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    CAMPBELLSVILLE UNIVERSITY

    JONAS MONTEIRO ARRAES

    PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS

    SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE

    RECIFE – PE

    2005

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    JONAS MONTEIRO ARRAES

    PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS

    SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE

    Dissertação apresentada comorequisito parcial à obtenção dograu de Mestre do curso depós-graduação em ArtesMusicais, da CampbellsvilleUniversity, sob orientação doProfessor Dr. Alcingstone

    Cunha.

    Recife – PE

    2005

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    JONAS MONTEIRO ARRAES 

    FOLHA DE APROVAÇÃO

    PAISAGEM SONORA DE BELÉM DO PARÁ: ASPECTOS E REGISTROS DOS

    SONS URBANOS NO SÉCULO XX ATÉ OS DIAS DE HOJE

    Avaliado por:

    Recife – PE _____/______/_______

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    À cidade de Belém do Pará que me ensinou a ver com os ouvidos.

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     AGRADECIMENTOS

    A Jesus Cristo que pacientemente espera pelos meus bons atos.

    À minha esposa Rosa Arraes, provocadora da idéia da tese e grande colaboradora e

    aos meus filhos Luciana e Raoni, que amainam meus sacrifícios.

    Ao meu orientador Prof. Dr. Alcingstone Cunha pela competência, profissionalismo e

    paciência.

    Aos amigos Carlos Augusto e Urubatan Castro pelas contribuições.

    Ao Dr. Luiz Mindelo, narrador de deliciosos causos sonoros e grandes companheiro

    da arqueologia sonora.

    Ao Professor Dr. Aldrin Figueiredo, por sua valiosa colaboração quando da busca

    das fontes e do percurso inicial.

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    Se ficarmos todos surdos, simplesmente não haverá mais música. Uma das

    definições de ruído é que ele é o som que aprendemos a ignorar. E, como nós o

    temos ignorado por tanto tempo, ele agora foge completamente ao nosso controle.

    Murray Schafer

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    ARRAES, Jonas Monteiro. Paisagem Sonora de Belém do Pará: aspectos

    e registros dos sons urbanos no século XX até os dias de hoje. 2005. 99 f.

    Dissertação (Mestrado em Artes Musicais) – Universidade de Campbellsville, USA.

    RESUMO

    Este trabalho discutirá a evolução da sonoridade da cidade de Belém, capital

    do estado do Pará, desde o início do século XX, até os dias hoje. Para melhor

    compreensão dos fenômenos que ocasionaram grandes mudanças na quantidade e

    qualidade dos sons que encontramos atualmente permeando o território auditivo da

    urbe, buscamos conhecer a origem do núcleo urbano e os personagens que aqui

    chegaram para ocupar o lugar que há milênios era propriedade dos índios.

    Ao discutir a contemporaneidade buscaremos entender a relação daspessoas com a música e com os ruídos, no sentido de colaborar com a premente

    necessidade de dominar os efeitos nocivos da poluição sonora, abrindo caminho

    para enriquecer a nova ciência que une música e ecologia, a ecologia sonora.

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     ABSTRACT

    This paper discusses the evolution of sound in the City of Belém, Capital of

    the State of Pará, Brazil, from the beginning of the Twentieth Century up until current

    times. To better understand the phenomena that bring about great changes in the

    quantity and the quality of sounds that today permeate the auditive territory of the

    urb, we have sought to understand the origin of the urban nucleus and the persons

    who arrived in this city to occupy a place that for thousands of years belonged to the

    Indians.

    Upon discussing the contemporary setting, we seek to understand the

    relationship among people and music and noise, so as to cooperate with the urgent

    necessity to control the harmfull effects of sound pollution, thus opening paths to

    enrich the new science that joints music and ecology, called sound ecology.

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    SUMÁRIO

    FOLHA DE APROVAÇÃO .........................................................................................iii

    DEDICATÓRIA .......................................................................................................... iv

     AGRADECIMENTOS  ..................................................................................................v

    RESUMO .................................................................................................................. vii

     ABSTRACT  ...............................................................................................................viii

    LISTA DE FIGURAS .................................................................................................. x

    INTRODUÇÃO............................................................................................................ 1

    I - PRIMEIROS SONS DE UMA CIDADE NOVA ....................................................... 6 

    1.1 - A chegada dos portugueses................................................................................ 6

    1.2- Primeiros passos e sons da cidade.....................................................................10

    II – A BUSCA DO SOUNDSCAPE DE BELÉM NO SÉCULO XX............................ 15

    2.1 – De cavalos a bondes: a velocidade sonora que chega.....................................15

    2.2 - Orquestras, bandas de música e grupos musicais............................................23

    2.3 –Vendo imagens sonoras.....................................................................................34

    2.4 – Poluição sonora, refúgios e jardins sonoros .....................................................49

    III – ENCONTROS E CONFRONTOS DOS SONS ...................................................49

    3.1 – A diversidade sonora de uma cidade amazônica do século XXI .....................49

    3.2 – Análise sócio musical da influência da evolução sonora e musical sobre os

    habitantes de Belém...................................................................................................57

    3.3 - Propostas de encontros sonoros em passeios sensitivos..................................68

    IV - CONCLUSÃO.  ....................................................................................................78 

    V - BIBLIOGRAFIA.  .................................................................................................81

    VI – ANEXOS ........................................................................................................... 85

    6.1 – Anexo I – Lei Nº 7.990/2000, de 10 de janeiro de 2000....................................85

    6.2 – Anexo II – Entrevista com o Dr. Luiz Mindelo ...................................................97

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    LISTA DE FIGURAS

    1- Figura 1. A Fundação da cidade de Belém. .......................................................... 9

    2- Figura 2. Forte do Castelo .................................................................................... 10

    3- Figura 3. Mapa da cidade de Belém, em 1773..................................................... 12

    4- Figura 4. O Barco Pô-Pô-Pô................................................................................. 37

    5- Figura 5: Quadro de queixas registradas no CIOP............................................... 44

    6- Figura 6: Quadro de queixas registradas na DEMA ............................................ 45

    7- Figura 7: Níveis de ruídos da Grande Belém....................................................... 46

    8- Figura 8. Residência às margens do Rio Guamá................................................ 52

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     INTRODUÇÃO

    Mais que a vontade de colaborar ou a preocupação de um cidadão que vive

    intensamente sua cidade, optei por desenvolver esta pesquisa com intuito de

    apresentar uma nova abordagem às questões já postas em debate no que diz

    respeito ao meio ambiente auditivo, ou, como bem sintetiza R. Murray Schafer

    (1933– ), no prefácio da edição brasileira do seu livro “A afinação do mundo” (2001):

    A maior parte dos sons que ouvimos nas cidades, hoje em dia,pertence a alguém e é utilizada retoricamente para atrair nossa atenção oupara nos vender alguma coisa. À medida que a guerra pela posse dosnossos ouvidos aumenta, o mundo fica cada vez mais superpovoado desons, mas, ao mesmo tempo, a variedade de alguns deles decresce. Sonsmanufaturados são uniformes e, quanto mais eles dominam a paisagemsonora, mais homogênea ela se torna. Há muitas “espécies em extinção”na paisagem sonora atual. Elas precisam ser protegidas, do mesmo modoque a natureza. De fato, muitos sons em extinção são sons da natureza,dos quais as pessoas cada vez mais se alienam. (p. 12)

    A motivação pela participação dos debates a respeito do meio ambiente

    acústico esta centrada no desejo de viver numa cidade em pleno desenvolvimento,

    mas que respeite suas tradições, seu passado, seu memorial auditivo, sua culturaimaterial e seu ambiente amazônico.

    Um ditado muito popular em Belém diz: “Belém: a cidade do já teve”. Esta

    referência lamentosa e saudosista é uma forma muito competente que a população

    encontra para fazer seu protesto em face da degradação constante e cada vez mais

    violenta do meio ambiente urbano.

    Cada dia fica mais difícil a convivência dos costumes atuais com que restou

    do glamour da Belle-Époque, vivida pela cidade no final do século XIX até as duas

    décadas do início do século XX.

    A sonoridade de Belém mudou muito no decorrer do século XX, acompanhando

    sua evolução demográfica. Com cerca de 100 mil habitantes nos primeiros anos do

    século a cidade tem hoje aproximadamente 1,3 milhão de habitantes.

    Todos os dias vemos casas e prédios antigos, de arquitetura nobre e

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    refinada, serem abandonados ao sabor do tempo, não obstante o relevante trabalho

    realizado pelo poder público que restaurou vários prédios, casas, igrejas, palacetes,

    monumentos e logradouros públicos.

    Estas ações governamentais recentes são poucas se comparadas aos

    inúmeros monumentos, casarios, igrejas e logradouros que estão vitimados por anos

    de abandono de nosso patrimônio histórico. Lugares pitorescos da cidade, onde se

    podia respirar um ar saudável e ouvir a natureza em seu melhor esplendor sonoro,

    foram invadidos pela faminta especulação imobiliária. Verdadeiros acervos imateriais

    desapareceram sem serem notados, a exemplo de cordões de pássaros, bois,

    quadrilhas, grupos de chorinho, grupos de carimbó, orquestras, bandas de música e

    de jazz, entre outros.

    Este trabalho não pretende resgatar minuciosamente sons desaparecidos ao

    longo do período estudado e sim compreender historicamente a evolução dos sons

    que podemos considerar como parte de uma ambiência sonora, que se vislumbra

    como paisagem sonora1  e estão limitados a um território auditivo e que serão

    debatidos no decorrer de nossa pesquisa: a) sons da “paisagem sonora natural”,

    como explica Schafer: “os sons fundamentais de uma paisagem são os sons criados

    por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos e animais” 

    (2001, p. 26), b) sons esquizofônicos, de acordo com a explicação de HeloisaValente (1959-): “Com o advento do telefone e do rádio, teve aquilo que M. Schafer

    denomina esquizofonia (squizo + phonos = som separado, fendido) neologismo que

    designa o som que tem sua origem num local e sua audição em outro, longínquo” 

    (1999, p. 80), c) sons industriais e eletro-eletrônicos, d) bandas, orquestras, grupos

    1  Neologismo criado por Murray Schafer, professor, compositor e pesquisador canadense, para designar onosso ambiente sonoro com seus conjuntos de sons, sejam agradáveis ou desagradáveis, fortes e fracos, ouvidosou ignorados e que foi traduzido por Mariza Fonterrada como “Paisagem Sonora”.

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    vocais e instrumentais, e) aparelhagens ou treme-terras, f) pregões.

    Pretendemos levar em consideração as sonoridades acima citadas, além de

    outros sons interessantes que serão relatados nas entrevistas e encontrados nos

    meios pesquisados.

    A mola propulsora para iniciar a pesquisa foi buscar conhecer os sons do

    passado, que desapareceram no tempo, como que numa arqueologia sonora, para

    fazer prospecções de fatos sonoros encontráveis somente pela dedução ou pelos

    relatos literários. Dos sons possíveis de avaliar por intermédios de gravações e

    audição direta procuraremos compreender os gostos peculiares por uma estética

    musical de rua, salões de festas e salas de concertos e shows, localizar refúgios e

    até possíveis jardins sonoros, considerar a poluição sonora e outros sons resultantes

    da modernidade urbana.

    Schafer, como o principal pesquisador das paisagens sonoras do mundo,

    aponta caminhos para o entendimento das sonoridades que percebemos ao nosso

    redor: “O que o analista da paisagem sonora precisa fazer, em primeiro lugar, é

    descobrir os seus aspectos significativos, aqueles sons que são importantes por

    causa da sua individualidade, quantidade ou preponderância” (2001, p. 25).

    Outro aspecto relevante que Schafer aponta é a percepção dos sons

    fundamentais da natureza, diferentemente do modo musical de ouvir a nota básicade uma emissão sonora:

    Os sons fundamentais de uma paisagem sonora são os sonscriados por sua geografia e clima: água, vento, planícies, pássaros, insetos eanimais. Muitos desses sons podem encerrar um significado arquétipo, isto é,podem ter-se imprimido tão profundamente nas pessoas que os ouvem que avida sem eles seria sentida como um claro empobrecimento. (p. 26)

    Acreditamos ser possível incentivar encontros e passeios sonoros,

    chamando atenção para a escuta sensitiva, resultante da percepção do nosso meio

    ambiente acústico, e quem sabe valorizar nossas sonoridades criativas, inibir o

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    desenfreado crescimento de sonoridades abrasivas ao nosso bem-estar. Nesses

    encontros e passeios sonoros queremos propor o descobrimento de refúgios e

     jardins sonoros, que são locais existentes na cidade onde é possível conviver com a

    natureza mais primordial e ouvir seu repertório de sons, cheiros, cores e sabores.

    O debate a respeito da paisagem sonora da cidade de Belém é oportuno,

    num momento em que o mundo passa por transformações em seu eco sistema,

    causando preocupações nos meios científicos no que diz respeito a sustentabilidade

    do meio ambiente e na relação do homem com seu habitat.

    A audição, como sentido de ampla utilidade para o homem, está sempre em

    tempo integral, ativada e pronta para receber qualquer estímulo sonoro, desde a

    linguagem musical, sons da natureza, sons de alerta, entre outros sons. É possível

    que mesmo sons não audíveis ao ouvido humano possam estar, de alguma forma,

    afetando-lhe.

    Os estímulos sonoros que recebemos são mudanças ou movimentos que

    ocorrem no meio externo de nossos ouvidos e não dependem de nossa vontade. Até

    mesmo em países com grande controle de ruídos, inclusive com a confecção de

    divisórias acústicas em avenidas de grande tráfego, não é possível isolar

    completamente o cidadão dos inusitados e muitas vezes agressivos sons.

    A música, linguagem que interage com seu espectador através de um fruidorapto e esteticamente criativo e que pode se valer de sons definidos, ruídos, silêncios

    e meio ambiente, está sempre a serviço de um espetáculo. Podemos ouvir música

    ativamente ou passivamente, quer tenhamos escolha ou não. O mesmo não ocorre

    frente aos chamados ruídos urbanos, então, “O que é preciso enfatizar em relação

    ao ruído é que é impossível nos afastarmos dele: cada pessoa é o centro do seu

    ambiente sonoro, num círculo cujo diâmetro é o limite da escuta. Permanentemente,

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    quer tenhamos consciência disso ou não, os sons produzidos nesse âmbito de

    escuta nos afetam, positiva ou negativamente. Ao contrário dos olhos, cuja

    pálpebras protegem o indivíduo daquilo que não quer ver, os ouvidos não dispõem

    de tal aparato, permanecendo abertos aos sons do mundo” (Fonterrada, 2004, p.

    44). 

    O desenvolvimento de Belém do Pará no decorrer do séc. XX, até os nossos

    dias foi muito maior do que nos três séculos anteriores. A explosão demográfica,

    resultante de processos migratórios, em conjunto com o desenvolvimento industrial e

    urbano, potencializou os problemas de relacionamento dos seus habitantes com o

    meio ambiente acústico.

    Em decorrência das modificações ocorridas neste território bio-acústico e da

    evolução de sua paisagem sonora, bem como da internacionalização dos novos e

    velozes meios de comunicação de massa, cabe, neste trabalho, uma análise dos

    efeitos desses elementos sobre o comportamento das diversas gerações de

    habitantes, bem como da notável modificação do gosto musical das pessoas.

    Face ao ineditismo da pesquisa, sabemos que não abordaremos todos os

    tópicos que o assunto requer, no entanto, procuraremos dar início a um debate, em

    nossa comunidade, que possa gerar reflexões, seguidas de ações positivas para a

    cidade de Belém, onde suas mangueiras centenárias, seus rios e igarapés, suasilhas e praias de água doce, seus cheiros e sabores, suas ruas antigas e novas e

    sua rica paisagem sonora possam conviver com os animais, com as flores, com a

    música e a poesia e principalmente com o homem. 

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    I - PRIMEIROS SONS DE UMA CIDADE NOVA

    1.1 - A chegada dos portugueses 

    Assim, mandou disparar alguns pequenos canhões que levara, os quais,ao mesmo tempo que serviam de salvar de alegria, não poucocontribuíram também para conter em respeito aos indígenas, receosos eintimidados com a vizinhança de tão inoportuno e destemido hóspede(Amaral, 2004, p. 77).

    Belém do Pará, assim é chamada esta cidade brasileira, amazônica por

    natureza, situada no norte do país, próxima da linha do Equador. Seu clima e sua

    paisagem natural configuram um complexo sistema ecológico, onde coabitam fauna,

    flora e homem.

    Com uma parte continental e outra insular, Belém está localizada a 48 29’

    graus de longitude oeste e 1 28’ de latitude sul. Limitada a oeste pela baia do

    Guajará, que é o fim do Rio Pará. (O Rio Pará deriva da divisão do Rio Amazonas no

    encontro com a Ilha do Marajó). Ao sul Belém é limitada pelo Rio Guamá.

    Com características muito peculiares, a cidade é plana e com clima quente eúmido. Não obstante este clima quente, a cidade recebe banhos de ventos em

    determinadas horas do dia que a refrescam e amenizam sua temperatura.

    Fundada no início do séc. XVII, por Francisco Caldeira de Castelo Branco que deu

    o nome de Belém em alusão à data de sua partida de São Luiz do Maranhão em 25 de

    dezembro de 16152. Ainda é polêmica a data certa para a chegada de Castelo Branco ao

    local, onde mandou construir um forte batizado de Santo Cristo, no entanto 12 de janeiro é

    comemorado atualmente como o dia da fundação da atual capital do estado do Pará.

    2 Os fundadores de Belém vieram do Maranhão, onde no ano anterior Ravardière, ocupante francês,tinha sido derrotado e capitulado aos Portugueses no dia 04 de novembro de 1615. Gaspar de Souza, governadorgeral do Brasil, atendendo exigências de Portugal ordena, o Capitão Mor do Maranhão, Alexandre de Moura,que substitui Jerônimo de Albuquerque, a empreender jornada de conquista do Grão Pará, organizando aexpedição que iria fundar Belém. Francisco Caldeira é então escolhido para comandar a viagem que tinha como

    objetivo alargar os domínios portugueses na região amazônica. Parte com cerca de 200 homens, entre eles índiosque pudessem ser tradutores e facilitadores na abordagem aos nativos da região onde hoje está Belém e osdistribui em três regimentos nas naus denominadas de Santa-Maria da Candelária, Santa Maria da Graça eAssunção, de quem eram capitães Pedro de Freitas, Álvaro Neto e Antonio da Fonseca respectivamente.

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    A cidade está localizada numa península, que originalmente era habitada por

    índios Tupinambás, estrategicamente situada na margem direita da foz do rio

    Guamá onde este rio deságua na baía do Guajará e possui dois terços de seu

    território formado por 39 ilhas.

    O impacto da chegada dos portugueses, visualmente espetacular para estes

    índios, também é marcado pelos novos sons que traziam, provenientes dos diversos

    artefatos de guerra e materiais utilitários além do idioma falado que constituía uma

    novidade sonora incompreensível para eles, assim como a língua tupi o era para os

    portugueses.

    No ano da fundação de Belém, o Brasil já estava apropriado há mais

    de um século pelos portugueses. Portanto, a estratégia de abordagem aos

    habitantes naturais foi a de uso de outros “parentes”3 que já tinham sido constatados

    anteriormente sem, no entanto, deixar de usar uma intimidação convincente: os tiros

    de canhão, peças de artilharia que normalmente ultrapassam a bitola de 20 mm e

    que proporcionam um forte espetáculo sonoro. Ribeiro do Amaral nos relata esta

    abordagem e descreve o uso do canhão naquele momento:

    Desembarcado Caldeira com toda a sua gente, depois deencomendar o bom êxito da empresa à Virgem Senhora, como era deum ânimo superior às suas mesmas forças, foi seu primeiro cuidadose fazer respeitado do muito gentio de que havia se cercado. Assim,mandou disparar alguns pequenos canhões que levara, os quais, ao

    mesmo tempo em que serviam de salvar de alegria, não poucocontribuíam também para conter em respeito aos indígenas, receosose intimidados com a vizinhança de tão inoportuno e destemidohóspede. Contudo, como muito bem sabia que todo o poder quelevara pequeno e fraco era para sustentar um posto que só sepoderia conservar na paz e amizade com aqueles naturais, de cujasforças, como senhores do país que eram, pendia a estabilidadedaquele presídio, usando da maior prudência, expediu, porembaixadores, a alguns dos tupinambás da sua comitiva, para quepraticassem com os seus parentes e estes com os seus aliados,certificando-os, a uns e outros, de que a sua vinda ali não era paralhes fazer dano nem tirar as suas terras, mas antes para viveremtodos como bons amigos, permutando as drogas das suas florestas

    3 Expressão usada pelos índios para referir a outros índios, mesmo que de nações diferentes.

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    Figura 1. A Fundação da cidade de Belém. Óleo sobre tela de TheodoroBraga. In: Museu de Arte de Belém – MABE.

    Neste momento inaugura-se a cidade de Belém e a nova configuração de

    sua paisagem sonora. A ampliação do território geográfico português se dá também

    no plano sonoro. Novos sons são incorporados ao memorial dos recém chegados.

    Para os habitantes naturais novos sons são acrescentados ao seu milenar memorial

    sonoro, ampliando o seu território auditivo4.

    Cidade mais antiga da Amazônia, Belém possui, desde antes da colonização

    portuguesa, encantos dos mais diversos. Sua paisagem sonora  original era

    composta principalmente de sons da natureza. As intervenções sonoras naquele

    ambiente acústico eram feitas pelos seus habitantes originais: homens e animais.Hoje, onde estão ruas asfaltadas, prédios e logradouros públicos, existia

    uma densa floresta com todos os elementos ecológicos e, neste meio, homens que

    foram chamados de índios por ocasião do descobrimento do Brasil. Estes homens,

    genericamente chamados de tupinambás, organizavam-se em grupos tribais onde a

    principal língua era o tupi.

    4 Este território auditivo aqui citado pode ser entendido como um território espacial e físico ou mesmocomo a cultura sonora de cada indivíduo ou coletividade, onde cada parte ou o todo possui seus limites sonoros.

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    Com um território auditivo delimitado por uma cultura milenar, onde os

    costumes incluíam ritos, cantos de trabalho, sons de guerra e espetáculos de deleite,

    a chegada dos europeus configurou uma somatória de sons aos existentes no lugar

    onde se formaria mais tarde a cidade de Belém. Neste encontro de culturas sonoras

    distintas e de origem diversas, sobrepõe-se a européia, seja pela persuasão da

    novidade, pelo convencimento verbal ou pela força.

    1.2 - Primeiros passos e sons da cidade

    A criação do núcleo urbano se dá pela construção de um Forte Militar, feito

    de madeira com cobertura de palha, numa parte elevada à frente de uma grande

    baia, onde a visualização de que chegava era abrangente. Ali e a partir deste Forte

    surgiu o primeiro núcleo urbano chamado inicialmente de Forte do Presépio,

    posteriormente Feliz Luzitânia. Este Forte permanece até hoje e é chamado de

    Forte do Castelo, tendo sido restaurado recentemente para abrigar o Museu do

    Forte, gerido pelo Governo do Estado do Pará. Na restauração foi retirado um muro

    que o separava da praça Frei Caetano Brandão.

    Figura 2. Forte do Castelo. In: Página eletrônica da Prefeitura de Belém.

    Foto: Sávio Castro

     

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    De fundamental importância foram os intérpretes que chegaram com a

    comitiva de Caldeira, tornando o contato com as tribos, no sentido de facilitar a

    construção do forte. Como já era hábito na época, os portugueses distribuíram

    ferramentas, peças de pano e diversos utensílios, o que muito agradava aos

    habitantes naturais.

    Após estarem feitos o desembarque e contatos com os habitantes originais,

    os colonizadores iniciaram a expansão do domínio territorial abrindo ruas e

    construindo casas, conventos, igrejas entre outros tipos de edificações. As primeiras

    casas eram de arquitetura simples, feitas de madeira e enchimento com barro. Este

    modo de construir dos primeiros colonizadores contou com a participação e

    colaboração dos índios, sendo que “não foi o padrão cultural do colonizador, mas do

    nativo, que prevaleceu nessa fase inicial da conquista. Pelo seu número e pelo seu

    concurso, o índio impôs à cidade a presença do meio, o que mostra que ele não foi

    apenas um “braço”, mas também animador e parte integrante da paisagem urbana”.

    (Eidorfe Moreira apud Maranhão, 2000, p. 107)

    Segundo relato do historiador Ernesto Cruz (1898 – 1976), primeira rua de

    Belém recebeu o nome de Rua do Norte, hoje Siqueira Mendes, que, em direção ao

    sul contornava a margem do rio. Nesta rua um capitão-mor, Bento Maciel Parente,

    construiu sua casa em 1621. Em 1627 doou as benfeitorias e o terreno aos fradescarmelitas calçados que ali fundaram um convento e uma igreja no lugar que hoje é

    conhecido como largo do Carmo. Outras ruas paralelas foram sendo abertas a partir

    da fortificação militar como a rua do Espírito Santo, atual Dr. Assis e a rua dos

    Cavaleiros, hoje Dr. Malcher (1970, p. 9)

    O mapa da cidade daqueles primeiros anos de colonização era muito

    diferente do que temos hoje. Um alagado, chamado Piri, separava as terras firmes

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    ao redor do forte de uma campina que se adentrava em direção ao continente, tendo

    sido este lago aterrado nos fins do século XVIII. Todos os sons presentes naquele

    desenho geográfico se perderam definitivamente com o alagamento e com as

    construções provenientes da expansão da cidade. Um mapa de cerca de 1773,

    mostra com clareza a existência deste lago.

    Figura 3. Mapa da cidade de Belém, em 1773. Autor: Gaspar João Geraldo de Gronsfeld.

    A presença do homem europeu na pequena cidade que nascia vem adicionar ao

    local uma nova cultura, impositiva e dominante. Através de diversos recursos importados

    de Portugal, os colonizadores procuravam reproduzir os ambientes deixados além mar.As ordens-unidas dos militares e todos os seus aparatos como cornetas, pequenas

    bandas e fanfarras, ferramentarias e armas provocam nos ouvintes da época um novo

    soundscape que certamente impressionava e quem sabe até amedrontava os habitantes

    naturais, acostumados aos sons da floresta e dos rios.

    Mas não é somente o conjunto de sons de armas e equipamentos militares

    que são adicionados ao território sonoro das terras recém tomadas. Os sons

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    religiosos se farão presentes através da vinda de padres e demais membros do clero

    católico. A música dos ofícios e as diversas formas de rezas, em latim, ocuparão as

    igrejas imediatamente construídas. Conforme os religiosos europeus vão adentrando

    o sertão,5 suas falas, seus cantos e seus instrumentos vão permeando a paisagem

    de novas músicas e de novas informações sonoras. Com as construções das igrejas

    e conventos, os padres passam a importar da Europa estilos musicais diversos, haja

    vista que a música já era bastante desenvolvida no velho continente. Para que a

    música cumprisse seu papel evangelizador foram trazidos instrumentos musicais,

    partituras e métodos para o ensino da música aos índios.

    Nestes primeiros tempos de uma nova cidade acontece uma substituição

    gradual de uma paisagem sonora constituída basicamente de sons da natureza, dos

    artefatos manufaturados e da música dos índios, por uma sonoridade ambiental

    repleta de sons intensos e com capacidade de serem ouvidos em grandes

    distâncias, a exemplo dos sinos das igrejas.

    Inicia-se nestes primeiros anos um processo de expansão territorial linear,

    que perdura até meados do século XX, época de sensíveis avanços tecnológicos e

    da verticalização das construções para negócios e moradias. A expansão, por

    ocupação pelo homem, das áreas além do núcleo inicial se dá pela substituição de

    uma paisagem sonora por outra, esta cada vez mais complexa e sensivelmenteprejudicial ao bem-estar do ser humano.

    Pesquisadores dos impactos que os sons projetam nos seres humanos

    afirmam que a exposição prolongada a sons excessivamente fortes atinge nossos

    limites fisiológicos podendo ocasionar danos temporários ou permanentes.

    Os índios que habitavam o lugar onde hoje está Belém, tinham sua audição

    5  Denominação dada às localidades distantes dos núcleos urbanos, o que na Amazônia se traduzia pormata virgem.

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    muito mais sensível, podendo definir com clareza os diversos sons emitidos pelos

    animais e pelos cantos dos pássaros, o fluir das águas nos rios e igarapés, os sons

    da chuva nas árvores, no chão e no rio. Quando caçavam seus ouvidos eram

    acessórios importantes na localização da presa, assim como na percepção espacial

    de seu entorno, trazendo-lhe segurança e habilidade na ação.

    Sabemos que doenças de fácil controle para nós, como a gripe, foram

    devastadoras para os índios. Como nem todas as doenças tem origem no contato

    com vírus, bactérias ou outros meios físicos de contágio, podemos supor que males

    derivados dos efeitos psicossomáticos da audição de sons nefastos como tiros de

    canhões, de armas de fogo portáteis, de espadas, fogos de artifícios causaram

    danos no equilíbrio mental daqueles habitantes, não sendo simplesmente

    assustadores e intimidadores.

    A invasão colonizadora trazia outros costumes somando-se a outros

    indicadores de um processo de matança genocídica a que foram submetidos os

    habitantes e verdadeiros donos das terras invadidas. As diversas estratégias de

    dominação e opressão que os colonizadores usaram foram eficientes para

    desarticular culturalmente os índios. A imposição de novos estilos musicais

    corrompeu uma audição milenar que era circundada por um território auditivo

    consagrado pelo tempo e quase imutável, sem pretensões evolutivas ou sentidocomercial.

    O novo idioma, que viria a se tornar oficial, juntamente com a nova música e

    os novos sons dos inúmeros materiais usados no dia-a-dia, ocuparam gradativamente

    o lugar, abrindo as cortinas de uma nova era sonora, de um novo Soundscape e de

    uma nova cidade que estudaremos em seu último século e no inicio do atual.

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    II – A BUSCA DO SOUNDSCAPE DE BELÉM NO SÉCULO XX 

    2.1 – De cavalos a bondes: a veloc idade sonora que chega 

    Belém, no inicio do século XX, era uma cidade glamourosa, cantada em

    verso e prosa. Todos que a visitavam prestavam as mais solícitas homenagens,

    cunhando em elogios fartos as suas praças e monumentos, seus amplos boulevards,

    prédios requintados, teatros, cafés, igrejas seculares e paisagens naturais de rara

    beleza.

    Com o progresso do beneficiamento da borracha, feitos em laboratórios dos

    Estados Unidos da América e em alguns países da Europa, a melhor matéria prima

    para o desenvolvimento de diversos produtos e sub-produtos do látex extraído das

    seringueiras estava concentrada na Amazônia.

    Ainda no século XIX, a partir dos anos 40, a economia da região Norte do

    Brasil passa a girar em torno da extração e exportação do látex. Neste período a

    cidade de Belém, por ter seus portos localizados no grande estuário do rio

    amazonas e próximo do oceano atlântico, passa por grandes transformações no seu

    desenho urbano, na sua população e em sua cultura. Para atender a crescente

    demanda por serviços e infra-estruturas foram criados mecanismos de urbanização

    que mudaram o mapa da cidade e conseqüentemente sua paisagem sonora.

    Apesar de boa parte dos produtos consumidos pela população seremimportados, foram estabelecidas fábricas e oficinas de manufaturas de muitos

    produtos, o que trouxe para a cidade processos industriais que iriam mudar

    substancialmente o território auditivo da população. Já em 1862, segundo censo do

    IBGE, existiam 24 fábricas de sabão, 18 de cal, 06 de louças de barro, 06 de óleos,

    03 de beneficiamento de arroz, 25 olarias, 01 de café, 01 de artefatos de borracha,

    10 serrarias, 03 curtumes, entre outras de menor impacto sonoro (apud Sarges,

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    2002, p. 20). Com o processo de mecanização foram trazidos motores, serras,

    geradores e outras máquinas que produziam uma quantidade de sons e ruídos de

    alto volume.

    Assim como o desenvolvimento urbano e o crescimento da cidade em

    direção à parte continental foram se incorporando à vida das pessoas, as novidades

    sonoras foram gradativamente absorvidas pela população ao longo dos anos. O

    aparecimento de novos ruídos e as mudanças nos padrões de escuta da sociedade

    proporcionaram um novo meio ambiente sonoro na cidade onde outrora

    praticamente só se ouvia a natureza e a música.

    Com a necessidade de adequar culturalmente a cidade ao seu belo espaço

    em construção, a sociedade investiu no desenvolvimento da música e das artes em

    geral neste período, surgindo na cidade grupos corais, instrumentais populares,

    orquestras e bandas de música. A partir destas práticas musicais, surgiram

    talentosos compositores, regentes, cantores e instrumentistas. No entanto a

    formação desses músicos não era integralmente feita aqui. Como não havia ainda

    escolas de música oficiais estabelecidas, viajavam para a Europa a fim de

    desenvolver seus talentos, sendo que lá sofriam influências diretas das correntes de

    composição e interpretação musical vigente nos principais países da Europa.

    Com o desenvolvimento econômico foi possível vir para Belém grupos demúsica e diversos espetáculos de teatro e dança. Foram então construídos teatros e

    cinemas que abrigariam estes espetáculos, além de outros espaços destinados para

    outros fins, mas que podiam ser usados em dias de recitais, saraus e demais

    funções artísticas e literárias. A mais expressiva construção do período foi o Teatro

    da Paz, apresentado à cidade em 1878. Com belas linhas arquitetônicas e uma sala

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    de espetáculo de primeira categoria o teatro desde sua inauguração recebeu artistas

    do mundo todo nos mais diferentes tipos de espetáculos.

    Ainda sob os benefícios da extração do látex das seringueiras, a cidade

    pulsava prosperidade e desenvolvimento econômico. Bancos nacionais e

    estrangeiros abriam suas portas em Belém. A exportação do látex favorecia a

    importação de diversos gêneros de consumo. Como no Pará e em sua capital não

    havia um processo industrial que suprisse a necessidade do consumo das classes

    abastadas, importava-se até alimentos e pequenos adereços de vestuário.

    Tudo era feito para Belém se parecer com Paris ou qualquer outra cidade

    próspera e chique da Europa. Um certo francesismo existia na denominação de ruas

    e nas indicações de prédios, cafés e teatros. Muitas vezes, importava-se o que se

    desejava por inteiro a exemplo dos chalets de ferro que vinham em peças e eram

    montados aqui.

    O mundo da música se fazia presente em Belém. Toda casa de um bom

    burguês tinha um piano e alguém a tocá-lo. Fazia parte da educação das

    senhorinhas  o estudo do canto e do piano. Companhias de óperas vinham

    diretamente para Belém encenar as mesmas óperas recém lançadas na Europa.

    Grupos de câmara, solistas, bandas sinfônicas, entre outras atrações, embelezavam

    a sonoridade da cidade tropical com gosto de Belle-Époque.No cinema Olímpia, localizado na Praça da República, com seu salão de

    recepção luxuoso onde os espectadores aguardavam a próxima sessão, grupos

    musicais tocavam para o deleite dos presentes, enquanto na sala de projeção um

    pianista fazia o seu trabalho de ilustração musical dos filmes mudos.

    Antonio Lemos (1843-1913), natural do Maranhão, era o intendente da

    cidade, cargo equivalente ao de prefeito atualmente. Seus atos administrativos

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    visavam tornar Belém uma cidade limpa, calma e de aparência européia. Lemos

    governou Belém de 1897 a 1910. Neste período a cidade passou pela sua mais

    importante urbanização: praças, parques e ruas foram redesenhadas para oferecer a

    população e ao visitante, conforto, beleza e funcionalidade.

    Para suscitar noções mais claras de como era a cidade neste período e

    como a sociedade reagia às oportunidades que o ouro negro, como era chamada a

    borracha, proporcionava, apresentamos algumas descrições que Murilo Macedo6 fez

    sobre Belém:

    No tempo do “velho” Lemos, Belém viveu a época do seu maior fastígio.Sendo o maior empório de borracha do mundo, o seu comércio nadavaem ouro. A cidade vivia a sua fase verdadeiramente esplendorosa eromântica. Eram festas suntuosas pelo carnaval, verdadeiros carnavaisde Nice.Regatas dignas das dos Doges de Veneza, realizavam-seperiodicamente. Os dinheiros da Prefeitura, embora gastos em jardinaostentosos, apareciam a rodo.. Metade, seguramente, do calçamento dacidade foi feita nessa gestão, que durou de 1897 a 1911. O IntendenteAntonio Lemos onerou com empréstimos o Município de Belém, pormuitos anos, com o argumento que os futuros cidadãos iam gozar osmelhoramentos feitos, portanto, lhe cabia também pagá-los. AIntendência naquele tempo rendia muito menos que hoje, se bem que odinheiro fosse muito mais valorizado. E por toda a parte, a figura dohomem superior dominava. Asilo da Mendicidade, Forno Crematório,Mercado de São Braz, Curro Velho, o velho Mercado remodelado commais um andar, o Orfanato Antonio Lemos, Companhia de Força e Luz(Pará Eletric), Edifício da Santa Casa, com enorme aparelhamentocientífico, o Corpo de Bombeiros, de organização moderníssima, quepossuía uma banda-orquestra que rivalizava com a da Guarda Municipalde Lisboa, então famosa –eram obras públicas que iam surgindo semdescontinuar, mercê da operosidade megalomaníaca do Intendente.(apud Maranhão, 2000, p. 147,148).

    Lemos impôs à cidade um severo Código de Posturas. No seu artigo 110constava a proibição de fazer “algazarra, dar gritos sem necessidade, apitar, fazer

    batuques e sambas”. Em seu relatório de 1903 aos vogais (vereadores) da câmara

    municipal, o intendente justificou estes atos legais como medidas em favor do

    silêncio. Com a construção de parques, praças e jardins, alamedas, ruas e avenidas

    arborizadas as medidas tentavam atenuar os incômodos dos novos e fortes sons

    6  Os trechos citados por Haroldo Maranhão foram extraídos da obra “A Capital do El Dorado”, editadoem 1954 pela Imprensa Oficial de Belém.

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    provocados pelo moderno tráfico de veículos que viria a somar com os antigos meios

    de locomoção.

    Para dar cumprimento às medidas apontadas no Código de Posturas os

    habitantes deveriam seguir regras rígidas, caso contrário seriam punidos com multas

    e até com prisão.

    O cuidado com a parte central da cidade, onde ocorreram as melhorias

    urbanas, visavam unicamente o bem estar dos habitantes das classes abastadas.

    Para isso várias medidas de controle reprimiam os pobres que necessitavam vir para

    o belo centro. Este foi um dos grandes motivos para o acirramento das disputas

    políticas que culminariam com a destituição e humilhação pública de Antonio Lemos

    em 1912.

    Até hoje a chamada era Lemos é vista como de grande importância para o

    embelezamento da cidade de Belém, no passado, mesmo com todas as suas

    controvérsias. Alguns cuidados que ele tinha com a beleza ambiental marcaram para

    sempre a história da cidade, principalmente em lugares onde o silêncio era de

    grande importância. Para demonstrar sua preocupação com a escuta dos

    espetáculos no Teatro da Paz, Lemos mandou revestir as ruas ao redor do teatro

    com um asfalto especial que absorvia os ruídos dos cascos dos cavalos das

    carruagens.Na virada do século XIX para o XX, Belém assistiu a grandes

    transformações de sua paisagem sonora. Muitas modificações sejam nos costumes

    ou no uso de novos objetos industrializados influenciaram nos movimentos dos

    cidadãos pelas ruas da cidade. O ritmo da urbe passou a ser outro, desta vez bem

    mais forte e ativo.

    O bonde chega a Belém em 8 de agosto de 1870, após o governo municipal

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    conceder ao empresário americano James B. Bond, em 1868, a exploração do

    serviço por 30 anos. Vieram inicialmente de Nova Iorque a máquina e dois carros,

    idênticos aos usados no Rio de Janeiro. Muito elegantes e bonitos, foram no primeiro

    momento usados para o transporte de famílias. A primeira linha saía do Largo da Sé

    em direção ao Largo de Nazaré, passando por diversas ruas até chegar a Estrada

    de Nazaré. As avenidas de Belém tinham naquele tempo o nome de estradas. Nota-

    se também que o nome bonde deriva diretamente do sobrenome do empresário que

    trouxe esse moderno veículo de transporte de passageiros para o Brasil.

    Inicialmente movidos por tração animal tinham sonoridades e ritmos diferentes dos

    que viriam mais tarde movidos a energia elétrica.

    Em 1908 o bonde já era movido a energia elétrica com linhas cobrindo vários

    bairros da cidade. De propriedade da Pará Eletric Company, empresa

    inglesa concessionária dos serviços de água, luz e transporte, as linhas de bonde

    eram um meio de transporte coletivo relativamente silencioso. Por serem movidos a

    energia elétrica só provocavam sons decorrentes do contato das rodagens com os

    trilhos em contraste com os automóveis, carroças, carruagens e outros meios de

    transporte movidos por tração animal.

    Com um meio ambiente acústico permeado por sons de cascos de cavalos,

    rodas de carroças e carruagens, carros de boi, entre outros meios de locomoção, oaparecimento de novas sonoridades está diretamente ligado ao desenvolvimento

    industrial que já vinha ocorrendo em outras partes do mundo, influenciando a

    convivência entre as pessoas nos aglomerados urbanos e até nos meios rurais. Mais

    importante que a novidade do som em si é o seu alto volume de emissão.

    Os sons das patas dos cavalos nos paralelepípedos, que hoje para nós

    causa certo sentimento de saudosismo, naqueles tempos eram sons pertencentes à

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    cultura local e comuns no território auditivo da urbe. Os sinos da igreja, os sons das

    ferramentas nas pequenas oficinas familiares e outros sons do trabalho somados

    aos pregões de vendedores ambulantes compunham um universo sonoro familiar a

    cada cidadão.

    A mecanização de processos de fabricação de inúmeros objetos criou novos

    sons, no entanto, esses processos não obedeciam a nenhum controle de emissão

    de sons pelos produtos fabricados. O ambiente fabril tampouco possuía critérios de

    controle da sonoridade nos ambientes de trabalho. A revolução industrial foi um

    marco na história da humanidade sendo que suas conseqüências tiveram caráter de

    irreversibilidade. Os benefícios da industrialização ficaram claros ao longo da história

    assim como seus malefícios. Até em dias de hoje as máquinas são feitas com peças

    e sistemas que produzem ruídos e sons desagradáveis ao ouvido humano.

    Schafer, ao discorrer sobre a revolução industrial e sua influência para o

    aparecimento de novos sons, lista vários objetos e equipamentos e seus respectivos

    anos de criação:

    máquina de costura (1711), máquina de escrever (1714), trilhos deestrada de ferro feitos de ferro fundido, em Whitehaven, Inglaterra(1738), aço fundido (1740) rodas de ferro para carros a carvão (1755),manufatura de cimento (1756), cilindros de ar; pistão movido por rodad’água; produção de altos-fornos mais que triplicada (1761), motor demáquina a vapor aperfeiçoado com condensador separado (1765-1769),trilhos de ferro fundido (em Coalbrookdale) (1767), broca (1774), motorde movimento alternado com roda (1775), fornalha reverbatória (1776)

    máquina a vapor como fonte de energia (1781-1786) barco a vapor(1781), primeira usina de fiação movida a vapor (em Papplewick) (1785),tear mecânico (1785), hélice (1785), navio a vapor (1787), debulhadora(1788), primeira máquina de costura patenteada (1790), motor a gasolina(1791), telégrafo (1793), prensa hidráulica (1796), torno mecânico decortar parafusos (1797). (2001, p.48).

    A listagem que Schafer produz, aponta para o século XVIII, principalmente

    na Inglaterra, como um dos grandes marcos históricos na produção de

    equipamentos e unidades fabris. As influências destas invenções só serão

    amplamente sentidas em nossa cidade a partir da segunda metade do século XIX,

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    mesmo que nem todas essas máquinas tivessem uso no dia-a-dia da população de

    Belém.

    Com as riquezas trazidas pelas exportações da borracha chegaram algumas

    dessas máquinas, além de outras inventadas no estrangeiro ou aqui mesmo,

    mudando significativamente nossa paisagem sonora.

    Após a revolta da Cabanagem iniciada em 1833, quando Belém era uma

    pequena cidade com aproximadamente 13 mil habitantes, segundo o Censo

    Episcopal, constante do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino, iniciou-se uma

    crise econômica superada ao longo da segunda metade daquele século pelo

    surgimento da exploração e exportação do látex da seringueira. Na década de 70 do

    mesmo século Belém já tinha duplicado sua população chegando nos primeiros

    anos do Século XIX com aproximadamente 100 mil habitantes, de acordo com José 

    Coelho da Gama, o Barão do Marajó (apud Sarges, 2000, p. 50, 51).

    O início do século XX apresenta-se como o principal momento da cidade de

    Belém em termos de crescimentos urbano, populacional, territorial e cultural. Na

    década de 20 Belém já possuía em torno de 236.000 habitantes, segundo censo do

    IBGE divulgado em 1926 (apud Sarges, 2000, p.136). Vários empreendimentos

    decorrentes da grande riqueza gerada pela borracha foram feitos na cidade

    preparando-a para um novo século de muitas sonoridades, algumas de grandebeleza, outras que poderiam ser classificadas como incômodos sonoros.

    Além dos projetos de embelezamento da cidade feitos por Antonio Lemos,

    outros aconteceram entre os últimos anos do Século XIX e o início do Século XX,

    como nos relata Sarges: 

    Na dinâmica cidade de Belém foram projetados além do Porto deBelém, o Mercado Municipal do Ver-o-Peso (1901), o Hospital Dom Luiz e oGrêmio Literário (obras da colônia portuguesa), The Amazon TelegraphCompany, linha telegráfica por cabos submarinos, substituída posteriormentepela Western Co., O Arquivo e Biblioteca Pública (1894); o Teatro da Paz

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    (1878), 43 fabricas (incluindo desde chapéu até perfumaria), 5 bancos, 4companhias seguradoras, além da implantação da iluminação a gás, sob aresponsabilidade da Pará Eletric Railway and lighting Co. Ltd,  autorizada afuncionar pelo Decreto Federal n° 5.780 de 26.01.1905 (2000, p. 138).

    Assim era Belém, no início do Século XX: Glamourosa, bela, elegante,

    moderna, rica e charmosa. Sua paisagem sonora era composta de música, sons da

    natureza e novos ruídos.

    No entanto a chamada poluição sonora ainda não poderia ser dada como

    elemento importante. Outros fatores e novas aparições sonoras estavam por vir e

    apontar o som da cidade até o final do século.

    2.2 - Orquestras, bandas de música e grupos musicais

    A economia da borracha significou para a Amazônia e em especial para

    Belém, oportunidade diversa de emprego, renda e ascensão social. Devido ao

    tempo curto de permanência deste comércio na região pode-se classificar este

    momento de fenômeno comercial passageiro com forte influência na história da vida

    social e cultural da região.

    No campo da música, em Belém, o poder aquisitivo dos governos estadual e

    municipal, dos comerciantes, banqueiros e pessoas enriquecidas com este

    comércio, proporcionava o aparecimento na cidade de eventos artísticos de grande

    porte, sendo que alguns somente aconteciam aqui.

    O Teatro da Paz, inicialmente chamado de Teatro Nossa Senhora da Paz,

    por sugestão do bispo D. Antonio Macedo Costa, recebeu desde sua inauguração

    muitos espetáculos de diversos gêneros artísticos. Óperas, balé, peças teatrais,

    concertos de música de câmera, concertos sinfônicos entre outras apresentações,

    foram apreciadas pelo público da então pequena cidade do norte do país com

    menos de cem mil habitantes.

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    A inauguração do Teatro da Paz foi o marco inicial para os espetáculos que

    se seguiriam por vários anos até que o declínio econômico, por volta de 1920,

    chegasse e fizesse o teatro e Belém mergulharem na grande depressão social e

    artística. O espetáculo de inauguração do Teatro da Paz iniciou com o Hino Nacional

    executado por uma orquestra oficial do teatro, com apoio de quatro bandas marciais,

    num total de 150 músicos, sob a regência do maestro maranhense Libânio Colas (?

     – 1885). Em seguida foi executada a marcha “Grão Pará” composta especialmente

    para este dia. Seguindo o programa foi encenado o drama "As Duas Órfãs", de

    Adolphe d’Ennery, (1811-1899) um dos mais aplaudidos autores franceses do século

    XIX.

    Os espetáculos montados no palco do Teatro da Paz bem refletiam os

    acontecimentos cotidianos da cidade, com sua vida próspera e feliz num ambiente

    de elegância e modernidade. O primeiro ano de atividades no teatro foi simbólico

    para os anos que se seguiriam. Somente a companhia de Vicente Pontes de

    Oliveira, a mesma que havia encenado “As Duas Órfãs” na inauguração, realizou

    125 espetáculos até dezembro do ano de 1878.

    Os espetáculos de grande porte, principalmente ópera, demandam um

    grande aporte de recursos materiais e humanos para uma única récita. Nos dias de

    hoje para a montagem profissional de uma ópera são necessários, minimamente, osseguintes recursos materiais: aluguel e/ou confecção de roupas comuns e trajes de

    época, incluindo adereços e calçados; compra e/ou aluguel de equipamentos de

    iluminação, além dos já existentes no teatro; compra e/ou aluguel de equipamentos

    de sonorização, gravação e efeitos sonoros; compra de material para confecção de

    cenários; compra de material de maquiagem e confecção de bonecos cênicos;

    contratação de serviços diversos como afinação de piano, segurança e entregas;

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    despesas com alimentação, transportes e apoio administrativo.

    Os recursos humanos mínimos necessários para o bom desempenho da

    ópera são: Compositores, libretistas, copistas, regentes, diretores e assistentes de

    cena, músicos, diretores e assistentes administrativos, produtores, marceneiros,

    eletricistas, gráficos, sapateiros, costureiros, figurinistas, maquiadores, agente de

    segurança, agentes de limpeza, iluminadores, sonoplastas, técnicos de som,

    especialistas em efeitos especiais, auxiliares de serviços gerais, entre outros

    profissionais necessários para a execução do projeto.

    Normalmente há repetições da função por duas ou mais noites o que

    encarece sobremaneira o investimento. Mesmo que nos tempos da Belle-Époque 

    não fossem necessários todos os recursos aqui listados, os altos custos das

    produções fizeram com que a ópera em Belém somente florescesse, com

    regularidade, até a temporada de 1908.

    Ao mesmo tempo em que as caras produções de espetáculos com cena

    decaiam em virtude da crise econômica, a música instrumental procurou ocupar o

    espaço deixado por estas, fazendo com que os reflexos desta fase de bel canto em

    Belém sejam percebidos até hoje. Com a vinda de companhias inteiras da Europa,

    muitas vezes diretamente para Belém e Manaus, alguns músicos cantores ou

    técnicos ficaram por aqui, refazendo suas vidas e colaborando para odesenvolvimento artístico da terra que adotaram como sua.

    A decadência econômica vem atingir o segmento musical com força. Em

     janeiro de 1908 faltou verba pública para honrar diversos pagamentos. As Bandas

    militares são praticamente dissolvidas. É neste ano que o Instituto Carlos Gomes

    tem suas portas fechadas. Criado pelo governador Lauro Sodré em 1894 e entregue

    sua direção ao reconhecido compositor paulista Antonio Carlos Gomes (1836-1896),

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    em 1896, a mais importante instituição de ensino musical do Pará é desativado no

    momento em que seus professores e alunos, dirigidos pelo pianista e compositor

    Paulino Chaves (1880-1948) desenvolviam inúmeras atividades musicais.

    O desenvolvimento da música e a formação de gerações de cantores,

    instrumentistas e compositores em Belém deve-se, em boa parte, à criação do

    conservatório de música. Logo após a morte de Carlos Gomes, em 16 de setembro

    de 1896, sucederam-lhe na direção do conservatório notáveis músicos residentes

    em Belém: Enrico Bernardi (1838-1900), maestro italiano, José Cândido da Gama

    Malcher (1853-1921), compositor paraense que estudou na Europa, Meneleu

    Campos (1872-1928), autor de valiosa obra musical, tendo também se destacado na

    direção do Instituto Carlos Gomes, onde, nos primeiros anos do século XX,

    desenvolveu a orquestra e o coro da escola, além de promover dezenas de

    espetáculos musicais.

    Esta época, início de século, foi profícua e importante para a composição da

    memória musical dos belenenses vindo a influenciar por várias décadas o gosto

    estético e, de certa forma, criar ambientes de beleza sonora nas ruas, praças e

    residências da cidade.

    Músicos compunham, tocavam e regiam obras musicais feitas aqui ou

    importadas, nas casas, nos coretos das praças, nas escolas, nos teatros, cafés ecinemas. Paulino Chaves (1880-1948), Meneleu Campos (1872-1928), José Cândido

    da Gama Malcher (1853-1921), Alípio Pinto da Silva (1871-1925), Manuel Paiva

    (1888-1920), José Domingos Brandão (1865-1941), Ettore Bosio (1862-1936), entre

    tantos outros músicos, artistas de teatro, poetas e cantores, enriqueciam a cidade

    com sons e sonetos de beleza e arte. Esta intensa atividade musical colaborou muito

    para o desenvolvimento social e cultural da cidade e viria plantar fortes sementes

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    para a formação da cultura musical de Belém nas décadas seguintes.

    Nos anos em que o Instituto Carlos Gomes esteve fechado [1908 - 1929], os

    professores de música, alguns com grande prestígio e experiências em outros

    países, abriram cursos e escolas particulares além de centros culturais. Meneleu

    Campos manteve sua escola de música aberta de 1908 a 1912. Em 1914 um grupo

    de artistas criou o Centro Musical Paraense, tendo como seu primeiro presidente

    José Cândido da Gama Malcher. Vários talentos foram revelados nestas

    escolas particulares.

    O Instituto Carlos Gomes só foi reaberto em 11 de julho de 1929, quando o

    governo estadual acolheu pedido de um grupo de artistas e intelectuais. Neste

    momento, Waldemar Henrique (1905-1995), compositor paraense, então com 24

    anos de idade, entra para o instituto, que naquele momento passa a se chamar

    Conservatório Carlos Gomes.

    A importância desta instituição de ensino de música na sociedade paraense

    é muito grande. O Conservatório Carlos Gomes, como ainda hoje é coloquialmente

    chamado, está atualmente ligado a uma fundação pública estadual, a Fundação

    Carlos Gomes. Chama-se, em sua primeira versão, Conservatório de Música. Hoje

    tem o nome oficial de Instituto Estadual Carlos Gomes. Sua primeira ligação

    administrativa foi com a Associação Paraense Propagadora das Belas Artes, quetinha uma seção de música. Foi para dirigir esta seção e conseqüentemente a

    primeira direção do conservatório, que o governador Lauro Sodré convidou o

    compositor Antonio Carlos Gomes. Este convite oficial foi feito no ano de 1895, no

    entanto somente após a volta do maestro, que tinha ido a Itália desfazer-se de seus

    pertences, foi efetivado esta direção no ano de 1896. Carlos Gomes ficou na direção

    do Conservatório por alguns meses, vindo a morrer no dia 16 setembro daquele ano.

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    Além do Instituto Carlos Gomes, Belém tinha no início do século XX, outras

    instituições que ensinavam e cultivavam a arte musical. Os dois institutos de

    educação com internato, “Gentil Bittencourt” para meninas e “Lauro Sodré”, para

    meninos, colocavam o ensino da música no mesmo nível de importância das outras

    matérias ofertadas para os alunos, de acordo com as explicações do Governador do

    Estado do Pará, Augusto Montenegro:

    O Instituto Gentil Bittencourt, com 240 meninas recebem, além dasmatérias que constituem o ensino primário, o aprendizado de trabalhosdomésticos, trabalhos de agulha e bordado, música, canto, piano edesenho e recebem uma educação profissional nas oficinas de floresartificiais, de tecidos e de tipografia; O Instituto Lauro Sodré, com 300alunos internos meninos, oferece matérias do curso elementar ecomplementar primário, além dos cursos completos de desenho emúsica instrumental. Também se ensina ali, nas suas grandes oficinas,os ofícios de marceneiro e carpinteiro, serralheiro e ferreiro, sapateiro,alfaiate, encadernador e tipógrafo. (1908, p. 294, 301)

    Além da orquestra, dos grupos de câmara e vocais do Instituto Carlos

    Gomes, dos grupos musicais das escolas de música particulares e dos grupos

    instrumentais e vocais dos demais institutos de ensino, Belém sempre teve nas

    bandas de música um dos mais fortes veios de sua tradição musical.

    As bandas de música nascem e desenvolvem seus músicos, muitas vezes,

    independente das escolas de música existentes na cidade ou nas proximidades.

    Mesmo sem ter a estrutura dos cursos regulares, as bandas têm produzido muitos

    músicos para as orquestras e grupos de música popular, além de possibilitar oacesso ao estudo da música para pessoas da comunidade, que normalmente não

    podem freqüentar as escolas particulares ou mesmo públicas.

    A afirmação do musicólogo Vicente Salles: “a banda de música é, pois o

    conservatório do povo e é, ao mesmo tempo nas comunidades mais simples, uma

    associação democrática, que consegue desenvolver o espírito associativo e nivelar

    as classes sociais” (1985, p. 11), explica com clareza o papel exercido pelas bandas

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    de música na formação de músicos, bem como na composição da paisagem sonora

    de um lugar.

    Devido as bandas de músicas participarem ativamente da vida social da

    cidade, a população tem durante o ano várias oportunidades de assistir a retretas ou

    concertos nos coretos das praças.

    Tanto na zona rural como nas cidades, a banda de música impressiona

    positivamente o público, atingindo todas as classes sociais. Com sua capacidade de

    locomoção, chama atenção por onde passa e ao contrário de uma orquestra

    sinfônica, pode se apresentar, tanto parada quanto se locomovendo.

    O poeta e compositor Chico Buarque assim canta no primeiro verso de sua

    música “A Banda”:

    Estava à toa na vidaO meu amor me chamouPra ver a banda passarCantando coisas de amor (Composta e gravada em 1974 pelo selo

    PREMIER-RGE, no disco “Chico Buarque de Holanda”).

    As pessoas de qualquer idade se fascinam com o som agradável da banda de

    música. As músicas escolhidas para as apresentações vão desde os dobrados

    militares, passando por melodias populares arranjadas para o grupo, até música

    clássica adaptadas ou compostas especialmente para a instrumentação de uma

    banda de música. Civil ou militar as bandas agradam ao público por onde passam.

    Ao construir os passeios públicos, jardins e parques os arquitetos sempre

    projetam um lugar especial para a banda de música se apresentar. Em Belém,

    praticamente todas as praças possuem um coreto ou uma concha acústica, onde as

    bandas de música têm o espaço adequado para tocar seu repertório.

    É tão grande o fascínio que uma banda pode exercer sobre as pessoas, que

    os ruídos e outros sons vindos das redondezas podem ficar mascarados pela

    música. Quando a banda passa ou encerra sua apresentação tudo volta ao seu

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    lugar, como fala o poeta Chico Buarque nos dois últimos versos de sua marcha,

    citada acima:

    Mas para meu desencantoO que era doce acabouTudo tomou seu lugarDepois que a banda passou

    E cada qual no seu cantoEm cada canto uma dorDepois da banda passarCantando coisas de amor.

    As bandas de música aqui citadas representam um grupo orquestral de

    sopros com três tipos básicos de instrumentação, que refletem seu tamanho, de

    acordo com os formatos organizados por Oscar Brum: Banda militar ou banda

    pequena, banda média e banda sinfônica (1988, p. 12, 13).

    Seja como escola de música ou como parte da cultura musical da cidade a

    banda de música é uma formação tradicional e com seu percurso histórico bem

    definido nas palavras de Salles:

    A banda de música tal como hoje se apresenta, é produto do século XIX.Quando D. João VI embarcou para par o Brasil, a 27 de novembro de1807, trouxe em sua comitiva a Banda da Brigada Real (...). Por decretode 27 de março de1810, D, João estabeleceu que, no Rio de Janeiro,houvesse em cada regimento um corpo de músicos de 12 a 16executantes (...). Em 1814 começaram a espalhar-se nos quartéis dequase todo o Brasil o ensino e a prática de instrumentos maisatualizados. (1985, p. 18, 19).

    Em Belém algumas formações instrumentais apreciadas pelos músicos

    populares, contribuíram para o surgimento do conjunto mais organizado e que se

    chamaria banda de música, ainda de acordo com as explicações de Salles:

     Nos primitivos ternos encontramos, claramente, a motivação para a persistênciados conjuntos musicais, ou talvez mesmo o modelo de alguns desses conjuntosque se folclorizaram. Mas terço ou terno também podia ser a reunião de apenastrês instrumentos. Notável, pela disseminação e pela preferência dos músicos populares, era o terno que agrupava simplesmente a flauta, o violão e ocavaquinho. Esse terno alcançou a época do choro e das serenatas e ainda podeser encontrado pelo interior e subúrbios de Belém. A banda de música herdaria,do terno, a divisão clássica e/ou tradicional agrupando os naipes de madeiras,

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    metais e percussão; portanto, um terno. No século XIX, o terno se transformouem banda de música. (1985, p. 19).

    Do início do século XX para a atualidade, foram poucas as mudanças

    ocorridas nas bandas de música quanto à sua instrumentação. Na parte pedagógica

    e no modus faciendi, tanto na capital como no interior, as bandas de música

    continuaram a formar músicos e tocar ao ar livre ou em salas de concertos.

    No decorrer do século XX as bandas de música sobreviveram a todas as

    intempéries e dificuldades que o meio musical belenense apresentou, ajudando, do

    ponto de vista musical a compor memoriais sonoros importantes, que marcaram

    todas as gerações de habitantes e visitantes da cidade de Belém. Seus parques,

    passeios públicos, ruas e avenidas sempre tiveram, por várias vezes durante o ano,

    a presença dos sons envolventes deste importante grupo instrumental.

    No que concerne ao aparecimento de outros grupos musicais, inclusive as

    modernas bandas de música popular urbana, creditamos à banda de música, civil

    ou militar, uma grande influência na formação desses conjuntos bem como na

    preparação de seus músicos.

    As orquestras sinfônicas, embora sejam grupos musicais grandes, tem na

    sua instrumentação o equilíbrio necessário para espetáculos em recintos fechados.

    No entanto, mesmo com estas características de sonoridade mais sensível, as

    orquestras sinfônicas sempre participaram de eventos ao ar livre.

    Com apresentações ao ar livre, nos teatros e em outros recintos da cidade

    estes grupos orquestrais formaram um grande e fiel público, tanto que até na

    atualidade temos representantes destas formações instrumentais em pleno vigor na

    cidade. Além das ações de performance as orquestras tiveram importante papel na

    formação de músicos, que aproveitando a prática diária de seus repertórios,

    dedicaram-se a outras atividades musicais em grupos menores de câmara ou de

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    música popular. Deriva daí o nascimento de várias conformações instrumentais

    autônomas ou especializadas em acompanhar cantores.

    Percorrendo caminhos históricos diversos, grupos musicais de diversas

    formações instrumentais ilustraram nossa paisagem sonora. São várias as

    denominações para grupos pequenos, desde os genéricos duos, trios, quartetos e

    quintetos, passando pelas pequenas orquestras de câmara, até os regionais e pau e

    corda. 

    Alguns grupos orquestrais de Belém, quando foram fundados recebiam

    denominações variadas, sendo que seus objetivos estavam centrados na execução

    de repertório para ouvir e de músicas para dançar, ficando conhecidas como

    orquestras de baile.

    Nos anos 1940 e 1950, épocas de transição da grande era do rádio para

    a da televisão, surgem em Belém, as “Big Bands”, nos moldes das orquestras de

     jazz americanas. Estas orquestras tocavam nas praças, nos clubes, nos parques,

    nos teatros e nas residências. Chamadas de orquestras, esses grupos revelaram

    cantores e instrumentistas. Do formato imitativo das orquestras americanas

    evoluíram para formações adaptadas, sempre buscando adequar-se aos novos

    tempos que traziam tecnologia e novos gostos musicais.

    Todos esses conjuntos musicais, cada um com seu gênero e estilo musicaldefinidos, corroboram a idéia de que Belém é terra de músicos. Em 1930, Raimundo

    Morais já falava sobre esse aspecto da cidade:

    A capital paraense é a terra de músicos boêmios, das famosasorquestras de pau e corda, dos tocadores de flauta e violão, doscantadores de modinhas, dos trovadores noturnos, que levantam, emsetembro e outubro, nas noites brancas de lua cheia, em lânguidasserenatas, quarteirões inteiros. (apud Maranhão, 2000, p. 185).

    Nos idos dos anos 1980, chega à Belém uma nova forma de nomear os

    grupos musicais compostos de instrumentos elétrico-eletrônicos e que interpretam

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    repertórios variados de música popular urbana, anteriormente chamados de

    conjuntos ou grupos. A palavra banda é imediatamente seguida do nome do grupo,

    como p. ex. Banda Nova, Banda Eva, entre outras, que são formadas geralmente

    por uma ou duas guitarras, um contrabaixo elétrico, um teclado eletrônico e uma

    bateria. Raramente estas bandas são somente instrumentais, tendo sempre um

    cantor e ou um grupo de cantores integrados ao grupo. 

    Além dos grupos e orquestras citados, Belém ouviu ainda as fanfarras

    colegiais, as baterias das escolas de samba, os grupos de carimbó, forró, boi

    bumbá, grupos de música afro, das rodas de capoeira e as modernas bandas de

    rock, rag, bossa nova, jovem guarda, guitarradas, brega e hip hop. Ainda

    poderemos citar outros grupos musicais para compor a paisagem sonora da cidade

    das mangueiras e da música: bandas evangélicas, grupos de percussão de música

    contemporânea, grupos de música indígena, entre outros. Em ação há algum tempo,

    os chamados DJs, operadores de aparelhagens de som, em clubes e casas

    noturnas, são considerados por alguns como executantes de um instrumento

    musical, haja visto o perfil criativo de suas apresentações.

    Os grupos musicais são responsáveis até hoje pela compensação sonora

    frente ao crescimento descontrolado da sonoridade fractal e até em certa medida,

    caótico. A beleza dos sons desses grupos, que em tempos mais próximos da eraLemos era apreciado pela população com maior transparência e sensibilidade,

    inclusive em praças públicas, hoje se faz necessário o uso de amplificadores de

    som, cada vez mais potentes.

    Atualmente a perenidade desses grupos está seriamente abalada pelas

    mudanças dos costumes e da própria paisagem sonora de Belém. A cada década

    foram adicionados ao meio ambiente novos sons formando uma complexa cápsula

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    sonora onde os grupos musicais de sonoridade leve são obrigados ao uso de

    refúgios sonoros como os teatros ou locais de melhor ambientação para a sua

    performance.

    Cercados pela possante poluição sonora, envoltos no debate sobre o meio

    ambiente acústico e ao mesmo tempo atuantes, os grupos musicais ampliam seu

    papel na construção do soundscape  da cidade de Belém do novo século que se

    inicia.

    2.3 - Vendo imagens sonoras

    Ver com os ouvidos ou enxergar com a audição parece ser um mecanismo

    de percepção desafiador para o ser humano. No entanto no dia-a-dia das pessoas

    numa grande cidade com Belém do Pará esta prática descortina uma ação bastante

    saudável para os seus habitantes: a percepção da paisagem sonora de forma mais

    ampla, que possibilita às pessoas uma relação mais proveitosa com o seu território

    auditivo.

    Neste sentido Schafer define a relação entre a paisagem visual e a

    sonora:

    Podemos isolar um ambiente acústico como um campo de estudo, domesmo modo que podemos estudar as características de umadeterminada paisagem. Todavia, formular uma impressão exata de umapaisagem sonora é mais difícil do que a de uma paisagem visual. Nãoexiste nada em sonografia que corresponda à impressão instantâneaque a fotografia consegue criar. Com uma câmera, é possível detectar osfatos relevantes de um panorama visual e criar uma impressãoimediatamente evidente. O microfone não opera dessa maneira. Ele fazuma amostragem de pormenores e nos fornece uma impressãosemelhante à de um close, mas nada que corresponda a uma fotografiaaérea (2001, p. 23).

    Devido os sons aparecerem e desaparecerem do nosso entorno de várias

    formas, sempre no decorrer do tempo, não podemos registrar instantaneamente e

    com a mesma competência do que os dados visuais que passam por nossa frente.

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    ambiente penetrarão, sem controle ou critério de escolha, pelo microfone, vindo a

    somar com o assunto sonoro principal vindo a compor uma paisagem sonora real.

    Ao reproduzirmos o que foi gravado ouviremos ainda o que o equipamento

    reprodutor emite, além dos sons existentes no meio ambiente acústico do nosso

    entorno.

    Ao promover o historicismo da paisagem sonora da cidade de Belém, no

    período ora estudado, não será possível resgatar inúmeras ocorrências sonoras,

    bem como diversos momentos sonoros ocorridos no passado. A evolução da

    sonoridade da cidade espelha, mesmo que num período curto da sua história, um

    processo de acúmulo veloz e gradativo de novos sons.

    O memorial sonoro da cidade de Belém é muito rico e criativo. Algumas

    fontes sonoras somente aqui existiram ou existem até hoje. A cidade por estar

    dentro da floresta amazônica e cercada por rios, igarapés e espelhada numa baia,

    tem nas lendas e mistérios da floresta um forte componente sonoro. A proximidade

    da mata faz com que as pessoas tenham muita intimidade com diversos animais e

    seus sons. Mesmo na atualidade, onde a urbanização aponta para a globalização

    dos costumes e uso dos espaços, o povo guarda na relação com a natureza e seus

    atores uma relação única.

    Permeando o território auditivo de Belém alguns sons peculiares são ouvidosna cidade diariamente. Outros desapareceram por completo, mas ficaram na

    memória das pessoas de idade avançada. Abordaremos alguns exemplos de

    imagens sonoras, transcritas pela simples descrição textual, sendo que algumas são

    associadas com a sua imagem gráfica o que pode aproximar o espectador da

    audição do seu verdadeiro resultado sonoro.

    Na beira do Rio Guamá e da Baia do Guajará ouvimos muitos sons da

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    natureza ou criados pelo homem. O pô-pô-pô, como é chamado um tipo de barco

    que transita pelos rios levando passageiros e mercadorias, emite, do motor de

    popa, ruídos característicos que o povo denomina com criativa onomatopéia.

    O barulho da descarga do motor é intermitente e bem forte o suficiente

    para se ouvir da margem do rio. Além de avisar às pessoas de sua aproximação

    o som identifica o tipo e tamanho do barco, haja vista que outros barcos de

    menor ou maior porte emitem outros sinais sonoros.

    Figura 4. O Barco Pô-Pô-Pô. Foto: Rosa Arraes

    O açaí, fruta típica da região amazônica, chega diariamente numa feira

    denominada pelo mesmo nome da fruta, ao lado da grande feira do Ver-O-Peso e é

    processado numa máquina para fazer um suco forte e muito apreciado pela

    população. O som que esta máquina gera é uma mistura do barulho do motor com o

    ruído dos caroços dentro da máquina. Antes da invenção desta máquina o açaí era

    amassado por uma pessoa numa vasilha de barro cozido chamado aguidá e depois

    coado numa peneira feita com fibras vegetais. Este modo manufaturado caiu em

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    atracado um barbante. Na outra extremidade o barbante é amarrado a uma varinha

    untada de breu. Ao girar a varinha um ruído trêmulo é transportado pelo barbante e

    amplificado no copo, soando semelhante ao rosnar de um bicho, o que agrada muito

    às crianças.

    Outros brinquedos e brincadeiras infantis são comuns na época do círio e

    mesmo em outras fazes do ano. Algumas se extinguiram outras continuam a existir,

    porém somente na periferia da cidade onde a influência dos meios de comunicação

    e dos brinquedos eletrônicos ainda não tem muita força. Além do roque-roque temos

    o bate-bate, as bola de gude, que em Belém são conhecidas como petecas, a corda

    de pular, o fura-fura, a baladeira, o bole-bole e muitos outros.

    Um dos mais interessantes brinquedos infantis é o carro-de-lata, construído

    por crianças que não tendo recursos para comprar brinquedos industrializados

    utilizam-se da criatividade para fazê-lo. A montagem é feita com latas de leite em pó,

    furadas no fundo e na tampa, bem tampadas, cheias de areia branca e algumas

    pedras pequenas. Pelos furos é introduzido um arame grosso no qual se liga outra

    lata igual, com o mesmo tamanho e peso aproximado que, ao final, emenda-se em

    outro arame fino, (com duas pernas separadas) com o qual pode-se puxar o carro

    que normalmente é de três latas, atreladas.

    O som que sai do “carro” é feito pelo contato da lata com o chão somado aosom que o próprio “motorista” faz com a boca, imitando o barulho do motor, inclusive

    com as mudanças de marcha, buzinas, além dos impropérios aos outros “motoristas”

    e “transeuntes”. Tudo na fértil e criativa imaginação infantil.

    A audição das crianças é motivada para a execução das brincadeiras e

     jogos infantis não sendo necessário ter o brinquedo material para haver a diversão.

    Uma dessas brincadeiras é a adoleta, onde os braços e as vozes compõem um

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    criativo componente sonoro. O som das batidas das palmas somados ao texto

    falado ou cantado pelas crianças fazem um conjunto sonoro muito forte. Outra

    brincadeira que utiliza poucos recursos é a corda de pular que sempre foi um dos

    mais animados e queridos brinquedos infantis, permitindo inúmeras possibilidades

    de variação em sua prática.

    Nos dias de hoje é comum ver pessoas reclamando que Belém é uma

    cidade barulhenta. Se pudéssemos escutar a cidade da mesma forma como alguém

    a visualiza de um avião, teríamos uma percepção geral de toda a sonoridade de seu

    território auditivo, com variantes de intensidade sonora, de acordo com a hora do

    dia, do dia do ano e dos eventos que estejam acontecendo. Poderíamos observar,

    então, que a cidade pode ser barulhenta, calma e até silenciosa, de acordo com o

    momento de nossa observação.

    Diferentemente da percepção visual, a escuta ocorre de forma independente

    da posição de nosso corpo em relação à fonte sonora. Podemos escutar algo,

    mesmo estando de costas para a fonte produtora do evento sonoro. É possível que

    escutemos algo que vem de muito longe, desde que o vento e outros fenômenos da

    natureza ajudem. Caso estejamos num avião, podemos ver a cidade através do

    vidro da janela, mas não escutaremos, devido a cabine ser hermeticamente fechada.

    Na paisagem sonora de Belém estão contidos todos os elementos sonorosda natureza amazônica e da construção artificial de sons que o homem vem

    produzindo ao longo da história da cidade, gerando um complexo ambiente acústico,

    onde habitam ruídos, músicas, pregões, vozes, etc., constituindo uma grande

    cápsula sonora, tão rica quanto frágil e bela, porém sujeita a altos níveis de violação

    e de contágio por elementos nocivos à saúde, à apreciação estética.

    Cabe-nos então vê-la com os ouvidos, escutá-la com atenção e amorosidade.

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    2.4 – Poluição sonora, refúgios e jardins sonoros

    Belém possui uma lei específica para o controle do que a mesma denomina de

    “poluição sonora”. É a lei 7.990, de 10 de janeiro de 2000 (ver anexo). Através do

    texto legal podemos avaliar o que ocorre atualmente na cidade e quais componentes

    principais contribuíram para que a paisagem sonora de Belém pudesse evoluir para

    o que temos hoje.

    A lei, no seu artigo 6º apresenta várias definições, entre elas a de poluição

    sonora, meio ambiente, som, ruído, ruído impulsivo, ruído contínuo, ruído

    intermitente, ruído de fundo e vibração. Todas estes elementos pertencentes ao

    meio acústico somados à música e aos sons fundamentais da natureza formam o

    soundscape de Belém.

    A poluição sonora é uma definição amplamente aceita pelos musicólogos,

    ecologistas, geógrafos e demais profissionais que lidam com o ambiente acústico. A

    ela se refere Schafer: A poluição sonora é hoje um problema mundial. (2001, p. 17)

    Podemos considerar a poluição como uma ação individual ou coletiva de

    sujar o meio em que vivemos, contribuindo para prejudicar a saúde dos indivíduos e

    sua comunidade. É um abuso da liberdade de emissão sonora e da criação estética

    que temos ao lidar com o nosso território auditivo.

    Lendo com atenção o texto da lei e observando os movimentos sonoros dacidade diariamente, podemos encontrar diversas contradições que explicam parte

    dos problemas relativos à poluição sonora em Belém. Os serviços de auto falantes

     fixos funcionam a qualquer hora do dia contradizendo o que diz o Art. 14. Nas feiras e

    ruas com comércio estes sistemas de som atuam livremente.

    O Art. 5º: institui o Programa Municipal de Educação e Controle da Poluição

    Sonora, com vários objetivos. No entanto a sociedade não vê os resultados práticos

  • 8/18/2019 Dissertação Jonas Arraes.pdf

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    deste programa. Um dos mais flagrantes descumprimentos da lei 7.990 é no que diz

    respeito aos limites de emissão sonora apontada no Art. 8º, principalmente nas

    festas de rua, onde o limite de pressão sonora sobre as pessoas avança muito além

    do que está estabelecido na lei, chegando a serem registradas emissões de até

    cento e setenta decibéis por alguns equipamentos de som. O simples não

    cumprimento da lei pela população acontece devido a fatores diversos, não cabendo

    o entendimento de desobediência coletiva ao poder público.

    Muitos sons sejam eles ruídos produzidos por descargas de automóveis,

    cultos religiosos ou festas populares de rua e de terreiros e sedes, são apreciados

    por parte da população, advindos de costumes e processos educacionais. Por este

    lado a lei vem para beneficiar parte da população em detrimento de uma outra parte

    que deseja exatamente o contrário daquela, além do que o poder público muitas

    vezes autoriza eventos que contradizem a própria lei que ele deveria zelar.

    A poluição sonora é visto pela maioria das pessoas, inclusive especialistas

    na área do meio ambiente, como um dos problemas de saúde p