade concreta da extrafiscalidade. (2007, p. 41), raciocnio esse que a pesquisa encontrou apenas em sua obra.

    Fernandes (2005) concorda com os conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade expostos por Oliveira, mas no se posiciona sobre a questo da qualificao jurdica da extrafiscalidade pela vinculao da receita, defendida pelo autor. Acrescenta a autora uma classificao da extrafiscalidade, quanto forma de manifestao, em direta e indireta. No primeiro sentido, a tributao no visaria a induzir comportamentos, mas as receitas dela provenientes seriam aplicadas para a interveno do Estado nas reas econmica e social, citando os exemplos das contribuies especiais e das normas isencionais ou imunitrias que no estimulam comportamentos, como a iseno do imposto de renda at determinado teto. J a manifestao indireta da extrafiscalidade se daria pelo manejo dos diversos elementos da norma instituidora de um tributo com o objetivo de encorajar ou desestimular condutas, de acordo com o interesse pblico (FERNANDES, 2005, p. 235), citando como exemplos as isenes e imunidades com tal objetivo.

    Schoueri (2005, p. 32) considera que o termo extrafiscalidade pode ser tratado como gnero e espcie:

    O gnero da extrafiscalidade inclui todos os casos no vinculados nem

    distribuio equitativa da carga tributria, nem simplificao do sistema

    tributrio. (...) Inclui, nesse sentido, alm de normas de funo indutora (que seria a extrafiscalidade em sentido estrito, como se ver abaixo), outras que tambm se movem por razes no fiscais, mas desvinculadas da busca do

    impulsionamento econmico por parte do Estado.

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    Aps citar o conceito de Oliveira, o autor parece indicar como exemplo do gnero as normas referentes poltica social, como uma lei que prev o tratamento

    diferenciado no caso de desemprego. J como espcie, a extrafiscalidade se caracterizaria por normas com funo

    indutora, ou seja, dotadas de consciente estmulo de comportamentos, no tendo fundamento precpuo na arrecadao. Por normas tributrias indutoras se entende um aspecto das normas tributrias, identificado a partir de uma de suas funes, a indutora (2005, p. 30). Nessa funo, o legislador vincula a determinado comportamento um consequente, que poder consistir em vantagem (estmulo) ou agravamento de natureza tributria (2005, p. 30), sendo tpica forma de interveno do Estado no domnio econmico. Shoueri prefere utilizar a terminologia normas indutoras ao invs de extrafiscalidade, diante da amplitude que considera nsita a este ltimo termo.

    Verifica-se ainda que o autor dedica pouca ateno fiscalidade, referindo-se mesma como a simples busca de maior arrecadao (2005, p. 32).

    Em breve sntese dos conceitos apontados, conclui-se que, por unanimidade, os autores definem a fiscalidade como a finalidade arrecadatria do tributo, enfatizada habitualmente pelas expresses simplesmente, meramente ou exclusivamente arrecadatrias. As obras citadas relacionam, em geral, valores, resultados e objetivos constitucionais, como a redistribuio de riquezas e alterao do panorama social e econmico, extrafiscalidade, limitando a fiscalidade mera, simples e exclusiva funo de arrecadar dinheiro para os cofres pblicos.

    A investigao pretende demonstrar que tais conceitos no se ajustam ao perfil que a fiscalidade e a extrafiscalidade devem possuir no contexto da Constituio de 1988, inserida no atual paradigma do Estado Democrtico de Direito. A anlise dos equvocos e da insuficincia das concepes citadas bem como a proposta de um conceito adequado aos institutos ser realizada nas sees seguintes.

    2.2 Distino entre a fiscalidade e a extrafiscalidade

    Alm da questo conceitual, no h consenso dogmtico sobre a real e efetiva necessidade da distino entre normas fiscais e extrafiscais. H quem entenda que no se pode conceber um tributo puramente fiscal ou extrafiscal, convivendo sempre ambos os objetivos como faces de uma mesma moeda, o tributo.

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    Nesse sentido, Carvalho (2007) menciona que no h entidade tributria pura (fiscal ou extrafiscal):

    [...] H tributos que se prestam, admiravelmente, para a introduo de expedientes extrafiscais. Outros, no entanto, inclinam-se mais ao setor da fiscalidade. No existe, porm, entidade tributria que se possa dizer pura, no sentido de realizar to-s a fiscalidade, ou, unicamente, a extrafiscalidade. Os dois objetivos convivem harmnicos, na mesma figura impositiva, sendo apenas lcito verificar que, por vezes, um predomina sobre o outro (CARVALHO, 2007, p. 246).

    Machado (1998) expressa a dificuldade de utilizao do tributo, atualmente, apenas na sua face fiscal: No estdio atual das finanas pblicas, dificilmente um tributo utilizado apenas como instrumento de arrecadao. Pode ser a arrecadao o seu principal objetivo, mas no o nico (MACHADO, 1998, p. 52).

    Gouva (2006, p. 47) tambm considera que toda norma jurdica ser, a um tempo, fiscal e extrafiscal.

    Ao se defender a simultaneidade de incidncia dos institutos, acaba-se por esvaziar a diferenciao entre os mesmos - que lhes confere autonomia cientfica e determina a natureza jurdica que lhes prpria. interessante notar que, de forma antinmica, os autores citados acima mantm, em suas obras, conceitos distintos para a fiscalidade e extrafiscalidade, embora afirmem a impossibilidade real de distino entre os mesmos.

    Outrossim, como se ver no decorrer deste estudo, a afirmao de que coexistem as funes fiscais e extrafiscais em qualquer tributo se d em razo de um equvoco metodolgico de transportar para a extrafiscalidade elementos que so tpicos das normas fiscais ou que permeiam toda e qualquer norma tributria. o que se verifica na afirmao de Godoi (2004, p. 222) de que os efeitos extrafiscais - citando os sociais, econmicos e psicolgicos - existiro em todos os tributos, em maior ou menor grau. Menciona que da natureza patrimonial e coativa dos tributos, por mais neutros que sejam, incidir materialmente no meio econmico e social, no sendo mais que uma abstrao lgica a ideia de impostos puramente arrecadatrios ou fiscais.

    Em uma acepo genrica, toda norma tributria realmente ter um efeito social ou econmico, pois incide sobre o patrimnio dos contribuintes, modificando as relaes sociais. Contudo, essa constatao no identifica corretamente a funo extrafiscal do tributo nem a distingue da funo fiscal. Tal interferncia tambm ocorre no campo das normas fiscais, o que foi verificado pelo autor citado. O equvoco, nesse

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    caso, o de caracterizar como extrafiscal algo que imanente aos tributos em geral. O reflexo social, por exemplo, pode ser alcanado por diversas formas e atravs da anlise da estrutura e do contedo do meio escolhido para alcanar o resultado social, que ser averiguada a funo fiscal ou extrafiscal da norma tributria. Por exemplo, a iseno de at um determinado teto no Imposto de Renda Pessoa Fsica (IRPF) visa proteo do mnimo existencial, medida ligada capacidade contributiva, que para este estudo dotada de claro contedo fiscal (isso porque, como se ver, h muito foi superado o interesse tutelado pelo direito tributrio como o simplesmente arrecadatrio) e no extrafiscal. Uma iseno conferida em uma determinada regio pobre e desestruturada do pas, aos empresrios que l se estabeleam, tem relao com a induo de comportamentos do contribuinte, visando a prestigiar a reduo das desigualdades regionais, conforme preconiza o art. 3, III, da Constituio de 1988. Ambos os exemplos tm reflexos no domnio econmico e social, o que deixa claro que os critrios em geral utilizados para a distino dos institutos so equivocados. Aps o desenvolvimento dos conceitos de fiscalidade e extrafiscalidade nas sees 3 e 4, o raciocnio exposto certamente ser mais claro ao leitor.

    Contudo, a distino prtica entre normas fiscais e extrafiscais nem sempre ser tarefa fcil. Em que pese a possibilidade de o tributo ser, sim, puramente fiscal ou extrafiscal, as duas funes podem conviver na mesma norma, o que ocorre com freqncia, mesmo considerando-se o critrio de distino que a pesquisa entende como o correto. Em todo caso, ainda assim se faz possvel e necessria a distino entre ambas.

    A ttulo de exemplo, no h qualquer espcie de induo de comportamento na norma do Imposto sobre a Circulao de Mercadorias e Servios de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicao (ICMS) que tributa o consumo de energia eltrica (alquota de 30%, no Estado de Minas Gerais), denotando pura fiscalidade. Por outro lado, no h qualquer arrecadao na iseno do Imposto de Importao (II), IPI e do Adicional ao Frete para Renovao da Marinha Mercante (AFRMM) na importao de mquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos, bem como suas partes e peas de reposio, acessrios, matrias-primas e produtos intermedirios, destinados pesquisa cientfica e tecnolgica - desde que o importador

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    seja cadastrado no Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq)1, caracterizando de forma pura essa norma como extrafiscal.

    Por outro lado, em relao ao II, ao mesmo tempo que a tributao elevada preserva a produo nacional, desestimulando a aquisio no mercado externo, haver arrecadao e o seu produto ser utilizado para a implementao de diversos fins do Estado e polticas pblicas previstas na Constituio, convivendo assim a fiscalidade e a extrafiscalidade. O Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR), com suas alquotas progressivas conforme o grau de produtividade, visa ao melhor aproveitamento da terra, sendo certo que a arrecadao ter o mesmo fim do exemplo anterior. Nesses casos, prepondera a funo extrafiscal, que, no entanto, no exclui a outra.

    Convivendo a face fiscal e a extrafiscal em uma mesma exao, o que, em tese, contribui para a dificuldade na averiguao da natureza da norma, deve ser aplicado o critrio da preponderncia, como entende Falco (1981), o que mantm a possibilidade de distino:

    [...] no obstante possvel a separao conceitual, um pouco complicada a distino prtica. Com frequncia, si ocorrer de se superporem as duas conotaes. Em tal hiptese, s o critrio da predominncia salvar a distino ftica (1981, p. 49).

    Aizega Zubillaga (2001, p. 48), mesmo entendendo que impossvel o tributo fiscal ou extrafiscal quimicamente puro, sendo o ideal a combinao de ambos os fins, aponta que dever ser observada a finalidade que o tributo persegue principalmente e primordialmente, que se concretizar na estrutura jurdico-tributria concreta.

    2.3 A problematizao da fiscalidade e da extrafiscalidade voltada ao princpio da capacidade contributiva: anlise da doutrina espanhola

    A doutrina brasileira, em geral, entende possvel a distino entre a fiscalidade e a extrafiscalidade, formulando conceitos diversos para os institutos, o que se observou na seo 2.1. Admitida a possibilidade da distino, a questo problematizada no campo da necessidade, onde parte da doutrina considera que a fiscalidade e a

    1 Iseno conferida pela Lei n 8.010/1990 (BRASIL, 1990).

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    extrafiscalidade atuariam simultaneamente em todo e qualquer tributo (utilizando-se, contudo, de critrios equivocados para a definio dos institutos).

    Na Espanha, por outro lado, a discusso sobre normas fiscais e extrafiscais passa pela prpria possibilidade de manejar o tributo com fins diversos daqueles arrecadatrios. Isso porque parte da doutrina considera que apenas a funo fiscal, ligada ao princpio da capacidade contributiva, fundamenta o tributo e o exclusivo elemento de justia fiscal no ordenamento tributrio. Defendeu-se, inclusive, que a funo fiscal integra o prprio conceito do tributo.

    Para a compreenso da anlise do tema em termos normativos, Palao Taboada (2004, p. 83) indica os dispositivos da legislao espanhola que do partida discusso:

    O art. 4 da Lei Geral Tributria de 1963 dispunha que os tributos, alm de ser meios para arrecadar ingressos pblicos, ho de servir como instrumento da poltica econmica geral, atender s exigncias de estabilidade e progresso sociais e buscar uma melhor distribuio da renda nacional. A nova Lei Geral Tributria, 58/2003, de 17 de dezembro, em seu artigo 2.1, pargrafo 1, atribui aos tributos o fim primordial de obter os ingressos pblicos necessrios para o sustento dos gastos pblicos, ou seja, o fim fiscal, o qual complica as coisas. O pargrafo 2 reproduz em substncia o art. 4 da LGT de 1963 (PALAO TABOADA, 2004, p. 83, traduo nossa).2

    No obstante a legislao espanhola vigente mencionar o fim primordial de obter ingressos pblicos do tributo [o que tambm no significa o nico], conclui o autor que os fins extrafiscais dos tributos esto perfeitamente admitidos no Direito espanhol (2005, p. 83). Por outro lado, menciona que a questo da conciliao dos fins extrafiscais e da capacidade contributiva no resulta nenhum problema dogmtico na atualidade. As restries ao princpio da capacidade contributiva [...] so admissveis enquanto ditos fins [extrafiscais] estejam constitucionalmente reconhecidos e tutelados (2005, p. 83, traduo nossa).3

    A propsito, sobre o questionamento da obrigatoriedade do princpio da capacidade contributiva em todo e qualquer tributo, as lies de Palao Taboada (1976; 2004) e Lejeune Valcrcel (1980) apontam que se encontra superada a viso da

    2 El art. 4 de la Ley General Tributaria de 1963 dispona que los tributos, adems de ser medios para

    recaudar ingresos pblicos, han de servir como instrumento de la poltica econmica general, atender a las exigencias de estabilidad y progreso sociales y procurar una mejor distribuicin de la renta nacional. La nueva Ley General Tributaria, 58/2003, de 17 de diciembre, en su artculo 2.1, prrafo 1, atribuye a los tributos el fin primordial de obtener los ingresos necesarios para el sostenimiento de los gastos pblicos, o sea, el fin fiscal, lo cual complica las cosas. El prrafo 2 reproduce en sustancia el art. 4 de la LGT de 1963. 3 [...] las restricciones del principio de capacidad econmica [...] son admisibles en cuanto dichos fines

    estn constitucionalmente reconocidos y tutelados.

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    capacidade contributiva como super princpio, nico a fundamentar o ordenamento tributrio. Segundo os autores, outros fins constitucionalmente protegidos tambm podem faz-lo, o que conferiria legitimidade s normas extrafiscais.

    Sobre a evoluo da doutrina europia em relao ao princpio da capacidade contributiva, Palao Taboada (1978, p. 125-128) delimita trs fases lgicas na doutrina europia, lembrando o autor que a noo do princpio da capacidade contributiva bastante antiga. Desde os primeiros impostos, h indicaes de que a sua cobrana deveria ser relacionada riqueza dos contribuintes, com fundamento em uma espcie de justia intuitiva. Mas a noo mais elaborada do princpio se d no direito financeiro, no sculo XIX, sendo que na Espanha o termo foi primeira e expressamente inserido na Constituio posterior guerra civil espanhola. Nessa primeira fase, o princpio da capacidade contributiva no foi concebido como critrio positivo, como uma positivao do princpio da igualdade (1978, p. 126), mas sim como uma ideia deduzida imediatamente do princpio de justia (1978, p. 127).

    A segunda fase doutrinria apresenta o princpio da capacidade contributiva concebido como uma ideia necessria para dotar de contedo o princpio da igualdade. (1978, p. 127). Esse ltimo teria apenas uma noo abstrata e formal, necessitando de complementao por um critrio material de justia, e o princpio da capacidade contributiva lhe conferiria tal contedo material. O princpio da igualdade se concretizaria e seria absorvido pelo princpio da capacidade contributiva (que seria a medida da igualdade).

    Segundo o autor, a mutao doutrinria experimentada nessa fase foi possibilitada pela incorporao do princpio da capacidade contributiva dogmtica jurdico-tributria4 (antes o princpio era utilizado apenas na cincia das finanas) bem como pela adoo de uma concepo positivista do direito e, concretamente, do princpio da igualdade (1978, p. 127).

    Nesse cenrio, conforme o autor, verifica-se que o princpio da capacidade contributiva (e sua relao com a igualdade) passou por um apogeu e por uma crise. O apogeu se identifica na absoro total do princpio da igualdade pelo princpio da capacidade contributiva, entendendo a doutrina da poca que o nico critrio vlido para a aplicao do princpio de igualdade o conceito da capacidade contributiva

    4 Palao Taboada confere o mrito dessa incorporao Grizziotti, tributarista italiano que chamou a

    ateno para a capacidade contributiva em obra jurdico-dogmtica, levando a calorosas discusses sobre o tema na esfera jurdico-tributria, em contraponto s discusses anteriores, realizadas meramente no campo da cincia das finanas.

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    (1978, p.127), alm de esse princpio ser considerado o fundamento exclusivo do sistema tributrio e a medida de justia dos tributos. A crise do princpio da capacidade contributiva se d no momento em que a doutrina abandona a ideia de que a capacidade contributiva representa o contedo material de um princpio abstrato e formal, que o da igualdade (1978, p. 127), passando a fundament-los de forma distinta. A capacidade contributiva passa a ser um limite a partir do qual atua o princpio da igualdade (1978, p. 127). A igualdade, assim, teria um campo residual de atuao prpria.

    A referida crise se deu em razo de alguns problemas que impregnavam a concepo de se reduzir a igualdade capacidade contributiva. Primeiramente, Palao Taboada enfatiza a diferena entre um conceito nascido da cincia das finanas, como critrio de repartio da carga tributria, e um princpio jurdico-constitucional. Diversos questionamentos problematizaram o tema da capacidade contributiva, sinalizando sua relativizao como fundamento do sistema tributrio e a medida de justia dos tributos. Este princpio teria aplicao global ao ordenamento tributrio ou a cada um dos tributos? Questiona-se a quais espcies tributrias seria aplicvel o princpio (taxas e impostos, impostos diretos e indiretos e impostos pessoais e reais), bem como se levaria em conta o contribuinte de direito, o contribuinte de fato ou mesmo terceiros, como se d na substituio tributria.

    Outro ponto enfrentado por Palao Taboada se refere questo da extrafiscalidade, objeto da presente dissertao. As solues para a extrafiscalidade, com base no raciocnio dessa segunda fase de crise da capacidade contributiva, seriam, em primeiro lugar, considerar que as normas extrafiscais, por se afastarem da capacidade contributiva, seriam inconstitucionais (o que defende, por exemplo, Sinz de Bujanda) ou, em segundo lugar, resolver a questo atravs de um critrio de justia financeira (e no tributria), em que eventuais benefcios fiscais seriam compensados, por exemplo, atravs das despesas pblicas. Tais solues so criticadas por Palao Taboada. A primeira seria incompatvel com a funo pblica de um Estado moderno (1978, p. 130), afirmando o autor que os tributos extrafiscais podem constituir irrenunciveis exigncias ticas (1976, p. 394). A segunda soluo, segundo Palao Taboada, contradiria os prprios fundamentos da tese, ao admitir outros critrios, que no a justia tributria, para a imposio extrafiscal ou tentar inclu-los na prpria capacidade contributiva, o que termina por esvaziar o contedo do princpio.

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    Palao Taboada conclui que as concepes do princpio da capacidade contributiva, tanto em seu apogeu quanto em sua crise, partem de uma concepo positivista do princpio da igualdade (1978, p. 132), reduzindo, em ltima anlise, a igualdade legalidade. A crtica realizada no ponto em que em ltima instncia, sempre acabam por recair os autores na necessidade de fazer uma remisso a critrios de deciso que esto fora do mbito do direito positivo (1978, p. 132) e, portanto, sensveis ao intrprete.

    Entende o autor que a igualdade um princpio que se traduz na proibio de dar um tratamento desigual a situaes para as quais o referido tratamento desigual no seria justificado nem razovel (1978, p. 133). Significa a proibio arbitrariedade, j que no possvel formular critrios apriorsticos para a aplicao do princpio da igualdade (1976, p. 411). Acrescenta que no haveria a necessidade de os critrios de discriminao serem apontados pela Constituio, pois o princpio da igualdade teria contedo prprio, considerando o que em cada situao histrica se considera como justo, ou razovel, ou ligado natureza das coisas (1976, p. 411). Da a importncia da integrao do princpio pelo rgo jurisdicional. Contudo, adverte o autor:

    O juzo sobre a arbitrariedade de uma norma deixa intacta a esfera da deciso poltica prpria do legislador; no se trata de fazer prevalecer o critrio do juiz frente ao do legislador, instaurando um governo dos juzes, seno de assinalar a este o mnimo de conformidade com a justia material exigvel. Os riscos que poderiam entranhar o controle material da legislao pelos juzes so muito menores que os que derivam de uma liberdade sem restries do legislador atual. (PALAO TABOADA, 1976, p. 412, traduo nossa).5

    A terceira e ltima fase doutrinria sobre a capacidade contributiva, conforme Palao Taboada,

    [...] consiste em entender que o princpio da capacidade contributiva no mais do que a especificao concreta de um princpio de igualdade que j no se concebe - de maneira positiva como um princpio meramente formal, mas como um princpio dotado de um contedo autnomo. Portanto, um princpio que no necessita de nenhuma concreo material; um princpio que tem, em si mesmo, um contedo determinado. (1978, p. 127).

    5 El juicio sobre la arbitrariedad de una norma deja intacta la esfera de la decisin poltica propia del

    legislador; no se trata de hacer prevalecer el criterio del juez frente al del legislador, instaurando un gobierno de los jueces sino de sealar a ste el mnimo de conformidad con la justicia material exigible. Los riesgos que pudiera entraar el control material de la legislacin por los jueces son mucho menores que los que derivan de una libertad sin restricciones del legislador actual.

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    Para Palao Taboada, a capacidade contributiva no mais que a ideia de que a tributao deve relacionar-se com a riqueza dos particulares; no mais que um elemento imediatamente deduzvel da ideia de justia (1978, p. 134), o que permite no ser aplicado em se tratando da tributao extrafiscal, por opo do legislador, e ainda assim seja legtima a imposio tributria.

    Resumindo, o autor pontua que:

    A igualdade no se manifesta, no direito tributrio, s atravs do princpio da capacidade contributiva; este princpio um ponto de vista necessrio do legislador, que no o pode desconhecer; mas outras muitas consideraes que o legislador tributrio possa ter em conta, que justificam certas discriminaes no mbito tributrio e que, portanto, excluam a arbitrariedade da legislao. (PALAO TABOADA, 1978, P. 142).

    Exemplo de pensamento fundado na fase do apogeu do princpio da capacidade contributiva quando se trata do assunto da fiscalidade e da extrafiscalidade o de Yebra Martul-Ortega6, citado por Godoi7 (2004, p. 225). Esse autor entende possvel, alm da finalidade arrecadatria, outra finalidade que proporcione uma melhor distribuio da renda nacional, o que fortaleceria o princpio da capacidade contributiva, que sempre deve ser observado na tributao. O entendimento do autor, embora no sentido da necessidade da observncia do princpio da capacidade contributiva pelas normas extrafiscais, acaba por afastar a possibilidade dessas normas, que no se fundamentam na capacidade contributiva. Outrossim, entende-se que o raciocnio no retrata a extrafiscalidade ao considerar como seu contedo a melhor distribuio da renda nacional. Tal contedo nitidamente vinculado prpria fiscalidade, conforme se demonstrar na seo posterior.

    No sentido da possibilidade da adoo de normas que no observem a capacidade contributiva pelo ordenamento tributrio, Vicente-Arche8 compreende que outros fins podem ser perseguidos pela fazenda pblica, alm dos arrecadatrios, os quais pressupem o afastamento do princpio da capacidade contributiva. Tais fins devem ser reconhecidos pela Constituio e implementados pela legislao ordinria (Godoi, 2004, p. 225).

    6 MARTUL-ORTEGA, Perfecto Yebra Martul. Comentarios sobre un precepto olvidado: el artculo

    cuarto de la Ley General Tributaria. Hacienda Pblica Espaola (HPE), n 32, 1975. 7 Godoi faz detalhado estudo sobre a evoluo da tratativa da extrafiscalidade no ordenamento jurdico

    espanhol no trabalho que busca traar limites ao instituto, trabalho esse do qual esta pesquisa aproveitar em grande parte, diante da clareza e substncia para o conhecimento da questo no direito comparado. 8 VICENTE-ARCHE DOMINGO, Fernando. Notas sobre gasto pblico y contribucin a su sostenimiento

    en la Hacienda Pblica. Revista Espaola de Derecho Financiero (REDF), n 3, 1974.

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    Checa Gonzlez (1983) questiona se os tributos poderiam ter fins no diretamente ligados estrita obteno de ingressos pblicos e responde afirmativamente, apontando as funes que o Estado tem na modernidade e os meios diferenciados (dentre os quais, o sistema tributrio) de que dispe para cumprir os seus objetivos. Tratando da inter-relao entre Estado e sociedade aps a superao do laissez faire, o autor considera que o Estado encarregado de dirigir globalmente o sistema econmico, assumindo diretamente muitas de suas funes, tendo a cargo a fundamental tarefa de conseguir a superao dos obstculos que se opem igualdade de fato entre os cidados (1983, p. 505). Nesse sentido, o tributo no deve ser vinculado tarefa exclusivamente arrecadatria, entendendo o autor que tambm pode ser um meio direto para se atingirem os fins constitucionais do Estado:9

    [...] no se pode sustentar na atualidade que os impostos tenham como nica funo a de reunir os meios necessrios para cobrir os gastos, aspecto que segue sendo ainda fundamental, seno que junto a esta tm que buscar direta e automaticamente em concursos com outros instrumentos, a realizao dos fins do ordenamento constitucional (CHECA GONZLEZ, 1983, p. 507, traduo nossa).10

    Mateo (1983) considera que o sistema tributrio, em seu conjunto, envolve tanto os tributos com a finalidade arrecadatria, quanto aqueles que tm por fim a interveno econmica dirigida, especialmente a distribuio da riqueza, superando a ideia liberal de reduzir o fim do mesmo cobertura das necessidades pblicas.11 Sobre a incluso da finalidade arrecadatria no conceito de tributo, o que afastaria da realidade as normas extrafiscais, Mateo cita Corts Dominguz:12

    Sua realidade [das normas extrafiscais] to manifesta aparentemente que tem sido motivo para objetar a tradicional incluso da finalidade arrecadatria no conceito de tributo, j que, nas palavras do professor Corts Domingues, sua caracterstica mais importante de haver surgido para cumprir uma finalidade que nada tem a ver, em princpio, com a

    9 E no como entende Grizziotii, citado por Gonzlez4 (1983, p. 507): os gastos pblicos so instrumento

    imediato para a busca dos fins do Estado e os ingressos pblicos so um meio necessrio para os gastos pblicos. 10

    [...] no puede ya sostenerse en la actualidad que los impuestos tengan como nica funcin la de allegar los medios necesarios para cubrir los gastos, aspecto que sigue siendo an fundamental, sino que junto a esta tienen que intentar conseguir directa y automticamente, en concurso con otros instrumentos, la realizacin de los fines del ordenamiento constitucional. 11

    Pero esta misin general, junto a la propiamente fiscal, corresponde al sistema tributario en su conjunto, en superacin de la idea liberal de reducir el fin del mismo a la cobertura de las necesidades pblicas. (1983, p. 343). 12

    CORTS DOMNGUEZ. Ordenamiento tributario espaol (en colaboracin con J. M. Martn Delgado). Madrid: Civitas, 1977, p. 149.

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    arrecadatria. So os tributos com finalidade extrafiscal. Este grupo de tributos que, como dissemos, no cumprem, em princpio, uma misso arrecadatria, seno que tratam de fazer mais gravosa uma determinada atividade dos particulares, desmente que o fim do tributo possa entrar no conceito do mesmo, posto que no seria possvel negar-lhes carter tributrio dada a estrutura de muitos dos sistemas tributrios atuais. (MATEO, 1983, p. 345, traduo nossa).13

    Casado Ollero,14 citado por Godoi (2004, p. 229), esclarece a diferena da utilizao do princpio da capacidade contributiva como critrio de graduao das prestaes tributrias e como pressuposto legitimador do tributo. A primeira viso no se aplicaria aos tributos extrafiscais, que deveriam ter uma justificativa constitucional para o desvio da capacidade econmica. Adverte que o desvio no pode importar em parmetros contrrios ou opostos ao da capacidade econmica, mas apenas distintos. Em relao concepo do princpio da capacidade econmica como pressuposto legitimador do tributo, esse deve atuar como um requisito mnimo de razoabilidade ou no arbitrariedade das normas tributrias. Assim, o autor espanhol prope que os tributos extrafiscais respeitem os limites da capacidade como fonte do tributo, a saber o mnimo existencial e o no confisco.

    O Tribunal Constitucional da Espanha tem, contudo, traado linha hermenutica de conciliao entre as normas extrafiscais e a capacidade contributiva, o que criticado por Palao Taboada (2005) e Herrera Molina (2000), por implicar a desnaturao do contedo do princpio. Molina (2000, 159-160) menciona o argumento de alguns de que, nos tributos ambientais, as atividades produtivas que importam degradao do meio ambiente supem um ndice de capacidade contributiva, ao menos potencial. Segundo o autor o argumento coerente se se admite a jurisprudncia constitucional que define a capacidade contributiva como mera exigncia de que na generalidade dos casos submetidos imposio se grave uma riqueza atual ou potencial. Cita a SSTC 37/1987, de 26 de maro, FJ 13., e 186/1993, de 6 de junho, FJ 4., mas discordando do

    13 Su realidad es tan manifiesta aparentemente que ha sido motivo para objetar la tradicional inclusin de

    la finalidad recaudatoria en el concepto de tributo, ya que, en palabras del profesor Corts Domingues, su caracterstica ms importante es la de haber surgido para cumplir una finalidad que nada tiene que ver, en principio, con la recaudatoria. Son los tributos con finalidad extrafiscal. Este grupo de tributos que, como decimos, no cumplen, en principio, una misin recaudatoria, sino que tratan de hacer ms gravosa una determinada actividad de los particulares, desmiente que el fin del tributo pueda entrar en el concepto del mismo, puesto que no sera posible negarles carcter tributario dada la estructura de muchos de los sistemas tributarios actulales. 14

    CASADO OLLERO, Gabriel. El principio de capacidad y el control constitucional de la imposicin indirecta(I), Civitas, REDF, n 32, 1982 y El principio de capacidad y el control constitucional de la imposicin indirecta(II), Civitas, REDF, n 34, 1982.

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    entendimento. Palao Taboada (2005), aps analisar o fundamento da primeira jurisprudncia citada15, afirma que:

    [...] a construo dogmtica do Tribunal se explica com um intento de manter a necessidade de que todo tributo, sem exceo, se ajuste ao princpio de capacidade econmica, o qual s pode lograr, no caso dos tributos com fins no fiscais, ao custo de abandonar toda noo plausvel de capacidade econmica (PALAO TABOADA, 2005, p. 85-86, traduo nossa).16

    Embora a seo se proponha o estudo da problematizao na Espanha, til citar a discusso do tema na Alemanha, que tambm se d em relao ao princpio da capacidade contributiva. Segundo Vogel (1984, p. 543), a possibilidade de utilizao das normas extrafiscais foi questionada, a princpio17, pelo conceito de imposto previsto no Cdigo Tributrio alemo, que previa a necessidade de obteno de receitas em seu contedo normativo. Contudo, foi expressamente reconhecida pelo Tribunal Constitucional a legitimidade da veiculao de normas tributrias com fins no fiscais. Entendeu o tribunal, na vigncia do Cdigo Tributrio de 1919/1931, que a caracterstica de obteno de receitas no conceito de imposto do 1 no necessitaria ser o primeiro objetivo da norma, bastando que fosse um dentre os seus vrios outros. Posteriormente, em 1976, o novo Cdigo Tributrio alemo, em seu 3, modificou a definio de imposto para expressamente prever a possibilidade do imposto ter fins no preponderantemente fiscais.18

    Sobre a necessidade de contedo arrecadatrio como forma de manter a natureza tributria das normas indutoras, Vogel deixou claro que, embora seja til a distino entre funo arrecadatria (fiscal) e regulatria (extrafiscal), a discusso deveria

    15 A sentena 37/1987 se refere anlise de uma lei de reforma agrria do parlamento de Andaluzia, na

    qual foi estabelecido um imposto sobre terras subutilizadas, assim consideradas as que no obtivessem o rendimento timo fixado pela administrao. O tribunal entendeu que a obteno de rendimentos inferiores ao timo , por si mesmo, reveladora da titularidade de uma riqueza real ou potencial ou (...) de uma renda virtual cuja dimenso maior ou menor determina a maior ou menor quantia do imposto. (PALAO TABOADA, 2005, p. 85, traduo nossa). 16

    La construccin dogmtica del Tribunal se explica como un intento de mantener la necesidad de que todo tributo sin excepcin se ajuste al principio de capacidad econmica, lo cual se puede lograr, en el caso de los tributos con fines no fiscales, a costa de abandonar toda nocin plausible de capacidad econmica. 17

    O questionamento se deu, ainda, em relao s normas de competncia previstas na Lei Fundamental. Posteriormente, passou-se a questionar a extrafiscalidade em contraponto ao direito de propriedade. Quanto s normas de repartio de competncia, apesar de opinies contrrias na doutrina alem, Vogel conclui que enquanto a lei produz rendas, estas devem ser partilhadas e administradas de acordo com as regras do sistema de partilha tributria, dos arts. 105 e s. da Lei Fundamental, aplicando, sem diferenas, a disciplina dos impostos. A relao entre a extrafiscalidade e o direito de propriedade ser analisada na seo 4, ao se tratar da legitimidade e limites do instituto. 18

    O pargrafo 3.1 do Cdigo Tributrio Alemo prev que a obteno de ingressos pode ser um fim secundrio do tributo. (PALAO TABOADA, 2005, p. 83, traduo nossa).

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    centrar-se entre o contedo distributivo da carga tributria e o contedo regulatrio das leis tributrias (extafiscalidade):

    [...] o contraste com a regulao no a obteno de receitas tambm os impostos regulatrios tm a mesma funo de gerar receita mas a distribuio da carga tributria, deve-se dizer mais exatamente que a distino est entre a funo distributiva da carga tributria e a funo regulatria das leis tributrias [...] (VOGEL, 1984, p. 548).

    No obstante Vogel indicar alguns pontos em que a distino entre normas fiscais (entendida pelo autor como aquelas com objetivo de receita) e extrafiscais seria necessria - o que importa quando se discute nesta seo a possibilidade e necessidade da distino entre tais normas - a insero citada tem contedo bem mais profundo. A seo 2.5 tratar das funes da norma tributria, na qual ser proposto que a funo distributiva que o autor considera ser o melhor contraponto s normas extrafiscais se insere na prpria fiscalidade. Na seo 3, ao se cuidar do conceito da fiscalidade, tambm ser mencionado esse importante raciocnio do autor alemo.

    No Brasil, o art. 3 do Cdigo Tributrio Nacional (CTN), ao conceituar o tributo como toda prestao pecuniria compulsria, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que no constitua sano de ato ilcito, instituda em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (BRASIL, 1966), no menciona a caracterstica de arrecadao como seu fundamento de validade. Inexiste empecilho legal e constitucional para a utilizao do tributo como forma de induo de comportamentos. Ao contrrio, o constituinte j deixou clara a presena de tributos que tm por finalidade precpua a regulao econmica, ao invs da arrecadao de recursos, no caso dos impostos aduaneiros, do imposto sobre produtos industrializados e do imposto sobre operaes financeiras.

    Conclui-se, assim, pela utilidade e possibilidade do manejo extrafiscal do tributo e da distino das normas tributrias em fiscais e extrafiscais. A discusso na doutrina espanhola, que envolve a questo do uso do tributo extrafiscal no observar a capacidade contributiva, especialmente bem pontuada por Palao Taboada (1976; 1979; 2005), sendo certo que o princpio da capacidade contributiva no o nico fundamento da tributao, mas apenas uma especificao possvel do princpio da igualdade. O princpio deve ser observado nas normas fiscais, o que no exclui a possibilidade de outros fundamentos para o tributo, o que ocorre com as normas extrafiscais.

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    2.4 Critrios de distino

    Aqueles que defendem a distino entre as normas fiscais e extrafiscais em geral se baseiam no critrio finalstico, ou seja, a norma extrafiscal tem finalidade diversa da buscada pela norma fiscal, a exemplo de Domingues (2007, p. 47), Falco (1981, p. 28) e Tipke e Lang (2008, p. 175). Tal entendimento no impede que, por vezes, uma mesma norma tributria possa atender a finalidades fiscais e extrafiscais. A finalidade, como instrumento eleito para a distino entre as normas, poderia ser apurada mediante a anlise de critrios subjetivos, objetivos ou mistos, conforme cita Schoueri (2005, p.18). Tipke e Lang (2008, p. 203) indicam que a capacidade contributiva seria um elemento que diferenciaria os tributos fiscais dos extrafiscais, estando presente apenas nos primeiros tipos.

    Schoueri (2005, p. 26-32) prope, na linha de Vogel, o critrio funcional para a distino. As normas tributrias teriam diversas funes, dentre elas a funo indutora, que se caracterizaria pela aptido para a produo dos efeitos indutores, diferenciando-as das demais funes do tributo (distributiva, simplificadora e arrecadadora). Passa-se anlise dos critrios propostos para a distino.

    2.4.1 Finalidade

    A grande maioria dos autores identifica a extrafiscalidade quando na norma tributria se destaca a finalidade no arrecadatria. Outros acrescentam a finalidade de induo de comportamentos. O ponto fundamental , ento, delinear qual a finalidade da norma tributria - questo sabidamente tormentosa o que pode ser estudado por dois focos distintos: a busca dos aspectos subjetivos do legislador ou dos objetivos da norma jurdica tributria.

    2.4.1.1 Aspectos subjetivos

    A anlise dos aspectos subjetivos caracteriza-se pela busca dos elementos volitivos do legislador para o delineamento da exao no contexto de edio da norma, ainda que no expressos no seu texto. Isso poderia ser obtido, por exemplo, atravs da

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    anlise da exposio de motivos das leis, das atas parlamentares, do contexto em que foi criada a norma e do programa dos partidos que sustentam a base governamental. A busca de elementos volitivos subjetivos do legislador para a caracterizao da finalidade da norma duramente criticada na obra de Dworkin (1999). Atravs da crtica ao que o autor denomina teoria da inteno do interlocutor19, extrai-se o quo problemtica a identificao da vontade do legislador.

    A primeira dificuldade seria identificar aqueles que teriam elaborado a lei (para, posteriormente, buscar a sua inteno), diante da diversidade de partcipes no processo legislativo, como assessores, lobistas, o prprio povo (quando a proposta surgiu a partir da iniciativa popular), dentre outros. No segundo momento, o da apurao de intenes, a dificuldade permanece, citando o autor a inteno representativa e a inteno da maioria. A primeira baseada no mito do legislador mdio ou representativo, cuja opinio seria a mais prxima da maioria dos parlamentares. A segunda forma de apurao teria que confrontar-se com a diversidade de pensamentos dos congressistas e suas ambies pessoais, o estado de esprito, a diferena dos ideais partidrios e o interesse egostico de determinados grupos - que poderia justificar de forma equivocada a real inteno visada pelo legislador - ou as misteriosas questes contrafactuais.

    Por outro lado, a norma criada com um determinado fim pelo legislador, ainda que expresso, pode, em um momento posterior, perder o sentido e a finalidade buscada em sua edio, dependendo de mudanas histricas, econmicas, sociais e culturais, contrariando a histria em movimento. Tudo isso termina em avaliaes inseguras e vagas, construdas sobre previses ou expectativas.

    Nesse raciocnio, entende-se que no recomendvel a adoo do critrio da inteno subjetiva do legislador para identificar a finalidade da norma tributria, se fiscal ou extrafiscal. Como no parece ser critrio apto para interpretao das normas jurdicas em geral.

    19 Para Dworkin, a respeito da busca da finalidade da lei, a questo pode ser vista de duas formas, ao se

    analisarem os relatrios ou debates formais dos parlamentares. A primeira seria atravs da adoo da teoria da inteno do interlocutor (como aquele que formula o enunciado), que trata as declaraes como evidncia do estado mental dos legisladores que a fizeram, presumindo ser representativa do estado de esprito da maioria dos legisladores que participaram do processo legislativo. Pressupe que a interpretao correta seja a conversacional, no construtiva. A segunda forma, que seria a adotada pelo juiz Hrcules, aborda as mltiplas declaraes feitas pelos legisladores no processo de elaborao da lei, como atos polticos importantes em si prprios (no como evidncia de estado de esprito dos parlamentares), aos quais a interpretao da lei deve ajustar-se e poder explic-las, assim como a interpretao precisa ajustar-se ao prprio texto da lei e explic-lo. Entende a ideia do propsito ou inteno da lei como o resultado da integridade, no como combinao de propsito dos legisladores.

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    2.4.1.2 Aspectos objetivos

    A anlise objetiva, por sua vez, consiste na busca de sinais objetivos na lei que indiquem a finalidade pretendida, o aspecto volitivo da norma. Schoueri cita Dora Schmidt20, em estudo pioneiro sobre o tema, em 1926, no qual citou como sinais objetivos o prprio texto da lei, que indica expressamente a sua finalidade indutora, a base de clculo, a alquota, o contexto poltico (se a medida tributria no isolada, mas criada em um pacote tributrio), a escolha dos objetos tributados, dentre outros. A busca da finalidade da norma pelo aspecto objetivo leva em conta os elementos nela expressos de forma literal.

    Obviamente, os elementos indicados acima so fundamentais na anlise da busca da finalidade da norma tributria. A lei pode determinar expressamente o fim que caracteriza a instituio, a minorao ou a majorao de determinado tributo, bem como ser a finalidade deduzida da diferenciao entre as alquotas ou base de clculo entre situaes distintas combinado com a situao ftica que constitui objeto do fato gerador. Contudo, muitas vezes o texto da lei no claro o suficiente para se concluir pela finalidade da exao.

    Sugere-se a anlise do texto das normas jurdicas como ponto de partida para a interpretao de seu contedo (que abrange a finalidade) sabendo-se, contudo, que essa anlise nele no se encerra. Dworkin (1999) explicita a integridade textual como um dos elementos utilizados para a interpretao das leis,21 a qual, levando em conta as justificativas de princpio e poltica, evitaria concluses contrrias ao sentido mnimo que dela pode ser extrado.

    No mbito da realidade poltica, no h como desprezar a impropriedade tcnica e o contedo incoerente e deturpado que muitas vezes eiva o texto e o contedo da lei, dificultando a tarefa do seu intrprete. Tipke e Lang (2008, p. 168), explicitando a

    20 SCHMIDT, Dora. Nichtfiskalische Zeweck der Besteuerung, Ein Beitrag zur Steuerthorie und

    Steuerpolitik, Tbingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1926, p. 16-19. 21

    Para a interpretao das leis em sua melhor luz, alm da integridade textual, o autor ainda cita a equidade, que compreende a anlise de qualquer expresso de pontos de vista polticos que parea relevante para decidir se uma determinada lei, compreendida de acordo com uma interpretao que ele esteja considerando, seria equitativa, tendo-se em vista o carter e o alcance da opinio pblica e a histria legislativa, como as convices concretas que os legisladores expressam dentro de uma comunidade de princpios, que trata a legislao como uma decorrncia do compromisso atual da comunidade com o esquema precedente de moral poltica.

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    dificuldade de averiguao da finalidade expressa pelo texto da lei, ao tratarem do sistema externo22, em boa parte responsvel pelo caos tributrio, aduzem que:

    A qualidade jurdica das leis tributrias sofre especialmente sob a caotizao do direito tributrio por meio de uma legislao tributria orientada pelos objetivos polticos do dia. De quando em quando adquirem as leis tributrias a natureza de leis desleixadas (Wegwerfgesetzen). Dessa maneira evidenciam-se frequentemente como insuficientes os argumentos provindos do sistema externo das leis tributrias, tanto assim que para a obteno de consequncias jurdicas aceitveis precisam logicamente ser introduzidos outros mtodos.

    Tipke e Yamashita (2002, p. 40) vislumbraram outra dificuldade no que tange busca da finalidade, apontando a facilidade que o legislador tem de justificar a norma extrafiscal por uma razo objetiva qualquer, tal como o fomento do crescimento econmico, a reduo do desemprego, a garantia da infraestrutura pblica, a manuteno ou melhoria da sade pblica, a proteo ao meio ambiente [...]. Especialmente quanto justificativa econmica, h que se ter bastante cuidado ao analisar a norma tributria. Parece que toda norma tributria, independente do seu carter fiscal ou extrafiscal, ter um efeito sobre a economia, afinal, sobre o patrimnio do contribuinte que incide o tributo; mesmo a opo do poder pblico pela ausncia de tributao estar a interferir nessa esfera, implicando o aumento do patrimnio daquele beneficiado pelo incentivo. A considerao de tal efeito, sem uma investigao crtica da sua incidncia, acaba por no diferenciar a norma fiscal da extrafiscal, tendo, nesse diapaso, toda norma tributria uma finalidade extrafiscal, com o que no se pode coadunar. Outrossim, por mais que do texto da norma seja possvel deduzir a sua finalidade, pode haver a total impropriedade do alcance de seu resultado pela forma de tributao escolhida, o que torna insuficiente o critrio da busca da vontade objetiva da lei para a escorreita e segura qualificao da norma tributria como fiscal ou extrafiscal.

    2.4.2 Capacidade contributiva

    22 O sistema externo, segundo os autores, diz respeito ao modo da ordenao formal da matria, a

    articulao tcnica e ordem da matria. Elementos do sistema externo so os conceitos de ordenamento da lei, a construo da lei e a posio da matria jurdica singela na estrutura da lei. (TIPKE e LANG, 2008, p. 168). O sistema interno, seguindo os autores o vis da jurisprudncia de valores, seria composto dos valores que informam o contedo da ordem jurdica.

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    Schoueri (2005, p. 23) menciona que a capacidade contributiva apontada por Tipke como um dos possveis critrios para distinguir as normas fiscais das extrafiscais em se tratando de impostos, sendo princpio presente nas normas arrecadadoras. Ao contrrio, ausente a gradao segundo a capacidade contributiva, ter-se-ia um tributo extrafiscal.

    Tipke e Yamashita (2002) registram que a capacidade contributiva pode ser afastada em se tratando de normas de cunho extrafiscal, mas no se encontra, nessa obra, a indicao de tal fato como critrio de distino entre as normas fiscais e extrafiscais. Tipke e Lang (2008, p. 203) mencionam, quando do estudo da igualdade, que o princpio da capacidade contributiva o critrio comparativo para normas de fim fiscal [...]; para as normas de fim social valem princpios, que so apropriados para justificar derrogaes do princpio da capacidade contributiva. Os autores complementam, ainda, que embora nos tributos extrafiscais (por eles denominados sociais) a capacidade contributiva pode ser afastada, no se pode desprezar nessa espcie de tributos o mnimo existencial.

    Embora no fique totalmente claro se os autores defendem a capacidade contributiva como o nico critrio de distino entre os tributos fiscais e sociais, no parece suficiente e adequado realizar a distino que se preconiza neste estudo atravs do princpio em questo. Isso porque, em alguns casos, mesmo presente a funo extrafiscal como primria, pode ocorrer que a capacidade contributiva seja observada, mas no como fundamento da exao. Um exemplo fornecido por Schoueri (2005, p. 25), ao tratar da tributao dos juros sobre capital prprio. As normas concernentes matria, institudas no art. 9 da Lei n 9.249/1995 (BRASIL, 1995), teriam a finalidade de promover a capitalizao das empresas, isso aps o fim da medida que possibilitava a correo dos balanos das sociedades empresrias. Contudo, conferiam ao investidor tributao equivalente que teria em caso de investimento no mercado financeiro de renda fixa, atendendo, da, a capacidade contributiva.

    Concorda-se com a afirmao de Tipke e Lang (2008) de que, nos tributos extrafiscais, a capacidade contributiva no deve, obrigatoriamente, se fazer valer, mas no se pode, da, concluir que o princpio seria sempre o critrio oportuno para distinguir as normas, devendo ser visto como um elemento que far parte (ou no) da natureza jurdica das normas fiscais e extrafiscais.

    Esclarecimento, oportuno, relaciona-se diferena da utilizao do princpio da capacidade contributiva como o critrio que distinguiria normas fiscais de extrafiscais,

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    que pressupe a possibilidade do emprego de ambas as funes da norma tributria no ordenamento jurdico, do raciocnio que, conforme parte da doutrina espanhola, valorizando de forma exacerbada o princpio da capacidade contributiva, afasta a tributao extrafiscal por no observar o princpio (admitindo-se apenas a funo fiscal), o que foi objeto da exposio na seo 2.3 ao ser analisada a doutrina espanhola e novamente ser tratado na seo 4.3.5.

    2.4.3 Funcionalidade

    Schoueri (2005) prope um critrio de distino entre as normas fiscais e extrafiscais pelo qual a investigao fundamenta-se na eficcia, adotando a definio de Ferraz Jnior (2008, p. 168), que a considera, no sentido tcnico, como aptido, mais ou menos extensa, para produzir efeitos.23

    Ferraz Jnior (2008) explicita que, no sentido tcnico, a aptido para produzir efeitos admite graus, e que para aferio desses, deve-se levar em conta as funes da eficcia no plano da realizao normativa, que denomina funes eficaciais.24

    A eficcia das normas jurdicas tributrias analisada por vila (2008). Segundo o autor, todas as normas jurdicas possuem objetos de proteo, sendo que quando se faz referncia eficcia das normas tributrias, est-se a fazer referncia - a rigor - aos bens atingidos, cuja disponibilidade protegida pelos princpios jurdicos

    23 Segundo Ferraz Jnior, a capacidade de produzir efeitos depende de certos requisitos. Alguns so de

    natureza ftica; outros de natureza tcnico-normativa. A presena de requisitos fticos torna a norma efetiva ou socialmente eficaz [...] quando encontra na realidade condies adequadas para produzir seus efeitos. Quanto aos requisitos tcnicos, a dogmtica supe, nesse caso, a necessidade de enlaces entre diversas normas, sem os quais a norma no pode produzir seus efeitos (2008, p. 168). A teoria adaptada extrafiscalidade pressupe que a realidade ftica suporte e torne possvel a induo de comportamentos do contribuinte. Por exemplo, um aumento de alquota do IPI, utilizando o critrio da essencialidade para um produto suprfluo deve ser adequado realidade social, no sentido de que a reduo de seu consumo no importar prejuzo sociedade. O aumento do tributo em tela para aparelhos de ar condicionado, por exemplo, no se adequaria realidade futura do superaquecimento do planeta. Outrossim, em termos tcnicos, o que comum em se tratando de normas extrafiscais, possuindo o seu texto conceitos indeterminados ou referncias que dependam da regulamentao ou atuao de rgos competentes, estes devem produzir os atos normativos necessrios a possibilitar a produo de efeitos da norma. 24

    A primeira seria a funo de bloqueio de condutas indesejveis e contrrias ao preceito da norma. A segunda liga-se realizao de objetivo, que funciona com um telos programtico (2008, p. 169), sendo a funo de programa. A terceira e ltima seria a funo de resguardo, visando a assegurar uma conduta desejada. As funes podem ser primrias ou secundrias, a depender da natureza da norma. Ferraz Jnior cita o exemplo do art. 129 do Cdigo Penal que imputa pena de trs meses a um ano a quem ofender a