Dissertacao - Jamerson Farias

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Centro de Artes e Letras Escola de Música Programa de Pós-Graduação em Música O cavaco rítmico-harmônico na música de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): a construção estilística de um “cavaco-centro” no choro. Jamerson Farias Ribeiro Rio de Janeiro 2014

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Dissetacao

Transcript of Dissertacao - Jamerson Farias

  • Universidade Federal do Rio de Janeiro

    Centro de Artes e Letras

    Escola de Msica

    Programa de Ps-Graduao em Msica

    O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): a

    construo estilstica de um cavaco-centro no choro.

    Jamerson Farias Ribeiro

    Rio de Janeiro

    2014

  • CAVACO RTMICO-HARMNICO NA MSICA DE WALDIRO FREDERICO TRAMONTANO (CANHOTO):

    A construo estilstica de um cavaco-centro no choro

    Por

    Jamerson Farias Ribeiro

    Dissertao de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Msica da Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro; concentrao em Musicologia: Etnografia das prticas musicais, como parte integrante dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre. Orientadora: Prof. Dr. Regina Meirelles

    Rio de Janeiro, 2014.

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  • iii

  • Agradecimentos

    Primeiramente agradeo a minha famlia, especialmente minha me Eleonora, meu pai

    Janio e meu irmo Jander, que sempre me apoiaram e me deram suporte para que eu pudesse

    dar continuidade minha formao acadmica.

    professora Dra. Regina Meirelles, minha orientadora, pelos conselhos, sugestes e

    infindvel bom humor.

    Aos professores Dr. Pedro Arago e Dra. Mrcia Taborda pelas sugestes dadas no

    exame de qualificao.

    banca examinadora: prof. Dr. Celso Ramalho e prof. Dr. Pedro Arago.

    Ao CNPq, pela ajuda financeira durante o ltimo ano de pesquisa.

    Aos entrevistados: Bernardo Diniz, Henrique Cazes, Maurcio Verde, Luciana Rabelo

    e Adilson Tramontano.

    Miguel ngelo de Azevedo, mais conhecido como Nirez, pela ateno e acesso a

    sua coleo de discos em 78rpm.

    Aos amigos prof. Me. Pablo Garcia e prof. Dr. Pedro Rogrio, pela iniciao

    pesquisa acadmica, alm de todos os outros que, de alguma forma, contriburam para o

    desenvolvimento deste estudo.

    A todos os amigos e professores do Programa de Ps-Graduao em Msica da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    iv

  • RIBEIRO, Jamerson Farias. O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): A construo estilstica de um cavaco-centro no choro. 2014. Dissertao (Mestrado em Musicologia: Etnografia das prticas musicais) Programa de Ps-graduao em Msica, Escola de Msica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Resumo

    Este trabalho visa refletir acerca da construo estilstica de Waldiro Frederico Tramontano,

    Canhoto do Cavaquinho, descrevendo, analisando e transcrevendo aspectos importantes para

    caracterizao de seu estilo a partir da audio de gravaes realizadas com o seu regional nas

    dcadas de 1950 e 1960. Canhoto foi um dos primeiros cavaquinistas a se tornar msico

    profissional atravs do rdio, atuando em grupos importantes para a consolidao de um

    modelo de acompanhamento atravs dos conjuntos regionais. Atualmente o msico uma das

    principais referncias para o cavaquinho na funo de acompanhamento, tendo no repertrio

    gravado muitos clssicos da msica popular. Aps a elaborao de um relato biogrfico do

    msico, a partir de depoimentos e documentos presentes no acervo pessoal de seu filho,

    Adilson Tramontano, analisamos o contexto musical do perodo que corresponde a seu

    aprendizado e profissionalizao com o objetivo de investigar a relao de seu estilo com as

    transformaes rtmicas que culminariam no samba urbano carioca na virada das dcadas de

    1920 e 1930. A transmisso musical ser observada a partir do conceito de ordem sonora, do

    etnomusiclogo John Blacking e as anlises norteadas por conceitos de Philipp Tagg sobre a

    anlise da msica popular gravada. No intuito de contribuir para estudos posteriores, tambm

    foi realizado um mapeamento rtmico das levadas de Canhoto.

    Palavras chave: Canhoto; choro; cavaquinho; msica popular; etnomusicologia.

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  • RIBEIRO, Jamerson Farias. O cavaco rtmico-harmnico na msica de Waldiro Frederico Tramontano (Canhoto): A construo estilstica de um cavaco-centro no choro. 2014. Dissertao (Mestrado em Musicologia: Etnografia das prticas musicais) Programa de Ps-graduao em Msica, Escola de Msica, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

    Abstract

    This study aims to have a reflexive look on the stylistic musical construction of Waldiro

    Frederico Tramontano, Canhoto do Cavaquinho, by describing, analyzing and transcribing

    important aspects of his performances. We develop this research from listening to the

    recorded material made with his regional group in the 1950s and 1960s. Canhoto was one of

    the first musicians to become a professional artist on the radio era, perfoming in conceited

    groups in terms of developing a harmonic style via conjuntos regionais. Currently the

    musician is one of the main references on cavaquinho, having recorded many classics in the

    repertoire of popular music. After the description of his biography from the testimonies and

    documents presented in the personal collection of his son, Adilson Tramontano, we have

    analyzed the musical context from the period he became a professional musician aiming to

    unravel the connections from his personal style and the rythmical changes that ended up in the

    creation of the urban samba in Rio de Janeiro in the late 1920's and 1930s. The musical

    transmission will be observed from the concept of sonic order, proposed by the

    ethnomusicologist John Blacking and the analysis guided by the concepts of Philipp Tagg,

    that deals with the analysis of recorded popular music. In order to contribute to further studies

    a rhythmic mapping based on Canhoto's way of playing was written.

    Keywords: Canhoto; choro; cavaquinho; popular music; ethnomusicology.

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  • Lista de Ilustraes Fotografia 1: Casa de Caboclo..................................................................................................19 Fotografia 2: Capa de disco......................................................................................................21 Fotografia 3: Convite do concurso de choros...........................................................................23 Fotografia 4: Panfleto de divulgao........................................................................................24 Fotografia 5: Gente do Morro...................................................................................................30 Fotografia 6: Aurora Miranda e Regional de Benedito Lacerda...............................................32 Fotografia 7: Regional de Benedito Lacerda............................................................................35 Fotografia 8: Matria Revista do Rdio....................................................................................39 Fotografia 9: Canhoto e Seu Regional......................................................................................42 Exemplos musicais 1: Paradigma do Tresillo...........................................................................78 Exemplos musicais 2: Sncope caracterstica............................................................................79 Exemplos musicais 3: Habanera...............................................................................................79 Exemplos musicais 4: Cinquillo...............................................................................................79 Exemplos musicais 5: Paradigma do Estcio............................................................................80 Exemplos musicais 6: Paradigma do Estcio............................................................................80 Levadas e palhetadas 1: Levada violo tamborim.................................................................81 Levadas e palhetadas 2: Levada teleco teco .........................................................................81 Levadas e palhetadas 3: Acompanhamento Amanh Eu Volto.................................................82 Levadas e palhetadas 4: Palhetada Visite o Terreiro................................................................82 Levadas e palhetadas 5: Exemplo grafia de direo de movimentos .......................................88 Levadas e palhetadas 6: Exemplo grafia do stacatto de dedo...................................................89 Levadas e palhetadas 7: Palhetada Jonas 1..............................................................................92 Levadas e palhetadas 8: Palhetada Jonas 2...............................................................................92 Levadas e palhetadas 9: Palhetada de choro.............................................................................94 Levadas e palhetadas 10: Palhetada alternada..........................................................................95 Levadas e palhetadas 11: Palhetada de choro em Uma noite no Sumar.................................95 Levadas e palhetadas 12: Contraponto caracterstico em Cuidado, Violo..............................97 Levadas e palhetadas 13: Contraponto caracterstico...............................................................97 Levadas e palhetadas 14: Duetos Doce de Coco.......................................................................98 Levadas e palhetadas 15: Palhetada de maxixe........................................................................99 Levadas e palhetadas 16: Palhetada de maxixe (Jayme Vignoli)...........................................100 Levadas e palhetadas 17: Palhetada de maxixe (Luciana Rabello).........................................100 Levadas e palhetadas 18: Palhetada de polca..........................................................................101 Levadas e palhetadas 19: Levada de polca (violo)................................................................102 Levadas e palhetadas 20: Palhetada Roda de Bamba (introduo).........................................103 Levadas e palhetadas 21: Palhetada de Samba 1....................................................................103 Levadas e palhetadas 22: Palhetada de Samba 2....................................................................104 Levadas e palhetadas 23: Contraponto no improviso.............................................................104 Levadas e palhetadas 24: Palhetada Visite o terreiro (introduo).........................................105 Levadas e palhetadas 25: Palhetada de baio 1.......................................................................106 Levadas e palhetadas 26: Palhetada de baio 2.......................................................................106 Levadas e palhetadas 27: Palhetada de rojo..........................................................................107 Partitura grfica 1: Cuidado, Violo.........................................................................................93 Partitura grfica 2: Doce de Coco.............................................................................................94

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  • Partitura grfica 3: Dorinha, Meu Amor...................................................................................99 Partitura grfica 4: Rato Rato..................................................................................................101 Partitura grfica 5: Roda de Bamba........................................................................................102 Partitura grfica 6: Visite O Terreiro......................................................................................102 Partitura grfica 7: Baio De Dois..........................................................................................105

    viii

  • Sumrio

    Introduo................................................................................................................................10

    Capitulo 1 Canhoto no choro: Contextualizao...............................................................16

    1.1. Biografia.............................................................................................................................16

    1.2. Trajetria artstica e profissional: os Conjuntos Regionais, o Rdio e o Disco.................27

    1.2.1. Gente do Morro.................................................................................................27

    1.2.2. Conjunto Regional de Benedito Lacerda...........................................................34

    1.2.3. Canhoto e Seu Regional....................................................................................39

    Captulo 2 Que choro esse? O cavaco-centro na msica popular brasileira................45

    2.1. Choro e samba: mtuas influncias na msica popular....................................................45

    2.2. Estruturao formal e instrumental no choro....................................................................55

    2.3. A construo estilstica de Canhoto..................................................................................66

    2.3.1. Antecessores: a linhagem lvares-Galdino-Canhoto e os processos de transmisso musical..................................................................................................................68

    2.3.2. Transformaes rtmicas e o legado de Canhoto................................................78

    Captulo 3 Anlise tcnica e caracterizao estilstica......................................................86

    3.1. Metodologia de anlise......................................................................................................86

    3.2. Caracterizao estilstica e mapeamento rtmico das palhetadas.......................................89

    3.3.1. Choro........................................................................................................................93

    3.3.2. Maxixe.....................................................................................................................99

    3.3.3. Polca ......................................................................................................................101

    3.3.4. Samba e batuque....................................................................................................102

    3.3.5. Baio......................................................................................................................105

    Concluso...............................................................................................................................108

    Bibliografia............................................................................................................................111

    Anexos....................................................................................................................................121

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  • 10

    Introduo

    Canhoto do Cavaquinho , certamente, uma das personalidades mais importantes do

    choro brasileiro. No apenas por sua atuao em gravaes durante mais de 50 anos, mas pela

    contribuio deixada msica popular e a seu instrumento. O cavaco-centro, acima de tudo,

    uma funo que, executada pelo instrumento, embasa a sonoridade do conjunto regional e d

    sentido a intervenes e variaes rtmicas e meldicas dentro formao. Ainda so poucas os

    estudos sobre as prticas de acompanhamento no contexto do choro (Taborda, 1995; Becker,

    1996; Bittar, 2011) e quase nenhuma sobre o cavaquinho, ficando a reflexo sobre a prtica

    no choro voltada para solistas e compositores. Nesse sentido o estudo da prxis do

    cavaquinista Waldiro Frederico Tramontano - o Canhoto (1908 - 1987), atravs da descrio e

    anlise de sua trajetria artstica e de aspectos peculiares de sua execuo que o

    transformaram em uma das maiores referncias para o cavaco-centro na msica popular,

    extremamente importante. Esperamos com esse trabalho contribuir para preencher esta lacuna

    na bibliografia sobre o choro e cavaquinho.

    O captulo inicial deste estudo tem dois principais objetivos: produzir um relato

    biogrfico sobre Canhoto e descrever sua carreira artstica, focalizando sua atuao em trs

    importantes grupos da histria da msica popular brasileira: o Gente do Morro, o Conjunto

    Regional de Benedito Lacerda e Canhoto e Seu Regional. A escolha justifica-se pela

    importncia desses grupos na consolidao de um modelo bsico de acompanhamento na

    msica brasileira atravs da atuao do trio de acompanhamento Dino-Meira-Canhoto,

    aliando violes em contraponto e cavaquinho centrista percusso.

    Foi realizada uma reviso de literatura no intuito de levantar os dados biogrficos

    disponveis e compar-los com as duas principais fontes de informaes sobre Canhoto

    conhecidas at o momento: o acervo pessoal de Waldiro em posse de seu filho Adilson

    Tramontano e um depoimento do prprio msico registrado em 1978 por Lilian Zaremba,

    que acreditamos ser o nico registro em udio da voz do msico. Zaremba registou uma srie

    de depoimentos em 1978 para sua monografia do curso de graduao em Histria da PUC

    Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Ao todo foram 12 fitas cassetes que,

    posteriormente, foram entregues ao professor Henrique Cazes que nos revelou que a nica

    defeituosa era a gravao de Canhoto. O material foi totalmente digitalizado e nos foi cedido

    gentilmente pelo professor. Dentre os depoimentos esto o de Dino Sete Cordas, Abel

    Ferreira, Severino Arajo, Copinha, Radams Gnatalli e Orlando Silveira.

  • 11

    Presentes no acervo de Adilson esto documentos e fotos que retratam vrios

    momentos da carreira artstica do msico, alm de recortes de jornais e revistas (tambm

    encontradas no site da Hemeroteca da Biblioteca Nacional1). Tambm foram realizadas

    entrevistas com Adilson e alguns cavaquinistas cariocas que conheceram pessoalmente o

    msico ou que possuem bastante conhecimento de sua obra. Trechos dos depoimentos sero

    utilizados constantemente ao longo do texto devido relevncia das informaes em todos os

    mbitos que abordamos na pesquisa. Vale lembrar que as entrevistas ainda tiveram como

    objetivo discutir algumas questes tcnicas sobre o instrumento e a construo dos estilos de

    palhetadas, sendo alguns dos entrevistados fontes dos dois tipos de dados, o que torna

    necessrio que as intervenes do entrevistador sejam pontuais e feitas somente quando as

    perguntas tiverem a finalidade de gerar um conhecimento ou dialogar sobre possveis

    concluses e hipteses sobre a questo principal. Julgamos ser mais apropriadas entrevistas

    em formato semiestruturado (Fraser e Gondim, 2004), o que possibilitaria a mudana de

    abordagem de acordo com o objetivo das perguntas. Outro tpico do captulo reservado

    descrio de sua trajetria profissional sendo necessrio, em alguns casos, investigar possveis

    informaes contraditrias.

    No segundo captulo basicamente demonstraremos como foram estruturados ao longo

    dos anos os procedimentos bsicos e convenes encontrados na execuo do cavaquinho

    centro dentro do contexto musical que lhe comum, contextualizando e preparando o leitor

    para o captulo 3 onde realizaremos a anlise e caracterizao do estilo de Canhoto atravs

    das gravaes. Demonstraremos tambm como acontece a chamada diviso de tarefas em

    relao aos procedimentos rtmicos e harmnicos por parte do trio base de acompanhamento:

    cavaco, violo de 6 e violo de 7 cordas.

    O primeiro tpico est reservado reviso de literatura, onde discutiremos sobre os

    processos de transformao dos gneros choro e samba e suas relaes, evidenciado o debate

    existente na literatura ps-1980 onde observamos uma crtica aos lugares de origem. A

    escolha de samba, choro e regional se justifica pelo fato de ser este o contexto onde se

    desenvolve a prtica de Canhoto. Na segunda seco fizemos um histrico sobre as principais

    formaes instrumentais utilizadas ao longo dos anos para execuo do repertrio dito

    popular, bem como de sua estruturao sonora/instrumental, alm dos aspectos estruturais do

    gnero choro que, em alguns casos, auxiliava e at facilitava o aprendizado dos instrumentos

    e garantia aos msicos um conhecimento musical genrico sobre teoria musical. Sero

    1 < http://hemerotecadigital.bn.br/>

  • 12

    focalizados tambm aspectos do acompanhamento harmnico, frente s consideraes de

    Carlos Almada em Harmonia Funcional (2009) e A estrutura do choro (2002).

    Na ltima seco ser abordada a construo estilstica de Canhoto, partindo de seus

    antecessores, transformaes rtmicas at sua transformao em referncia para as novas

    geraes. Discutimos a prxis musical de acompanhamento no choro e alguns aspectos de

    transmisso e aprendizado a fim de relacion-los com a prtica aqui estudada, dando nfase

    em seu perodo de aprendizagem musical, naturalmente, pois onde acreditamos existir maior

    influncia do contexto sociocultural e de seu eventual professor (Galdino Barreto). A relao

    entre indivduo e sociedade foi estudada por Mirian Goldenberg em seu livro A arte de

    pesquisar (1997) onde so apresentadas diversas abordagens para a realizao de uma

    pesquisa qualitativa em cincias sociais. O mtodo biogrfico figura como importante

    ferramenta na tentativa de entender uma coletividade atravs de uma histria de vida. A

    autora afirma que cada individuo uma sntese individualizada e ativa de uma sociedade,

    uma reapropriao singular do universo social e histrico que o envolve (Goldemberg,

    1997:36). O mtodo foi utilizado na pesquisa com o objetivo de relacionar o contexto

    histrico no qual Canhoto estava inserido com sua prtica musical. A relao se torna

    importante, pois partimos da hiptese que a construo estilstica do acompanhamento de

    Canhoto sofre influncia do processo de mudana de estilo nos padres rtmicos empregados

    nos acompanhamentos do samba e choro no incio da dcada de 1930 segundo padres

    mencionados por Sandroni (2001). A transmisso musical foi observada a partir do conceito

    de ordem sonora, do etnomusiclogo John Blacking.

    No ltimo captulo ser realizada a descrio, anlise e extrao dos elementos que

    compem o estilo de Canhoto tendo como fontes primrias as gravaes dos chamados

    discos de carreira e as entrevistas. Como metodologia de anlise utilizamos alguns

    conceitos de Phillip Tagg para anlise de msica popular gravada (Tagg, 1979; Ulha

    1999a,1999b, 2006) . Os musemas seriam fragmentos musicais presentes na msica que

    possam ter um significado dentro de um contexto musical especfico. Definidos como

    timbres, levadas, cadncias, etc. os musemas so apresentados em partituras grficas ou

    grades musemticas podendo ser extrados para uma anlise individual. Nesse sentido a

    metodologia foi utilizada em algumas gravaes ilustrativas, com relao s caractersticas

    estilsticas do msico e a utilizao das palhetadas de gneros mais importantes, onde foi

    possvel observar tambm a recorrncia de certos motivos rtmicos em seus

    acompanhamentos.

  • 13

    Para as anlises foi realizado, inicialmente, um grande levantamento fonogrfico dos

    trs principais grupos que Canhoto participou ao longo da carreira: Gente do Morro, Conjunto

    Regional de Benedito Lacerda e Canhoto e Seu Regional. A pesquisa fonogrfica foi

    realizada em trs etapas. Iniciou-se em 2011 no Arquivo Nirez em Fortaleza-Ce, onde

    pudemos ter um panorama inicial da quantidade de gravaes realizadas pelo msico em 78

    RPM, principalmente dos dois primeiros grupos, j que Canhoto e Seu Regional atravessa

    uma fase hbrida em relao aos discos (78rpm e Lps). H uma segunda etapa de ampliao

    do acervo da pesquisa atravs de blogs da internet especializados em gravaes antigas como

    o Forr em vinil e Ao chiado brasileiro alm de valiosas contribuies dos entrevistados que

    nos indicaram e nos cederam gravaes e outros materiais. Consultamos tambm o acervo

    digital do Instituto Moreira Sales (IMS) e do Instituto Memria Musical Brasileira (IMMUB),

    onde pudemos escutar gravaes de difcil acesso alm de obter informaes sobre os discos

    (ano de lanamento, gravadora, nmero de catlogo, etc). Atualmente estamos trabalhando

    para reunir todo esse acervo de gravaes realizadas por Canhoto ao longo da carreira. A

    tarefa difcil, pois como vimos anteriormente as fichas tcnicas so inexistentes em muitos

    casos. H outros mecanismos menos confiveis como associ-los s gravadoras das quais

    eram funcionrios ou ainda contar com a memria de alguns msicos que viveram no perodo

    como Jorginho do Pandeiro2, sempre atentando para os eventuais problemas deste mtodo.

    Porm a melhor maneira de identific-lo nas gravaes ainda a escuta crtica e, pensamos

    que a partir de agora, uma escuta guiada.

    Devido ao grande nmero de gravaes foi preciso criar categorias que limitassem a

    amostragem, j que o arco temporal em que o msico atuou de quase 50 anos (1932 1980).

    Sabemos ainda que alguns dos msicos dessas formaes, mais precisamente Dino e Meira

    juntamente com Canhoto, tambm esto presentes em vrios outros discos da msica popular,

    porm sob outra denominao ou mesmo sem serem devidamente identificados quando

    estavam na condio de acompanhadores. Segundo o Instituto Memria Musical Brasileira

    (IMMUB) somente com nome de Canhoto e Seu Regional, foram oito Lps, cerca de trinta e

    seis 78rpm, trs coletneas e projetos extras, alm de participaes em lanamentos que

    reuniam vrios artistas do choro e tambm do samba. O site Discos do Brasil indica a

    participao como acompanhador em, aproximadamente, mais de 360 msicas divididas em

    2 Jorge Jos da Silva (1930) atualmente um dos ltimos representantes do choro da era do rdio ainda vivo e em atividade. Nascido numa famlia de importantes msicos para choro como Dino 7 Cordas, entrou em 1956 para o Regional do Canhoto onde ficou at a dcada de 1960. Em 1972 passou a integrar o poca de Ouro que estava parado devido o falecimento de seu fundador Jacob do Bandolim.

  • 14

    65 discos (vinil) durante sua carreira. Assim, no intuito de no aumentar ainda mais um leque

    considervel de gravaes, foi preciso criar categorias que limitassem a amostragem,

    considerando a carreira do instrumentista. Os critrios para essa seleo foram,

    principalmente, a qualidade das gravaes e a capacidade de ilustrar elementos estilsticos

    representativos que encontramos na execuo do msico. Nesse sentido so importantes os

    discos de carreira entre 1951 e 1969, onde o regional de Canhoto aparece como artista

    principal, e os discos do paraense Ary Lobo3. Ary foi cantor e compositor de baies, cocos e

    rojes. Seus discos foram importantes nesse estudo pelo fato de o cavaquinho ter sua

    sonoridade destacada nas gravaes devido instrumentao utilizada (com predominncia de

    instrumentos de percusso), favorecendo uma boa audio das dinmicas rtmicas do

    instrumento durante as msicas. Tambm foi produzido um catlogo parcial das gravaes

    realizadas por Canhoto em discos de 78 rpm entre os anos de 1932 e 1965, alm dos citados

    no texto, no intuito de facilitar a identificao em gravaes mais antigas, assim como

    referenciar este trabalho.

    Outra importante fonte para anlise foram as entrevistas realizadas com Bernardo

    Diniz, Luciana Rabelo, Henrique Cazes e Mauricio Verde que so cavaquinistas e alguns,

    pesquisadores. A escolha dos entrevistados se deu pelo fato de trs desses msicos terem

    conhecido pessoalmente Canhoto e outro ter sido aluno da principal representante do estilo na

    atualidade, Luciana Rabello. Alm do contato consideramos a relevncia dos msicos no

    cenrio atual e os traos estilsticos identificveis em sua prtica, com relao a de Canhoto.

    Os depoimentos so bastante esclarecedores sobre aspectos tcnicos, tecnolgicos (construo

    do instrumento utilizado pelo msico), contexto sociocultural, dentre outras informaes.

    Ressaltamos a importncia destes depoimentos para caracterizao, j que a partir deles

    podemos ver de vrios prismas como os msicos percebem as nuances estilsticas e

    compreendem a prxis do cavaquinista. Foram realizadas audies conjuntas de gravaes

    junto com os entrevistados na tentativa de dialogar sobre caractersticas mais importantes

    alm da identificao do msico em gravaes mais antigas. O ato de descrever, explicar o

    estilo que j to internalizado para eles na prtica, nos rendeu boas observaes.

    Lembramos que Canhoto tocava com as cordas na posio comum, a de destro, mas

    virando o instrumento para o lado oposto do usual. Apesar das questes ergonmicas (postura

    3 Gabriel Eusbio dos Santos Lobo (1930-1980), o Ary Lobo, era soldado da aeronutica antes de vir seguir carreira artstica no Rio de Janeiro. Comeou apresentando-se em programas de calouros na Rdio Clube do Par. Gravou seu primeiro disco pela RCA em 1958. Depois disso popularizou grandes sucessos como O ltimo pau-de-arara e vendedor de caranguejo (RCA Victor BPL 3060).

  • 15

    e mo motora) representaremos os exemplos, com suas devidas articulaes, considerando a

    direo dos movimentos sonoros: do grave para o agudo (para baixo) ou ao contrrio (para

    cima) a segunda caracterizando um de seus principais elementos identitrios que

    denominamos de volta.

  • 16

    Capitulo 1 Canhoto no choro: Contextualizao

    1.1. Biografia

    Talvez se nos referssemos figura central deste estudo somente por seu nome de

    registro em cartrio, Waldiro Frederico Tramontano, poucos seriam capazes de associ-lo a

    figura emblemtica que ele se tornou para o cavaquinho, para o choro e, porque no dizer,

    para msica popular brasileira. Referir-se, ento, somente ao seu apelido, Canhoto,

    certamente geraria mais dvidas quanto a sua identificao no meio musical principalmente

    no contexto do choro j que outros msicos brasileiros j se utilizaram dessa caracterstica

    motora para criao de seu nome artstico. Para ficarmos somente nos mais conhecidos, como

    Waldiro, Amrico Jacomino (1889-1928) e Rogrio Guimares (1900-1980) tambm tem seus

    nomes artsticos relacionados com o apelido, deixando para os momentos no-musicais seus

    nomes de batismo. Sem esquecermos Francisco Soares de Arajo, o Canhoto da Paraba

    (1928 - 2008), que alm do apelido ainda teve sua naturalidade agregada ao nome. Ainda

    possvel encontrar vrios outros msicos com o mesmo codinome nos relatos sobre msica

    popular do final do sculo XIX e incio do sculo XX, talvez pelo fato de causar estranheza a

    execuo de um instrumento do lado contrrio do normal (na viso dos destros), sendo logo

    associado ao apelido quando surgia.

    Ento, para no restar dvidas, falaremos aqui sobre o cavaquinista Canhoto do

    cavaquinho nascido em 9 de agosto de 1908, na rua So Clemente, na vila de nmero 216, no

    bairro de Botafogo situado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro (tendo em vista a atual

    disposio social da cidade). Filho mais velho de 5 irmos, perdeu o pai ainda menino tendo

    que ajudar na renda familiar desde muito cedo, catando bolas de tnis em um clube localizado

    no bairro onde nascera. Um leitor interessado em msica popular brasileira, certamente, em

    algum momento, j se deparou com o nome do msico na literatura especializada.

    considerado, por muitos msicos e chores espalhados pelo pas, como um dos maiores

    representantes da escola de cavaquinho-centro, rtmico-harmnico ou de acompanhamento da

    histria de nossa msica, fato que infelizmente no se traduziu em materiais biogrficos sobre

    sua carreira e sua prtica musical, como observamos j ter acontecido com seus eternos

    companheiros de regional Dino Sete Cordas e Meira 4.

    4 Dino (Horondino Jos da Silva) o Dino Sete Cordas, certamente um dos nomes mais importantes do violo de sete cordas, ajudando a definir o modelo de execuo adotado por muitos instrumentistas posteriores a ele

  • 17

    De ascendncia italiana, como nos revela seu sobrenome Tramontano, Waldiro teve

    sua iniciao musical cedo, comeou a tocar cavaquinho bastante jovem, tomando parte,

    desde os seus oito anos de idade [1916] em numerosas reunies festivas, integrando diferentes

    conjuntos que iam exibir-se Rua General Polidoro (RCA Victor, 1956). Em depoimento,

    Canhoto tambm comenta sobre as reunies festivas que ocorriam em sua casa e sobre seu

    inicio no instrumento.

    Eu tinha oito anos de idade, e ia sempre uma turma l em casa, quando eles saam dos bares eles iam pra minha casa tocar... quatro, cinco horas da manh eles iam tocar. E eu vi o cavaquinho e gostei muito! Ento falei com meu pai e ele colocou um professor de cavaquinho, mas eu sou canhoto. Ento eu aprendi virando as cordas. (Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978)

    O trecho nos revela pontos importantes sobre o perodo de iniciao e aprendizado

    musical de Canhoto onde havia um ambiente movimentado por reunies musicais

    provavelmente patrocinadas por seu pai alm da presena de um professor de cavaquinho. A

    prtica coletiva proporcionada pelas rodas de choro, reunies festivas alm das

    participaes em conjuntos que realizavam apresentaes em espaos de seu bairro,

    tambm ganham, assim, relevncia no processo no sentido de vivenciar as lies aprendidas

    com o professor. Outro ponto importante para o estilo de Canhoto ser a disposio das

    cordas no cavaquinho.

    Logo na sequncia da entrevista o msico comenta que logo aps ter aprendido todas

    as posies como um canhoto normalmente faz, invertendo as cordas, um violonista

    chamado Seu Oscar disse a Canhoto: voc tem que aprender com as cordas direitas [grifo do

    autor], se no voc no toca instrumento nenhum e os outro no tambm no tocam seu

    instrumento... a tive que aprender novamente. (Zaremba, 1978). Dessa forma o msico teria

    adquirido a primeira grande caracterstica de seu estilo no por uma necessidade tcnica, mas

    por sugesto de outra pessoa frente ao contexto sociocultural da poca onde o

    compartilhamento e comunho musical pareciam permear as rodas de choro e reunies

    festivas.

    Ainda sobre seu provvel professor, cogitada a possibilidade do cavaquinista

    Galdino Barreto ter ocupado tal posio, como veremos adiante. Para Arago (2011) essa

    prtica de ensino considerada informal devido a uma srie de fatores, como mtodos e

    legitimidade em relao s instituies de ensino de msica da poca. Na virada do sculo

    XIX para o sculo XX, professores informais eram comumente encontrados no ambiente do

    e Meira (Jayme Thoms Florence) violonista pernambucano, professor de violo de instrumentistas como Raphael Rabello e Baden Powell.

  • 18

    choro, principalmente em relao ao violo e cavaquinho. O termo utilizado, por Arago

    (2011) de modo a demonstrar uma oposio ao formalismo no ensino de msica vinculado as

    instituies tradicionais da sociedade carioca no perodo como, por exemplo, o Conservatrio

    de Msica e os professores ligados a ele. A oralidade tambm sugere que certas prticas se

    tornem um modelo, referncia de uma prtica ideal para algum ou, ainda, para determinados

    grupos. A relao entre Galdino e Canhoto ser aprofundada no captulo seguinte.

    Em 1927/1928, devido a uma epidemia de febre amarela, Canhoto foi trabalhar na

    sade pblica como mata-mosquito onde conheceu um trombonista de nome Benjamim e esta

    amizade lhe possibilitou a frequncia em vrias festas e rodas de choro da cidade do Rio de

    Janeiro. Em uma dessas festas, na casa de Alfredo Jos Rodrigues, o Alfredinho Flautim

    (1884 1958) que participou do Grupo da Velha Guarda5 organizado por Almirante na

    dcada de 1950 , conheceu o violonista Gorgulho (Jacy Pereira). Segundo o texto biogrfico

    da RCA Victor (1956) sobre Canhoto, teria sido o violonista Gorgulho, ento integrante do

    recm-criado Gente do Morro liderado pelo flautista Benedito Lacerda, quem o convidou para

    participar do grupo. Porm, no depoimento Zaremba (1978), Canhoto credita sua entrada no

    grupo e sua posio na msica popular a Antnio Carlos Martins (1913 1985), tambm

    conhecido como Russo do Pandeiro e considerado por muitos um virtuose em seu

    instrumento, esclarecendo tambm a data de ingresso no grupo Gente do Morro como

    veremos a seguir. Paulo Flores (2007) no encarte do disco Ben, o flautista tambm cita

    informaes sobre o trabalho na sade pblica. Segundo Flores, Waldiro ganhava a vida

    como mata-mosquitos ansiando poder se dedicar a msica completamente (Flores, 2007:21)

    o que foi possvel somente nos primeiros anos da dcada de 1930 com sua profissionalizao

    atravs do Gente do Morro e da consequente fixao dos conjuntos regionais nas rdios.

    O rdio possibilita, assim, o incio da carreira profissional de Waldiro e de muitos

    outros msicos de choro na capital federal que passam a assinar contratos com emissoras de

    rdio e gravadoras da poca, mudando sua posio trabalhista de autnomo para empregado,

    sendo considerados funcionrios das emissoras recebendo salrio fixo e at multas por

    eventuais atrasos. Os contratos de exclusividade existiam em alguns casos, mas era grande a

    rotatividade de msicos e regionais entre as emissoras de rdio e gravadoras atravs de

    artifcios como a mudana de nome dos conjuntos ou at mesmo gravaes isoladas/pontuais.

    A profissionalizao tambm abriu um leque de possibilidades para o msico, como a

    participao em outras formaes instrumentais alm dos regionais. Aps a entrada para o

    5 O grupo contava ainda com as participaes de Pixinguinha, Donga, Joo da Baiana, Bide, dentre outros, e gravou entre 1955 e 1956 trs discos: A Velha Guarda, Carnaval da Velha Guarda e Festival da Velha Guarda.

  • 19

    grupo de Benedito, Canhoto atuou em uma orquestra que acompanhava a famosa bailarina

    Eros Voluzia Machado (1914-2004) e tambm na tradicional Casa de Caboclo, fundada por

    Antnio Lopes de Amorim, o Duque (1884 1953), dentre outro artistas como Jaraca &

    Ratinho e Pixinguinha. O espao localizava-se na Praa Tiradentes, no centro da cidade do

    Rio de Janeiro, mais precisamente no saguo do teatro So Jos e era dedicado a encenao de

    peas do Teatro de Revistas com temticas sertanejas, alm da prtica de msicos populares.

    Segundo o depoimento de Meira a Snia Maria Braucks Calazans Rodrigues no livro

    Jararaca e Ratinho: a famosa dupla caipira (1983) antes do incio das apresentaes teatrais,

    um grupo de msicos se apresentava na sala de espera do teatro com o objetivo de atrair

    pblico para a parte interna. Dentre os msicos citados no depoimento esto Meira, Canhoto,

    Benedito Lacerda, Joo Frazo, Romualdo Miranda, Jacob Palmieri, Vidraa e Joo de Deus.

    Segundo Bittar (2011) este teria sido o primeiro encontro de Meira com Lacerda e Canhoto.

    Como msico profissional participou da inaugurao de duas importantes emissoras de

    rdio nos anos de 1934 e 1935: a Rdio Guanabara e a Rdio Tupi. As viagens tambm foram

    constantes nos primeiros anos de carreira, tendo participado de excurses com o Gente do

    Morro s cidades de Campos, Muqui e Vitria, em 1934, onde contaram com a luxuosa

    participao de Noel Rosa (Almirante, 1977). As viagens no incio de carreira eram comuns,

    Fotografia 1: Casa de Caboclo em 1932. Foto do acervo pessoal de Adilson Tramontano, 2008.

  • 20

    mas logo os compromissos com o rdio e gravaes tomariam conta do dia a dia de Canhoto o

    impedindo de viajar frequentemente, como nos contou Adilson em depoimento. O retorno ao

    Rio de Janeiro marca tambm a mudana do nome do grupo, que passa a se chamar Conjunto

    Regional de Benedito Lacerda. Em depoimento a Jos Eduardo Homem de Mello (ZUZA)

    para o encarte do disco Os Choros dos Chores (1977) o prprio Canhoto comenta sobre a

    mudana de nome.

    Em 1932 eu entrei para o conjunto Gente do Morro de Benedito Lacerda. Ns fizemos uma viagem para Campos em 34 [1934] com Noel Rosa e l, o pessoal comeou a perguntar se a gente no andava de tamanco. Sabe como , Gente do Morro, tu j viu, no ? A, quando voltamos pro Rio, o Benedito resolveu mudar o nome do conjunto. Bobagem botar Gente do Morro. (CANHOTO, 1977)

    O antigo nome foi sugerido por Jos Barbosa da Silva, o Sinh (1888 1930), em uma

    tentativa de referncia a origem de alguns dos integrantes do grupo, como veremos mais

    detalhadamente no tpico a seguir. No ano seguinte a viagem, Canhoto seguiu para uma

    temporada em Buenos Aires, na Argentina, acompanhando Francisco Alves e Alzirinha

    Camargo que foram contratados para inaugurao da rdio El Mundo. Em 1937, tambm foi a

    So Paulo apresentar-se com o Almirante (Henrique Foris Domingues, 1908 1980) (RCA

    Victor, 1956).

    No rdio, era comum cada emissora contar com seu conjunto regional que, em alguns

    casos, tinha um carter exclusivo. Canhoto, como participante do regional de Benedito,

    trabalhou sob contrato de 1938 a 1945 na Rdio Clube do Brasil e, aps viagem ao Uruguai

    para tocar junto com a orquestra do Cassino de Copacabana ingressou na Radio Tupi onde

    permaneceu at 1950 (RCA Victor, 1956). Em dezembro de 1950 devido a vrias questes

    (dentre elas salariais, o cncer de Benedito e sua indisponibilidade por conta dos

    compromissos na campanha poltica de Adhemar de Barros presidncia da repblica)

    criado o Regional do Canhoto, que contava ainda com Altamiro Carrilho (substituindo

    Lacerda) e Orlando Silveira. O conjunto passa a atuar na Rdio Mayrink Veiga at seu

    fechamento por questes politicas em 1965. Tornou-se artista exclusivo da RCA Victor e,

    segundo consta no texto biogrfico do msico produzido pela gravadora seu primeiro disco

    apareceu a 13 de abril de 1951 reunindo o baio Gracioso, e a popular composio Meu

    limo, meu limoeiro num sugestivo arranjo do prprio Canhoto. Na poca a gravadora

    planejava lanar tambm o long play BPL-3013 que viria a ser o primeiro disco em long

    play (vinil), de Canhoto e Seu Regional, sob o titulo de Baiomania (1956). O regional

    atuava no acompanhamento de vrios cantores de sucesso, mas tambm tinha sua carreira

  • 21

    Fotografia 2: No papel de lder, Canhoto tambm cedia sua imagem para divulgao e capa dos discos do grupo. Capa do disco 78rpm lanado em 1959 pela Odeon (14512).

    como grupo de msica instrumental lanando diversos discos como artistas principais.

    Passou a ser considerado um modelo por excelncia por conta da competncia e versatilidade

    que tinha em acompanhar uma grande variedade de gneros.

    Canhoto faz parte de um seleto grupo de msicos que contrariavam o procedimento

    comum para poca de nomeao dos regionais. Normalmente os solistas nomeavam os grupos

    como, por exemplo, o Conjunto Regional de Benedito Lacerda, Regional de Dante Santoro,

    entre outros, e Waldiro, mesmo sendo um msico acompanhador, passa a dar nome ao

    regional. H, na discografia e bibliografia, trs nomenclaturas utilizadas para se referir ao seu

    regional: Regional do Canhoto, Canhoto e Seu Conjunto e Canhoto e Seu Regional.

    Adotaremos no texto o ltimo nome, pois nos parece ser o nome artstico do grupo por

    aparecer na maior parte dos discos. Antes poucos regionais haviam optado por essa dinmica

    de liderana. Para citar alguns temos o Grupo do Canhoto (do violonista Amrico Jacomino),

    e mais tarde o Regional de Rogrio Guimares (violonista), dentre outros (Taborda, 1995).

    Vale ressaltar que nos ltimos dois casos os lderes, apesar de violonistas, eram solistas e

    compositores.

  • 22

    Em outro texto sobre o msico, Castro (2008) destacada a liderana e organizao do

    msico, caractersticas que o teriam ajudado a assumir a liderana do regional com a sada de

    Benedito Lacerda em 1951, alm do respeito que os outros integrantes tinham por ele ser o

    msico mais antigo naquela formao. A relao de companheirismo entre Lacerda e Canhoto

    era tamanha que ao criar uma cooperativa financeira para os componentes de seu conjunto, o

    flautista indicou Waldiro para tesouraria, que segundo as informaes do bigrafo de

    Benedito Jadir Zanardi sempre desempenhou bem as atividades (2008).

    Depois de ter se aposentado, Canhoto recebeu algumas homenagens. Uma delas

    aconteceu em 26 de Maio de 1977 na primeira edio da srie de shows O Fino da msica,

    promovido pela Rdio Jovem Pan, e realizado no Palcio das Convenes do Anhembi, So

    Paulo. Entre os organizadores do evento estava o musiclogo e jornalista Zuza, o mesmo do

    disco Os Choros dos Chores citado anteriormente. O show do Anhembi virou disco, e no

    texto de apresentao da contracapa o jornalista explica:

    Acho que a ideia de reunir os componentes originais do regional do Canhoto comeou a me cutucar a cabea em novembro de 76 no II Encontro dos Pesquisadores da Msica Popular Brasileira, quando nossas reunies foram abertas com uma apresentao do trio Canhoto-Dino-Meira e mais o Altamiro. Mas s meses depois que a imagem daqueles colossos me voltou: foi quando a Rdio Jovem Pan decidiu fazer o primeiro Fino da Msica ideia do Tuta [Antnio Augusto Amaral de Carvalho] uma nova etapa de sua campanha que j tinha 2 anos, em favor do msico brasileiro, um sujeito que se no fosse prestigiado logo logo, corria srios riscos de vida. (Depoimento de Zuza na contracapa do disco O Fino da msica, 1977).

    Canhoto e Seu Regional faziam, naquela ocasio, 25 anos da reunio de sua primeira

    formao e Dino, Meira e Canhoto fariam 40 anos de parceria nos regionais que atuaram.

    Aps receber o convite nos estdios da RCA, Waldiro declarou ao jornalista certa dificuldade

    em reunir os antigos companheiros de regional com um intuito profissional novamente:

    "Olha, tem muita gente que j tentou fazer isso. Eu j estou aposentado, a gente no toca mais

    em pblico... (Zuza, 1977). As quatro ltimas faixas de O Fino da msica, que ainda contou

    com a participao de nomes importantes do choro como Paulo Moura e Raul de Barros, so

    reservadas a homenagem ao cavaquinista e seu regional com a formao original (com

    exceo de Gilson). Ao fim da penltima faixa do disco, Altamiro Carrilho discursa atestando

    a importncia do trio Canhoto-Dino-Meira para msica popular brasileira.

    E agora se vocs me permitem, duas palavras, duas palavras emocionadas de minha parte e tenho certeza que estarei, nesse momento, representando o pensamento de todos vocs, bons brasileiros que so. A esses trs homens: Dino, Meira e Canhoto,

  • 23

    que h 40 anos vem trabalhando em favor da msica popular brasileira, tendo acompanhado os mais famosos cantores que pelo rdio brasileiro passaram, e sem contar com os estrangeiros que tem passado por aqui, as mais famosas gravaes de regional foram feitas por esse trio de cordas, ora com clarinete, ora com a flauta de Benedito Lacerda, ora com o saxofone de Pixinguinha, ora com o bandolim de Jacob, mas sempre os trs sustentculos da msica popular brasileira [comeam as palmas]. E para esses trs homens que eu peo uma salva de palmas muito especial. (transcrio do discurso de Altamiro Carrilho na faixa 13 do disco O Fino da msica, 1977)

    Em outra oportunidade foi homenageado no do 5 Concurso Conjuntos de Choro

    promovido pela Fundao Rio6. Em seu acervo pessoal, encontramos tambm um panfleto e

    um convite para o evento que ocorreu entre os meses de novembro e dezembro de 1981. No

    panfleto h um pequeno texto intitulado Homenagem a Canhoto, de autoria de Srgio Cabral,

    reverenciando a atuao do msico e sua importncia para a msica popular.

    O cavaquinho de Canhoto j atravessou mais de meio sculo da histria da msica popular brasileira e est registrada em milhares de discos. Como instrumentista e como lder de conjuntos musicais, Canhoto percorreu toda a sua longa carreia, contribuindo para nossa msica com muito talento e muita dignidade. Todos nos devemos muito a ele. (Panfleto do 5 Concurso Conjuntos de Choro, 1981).

    6 rgo vinculado secretaria Municipal de Educao e Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro.

    Fotografia 3: Convite para a final do 5 concurso de conjuntos choros em 1981. Acervo Adilson Tramontano, 2008.

  • 24

    Apesar desta posio de prestgio entre os pares, como foi ilustrado pelas citaes

    acima, h, desde a chegada do Rdio, uma desvalorizao dos msicos responsveis pelo

    acompanhamento que, segundo Ary Vasconcelos em Carinhoso e etc: histria e inventrio do

    choro (1984) acontece em duas estncias: num primeiro momento em relao aos solistas nos

    regionais, e posteriormente, aos cantores da Era do Rdio. No livro o autor divide a histria

    do choro em seis geraes identificando a poca dos regionais e cantores de rdio como sendo

    a quarta gerao (1927-1946). O fato tambm se reflete nos trabalhos de cunho acadmico e

    at mesmo biogrfico onde o foco, na maioria das vezes, est sobre os grandes solistas e

    compositores. Observando dissertaes sobre o choro, solistas como Jacob do Bandolim,

    Altamiro Carrilho, Raphael Rabello e K-Ximbinho (Crtes, 2006; Cndido e Sarmento, 2005;

    Borges, 2008; Costa, 2009) j haviam recebido alguma ateno. Os companheiros de regional

    de Waldiro, Dino Sete Cordas e Meira, tambm j foram objetos de estudo sendo o ltimo

    um pouco mais recente (Taborda, 1995; Pellegrini, 2005; Bittar, 2011).

    Chamamos ateno para uma faceta pouco comentada do msico: a de solista.

    Sabemos que Canhoto no gostava de solar, como ele mesmo j declarou em depoimento,

    Fotografia 4: Panfleto de divulgao do 5 Concurso Conjuntos de Choro, 1981. Acervo Adilson Tramontano, 2008.

  • 25

    mas de certo teve que faz-lo em algumas eventualidades. No peridico Radiolndia datado

    de 19/2/1955, o jornalista Oswaldo Miranda em matria sobre Canhoto e Seu Conjunto

    ressalta o processo de mudana de como um modesto regional se transforma numa das

    maiores atraes do Rdio brasileiro (Radiolndia, 1955). Logo no inicio do texto, o autor

    comenta sobre o passado recente do regional que possua apenas quatro: dois violes, um

    cavaquinho e um pandeiro, onde algumas vezes Canhoto aparecia como solista, certamente

    substituindo o flautista Benedito em suas frequentes faltas. Miranda ainda comenta:

    vez por outra, Canhoto, o notvel solista, dava uns ares de sua graa. Fazia um solinho, muito certinho, muito rico e sonoridade, mas depois do nmero, seco como , mal agradecia os aplausos do pblico, escondendo-se por detrs de Dino, Florence ou Gilson, ou seja, os violes e o pandeiro (Radiolndia, 1955)

    Srgio Cabral (1997) tambm nos revela um fato ocorrido em que o msico solou o

    restante da msica no cavaquinho em uma das apresentaes do programa O Pessoal da

    Velha Guarda quando Lacerda foi vencido por uma crise de choro ao executar uma

    composio de Pixinguinha, que estava com problemas de sade na poca. Na pesquisa

    fonogrfica tambm identificamos uma gravao rarssima, onde Canhoto sola a primeira

    parte de uma composio da qual assina sozinho em 1952: Canhotinho (RCA Victor 80-0991-

    b), sugerindo certa habilidade com as melodias. Apesar de ter declarado no ser compositor

    (Zaremba, 1978) a pesquisa fonogrfica tambm revelou algumas parceiras em choros

    gravados nos primeiros anos de Canhoto e Seu Regional como Gingando (RCA Victor 80-

    0808-a), Teco Teco (RCA Victor 80-1148-b), Visitando (RCA Victor 80-1364-b), Leno

    branco (RCA Victor 80-1509-a) e O beijo do meu bem (RCA Victor 80-1633-b). A maior

    parte das parcerias so com seus companheiros de regional (Dino, Meira e Orlando Silveira).

    Acreditamos que, por ser contratado da gravadora, o grupo tinha que produzir discos

    constantemente, fato que poderia ter desencadeado as composies e parcerias dos msicos.

    Ou ainda por ser lder do conjunto seu nome pode ter sido vinculado em algumas

    composies.

    Em 2008, o Instituto Casa do Choro e a Escola Porttil de msica (EPM) organizaram

    outra grande homenagem memria do msico atravs da IV edio do Festival Nacional do

    Choro Ano Canhoto. Sobre o homenageado foi produzido um texto informativo que

    encontra-se disponvel no site da EPM. Como sugere o ttulo, o texto comemora os 100 anos

    de nascimento do msico e traz algumas curiosidades como o gosto por tocar em p nas rodas

    e no ingerir bebidas alcolicas nessas ocasies, preferindo leite. O gosto peculiar pela bebida

  • 26

    chegou a ser piada registrada em disco, onde Ciro Monteiro e Dilermando Pinheiro brincam

    ao ver a mesa cenogrfica do show Teleco Teco Opus N 1 (Philips P 632.788 L) sem

    nenhuma bebida alcolica: Olha... olha que mesa de boteco mais desmoralizada...leite!

    Parece at a mesa da casa do Canhoto! (transcrio da fala de Ciro Monteiro no inicio do

    show, 1966).

    Na dcada de 1980 Canhoto passa a atuar cada vez menos profissionalmente,

    participando apenas de encontros informais e frequentando rodas de choro em bairros do Rio

    de Janeiro como a Penha e Ilha do Governador (Castro, 2008) 7. Em agosto de 1987 na coluna

    Msica: Seus nomes suas histrias do jornalista Lauro Gomes, aps fazer um resumo da

    carreira do regional de Canhoto, volta a ateno para as condies de sade do lder do grupo

    que nas proximidades dos 80 anos, encontra-se seriamente enfermo. No merece e no deve

    ser esquecido (recorte de peridico no identificado, 1987 Acervo Adilson). Trs meses

    depois, em 24/11/1987, Canhoto falecia no Rio de Janeiro abatido pela doena de Alzheimer.

    Canhoto era casado com Adelaide Franco Tramontano e juntos tiveram somente um filho,

    Adilson.

    Pensar que a canhotice do msico (uma de suas principais marcas) o ajudou na

    criao de um estilo prprio natural, porm sempre nos ficou a dvida do porqu desse

    estilo ter se tornado to popular (entre destros e canhotos) a ponto de se transformar em uma

    referncia para o instrumento. Neste ponto pensamos que a visibilidade e difuso

    proporcionadas pelas gravaes realizadas atravs do rdio, a parceria com Dino e Meira e a

    presena em diversos discos de estilos diferentes podem ser alguns dos motivos a se

    considerar, alm da sempre comentada preciso rtmica de sua prtica e uma integrao com

    os outros instrumentos da formao. Na seo a seguir discutiremos mais detalhadamente

    alguns pontos da trajetria artstica de Canhoto tendo como ponto de apoio sua participao

    nos trs principais regionais que participou: Gente do Morro, Regional de Benedito Lacerda e

    Canhoto e Seu Regional.

    7 Disponvel em: < http://www.escolaportatil.com.br/SiteFestEditionsLink.asp >. Acedido em 10 de Jul. de 2013.

  • 27

    1.2. Trajetria artstica e profissional: os Conjuntos Regionais, o Rdio e o Disco.

    1.2.1. Gente do Morro

    O grupo Gente do Morro foi criado em 1928/1929 pelo flautista e lder do grupo

    Benedito Lacerda e foi nomeado a partir de uma sugesto de Sinh, em aluso aos msicos

    que vinham das regies menos nobres da cidade do Rio de Janeiro, j que os primeiros

    integrantes do grupo eram, em sua maioria, moradores do bairro do Estcio e alguns outros

    pertenciam classe mdia da populao carioca. O conjunto gravou muitas canes populares

    que eram interpretadas por cantores da poca como Idelfonso Norat e pelo prprio Benedito,

    alm da execuo de musicas instrumentais.

    Segundo o bigrafo de Lacerda, Jadir Zanardi em E a saudade ficou (2009) o grupo

    se destacou pela qualidade musical e organizao, reunindo importantes msicos (Zanardi,

    2009: 25). Ary Vasconcelos em Carinhoso e etc. (1984) destaca caractersticas sonoras como

    sendo os breques e as pontuaes das percusses as principais caractersticas do grupo. Em

    sua dissertao de mestrado o violonista Jos Paulo Thaumaturgo Becker, tambm destaca o

    desempenho da percusso, os breques e os ponteios da flauta alm das inverses

    harmnicas que fazia nos sambas (Becker, 1996:51). De fato a sonoridade do grupo

    bastante caracterstica j que desde as primeiras gravaes mostravam-se capazes de aliar a

    instrumentao bsica dos conjuntos de choro (cavaquinho e violes) com a percusso esta

    j com forte influncia do pessoal do Estcio, referindo-se ao bairro onde cresceu o flautista

    e alguns dos percussionistas do grupo conhecidos por suas contribuies rtmicas ao samba

    como Russo do Pandeiro.

    Uma das primeiras gravaes a trazer instrumentos de percusso foi o samba Na

    Pavuna gravado em 1929 pelo Bando dos Tangars (Almirante, 1977:68), porm o Gente do

    Morro quem apresentar recorrentemente esse recurso em suas gravaes. Ao comparar os

    registros fonogrficos dos dois grupos, Bittar constata que a presena da batucada no to

    recorrente nas gravaes do Bando dos Tangars ao contrrio do Gente do Morro (Bittar,

    2011:52). Essa marca constante nas gravaes do Gente do Morro anuncia o que viria a ser a

    base instrumental da formao dos conjuntos regionais com a ascenso do rdio no inicio da

    dcada de 1930: violes, cavaquinho, percusso e um instrumento solista.

    Sobre a formao inicial do grupo as informaes so divergentes, necessitando assim

    de alguns esclarecimentos. Vasconcelos (1984) aponta os seguintes msicos: o lder do grupo

  • 28

    Benedito Lacerda (flauta), Macrino, Bernardo e Doidinho (violes), Canhoto (cavaquinho) e

    Russo do Pandeiro. Taborda (2010) indica formao parecida com a de Vasconcelos: tendo

    Waldiro, Benedito, Maurinho, Bernardo e Doidinho na percusso. Henrique Cazes em Choro:

    do quintal ao municipal (1988) e o pesquisador Srgio Prata em A histria dos regionais8

    identificam Canhoto como integrante primeiro, no determinando uma formao especifica

    identificando apenas os mais famosos como Benedito, Russo do Pandeiro e Canhoto. O

    ltimo ainda sugere que foi a primeira reunio de dois dos mais importantes msicos

    brasileiros: o flautista Benedito Lacerda e Waldiro Frederico Tramontano, o Canhoto do

    cavaquinho 9, enquanto Zanardi (2009) refere-se formao mais famosa no se atendo ao

    perodo cronolgico: Benedito, Canhoto, Gorgulho (Jacy Pereira) e Ney Orestes nos violes e

    Russo do Pandeiro.

    A parte da biografia de Benedito reservada a sua participao dos regionais identifica

    substituies na formao sem, novamente, indicar o ano. O nome do cavaquinista Jlio dos

    Santos aparece como integrante do grupo sem deixar claro, no entanto, sobre a sada ou no

    de Waldiro. Em As escolas de samba do Rio de Janeiro (2004) o nome Jlio dos Santos

    aparece em destaque como secretrio do bloco Unio do Estcio de S, porm no se tem, at

    o momento, informaes biogrficas o cavaquinista. Ainda faziam parte da primeira formao

    do grupo, segundo Zanardi (2009), o cantor Idelfonso Norat, Bide (Alcebades Barcelos) e

    Cipriano Silva. J a ficha tcnica fornecida por Becker (1996) equivocada, merecendo

    pequenas correes.

    A mencionada dissertao que citaremos algumas vezes ao longo desse texto devido a

    sua rica reviso bibliogrfica sobre o choro, dentre outras qualidades, tem como objetivo

    relatar o funcionamento do violo de 6 cordas no conjunto regional tendo como exemplo um

    grupo representativo do gnero, o poca de Ouro criado por Jacob do Bandolim na dcada

    de 1960. Becker inicia seu texto citando alguns dos importantes regionais da histria como o

    de Dante Santoro, Garoto, Waldir Azevedo, Luperce Miranda, dentre outros. Sobre a criao

    do grupo Gente do Morro no fim da dcada de 1920, o autor comete um deslize ao identificar

    o cavaquinista Canhoto como Amrico Jacomino (1889-1928) quando sabemos, conforme

    vimos anteriormente, que seu verdadeiro nome Waldiro Frederico Tramontano. O erro

    bastante comum j que existem em nossa msica popular no mnimo mais trs instrumentistas

    ligados ao choro com o mesmo apelido, conforme vimos anteriormente. Na dvida, sugerimos

    8 Em: < http://www.samba-choro.com.br/fotos/porexposicao/exposicao?exposicao_id=1 > Acesso em: 12 Jun. 2013. 9 Idem.

  • 29

    que sempre faamos a relao dos msicos com seus instrumentos para no confundi-los j

    que dos trs somente Waldiro era o nico cavaquinista, sendo os outros trs violonistas.

    Podemos observar tambm que Jacomino faleceu no mesmo ano de nascimento de Canhoto

    da Paraba (1928) e, consequentemente, das primeiras gravaes de Waldiro como

    profissional. Na condio de estudante, diversas vezes foi necessrio esclarecer a outras

    pessoas durante o perodo de desenvolvimento da pesquisa que o estudo se tratava do

    cavaquinista e no dos violonistas.

    Coincidentemente, dois dos instrumentistas citados eram solistas e/ou compositores,

    condio que na histria de nossa msica popular mais valorizada assim como a posio de

    cantor segundo Vasconcelos (1984) que comenta sobre o grande sucesso do rdio entre as

    dcadas de 1927 e 1946, onde sobraro apenas migalhas para os msicos, alguns

    simplesmente maravilhosos, porm todos reduzidos ao papel humilde s vezes at

    humilhante de acompanhadores (Vasconcelos, 1984:29). Entretanto, no achamos que a

    posio de msicos acompanhante fosse desonrosa j que os conjuntos regionais foram

    criados com a funo de acompanhar os grandes astros da msica vocal como diz o autor

    logo em seguida. Porm sensato dizer que os devidos crditos no foram dados a esses

    msicos a comear pela inexistncia das fichas tcnicas de muitas gravaes do perodo,

    dificultando estudos como este que tem como foco os msicos acompanhadores. Essas

    informaes acabam ficando a cargo da memria de alguns msicos que viveram no perodo e

    da transmisso oral dessas informaes dentro da cultura do choro e, claro, do trabalho dos

    dedicados pesquisadores e estudiosos do gnero.

    Outro trabalho que nos ajuda a esclarecer sobre as formaes do Gente do Morro e,

    posteriormente, Conjunto Regional de Benedito Lacerda, a dissertao do tambm

    violonista Iuri Lana Bittar sobre o emblemtico Jayme Tomaz Florence, o Meira. O trabalho

    visa analisar os acompanhamentos executados pelo violonista ao longo de sua carreira que

    tem incio em 1928 (com a participao no grupo Voz do Serto), passando por sua

    participao no Conjunto Regional de Benedito Lacerda e se prolongando at a dcada de

    1980 (com a participao no Regional de Canhoto, outros trabalhos importantes e a morte do

    instrumentista). O estudo est dividido em trs captulos referentes aos principais grupos em

    que Meira atuou, citados acima. Os conceitos de Phillip Tagg (1979) 10 so utilizados como

    ferramenta analtica das gravaes, alm de uma discusso de aspectos histricos e

    bibliogrficos. O autor identifica a formao que nos parece ser a mais prxima do grupo

    inicial, tendo em vista as verses apresentadas anteriormente, com Gorgulho e Henrique Brito 10 [...] se baseia no estudo da msica popular dentro de uma perspectiva semitica (BITTAR, 2011, Pg. 05).

  • 30

    (violes), Jlio dos Santos (cavaquinho), Bide e Gasto de Oliveira (tamborins), Juvenal

    Lopes (chocalho) e Russo (pandeiro), alm de Benedito. Formao que tambm observada

    no sitio eletrnico Discos do Brasil11 (criado e organizado por Maria Luiza Kfouri) que,

    aparentemente, repassa as informaes contidas no encarte do Box de CDs Ben, o Flautista

    que rene algumas gravaes emblemticas da carreira do flautista. 12

    Frente ao apresentado acima, nos parece razovel afirmar que no h dvidas quanto

    participao de Canhoto no grupo, porm o perodo de ingresso no precisado corretamente

    na literatura. No momento da identificao dos msicos, alguns autores confundem as

    11 Em: < http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/ > 12 Projeto realizado por Paulo Flores e Corina Meyer, com patrocnio da Petrobrs, e pesquisa nos acervos de Jos Ramos Tinhoro e Humberto Franceschi no Instituto Moreira Salles e, tambm, no acervo da Collector's Studio.

    Fotografia 5 - Gente do Morro com Jlio dos Santos (Cavaquinho), Panderista no identificado, Juvenal Lopes (Chocalho), Bide (Surdo) e Gasto de Oliveira (Tamborim), Benedito Lacerda (Flauta),

    Henrique Brito e Jacy Pereira (Violes). Saxofonista no identificado. Imagem da internet.

  • 31

    formaes ou identificam somente os msicos que ficaram mais conhecidos na histria,

    devido falta de informaes mais precisas sobre as fichas tcnicas. Pelo fato do Gente do

    Morro ser encarado como um estgio anterior do consagrado Conjunto Regional de Benedito

    Lacerda, os integrantes do segundo so constantemente identificados como os msicos

    originais da formao do primeiro, como o caso de Canhoto.

    Porm a importncia do Gente do Morro para a consolidao do formato regional

    fundamental, havendo diferenas cruciais entre os grupos como os msicos e, principalmente,

    a sonoridade. Em depoimento Zaremba (1978), no que pode ser um dos nicos registros

    sonoros do cavaquinista, o prprio esclarece sobre sua entrada no grupo.

    Em 1927 eu fui trabalhar na sade pblica, que teve uma epidemia de febre amarela, onde conheci um senhor que tinha um conjunto, Benjamim (tocava trombone). A travei conhecimento com Pixinguinha, o pessoal do choro. Ele me levou na casa do Alfredinho Flautim, que tocava junto com o Pixinguinha, na Rua do Riachuelo. Fui eu, Caninha que era autor antigo Caninha13 que meu compadre... e l encontrei o Russo do Pandeiro que tocava com o Bendicto Lacerda. O Russo me vendo tocar disse: voc quer ir pro conjunto do Benedito? Eu no era profissional, era amador. Isso em 1931 pra 1932. Ai eu digo: quero! Ento eu agradeo ser profissional e nome que tenho ao Russo do Pandeiro. (Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978).

    As informaes sobre a data de entrada de Canhoto no conjunto no so precisas e, por

    esse motivo, nos parece sensato considerar esta e outra possibilidade. Trata-se de outro

    depoimento de Canhoto presente no j mencionado encarte do disco de 1977, onde Canhoto

    inicia seu relato, aps um prembulo onde o autor comenta sobre a ligao entre os msicos

    que formavam a mais slida base harmnica e rtmica do choro brasileiro:

    Em 1932 eu entrei para o conjunto Gente do Morro de Benedito Lacerda. Ns fizemos uma viagem para Campos em 34 [1934] com Noel Rosa e l, o pessoal comeou a perguntar se a gente no andava de tamanco. Sabe como , Gente do Morro, tu j viu, no ? A, quando voltamos pro Rio, o Benedito resolveu mudar o nome do conjunto. Bobagem botar Gente do Morro. (Depoimento de Canhoto a Zuza no encarte do disco Chorinho e Chores, 1977)

    Os dois depoimentos so claros em indicar a passagem dos anos de 1931 para 1932

    como o perodo de ingresso no grupo de Lacerda. Nos parece sensato, tambm, afirmar que

    Jlio dos Santos era o cavaquinista na primeira formao do grupo como atestado em nas

    fontes citadas. A anlise das gravaes do Gente do Morro entre os anos de 1930 a 1934,

    perodo em que o grupo gravou sob essa alcunha, identificamos diferenas na sonoridade do

    13 Jos Lus de Moraes (1883 1961).

  • 32

    Fotografia 6 Aurora Miranda e o Regional de Benedito Lacerda. Imagem retirada do filme "Al, al Carnaval" (Wallace Downey, 1936).

    cavaquinho em algumas gravaes, o que nos permitir concordar com os depoimentos do

    msico. A questo relacionada s sonoridades e anlises das gravaes sero abordadas mais

    adiante e, portanto, no iremos nos ater a elas neste momento. Porm podemos adiantar que

    nas gravaes antes de 1933, o cavaquinho no apresenta caractersticas peculiares a Canhoto

    como a integrao rtmica com os violes e nem os contratempos rtmicos. A participao no

    grupo Gente do Morro coloca Canhoto como o mais antigo e constante parceiro de Benedito

    em seus regionais (FLORES, 2007).

    Para o desenvolvimento do estudo, precisar este perodo significa desconsiderar da

    anlise gravaes do perodo anteriores ao ano de 1932 como D nele (Brunswick 10.049-a)

    que antes havamos considerado como a primeira gravao do msico com o grupo. Podemos

    tambm contestar as informaes anexas ao encarte incluso no Box Ben, o Flautista e

    repassadas pelo site Discos do Brasil onde nas gravaes de Gorgulho (Continental 22.129-

    b), Mirthes (Odeon 11.061-a), Minha flauta de prata (Odeon 11.061-b), Olinda (Continental

    22.129-b) e Pretencioso (Odeon 10.993-a) indicam Jlio como cavaquinista o que no est de

    acordo com o exposto acima.

  • 33

    A dvida tambm se estende aos demais integrantes devido as constantes mudanas

    que aconteceram no grupo at o ano de 1937, quando a formao reunir msicos de vital

    importncia para a fixao do principal formato de acompanhamento de msica popular.

    Nessa poca o conjunto era assim: no violo, Macrino que j morreu h muito tempo e no era um violo muito forte. O outro era mais fraco ainda, porque era comediante, o Coringa, um mulato. Em 35 eles saram e entraram o Carlos Lentini e um violo do Rio Grande do Sul, o Nei Orestes que j morreu, e mais o Russo do Pandeiro. Ns inauguramos a Rdio Tupi em 35, e em 36 fomos Argentina com o Chico Alves e a Alzirinha Camargo. Foi no ms de agosto, e ningum tinha coragem de tomar banho frio de dia. Eu ficava num apartamento com o Benedito. E esse gacho, o Nei, ficava no outro com o Russo e o Lentini, que tambm bebia bem. Quando voltamos em setembro, ele j estava doente, com os 2 pulmes afetados, e eu internei-o no Hospital de So Sebastio em fevereiro. Foi quando o Dino veio para o conjunto: fevereiro de 37. Em julho o Lentini saiu e a veio o Meira que j tinha trabalhado na Casa de Caboclo com o conjunto do Jararaca e Ratinho. O Gilson pandeirista veio na poca dos discos do Pixinguinha. Antes era o Popeye. Os demais eram Dino, Meira, eu e Benedito. (Depoimento de Canhoto Zuza no encarte do disco Chorinho e Chores, 1977)

    Na biografia de Benedito h situaes de inverso das informaes sobre os msicos j que

    Canhoto e Ney Orestes so apresentados como participantes da primeira formao, porm

    vimos na citao que estes s passam a integrar o grupo em 1932 e 1935, respectivamente.

    At a data parece correto afirmar que Jlio era msico do conjunto e no que se juntou ao

    grupo aps substituies, como aponta Zanardi (2009). Quanto aos violes, a dupla pioneira

    nos parece ter sido mesmo Jacy Pereira (Gorgulho) e Henrique Brito, de acordo com as

    afirmaes de Almirante (1977) e os registros fotogrficos. Vasconcelos (1984) parece

    confundir-se ao indicar Bernardo e Doidinho como violonistas alm de Canhoto, como

    msico da formao original. Os dois primeiros no eram violonistas e sim percussionistas, de

    acordo com Bittar (2011) em exame aos registros de Almirante (1977) referente excurso

    do Gente do Morro a Campos de Goitacazes, Muqui e Vitria alm de seus nomes aparecem

    referenciados somente no ano de 1932, no depoimento de Canhoto. Bittar tambm relata que a

    formao nessa excurso j aparece bastante modificada como observamos anteriormente.

    Frente mudana dos msicos so duas as principais formaes do grupo. A inicial

    com Jlio dos Santos (cavaquinho), Russo do Pandeiro, Juvenal Lopes, Bide e Gasto de

    Oliveira (percusses), Benedito Lacerda (flauta), Henrique Brito e Jacy Pereira (violes) e a

    de 1932 com Canhoto (cavaquinho), Russo do Pandeiro, Bide (percusso), Benedito Lacerda

    (flauta), Macrino e Coringa (violes). O grupo realizou cerca de 63 gravaes variando o

    repertrio entre msicas instrumentais e vocais das quais, muitas vezes, o prprio Lacerda

    assumiu a funo de cantor.

  • 34

    1.2.2. Conjunto Regional de Benedito Lacerda

    O grupo Gente do Morro tem vida relativamente curta com esse nome, pois em 1934

    muda para Conjunto Regional de Benedito Lacerda. Sobre a data da mudana Zanardi (2009)

    aponta para 1935 como o ano da troca de nome, relacionando o momento com a volta de

    Buenos Aires em decorrncia da inaugurao da Rdio Belgrano. Porm acreditamos que a

    mudana ocorre realmente no ano anterior no retorno do grupo de uma excurso para Campos

    conforme podemos observar no depoimento de Canhoto (1977) j mencionado. Em relao

    a viagem a Argentina, j vimos que o grupo tinha sido convidado para inaugurar a Rdio El

    Mundo, fincando a inaugurao da emissora concorrente por conta de Carmen Miranda e O

    Bando da Lua14.

    A sonoridade do conjunto mudar o foco dos breques da percusso para os efeitos e

    contrapontos das cordas e da flauta. A formao inicial deste regional segundo Vasconcelos

    (1984) ter alm de Benedito na flauta, Canhoto no cavaquinho, Ney Orestes e Jacy Pereira

    (Gorgulho) nos violes alm de Russo no pandeiro. Com essa formao o grupo se apresentou

    no rdio e teve muitos discos lanados pela Odeon entre os anos de 1934 e 1937, dentre esses

    alguns dos momentos mais importantes do choro gravado (Vasconcelos, 1984: 21) como

    Dinor (Odeon 11.266-a), Venenoso (Odeon 11.226-a) e Entre amigos (Odeon 11.469-a).

    Sobre a formao Bittar (2011) aponta para Ney Orestes e Carlos Lentine como

    violonistas. A rotatividade nos violes grande tendo em 1937 novas mudanas em sua

    formao com as sadas de Ney Orestes e Carlos Lentine e as entradas de Horondino da Silva

    (Dino Sete Cordas) e Jayme Florence (Meira) nos violes alm da substituio de Russo por

    Popeye no pandeiro, formao esta que perduraria durante muitos anos. Assim, reunia-se pela

    primeira vez o mais clebre trio de base de toda a histria dos regionais: Dino-Meira-

    Canhoto (Cazes, 1999:86) e uma das formaes mais importantes da histria da msica

    popular brasileira. Taborda tambm comenta sobre o regional que estabeleceu modelo de

    organizao e sonoridade que permaneceria na msica brasileira, como influncia para as

    geraes futuras (Taborda, 2009:66). A excelncia e a importncia do regional para a msica

    brasileira novamente atestada por Flores (2007) no encarte do box sobre Lacerda. Segundo o

    organizador:

    14 Conforme depoimento de Russo do Pandeiro ao pesquisador Renato Vivacqua em 25 de julho de 1982. Disponvel em: < http://www.renatovivacqua.com/entrevista-russo-do-pandeiro.html >

  • 35

    [...] foi o grupo preferido de dez entre dez cantores que prevaleceu nas gravaes dos anos de 30 e 40, tambm como Regional do Canhoto, Bomios da Cidade e Regional de Luiz Americano. Mas era na precisa mo de Benedito [Benedito], com suas introdues e contrapontos, sua ginga, seu alto padro de exigncia, que essa dinastia mais brilhava. Por trs de cantores com Chico Alves e Slvio Caldas, Orlando Silva e Mrio Reis, Almirante e Noel Rosa, Aracy de Almeida e Carmem Miranda, Benedito, com seu regional, dava o tom em todos os possveis sentidos da palavra. (Flores, 2007: 64)

    A citao bastante ilustrativa para observarmos a quantidade de gravaes e a

    variedade de estilos musicais e cantores que o grupo acompanhou, alm da utilizao de

    outros nomes para o mesmo grupo de msicos. Segundo o catlogo de gravaes fornecido

    por Nirez, o regional de Benedito aparece em mais de 700 gravaes entre janeiro de 1935 e

    setembro de 1950 variando entre acompanhadores e intrpretes/artistas.

    Com essa formao o grupo gravaria vrias msicas significativas para a discografia

    do choro, segundo Vasconcelos (1984), como Romance de uma valsa e Meu sabi (Odeon

    11.609), mas nessa poca as gravaes com cantores e eram bem mais frequentes. O livro A

    cano no tempo: 85 anos de msicas brasileiras (1997) de Jairo Severiano e Zuza Homem

    de Mello indica no mnimo uma msica gravada pelo regional entre os grandes sucessos do

    perodo de 1935 a 1950. Dentre os sucessos destacamos as gravaes de Cho de estrelas

    Fotografia 7 - Regional de Benedito Lacerda em 1938. Popeye, Dino, Lacerda, Canhoto e Meira. Foto do Acervo Adilson Tramontano, 2008.

  • 36

    (Odeon 11.475-b), Praa Onze (Continental 55.319-a), Por tua Causa (Continental 55.065-b),

    Mesma histria (Continental 55.218-a), Tico-tico no fub (Continental 55.368-a), Apanhei-te

    cavaquinho (Continental 55.432-a), Aperto de mo (Victor 80.0058-b), Falsa baiana (Victor

    80.0181-a) e Rugas (Victor 80.0406-a). Os vrios nomes de grupo que foram utilizados

    devido a alteraes dos msicos para realizao de gravaes espordicas dificulta, em parte,

    a construo de um panorama geral das atuaes de Canhoto em disco, ficando necessrio

    relacionar grande parte das gravaes aos principais grupos que participou. Segundo Flores

    (2007) o grupo tambm atuou como Bomios da Cidade e Regional de Luiz Americano,

    possibilidade que existe, porm no tivemos tempo de realizar uma audio mais detalhada

    ficando para outra oportunidade essa averiguao. Henrique Cazes nos contou em entrevista

    que Carmem Miranda chegou a gravar com o regional de Benedito Lacerda sem a presena do

    flautista, pois a cantora preferia introdues executadas por clarinete.

    O ano de 1946 marcado pelo incio da famosa e polmica parceria entre Lacerda e

    Pixinguinha, que passava por problemas pessoais, e pela entrada no regional de Gilson Freitas

    no pandeiro. Desde a primeira metade da dcada de 1940, Pixinguinha atravessava momentos

    difceis na vida pessoal. Era cada vez menos requisitado para gravaes, tinha problemas

    financeiros e com o lcool que se agravavam, alm da fase de adaptao devido a mudana da

    flauta para o saxofone. Aps fechar um contrato com a RCA Victor e a Editora Irmos Vitale,

    Lacerda firma um acordo com Pixinguinha onde ganharia parceria em todas as msicas que

    fossem gravadas pela dupla mesmo as composies mais antigas onde a contribuio do

    flautista era inexistente. O resultado da parceria foram um total de 34 gravaes entre os anos

    de 1946 e 1951, alm da edio de 25 msicas realizadas pela Irmos Vitale. Entre as

    gravaes antolgicas esto Sofre porque queres e 1x0 (Victor 80-0442-a), Naquele tempo

    (Victor 80-0447-a), dentre outras. Interessante o fato de algumas composies como

    Cochichando (Pixinguinha), Atraente (Chiquinha Gonzaga) e Urubu malandro (domnio

    pblico) terem sido registradas ao vivo no programa Pessoal da Velha Guarda de Almirante

    em 1947, no sendo lanadas em disco no perodo.

    Segundo Cabral (2007), Lacerda foi bastante criticado na poca, sendo acusado de se

    aproveitar da situao difcil enfrentada por Pixinguinha que nos anos seguinte conseguiu

    quitar suas dvidas com o dinheiro referente ao contrato. O autor tambm cita um depoimento

    de Canhoto Zuza onde o cavaquinista defendia seu companheiro de grupo, caracterstica

    esta que tambm observamos em outro momento marcante na histria dos regionais.

  • 37

    Pixinguinha estava esquecido, ningum falava dele. Benedito combinou: faziam os discos, mas ele entrava na parceria. Muitas pessoas meteram o pau no Benedito, mas no tinham razo. Ele foi franco. Iam tomar a casa do Pixinguinha. A o Benedito Lacerda foi ao Vitale e arranjou o dinheiro para o Pixinguinha ficar em dia. (Depoimento de Canhoto Zuza Apud Cabral, 1997:182)

    A sada de Benedito Lacerda da Rdio Tupi em 1951 faria com que os msicos de seu

    ento regional ficassem desempregados, situao que logo mudaria sob a liderana de

    Canhoto. Entendamos melhor o caso a partir da entrevista dos msicos veiculada na Revista

    do Rdio de n 78 do ano de 1951. Benedito havia alcanado um prestgio muito grande junto

    sociedade brasileira com suas composies para o carnaval, alm de sua atuao junto ao

    seu regional. Em 1949 foi eleito presidente da SBACEM (Sociedade brasileira de autores,

    compositores e editores), onde pode estreitar laos polticos com Getlio Vargas e, mais tarde,

    Caf Filho na luta pelos direitos autorais.

    No final dos anos 1950 comeou a se afastar de suas atividades musicais devido ao seu

    cncer de pulmo, passando a acompanhar seu amigo, Ademar de Barros em sua campanha a

    presidncia da repblica. O ento candidato a presidncia e criador do Partido Social

    Progressista (PSP) tinha em sua agremiao um departamento musical com grandes nomes da

    msica popular como Benedito, Herivelto Martins, Ataulfo Alves alm de uma empresa

    especializada em marketing poltico, segundo Cotta (2008). O departamento musical foi

    responsvel por compor e gravar msicas para promover a campanha de Ademar como Mar

    de Rosas e Caixinha abenoada. Chegou a disponibilizar um jatinho ao flautista para que ele

    pudesse comparecer aos compromissos de campanha poltica do candidato e, respaldado pelo

    seu carisma junto a populao, angariar mais votos. Encontramos duas citaes sobre a

    aeronave que foi comprada por Benedito e Herivelto Martins, com o objetivo de transport-

    los em excurses e depois vendida por Herivelto para compra de um nibus (Revista do

    Rdio, n 206).

    Canhoto e os outros msicos reclamavam do desinteresse de Lacerda com o grupo

    desde o incio da campanha poltica, declarando: vrias vezes fui chamado direo para

    explicar as faltas dele e em uma ocasio fomos surpreendidos com uma multa afixada na

    tabela de servios imposta a Benedito por faltar aos programas (Revista do Rdio, n 78).

    Importante observarmos no trecho acima a posio de liderana e responsabilidade na

    ausncia de seu ento lder, alm de adotar uma postura firme ao defender os outros msicos,

    incluindo o prprio flautista. Na continuao da entrevista, Canhoto argumenta novamente

    sobre os atrasos de Lacerda: procurei sempre melhorar a situao, mas houve um instante em

  • 38

    que os artistas tambm cansaram de ver sempre o regional desfalcado e eu apenas ensaiando

    os seus nmeros (Revista do Rdio, n78).

    Outra questo, que tambm contribuiu para o rompimento de Lacerda e os outros

    msicos de seu regional: os msicos haviam pedido a Benedito que propusesse ao diretor da

    Rdio Tupi na poca, Dr. Jos Mauro, um aumento salarial que no aconteceu. Lacerda teria

    ento proposto ao grupo que no renovariam o contrato e ficariam de frias por um ms,

    retornando com contrato em outra emissora de rdio. O acordo foi aceito por Canhoto e seus

    companheiros, mas depois de passados dois meses, o rompimento foi inevitvel. Em tom de

    indignao, Canhoto retrucava o jornalista dizendo: como voc deve ter compreendido,

    Benedito ao deixar a Tupi no se preocupou em conseguir outro compromisso para

    trabalharmos. Eu tenho emprego [fiscal da Unio Brasileira de Compositores, UBC], o Meira

    leciona violo, mas os outros, Dino e Gilson, no tem outra coisa para viver! (Revista do

    Rdio, 1951).

    O posicionamento de liderana de Canhoto assumido frente deciso de abandonar

    um famoso conjunto para montar um novo, de defesa a seus companheiros desempregados

    alm, obviamente, do respeito dos outros integrantes por Waldiro (mais antigo membro do

    grupo naquele momento) foram fatores decisivos para que Dino, Meira e Gilson confiassem a

    Canhoto a direo do novo regional.

    O conjunto passa a se chamar Canhoto e Seu Conjunto, juntando-se a eles o notvel

    flautista Altamirro Carrilho, e assina contrato com a Rdio Mayrink Veiga em 1951. J na

    PRA-9, Luiz Gonzaga indicaria o acordeonista Orlando Silveira para integrar o conjunto que

    ganhava, assim, a formao que ficaria eternizada em nossa msica popular. Surgia ento o

    que segundo Prata ficou conhecido como modelo de regional por excelncia o Regional do

    Canhoto 15. O grupo tinha uma sonoridade bastante caracterstica com a presena do

    acordeom de Orlando, fosse na execuo de melodias ou nos acompanhamentos, alm de ser

    tambm nessa poca que Dino comea a utilizar o violo de sete cordas.

    15 A histria dos Regionais. Em: < http:// www.samba-choro.com.br > Acesso em: 3 Mai. 2013.

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    1.2.3. Canhoto e Seu Regional

    A formao era extremamente verstil para acompanhar diversos gneros musicais e

    contava com a experincia do trio Dino-Meira-Canhoto alm dos j citados Altamiro na

    flauta, Orlando no acordeom e Gilson no pandeiro. O nvel das gravaes e apresentaes era

    extremamente elevado pelo fato da maioria dos msicos saberem ler partituras e/ ou cifras,

    exceto Canhoto e Gilson, o que possibilitavam a execuo de arranjos mais trabalhados como

    Fotografia 8 - Matria veiculada na Revista do Rdio sobre o rompimento de Dino, Meira, Canhoto e Gilson com Benedito Lacerda. N 78 (1951). Fonte Hemeroteca da Biblioteca Nacional

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    no caso do choro Conversa Mole (RCA Victor 80-1440-a) do maestro Radams Gnatalli

    (Depoimento de Canhoto Zaremba, 1978). Tambm foram integrantes do grupo os flautistas

    Arthur Atade e Carlos Poyares e os panderistas Jorginho do Pandeiro e Herclio

    (respectivamente na ordem de substituio). Em entrevista jornalista Nana Vaz, Jorginho do

    Pandeiro comenta sobre sua participao e da qualidade do Regional do Canhoto.

    verdade. Era to bom o conjunto que as gravadoras mudavam o horrio das gravaes s para poder gravar com o Regional do Canhoto. O conjunto era muito solicitado. Todos os cantores queriam gravar com a gente. Todo mundo gravava com o Regional do Canhoto. O Luiz Gonzaga gravou tanto com eles com o Regional antes de eu entrar que deu um violo para o Dino, um violo para o Meira, um cavaquinho para o Canhoto e um pandeiro para o Gilson, que foi o pandeirista antes de mim. Porque todo disco do Luiz Gonzaga voc encontra l: Regional do Canhoto. (Entrevista a Nana Vaz16)

    De fato o regional fez grande sucesso, sendo constantemente notcia nos peridicos

    destinados ao rdio na dcada de 1950, fato que no era comum para um regional. O Novo

    lbum do Rdio (1954, n5) destinou uma pgina para apresentao do conjunto, dando

    destaque a sada do conjunto de Benedito e para uma curiosidade sobre um princpio

    disciplinar do ento chefe do grupo, Canhoto, em relao a atrasos: uma caixinha onde as

    multas relacionadas aos eventuais atrasos eram depositadas e, posteriormente, dvidas entre os

    integrantes. A Revista Carioca de 23/01/1954 trazia na coluna Variedades Musicais os

    melhores do ano de 1953, tendo Canhoto e Seu Conjunto como vencedores do prmio de

    melhor conjunto internacional [instrumental?] 17. O prmio seria mais uma vez destinado ao

    grupo no ano seguinte atravs de outra revista, a TV Show, em seu primeiro nmero. Alm

    dos peridicos especializados sobre o mundo do Rdio e suas celebridades, o regional

    tambm era assunto em outras revistas como o Jornal das Moas (14/01/1954) peridico

    especializado em assuntos femininos da poca como moda, economia domstica, poemas,

    piadas, etc.

    A discografia do grupo se divide de acordo com as funes que executavam nas

    gravaes: a de acompanhadores e de artistas principais.