dissertacao iuperj-2008. Rafael A. de Abreu

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO Rafael Assumpção de Abreu Ascensão e declínio do Estado-Nação: Solidariedade e democracia no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro 2008

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A dissertação aborda as teorias tradicionais sobre nação e nacionalismo de modo a problematizar a passagem teórica que pretende debater o cenário contemporâneo pós-nacional.

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INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

Rafael Assumpção de Abreu

Ascensão e declínio do Estado-Nação: Solidariedade e democracia no mundo contemporâneo.

Rio de Janeiro2008

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Rafael Assumpção de Abreu

Ascensão e declínio do Estado-Nação:Solidariedade e democracia no mundo contemporâneo.

Dissertação apresentada ao InstitutoUniversitário de pesquisas do Rio deJaneiro como requisito parcial para a Obtenção do título de mestre em ciências humanas: Ciência Política.

Rio de Janeiro2008

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Ascensão e declínio do Estado-Nação:Solidariedade e democracia no mundo contemporâneo.

Rafael Assumpção de Abreu.

Dissertação submetida ao Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Ciências Humanas – Ciência Política.

_____________________________Luiz Werneck Vianna (Orientador)

_____________________________César Guimarães

_____________________________José Eisenberg

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao meu orientador, Werneck Vianna, pelo respeito e paciência que

teve comigo durante esse tempo. Agradeço pelas orientações, pelos ensinamentos, tão

importantes para a minha formação.

Ao professor César Guimarães pelo apoio intelectual e pela atenção que me concedeu em

momentos difíceis durante o mestrado.

Agradeço também ao professor José Eisenberg pela sua dedicação ao ministrar o curso

sobre Habermas.

Aos meus colegas do laboratório de estudos hum(e)anos e ao professor Renato Lessa pelo

convívio agradável e pelos ensinamentos em filosofia política. Especialmente, agradeço a

amizade e companheirismo de Pedro, Mayra, Bernardo e Patrícia.

Aos meus amigos do Getepol – UEL, com os quais compartilho uma caminhada de cinco

anos. Especialmente, aos debates proporcionados pelos últimos trabalhos de Bárbara e

Raissa, que me ajudaram na ocasião em que me ocupei da elaboração do último capítulo. À

Ariana, pela leitura cuidadosa e pelas correções. Agradeço também à minha querida

professora Raquel Kritsch, com a qual tenho uma dívida incomensurável.

Aos meus pais, Cecília e Simões, que sempre me apoiaram e incentivaram. Sem a

compreensão deles, dificilmente conseguiria chegar ao final do curso de mestrado.

À Janaina, companheira e amiga dedicada, pelos momentos prazerosos que passamos

juntos. Com a sua presença, consegui suportar mais facilmente os momentos difíceis.

À CAPES, pela bolsa de auxílio financeiro.

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Resumo:

O presente trabalho constitui-se em uma tentativa de acompanhar um trajeto que se inicia nos elementos fundamentais para a consolidação dos Estados nacionais e que culmina em um olhar que, ao ver a impotência do Estado-nação em relação às transformações no mundo contemporâneo, pretende resguardar as suas maiores conquistas em um outro plano, qual seja, o regional. Para tanto, na primeira parte, será abordada a concepção de Estado (república) e direito em Kant. O segundo capítulo abordará o outro elemento contido no conceito Estado-nação: A nação e o fenômeno do nacionalismo foram cruciais para a concretização dos valores republicanos. O terceiro capítulo será dedicado à teoria habermasiana que propõe uma superação do nacionalismo, principalmente, para a integração européia em torno de um federalismo Constitucional. Habermas pretende retomar a proposta de Kant ao tentar dar novos contornos a este pensamento sem aquilo que o tornou possível, ou seja, a concepção de nação. Habermas, portanto, busca a plausibilidade de uma teoria que permita projetar a solidariedade e a democracia assentadas em um patriotismo constitucional.

Palavras-chave: Estado de direito; nacionalismo; federalismo; patriotismo constitucional.

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Sumário

Introdução.............................................................................................................................07

Capítulo 1: A república e o ideal cosmopolita na Filosofia Política de Kant.......................11

Capítulo 2: Nações e nacionalismos: a concepção de povo na formação dos Estados nacionais...............................................................................................................................302.1. A concepção de humanidade e a nação como povo: a influência de Herder................302.2. Entre a casualidade e a determinação: o nacionalismo e sua relação com os processos de modernização...................................................................................................................39

Capítulo 3: Patriotismo constitucional: a constelação pós-nacional.....................................553.1. Estado-nacional: a junção entre identidade nacional e cidadania..................................553.2. Expansão e fechamento no mundo contemporâneo.......................................................653.3. Patriotismo constitucional: a institucionalização de um conceito..................................71

Considerações finais..............................................................................................................82

Referências bibliográficas.....................................................................................................88

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Introdução.

Nos últimos meses do ano corrente, uma crise financeira assola o globo. Nesta crise,

que teve seu início marcado nos Estados Unidos e que se expandiu em uma economia

fortemente conectada, dois movimentos podem ser descritos quando pensamos na formação

moderna dos Estados nacionais: o primeiro diz respeito a um recuo que trouxe novamente à

tona um vocabulário, considerado por muitos, como superado: economia nacional, controle

estatal da economia ou, até mesmo, estatização, são termos que nos dão a sensação de que

chegamos ao fim da era neoliberal, quando a mão invisível ganha contornos que nos

possibilita ver a sua existência concreta. Mas, por outro lado, a percepção de que estes

problemas atingem a todos por meio de uma rede complexa de circulação de capitais,

apresentou ao mundo uma série de medidas coordenadas entre muitos países, como por

exemplo, a ação que envolveu os bancos centrais do Japão, EUA, Europa, Reino Unido,

Suíça e Canadá. Assim, o momento em que vivemos é marcado por um ceticismo nacional

e por uma conjuntura favorável a otimismos mais cosmopolitas.

Assumir um desses lados no debate atual pode não ser frutífero para aqueles que

tentam compreender as transformações em andamento. Eventos históricos como o acima

mencionado, dão novos contornos e novas perspectivas se abrem em um horizonte

próximo. Se o pós Segunda Guerra e a queda do muro em Berlin possibilitaram à história

entrar em um novo curso, de um sonho a ser realizado sob o fortalecimento de uma

Organização das Nações Unidas, os acontecimentos que sucederam o 11/09 de 2001 –

evento que para alguns marcava o término de um século e o início de outro -,

desencadearam novos elementos que assinalavam mudanças em um caminho até então tido

como minimamente estabilizado. Nem os intelectuais escaparam ao mal-estar transmitido

ao vivo pela grande rede mundial de informação: globalistas, cosmopolitas, entre outros,

viam naquilo, talvez, a necessidade de repensar suas teorias. Em meio a esses episódios, o

Continente Sul-americano viveu um momento político singular com a eleição de

presidentes que, do mais extremado ao mais moderado, faziam oposição às políticas

econômicas que dominaram estes territórios nos anos anteriores. Este novo quadro na

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América do Sul, inclusive - juntamente com o fortalecimento do poderio econômico de

países como Índia, Brasil e asiáticos -, levou a conclusões que mencionavam a emergência

de um novo nacionalismo1. Agora, em contrapartida, uma crise financeira sem precedentes

anunciava uma nova configuração, com novos atores a possuir a oportunidade de serem

escutados. Ao final desses fatos de difícil descrição, os Estados Unidos elegem o seu novo

presidente em um processo eleitoral caracterizado por uma participação recorde. O

candidato vencedor proclamou por toda a sua campanha, a importância em resgatar uma

unidade sob a qual deveria estar assentada a idéia de povo norte-americano.

Todas estas manifestações atuam, ressoam, preponderantemente nas formações

estruturais sob as quais estão assentados os Estados nacionais. Ademais, entre um suposto

nacionalismo emergente e as tentativas de se consolidar instituições imbuídas em seguir um

projeto que caminharia rumo a uma governança global, processos de regionalização, de

blocos regionais, apresentam ao cenário mundial outra solução possível. O maior exemplo,

obviamente, é o ideal que povoa o imaginário europeu, de uma Europa que cresce unida.

Entretanto, para aqueles que pretendem abordar estes temas ressaltando os valores

democráticos, alguns conceitos devem ser contemplados: liberdade, igualdade, soberania

popular e direitos humanos, são conquistas que não poderiam encontrar os seus limites nas

fronteiras do Estado-nação. E, deste modo, um projeto de integração, mas não apenas

econômica, surge como possibilidade de se ampliar um ordenamento jurídico que atuaria

para a concretização deste feito.

Para tentar compreender, pelo menos em parte, este ambiente confuso, a intenção

deste trabalho é a de acompanhar um trajeto que se inicia nos elementos fundamentais para

a consolidação dos Estados nacionais e que culmina em um olhar que, ao ver a impotência

do Estado-nação em relação às transformações no mundo contemporâneo, pretende

resguardar as suas maiores conquistas em outro plano, qual seja, o regional. Para tanto, na

primeira parte, será abordada a concepção de Estado (república) e direito em Kant. Com

isto, além de analisarmos as formações conceituais do Estado de direito kantiano,

pretendemos, por meio da filosofia da história kantiana, entender o ideal cosmopolita de

uma paz entre os Estados segundo um ordenamento jurídico mínimo. De tal modo,

1“Neonacionalismo ameaça a globalização” de Bob Davis do The Wall Street Journal, Publicado no jornal Valor Econômico, em 29/04/2008.

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poderemos refletir sobre a crença de Kant em uma formulação do direito universal, de um

direito que não possui história. Esta concepção kantiana de direito forneceu a garantia para

a defesa de elementos como a liberdade dos indivíduos e a igualdade destes enquanto

cidadãos. Contudo, a república kantiana se assenta na premissa de que todos os cidadãos

devem se reconhecer como dependentes de uma legislação; logo, torna-se necessário, um

apego à constituição jurídica. Do mesmo modo, esta dependência está conectada ao

princípio de igualdade em Kant. A república kantiana configurada desta forma assumiu

feições por demais abstratas e apenas encontram o ápice de sua realização nos Estados

nacionais.

Por isso, o segundo capítulo abordará o outro elemento contido no conceito Estado-

nação. A nação e o fenômeno do nacionalismo foram cruciais para a concretização dos

valores republicanos. O nacionalismo é o fenômeno ao qual deve-se a força mobilizadora

de uma solidariedade cívica, ao possibilitar a passagem de súditos para cidadãos. Este

reconhecimento deriva, em primeiro lugar, da concepção herderiana de nação como cultura:

nisto, estaria demarcado o ponto central da formação do indivíduo e de uma coletividade

que constrói o seu próprio futuro. Em segundo lugar, a consolidação desta acepção de

nação pode ser analisada por meio dos processos que descrevem a sua popularização. Estes

desenvolvimentos foram descritos por abordagens sociológicas com a intenção de

compreender o nacionalismo como um fenômeno que acompanha a passagem para a era

industrial. De modo breve, o intuito é o de acompanhar algumas leituras que partem da tese

que defende a relação entre nacionalismo e modernização.

O terceiro capítulo será dedicado à teoria habermasiana que propõe uma superação

do nacionalismo, principalmente, para a integração européia em torno do federalismo

Constitucional. Em um primeiro momento, pretendo discutir, teoricamente, de que modo, o

Estado moderno constituiu-se no lugar em que, cidadania e identidade nacional passaram a

ser termos correspondentes. Isto teria proporcionado, entre outras coisas, a formação

historicamente demarcada do Estado nacional; o terreno que propiciou a democracia, bem

como, a consolidação dos direitos civis, políticos e sociais. Na esteira destas questões,

encontra-se uma determinada compreensão sobre o modo de atuação e consolidação do

fenômeno do nacionalismo moderno. Ou seja, aqui apresentaremos os limites descritos por

Habermas em relação ao fenômeno do nacionalismo. Do mesmo modo, apresentaremos o

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argumento habermasiano que pretende descolar o conceito de cidadania de identidade

nacional. Ao elucidar essas questões, o filosofo alemão fertiliza o campo teórico para

assentar sua concepção de patriotismo constitucional, de uma solidariedade outra que não

esteja amarrada em uma homogeneidade cultural.

No entanto, além da necessidade de superar a nação que resulta de um vínculo

sanguíneo, em terceiro lugar, é também caro a Habermas um olhar sociológico sobre o

mundo contemporâneo que permite afirmar a necessidade de um vínculo firmado em um

patriotismo constitucional e que assevera a importância de superação da questão nacional.

Os fenômenos que reúnem, de uma só vez, o enfraquecimento do Estado nacional e o

mundo cada vez mais globalizado, elevam a questão democrática para um outro plano mais

amplo. O bloco regional europeu, portanto, teria em seu futuro o desafio de - ao invés de

ser apenas um bloco econômico comum - firmar uma unificação política por meio de uma

Constituição européia.

Assim, a discussão que se segue é a de compreender que, para essa constituição ser

democrática, ou melhor, para extinguir o déficit democrático em que se assentam as

instituições políticas européias; e para que a União Européia deixe de ser apenas um projeto

político fruto de um acordo entre algumas elites políticas facilmente identificáveis e, se

transforme em um acordo entre os cidadãos europeus livres e iguais, condições

institucionais favoráveis devem ser contempladas. E mais: uma integração deste tipo, de

uma comunidade heterogênea, pressupõe, novamente, a concretização de ideais abstratos.

Novamente, o tema da solidariedade, como pressuposto para a democracia, se faz

necessário. Ao propor uma teoria que invoca a constelação pós-nacional, Habermas deve

oferecer novos contornos a velhas indagações. O desejo de superação do nacionalismo

encontra, deste modo, um novo limite ampliado, um novo fechamento.

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Capítulo 1. A república e o ideal cosmopolita na Filosofia Política de Kant.

Duzentos anos após a formulação kantiana da paz perpétua, o filosofo alemão

Jürgen Habermas2, em sua retomada do pensamento cosmopolita kantiano, menciona a

possibilidade não só de proclamar a sua importância normativa, mas também, a sua

fecundidade para o mundo contemporâneo. Obviamente, o que limita o pensamento de

Kant para nós, leitores do século XXI, era a impossibilidade de prever, no final do século

XVIII, as mudanças que ocorreram no mundo durante as duas centenas de anos posteriores.

Entretanto - e o que é caro a Habermas3 –, a partir da noção kantiana de república, torna-se

possível prever um quadro jurídico que deve operar em um contexto para além dos Estados:

A condição jurídica no interior de um mesmo Estado deve antever como término para si

mesma uma condição jurídica global que una os povos e elimine as guerras4. Esta

condição jurídica, portanto, perpassa uma idéia da extensão do Direito Natural do ser

humano como fundamento do direito. Ao observar esta categoria entre os homens, o

fundamento do direito é compreendido à luz de uma concepção formal e universalista.

Deste cálculo, ou melhor, deste ponto de partida, nasce a justificativa tanto dos direitos

humanos, quanto do direito cosmopolita, que passa a ser entendido como algo que

ultrapassa a própria definição de Kant – do direito de visita -, ou seja, do direito a ter

direitos em todo e qualquer lugar. Utopia ou não, o que nos importa narrar, a partir de Kant,

é a possibilidade de se pensar a federalização de uma região (Europa) ou, quem sabe, do

globo, onde a centralidade reside em uma concepção do direito que é universal.

O ideal da paz perpétua presente no pensamento kantiano, remete a um fio condutor

que se inicia, em seus escritos, numa determinada concepção do indivíduo moderno e

termina em sua descrição da república. A relação entre Estados encontra nesta formulação o

seu fundamento. Uma constatação nos obriga a adotar esta perspectiva: Kant parece

2 Inclusão do outro. Edições Loyola, 2002. – a idéia kantiana de paz perpétua – à distância histórica de 200 anos.3 Para esclarecer a importância deste pensamento para Habermas, cito a seguinte passagem: “(...) as relações internacionais perdem seu caráter belicista à mesma medida que se impõem nos Estados a forma de governo republicano; pois as populações de Estados constitucionais democráticos, movidas por interesses próprios, compelem seus governos a desenvolver políticas de paz”. (Habermas; 2002, 192).4 Habermas; 2002, 185.

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transferir para a relação entre Estados o estado de natureza hobbesiano que tornaria

obrigatório a passagem para o estado civil. A filosofia da história de Kant sugere conter em

si, por meio da definição do que é o indivíduo na modernidade, a pretensão de nos fornecer

uma solução. O fio condutor, portanto, ao qual Kant está preso, aparece como a resposta

sobre indagações que envolvem as relações entre indivíduos, a constituição do estado e a

relação entre estados – o projeto da paz perpétua. Nossa intenção aqui é tentar observar

este percurso: a formulação universalista do direito kantiano e a influência deste na

filosofia política de Kant. Ao considerar estas questões, poderemos voltar os nossos olhos

para os herdeiros do legado kantiano que, ao valorar enormemente o ideal cosmopolita,

lidam com questões que não estavam presentes no horizonte do pensamento de Kant.

***

Ao propor a sua definição do que seria o esclarecimento, Kant delimita, fixa, uma

concepção do indivíduo moderno enquanto tal. A modernidade, portanto, é o momento

histórico que permite o esclarecimento. Este, por sua vez, é a saída da menoridade do

indivíduo, o que o torna, livre e racional – leia-se, autônomo. Esta definição de Kant pode

ser considerada como o ponto de partida de sua filosofia, segundo a qual na liberdade

individual reside a junção de dois aspectos essenciais: o liberalismo da política e a

autonomia do indivíduo que formam a sua concepção de direito e de Estado republicano.

Em linhas gerais, deste modo, podemos definir para os nossos propósitos, a acepção

kantiana do indivíduo esclarecido que nasce em meio ao florescimento do espírito do

iluminismo.

Em sua resposta à pergunta O que é esclarecimento? Kant apresenta as condições

para estabelecer a filosofia iluminista em seu tempo, ao definir como solução, para a saída

da menoridade, a individualização do entendimento, da coragem para definir o caminho a

ser percorrido em um traçado original. Ou seja, o entendimento que significa

esclarecimento é a própria idéia de felicidade individual sem a direção de outro individuo:

Tem a coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento,

disse Kant. O esclarecimento revela a transformação nos modos de pensar e, deste modo,

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opera em uma lógica que é lenta e gradual. Este processo, para Kant, constitui uma

modificação que é superior à própria revolução. Isto, que por muitos pôde ser caracterizado

como o aspecto conservador na filosofia kantiana, foi lido por outros como o único

caminho para estabelecer a autonomia individual que não surge na desordenada revolta da

multidão:

Por isso, um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento (Alfklärung). Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos, servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento (Kant, 1982, 104).

O que nos é permitido concluir por meio desta definição, portanto, é o caminho que

conduz ao entendimento, ou melhor, qual o meio que permite o acesso à maioridade. O que

acarreta o entendimento, o aspecto que o permite florescer em toda a sua força é a

liberdade. Esta definição de liberdade, que neste escrito kantiano é assegurada pelo uso

público da razão é sempre definida como a liberdade individual, de pensamento do sujeito.

A liberdade enquanto uso público da razão permite, ao indivíduo, fazer um uso público de

sua razão em todas as questões5. A liberdade, portanto, de discordar publicamente,

assegura, ao mesmo tempo, a autonomia do indivíduo e a ordem política. Pois, em sua

definição de uso público da razão não estaria, de modo algum, presente a intenção em

ameaçar, de fato, o status quo político.

Isto se deve, em linhas gerais, à ausência, em Kant, de uma definição do conceito

de liberdade que ultrapasse o indivíduo, ou seja, de uma definição que qualifique a

liberdade de tal modo a significar uma liberdade em âmbito coletivo. A relação proposta

por Kant é individual, pois é na relação entre indivíduos que a liberdade deve ser

assegurada. Assim sendo, o próprio exercício desta liberdade resulta no livre raciocinar e

questionar na esfera pública. Ou seja, se a esfera política alcança o seu ideal ao legislar uma

lei que poderia ter o consentimento de todos, mas, uma vez não alcançado este ideal, “(...)

se franquearia a qualquer cidadão, especialmente ao de carreira eclesiástica, na qualidade

5 Kant; 1982, 104.

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de sábio, o direito de fazer publicamente, isto é, por meio de obras escritas, seus reparos a

possíveis defeitos das instituições vigentes”6.

O pensamento livre, portanto, consiste no grau de liberdade necessário para abrir a

possibilidade de modificação. O aspecto que denota a transformação é reservado ao

individuo que pensa por si só. Ao povo, enquanto multidão, fica reservada a influência que

o embate na esfera publica exerce sobre o seu modo de pensar. Mas esta condução é

garantida pela política. A república é a única situação possível para a concepção de direito

kantiano que atende ao clamor da liberdade individual. Ou seja, é a partir de uma

determinada concepção da política, qual seja do governo republicano, que permite se pensar

sobre a existência desta liberdade. A liberdade é o fundamento; o direito, o seu exercício; e

a república, o seu lugar por excelência.

Dito isto, talvez seja interessante executar uma explicitação mais aprofundada dos

conceitos kantianos que permitem entender a relação entre liberdade dos indivíduos

(felicidade) e a constituição civil – os fundamentos do direito; e entre moral e política – os

fundamentos da república. Isto nos permitiria, de forma sintética, estabelecer a formulação

kantiana da república. A partir disto, ao mencionarmos a concepção de Kant da história sob

um ponto de vista cosmopolita, procuraremos entender a missão do projeto da paz perpétua

e, conseqüentemente, da necessidade de que a relação entre Estados seja uma relação entre

Estados republicanos e, como deste modo, opera-se o conceito de direito cosmopolita.

Compreender assim, o sistema filosófico (e político) de Kant nos permite apreender o modo

de atuação da política – leia-se Estado – neste contexto.

Em sua conceituação sobre a liberdade interna e liberdade externa, ou melhor,

naquilo que envolve a esfera do dever e da coação, respectivamente, o direito é o lugar das

relações externas, logo, da garantia externa da liberdade. Entendendo, assim, a coação do

direito efetivado positivamente, o Estado é o lugar da concretização do dever descrito como

imposto internamente em um plano ideal. O Estado em sua relação com o direito o é,

portanto, em sua forma republicana. O que desejamos afirmar é: o ambicioso projeto

presente na filosofia iluminista de Kant, do seu ideal de progresso humano, não pode abrir

mão da força para a sua concretização. É pela força que se consolida um ideal do direito

6 Kant; 1982, 114.

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público fundado em um princípio universal, tanto no interior dos Estados quanto nas

relações internacionais.

Há, em Kant, uma teoria que remonta a passagem do estado de natureza para o

estado civil, do contrato originário e do conteúdo do contrato social. Abordar estes pontos é

de suma importância para compreender a concepção kantiana do Estado liberal. Para

compreender esta fecunda discussão, o ponto de partida consiste em uma passagem – de um

plano a outro - de um dado que é eterno e universal: o direito natural. Ou seja, a passagem

do estado de natureza para o estado civil não consiste na recusa do primeiro pelo segundo;

o que ocorre é uma defesa dos direitos naturais através de uma transformação que visa a

organização para que seja assegurada o princípio da lei universal. Deste modo, o estado

civil é instituído para assegurar a liberdade dos indivíduos: atue externamente de maneira

que o uso do teu livre arbítrio possa estar de acordo com a liberdade de qualquer outro

segundo uma lei universal. O ponto-chave aqui é o conceito de liberdade com o qual Kant

formula este principio do direito. Como o filósofo afirmou na terceira secção da

fundamentação da metafísica dos costumes, o conceito de liberdade é a chave da

explicação da autonomia da vontade7:

A vontade é uma espécie de causalidade dos seres viventes, enquanto dotados de razão, e a liberdade seria a propriedade que esta causalidade possuiria de poder agir independentemente das causas estranhas que a determinam; assim como a necessidade natural é a propriedade que tem a causalidade de todos os seres desprovidos de razão, de serem determinados a agir sob a influência de causas estranhas (Kant; 1964, 111).

Esta passagem em Kant, qual seja do estado de natureza para o estado civil; do

estado não-jurídico para o estado jurídico, é a via que estabelece uma condição perene para

um momento provisório reinante no estado de natureza. Deste modo, o estado civil não é,

de modo algum, constituído para anular o direito natural e sim, para garantir a sua

existência por meio do direito estatal (coação). Nesta relação de continuidade entre o direito

natural e o estatal, estaria o fundamento do contrato que, por sua vez, permitiria a

manutenção da liberdade dos indivíduos e, conseqüentemente, de um contrato fundado

entre os homens livres e iguais. A premissa básica seria a de que os homens, que em um

7 Kant; 1964, 111.

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estado de natureza são livres e iguais, estabeleceriam o contrato social para a manutenção

dessas características naturais. Este contrato, entretanto, não é um fato histórico passível de

constatação; constitui-se, portanto, como uma simples idéia da razão8. O que torna possível

tratá-lo - ao defini-lo como racional – como universal9.

O ponto que envolve a menção acima, do contrato entre homens livres e iguais,

também parte de uma premissa ideal, pois isto aparece como algo ideal a ser buscado pelo

Estado que levaria, por si só, a cabo a missão de estabelecê-lo. Ou seja, o pressuposto

consenso que legitimaria o contrato é, de fato, ideal. Isto significa que não há, aqui, a

possibilidade, nem a intenção de se abrir mão da política enquanto instrumento para a

concretização da teoria. Nas palavras do comentador Bobbio:

Significa que o Estado não é de fato fundamentado no consenso, mas deve estar fundamentado no consenso, ainda que de fato tenha-se originado da força. Significa em outras palavras que o consenso é um ideal a que o Estado deve visar, é uma exigência na qual qualquer Estado deve inspirar-se. Não é um acontecimento empírico, mas um ideal racional que, enquanto tal, vale independentemente da experiência (Bobbio;1992, 125).

Para melhor explicitar esta passagem, vale lembrar que, a via que institui o estado

civil, é o caminho que se percorre animado por um dever moral. O Ideal (o consenso que

fundamenta o contrato) que se materializa no Estado, está no cerne da concepção do

governo republicano de Kant. Logo, a lei moral é aquilo que visa o estabelecimento da

constituição civil. Para compreender este percurso, podemos mencionar a formulação na

teoria de Kant que analisa este movimento da perspectiva do indivíduo. Sendo a passagem

do estado de natureza para o estado civil o momento de inserção, nas relações entre

indivíduos, do dever do cumprimento da lei moral (que o meu arbítrio possa coexistir com

o arbítrio do outro) não mais provisória, mas, peremptória - e é, portanto, assegurada

definitivamente -, o estabelecimento do direito, nesta relação, é a obrigação, por meio da

8 “(...) não se deve de modo algum pressupor necessariamente como um fato (e nem sequer é possível pressupô-lo); como se, por assim dizer, houvesse primeiro de provar-se a partir da história que um povo, em cujo direito e obrigações entramos enquanto descendentes, tivesse um dia de haver realizado efetivamente um tal ato e nos houvesse legado oralmente ou por escrito uma notícia segura ou um documento a seu respeito, para assim se considerar ligado a uma constituição civil já existente” (Kant; 2004, 83).9 Esta afirmação pode levantar controvérsias: na seqüência desta afirmação Kant menciona a necessidade do legislador levar em consideração a relação da razão (de onde emana as leis) com a realidade de um povo. Ou, como na edição de Cambridge University Press, o termo utilizado é nation.

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coação, para o cumprimento do dever. É um dever, pois, como Kant afirmou, o estudo da

moral não significa aprender a nos tornarmos felizes, mas como seremos dignos de

felicidade. Neste ponto, temos portanto, a diferenciação entre o dever e a busca da

felicidade; entre a finalidade no plano individual e o dever da lei moral que se constitui

como um meio para o alcance deste objetivo. E é como um meio que o direito se funda

nesta relação.

É isto que nos impele a pensar sobre o modo como se articulam, no pensamento

kantiano, a busca da felicidade e a obediência ao dever. O dever, dirá Kant em teoria e

prática, nada mais é do que a restrição da vontade à condição de uma legislação universal,

possível mediante uma máxima admitida, seja de qual ordem for o objeto desta vontade

(incluindo a felicidade). Não inclui, portanto, a felicidade, pois esta é individual. A

obediência ao dever se impõe como o cumprimento da lei moral, imposta pela razão10.

Deste modo, podemos afirmar que, a ação dotada de moralidade segue os seguintes

pressupostos:

1) a ação moral é a que é realizada não para obedecer a uma certa atitude sensível, a um certo interesse material, mas somente para obedecer à lei do dever (...). 2) ação moral é aquele que é cumprida não por um fim, mas somente pela máxima que a determina (...). 3) a ação moral é aquela que não é movida por outra inclinação a não ser o respeito à lei. Na conduta moral, cada impulso subjetivo compatível com a moralidade é o sentido de respeito à lei moral, que deve vencer qualquer inclinação (bobbio; 1992, 54).

No entanto, há uma importante distinção em Kant: a moralidade diz respeito a uma

legislação interna. E é interna por ser objeto da razão. A ação é moral, portanto, quando há

uma adesão interna às leis, ou seja, o intuito, a intenção de manter as promessas unicamente

porque é dever, sem levar em consideração qualquer outro impulso, pertence à legislação

interna. Isto se assenta na afirmativa de que, o homem que assim age, o faz

10 “(...) a razão não está suficientemente esclarecida para ter a visão de conjunto da serie das causas predeterminantes, que anunciam antecipadamente com certeza o resultado, feliz ou infeliz, da ação e gestos dos homens, de acordo com o mecanismo da natureza (embora permitindo esperar que se realize de acordo com os nossos desejos). Contudo, ela brilha para nós com suficiente claridade para sabermos o que devemos fazer a fim de permanecer na trilha do dever (segundo as regras da sabedoria) e alcançar a meta final” (Kant; 1982, 132).

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desinteressadamente, pois é pelo dever11. Contudo, para a política, este é um ponto que não

encontra solução, uma vez que, é nas relações externas que Kant se concentra em sua

filosofia política. A moralidade pode ser compreendida como a esfera da liberdade interior,

ou seja, em uma relação de mim comigo mesmo12. Esta, na visão kantiana, não pode ser

alcançada pelo Estado. O Estado, por meio do direito como instrumento, age ao regular e

ordenar as liberdades visíveis que, obviamente, se manifestam externamente. O limite,

portanto, é a liberdade interna, a consciência13, que têm, na moralidade, o seu ideal.

O que nos cabe, agora, é indagar sobre este ponto problemático na teoria de Kant:

qual a relação possível entre a legislação interna e a legislação externa? Ora, a proposta

kantiana, da ação moral, que atua internamente, pressupõe, creio eu, um indivíduo que age

por meio de uma moral ideal14. Como se fosse possível, substituir o Deus agostiniano por

uma razão pura que detêm o conhecimento da verdade, em Kant, há uma idealização do

comportamento humano (moral ideal), do homem em geral. Ou seja, qual a solução para a

relação concreta entre indivíduos particulares? Ou, como afirmou o próprio Kant nas

observações sobre o sentimento do belo e do sublime, entre os homens há somente uns

poucos que se comportam de acordo com princípios. Disto deriva a saída kantiana – em sua

filosofia política: se a teoria kantiana implica uma normatividade, função da teoria; a

política, como o lugar da prática, se apresenta como o elo possível entre a teoria e o

exercício da mesma: a política, portanto, enquanto a doutrina do exercício do dever. Pois,

A verdadeira política, afirmou Kant, não pode dar um passo sem antecipadamente ter

prestado homenagem à moral.

Dito isto, teremos de expor a transição entre a legislação interna para a legislação

externa, entre a moralidade e a legalidade. A segunda, portanto, como a possibilidade de

11 “Mas nem todo fim é moral (por exemplo, não o é o fim da felicidade pessoal); este deve ser desinteressado; mas a necessidade de um fim último estabelecido pela razão pura e englobando o conjunto de todos os fins sob um principio (um mundo como bem supremo e possível também através da nossa cooperação) é uma necessidade da vontade desinteressada, que se estende ainda além da observação das leis formais até à produção de um objeto (o bem supremo)” (Kant; 2004, 63).12 Bobbio, 59.13 “De fato, dizer-se que o direito devia contentar-se com a adesão exterior, significava dizer que o Estado, de cuja vontade a lei era a manifestação principal, não devia intrometer-se em questões de consciência, e portanto devia reconhecer para o individuo um âmbito da própria personalidade destinado a permanecer livre de qualquer intervenção de um poder externo como o Estado” (Bobbio; 1992, 60). 14 Que age, portanto, segundo um imperativo categórico: age sempre de tal maneira que a máxima de teus atos possa tornar-se uma lei geral, ou seja, nunca devo agir de tal forma que não possa querer que minha máxima se torne uma lei universal.

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agir externamente tendo em vista a primeira15. Ora, o ponto culminante é a afirmação

kantiana de se poder pensar em uma harmonização entre a moral e a política, ou, o modo

como se introduz em seu pensamento a definição de direito e, por conseguinte, de direito

público.

Afirmei anteriormente o fato de que o contrato para o estado civil reside no plano

ideal. A união dos homens, portanto, é um fim em si mesmo que pretende proporcionar aos

indivíduos a inserção em uma comunidade, mesmo que cada um tenha como projeto

pessoal a busca de fins particulares (o encontro da felicidade individual). O fim em si

mesmo (o fim comum) é a regulação, a mediação para que todos possam coexistir sem que

ninguém sofra um impedimento de outrem. Assim sendo, o direito resplandece como

condição necessária (como fim), como a concretização daquela idealização:

(...) uma tal união só pode encontrar-se numa sociedade enquanto ela radica num estado civil, isto é, constitui uma comunidade (gemen wesen). Ora, o fim, que em semelhante relação externa é em si mesmo um dever e até a suprema condição formal (conditio sine qua non) de todos os restantes deveres externos, é o direito dos homens sob leis públicas de coação, graças às quais se pode determinar a cada um o que é seu e garanti-lo contra toda a intervenção de outrem (Kant; 2004, 74).

O direito, de tal modo, ao realizar este feito, ao permitir mediante o contrato a

coexistência entre as liberdades, tem como a sua definição primeira a seguinte formulação:

o direito é a limitação da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a

liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal16. Contudo, esta

limitação é a própria coincidência da definição do direito que descrevemos acima, com a

sua efetivação, qual seja, de que a noção de direito está vinculada à noção da coação. A

15 Faço uso da explicação de Bobbio para compreender esta passagem: “Como deve ser entendido o uso que Kant faz dos atributos ‘interno’ e ‘externo’ referentes à distinção entre moralidade e legalidade? Deve-se entender, neste sentido: a ação legal é externa pelo fato de que a legislação jurídica, dita portanto legislação externa, deseja unicamente uma adesão exterior às suas próprias leis, ou seja uma adesão que vale independentemente da pureza da intenção com a qual a ação é cumprida, enquanto a legislação moral, que é dita, portanto, interna, deseja uma adesão íntima às suas próprias leis, uma adesão dada com intenção pura, ou seja com a convicção da bondade daquela lei” (Bobbio; 1992, 55-56). Mais a frente, há ainda um trecho por demais esclarecedor: “A legislação jurídica não pede ao cidadão que mantenha as promessas por respeito ao dever; pede-lhe manter as promessas, e nada mais, e o ato é aceito como juridicamente perfeito ainda que o motivo pelo qual foi cumprido tenha sido meramente utilitário, como o interesse de não ser, por sua vez, decepcionado, nas próprias expectativas, por uma promessa descumprida, ou pelo medo da sanção, etc.” (Bobbio; 1992 56). 16 Kant; 2004, 74.

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fórmula, direito mais coação, é a própria definição de Kant de direito público. E o direito

público é o conjunto das leis exteriores que tornam possível semelhante acordo universal17.

Assim, Kant estabelece a sua definição de constituição civil: é uma relação de homens

livres, que (sem dano da sua liberdade no todo da sua religação com os outros) se

encontram no entanto sujeitos a leis coercivas (...)18. Para esta definição, uma característica

do conceito kantiano de direito é essencial: para que a constituição civil não seja nociva à

liberdade dos indivíduos, o direito que regula, o faz mediante um procedimento que é

neutro. Para uma melhor compreensão, cito a definição completa de Kant sobre o conceito

de direito:

The concept of right, in so far as it is connected with a corresponding obligation (i.e the moral concept of right), applies within the following conditions. Firstly, is applies only to those relationships between one person and another which are both external and practical, that is, in so far as their actions can in fact influence each other either directly or indirectly. But secondly, it does not concern the relationship between will of one person and the desires of another (and hence only latter’s needs, as in acts of benevolence or hardheartedness); it concerns only the relationship between the will of the first and the will of the second. And thirdly, the will’s material aspect, i.e. the end which each party intends to accomplish by means of the object of his own commercial use will gain anything in the process. For we are interested only in the form of the relationship between the two wills, in so far as they are regarded as free, and in whether the action of one of the two parties can be reconciled with the freedom of the other in accordance with a universal law (kant; 1970, 133)19.

Tendo em vista a relação entre direito e coação, a definição acerca da neutralidade

do direito, permite situar a coerção como o instrumento que assegura a liberdade. Ora, ao

mesmo tempo em que a coação restringe a liberdade, o faz para assegurar a liberdade

daquele que a perdeu mediante a ação do outro. É, portanto, o elemento que transforma

17 Kant; 2004, 74.18 Kant; 2004, 74.19 Vale ressaltar que, segundo Bobbio, este terceiro atributo do conceito de direito, está na origem de uma doutrina moderna chamada formalismo jurídico. Um dos seus representantes foi o neokantiano Stammler, cuja definição de formalismo jurídico é – nas palavras de Norberto Bobbio: “o direito distingue-se da economia como a forma do conteúdo: em qualquer relação intersubjetiva o elemento material é econômico, o elemento formal jurídico. Em outras palavras, atribuir caráter formal ao direito significa dizer que o direito prescreve não tanto o que se deve fazer, mas como se deve fazer. O que eu devo fazer para regular os meusinteresses é indicado pela economia; o direito, com todas as suas prescrições, limita-se a me dizer como devo agir para alcançar, juntamente com os outros ou em concorrência dos outros, os meus fins; ou seja, limita-se a fazer de maneira que, independentemente do objeto de meu desejo, o meu arbítrio possa estar de acordo com o arbítrio de todos os outros” (Bobbio; 1992, 70).

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uma relação baseada na assimetria, transportando-o novamente para o grau de igualdade

necessária em um estado de homens livres e iguais. A coação, deste modo, é aquilo que

determina uma operação para resgatar a obrigação de que os homens devem agir segundo

um princípio universal20.

A formulação do direito público, em consonância com a fundação do estado civil,

representa um aspecto decisivo para compreendermos, à luz desses termos, a forma de

governo republicano de Kant: enquanto público, exigi-se que a situação jurídica seja

publicizada. Neste ponto reside a harmonia entre a teoria e a pratica, entre a moral e o

direito, pois, para Kant, o direito público deve ter como base a seguinte fórmula

transcendental: são injustas todas as ações que se referem ao direito de outros homens,

cujas máximas não se harmonizem com a publicidade21. Este é, portanto, um dado

intrínseco à pretensão jurídica. Kant afirma que, sem a forma da publicidade não haveria

justiça alguma (que só pode pensar-se como publicamente manifesta), por conseguinte,

também não haveria nenhum direito, que só se outorga a partir da justiça.

Estes princípios do direito, bem como, do direito público, formulados a priori,

determinam as características essenciais da constituição civil republicana, considerado

simplesmente como situação jurídica: 1) a liberdade de cada membro da sociedade, como

homem; 2) a igualdade deste com todos os outros, como súdito; 3) a independência de cada

membro de uma comunidade, como cidadão22. O ponto que envolve a publicidade garante

um outro aspecto da liberdade do homem, que envolve a possibilidade de contestação. A

rebelião, da multidão, é refutada por Kant como ilegítima, pois, não estaria em

conformidade com o próprio princípio da publicidade: A injustiça da rebelião manifesta-se,

pois, em que a máxima da mesma, se se confessasse publicamente, tornaria inviável o seu

próprio propósito23. E é, a partir disto, que Kant formula a possível válvula de escape – que

é individual – para a contestação (pública). Isto se constitui, evidentemente, não apenas

20 Nas palavras de Kant: “This right is certainly based on each individual’s awareness of his obligations within the law; but if it is to remain pure, is may not and cannot appeal to this awareness as a motive which might determine the will to act in accordance with it, and it therefore depends rather on the principle of the possibility of an external coercion which can coexist with the freedom of everyone in accordance with universal laws” (Kant; 1970, 134-35). 21 Kant; 2004, 165.22 Estes princípios, afirmou Kant, “(...) não são propriamente leis que o Estado já instituído dá, mas leis segundo as quais apenas é possível uma instituição estável, segundo os puros princípios racionais do direito humano externo em geral” (Kant; 2004, 75). 23 Kant; 2004, 166.

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como mero desejo e sim, por meio da impossibilidade em renunciar aos direitos

inamissíveis que todo homem detém. O direito de contestação, portanto, é o próprio direito

de se expressar publicamente, contra atos injustos que o soberano, por erro ou por

ignorância, venha a cometer contra os cidadãos. O direito de se expressar publicamente é a

liberdade de protesto que se faz por escrito, é o livre-arbítrio exercido em palavras:

Com efeito, admitir que o soberano não pode errar ou ignorar alguma coisa seria representá-lo como agraciado de inspirações celestes e superior à humanidade. Por isso, a liberdade de escrever – contida nos limites do respeito e do amor pela constituição sob a qual se vive, mediante o modo liberal de pensar dos súditos que aquela mesma constituição ainda inspira (e aí são os próprios escritores que se limitam reciprocamente, a fim de não perderem a sua liberdade) – é o único paládio dos direitos do povo. Pois querer recusar-lhe também esta liberdade não é apenas tirar-lhe toda a pretensão ao direito relativamente ao chefe supremo (segundo Hobbes), mas também subtrair a este ultimo, cuja vontade só em virtude de representar a vontade geral do povo dá ordens aos súditos como cidadãos, todo o conhecimento daquilo que ele próprio modificaria, se estivesse informado, e é pô-lo em contradição consigo mesmo. Mas inspirar ao soberano o receio de que pensar por si mesmo e tornar público o seu pensamento pode suscitar a agitação no Estado equivaleria a despertar nele a desconfiança em relação ao seu próprio poder, ou até o ódio contra o seu povo (Kant; 2004, 91).

A junção entre o direito de discordar e a sua manifestação pública, em uma esfera

pública, é entusiasmada na constituição política fundada, de um lado, pela obediência as

leis e, por outro, por um espírito de liberdade. Para Kant, a publicidade, a esfera do uso

público da razão, proporciona uma energia que impulsiona e dinamiza a comunidade;

podendo ser entendida como a própria concepção de liberdade, ou melhor, de liberdade

política24. E ao considerar a importância desta ação, um elemento anterior, qual seja do

pensamento livre, aponta para um componente intrínseco ao homem. Para Kant, a

emancipação humana está na comunicabilidade entre os homens. Há, na idéia de

comunicação, o significado do progresso em Kant. A expressão do pensamento permite,

por meio do diálogo, um pensar em conjunto que produz um contínuo avanço por meio da

razão humana. Neste ponto, o que está em questão é o processo de um ininterrupto

desenvolvimento da humanidade, por meio da razão. O uso da razão, para Kant, é o que une

os homens, é a própria pretensão de unidade, de humanidade. Este avanço por meio da

24 É esta a afirmação de Hannah Arendt: “A palavra ‘liberdade’ tem muitos sentidos em Kant (...); mas a liberdade política é definida, de modo inteiramente inequívoco e consistente ao longo de sua obra, como o ‘fazer uso público da razão em qualquer domínio’ (Arendt; 1993, 52).

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razão é o elemento que condiciona o sentido da história em Kant: um olhar sobre a história

que possibilite ver seu curso acima das narrativas, dos fatos e, neste nível superior,

contemplar uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que

procedem sem um plano próprio25.

No escrito intitulado, Idéia de uma história universal de um ponto de vista

cosmopolita, Kant nos apresenta o modo como concebe este sentido da história. O fio

condutor, portanto, é estabelecido pelo filósofo: aquele que consegue estabelecer esta

linearidade e que, portanto, expõe ao mundo o desenvolvimento da única criatura racional

da terra. Este texto de Kant é dividido em nove proposições que anunciam uma direção que

visa o estabelecimento da união civil entre os homens. Se o ponto de partida é universal, de

uma natureza humana, o ponto de chegada é a condição cosmopolita nas relações entre os

Estados. Em outras palavras, da concepção do homem em geral, o caminho conduz a uma

sociabilidade organizada tendo em vista uma concepção universal do direito.

O argumento kantiano origina-se, neste escrito, em determinar a unidade da espécie

humana, enquanto criatura dotada de razão. Ao mesmo tempo em que a razão distingue os

homens dos outros seres, a humanidade, por meio desta, desenvolve características que

revertem, para si, a conexão instintiva que o animal possui como primordial, no seu contato

com a natureza. O homem, portanto, se sobressai à natureza, e a domina, não pelo instinto,

mas por meio de sua própria razão. Para Kant, esta é a ponte que une o caminho no qual o

homem percorre de gerações a gerações. Por conseguinte, este não é um trajeto percorrido

sem um propósito26. Ao filósofo, cabe encontrar nesta acepção de progresso, o

desenvolvimento da faculdade natural do homem, ou seja, de sua razão.

A quarta proposição do texto Idéia de uma história universal... aborda a questão da

vida em sociedade. Ao mesmo tempo em que, ao narrar a unidade humana, Kant tem de

lidar, em sua teoria, com o que ele denomina de a insociabilidade humana, ou melhor, a

insociável sociabilidade dos homens. Segundo Kant, o homem teria uma inclinação para

associar-se, mas, no entanto, também tem em si a característica antagônica para o

25 Kant; 1986, 10.26 Na terceira proposição Kant descreve o estranho desenvolvimento que, necessariamente, deve prosseguir por toda a história humana: “o que permanece estranho aqui é que as gerações passadas parecem cumprir suas penosas tarefas somente em nome das gerações vindouras, preparando para estas um degrau a partir do qual elas possam elevar mais o edifício que a natureza tem como propósito, e que somente as gerações posteriores devam ter a felicidade de habitar a obra que uma longa linhagem de antepassados (certamente sem esse propósito) edificou, sem mesmo poder participar da felicidade que preparou” (Kant; 1986, 13).

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isolamento. O ato de isolar-se, afirma uma oposição entre os homens em uma desconfiança

mútua tipicamente hobbesiana. No entanto, Kant encontra nesta oposição um elemento

necessário para o progresso: esta oposição é a que, despertando todas as forças do homem,

o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção, pela ânsia de

dominação ou pela cobiça, a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não

atura mas dos quais não pode prescindir27.

O antagonismo, para Kant, está condicionado pelo livre-arbítrio dos homens, pela

máxima liberdade permitida pelas disposições que se encontram em sua posse. Mas, ao

considerar a inevitável sociabilidade – ou seja, a insociabilidade e a sociabilidade

constituem dois lados da mesma moeda -, a instituição de uma sociedade civil permite

administrar e conter os antagonismos. Mas, não me deterei neste ponto por ter trabalhado

anteriormente com a concepção kantiana de constituição civil. O que nos importa agora é o

problema que envolve a constituição civil republicana e a relação entre Estados. A mesma

insociabilidade que o uso irrestrito da liberdade motivou entre os indivíduos, prevalece

entre os Estados.

Para Kant, a relação justa entre Estados se impõe, em meio à custosa e confusa

convivência guerreira. Entretanto, esta relação justa depende de uma condição: todos os

Estados devem ser republicanos. É esta a afirmação que inaugura a série de artigos

definitivos em A paz perpétua. Ou seja, a constituição civil dos Estados, para que se

elimine, no horizonte internacional, a possibilidade de guerra, deve ser republicana. Assim,

a república é entendida como condição necessária à constituição civil no interior de uma

sociedade para erguê-la em um patamar mais alto, como imperativo a todos os Estados. Em

todo o mundo, portanto, é imposta aos Estados, a condição republicana. De tal modo, torna-

se possível a garantia da paz perpétua, pois,

A condição republicana, além da pureza da sua origem, isto é, de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda em vista o resultado desejado, a saber, a paz perpétua; daquela é esta o fundamento (...) Pelo contrário, numa constituição em que o súdito, que, por conseguinte, não é uma constituição republicana, a guerra é a coisa mais simples do mundo, porque o chefe do Estado não é um membro do Estado, mas seu proprietário (...) (Kant; 2004, 129).

27 Kant; 1986, 13.

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Em A paz perpétua, a condição republicana é mais uma vez reiterada por Kant,

tendo, deste modo, como seus princípios básicos, a liberdade dos membros em uma

sociedade enquanto homens; a dependência de todos em relação a uma única legislação, em

segundo lugar; e, em terceiro, a lei da igualdade entre os indivíduos enquanto cidadãos. Por

outro lado, para definir o conceito de república, Kant aponta uma diferenciação que

permitirá, aos seus sucessores, nossos contemporâneos, operarem uma breve mudança

conceitual, de Estados republicanos para Estados democráticos28. Ou seja, as formas de

Estado podem ser classificadas de duas maneiras: pelo número de pessoas que governam e,

pelo modo que governam o povo. Esta última é a forma de governo e refere-se ao modo,

baseado na constituição (...), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste

sentido, a constituição é ou republicana ou despótica29. E é republicana, quando atende ao

principio da separação dos poderes, entre o executivo e o legislativo. A separação dos

poderes é a própria idéia de um consentimento de que, o império da lei, deva ser instaurado

para exercer o controle sobre as decisões do governante; é a fórmula que garante à lei,

enquanto razão, conduzir todos os negócios humanos.

Por conseguinte, para Kant – no segundo artigo da paz perpétua -, o direito das

gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres. Uma federação, segundo Kant,

seria a possibilidade em eliminar a guerra e, portanto, a opressão por parte de um soberano

de utilizar o seu povo como instrumento da guerra. Assim, o raciocínio kantiano encontra o

seu resultado final: Os povos podem, enquanto Estados, (...) exigir do outro que entre com

ele numa constituição semelhante à constituição civil, na qual se possa garantir a cada um

o seu direito30 - que tem como fundamento, uma lei universal.

Mas, mesmo aceitando esta possibilidade, Kant ainda enfrenta outro problema: a

república garante a liberdade em uma relação onde o direito opera por meio da coação.

Seria então o caso de, nesta federação de Estados, constituir um poder acima das partes,

tomando para si o poder dos Estados? A resposta kantiana funda-se no consenso entre os

Estados em formarem uma federação antagônica à guerra: esta federação não se propõe

obter o poder do Estado, mas simplesmente manter e garantir a paz de um Estado para si

28 Faço referência, principalmente, a Norberto Bobbio em O futuro da democracia e, também a Habermas que, entre outros, faz está transição em A idéia kantiana da paz perpétua – à distância histórica de 200 anos.29 Kant; 2004, 128.30 Kant; 2004, 132.

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mesmo e, ao mesmo tempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso

(como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis públicas e à sua coação31.

Ao passo que se constitui uma federação deste tipo, duas premissas parecem estar

implícitas na teoria kantiana para atingir este propósito: a primeira é a própria afirmação

que contém o primeiro artigo, de que todos os estados devem ser republicanos; a segunda,

diz respeito à consonância entre a moral e a política. A moral, por seu turno, aquilo que

reside na pura razão, determina o dever ser; a política, por sua vez, é o campo da prática, do

exercício do dever. A relação, portanto, para Kant, entre a moral e a política, reside na ação

da segunda em conformidade com a primeira. Se há, entre a moral e a política, este fio

condutor que as une, a possibilidade de refutar a concepção de um conflito eterno entre a

teoria (enquanto moral) e a prática (o lugar da política), ganha força na teoria kantiana.

Mas, ao transferir a mesma solução para os Estados, daquilo que fora imposto nas relações

entre indivíduos, Kant acaba por dar as mesmas características para os Estados nas relações

internacionais. O antagonismo que permeava os indivíduos, por terem como finalidade,

planos de vida e escolhas pessoais; a “busca pessoal da felicidade” foi também legada à

relação entre Estados, que por objetivos próprios que não coincidem com os outros,

caminham em direção opostas.

A resposta Kantiana para este estado de natureza, que não permitem a saída

proposta para as sociedades, de leis coercivas, cujas dimensões são outras – considerando o

dever de manter assegurada, tanto a concepção de liberdade que o guia em sua teoria,

quanto os princípios para assegurá-la -, aponta, desta vez, dois elementos que permitem

conciliar, o fim definitivo da guerra e a questão da impossibilidade de uma república

mundial: a paz a ser alcançada, como desígnio do progresso humano. A federalização32

(permanente e em contínua expansão) a ser realizada com o propósito de evitar a guerra,

harmonizará a conflituosa relação entre política e moral. A federação, ao fundamentar-se no

consenso para impedir a guerra, instituirá seu estado jurídico e, por conseguinte, o direito

das gentes. E, assim como o foi para os Estados, este estado jurídico tem como premissa, o

princípio da publicidade. A publicidade garantirá a eliminação das desconfianças quanto às

31 Kant; 2004, 135.32 O impulso determinante para este consenso encontra nos indivíduos as suas grandes motivações: a opressão da guerra e o direito cosmopolita; a mesma insociável sociabilidade que motiva os homens rumo ao progresso, encontrará no espírito comercial um forte opositor à guerra.

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máximas que cada Estado venha a possuir: todas as máximas que necessitam da

publicidade (para não fracassarem no seu fim) concordam simultaneamente com o direito

e a política33.

A apresentação desta teoria pode transmitir uma leveza oportuna apenas à

organização da providência. O argumento kantiano do progresso por meio da política,

entretanto, incide, no trajeto possível para a paz, na necessidade da força. E se assim o for a

moral encerra-se na política, de tal maneira que, passa não a depender do direito universal,

mas de uma política do poder. A instituição do direito pode estar sujeita a uma coação

anterior ao direito público que levará à sua efetivação. Por mais que, no que vimos até aqui,

a política do poder em Kant, encerra-se no interior dos Estados34, a consolidação do

primeiro artigo definitivo, o primeiro passo para a perpetuação da paz, dependerá de

semelhantes circunstâncias. Esta constatação não nos abre a possibilidade para acusar Kant

por abrir precedentes para o uso da força na relação entre Estados. Entretanto, a teoria

kantiana da paz perpétua, funda-se em uma moral do político para conduzir este processo:

O político moral estabelecerá como princípio fundamental o seguinte: quando se encontram defeitos na constituição do Estado ou nas relações entre os Estados que não foi possível prevenir, é dever, primordialmente dos chefes de Estadosrefletir no modo como esses defeitos poderiam, o mais rapidamente possível, ser corrigidos, e tornados adequados ao direito natural, tal como temos por modelo diante de nossos olhos na idéia da razão, mesmo que custe sacrifícios a seu amor-próprio. Ora, o rompimento de uma ligação da união dos Estados ou de uma coligação internacional, antes de estar pronta uma melhor constituição para ser colocada em lugar da primeira, neste ponto é contrário a toda sabedoria política concorde com a moral; seria na verdade absurdo exigir que aquele defeito fosse modificado imediata e precipitadamente. Pode-se entretanto exigir que seja sentida o mais intimamente possível pelo detentor do poder ao menos a máxima da necessidade de uma tal modificação a fim de permanecer constantemente próximo da finalidade (Kant; 1982, 136).

33 Kant; 2004, 170.34 “Sem duvida, a vontade de todos os homens individualmente de viverem em uma constituição legal de acordo com os princípios da liberdade (a unidade distributiva da vontade de todos) não é suficiente para esse fim, mas exigi-se que todos juntos desejem este estado (a unidade coletiva das vontades unidas); esta solução de um difícil problema é ademais exigida para que se constitua a totalidade da sociedade civil. Como, por conseguinte, a esta diversidade das vontades particulares de todos deve-se ainda acrescentar uma causa unificadora delas, para engendrar uma vontade comum, o que nenhum dentre todos pode conseguir, não se pode contar, para a execução daquela idéia (na prática), com nenhum outro começo da condição legal senão o começo pela força, sobre cuja coação posteriormente será fundado o direito público. Portanto, sem dúvida (além disso pode-se contar pouco com a intenção moral do legislador de deixar, depois de uma judiciosa reunião de uma multidão inculta em um povo, que este, pela vontade comum, realize uma constituição legal) deve-se esperar já antecipadamente grandes desvios daquela idéia (da teoria) na experiência real” (Kant; 1982, 132).

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Atrelada à exigência de um político moral para a boa condução na construção legal

do Estado Constitucional, a liberdade de pensamento é reivindicada, mais uma vez, como o

lugar do filósofo35 e que, portanto, deve ser resguardada para manter o ideal de um

pacifismo jurídico a ser construído em uma federação das nações. O apelo final na Paz

Perpétua soa como uma solicitação não apenas para o resguardo do exercício da liberdade

de expressão, mas também, para que se mantenha viva esta atividade transformadora da

política: As máximas dos filósofos sobre as condições de possibilidade da paz pública

devem ser tomadas em consideração pelos Estados preparados para a guerra36. Este é o

artigo com o qual Kant termina o seu escrito sobre a Paz perpétua.

Gostaria de levantar duas questões que parecem ser problemáticas quando

relacionadas à filosofia política de Kant. A primeira delas reside na condução da política

que conduz uma sociedade à república e, em segundo lugar, sobre o pressuposto da

dependência dos cidadãos, ou melhor, do apego necessário à constituição de todos em uma

única legislação comum.

Kant, ao considerar o Estado como o condutor do progresso político, amarra à sua

teoria, como condição modificadora, a força. Esta condição abre a possibilidade de

transformar, moldar o indivíduo, para exercer a sua cidadania enquanto indivíduo moderno.

De tal modo, a preocupação de Kant reside em encontrar um caminho ordenado – e

mantido em controle - para se atingir um propósito pré-determinado pela razão. O medo da

multidão, em Kant, é o receio de uma condução por meio da irracionalidade – pois a

racionalidade encontra sua morada no indivíduo. Isto, talvez, seja uma conseqüência da

conceitualização por demais abstrata do Estado Constitucional. Na junção entre filosofia e

política, a prática, a empiria, precisa solucionar os problemas concernentes aos meios para

atingir a finalidade proposta em teoria. Este é o problema com o qual a concepção

iluminista de progresso tem de lidar ao pensar a política.

Como conseqüência desta primeira questão, em segundo lugar, a relação de

dependência dos cidadãos ao Estado Constitucional, também encontra em seu sentido

abstrato, a necessidade de um respaldo concreto para a sua efetivação. Ou seja, é preciso

encontrar no princípio ideal - de que os homens livres e iguais, por meio de um

35 Na “atualização” de Bobbio, “nós diríamos hoje de maneira mais geral os homens de cultura, os intelectuais” (Bobbio; 1992, 165).36 Kant; 2004, 149.

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consentimento mútuo, instituem uma constituição civil - uma identificação para que a

concepção abstrata de igualdade encontre, de fato, uma morada real. Por meio de uma

compreensão histórica, não se pode ignorar o fato de que a compreensão da república

tornou-se possível em uma acepção de que o povo, no interior dos Estados, compartilha de

objetivos e valores comuns, mesmo que isto derive de uma construção artificial. Este trajeto

histórico fez com que o ideal kantiano da república ficasse limitado aos Estados nacionais.

Segundo Habermas, Kant não pôde conhecer, em 1795, esta força mobilizadora,

entusiasmada pela idéia de nação: o nacionalismo foi certamente um veículo da

transformação de súditos em cidadãos ativos que se identificam com o Estado a que

pertencem37.

37 Habermas; 2002, 193.

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Capítulo 2. Nações e nacionalismos: a concepção de povo na formação dos Estados nacionais.

2.1 A concepção de humanidade e a nação como povo: a influência de Herder.

Kant, em sua filosofia da história concebe o mundo por meio de uma crença no

ideal de progresso da humanidade, assegurada por meio da razão, assim como Santo

Agostinho depositava na imagem de Deus, acima da razão interior, a expectativa de ao

compreender qual o lugar da verdade, delimitar a totalidade do mundo. A resposta de

Herder, contemporâneo de Kant, pode ser descrita como o momento da transição entre o

ideal kantiano e a ascensão daquilo que o recusa: a nação.

Afirmar que Herder é um divisor de águas, entre estas duas coisas, significa afirmar

que, ao imprimir críticas fortes ao iluminismo, eleva a nação a uma esfera primordial na

formação do indivíduo. Entretanto, a noção iluminista de progresso, de que a história

humana caminha em contínuo progresso, ainda está presente em Herder. Esse olhar sobre a

história humana é a maneira que permite, em seu contexto, operar por meio de uma

linguagem própria do seu tempo. Mas Herder o faz segundo traçados que são originais: a

finalidade perde seu espaço para o meio responsável pela formação (como construção) do

indivíduo: a nação como o centro de gravidade. Não por acaso, Herder aceita o constante

desafio em conciliar o nível nacional e o nível da totalidade humana, pois pressupõe a

nação como aberta à história.

Se o nacionalismo é, realmente, fruto de alguma teoria, poderemos marcar o seu

ponto de origem em Herder. Mas esta afirmação não deve ser tomada com a intenção de

atribuir ao pensamento herderiano a formulação do nacionalismo em sua manifestação

moderna. O nacionalismo pode ser lido como relacionado a diferentes fatos e processos e

não apenas como obra de uma única mente. Ou seja, as implicações políticas do

nacionalismo foram conseqüências impensáveis por Herder, pois a relação entre o

fenômeno em questão e a política, manifestou-se em fatos que são posteriores. Há uma

humanidade em progresso em Herder que corrobora esta afirmação. Entretanto, é

justamente na articulação entre nação e cultura proposta por Herder, que o nacionalismo

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obtém a força necessária para transformar-se em um dos fenômenos mais importantes dos

dois séculos que sucederam aos eventos da Revolução Francesa.

Em primeiro lugar, ao abrir as páginas de Herder, o que encontramos é uma das

fontes mais fecundas que alimentou o pensamento romântico na Alemanha. Em segundo,

como afirmou Charles Taylor, Herder pode ser identificado como a mais marcante das

primeiras formulações da corrente de pensamento denominada Expressivismo: de certo

modo, isso pode ser visto como um protesto contra a visão prevalecente no iluminismo

acerca do homem – como sujeito e objeto de análise científica objetificadora. O foco da

objeção era uma visão do homem como sujeito de desejos egoístas, em relação aos quais a

natureza e a sociedade meramente forneciam os meio de satisfação38. A contraposição

exposta por Herder, indicava uma visão alternativa do homem, como um objeto expressivo,

ou seja, a unidade do homem determinada por um núcleo exterior a ele próprio e que o

ilumina, de fora para dentro. O núcleo, portanto, da formação do indivíduo, é a sua cultura.

Esta, por sua vez, é sustentada pela unidade da comunidade: a comunidade possui, ela

mesma, em seu próprio nível, uma unidade expressiva39.

Ao contrário de uma concepção iluminista, onde a sociedade é definida como o

meio para a busca individual da felicidade, o expressivismo a define como a própria fonte

da felicidade humana. O sentido da felicidade, portanto, para Herder, depende estritamente,

da cultura que a molda e a determina. O homem é o que é, segundo uma cultura que o

alimenta enquanto indivíduo. De tal modo, Herder especifica uma definição de povo (volk)

contendo em si uma autêntica unidade:

O volk como Herder o descreve é o portador de uma determinada cultura que sustenta os seus membros, que só podem se isolar ao preço de um grande empobrecimento. Estamos aqui no ponto de origem do nacionalismo moderno. Herder pensava que cada povo tinha seu próprio tema norteador, sua própria maneira de expressão, únicos e insubstituíveis, que nunca deveriam ser suprimidos e que jamais poderiam simplesmente ser substituídos por nenhuma tentativa de imitar os costumes dos outros (como muitos alemães instruídos tentaram imitar os philosophes franceses) (Taylor; 2005, 13).

Em sua obra sobre filosofia da história, Herder, na primeira secção, apresenta um

panorama que demonstra a existência de uma unidade humana em sua origem: quanto mais

38 Taylor, Hegel, 12.39 Taylor, Hegel, 13.

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se clarifica a investigação das épocas mais recuadas da história universal, (...) tanto mais

plausível se torna, a cada nova descoberta, a idéia de que a origem da globalidade do

gênero humano foi uma só40. Conseqüentemente, podemos atribuir a Herder, uma

concepção de história que a aprecia enquanto imprime ao passado um valor positivo.

Lembremos como contraponto, por exemplo, a filosofia da história kantiana. Para Kant, a

história de um ponto de vista cosmopolita, deveria ser traçada a despeito dos fatos e das

narrativas dos homens. O propósito da história é o de se cumprir àquilo que é, ao mesmo

tempo, estabelecido a priori e que projeta para o futuro a sua concretização. Na filosofia de

Herder, um olhar sobre a história deve conter nos fatos o meio para a compreensão da vida

humana41. Conhecer o passado é compreender o presente; e é em cada contexto específico

do presente que reside a possibilidade de construção do futuro. Assim, ao atribuir ao

passado um valor positivo, uma enorme importância é conferida – na filosofia da história

de Herder – à história de cada povo.

Ao relatar cada momento histórico à luz de relatos sobre os povos, Herder opera

segundo um relativismo que, ao mesmo tempo, tenta dar conta da unidade da espécie

humana. Ou seja, em cada período da história – dos gregos, egípcios, romanos -, em cada

povo com a sua forma específica, uma totalidade os envolve e estabelece uma continuidade

de um período ao outro. Assim, Herder pode proferir sua crítica ao eurocêntrismo, ao

pensar o seu tempo a partir da influência que este sofreu dos períodos remotos42. A nação,

40 Herder; 1995; 07.41

“Se hoje, em vista da enorme acumulação de forças e de capacidades encontramos já desenvolvidas à nossa disposição, em vista da rápida circulação das energias que nos percorrem e da sucessão acelerada das nossas emoções, das fases da nossa vida ou dos planos que vamos arquitetando – sucessão na qual cada etapa se apressa a perseguir e a aniquilar a que a antecede, à semelhança do que acontece com as bolhas de um líquido -, em vista ainda da relação tantas vezes contraditória entre a força e a reflexão, entre a capacidade e a ponderação, entre as disposições e a boa vontade, como é próprio de um século de decadência, se em vista de tudo isto parece ser de uma sabedoria calculada e intencional o fato de um grande conjunto de forças pueris serem moderadas e ao mesmo tempo garantidas por uma duração breve, impotente, do jogo da vida, então, inversamente, não terá sido imprescindível aquela longa vida dos patriarcas, aquela vida comparável à das arvores, calma e quase eterna, para que a humanidade se pudesse enraizar e estabelecer no que toca às suas primeiras inclinações, aos seus primeiros costumes e instituições?” (Herder; 2005, 08-09). 42 É impressionante o modo como Herder refuta os argumentos eurocêntricos do seu tempo. O seu clamor é por uma compreensão, de cada tempo e lugar, que permita um olhar livre de preconceitos: “(...) volta a ser loucura querer isolar das circunstâncias de lugar e de tempo, e daquela idade juvenil do espírito humano, uma única virtude egípcia e avaliá-la com o instrumento de medida próprio de um tempo diferente! Se é verdade que, como disse atrás, já os gregos enganavam tão flagrantemente sobre os egípcios, parece-me que o nosso primeiro pensamento deveria ser o de os ver apenas no seu lugar próprio, porque doutro modo, sobretudo na nossa perspectiva de europeus, não conseguiremos ver mais do que uma caricatura totalmente deformada. O

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portanto, mesmo que fechada em si mesmo, é uma extensão daquilo que existiu em tempos

remotos:

(...) veja-se como era detestável e repugnante aos olhos do egípcio a vida do pastor e tudo o que dela faz parte! Tal como depois o grego, mais refinado, se elevou também acima do egípcio que lhe parecia um animal de carga. Era apenas a repugnância do rapazito pelas fraldas da criança, o ódio do adolescente pela escola que aprisiona o rapaz. Mas no seu conjunto são três momentos sobrepostos numa inseparável seqüência. O egípcio não teria sido egípcio sem o ensino ministrado à criança no Oriente e o grego não teria chegado a ser grego sem a aplicação escolar dos egípcios. A repugnância dos que vêm depois mostra que houve desenvolvimento, progressão, que se foram subindo os degraus da escada!(Herder; 1995, 20).

Nesta analogia do desenvolvimento humano com os degraus de uma escada, o

argumento da providência é determinante – assim como em Kant -, para compreendermos

qual o sentido desta eterna ascensão da história da humanidade. Se há uma única orientação

para o gênero humano, que o conduz, em cada tempo e lugar, em contrapartida, a busca da

felicidade é feita por meios e modos diferentes. É assim, pois Herder recusa o apriorismo

kantiano ao conferir a possibilidade de configuração e reconfiguração em cada comunidade

e período histórico. O futuro dos indivíduos dependeria, nesta perspectiva, desta

configuração acoplada a cada contexto. Sem isto o que há é imposição e deformação. Neste

ponto, Herder foi um defensor da descentralização política, ou melhor, de um

desenvolvimento natural do Estado e não, de uma formulação teórica deste que se impõe,

de cima para baixo43. O Estado centralizado, diz Herder, pode tirar de nós aquilo que é

essencial, ou seja, nós mesmos. Para corroborar esta afirmação, afirmou Isaiah Berlin: não

existe nada contra o qual ele lutasse mais eloqüentemente que o imperialismo – o

esmagamento de uma comunidade por outra, a eliminação das culturas locais pisoteadas

pela bota de algum conquistador44.

De tal modo, podemos entender qual é a perspectiva de Herder ao observar a

formação do indivíduo. A imagem do nós, ameaçada pelo imperialismo, é aquilo que, na

desenvolvimento fez-se a partir do oriente e da infância. Era natural, portanto, que a religião, o temor, a autoridade e o despotismo continuassem a ser o veiculo da formação cultural (...)”(Herder; 1995, 21). 43 A questão da autodeterminação é um tema importante em Herder quando tratamos da centralização política: “(...) a reforma política deve vir de baixo, porque mesmo quando o homem abusa mais desprezivelmente de sua liberdade, ainda se conserva rei, já que ele ainda pode escolher, nem que escolha o pior; ele pode mandar em si mesmo, nem que seja para decidir ser uma besta” (Berlin; 1982, 159).44 Berlin; 1982, 144.

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profundidade da nação, constrói noções do que é o indivíduo e que, por sua vez, depende da

determinação do espaço e do tempo. A autenticidade do indivíduo está sujeita a uma

construção de nós mesmos, enquanto uma unidade nacional. Para compreender esta

premissa, exige-se um grau de conhecimento e de respeito perante cada nação: seria

preciso começar por simpatizar com uma nação para poder chegar a sentir cada uma das

suas inclinações, das suas ações, para as poder sentir em todas em conjunto, para

encontrar a palavra cuja riqueza nos permitisse pensar tudo o que a essa nação respeita!45

A importância que é dada por Herder à nação consiste, portanto, em delimitar o espaço de

desenvolvimento do indivíduo. Talvez, este seja o ponto que culmina em seus argumentos

contra o iluminismo. Para Herder, as distinções estabelecidas pelo iluminismo, sobretudo,

por Kant, entre matéria e espírito; entre a razão e a experiência, que consiste em um

processo de interiorização do homem, lhe soavam como artificiais, não correspondendo

com a realidade. Essas abstrações, portanto, que davam os primordiais contornos aos

conceitos universais, totalizantes, do iluminismo, para Herder, distorciam o mundo da vida:

Nada se vai desenvolvendo sem que para tanto haja motivações próprias de uma época, de um clima, das necessidades, das circunstâncias envolventes, do destino. Separadas de tudo o resto, as inclinações e as potencialidades que possam estar adormecidas no coração nunca se transformam em capacidades práticas. Uma nação pode, pois, por um lado possuir virtudes da mais sublime espécie e por outro apresentar carências, produzir exceções, mostrar contradições e incertezas capazes de espantar. Mas de espantar apenas aquele que transporta sempre consigo uma falsa imagem ideal da virtude, extraída do compêndio posto em voga pelo seu século, aquele que tem filosofia suficiente para querer encontrar o mundo inteiro quando olha para um pequeno pedaço de território” (Herder; 1995, 38).

De tal modo, em Herder, a felicidade do indivíduo está intimamente conectada à

felicidade nacional. A nação para Herder pode ser entendida de forma mais acentuada se a

compreendermos como aquilo que cria um vínculo, como aspecto preponderante da

solidariedade social existente em um povo. A nação, aqui, além de relacionada com o

conceito de povo, está em forte conexão com uma concepção do que é cultura. Ou seja, a

nação não está imbuída, na sua origem, de um conteúdo político e, sim, representa formas

de vidas específicas, que nascem, vale lembrar, da experiência, de um contexto histórico e

lingüístico: uma nação é feita do que ela é pelo seu ‘clima’, educação, relações com os

45 Herder; 1995, 35.

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vizinhos e outros fatores mutáveis e empíricos, e não por uma essência íntima impalpável

ou por um fator inalterável, como raça ou cor46. Os grupos humanos, portanto, para Herder

são formados por suas tradições, memórias comuns. Uma linguagem, por conseguinte,

detêm o caráter formador de uma nação. Ou seja, para entender, o que de fato consiste o

conceito de nação em Herder, é necessário elevar a linguagem como elemento central47:

Os grupos humanos, grandes e pequenos, são produtos do clima, da geografia, das necessidades físicas e biológicas, e outros fatores similares; eles estão formados unitariamente pelas tradições e memórias comuns, das quais o principal elo e veículo – aliás, mais do que veículo, a verdadeira encarnação – é a linguagem (Berlin; 1982, 149).

Em contexto alemão posterior, um debate lançou mão de concepções que

determinariam o futuro da Alemanha como comunidade política até, pelo menos, 1945. A

lembrança desses momentos foram cruciais tanto para Dolf Sternberger48, ao utilizar pela

primeira vez o conceito de patriotismo constitucional, quanto para Habermas que passou a

utilizá-lo um pouco antes da queda do muro de Berlin, em meio a chamada disputa dos

historiadores49. Este debate alemão, de intelectuais alemães, fora crucial para a questão da

unificação política alemã. O que estava em jogo era a resposta à pergunta: o que é um

povo?50 O conteúdo que ofereceu uma substância à resolução dessa questão delimitou um

campo intelectual e político na Alemanha que teve como conseqüência a conclusão de que

a nação como povo determinava o sentido da unidade política. Ou seja, o conceito de nação

- que ficou conhecida como a nação romântico-político herderiana - derivado deste debate,

legitimaria a formação de um Estado, a sua circunscrição territorial e a base da

solidariedade entre os cidadãos.

46 Berlin; 1982, 147.47 Para um estudo sobre a questão da linguagem em Herder, ver: “A importância de Herder”, in TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo, Edições Loyola: 2000.48 Dolf Sternberger foi um filosofo e cientista político alemão (1907 – 1989), conhecido por utilizar pela primeira vez o conceito de patriotismo constitucional.49 Foi no contexto da polêmica conhecida como a “disputa dos historiadores”, poucos anos antes da queda do muro de Berlim, que Habermas passa a empregar, pela primeira vez, a expressão patriotismo constitucional. O que, para Habermas, em face dessa disputa, estava em questão era dar uma resposta consistente ao grave problema de identidade política acerca de como os alemães, após a experiência totalitária do nazismo, do holocausto e dos campos de concentração, poderiam reconciliar-se com sua própria história. 50 Aqui, sigo basicamente o texto. O que é um povo? Acerca da autocompreensão das ciências humanas no pré-março, com base na assembléia de germanistas de Frankfurt em 1846. (Habermas; 2001).

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A assembléia de germanistas de Frankfurt em 1846 teve dois propósitos como meta:

a primeira, dizia respeito à unificação de três disciplinas alemãs, o direito alemão, a história

alemã e a língua alemã. Com isto, o objetivo era o de propiciar a institucionalização de uma

comunicação entre as áreas. A segunda meta e que constituí a do nosso interesse era uma

conseqüência do objetivo inicial: o encontro entre os intelectuais vestiu-se de intenções

políticas51. Ou seja, os iniciadores estavam evidentemente conscientes de que uma

assembléia pangermânica de cientistas das humanidades germanistas seria percebida

como um evento político52. E era também um evento político, pois respondia, a sua maneira,

aos eventos políticos que estavam a acontecer durante a segunda metade do século XIX.

Isto significava que, os intelectuais imbuídos do espírito do romantismo, encarnariam a

vocação de intérpretes do espírito do povo.

A definição de povo corresponde aquilo que Jocob Grimm afirmou em uma sessão

da assembléia: o espírito do povo é a essência das pessoas que falam a mesma língua. Com

isto, entra em questão, na relação entre povo e língua, uma concepção de que é possível

demarcar, apontar, aqueles que pertencem a uma comunidade lingüística, aqueles que se

apresentam como um povo delimitado espacialmente e temporalmente. De tal modo, se

estabelece a tendência em definir o conteúdo da nação em seu passado que, graças às

pesquisas científicas, não corresponderiam a um passado imaginado: o estudo da língua

germânica representava, por si só, um estudo que permitia compreender o significado da

nação alemã.

É nítido o fato de que os sábios das assembléias estavam a pensar essas questões sob

a influência de filósofos que escreveram antes de 1846. Como, por exemplo, Fichte e

Herder: a célebre frase de Herder toda nação possui em si o seu ponto central de felicidade

assim como toda a esfera o seu centro de gravidade, repetida muitas e muitas vezes,

permanecia, durante todo o tempo, como o pano de fundo, o ponto de partida para a

definição dos conceitos ali propostos.

Com esta visão, portanto, da nação como o centro da felicidade, a percepção

dos lingüistas encontrou apoio para a concepção por eles desenvolvida: da nação como algo

natural, orgânica. Deste modo, as disciplinas das ciências humanas abriram espaço para um

51 “a segunda meta, para além das carências disciplinares, era uma demonstração – ainda que contida – a favor da unificação da pátria” (Habermas, 2001, 08).52 Habermas; 2001, 08.

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segundo passo: se a vida humana era marcada por estas definições, por uma língua que

caracterizava a nação, a sua existência enquanto comunidade política deveria se constituir

como conseqüência de uma unidade natural:

“Com a imagem de mundo das Ciências Humanas, abriu-se uma perspectiva a partir da qual a união política da Alemanha se mostra como uma conclusão atrasada de uma unidade da nação culturalmente há muito formada. Ao corpo-do-povo (Volkskörper), definido pela cultura e pela língua, faltava apenas o vestido político adequado. A comunidade lingüística deveria ser, no Estado nacional, recoberta pela comunidade jurídica. Pois toda a nação, assim parecia, possuía a princípio um direito de independência política” (Habermas; 2001, 16).

Dito isto, Habermas apontou algumas incongruências, alguns problemas nesta

definição que eleva para a esfera política uma nação cuja substância é pré-política. Duas

questões são essenciais para compreender os argumentos que levam Habermas a refutar a

concepção formulada segundo o movimento da nação para o Estado: primeiro, o ponto que

envolve o direito alemão e o Estado constitucional democrático; em segundo, a relação do

par nação-povo com os conteúdos universalistas do liberalismo político.

Se a lingüística resolvera, em seus termos, os problemas referentes à unidade

política, transferindo para a nação cultural a origem de todo o processo, os juristas, por sua

vez, teriam maiores problemas ao tentar formular o direito alemão segundo a história

alemã. A concepção central para os juristas era a de que o direito deveria corresponder aos

hábitos do povo. Deste modo, a recepção do direito estrangeiro destruiria a legitimidade

assentada nos costumes e nas tradições. Entretanto, ao traçar a história do direito alemão

para que fosse possível avaliar conteúdos democráticos nas protocomunidades germânicas e

assembléias campesinas, as reivindicações dos liberais, quanto à liberdade de imprensa e

direitos fundamentais, não encontravam respaldo em fontes do direito germânico. Ou seja,

alguns aspectos capitais para a consolidação do Estado constitucional democrático,

necessitavam de uma concessão a princípios universais. Princípios estes que poderiam ser

visualizados nos ideais de liberdade provindos das revoluções americana e francesa53.

Deste modo, ao tratarmos da relação entre nação-povo e o liberalismo político, não

há, de modo algum, para Habermas, como pressupor uma afinidade anteriormente dada. Por

53 “Novamente, diz Habermas, fica manifesto que a idéia de uma nação-povo originariamente homogênea e claramente definida, que encontra a sua forma no estado nacional, é inconveniente para a proveniência universalista do liberalismo político” (Habermas; 2001, 22).

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um lado, o modo como é determinado este conceito de nação, ou seja, segundo

características rígidas, prescinde de levar em consideração a dinamicidade que exige a

pretensão popular por uma autodeterminação democrática54. Sob a influência de Fröbel,

Habermas é categórico ao afirmar que o laço de fraternidade, de vínculo entre indivíduos

para firmar uma vontade democrática, necessita de uma vontade livre de cada um. De tal

modo, a liberdade republicana teria precedência em relação à unidade da nação:

Para fins descritivos não serve nem um conceito de povo puramente político, nem puramente ideológico, pois povos surgem e dissipam-se ‘na marcha da cultura’. Observando normativamente, apenas o desejo de um povo pela autodeterminação democrática pode fundamentar a exigência de independência política: ‘o momento ético, livre, propriamente político no ser [dasein] dos povos é o laço de fraternidade da decisão livre’. Existe uma precedência normativa da liberdade republicana com relação à unidade da nação (Habermas; 2001, 25-26).

Entretanto, tanto Fröbel estava atento, quanto Habermas ainda está para o fato de

que a concepção de nação formulada pelos intelectuais alemães proporcionou os contornos

essenciais e necessários para a consolidação, num dado território, de uma solidariedade

social que permitiria, aos cidadãos, o reconhecimento de todos como iguais. Deste modo,

poderemos introduzir a questão que envolve este processo, qual seja da popularização da

nação. Resta-nos, agora, apresentar algumas teorias que tratam exatamente desta

popularização, do nacionalismo enquanto propulsor de uma identidade coletiva.

Este percurso que fizemos, ao tentar pensar o ponto de origem em Herder e nos

intelectuais alemães, apesar de nos ajudar a compreender em que consiste a construção

histórica do termo nação, ainda tem pouco a nos dizer sobre os processos que permitiram

desenvolver uma concepção do nacionalismo enquanto fenômeno moderno Por ora vale

mencionar, que sua expansão, do modelo de nacionalismo, encontra-se descrita em

abordagens sociológicas que nos permitem compreender de que modo a nação (cultural)

emergiu na condução da política. Ao mencionarmos a influência de Herder e a apreensão –

54 Fröbel influência, sobremaneira, o pensamento de Habermas, principalmente sobre a definição de povo, a qual acho ser necessário citar aqui: “(...) um povo é o ‘conjunto de todas as pessoas que falam uma língua em comum – (mas) elas podem efetivamente possuir essa língua como herança de uma comunidade de linhagem [Stammgemeinschaft]; ou a mesma pode ser produto de uma mistura de linhagens, com a qual o povo surgiu como um novo; ou também pode um povo ter se misturado com o outro com o abandono [Aufgebubg] total da sua própria língua... pode serm além disso, que o conjunto das pessoas que falam a língua comum conformam um único Estado, uma maioria de Estados ou uma liga de Estados; ou ele pode, finalmente, viver totalmente sem existência política, disperso, sem pátria” (Habermas; 2001, 25).

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e transformação desta no âmbito intelectual alemão, deixamos de lado a aplicação do

conceito enquanto modelo político para o mundo. Uma vez que, a concepção que pretende

superar o nacionalismo contém em si mesma uma pretensão que ultrapassa os territórios

estatais, devemos encarar o fenômeno segundo a possibilidade de que sua manifestação

pôde se alargar universalmente, devido ao legado do Velho Continente que se impôs ao

mundo.

2.1. Entre a casualidade e a determinação: o nacionalismo e sua relação com os

processos de modernização.

Ao apresentarmos uma concepção de nação em que esta é vista como algo orgânico,

natural, não é intenção nossa afirmar que uma definição como essa pode ser pensada em

qualquer tempo ou espaço. Entretanto, as suas conseqüências, qual seja do nacionalismo em

sua junção com a política moderna, definiu os rumos aos processos no interior da Europa de

períodos subseqüentes e, conseqüentemente, pôde ser exportado como modelo para outras

localidades. O seu valor, a partir de então, estava inscrito na possibilidade de desenvolver

uma solidariedade em contextos onde a necessidade de modernização impôs, para obter

sucesso, a imaginação de que havia uma unidade. Para a política, só assim um ideal de

república conseguiu, mesmo que minimamente, a sua efetivação. Ou seja, como diz Hannah

Arendt, os ideais de dignidade e igualdade entre os homens realizou-se por meio da tríade

povo-Estado-território55.

A despeito das controvérsias que o estudo dos termos nação e nacionalismo podem

causar, delimitaremos nossa investigação a um diagnóstico sobre o processo de

modernização na Europa. Ou seja, o nacionalismo como um fenômeno que acompanha a

passagem para a era industrial. Em uma leitura como esta se tornou possível, ao analisar o

advento do nacionalismo como um processo histórico, em um contexto específico,

generalizar a sua concretização, mesmo que isso significasse manipulação e imposição.

Deste modo, o fenômeno percorreu um trajeto que possibilitou elevá-lo a condição de algo

que é construído artificialmente (Gellner). As nações-Estado, portanto, são conseqüências

do desenvolvimento que conduz as elites industriais locais ao poder estatal. O sucesso ou

55 Ver, Arendt, Origens do totalitarismo.

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fracasso do nacionalismo, segundo esta perspectiva, deve-se à vontade e força com que

estas elites tomam para si este projeto.

Norbert Elias, em sua conhecida pesquisa sobre os processos históricos dos termos

cultura e civilização, desenvolveu uma das mais primorosas explicações sobre o fenômeno

do nacionalismo. O encontro com o tema deve-se justamente ao modo como foram

interpretados esses termos. Apesar de sua análise se restringir ao caso alemão, Elias a

generaliza ao afirmar que, guardadas as devidas especificidades, processos semelhantes

ocorreram em diversos países europeus ao tornarem-se cada vez mais industrializados. Ou

seja, os valores nacionalistas eram portadores dos únicos elementos capazes de unificar

sociedades firmadas em uma divisão de classes, que foram abarcadas por essa solidariedade

anterior.

Em primeiro lugar, a perspectiva de Norbert Elias nos é importante, pois esclarece o

ponto que apresentamos anteriormente: as duas perspectivas em relação à história.

Primeiro, da república kantiana, o fim último da história universal de um ponto de vista

cosmopolita e, em segundo, a do legado de Herder, da história nacional que atua

preponderantemente na formação do indivíduo. A junção entre as duas perspectivas pode

ser explicada por meio da consolidação do nacionalismo, ou seja, a nação é o caminho que

permite consolidar os valores republicanos em um dado território. Ao desenvolver uma

característica igualitária entre os indivíduos, o Estado-nação é pressionado a afirmar as

premissas do governo republicano, por mais que as fronteiras dos Estados atuem como os

limites da república.

Como vimos em Herder, uma determinada perspectiva fora adotada, ao colocar a

nação como elemento central na formação do indivíduo, mas ao mesmo tempo, havia ainda

uma concepção totalizante do mundo. A assembléia dos germanistas, por sua vez, ao

aprofundar o debate em torno do conceito nação, motivou o sentido que fora dado por este

à política. A sua expansão, enquanto realidade, se deve a um processo mais amplo, que

atingem uma totalidade de acontecimentos que são mais complexos. Isto implica em

considerar primeiro, o significado de história cultural; em segundo, a relações entre a

história cultural com a política; em terceiro, o embate entre os setores humanistas e os

nacionalistas da classe média; e, em último lugar, a fusão no Estado-nação entre os códigos

morais nacionalistas e humanistas.

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41

Durante o século XVIII o termo cultura estava em consonância com os avanços da

humanidade. Assim, para as elites da classe média deste século, o termo representou a

imagem que se faziam de si mesmos tal como a viam, ou seja, dentro do contexto mais

amplo do desenvolvimento da humanidade56. Essa concepção pode ainda ser vista mesmo

em um Schiller quanto em um Herder, pois significava que uma época era complementada

e influenciada por períodos anteriores.

E como o avanço futuro da sociedade era importante para eles, tinham o impulso emocional para noticiar e chamar a atenção para avanços que já tinham sido realizados pela humanidade no passado. Muitos de seus conceitos, particularmente aqueles que, como Kultur e Zivilisation, estavam relacionados com a nós-imagem, refletiram esse caráter dinâmico e profundamente orientado para o desenvolvimento de suas atitudes e crenças básicas (Elias; 1997, 121).

Entretanto, convém mencionar que para a classe média alemã, o termo Kultur, era

encarado em uma oposição à política, ou melhor, à história política. Isto se deve ao fato de

que, para as classes médias, a política e o Estado estavam relacionados com os assuntos da

aristocracia, ou melhor, era um lugar inacessível às classes médias e, portanto, a política

estava restrita às camadas nobres. Com isto, Elias afirma que a diferenciação entre história

da cultura e história política ganhou contornos ideológicos ao estabelecer a existência de

dois mundos que não se comunicavam entre si, pois representavam uma diferenciação entre

duas camadas no interior da sociedade.

Dentro desta configuração, haviam apenas duas saídas: para manterem a sua posição

na sociedade, ou as classes médias se aproximavam do regime vigente, principalmente se

desejassem levar a cabo pretensões políticas; ou, simplesmente, intensificavam a

diferenciação entre a cultura e a política, entre as duas camadas, minando completamente

qualquer intenção política. Isto, por sua vez, produziu uma divisão no interior das classes

médias: de um lado, gradativamente se aproximavam do Estado e do poder e, de outro, o

afastamento foi completo em relação ao Estado. Por meio desta bifurcação operou-se uma

transformação: ao tempo que uma parcela da classe média se aproximou dos negócios do

Estado, intensificou-se uma ruptura entre os setores da classe média; e ao identificar-se com

o Estado, tais setores da classe média passaram a manifestar tendências nacionalistas.

Entretanto, mesmo aqueles de tendência humanista, ao manifestar a sua oposição ao Estado 56 Elias; 1997, 119.

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e aquilo que esta instituição representava (propriedade da aristocracia), tornaram-se ainda

mais nacionalistas ao intensificar a oposição entre a cultura e o Estado, ou seja, o Estado

como um dado exterior que não coincidia com a cultura local57. Logo, era chegada a hora

da guinada do nacionalismo.

Mas esta guinada, na leitura de Elias, é fruto de dois movimentos opostos: da

aproximação e da recusa ao Estado. Neste movimento, incorporam-se os códigos guerreiros

da aristocracia, ao mesmo tempo em que se eleva a cultura (nacional) ao patamar da

política. Ainda segundo o autor, este desenvolvimento operou mudanças por diversos

países europeus que viram a ascensão das classes médias industriais no interior de suas

sociedades. Contudo, para entender esta transformação em seu vínculo com o nacionalismo,

devemos compreender o modo como a imagem auto-referenciada da nação substituiu o

ideal de progresso como uma dinâmica universal do gênero humano. Ou seja, ocorre uma

modificação de pensamento, sobretudo na intelligentsia das classes médias, ao substituir,

gradualmente, a concepção de um desígnio global de uma comunidade humana universal,

por uma imagem idealizada da nação, como portadora do sentido e do significado de sua

existência:

(...) uma imagem idealizada de sua nação passou a ocupar o centro de sua auto-imagem, de suas crenças sociais e de sua escala de valores. Durante o período de sua ascensão, as classes médias de países europeus, tal como outras classes emergentes, tinham sido orientadas para o futuro. Uma vez elevadas à posição de classes dominantes, suas secções de liderança e suas elites intelectuais, à semelhança de outros grupos dirigentes, trocaram o futuro pelo passado a fim de basear neste sua imagem ideal delas próprias. As satisfações emocionais derivadas da visada para diante deram lugar às satisfações emocionais derivadas do olhar para trás. O cerne da ‘nós-imagem’ e do ‘nós-ideal’ delas foi formado por uma imagem de sua tradição e herança nacionais (Elias; 1997, 129).

Ao passo que os importantes setores das classes médias industriais ganharam

posições mais elevadas na política, os valores nacionais – feitos à sua imagem e

semelhança –, a nação como portadora de uma cultura baseada na ancestralidade, atingiu o

patamar de guia da política, enquanto política nacional, ao ser transferida para o lugar

57 “Gradualmente, os setores nacionalistas tornaram-se mais fortes, os setores humanistas mais fracos; estes últimos, por seu turno, tornaram-se mais nacionalistas; quer dizer, também eles atribuíram um lugar superior a uma imagem ideal de Estado e nação em sua auto-imagem e em sua escala de valores, embora tentassem ainda reconciliá-la com ideais humanistas e morais mais amplos” (Elias; 1997, 128).

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supremo da escala de valores públicos58. Assim, diz Elias, a cultura nacional tornou-se

lugar central no sistema de crenças sociais. E ao tomar este lugar central, a imagem da

nação deixava de estar restrita ao âmbito da cultura e passava a ser portadora não só do

plano de fundo formador do indivíduo, mas também, da condução dos negócios do Estado

que, ao voltar-se para o interior da sociedade, definia os parâmetros definidores de sua

existência, enquanto que, na esfera exterior, passou a defender uma liberdade coletiva da

nação59.

Em resumo, a perspectiva nacionalista fez com que, os valores e os códigos morais

republicanos se assentassem no interior da sociedade. Ao passo que as elites industriais se

tornaram dirigentes do Estado, as normas igualitárias e humanistas foram incorporadas à

política desses países. Contudo, as fronteiras dos territórios desses países tornaram-se os

limites dos valores republicanos, pois nas relações entre Estados continuou a prevalecer os

códigos de honra das aristocracias que, a partir de então, tornava-se um código para ser

primordialmente aplicado à conduta dos negócios de uma nação- Estado em suas relações

com outras nações-Estados. O desenvolvimento, portanto, envolveu mudança, assim como

continuidade60.

O desenvolvimento, por um lado, de uma identificação no interior da sociedade

com valores nacionalistas foi produto, em primeiro lugar, de uma imagem que a burguesia

tinha de si mesma. Por outro lado, a assimilação desta identidade pela coletividade é guiada

por um desencadeamento onde o simbolismo da nação estabelece, segundo Elias, um

vínculo emocional. Ou seja, a crença de pertencer a uma cultura nacional específica, que se

desenvolve e é fortalecida pela classe burguesa, passa a ser internalizada por uma

população que também se concebe como portadora das características que formam a cultura

nacional. Assim, os vínculos emocionais de indivíduos com a coletividade por eles formada

58 “Em fins do século XIX e começos do atual, quando o termo ‘cultura’ foi cada vez mais usado na acepção de ‘cultura nacional’, as conotações humanistas e morais, numa etapa inicial de sua carreira, passaram a segundo plano e finalmente desapareceram” (Elias; 1997, 130).59 Segundo Norbert Elias, ao ocupar as posições do Estado, as elites da classe média foram influenciadas pelo código guerreiro próprio das aristocracias: “Especialmente em relações interestatais, defrontam-se com tipos de conduta aos quais era difícil aplicar seu próprio código de moralidade. Foi nesse campo, sobretudo (mas não p único, em absoluto), que se aproximaram em sua qualidade de grupos dirigentes, dos modelos fornecidos pela ‘cultura’ dos anteriores grupos dominantes de um código que, à falta de melhor rótulo, poderíamos chamar de maquiavélico” (Elias; 1997, 135).60 Elias; 1997, 137.

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cristalizam-se e organizam-se em torno de símbolos comuns, que não requerem quaisquer

explicações factuais, que podem e devem ser considerados como valores absolutos61.

O nacionalismo é, portanto, a cultivação de uma crença que afirma a existência de

um nós, formada por meio da coletividade nacional nas sociedades industriais. Para esta

configuração havia a necessidade de que, os indivíduos, muitas vezes diferenciados por

questões econômicas, pudessem compartilhar um ethos nacionalista. Isto significa que, a

solidariedade que se desenvolve em um ethos nacionalista deve-se ao fato de os indivíduos

pertencerem a uma coletividade que é formada anteriormente e que está acima de todos; é a

própria acepção herderiana de nação, que determina o destino dos indivíduos portadores

desta ou daquela nacionalidade:

A coletividade é vivenciada e os símbolos são representados como algo separado dos indivíduos em questão, algo superior e mais sagrado do que eles. As coletividades que geram um ethos nacionalista são estruturadas de tal modo, que os indivíduos que as formam podem vivenciá-las – mais especificamente, vivenciar seus símbolos carregados de emoção – como representantes deles próprios. O amor de um indivíduo pela sua nação nunca é apenas amor por pessoas e grupos de pessoas a que se refere como ‘eles’; também é sempre amor de uma coletividade a que o indivíduo se refere como nós. Seja o que mais possa ser, é também uma forma de amor-próprio (Elias; 1997, 143).

De tal modo, segundo Norbert Elias, a passagem para a era industrial demarcou a

constituição do Estado-nação. Mas esta formação histórica esteve pautada em uma

dualidade que o construiu como tal. Estamos, pois, a descrever dois códigos normativos

que forneceram à organização Estado nacional não apenas a possibilidade de sua existência

e consolidação, bem como, assentar-se sobre uma contradição: um código humanista,

igualitário; e outro, a crença na defesa da liberdade nacional e, na defesa dos valores

nacionais no plano internacional. Este último depende de uma solidariedade que é

constituída por meio da internalização nos indivíduos, de que compartilham uma mesma

dignidade e igualdade, ou seja, a expansão do código humanista. Mas, para a efetivação dos

valores humanistas foi necessária um apego ao ethos nacionalista, ou melhor, a

nacionalização dos sentimentos que os indivíduos, assim, passam a compartilhar.

Este trajeto, segundo Elias, perpassou todos os países em processo de modernização

nos séculos XIX e XX. Mas, ao caracterizar este movimento como dependente da ascensão

61 Elias; 1997, 139.

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das classes industriais, ao passo que se tornavam elites dirigentes da política nacional,

atuavam preponderantemente na dispersão de um ethos e de crenças nacionais. Se bem que,

em sua teorização, Elias afirmou ser o nacionalismo fruto de manifestações articuladas de

um processo durante o qual sentimentos nacionais e um ethos nacional se propagam mais

cedo ou mais tarde a toda sociedade62. Apesar de analisar o nacionalismo segundo uma

dinâmica quase que irrefreável, Norbert Elias, entretanto, não exclui de sua abordagem a

possibilidade de tal fenômeno ser fruto de dissimulação e imposição, de dominação de um

grupo sobre outro.

Tais considerações nos fazem lembrar de teorias sobre o nacionalismo que

acentuam a relevância de seu caráter de manipulação. Digo, especificamente, da análise de

Ernest Gellner sobre o fenômeno. Gellner procura definir o fenômeno por meio de uma

teoria geral do nacionalismo. A pretensão de Gellner consiste em afirmar uma perspectiva

que atua, politicamente, contra o nacionalismo. Este, portanto, para Gellner, surge como

uma imposição, disseminado ideologicamente, podendo conter em seus objetivos – que as

fronteiras políticas correspondam às fronteiras étnicas63 -, uma ameaça à vida,

principalmente de grupos minoritários no interior de um Estado.

O advento do nacionalismo, para Gellner, é determinado pela junção entre o Estado

e a cultura64. A nação, o vínculo de um grupo determinado que partilha uma mesma cultura,

não pressupõe a existência de um Estado. Este, por sua vez, no modelo gellneriano, surge

sem a ajuda da nação. O nacionalismo, neste raciocínio, traz consigo a constituição de um

Estado centralizado, que obtém sucesso no interior de um território, que expande,

normativamente, uma determinada idéia de nação. Nesta teoria, o Estado nacional como

conhecemos, é a única instituição capaz de fornecer as bases para o desenvolvimento do

nacionalismo. Para comprovar a sua tese, Gellner faz uma comparação entre a sociedade

agrária e a sociedade industrial, entre o comportamento de uma elite letrada nestes dois

momentos históricos, que constituem, entre eles, diferenças essenciais, pois, enquanto o

primeiro opera sob a lógica da diferença e da heterogeneidade, o outro é conduzido ao

igualitarismo, em um processo intenso que caminha rumo à homogeneização cultural.

62 Elias; 1997, 142.63 Gellner; 1993, 11.64 Utilizarei o termo “cultura” segundo o significado que é dado pelo próprio Gellner. Ou seja, cultura como aquilo que define os costumes, tradições, aspectos lingüísticos de um grupo circunscrito, ou seja, um sistema de códigos, de comunicação.

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O que Gellner está a dizer em relação à sociedade agrária é que sua elite letrada não

tem interesse em difundir a sua cultura em um território. A característica essencial nesta

sociedade é o status que estabelece uma diferença entre esta elite e a massa (de

camponeses). O autor utiliza-se de dois conceitos para explicar tal situação. O nacionalismo

depende da junção entre a cultura e o poder. Ou seja, a cultura predominante seria aquela

que é determinada por aqueles que detêm o poder. Numa sociedade do tipo agrária, o poder

corresponde, justamente, a quem este pertence, a uma cultura específica isolada dos demais,

dos governados. A fórmula é simples: os governantes concentram aquilo que foi

considerado como culturalmente superior (uma elite intelectual). Os governados, por sua

vez, partilhariam entre si uma cultura popular, não-alfabetizada:

(...) de acordo com as condições gerais que prevalecem nas sociedades agro-letradas, essas elites nunca podem, efetivamente, ser bem sucedidas, pela simples razão de que tais sociedades não possuem meios para tornar a alfabetização quase universal e para incorporar as grandes massas populacionais numa cultura erudita, concretizando dessa forma os ideais da elite letrada (...).Por outras palavras, se o nacionalismo tivesse sido inventado neste período, as perspectivas de aceitação geral teriam sido realmente reduzidas (GELLNER; 1993, p. 25).

Esta constatação de Gellner consiste em afirmar que na sociedade agrária, não há

recursos disponíveis nem incentivos para expandir a educação. Ou seja, estabelece-se uma

diferença evidente entre uma cultura transmitida como parte de um estilo de vida e uma

cultura superior transmitida pelo ensino formal, que respeita um conjunto de normas e

regras apreendidas por meio da escrita. Como conseqüência, essas sociedades não

conseguem desenvolver um ordenamento sistemático interno. Isto significa que, a partir do

momento em que o Estado moderno inicia o seu processo de consolidação, passa a

depender de que se coloque em marcha uma operação rumo à homogeneização cultural. O

que só se torna possível com o desenvolvimento da sociedade industrial.

Obviamente, a teoria de Gellner atua sobre uma base econômica65. Mas amplia-se

ao considerar que o desenvolvimento de sociedades industrializadas na Europa está

65 “A teoria do nacionalismo aqui proposta é materialista (embora de modo algum seja marxista), na medida em que os fenômenos a serem explicados são deduzidos do modo básico como a sociedade garante a sua autoperpetuação material” (GELLNER; 1993, p. 119).

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intensamente conectado à centralização proporcionada pelos Estados que se consolidaram

após a Revolução Francesa66. Tanto como por meio da ação deste acontecimento, ou como

reação à sua marcha imperialista, o Estado nacional tornou-se norma política67. Ora, sendo

obra da junção entre o poder e a cultura, o nacionalismo significa uma construção artificial

necessária para atender as demandas provenientes dos tempos modernos. Entre estas

demandas, própria do desenvolvimento capitalista, estaria o desmantelamento de uma

diferença pautada em um sistema designado pelo status, por meio de um alargamento do

acesso à educação, que proporcionaria às sociedades um igualitarismo cada vez mais

abrangente68.

O processo de ampliação da educação nas sociedades aparece como algo

essencial e irreversível, tendo como causa as próprias características que exigem o

fenômeno da industrialização. O processo de produção inerente a este traz uma maior

divisão do trabalho, que acarreta a constituição de especialidades em diversos ramos

econômicos. Este tipo de divisão do trabalho é, por sua vez, complexo, persistente e está

cumulativamente em mudança. Alinhado a isto temos dois processos que tornam a

sociedade industrial mais homogênea culturalmente: uma maior mobilidade dos indivíduos

nas sociedades industriais (o que a torna mais igualitária) e o investimento no sistema

educacional.69

A mobilidade vincula-se ao fato de que os postos de trabalho passam a obedecer a

critérios como competência e de mérito. Não é mais possível definir a sociedade a partir de

posições determinadas hereditariamente, por exemplo. Isto torna mais acessível, ao

indivíduo, independentemente de sua origem, ascender socialmente. Diz Gellner:

66 “O crescimento econômico é o primeiro principio de legitimação desse tipo de sociedade: qualquer regime que não consiga atingi-lo e mantê-lo fica em dificuldade. (O segundo principio de legitimidade é a nacionalidade...)”. (GELLNER; 2000, p. 115). 67 GELLNER; 2000, p. 107.68 Apesar desta constatação, Gellner está atento aos limites desta ocorrência: “O igualitarismo exibido pela nova ordem não exclui, é claro, tremendas desigualdades no acesso à riqueza, ao poder e às oportunidades de vida. Mas, ainda sim, um igualitarismo básico, aceito como norma pela sociedade, não é desprovido de um certo realismo. Ele possui uma autoridade social autentica e um sentido social efetivo” (GELLNER; 2000, p. 118).69 Nas sociedades industriais, diz Gellner, “Os seres humanos só são utilizáveis quando educados, e a educação é dispendiosa. O que importa é a qualidade e não a quantidade do pessoal; e a qualidade depende da forma de produção cultural dos homens, ou, em outras palavras, da ‘educação’” (GELLNER; 2000, 115).

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Tudo isso torna a sociedade basicamente igualitária: ela não pode atribuir posições com facilidade, pois, com freqüência, essas posições permanentes entrariam em conflito com a posição correspondente à ocupação efetiva da pessoa em questão. A necessidade de preencher os postos à luz do desempenho e da competência é incompatível com o antigo principio de preenchê-los em termos de posições permanentes, atribuídas e profundamente internalizadas. A sociedade é igualitária porque é móvel, e não móvel porque é igualitária (GELLNER; 2000, p. 117-118).

O sistema educacional a ser implantado neste tipo de sociedade é útil no sentido de

preparar a massa populacional para atender as demandas econômicas. A divisão do trabalho

exige um conhecimento mínimo que permita a ocupação pelos indivíduos das formas de

conhecimento mais específicos. Forma-se, portanto, por meio desse sistema educacional,

uma base comum de acesso à cultura letrada: A sociedade inteira deve ser perpassada por

uma cultura superior, caso pretenda funcionar70. A difusão de uma cultura superior é

extremamente onerosa. Deste modo, apenas o Estado têm condições de levar a cabo tal

empreendimento, estabelecendo, portanto, o nexo entre o poder e a cultura. Pois, a

implementação de um sistema educacional que é útil para atender as demandas do sistema

econômico que passa a vigorar, significa adotar um tipo específico de conhecimento, qual

seja, aquele próprio de uma elite intelectualizada. Coloca-se em prática, assim, a

disseminação da chamada cultura superior, única capaz de atender às exigências provindas

das mudanças econômicas ocorridas.

A educação vinda do exterior (exo-educação) transforma-se, assim, na norma universal, de modo que ninguém, do ponto de vista cultural, faz a barba a si próprio. A sociedade moderna é aquela em que qualquer subcomunidade, abaixo da dimensão daquela que é capaz de manter um sistema educacional independente, já não pode auto-reproduzir-se. A própria reprodução de indivíduos totalmente socializados passa a fazer parte da divisão do trabalho, deixando as subcomunidades de desempenhar essa tarefa (GELLNER; 1993, 55).

A partir dessas considerações, portanto, pode-se delinear em que consiste, de fato, a

tese de Gellner sobre o nacionalismo. Ora, este nasce e se desenvolve por meio da

consolidação de uma junção específica do mundo moderno: poder e cultura. Ou seja, entre

um Estado e a disseminação, por este, de uma educação específica que se torna universal

em um dado território. Isto consiste em tornar uma dada sociedade homogênea

70 GELLNER; 2000 p. 117.

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culturalmente, onde os indivíduos passam a compartilhar, entre si, de um mesmo sistema de

códigos, símbolos, enfim, de um mesmo sistema de comunicação. Mesmo que isto seja

propício para atender as demandas de um sistema econômico industrialmente desenvolvido,

acarreta, também, mudanças na esfera política. O que Gellner está a afirmar é que o

nacionalismo não é derivado da nação e, sim, o contrário. O nacionalismo seria, na

realidade, o efeito de uma nova forma de organização social baseada em culturas eruditas

intensamente interiorizadas e dependentes da implementação de um sistema educacional,

sendo cada uma delas protegida pelo seu próprio Estado. O que consiste em utilizar

algumas das culturas preexistentes durante o processo, embora não possa fazê-lo com todas,

uma vez que são por demais variadas. Como resultado – político -, a nação passa a ser

identificada com o povo e não com a nobreza. Aquilo que Sieyès denominou de “Terceiro

Estado”, constituiu a base para um processo de democratização e concretização do conceito

de cidadania, ao minar as bases que constituíam a ordem feudal71:

O acesso à cultura superior apropriada e a aceitabilidade dentro dela são o bem mais importante e valioso da pessoa: ele instaura uma condição de acesso não apenas ao emprego, mas à cidadania legal e moral e a todos os tipos de participação social. Assim, a pessoa se identifica com sua cultura superior e anseia pertencer a uma unidade política em que funcionam varias burocracias que usam essa mesma linguagem cultural. Quando isso não acontece, ela espera que as fronteiras ou sua própria localização se modifiquem, para que passe a ser assim. Em outras palavras, ela é nacionalista (GELLNER; 2000, 117).

Esta integração é dada pelo intenso processo de homogeneização que já foi

mencionado. A questão que se torna relevante é o fato de que, a homogeneização cultural (a

língua, por exemplo), pode também, o que aconteceu em muitos casos, significar uma

homogeneização étnica. Neste ponto residiria o perigo, como o bem conhecido vínculo

entre nacionalismo e anti-semitismo. Para Gellner, o fenômeno do nacionalismo foi

socialmente construído, tendo como relevantes fatores os que acompanharam o advento da

71 Para Sieyès, o terceiro estado é a nação completa, o povo francês. Por meio da Revolução Francesa, seria possível atingir os seguintes objetivos: “A sua condição civil (do povo) mudou e deve mudar ainda. É completamente impossível que o corpo da nação, ou mesmo alguma ordem em particular venha a se tornar livre, se o Terceiro estado não é livre. Não somos livres por privilégios, mas por direitos, direitos que pertencem a todos os cidadãos (...)” (SIEYÈS; 1986, 71).“É preciso entender como Terceiro estado o conjunto dos cidadãos que pertencem à ordem comum. Tudo o que é privilegiado pela lei, de qualquer forma, sai da ordem comum, constitui uma exceção à lei comum e, conseqüentemente, não pertence ao Terceiro Estado” (SIEYÈS; 1986, 72).

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modernidade. A congruência entre uma cultura e um Estado, para este autor, puderam ser

asseguradas em muitos momentos, pois, as pessoas podem ser modificadas. Podem

adquirir cultura – inclusive a auto-imagem fomentada por ela, e a capacidade de projetar

e tornar aceita essa auto-imagem -, mesmo que tenham partido de uma outra cultura, de

um outro conjunto de imagens internalizadas e projetadas72.

Para Gellner, portanto, o nacionalismo é algo manipulado. O autor tenta retirar

qualquer aspecto natural deste fenômeno, exceto características como a língua. Mesmo

estes aspectos, atuam no sentido de incrementar um sistema de comunicação que passa a

ser colocado em prática em larga escala. Entretanto, a forma rígida a que Gellner insiste em

tratar a questão não é o único caminho que temos a oferecer. Além da análise de Elias, do

nacionalismo como fruto de um processo histórico, Benedict Anderson, ao tratar do

nacionalismo segundo a formulação conceitual, comunidades imaginadas, de um certo

modo, amplia a tese sobre a relação nacionalismo/modernidade.

A postura de Benedict Anderson é por demais interessante na medida em que, ao

utilizar categorias como, imaginação, acidente e fatalidade, retira, ao tratar do tema do

nacionalismo, um pouco do peso de uma teoria da conspiração das elites73. Isto não

remove o caráter material de sua teoria sobre o desenvolvimento do nacionalismo. Assim

como na análise gellneriana, o desenvolvimento do capitalismo e do Estado moderno

contribuíram para o surgimento da nação popular. A nação popular, portanto, vincula-se ao

surgimento da era moderna: o incremento do capitalismo editorial, que ampliou as

publicações que estavam restritas ao latim, para as línguas vulgares – em larga escala -,

permitiu, segundo Anderson, o advento das comunidades imaginadas74. Mas não apenas

isso, comunidades imaginadas, aqui, revela um compartilhar, um companheirismo profundo

e horizontal75.

72 Gellner; 2000, p. 125.73 Aqui reside, creio eu, o ponto de cisão entre Anderson e Gellner. Na verdade, a teoria de Anderson é menos uma refutação do que uma ampliação da proposição do teórico do “nacionalismo disseminado pelas elites”. Nas palavras de Benedict Anderson: “(...) Gellner está tão ansioso em demonstrar que o nacionalismo dissimula sob falsas aparências, que assimila ‘invenção’ a ‘contrafação’ e ‘falsidade’, ao invés de assimilá-la a ‘imaginação’ e ‘criação’” (Anderson; 1989, 15).74 Anderson propõe a seguinte definição para nação: “é uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana. Ela é imaginada porque nem mesmo das menores nações jamais reconhecerão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão” (Anderson; 1989, 14). 75 Anderson; 1989, 16.

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Para compreender a tese de Anderson, podemos resumi-la apresentando os seus

principais pontos. Em primeiro lugar, o que representa uma convergência com a teoria de

Gellner, Anderson afirma que só foi possível imaginar a nação a partir do momento

quando, e onde, três conceitos básicos caíram por terra. O primeiro deles, era a idéia de que

uma determinada língua aglutinava, em si, um acesso privilegiado a verdade. Ora, a

Reforma, principalmente no clássico caso da tradução do Livro Sagrado dos cristãos

efetuado por Lutero, contribuiu para o declínio da idéia de que a verdade somente poderia

ser acessada por meio do latim. Nisto, há uma menor preocupação com a disseminação, por

parte de uma elite de uma determinada cultura e, sim, a constatação de que se permitiu,

àqueles que não dominavam o latim, compartilhar um imaginar e sensações, por meio das

letras em sua língua materna. Em segundo lugar, a dissolução da distinção e a hierarquia

pautada na tradição, na hereditariedade76. Em terceiro lugar, diz Anderson, mais do que

qualquer outra coisa, uma mudança na concepção da temporalidade:

O que veio tomar o lugar da concepção medieval de simultaneidade longitudinal ao tempo é, valendo-nos de Benjamin, uma idéia de ‘tempo homogêneo e vazio’, no qual a simultaneidade é como se fosse transversal ao tempo, marcada não pela prefiguração e cumprimento, mas coincidência temporal, e mediada pelo relógio e pelo calendário (Anderson; 1989, p.33).

Segundo Anderson, a associação destas idéias, portanto, arraigavam as vidas

humanas na própria natureza das coisas. A partir disso, pode-se pensar, por meio da análise

deste autor, a ascendência do nacionalismo tanto na Europa (como fenômeno), quanto nas

colônias (como reação). O ponto alto desta ascensão, ou seja, do desenvolvimento da nação

popular, é a imprensa como mercadoria. A utilização das línguas vulgares contribuiu

diretamente para o surgimento da consciência nacional. Além deste fator, ou melhor,

anteriormente a este, houve, diz Anderson, uma disseminação de línguas vulgares como

instrumento de centralização administrativa por parte de determinados pseudomonarcas

absolutos77.

76As lealdades humanas eram necessariamente hierárquicas e centrípetas, porque o governante, como a escrita sagrada, era ponto central de acesso à existência a ela inerente (Anderson, 1989, 45). 77 “O nascimento das línguas vulgares administrativas antecedeu tanto a imprensa quanto a revolução religiosa do século XVI, e deve, por isso, ser encarado (pelo menos inicialmente) como fator independente na erosão da comunidade sagrada imaginada” (Anderson; 1989, 50).

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Em um momento que a tecnologia de comunicação (a imprensa) se diversifica,

pluralizando a sua produção, acaba por lançar as bases para o desenvolvimento da

consciência nacional. Nas palavras do autor:

(...) a convergência do capitalismo e da tecnologia da imprensa sobre a diversidade fatal das línguas humanas criou a possibilidade de uma nova forma de comunidade imaginada que, em sua morfologia básica, prepara o cenário da nação moderna (Anderson; 1989, p. 56).

Não obstante a isso, um ponto importante na avaliação de Anderson é a sua

sensibilidade ao voltar-se para as colônias americanas e indagar: como pensar o

nacionalismo no novo continente? Onde o fator da língua, ao contrário do modelo europeu,

não nos ajuda a elucidar o problema? Nesta questão, ao investigar o advento do fenômeno

do nacionalismo, nos atentamos para o fato de que este surge como uma reação – à

metrópole. Ou seja, a partir do momento em que os chamados crioulos não são

reconhecidos como europeus, passaram a desempenhar e a se ver sob o manto de uma

nacionalidade local. Mas, além deste fato, diz Anderson, cada uma das novas repúblicas

sul-americanas78 havia sido uma unidade administrativa, entre os séculos XVI e XVIII.

Assim, portanto, desenvolveram uma realidade mais estável. Os movimentos nacionalistas

também, neste contexto, sofreram profundas transformações com o desenvolvimento da

imprensa local. Em resumo, diz o autor:

O que estou sugerindo é que nem o interesse econômico, nem o liberalismo, nem o iluminismo podiam criar, ou criaram, por si sós, o tipo, ou a forma, de comunidade imaginada que se protegesse contra a espoliação daqueles regimes; em outras palavras, nenhum deles propiciou o quadro de uma nova consciência –a mal percebida periferia de sua visão – em ao que estava no foco central de sua admiração ou desagrado. No cumprimento desta tarefa especifica, os funcionários crioulos peregrinos e os homens de imprensa crioulos provincianos tiveram papel histórico decisivo (Anderson; 1989, p. 76).

A partir destes elementos, torna-se possível ponderar em que, exatamente,

consiste, para Benedict Anderson, o nacionalismo moderno em solo europeu. Este

fenômeno na leitura que é apresentada pelo autor consiste em uma criação, não utilizando

78 Os casos analisados por Anderson não envolvem o exemplo brasileiro. Especificamente, em relação ao Brasil, poderíamos, talvez, mencionar a tentativa presente no Estado-Novo em tentar aplicar a teoria de Gellner, ao atuar na tentativa em expandir o nacionalismo por meio da educação; na aplicação do português como língua oficial, principalmente na região sul do país; e em campanhas como marcha rumo ao oeste.

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termos como imposição. A língua impressa, bem como, modelos construídos após a

Revolução Francesa, tornaram possíveis os desenvolvimentos em torno do par Estado-

nação. Este modelo, em sua forma, seria um artigo para exportação, um item

universalizável. Entretanto, o seu conteúdo, que levara em conta a fatalidade, o acidente,

enfim, a natureza das coisas, teria de respeitar o pluralismo. Em cada contexto, uma

história, uma nação.

Convém mencionar que a teoria de Anderson não se fecha em conclusões de fácil

acesso, em um argumento que possui um ordenamento com meio e fim. Enquanto que, na

América espanhola, o nacionalismo se afirmou como reação, na Europa houve dois

movimentos – que de certa maneira, mesmo que em outro contexto, ainda pulsam no

mundo contemporâneo: o nacionalismo que se forma sob a base cultural/lingüística79 ou, na

nomenclatura utilizada por Anderson, o nacionalismo oficial que procura se consolidar

minando a reação de movimentos nacionalistas populares80.

Apesar das diferenças entre a análise de Benedict Anderson81, Ernest Gellner e

Norbert Elias, em seus estudos há, um ponto central, uma convergência: o nacionalismo é

fruto da modernidade, do desenvolvimento do capitalismo e da ascensão da sociedade de

massa. O nacionalismo, portanto, a que os três se referem, é de ordem popular. Este é o

ponto a que Habermas está vinculado, ao tratar do tema em questão. E isto é o objeto da

próxima parte deste trabalho. O nacionalismo, para Habermas, teve sua função histórica.

Entretanto, há limites nesta forma de organização. Superá-lo, portanto, torna-se uma

necessidade. Esta superação nada mais é do que afirmar uma retomada kantiana – mas

79 “Mas por toda à parte, na verdade, à medida que era maior a alfabetização, tornava-se mais fácil conseguir apoio popular, quando o povo encontrava um novo motivo de orgulho na exaltação pela imprensa de línguas que haviam falado humildemente por tanto tempo” (Anderson; 1989, p. 91).80 O termo “nacionalismo oficial”, que Anderson toma emprestado de Seton-watson, que trata das pretensões imperialistas, no decorrer do século XIX, que apenas se tornaram possíveis depois do aparecimento dos nacionalismos lingüísticos populares: “(...) a partir de meados do século XIX, desenvolveu-se o que Seton-Watson denomina “nacionalismos oficiais” no interior da Europa. Esses nacionalismos eram historicamente “impossíveis” antes do aparecimento dos nacionalismos lingüísticos populares, pois, no fundo, foram reações de grupos de poder – primordialmente, mas não exclusivamente, dinásticos e aristocráticos – ameaçados de exclusão, ou de marginalização, nas comunidades imaginadas populares (...). Esses nacionalismos oficiais eram políticas conservadoras, para não dizer reacionárias, adaptadas a partir do modelo dos nacionalismos populares, em grande medida espontâneos, que os precederam” (Anderson; 1989, p.122).81 O posicionamento de Anderson difere um pouco do de Gellner. Há, no primeiro, um olhar mais benevolente em relação ao nacionalismo. Isto fica claro em sua análise sobre o nacionalismo na América do sul. Certa vez, Anderson afirmou: “eu estava decidido a pensar o nacionalismo, de certa forma, contra o eurocentrismo. Então, um dos primeiros capítulos do livro é sobre as Américas, mas com maior atenção à América do Sul” (Anderson; 2005, 12).

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agora respeitando princípios democráticos. Deste modo, a efetivação das premissas da

cidadania teriam que superar a sua base de sustentação até hoje em voga: a identidade

nacional. Ou seja, a proposta de Habermas parte da possibilidade em se atingir um acordo

acima dos contextos nacionais específicos.

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Capítulo 3. Patriotismo constitucional: a constelação pós-nacional.

A escola modernista - segundo a definição de Anthony Smith82 -, fornece os

elementos teórico e conceitual para análise habermasiana sobre o tema do nacionalismo. A

junção entre modernidade e nacionalismo, ou melhor, a idéia de que a questão nacional é

historicamente determinada, é o ponto de partida do filósofo alemão que, ao abordar o

tema, o analisa segundo três pontos que desencadeiam as suas considerações sobre a

matéria: nacionalismo e democratização; problemas e limites da organização política

fundamentada no nacionalismo; aspectos conceituais da relação entre cidadania e

identidade nacional (item-3.1). Na esteira dessas questões, Habermas apresenta um olhar

sociológico sobre o mundo com o intuito de descrever o fenômeno da globalização e seus

impactos no que respeita às bases formadoras dos Estados nacionais. Com isto, torna-se

possível pensar uma teoria que permita solucionar o problema de um movimento que se

expande sem controle. Um novo fechamento salta aos olhos daqueles que tentam manter a

racionalidade em um mundo em contínuo alargamento (item-3.2). Para tanto, Habermas

têm de solucionar a questão que envolve, de uma só vez, o déficit democrático que atinge

este percurso, ou seja, as pessoas afetadas devem participar desta nova constituição; e, a

ausência de solidariedade: o rompimento entre republicanismo e nacionalismo apenas

garantiria a solidariedade entre os indivíduos no vínculo firmado em um patriotismo

constitucional. Entretanto, sob a sombra deste conteúdo abstrato e universalista, reside uma

questão que fora, em alguma medida, solucionada no interior dos Estados nacionais. Agora,

em um bloco regional, resta indagar quais as garantias de um patriotismo constitucional. Ou

melhor, de que forma pode-se proporcionar uma solidariedade entre os cidadãos para além

dos territórios estatais (item-3.3).

3.1. Estado-nacional: a junção entre identidade nacional e cidadania

O Estado nacional nasce de uma conquista. Projeta-se a partir de dois movimentos

políticos em meio ao século XVIII: as revoluções americana e francesa. Hoje,

82 Este tipo de abordagem é definido por Anthony Smith como típico da escola “modernista” e “instrumentalista” que, por sua vez, domina o cenário dos estudos históricos e sociológicos sobre nações e o nacionalismo.

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parafraseando Koselleck, assim como a crise européia da modernidade, o Estado nacional,

ou melhor, a formula um Estado para uma nação é um legado da história européia que

expandiu-se em história mundial. O desenvolvimento do Estado nacional na Europa,

principalmente com a junção permitida por este, entre burocracia e capitalismo, auxiliou o

florescimento de uma modernização de forma mais acentuada. Mas o que, de fato, significa

esta junção entre Estado e nação?

A definição de Estado, até hoje em voga, consolidou-se na acepção, inquestionável

teoricamente, que nos foi fornecida por Max Weber, qual seja, o Estado moderno definido

segundo o seu conteúdo jurídico83. O Estado moderno, portanto, pode ser definido segundo

a concepção jurídica como um poder estatal soberano, tanto interno quanto externamente,

em um dado território. Este poder se realiza nas formas do direito positivo, e o povo de um

Estado é portador da ordem jurídica limitada à região de validade do território desse

mesmo Estado84.

Segundo Habermas, em seu significado político, povo e nação têm um mesmo

alcance. Entretanto, o conceito de nação se ramifica em seu significado pré-político e

político. Este conteúdo ambivalente estabelece a relação entre democracia e nacionalismo,

como veremos adiante. Para compreender isto, o importante é mencionar como, segundo

Habermas, o trajeto empírico da idéia de nação caminha rumo ao encontro de uma

formação estatal moderna.

O Estado moderno – que indicamos como weberiano – é, na definição delineada por

Habermas, anterior ao que conhecemos como nações em um sentido, do mesmo modo,

moderno. Apenas ao findar do século XVIII que esses dois elementos teriam incidindo no

que se denominou de Estado nacional. A nação, neste contexto, obteve, muitas vezes, além

da definição jurídica e política, como mencionei acima, um significado cultural, tendo em si

conotações de uma comunidade moldada pela descendência, por uma história comum, por

uma língua comum. Este arcabouço cultural compartilhado, as tradições de um povo que

remontam a um passado imemorial, não são, para Habermas, aspectos naturais de um

83 A definição Weberiana de que o Estado detêm o monopólio legitimo da violência é o aspecto nuclear, de onde deriva todas as suas ramificações: “A violência não é, evidentemente, o único instrumento de que se vale o Estado – não haja a respeito qualquer dúvida -, mas é seu instrumento especifico (...). Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território – a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado – reivindica monopólio do uso legitimo da violência física (WEBER; 2000, p. 56). 84 Habermas; 2001, p. 124.

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contexto histórico/lingüístico correspondente ao território estatal moderno. A junção entre

Estado e nação seria fruto de uma manipulação, bem como, da popularização da idéia de

nação.

A definição de nação que envolve uma comunidade de pessoas de ascendência

comum, ainda não integradas de forma política do Estado, mas que se mantêm unidas

simplesmente por sua localização e por sua língua, costumes e tradições comuns85, ou seja,

em seu teor pré-político, harmoniza-se ao Estado por meio de um processo que a identifica

com toda a extensão territorial estatal. Isto se efetivaria ao vincular o povo (de um dado

território) a uma especifica concepção de nação. Este processo, qual seja, da popularização

da nação (volksnation) é o mesmo apontado por Elias, descrito por Gellner, refinado por

Benedict Anderson e, agora, adotado por Habermas: a nação segundo a sua definição

moderna:

Essa consciência nacional constitui manifestação especificamente moderna de integração cultural. A consciência política da pertença nacional surge de uma dinâmica que só atingiu a população a partir do momento em que esta foi mobilizada e individualizada através de processos de modernização econômica e social que a libertaram dos laços sociais e corporativos. O nacionalismo pode ser tido como uma formação da consciência que pressupõe a apropriação de tradições culturais, filtrada pela reflexão e pela historiografia. Ele surge entre o publico erudito e espalha-se pelos canais da moderna comunicação de massas. Tanto a mediação literária como a propagação pela mídia conferem ao nacionalismo características artificiais (...) (Habermas; 1997, p. 281-82).

O Estado nacional que se consolidou a partir deste processo, incorporou uma série

de benefícios ao Estado moderno no que diz respeito ao processo de democratização.

Segundo Habermas, a transformação de que fala tanto Sieyès quanto Gellner é democrática,

a partir do momento em que há a passagem da nação da nobreza para a nação popular. É

democrática, uma vez que, sendo a primeira forma moderna de identidade coletiva teve a

função catalisadora para a transformação do Estado moderno primitivo numa república

democrática86. Isto se torna possível, na medida em que, o nacionalismo passa a

representar uma forma de integração social mais ampla e, portanto, mais abstrata87.

85 Habermas, 2000, p. 300.86 Habermas; 2000, p. 300.87 Segundo Habermas, “Apenas a consciência nacional que se cristaliza em torno da percepção de uma ascendência, língua e historia em comum, apenas a consciência de se pertencer à ‘um mesmo’ povo torna os

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O nacionalismo, deste modo, incitou a passagem do povo para a condição de

cidadãos88. Aos cidadãos ficaram reservados uma cadeia de direitos que pressupõe, de uma

só vez, a autonomia privada e a participação política. Logo, a vontade do povo representa

uma mudança de consciência própria ao mundo moderno, que efetiva o outro lado da

moeda da soberania. E isto, diz Habermas, apenas foi possível graças à idéia de um

compartilhar, uma identificação coletiva, de uma singular consciência nacional:

Para essa mobilização política, fazia-se necessária uma idéia que, para os corações e mentes das pessoas, pudesse ter um apelo mais forte do que as idéias um tanto abstratas sobre direitos humanos e soberania popular. Essa lacuna foi preenchida pela idéia moderna de nação, que foi a primeira a inspirar nos habitantes de um território comum o sentimento de pertencer a uma mesma república. Somente a consciência de uma identidade nacional, cristalizada em torno da história, língua e cultura comuns, somente a consciência de pertencer a uma mesma nação, faz com que pessoas distantes, espalhadas por vastos territórios, sintam-se politicamente responsáveis umas pelas outras (Habermas, 2002; 302).

Segundo Habermas, a grande realização do estado constitucional foi substituir as

formas tradicionais de integração social por uma forma mais ampla, a cidadania

democrática. Entretanto, em princípio, havia a necessidade de se estabelecer um vínculo

capaz de solidificar as bases normativas da república democrática. A idéia naturalista de

nação preencheu essa lacuna e tornou viável a realização do Estado Constitucional. O

problema que aí reside é o fato de que, a concepção naturalista de nação reconduz a

integração à categoria pré-política, a algo já dado, independentemente da opinião política e

da formação da vontade dos próprios cidadãos89. A partir deste fato ou, para além disto,

Habermas menciona alguns problemas inerentes à prevalência do conteúdo pré-político da

nação na esfera política do mundo.

O processo de secularização em âmbito político faz parte do ideário que a moderna

filosofia ocidental cunhou. Para Habermas, a influência do nacionalismo na política, a

convergência entre cidadania e nação demonstra que ainda há resquícios não-secularizados

súditos cidadãos de uma unidade política partilhada – torna-os, portanto, membros que se podem sentir responsáveis uns pelos outros. A nação ou o espírito do povo – a primeira forma moderna de identidade coletiva – provê a forma estatal juridicamente constituída de um substrato cultural” (HABERMAS; 2002, p. 131).88 “O nacionalismo mediado pelo romantismo e pela consciência histórica, ou seja, através da ciência e da literatura, fundou uma identidade coletiva propícia ao papel de cidadão, que nasce na Revolução Francesa” (Habermas; 1997, p. 283). 89 Habermas; 2000, p. 303.

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na política contemporânea: a imagem da nação aparece como sagrada, revestida de

mistérios outrora reivindicados pelo poder divino. A face da nação, portanto, que representa

o compartilhar de um destino comum apresenta aspectos que podem ser perigosos ao

conduzir um povo à violência, ao sangue e ao terror.

É perigosa, pois, a compreensão de que há uma identificação está, muitas vezes,

vinculada as características étnicas e culturais, rechaçando, assim, o outro que aparece

como um estranho inferior. Para isto, o que não faltam são exemplos históricos como, por

exemplo, o demasiadamente mencionado vínculo entre anti-semitismo e o nacionalismo:

Muitas vezes, essa nova compreensão que as pessoas tinham de si como nação funcionava no sentido de rechaçar tudo o que era estrangeiro, rebaixar outras nações e discriminar ou excluir minorias nacionais, étnicas e religiosas, especialmente os judeus (Habermas, 2000, p. 299).

Nesta questão, reside um problema de ordem conceitual. A identificação e a

conexão entre as pessoas em torno de uma nação mobiliza um conceito e definição de

liberdade que, segundo Habermas, não tem relação com a concepção de liberdade política

dos cidadãos. Ou seja, uma idéia de liberdade coletivista da nação, de autonomia nacional

fere a idéia de autonomia individual. Enquanto a segunda refere-se aos direitos e garantias

que são tomadas como universais, a primeira, a liberdade nacional, é de natureza

particularista. O que demonstra, portanto, o aspecto guerreiro que circunda a identificação

nacional, refere-se a uma coletividade cuja independência tem que ser defendida, se

necessário, com o sangue não de mercenários, mas dos ‘filhos da nação’90. Isto é objeto

fácil, segundo Habermas, de manipulação. Este tipo de identificação pode ser usado

segundo fins que desfiguram o sentido primeiro da idéia de cidadania democrática91. Em

resumo, diz Habermas:

A autonomia nacional e a auto-afirmação coletiva contra nações estrangeiras podem ser entendidas como formas coletivistas de liberdade. E tal liberdade

90 Habermas; 2000, p. 302.91 Sobre a manipulação por parte das elites, Habermas afirma: “A artificialidade dos mitos nacionais, tanto o trato cientifico quanto a mediatização propagandística que recebem, torna o nacionalismo, já em sua origem, vulnerável ao abuso de elites políticas (...). A história do imperialismo europeu entre 1871 e 1914, tal como o nacionalismo integral do século XX (isso sem falar no racismo dos nazistas), ilustra o triste fato de que a idéia de nação serviu muito menos para fortalecer as populações em sua lealdade ao Estado constitucional do que para mobilizar as massas em favor de objetivos que dificilmente podem se harmonizar com princípios republicanos” (habermas; 2002, p. 133).

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nacional não coincide com a liberdade genuinamente política dos cidadãos no âmbito de um país. Por isso, a compreensão moderna dessa liberdade republicana pode libertar-se, mais tarde, do seio da consciência da liberdade nacional, do qual surgira. O nexo estreito que o Estado nacional conseguira estabelecer entre ‘Ethnos’ e ‘Demos’ fora passageiro (Habermas; 1997, p. 284).

Para Habermas, portanto, torna-se necessária a superação da nação como um dado

anterior e do seu conseqüente fenômeno, o nacionalismo. Este teve seu importante papel

histórico em um processo de democratização. Entretanto, os aspectos mencionados acima,

demonstram a necessidade de rechaçá-lo. Este imperativo corrobora, para Habermas, a

função pacificadora (e cosmopolita) da separação entre republicanismo e nacionalismo.

Esta separação torna-se possível na medida em que, em nível conceitual, a cidadania pode

agir independentemente da identidade nacional. Este trajeto conceitual demonstra a

viabilidade de uma sociedade pós-nacional, desde que, o republicanismo, consiga caminhar

com as próprias pernas.

Segundo Habermas, com Sieyès e a Revolução francesa, a nação se transforma em

fonte de soberania do Estado. Ao responder a questão o que é uma nação?, Sieyès afirma:

um corpo de associados que vivem sob uma lei comum e representados pela mesma

legislatura92. A lei comum, ou seja, a lei civil, não é fruto de uma vontade, de um grupo

que deseja sobrepor-se a outro. É obra, portanto, de um cálculo racional93, diria o francês,

que desconsidera a ordem arbitrária. Este raciocínio deriva do estabelecimento, ou melhor,

do reconhecimento do direito natural dos homens: a sua liberdade. Se os homens são livres

e, principalmente, individualmente livres, podem, unindo-se como um corpo, criar as suas

leis. A liberdade, portanto, baseia-se em direitos que são comuns a todos, pois todos são

cidadãos: não somos livres por privilégios, mas por direitos, direitos que pertencem a todos

os cidadaos94. Este direito consiste, sobretudo, ao direito de ser livre individualmente.

Robespierre, em seus Discursos, apresenta esta definição:

92 Sieyès; 1986, p. 69.93 As leis que não provém da razão, são fruto da ignorância, do despotismo, como afirma Robespierre: “Os representantes do Povo Francês reunidos em Convenção nacional, reconhecendo que as leis eternas da justiça e da razão não passam de atentados da ignorância ou do despotismo contra a humanidade; convencidos de que o esquecimento ou o desprezo dos direitos naturais do homem são as únicas causas dos crimes e das desventuras do mundo, resolveram pronunciar-se” (Robespierre; 1999, 91). 94 Sieyès, 71.

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Mas existe um meio geral e não menos salutar de diminuir o poder dos governos em benefício da liberdade e da felicidade dos povos. Ele consiste na aplicação desta máxima enunciada na declaração dos direitos que vos propus: ‘a lei só pode proibir aquilo que prejudica a sociedade: só pode ordenar aquilo que lhe é útil.Fugi da mania antiga dos governos de querer governar demais; deixai aos indivíduos, deixai às famílias o direito de fazer aquilo que não prejudica outrem; deixai às comunas o poder de regulamentar elas mesmas seus próprios negócios, em tudo o que não envolve essencialmente a administração geral da república. Em uma palavra, devolvei à liberdade individual tudo o que não pertence naturalmente à autoridade pública, e na mesma medida tereis deixado menos espaço à ambição e ao arbitrário (Robespierre; 1999, 103).

Em sua definição do Terceiro Estado, o argumento de Sieyès que envolve a

liberdade individual é crucial para entendermos o modo como se estabelece a concepção de

nação de cidadãos. A associação, a formação do corpo da sociedade é um acordo entre

indivíduos livres. Isto consiste em afirmar que o vínculo que firma este compromisso é a

vontade de indivíduos anteriormente isolados. De tal modo, Sieyès define aquilo que

denomina do mecanismo social95: indivíduos isolados que desejam reunir-se. Este é,

segundo Sieyès, o modo como se forma uma nação, uma obra de associação voluntária. A

soberania popular, conseqüentemente, está pautada no poder que reside da soma das

vontades individuais:

A segunda época caracteriza-se pela ação da vontade comum. Os associados querem dar consistência à sua união; querem cumprir seu objetivo. Assim, discutem entre si, e chegam a um acordo sobre os bens públicos e os meios de obtê-los. Aqui, vê-se que o poder pertence ao público. Na origem encontram-se sempre vontades individuais, e elas formam seus elementos essenciais; mas consideradas separadamente, seu poder seria nulo. Só existe no conjunto. Faz falta à comunidade uma vontade comum: sem a unidade de vontade ela não chegaria a ser um todo capaz de querer e agir (Sieyès; 1986, 115).

O princípio de igualdade, portanto, está fundamentado na livre associação. A nação

que se forma, a partir daí, em uma unidade, em comum acordo, estabelece quais são os bens

públicos. A Constituição, portanto, é fruto do consenso entre os cidadãos96. Por

conseguinte, a definição de nação (nação de cidadãos), aqui, consiste em um corpo social

que se vincula livremente, que se associa para estabelecer as leis em conjunto. De tal modo,

95 “Será impossível compreender o mecanismo social se não se analisar a sociedade como uma maquina ordinária, e considerar separadamente cada parte, juntando-as em seguida em espírito, uma depois da outra, a fim de captar os acordes e ouvir a harmonia resultante (Sieyès; 1986, 114).96 Em toda nação livre, disse Sieyès, “(...) só há uma forma de acabar com as diferenças que se produzem com respeito à constituição. Não é aos notáveis que se deve recorrer, é a própria nação. Se precisamos de Constituição, devemos fazê-la. Só a nação tem direito de fazê-la” (Sieyès; 1986, 113).

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pode-se afirmar que nestas formulações encontramos os princípios daquilo que

denominamos como Estado de direito (a república kantiana), que opera segundo definições

que são universais e gerais. A sua realização é a concretização daquilo que é considerado

como eterno e imutável.

Pertencer a este corpo de associados, reivindicado nisto, garantiria o status de

cidadão. Esta cidadania romperia com os privilégios próprios da nobreza aristocrática.

Neste sentido, todo francês, em igual medida, seria cidadão. A cidadania, portanto,

transformando todos semelhantes em relação a direitos e deveres, era democraticamente

constituída. O nacionalismo, ao despertar nesta nova era, teve a função catalisadora ao

tornar palpável esta associação. Segundo esta definição, a junção entre republicanismo e

nacionalismo fez emergir com imensa vitalidade o processo democrático. Entretanto, diz

Habermas, já em 1871, Ernest Renan tomava uma postura contra o nacionalismo ao

entender a nação não como um grupo que compartilha as mesmas características étnico-

culturais e, sim, como uma nação de cidadãos, ou seja, de pessoas que exercitam

ativamente seus direitos democráticos de participação e de comunicação97.

Para compreender em que, de fato, consiste, conceitualmente, a cidadania,

Habermas busca compreender o seu desenvolvimento original a partir do conceito

rousseauniano de autodeterminação. Habermas afirma que, a soberania do povo, para

Rousseau, não pode ser entendida como uma transferência de poder, de cima para baixo, ou

como uma divisão de partidos. A soberania para Rousseau não estava baseada em um

conceder, mas, sim, em um autolegislar. Esta fórmula rousseauniana afiançava a harmonia

do pacto, pois, a vontade geral seria a garantia à igualdade. Entretanto, para Rousseau ou

para aquilo que derivou dele98, afirma Habermas, a adoção das virtudes republicanas em

97 Habermas; 1997, p. 283.98 Quanto à questão da autodeterminação, Charles Taylor afirma que esta deve sua origem, ou pelo menos foi interpretada assim, na vontade geral de Rousseau. Segundo Taylor, a idéia de Rousseau foi elaborada na tentativa de fundir a idéia da vontade de um povo independente da estrutura política com a ética do republicanismo. “Rousseau invoca o pré-político na própria idéia não antiga de contrato social, da sociedade constituída pela vontade, bem como em sua compreensão da natureza como voz interior. Ele invoca a antiga ética da virtude no ideal de uma sociedade política face-a-face transparente, que, com efeito, é retirado do quadro do mundo como irrealizável”. Entretanto, diz Taylor, a mais completa destruição da sociedade civil no século XX, foi levada a cabo por variantes e sucessoras desse sistema elaborado por Rousseau, que, segundo o autor, podem ser reconhecidas como a idéia de nação e de proletariado: “ocorreu uma estranha e horripilante reversão mediante a qual a idéia cujas raízes estão fincadas num conceito pré-político de sociedade pode agora justificar a total sujeição da vida a um empreendimento de transformação política. E, de

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um pacto social lançado através da vontade geral, só seria realista para uma comunidade

que possuísse um consenso normativo garantido por meio da tradição e do ethos:

Ora, quanto menos as vontades particulares correspondem à vontade geral, isto é, os costumes às leis, tanto mais a força repressiva deve aumentar. Portanto, o governo, para ser bom, deve ser relativamente mais forte na medida em que o povo é mais numeroso (Rousseau; 1996, p. 74).

Isto teria como conseqüência a inaplicação do sistema rousseauniano em

sociedades pluralistas. A identificação que derivaria disto sofre um colapso com a

constatação: as sociedades modernas não são homogêneas. Deste modo, uma crítica e uma

contribuição da tradição liberal reclama por seu espaço. Segundo Habermas, para a tradição

liberal, a vontade geral que se traduz na autolegislação, repousa a sua legitimação no

procedimento democrático. Ao contrário, a unidade estaria fundamentada em uma

homogeneidade anterior, em uma forma de vida específica.

Por meio do procedimento democrático, se expressa um consentimento que

reinterpreta o princípio de soberania do povo: esta só pode manifestar-se em condições

discursivas de um processo diferenciado de formação de opinião e vontade99:

Os cidadãos querem regular sua convivência de acordo com princípios que podem encontrar o assentimento fundamentado de todos, por serem do interesse simétrico de todos. Tal associação é estruturada através de condições de reconhecimento recíproco, sob as quais cada um espera ser respeitado por todos como livre e igual. Cada homem e cada mulher deve ser alvo de um tríplice reconhecimento, ou seja, devem encontrar igual proteção e igual respeito em sua integridade: enquanto indivíduos insubstituíveis, enquanto membros de um grupo étnico-cultural e enquanto cidadãos, ou membros de uma comunidade política(Habermas; 1997, 284).

Neste sentido, temos duas concepções de cidadania. A denominada, comumente, de

republicana100, representada por Rousseau e a liberal, reconhecida como aquela em que a

democracia é caracterizada pelo seu procedimento (as regras do jogo). Essas duas

perspectivas remontam um debate conhecido acerca do significado de cidadania ativa, ou

uma forma menos espetacular, o poder do Estado tem sido com freqüência aumentado por sua autodefinição como instrumento da vontade nacional” (Taylor; 2000, p. 237).99 Habermas; 1997, p. 284.100 Esta concepção que denomino de rousseauniana não deve ser confundida com a definição kantiana de república. Obviamente, Kant pertence, neste embate, à tradição liberal.

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seja, a querela reside na definição de participação política em um ambiente democrático.

Enquanto que a perspectiva republicana consiste em pensar a participação dos cidadãos que

compartilham um mesmo conjunto de valores, girando em torno de uma compreensão

étnico-comunitarista101, a tradição liberal, por sua vez, opera sob uma lógica individualista

e instrumentalista, onde a primazia dos interesses define o que significa ser cidadão102.

O modelo étnico-comunitarista compreende uma visão holista da sociedade.

Segundo este modelo, a participação do cidadão vincula-se a um pano de fundo histórico

comum, ao fato de que os cidadãos, necessariamente, compartilhem certos valores. Assim,

por muito tempo, ou melhor, algumas leituras compreenderam o republicanismo como

tendo um vínculo seguro com o nacionalismo. Ou seja, que há, precisamente, uma relação

entre cidadania e identidade nacional. Para Habermas, isto se tornou algo improvável. Os

fatores negativos próprios do nacionalismo, bem como, a perspectiva da tradição

modernista, qual seja, do nacionalismo como algo construído, disseminado e manipulado,

não dão sustentação ao argumento de uma base natural aos princípios normativos que

mantêm o vínculo entre a cidadania com uma identidade nacional específica. Além disto,

uma outra constatação levanta dúvidas: as sociedades modernas não são homogêneas,

constituindo-se como plurais e, de forma cada vez mais crescente, multiculturais. Aliada a

essas questões, Habermas menciona o processo conhecido como globalização103, que

101 Um bom modo de entender esta concepção é nos apoiarmos na definição de Charles Taylor: “define a participação no autogoverno como a essência da liberdade, como parte daquilo que tem de ser assegurado. Ela é também vista como componente essencial da capacidade do cidadão (...). A plena participação no autogoverno significa, ao menos parte do tempo, ter alguma participação na formação de um consenso de governo, com o qual podemos nos identificar junto com os outros. Governar e ser governado alternativamente significam que ao menos parte do tempo os governantes podem ser ‘nós’, não sempre ‘eles’”(Taylor; 2000, p. 217).102 Segundo Charles Taylor a teoria liberal procedimental é aquela que “vê a sociedade como uma associação de indivíduos, cada um dos quais tem uma concepção de uma vida boa ou válida e, correspondentemente, um plano de vida (...). Assim, afirma-se, uma sociedade liberal não deveria fundar em nenhuma noção particular de vida. A ética central de uma sociedade liberal é antes uma ética do direito do que do bem. Isto é, seus princípios básicos referem-se a como a sociedade deve responder às exigências concorrentes dos indivíduos e arbitrar entre elas. Esses princípios incluiriam evidentemente o respeito aos direitos e às liberdades individuais, mas no cerne de todo o conjunto que pudesse ser chamado liberal estaria o princípio da facilitação maximal e igual. Isso não define em primeira instância que bens a sociedade promoverá, mas antes como ela vai determinar os bens a ser promovidos, dadas as aspirações e exigências dos indivíduos que a compõe. O que é fundamental aqui são os procedimentos de decisão (...)” (Taylor; 2000, 202-203).103 Para uma definição, Habermas utiliza a de Guiddens: “(...) Guiddens definiu globalização como o adensamento, em todo o mundo, de relações que têm por conseqüência efeitos recíprocos desencadeados por acontecimentos tanto locais quanto muito distantes. As comunicações de alcance mundial seguem por meio das línguas naturais (na maioria das vezes, por meios eletrônicos) ou códigos especiais (sobretudo o dinheiro e o direito)” (habermas; 2002, p. 138).

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atuaria no sentido de minar a soberania do Estado nacional em relação às suas fronteiras e o

controle, efetuado nacionalmente, do capitalismo. Ou seja, um processo irrefreável de

abertura atinge firmemente a construção histórica do Estado nacional.

3. 2. Expansão e fechamento no mundo contemporâneo.

Habermas apresenta uma teoria que provém de um olhar sociológico sobre o

mundo. Esta teoria avalia o mundo contemporâneo como um momento histórico de

transição em que as fronteiras existentes sofrem um colapso e, portanto, um novo

fechamento – ampliado – surge como conseqüência em meio aos acontecimentos mais

recentes. O colapso diz respeito, em primeiro lugar, a uma teoria do Estado que

demonstraria a incapacidade estatal para a resolução de problemas que transbordariam os

limites territoriais impostos pelas formações estatais modernas. Em segundo lugar, o

fenômeno da globalização aparece como causa deste colapso. Este fenômeno traria em si,

conseqüências que, se não forem controladas, podem promover conseqüências nocivas. O

controle do fenômeno, para Habermas, exige uma composição institucional a sua altura.

Neste ponto, o projeto de unificação na Europa, da formação de um bloco regional, torna-se

uma exigência. Contudo, discutível é a maneira como este projeto poderia ser colocado em

prática. Se forçarmos um pouco a nossa visão, poderíamos entrever neste fenômeno

europeu uma tendência que pode vir a ser mundial. Não escapa à teoria de Habermas um

projeto global. Não se esquiva de nós, também, movimentos como - mesmo que ainda

incipiente - o do Mercosul e o seu parlamento104.

Segundo Habermas, os Estados podem se abrir e fechar em relação ao seu meio.

Deste modo, as fronteiras deixam de ser importantes, pois cedem lugar para uma

interferência maior, a saber, de duas outras formas de coordenação social: uma integração

funcional e uma integração social do mundo da vida. A primeira, diz respeito às relações

horizontais de troca e de trânsito – que são estabelecidas entre atores descentralizados,

que tomam decisões sobre mercados, transportes, redes de comunicação etc. – que

104 Isto não é assunto do nosso trabalho. Mas vale lembrar que o parlamento do mercosul, cujos representantes exercem a sua função, eleitos indiretamente, teve a sua primeira sessão realizada em maio de 2007.

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estabelecem-se freqüentemente com base nas conseqüências da ação eficiente, julgadas

positivamente105. Ao lado desta integração, caminha a segunda forma, que representaria,

segundo Habermas, uma integração social do mundo da vida de coletividades que

construíram uma identidade comum, com base no entendimento, em normas divididas

intersubjetivamente e em valores comuns106.

Para Habermas, desde a alta Idade Média, é possível constatar a existência dessas

duas formas de integração. Obviamente, em contexto europeu,

A expansão de redes de tráfico de mercadorias, dinheiro, pessoas e noticias exigiu uma mobilidade da qual partiu uma força explosiva. Por outro lado, o horizonte espaço-temporal de um mundo da vida, por mais amplo que seja, sempre constituiu um todo (ainda que em expansão) abarcado pela intuição, a partir do qual – da perspectiva dos participantes – não deriva nenhuma interação. Mercados ou redes de comunicação, em expansão e se adensando, desencadeiam uma dinâmica de modernização de abertura e fechamento. A multiplicação das relações anônimas com ‘outros’ e as experiências dissonantes com o “estrangeiros” possuem uma força subversiva. O pluralismo crescente afrouxa as ligações adscritivas com a família, com o espaço vital, origem social e tradição e põe em andamento uma mudança formal da integração social. a cada novo impulso de modernização abrem-se os mundos da vida divididos de modo intersubjetivo para se reorganizarem e novamente se fecharem (habermas; 2001,105).

Essa dinâmica modernizadora, fruto de um processo irrecusável que amplia as

trocas econômicas e os meios e as formas de vida que se comunicam, de certo modo, desde

o final do século XIX, foram organizadas sob o recurso que propiciou um fechamento em

Estados nacionais. Deste modo, produziu-se uma forma de isolamento que, segundo

Habermas, está cada vez mais difícil de suportar. Este isolamento que se constitui sob o

manto da simbiose Estado-nação, que continha em si a articulação de preceitos universais,

da soberania do povo e dos direitos humanos, sofre um desmantelamento, além das

relacionadas às questões econômicas, que é fruto de um processo irremediável que tornaria

as sociedades européias heterogêneas em seu interior. É esta energia que impulsiona a

necessidade de um novo fechamento para conter um processo de abertura - que se

105 Habermas; 2001, 105.106 Habermas; 2001, 105.

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desenvolveu com o fenômeno da globalização107 - capaz de garantir os pressupostos do

Estado democrático de direito.

Dito isto, podemos mencionar mais detalhadamente em que consiste esse processo

de abertura que passam os Estados nacionais sob as condições impostas pelo fenômeno da

globalização. A preocupação central neste ponto reside no fato de que o neoliberalismo

aparece como um ator fundamental neste processo e que, com argumentos que se

pretendem verdadeiros, desabona qualquer possibilidade de se firmar uma solidariedade em

um nível mais amplo108. Para Habermas, portanto, uma alternativa à política neoliberal

poderia consistir em encontrar formas adequadas para o processo democrático para além do

Estado nacional.

Habermas afirma que desde o final dos anos 70, o aumento e a intensificação das

relações de troca, de comunicação e de trânsito – que caracterizaria o fenômeno da

globalização109 -, afetariam os pressupostos básicos dos Estados nacionais. Isto implica em

afirmar que questões como, a segurança jurídica e a efetividade do Estado administrativo; a

soberania do Estado territorial; a identidade coletiva; e a legitimidade do Estado nacional.

Contudo, vale lembrar, não há um enfraquecimento do Estado em relação às suas tarefas

clássicas no que diz respeito à garantia do direito à propriedade e das condições de

competição. No que tange, entretanto, às questões ecológicas e a criminalidade que envolve

tráfico de drogas e armas o problema em boa parte é de outra ordem. Em relação às

questões sobre o meio ambiente, o que ocorre no interior de um Estado pode emanar para

um transbordamento das conseqüências para além do território estatal. Do ponto de vista do

tráfico global de armas e drogas as cooperações em nível mundial tornam-se cada vez mais

necessárias:

107 “A globalização pressiona o Estado nacional a se abrir internamente para a pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo tempo, ela limita de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de administrações internacionais. se o novo fechamento ocorrer sem efeitos colaterais patológicos, uma política que corresponda aos mercados globalizados deve se concretizar apenas dentro das formas institucionais que não retrocedam aquém das condições de legitimação da autodeterminação democrática” (Habermas; 2001, 107).108 “Partindo de premissas diferentes, pós-modernismo e neoliberalismo concordam com a mesma visão: os mundos da vida de indivíduos e de pequenos grupos se dispersam como nômades por redes que se estendem pelo mundo e são coordenadas funcionalmente, em vez de se engrenarem nos caminhos de integração social em unidades políticas maiores e mais estratificadas” (Habermas; 2001, 112).109 “Utilizo o conceito de globalização para a descrição de um processo, não de um estado final. Ele caracterizaria a quantidade cada vez maior e a intensificação das relações de troca, de comunicação e de transito para além das fronteiras nacionais” (Habermas; 2001, 84).

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Graças à quebra do equilíbrio ecológico e à capacidade de destruição embutida na aplicação da técnica de ponto surgiram, no entanto, novos riscos que ultrapassam as fronteiras. ‘Chernobyl’, ‘buraco de ozônio’ ou ‘chuva ácida’ indicam acidentes e modificações ecológicas que, por causa das suas amplas conseqüências e intensidades, não se deixam mais controlar nos âmbitos nacionais e que, conseqüentemente, ultrapassam a capacidade de ordenação dos Estados singulares. Também em um outro sentido as fronteiras dos Estados tornam-se porosas. Isso vale para a criminalidade organizada, sobretudo para o trafico de drogas e armas (Habermas; 2001, 87).

Por outro lado, o ponto que envolve diretamente os recursos disponíveis para

administração do Estado, ou melhor, o expediente fiscal, sofre com a mobilidade do capital.

A volatilidade acelerada de capitais interferem na capacidade estatal de intervenção nos

lucros e fortunas. Além disso, a competição entre os Estados nacionais por empresas

multinacionais conduz para um ganho fiscal reduzido. De tal modo, a globalização impõe

aos Estados uma redução de gastos que não estão relacionadas diretamente com uma

possível necessidade de responsabilidade aos moldes de um Consenso de Washington110:

A palavra de ordem ‘Estado enxuto’ não deriva tanto da critica correta a uma administração letárgica que deve adquirir novas competências administrativas, mas, antes, da pressão fiscal que a globalização econômica exerceu sobre os recursos do Estado passiveis de taxação (Habermas; 2001, 88).

Habermas ainda menciona o modo como a globalização atua sobre a soberania do

Estado nacional. Apesar da soberania do Estado ainda garantir o monopólio da violência

circunscrita no interior dos territórios, haveria uma crescente interdependência da sociedade

mundial que, por sua vez, colocaria em cheque a possibilidade das políticas impostas pelos

Estados serem responsivas em relação ao destino da sociedade nacional. Ou seja, seria cada

vez mais difícil que houvesse uma correspondência entre as decisões dos Estados e as

pessoas e regiões possivelmente afetadas. Na esteira da teoria de David Held, Habermas

afirma a impossibilidade de uma congruência entre as decisões dos Estados nacionais, em

110 “A simples ameaça de emigração de capital desencadeia um espiral deredução de custos (e intimida os cobradores de impostos a impor a legislação vigente). Os impostos sobre as maiores rendas, sobre capital e industria caíram a tal ponto nos países da OCDE que, desde o final dos anos 1980, os impostos sobre lucro diminuíram de modo drástico a sua participação dos impostos, a saber, em comparação com a participação do imposto sobre o consumo e do imposto sobre os salários dos empregados comuns” (Habermas; 2001, 88).

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bases territoriais, e os atingidos por estas. Logo, surge o problema do déficit democrático.

Se a democracia tem como alicerce a idéia de auto-afetação, de um grupo especifico que,

ao mesmo tempo, toma decisões e as recebe como normas a serem seguidas, a partir do

momento em que decisões em nível estatal atingem pessoas para além do território, perde-

se o teor democrático que garantia a legitimidade deste processo.

Além deste fato, o problema do déficit democrático pode ser levantado em um outro

rumo que não apenas o estatal. Para Habermas, este ponto diz respeito também à questão da

integração social, que se desenvolveu no âmbito do Estado nacional segundo uma

homogeneidade firmada na unidade da nação. A fragmentação da sociedade, sobretudo em

vista do aumento do trânsito de pessoas111, pode levar a conflitos que atinjam o regime

democrático. Ou seja, ao passo que as sociedades tornam-se cada vez mais multiculturais,

um choque pode se originar do contato entre diferentes formas de vida, o que poderia levar

a um endurecimento da identidade nacional e, portanto, em uma recusa do outro. A solução

para isto estaria em um processo democrático que permitisse a inclusão dessas diferentes

formas de vida, que estivesse calcado em uma cultura política que garantisse o apego aos

procedimentos democráticos. Estamos, pois, a falar dos pressupostos da concepção do

patriotismo constitucional:

Observando-se normativamente, calcar o processo democrático em uma cultura política comum não possui o sentido excluidor de efetivação de um modo próprio nacional, mas antes o sentido inclusivo de uma pratica de autolegislação que engloba igualmente todos os cidadãos. inclusão quer dizer que a coletividade política permanece aberta para abarcar os cidadãos de qualquer origem sem fechar esse outro na uniformidade da nação homogênea. Pois um consenso de fundo, anterior e assegurado pela homogeneidade cultural, torna-se supérfluo como um dado pressuposto da democracia – temporário e catalisador -, à mesma medida que a construção da vontade e da opinião estruturada publicamente na forma de uma discussão torna possível um entendimento racional e político também entre desconhecidos (Habermas; 2001, 94).

Todavia, não é apenas no âmbito da imigração e do desenvolvimento de sociedades

multiculturais que a globalização atinge a coesão das sociedades nacionais: uma teoria

111 “Apesar das rígidas regulamentações da imigração que trancavam o forte da Europa, todas as nações européias encontram-se entrementes a caminho da sociedade multicultural. É evidente que essa pluralização das formas de vida não se dá sem atritos” (Habermas; 2001, 93).

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sobre cultura de massa demonstra um amolecimento das formas de vida homogêneas. A

causa disto reside na composição de mercados globais, de consumo de massa, de

comunicação de massa, bem como, da difusão de um turismo de massa. A influência

preponderante estaria vinculada à expansão de uma cultura de massa estadunidense. Se

compartilha, cada vez mais, (...) dos mesmos filmes, programas de televisão (...); as

mesmas modas pop, techno ou da calça jeans atingem e marcam a mentalidade da

juventude, mesmo nas regiões mais distantes (Habermas; 2001, 95)112. Entretanto, neste

processo, de um nivelamento cultural, diz Habermas, ocorre como reação, um novo

entrelaçamento de culturas, ou seja, não somente uma defesa ressentida de culturas

enrijecidas, mas, também, por meio deste movimento surgem novas culturas e novas

diferenças culturais. O que estaria a acontecer nas sociedades ocidentais do mundo

contemporâneo, graças aos contatos entre culturas, seria uma tendência à individualização e

a consolidação de identidades cosmopolitas113.

Todas estas difíceis questões nos levam ao debate em torno do conceito de

patriotismo constitucional. O enfraquecimento do Estado nacional e o desmantelamento da

homogeneidade cultural no interior das sociedades nos induz, como acontece na teoria

habermasiana, a pensar o modo como garantir os pressupostos do Estado democrático de

direito sem a solidariedade derivada de uma consciência nacional114. Agora, portanto, os

princípios universais da soberania do povo e dos direitos do homem, não encontram mais

respaldo na morada aconchegante da nação. Este quadro levaria a necessidade de, ao se

apontar para o futuro, pensar em saídas que estejam além da esfera tradicional do Estado

nacional. Conseqüentemente, por meio desta concepção que opera segundo a lógica da

necessidade de um novo fechamento, a teoria habermasiana eleva o debate para outros

níveis que não o nacional. Ou seja, ao apresentarmos a necessidade explicitada por

Habermas, de superar a relação entre cidadania e identidade nacional, é preciso estar ciente

112 Poderíamos ainda mencionar a questão da língua: cada vez mais, o inglês apresenta-se como uma possibilidade de comunicação entre diferentes grupos de diferentes nacionalidades. David Held, de modo semelhante, também aponta para isto ao mencionar os impactos da globalização nos meios de comunicação: “English has spread as the dominant language os elite cultures – it is the dominant language in business, computing, law, science and politics” (Held; 1998, 18). 113 Haberamas; 2001, 96.114 “Caso a pluralidade das camadas de interesse, das formas de vida da cultura ou das visões de mundo exijam demais do substrato natural da comunidade de origem, o processo democrático pode – se se assenta apenas em uma espécie de carência de garantia para a coesão de uma sociedade diferenciada de modo funcional” (Habermas; 2001, 97).

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de que a questão é encaminhada para o nível regional, neste caso, europeu. O debate em

torno da supranacionalidade assume, irreversivelmente, este trajeto nos dias atuais. Ao

passo que estes novos problemas referentes à globalização e ao enfraquecimento dos

Estados nacionais podem ser considerados desafios mundiais, ao tratar das questões que

envolvem a União Européia, Habermas imagina o Velho Continente como uma espécie de

laboratório para o mundo. Resta saber, contudo, se se constituirá como modelo para uma

governança global ou, como padrão para a formação de outros blocos regionais. Quanto a

isso, penso principalmente na formação, na América do Sul, do Mercosul, que possui em

seu projeto, a intenção de formar um bloco regional no continente. Ao discursar na sessão

solene de constituição do parlamento do Mercosul, o Presidente Lula, entre outras coisas,

afirmou: A criação deste Parlamento é uma iniciativa, talvez das mais relevantes, para

realizar essa aproximação. Representa um marco histórico em nosso bloco. Aprofunda a

dimensão política da integração. Contribui para a consolidação de uma cidadania

regional, na medida em que enraíza o Mercosul em nossas sociedades. Reforça, assim, a

identidade comum de nossa associação. (...) Servirá de laboratório político importante

para avançarmos futuramente no plano da supranacionalidade, seguindo as grandes

experiências de integração em curso no mundo115. Com intuito de compreendermos essas

mudanças em curso, analisaremos o caso europeu à luz da teoria habermasiana.

Tentaremos, afinal, entender de que modo poderíamos pensar a solidariedade e o vínculo

consolidados em um patriotismo constitucional.

3.3. Patriotismo constitucional: a institucionalização de um conceito.

Os fatores descritos anteriormente devem conduzir, segundo Habermas, a Europa à

integração regional. Dentre todos os motivos relevantes para a formação do bloco, alguns

apresentam preocupações mais urgentes: a perspectiva que aponta para uma política

neoliberal diante da globalização, que se auto-soluciona, encontra grandes limitações. Além

da óbvia objeção, de que os mercados organizados globalmente agem sob impulsos

115 Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na Sessão Solene de constituição do Parlamento do Mercosul - Senado Federal, Brasília - DF, 14/12/2006.

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econômicos que exigem, necessariamente, uma regulação política, podemos mencionar,

também, que a concepção neoliberal está pautada numa força igualizante do mercado que é

falsa. Ou seja, fracassa graças ao fato evidente de que as pessoas tal como as conhecemos

de modo algum possuem as mesmas chances de participar dos mercados e de obter

ganhos116. Ao lado desta crítica, outra confere à teoria neoliberal um conceito de liberdade

do indivíduo que é normativamente reduzido. Segundo Habermas, o neoliberalismo conta

apenas com sujeitos do direito privado, aos quais é permitido fazer apenas aquilo que

querem: eles não necessitam se interessar mutuamente uns pelos outros e, portanto, não

estão equipados com um sentido moral para obrigações sociais117. Para a doutrina

neoliberal, portanto, o conceito de cidadão da república perde seu espaço, pois pressupõe

uma ligação entre os indivíduos, em suas ações, e os outros que são igualmente atingidos

por estas. Ou seja, a concepção de cidadania não pode abrir mão de uma liberdade que

implica um autolegislar.

Uma retórica defensiva, que consiste na alegação de que a solução se encontra ainda

nos Estados nacionais, parte da justificação de que em âmbito intra-estatal formaram-se

concepções singulares de práticas, valores, instituições, que determinariam as decisões

quanto aos problemas de ordem econômica e, dessa forma, as instituições teriam de

promover a proteção de uma economia nacional em uma competição global. Diante da

retórica neoliberal e dos processos da globalização, a proposta giraria sempre em torno de

reformas na política nacional. Contudo, esta perspectiva não se sustentaria, pois o fato de

que os processos de globalização mencionados cortam ambos, a saber, tanto os recursos

fiscais bem como o campo de manobra para uma política ativa de crescimento e de

emprego e, desse modo, põem em dificuldades a política social118.

A impossibilidade de se levar a cabo, internamente, tais políticas, fez surgir, com

mais força, em horizonte europeu, o eurofederalismo119 como principal argumento para que

116 Habermas; 2001, 120.117 Habermas; 2001, 119.118 Habermas; 2001, 122.119 O federalismo Europeu recebe a seguinte definição, entre outras, no dicionário de política: “(...) a luta para unificar a Europa coincide com a luta para submeter ao controle democrático aquele setor da vida política que esteve, até então, abandonado ao embate diplomático e militar entre os Estados. A perspectiva da unificação federal, hoje, na ordem do dia na Europa, permite criar condições para garantir, na base das instituições políticas e, portanto, com o apoio do poder, a unidade na diversidade, afirmada pela cultura, mas nunca plenamente realizada (...). Com referência aos meios para resolver este problema, vale lembrar que a procura da unidade através da hegemonia do Estado mais forte sobre os outros Estados, nunca teve sucesso. A união,

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as decisões sejam tomadas em um âmbito supranacional. Segundo Habermas, esta solução

visa uma mudança em que os contratos internacionais entre Estados passem a vigorar em

uma constituição política. Deste modo, criar-se-ia um fundamento legitimador para as

decisões supranacionais na União Européia. Entretanto, o bloco regional europeu estaria

diante de um dilema:

A Europa se encontrará diante da alternativa: ou resolve o problema com base no mercado – numa competição entre os modelos de política social que permanecem sob a esfera da responsabilidade nacional – ou enfrenta o problema politicamente procurando atingir uma ‘harmonização’ nas questões importantes das políticas social, do mercado de trabalho e fiscal (...). Essencialmente, trata-se de saber se as instituições européias encontram-se apenas em condições de simplesmente sintonizar os interesses nacionais no sentido de uma integração negativa de modo que surjam novos mercados; ou então de saber se elas possuem força de ir ao encontro de decisões que corrijam o mercado no sentido de uma integração positiva e de impor regulamentos com efeito distributivo (Habermas; 2001, 123).

Enfrentar o problema politicamente, a ponto de corrigir o mercado e operar segundo

um regulamento que possibilitaria efetuar ações sociais, implica em levar adiante o projeto

de federalização na Europa. Além disso, o federalismo em solo europeu parte de premissas

que nos fazem lembrar o projeto kantiano: em decorrência de sua história, a Europa teria de

aprender com as suas catástrofes, deveria eliminar a guerra e garantir a paz. A opção do

federalismo é a recusa de que tal acontecimento seja fruto de uma marcha imperial, de um

Estado – já existente - acima dos outros, que elimina a guerra por meios autoritários. A

Segunda Guerra Mundial fez surgir a possibilidade de transformar utopia em realidade. Ou

seja, a superação da guerra possibilitou a existência de um ordenamento jurídico mínimo,

como aquele proposto por Kant. Contudo, a solução que aponta para uma integração

regional em diversos âmbitos – econômico, político e social -, exige um novo fechamento

que estaria ancorado em um federalismo Constitucional. Há, aqui, uma demarcação

territorial que afasta esta teoria daquela sugerida pelo pensamento kantiano. E mais do que

isso, tal integração apenas pode ser concebida como um espaço comum de comunicação e

democrático – os obstáculos contra uma integração feita por cima -, animado por um

crescente processo institucionalizante. Deste modo, seria possível manter os pressupostos

da cidadania, ou seja, são cidadãos todos aqueles que participam das tomadas de decisões.

conseguida através de uma escolha democrática das comunidades que decidiram aderir ao movimento, transformou em realidade o sonho dos precursores do federalismo europeu e tornou-se atual, após a eleição, com base no sufrágio universal, do Parlamento europeu” (Dicionário de Política; 1993, 1269).

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A cidadania ao romper com a identidade nacional atuaria em nível regional. Ou seja, a

proposta caminha rumo a uma Constituição democrática européia.

A propósito da exigência de uma Constituição, que pressupõe este novo

fechamento, dois argumentos precisam ser explicitados: o primeiro gira em torno da

questão que envolve o republicanismo e o nacionalismo; a segunda, da adesão,

necessariamente, democrática à Constituição. O primeiro retoma o legado do nacionalismo

como elemento essencial para a consolidação, em um dado território, dos valores

republicanos. Este olhar entende que uma Constituição européia teria de estar

fundamentada em uma noção de povo (volk) europeu. Deste modo, a superação do

nacionalismo implicaria em recorrer a uma outra fonte de identificação coletiva.

Obviamente, este debate remonta uma tradição do pensamento alemão sobre o qual

Habermas encontra mais problemas do que solução120. Assim, a proposta habermasiana gira

em torno de uma concepção de povo em um sentido juridicamente neutro, de uma

identidade coletiva que se institui, não anteriormente, mas no momento do processo

democrático. Para tanto, uma série de pressupostos devem ser contemplados.

A solução proposta por Habermas encontra-se no fato de que a ordem democrática

não necessita de uma ancoragem garantida por uma homogeneidade cultural. A integração

social, neste caso, poderia ser garantida na participação política dos seus cidadãos. A

coesão, em sociedades complexas, estaria assentada na formação da vontade e da opinião

deliberativa dos cidadãos – fundada nos princípios de soberania do povo (democracia) e

direitos do homem (autonomia)121. A dificuldade reside no fato de que não há garantias que

possam pressupor uma adesão das pessoas a esses pressupostos da ordem democrática, uma

vez que sociedades complexas podem vir a comportar muitas visões e formas de vida.

Deste modo, as sociedades multiculturais em que, como garantia de sua existência teriam

que ser necessariamente democráticas, contêm, em si, um limite para aceitar o que é

permissível. Para compreender este dado, podemos utilizar a linguagem rawlsiana: por

meio dos conceitos pluralismo razoável e consenso sobreposto.

120 Estamos a mencionar a teoria de Carl Schmitt. Segundo Habermas, ele coisifica a democracia “enquanto homogeneidade dos membros do povo” (Habermas; 2002, 154).121 “O principio de soberania popular expressa-se nos direitos à comunicação e participação que asseguram a autonomia publica dos cidadãos do Estado; e o domínio das leis, nos direitos fundamentais clássicos que garantem a autonomia privada dos membros da sociedade civil” (Habermas; 2002, 290).

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Habermas já mencionou o fato de que o fundamentalismo é inconciliável com o

Estado de direito122. Em Rawls, isto se torna claro com a concepção de pluralismo razoável.

De tal modo, pressupõe-se que a constatação de que as sociedades na contemporaneidade

não podem mais garantir uma homogeneidade e que, portanto, constituem-se como plurais

– o fato do pluralismo na teoria rawlsiana. Esse pluralismo, entretanto, encontra um limite:

o pluralismo de formas de vida só serão aceitos na medida em que não são irracionais:

O fato crucial não é o fato do pluralismo em si, mas do pluralismo razoável. O liberalismo político vê essa diversidade como resultado de longo prazo das faculdades da razão humana situada no contexto de instituições livres duradouras. O fato do pluralismo razoável não é uma condição desafortunada da vida humana, como poderíamos dizer do pluralismo como tal, que admite doutrinas que não são apenas racionais, mas absurdas e agressivas. Ao articular uma concepção política de tal maneira que ela possa conquistar um consenso sobreposto, não adaptamos à irracionalidade existente, mas ao fato do pluralismo razoável, que resulta do exercício livre da razão humana em condições de liberdade (Rawls; 2000, 190).

Desta maneira, a idéia de consenso sobreposto de Rawls define as bases para a sua

composição. O consenso sobreposto garante, assim, a estabilidade sob a qual se assenta a

unidade social. É um consenso em relação à concepção política. O que Rawls deseja provar

é que um consenso entre doutrinas abrangentes (diferentes formas de vida) atingiria um

acordo sobre a concepção política adequada para um convívio possível. Esta concepção

seria a do liberalismo político, cuja tradição remete, historicamente, ao exercício da

tolerância desde a conquista da liberdade religiosa123.

Este consenso, todavia, implica que, no exercício do poder político, os cidadãos

entendam-se mutuamente como razoáveis e racionais. Isto só pode ser garantido se

pudermos pressupor uma adesão dos cidadãos à Constituição. Este apego, por sua vez,

pode-se esperar dos cidadãos, diz Rawls, em sua condição de livres e iguais. Contudo, esta

condição precisa, no liberalismo político de Rawls, de uma estrutura básica124, ou melhor,

122 A luta por reconhecimento no Estado democrático de direito – A inclusão do outro: estudos em teoria política (Habermas; 2002).123 “A concepção política de justiça mais razoável para um regime democrático será, em termos gerais, liberal. Isso significa que a concepção política liberal protege os direitos fundamentais conhecidos e lhes atribui uma prioridade especial. Também inclui medidas para assegurar que todos os cidadãos tenham meios materiais suficientes para fazer uso efetivo desses direitos fundamentais. Diante do pluralismo razoável, uma visão liberal retira da agenda política as questões que geram mais divergências, pois um conflito serio sobre elas solapa as bases da cooperação social” (Rawls; 2000, 203).124 “(...) a estrutura básica da sociedade é a maneira como as principais instituições políticas e sociais da sociedade interagem formando um sistema de cooperação social, e a maneira como distribuem direitos e

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de instituições básicas justas que possibilitem aos cidadãos adquirir um senso de justiça.

Em Rawls, portanto, é papel das instituições garantirem uma integração social de cidadãos

que constituem uma variação de formas de vida diferentes. O que é garantido aos cidadãos

por meio das instituições são os bens sociais básicos125. E é justamente neste ponto em que

reside o limite das comparações que podemos estabelecer entre Rawls e Habermas126. Mas

o interessante a se notar é que, por outro caminho, Habermas ao desenvolver o seu conceito

de patriotismo constitucional chega a uma solução muito próxima.

Habermas, ao insistir na suposição de que não há um vínculo necessário entre

republicanismo e nacionalismo, entre cidadania e identidade nacional, tem que abdicar da

fácil resolução que defende a necessidade de uma homogeneidade cultural. O nacionalismo

solidificou princípios universais de autonomia pública e privada. Para superar o

nacionalismo e fazer emergir uma sociedade pós-nacional, de alguma forma, é preciso estar

atento – e Habermas está - para o fato de que para a realização dos princípios universalistas

nos Estados democráticos de direito é preciso algum tipo de ancoragem político-cultural.

Uma vez que,

(...) os princípios constitucionais não podem concretizar-se nas práticas sociais, nem transformar-se na força que impulsiona o projeto dinâmico da criação de uma associação de sujeitos livres e iguais, se não forem situados no contexto da história de uma nação de cidadãos e se não assumirem uma ligação com os motivos e modos de sentir e de pensar dos sujeitos privados (habermas; 1997, p. 289).

Na relação entre cidadania e identidade nacional, que foi promovida pelo

nacionalismo, uma determinada concepção do bem, de vida boa, estava atrelada à idéia de

as pessoas partilhavam um destino, uma história comum. É por isso que, até os dias de

hoje, a democracia só foi possível no interior dos países. Habermas, consciente deste dado,

apela para a necessidade, em território europeu, de se configurar uma cidadania européia. A

comunidade européia, por si só, revela a dificuldade desta formulação. A vontade política

deveres básicos e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social no transcurso do tempo” (Rawls; 2003, 13).125 “Os bens sociais básicos, apresentados em amplas categorias, são direitos, liberdades e oportunidades, bem como rendas e riquezas. Parece evidente quem em geral, estas coisas correspondam à descrição de bens básicos. Diante da conexão com as estruturas básicas, as liberdades e as oportunidades são definidas pelas regras das principais instituições, e a distribuição da renda e riqueza está regulada por elas” (Rawls; 1981, 90).126 Ver: Reconciliação por meio do uso público da razão in ‘A inclusão do outro – estudos em teoria política’. Habermas faz uma crítica que decorreria da diferenciação entre bens fundamentais e direitos fundamentais

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de se firmar uma Comunidade Européia, ainda é apenas uma ambição de algumas mentes.

O que de fato existe em solo europeu, conhecido como União Européia, é uma Comunidade

Econômica Européia.

Segundo Habermas, a união que se estabelece somente em âmbito econômico revela

a tensão existente entre capitalismo e democracia. A economia, principalmente com o

fenômeno da globalização, age independentemente da interação entre os sujeitos em um

nível político. A integração econômica, portanto, que atua em nível regional, não mantém

relação com uma possível integração política, que ainda atua apenas em nível nacional.

Este tipo de integração a qual pertence a economia que supera a esfera nacional, não

necessita, para concluir o seu objetivo de circulação de bens e capital, de uma integração

social mediada pela consciência dos atores, ou seja, com a integração que se dá através de

valores, normas e entendimento127. A emergência de uma cidadania democrática

supranacional, portanto, não se consolida nesta tensão, pois, a integração política é, diz

Habermas, um dos aspectos dessa integração social.

Os desdobramentos deste problema consistem, em resumo, na constatação de que,

em nível regional, a União Européia decreta uma série de medidas no âmbito econômico128

que, por sua vez, atingem cada vez mais o cotidiano dos europeus. Assim, diz Habermas:

(...) os cidadãos ficam cada vez mais divididos entre uma participação ativa e uma afecção passiva. Um número crescente de medidas, decididas em nível supranacional, atinge cada vez mais pessoas, num número cada vez maior de áreas vitais. Como, porém, o papel do cidadão só é institucionalizado efetivamente em nível de Estado nacional, as pessoas não têm possibilidades de tematizar ou de influenciar decisões européias (Habermas; 1997, 292).

A conclusão quanto a isso é evidente: não existe uma opinião pública européia. Este

diagnóstico do problema pode oferecer, para Habermas, o caminho de sua solução.

Habermas, em sua teoria da ação comunicativa, aponta para uma formulação que consiste

em manter o caráter racional da comunicação. Ou seja, em meio à virada que atribui

centralidade à linguagem, Habermas pretende manter os pressupostos kantianos da razão na

127 Habemas, 1997, p. 290.128 “A jurisdição da Corte Européia toma como princípio orientador ‘cinco liberdades do mercado comum’, e interpreta como direitos fundamentais a livre troca de bens, a liberdade de domicilio dos trabalhadores, o direito de domicilio dos empresários, a liberdade da troca de serviços e a liberdade de movimentação do capital. Isto corresponde às competências que os tratados de Roma atribuem ao conselho de ministros e à alta comissão, no Art. 3º. E estas resultam, por sua vez, do objetivo declarado no Art. 9º: ‘A base da comunidade é uma união alfandegária que abrange qualquer tipo de troca de bens” (habermas, 1997, p. 292).

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esfera pública ao refletir sobre uma situação ideal dos atos de fala. Para as suas pretensões

em uma teoria política, Habermas amplia a concepção kantiana ao democratizar os espaços

de uma esfera pública geral. Esses espaços abertos à comunicação permitem aos indivíduos

uma participação na organização social. Em teoria, a intenção é fornecer um elemento que

possibilite articular, aglutinar, práticas sociais e as fontes tradicionais de legitimação que

partem da premissa democrática de formação de maiorias. Aparentemente, no caso da

integração européia uma extensa rede comunicacional deste tipo, forneceria um elemento

unificador de todas as vozes sem que para isso fosse preciso recorrer a uma identificação –

os valores de um povo, por exemplo – anterior. Contudo, estes argumentos não estão a

afirmar uma precedência da formação da opinião pública sobre instituições tradicionais das

democracias liberais: o que Habermas pretende fornecer é um curso sincronizado129 entre as

duas coisas. Sob a influência de Kant, a ação restringe-se ao poder político legitimamente

configurado pelo arcabouço teórico e prático das democracias representativas:

(...) o poder político só pode ‘agir’. Ele é um sistema parcial especializado em decisões coletivamente vinculativas, ao passo que as estruturas comunicativas da opinião pública compõem uma rede amplamente disseminada de sensores que reagem à pressão das situações problemáticas no todo social e que simulam opiniões influentes. A opinião pública transformada em poder comunicativo segundo procedimentos democráticos não pode ‘dominar’, mas apenas direcionar o uso do poder administrativo para determinar canais” (Habermas; 2002, 282).

Este ponto indica o próprio limite da teoria habermasiana. Ao demarcar a atuação de

uma opinião pública que apenas influencia o ponto de partida para tal configuração reside

em desenvolver um ambiente propício para a participação dos cidadãos. Para tanto, afirma

Habermas, (...) seria de se esperar que as instituições políticas que viessem a ser criadas

por uma Constituição Européia tivessem um efeito indutivo130, que estimulassem, deste

modo, a participação. Este estímulo, por outro lado, deve ser concebido à luz de uma Carta

européia que ative os princípios de cidadania: que conceda aos europeus as mesmas

garantias consolidadas nos Estados nacionais, ou seja, que os transformem em

companheiros de direitos. De tal modo, os pressupostos do Estado democrático de direito

129 “(...) a expansão da capacidade de ação política deve caminhar ao lado de uma expansão da base de legitimidade das instituições européias” (Habermas; 2001, 126).130 Habermas; 2002, 183.

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poderia ser transferido para o plano regional europeu. Assim, criar-se-ia um fluxo interno

de reconhecimento e participação entre iguais.

Para Habermas, portanto, a saída pode estar em um ordenamento jurídico; no direito

que, segundo a sua concepção, é um médium que permite uma idéia muito mais abstrata

acerca da autonomia cidadã131. O direito seria a alternativa viável, pois, não pressupõe

apenas uma concessão ou inclusão, mas, sobretudo, uma participação132. Assim, por meio

do direito se tornaria factível acionar e permitir a existência da cidadania ativa, sem que

com isso tenha que manter uma relação necessária com a identidade nacional. O

patriotismo constitucional, portanto, se traduziria no apego e na identificação com as

normas e seus conteúdos universalistas. Neste ponto, o patriotismo constitucional seria o

vínculo entre o cidadão e os procedimentos democráticos. Pressupõe, deste modo, uma

adesão voluntária do cidadão a um conceito fraco de democracia. A atuação do cidadão

estaria mantida através da formação de uma opinião pública que interage e brota de um

entrelaçamento entre diferentes formas de comunicação:

Hoje em dia, para fazer valer os seus direitos de participação política, a massa da população tem que integrar-se num fluxo informal de comunicação publica de brota de uma cultura política libertária e igualitária e tenta influir nele. Ao mesmo tempo, as deliberações, no âmbito das corporações parlamentares, tem que ser permeáveis a temas e valores, contribuições e programas que nascem em esferas públicas políticas não encampadas pelo poder (Habermas; 1997, 295).

Habermas ao partir da premissa de que há um fluxo informal de comunicação que

alimenta uma comunidade enquanto comunidade jurídica que é capaz de garantir a

mobilização política dos cidadãos133, não convence no sentido de que, assim, ultrapassa a

mobilização a partir de interesses particulares. A transferência dos valores nacionais para

um patriotismo constitucional, para uma cultura política comum, é um argumento

131 Habermas; 1997, p. 295.132 “Hoje em dia, a soberania do povo se retrai para o interior de procedimentos juridicamente institucionalizados e para os processos informais de uma de uma formação da opinião e da vontade mais ou menos discursiva, viabilizada pelos direitos fundamentais” (Habermas, 2002, 295).133 “Nos dias de hoje, o jogo que se estabelece entre a formação institucionalizada da opinião e da vontade e as comunicações públicas informais permite que se veja a cidadania como algo que ultrapassa o nível de uma simples agregação de interesses individuais pré-politicos ou de um gozo passivo de direitos conferidos paternalisticamente” (Habermas; 1997, p.295).

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demasiadamente frágil para que possa garantir uma integração social134. Como garantir uma

cultura política comum nesses moldes? Em 1996135, Habermas afirmou que uma cultura

liberal só poderá manter a coesão entre os indivíduos se a cidadania democrática valer a

pena: em termos liberais, políticos e sociais. E mais: se vier a traduzir nos valores do bem-

estar social e do reconhecimento mútuo entre as variedades existentes de formas de

vida136. Ou seja, a concretização da cidadania democrática dependeria de uma infra-

estrutura legal e material:

Quando, nessas condições favoráveis, o sistema de direitos é elaborado e ampliado, cada cidadão fica apto a perceber e apreciar a cidadania como o cerne daquilo que mantém as pessoas unidas, e daquilo que as torna simultaneamente dependentes umas das outras e mutuamente responsáveis. Eles percebem que a autonomia privada e pública pressupõem uma à outra na manutenção e no aprimoramento das condições necessárias aos estilos de vida preferidos(habermas, 2000, p. 307).

Para Habermas, portanto, deste modo poderia se desenvolver uma cultura política

comum. Isto, de um ponto de vista institucional, incrementaria as condições para se

promover uma solidariedade entre os cidadãos, de uma solidariedade cívica que deve-se

estender a tal ponto entre os cidadãos da união que, por exemplo, suecos e portugueses

estariam dispostos a responder uns pelos outros137. A percepção de uma dependência

recíproca entre todos estaria assentada numa série de pressupostos e condições levadas a

cabo por uma vontade política. Assim, Habermas incorpora à estrutura básica rawlsiana,

uma estrutura jurídica assentada em pressupostos universais que impulsionariam uma

dinâmica transformadora em uma comunidade que integra os diferentes como iguais. Para

que os cidadãos em uma Europa unificada possam manifestar uma solidariedade cívica,

para que possam realmente incorporar uma concepção de que integram uma comunidade,

as instituições político-jurídicas européias devem cumprir a função pedagógica em preparar

134 O próprio Habermas, em um artigo publicado em 1996, levantou esta questão: (...) o nacionalismo pode ser substituído pelo que se poderia chamar de ‘patriotismo constitucional’, porém, comparado ao nacionalismo, o patriotismo constitucional parece a muitos ser um vinculo tênue demais para manter unidas sociedades complexas. Persiste a premente questão de saber em que condições uma cultura política liberal, compartilhada por todos os cidadãos, pode realmente substituir o contexto cultural de uma nação mais ou menos homogênea, no qual se inseriu, um dia, a cidadania democrática, no período inicial do Estado nacional” (Habermas, 2000 306). 135 Artigo publicado em Mapping the nation, organizado por Gopal Balakrishnan.136 Habermas; 2000, p. 306.137 Habermas; 2001, 126.

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o terreno para o desenvolvimento de uma identidade regional. Chamo isto de identidade

regional, pois, é difícil pressupor que um movimento como esse, no momento de sua

realização, consiga estabelecer uma solidariedade sem uma imaginação que permita uma

identificação: uma Constituição é marcada por uma determinada realidade, por uma

história; do mesmo modo que uma comunidade, vislumbrada por uma vontade política,

implica a delimitação de um território e daqueles que o povoam. Para tanto, basta ver que

na intensificação de seu projeto de unificação, a Europa se fecha cada vez mais. Gostaria de

desenvolver este argumento mais adiante. Por ora, as palavras do próprio Habermas podem

resumir o que foi dito até aqui:

Dessa perspectiva, a autocompreensão ético-política do cidadão de uma coletividade democrática não surge como elemento histórico-cultural primário que possibilita a formação democrática da vontade, mas como grandeza de fluxo em um processo circular que só se põe em movimento por meio da institucionalização jurídica de uma comunicação entre cidadãos de um mesmo Estado. Foi exatamente assim que se formaram as identidades nacionais na Europa moderna. E por isso seria de esperar que as instituições políticas viessem a ser criadas por uma Constituição Européia tivessem um efeito indutivo. No entanto – enquanto houver vontade política para isso – nada depõe a fortioricontra a possibilidade de se criar o contexto comunicacional politicamente necessário em uma Europa que cresce unida (econômica, social e administrativamente) e na qual dispõe de uma base cultural comum e uma experiência histórica conjunta de bem-sucedida superação do nacionalismo. Na verdade, para que esse contexto de comunicação se estabeleça parece faltar apenas um desencadeamento por via jurídica constitucional. Também a exigência de uma língua comum – inglês como second first language [segunda primeira língua] – poderia deixar de representar um empecilho intransponível, haja vista a situação atual da educação escolar formal nos países europeus. Identidade européia não pode significar nada senão unidade na pluralidade nacional (...)(Habermas; 2002, 184).

Atualmente, uma das preocupações centrais de Habermas é o modo como se está a

conduzir o processo de unificação européia. Em um artigo publicado recentemente no

Jornal Folha de São Paulo, Europa com medo do povo138, Habermas faz o seguinte

questionamento: Terá chegado a hora de indagar se a unificação européia, caso queira

seguir adiante, terá que optar por caminhos políticos mais próximos dos cidadãos? Até

138 Caderno Mais do jornal Folha de S.Paulo, de 29 de junho de 2008, depois de conhecido o resultado do plebiscito irlandês que rejeitou a ratificação do Tratado de Lisboa, negociado após o fracasso do projeto da Constituição Européia.

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Nice, esse processo foi conduzido como projeto de uma elite liberal. Diante desta

indagação, é nítida a preocupação com o fato de que sua teoria está muito distante da

realidade de como estão a gerir este projeto. Pois, de outro lado, a unificação já esta

consolidada em algumas esferas. O que Habermas reclama é por uma participação

democrática dos possíveis cidadãos europeus.

Contudo, parece que para promover a unificação, bem como, consolidar o projeto

inacabado da modernidade, ou seja, a política institucionalizada em outro plano, bem

como, para evitar o conflito e a guerra, tanto o teórico quanto o Habermas interventor ficam

à espera de uma boa vontade da chamada elite liberal. Em teoria, o patriotismo

constitucional e a solidariedade que seria o seu resultado, precisam de uma

institucionalização para a sua concretização. O que parece ser um tanto óbvio. Entretanto,

se a sociologia demonstra transformações irrefreáveis e o pensamento democrático

vislumbra nisto o caminho para uma possível mudança inédita na história, a desilusão pode

ser grande demais. E se assim o for, se este percurso levar a decepção, o ideal cosmopolita

terá que esperar ainda mais para ver os seus anseios consolidados.

Considerações finais

Habermas, ao delegar à elaboração de uma Constituição européia - que só poderá

funcionar se de fato se der o processo democrático aberto por ela mesma139 - o

componente central do processo de unificação, uma infinidade de pressupostos que

atuariam no sentido de preparar os indivíduos para exercer uma cidadania européia, devem

ser contemplados. Ou seja, o ponto de partida reside no trajeto percorrido pelo ocidente

europeu que o levou às atuais formações estatais. A superação das configurações atuais, em

Estados-nação, provém de uma perspectiva que permite encontrar um ponto em comum,

entre todos estes atores, que possui a força que equivaleria em denominar de universal140. A

capacidade dos homens em compreender este núcleo originário, talvez seja inábil ao 139 Habermas; 2001, 130.140

“A democracia e os direitos formam o núcleo universalista do Estado constitucional, que resultou das múltiplas variantes da Revolução Americana e Francesa. Esse universalismo manteve a sua força explosiva, não somente nos países do Terceiro Mundo e na área do poder soviético, mas também das nações européias, onde uma mudança de identidade atribui ao patriotismo constitucional um novo significado” (habermas; 1997, 252).

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transferir a teoria à prática, como o velho Kant nos ensinou. A teoria Habermasiana, ou o

último guardião do iluminismo sai em defesa de uma tradição que, ao encontrar em sua

concepção de direito um modo em resguardar a liberdade do indivíduo, encontra na razão o

fundamento para a condução política. Obviamente, não cabe aqui uma crítica ao Estado de

direito kantiano, ou ao Estado democrático de direito, que proporcionaram transformações

inquestionáveis em sua recepção ao redor do mundo. Convém, no entanto, tentar

compreender o modo como o projeto habermasiano de integração se manifestaria. Ou

melhor, levantar alguns pontos que surgem no final deste trabalho.

Se não chegamos ao fim da história, pelo menos parece que um caminho foi

escolhido. A União Européia é definida, primeiramente, segundo o seu artigo definitivo:

todos os Estados devem ser democracias liberais. Por meio dessa definição é possível

pressupor um determinado desencadeamento estrutural que nos permite compreender a

feição de uma integração deste tipo. Assim, a pressuposição de que superado o

nacionalismo em território europeu, significaria superar a política que se assenta em

valores, pode soar um pouco estranho quando vemos a dificuldade na Europa em conseguir

atribuir status de cidadania aos ciganos, ou quando encaramos os problemas inerentes às

negociações da possível entrada da Turquia no bloco. Em sua perspectiva, a teoria

habermasiana poderia, absolutamente, fornecer soluções a estes problemas, mas, ao mesmo

tempo, de maneira implícita, é uma teoria que opera por meio da necessidade de impor

limites, de um novo fechamento. Ou seja, se torna factível a partir do momento em que

reconhece aqueles com os quais se comunica.

O federalismo constitucional de tipo habermasiano assenta-se em três pressupostos:

o primeiro, da representação; o segundo, da cidadania ativada pela institucionalização de

um ordenamento jurídico; o terceiro, aquilo que alimenta os dois pressupostos anteriores:

uma extensa rede informal de comunicação que abarque a todos. Este último pressuposto

estabelece uma dinâmica que perpassa todos os elementos anteriores, implica em uma

energia propulsora altamente complexa que atualiza e influencia os canais formais. Mas, ao

mesmo tempo, é ordenada pelas instituições que atuam segundo uma lógica procedimental

– procedimentos esses que são regulados por dois princípios, a democracia e o

universalismo; soberania popular e direitos humanos. Por meio disto, a solidariedade

firmada em um patriotismo constitucional, não é senão um reconhecimento mútuo daqueles

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que integram este contexto. O conceito de patriotismo constitucional na teoria

habermasiana dependeria da possibilidade em se formar uma identidade em contextos

comunicacionais que descrevam os interesses de todos os participantes. Por isso, Habermas

pode refutar o argumento que proclama a necessidade de uma noção de povo anteriormente

dada. O momento em que se instaura esta esfera pública européia é o momento que permite

a identificação. Por isso, a concepção de um novo fechamento é tão importante, é preciso

que os cidadãos saibam a demarcação, os limites de tal comunicação.

Uma constituição européia que dependa de uma adesão democrática é a via que

permite eliminar o aspecto guerreiro visto como característica intrínseca aos Estados

nacionais, de uma liberdade coletiva da nação que não coincide com a liberdade dos

cidadãos. Mas, mesmo na concepção habermasiana, a Constituição pode ser realizada,

tendo como ponto de partida, um consenso político mínimo. O império da lei assim

instituído não é resultado de um refundamento, mas, nasce sob o crivo de um fundamento

anteriormente concebido. Assim, superar o nacionalismo segundo o modelo gellneriano,

não significa ultrapassar por completo a lógica que permitiu que em sociedades-Estado, se

concretizassem os ideais republicanos. Pode, simplesmente, ampliá-lo, concebendo-o em

um outro patamar. Pois, para a consolidação de uma Europa que se compreenda como uma

comunidade, não basta a afirmação de que uma teoria se dirige a indivíduos livres e iguais,

é preciso que estes indivíduos se reconheçam como livres e iguais, que sejam capazes de

imaginar uma comunidade. E, como já foi mencionado, a concretização desta idealização

dependeria de uma estrutura institucional anterior.

Se a concepção de república kantiana, da relação entre o Estado e o direito, era

demasiadamente abstrata para realizar-se sem o aspecto de solidariedade entre os cidadãos

e, deste modo, a nação e o fenômeno derivado desta, o nacionalismo, criou as condições de

sua consolidação, Habermas, ao propor um conceito de cidadania que supere a relação com

as identidades nacionais, de um patriotismo constitucional, tenta refletir novamente sobre o

legado kantiano e a sua condição cosmopolita. A constelação pós-nacional é a retomada de

Kant à luz da própria história pela qual os Estados nacionais se constituíram. Pois, é

importante salientar, que uma concepção de patriotismo constitucional não significa

suprimir as nacionalidades, mas possibilitar um acordo entre elas. Se, no futuro, uma

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configuração como esta revogará as identidades nacionais, não se pode afirmar

completamente.

Em contexto global, esta concepção se torna possível ao passo que, a Europa, como

o berço de uma concepção iluminista da humanidade – e em meio ao Ocidente dividido -,

mais uma vez, teria que exercer o papel fundamental em conduzir o mundo ao

reconhecimento dos direitos humanos como fundamento das relações internacionais. Em

contexto europeu, por outro lado, a cidadania européia dependerá de pressupostos que não

coincidem com a inclusão total de uma condição cosmopolita. Nas palavras de Habermas:

Toda organização mundial diferencia-se das comunidades organizadas em torno do Estado graças à ‘condição de inclusão total’ – ela não pode excluir ninguém porque não permite nenhuma fronteira social entre interior e exterior. Uma comunidade política, se se compreende como democrática, deve ao menos poder distinguir entre os membros e não-membros. O conceito auto-referencial de autodeterminação coletiva marca um ‘local lógico’ que cidadãos reunidos democraticamente ocupam como membros de uma comunidade política específica. Mesmo quando uma comunidade se constitui a partir dos princípios universalistas de um Estado constitucional democrático, ela forma uma identidade coletiva de tal modo que interpreta e implementa esses princípios à luz de sua história e no contexto da sua forma de vida. Essa autocompreensão ético-política dos cidadãos de um determinado Estado democrático falta à comunidade inclusiva dos cosmopolitas (Habermas; 2001, 136).

Segundo a própria afirmação de Habermas, uma integração européia, fundamentada

em um federalismo constitucional democrático, só consegue instituir-se ao delimitar os

participantes e ao demarcá-los segundo determinadas concepções que formariam uma

homogeneidade (fraca) na pluralidade. Ou seja, a trindade, Estado-povo-território, sob a

qual o Estado nacional esteve firmado, não será superada por completo pela criação de um

bloco regional politicamente unificado. Por ser mais complexo, por exigir um arcabouço

teórico e prático que garanta de antemão assegurar os pressupostos democráticos para além

dos Estados nacionais, necessitará de uma ampliação desses três elementos, mas, a inclusão

do outro, neste contexto, não poderá abrir mão de uma exclusão. Um maior controle sobre

os fluxos migratórios em contexto europeu não é apenas resultado deste novo fechamento,

também esbarra em questões básicas de uma sociologia do trabalho. Ou seja, neste

contexto, fica em aberto a questão de um direito cosmopolita. A concepção de se

relacionar, cidadania e imigração, do direito a ter direitos em qualquer lugar, não pode ser

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contemplada. Pois, a cidadania novamente encontrará limites nesta nova configuração,

mesmo que o povo correspondente ao status de cidadão seja concebido posteriormente.

Por outro lado, por mais que lidamos com uma Europa pós-1945 que se tornou

pacífica e que, nas relações internacionais priorizem o diálogo, nada nos garante sobre qual

o tipo de política externa que uma Europa constituída como um único ator poderá

desempenhar. Habermas, de um ponto de vista global, ciente em relação às dificuldades

para a constituição de uma democracia cosmopolita, de um patriotismo constitucional em

âmbito mundial, apóia-se na perspectiva de que consensos são possíveis por meio das

organizações internacionais. Assim, na esfera internacional os acordos se restringem aos

atores estatais. A União Européia ao constituir-se como um único ator, atuaria no sentido de

defender seus próprios interesses e de influenciar decisões:

Um Estado confederado europeu obterá, em caso favorável, graças à sua base econômica alargada e à moeda comum, efeitos escalonados, como, por exemplo, vantagens no campeonato global. A criação de unidades políticas maiores ainda não modifica, no entanto, nada no modus da concorrência por posições enquanto tal, ou seja, no modelo de alianças defensivas contra o resto do mundo. Por outro lado, fusões supranacionais desse gênero cumprem, ainda assim, com uma condição que é necessária para o emparelhamento da política com os mercados globalizados. Assim, pode-se formar ao menos um grupo de atores apto a negociações globais que em princípio é capaz não apenas de acordos incisivos, mas também de implementá-los (Habermas; 2001, 131).

Tentamos neste trabalho acompanhar um trajeto que se inicia com a formulação de

república presente na filosofia da história kantiana. Por meio da influência de Herder,

tentamos compreender a relação entre os valores republicanos, entre a humanidade em

progresso e a concepção de nação, que permitiram ao fenômeno do nacionalismo operar

uma mudança especial, tornando ideais abstratos em realidade por meio de uma

solidariedade nacional. Em Habermas e, em seus escritos sobre o processo de unificação

europeu, nos deparamos com uma percepção que pretende superar este quadro por

considerar um projeto necessário para o mundo contemporâneo, sobretudo, para o contexto

europeu que pretende uma unificação política. O interessante a se notar no pensamento de

Habermas é a preocupação que o motiva em relação ao manuseamento da idéia que permite

pensar a separação entre identidade nacional e cidadania. Essa separação deve ser

assegurada por meio de pressupostos democráticos universalizáveis. E, de tal modo,

operamos por meio de uma análise que seguiu este percurso, qual seja, o itinerário do

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filósofo alemão que aliou, em vários dos seus escritos, a teoria com a história. Assim,

talvez tenha sido possível demonstrar que a filosofia habermasiana pode ser estudada

segundo este prisma. Com isto, podemos elucidar o sistema habermasiano, torná-lo mais

palpável, o que nos abre possibilidades de pensar outros contextos, pois, é necessário não

cair no erro de universalizar aquilo que o autor não tinha como pretensão tornar

universalizável.

O que nos cabe ressaltar é que todos esses desenvolvimentos dizem respeito a uma

conjuntura que é dependente de uma história específica. Por isso, a concepção de

patriotismo constitucional, resultado de uma cultura política comum, deverá, sim, ser

resultado de uma história cultural que permite a sua realização: o processo de aprendizado,

que deverá levar a uma solidariedade de cidadãos expandida em termos europeus,

encontra-se de fato em uma linha de experiências especificamente européia141. Do mesmo

modo que, sendo a sua efetivação dependente de uma vontade política, de uma moral do

político kantiana, que induz a sua edificação, não podemos mensurar os resultados que

possam advir disto; se uma nova identidade que molde os indivíduos, de visões de mundo

aglutinadas em uma única visão, continuará a ver o outro, necessariamente excluído, como

um estranho inferior. Por outro lado, a perspectiva habermasiana espera de tal

configuração, uma cidadania pautada em uma autonomia que permite uma identificação

que se realizaria por meio de uma escolha. Assim, permanece viva a crença de que a

história da humanidade é um caminho que permite, cada vez mais, a conquista do ideal de

liberdade.

141 Habermas; 2001, 130.

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