Dissertação Música caipira no Livro Didático

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN SETOR DE EDUCAO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO REA DE CONCENTRAO: CULTURA, ESCOLA E ENSINO

A MSICA CAIPIRA EM AULAS DE HISTRIA: QUESTES E POSSIBILIDADES

EDILSON APARECIDO CHAVES

Curitiba 2006

EDILSON APARECIDO CHAVES

A MSICA CAIPIRA EM AULAS DE HISTRIA: QUESTES E POSSIBILIDADES

Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Educao no Programa de Ps-graduao em Educao da Universidade Federal do Paran, Linha de Pesquisa Cultura, Escola e Ensino. Orientadora: Profa. Dra. Tnia Maria F. Braga Garcia

Curitiba 2006

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DEDICATRIA

A meu pai Valdete, que sempre acreditou que era possvel ser feliz. Obrigado por me mostrar o bom caminho - mesmo com pouca escolaridade afirmava sempre que a escola me levaria a algo grande. Pai, o senhor estava certo. minha av, Nina, obrigado por ter ensinado o dom da pacincia e da compreenso. Ao av Agenor, pelas longas horas de audio da msica caipira sempre me pedindo que prestasse ateno nas letras. Finalmente ao tio Romildo, pelo incentivo em um dia realizar o sonho do mestrado, esse feito tambm seu. Todos assistiram de camarote essa conquista e embora estando longe, nunca deixaram de estar presentes. Vocs estaro para sempre em minha memria. querida me Osnilda, que tem sido em minha vida a razo de todas as conquistas. s lindas irms Catia e Ana Paula pela fora nas horas difceis e pela compreenso do distanciamento. Ao tio Jos Henrique, que mesmo com todas as dificuldades da vida nunca deixou de lutar por dias melhores, suas vitrias e testemunhos foram meu incentivo. tia Isabel pelo carinho das palavras e exemplo de segunda me. Aos tios Paulo e tia Nega, fundamentais na construo de minha educao. amada companheira Wanda, pela pacincia, incentivo, carinho e compreenso em todos os momentos desse longo caminho, sem sua companhia e apoio os dias seriam mais difceis. Ao filho amado, Gabriel, gestado no processo desse trabalho, tornando-se o primeiro grande sentido da minha vida.

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AGRADECIMENTOS (...) preciso amor para poder pulsar preciso paz para poder sorrir preciso a chuva para florir Todo mundo ama um dia Todo mundo chora Um dia a gente chega E no outro vai embora Cada um de ns compe a sua histria Cada ser em si carrega o dom de ser capaz e ser feliz. (Tocando em Frente - Almir Sater e Renato Teixeira) Nesses anos de Mestrado tive o prazer de conviver com duas grandes intelectuais, a professora Dra. Tnia Braga e a professora Dra. Maria Auxiliadora (Dolinha). Esta mostrou caminhos que jamais pensei que existissem. A primeira, estendeu esses caminhos, sempre muito gentil e observadora, nunca disse no, no assim!, mas e se fosse assim?. Tive a imensa sorte de t-la como orientadora e apoiadora do projeto. Assistir e participar de suas aulas era como se estivesse realizando um sonho, saboreava cada palavra como se fosse um nctar. O nctar da alma. Devo muito s sugestes realizadas durante as aulas e no exame de qualificao pela Professora Dra. Leilah Bufrem, outra grande incentivadora de meu trabalho. Ao professor Dr. Joo Ernani Furtado Filho, agradeo pela participao na banca de defesa. Aos Professores Dr. Gilberto Castro e Dr.Geraldo Horn, minha gratido pelas palavras de incentivo e pelas dicas de leituras em suas aulas. Um trabalho de mestrado, dizem, solitrio. Tenho que discordar, pois as mos e palavras dessas pessoas sempre se fizeram presentes: Maikel Monteiro, pesquisador, uma enciclopdia humana da msica caipira, incentivador e orientador fora do mundo acadmico. Amiga, Josimar Gabriel de Almeida, pelas horas de correo (gratuitamente) de meus textos, sempre disposta a discutir, esclarecer e ensinar palavras novas. O grande amigo Ivan Furmann, pelas gostosas discusses e trocas de idias, principalmente nas longas viagens para Belo Horizonte e Londrina. Embora sendo muitos os amigos, cada um teve uma participao especial nesse longo mestrado, so eles: Adriano Lima, Candelria e Tadeusz, Mara Barbosa, Professor Dr. Reinro Lrias, Nalde, Marlus e Regina Geronasso, Darci e Francisca (funcionrias da secretaria da Ps- graduao), os colegas do mestrado. A todos que de alguma forma colaboraram para o andamento e a concluso deste trabalho.

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SUMRIO

INTRODUO.........................................................................................................1

CAPTULO 1 CULTURA E MSICA CAIPIRA............................................10 1.1. Conceito de cultura: algumas relaes para compreender o objeto de investigao.........................................................................................................11 1.2. Cultura brasileira e a construo da figura do caipira........................................23 1.3. Msica caipira e msica sertaneja: algumas consideraes...............................31

CAPTULO 2 A MSICA NOS LIVROS DIDTICOS DE HISTRIA......42 2.1. Livro Didtico: Questes iniciais.......................................................................42 2.2. O Programa Nacional do Livro Didtico (PNLD) e os livros de Histria.........49 2.3. A msica nos livros didticos de Histria para sries finais do Ensino Fundamental.................................................................................................55 2.3.1. O privilegiado e o excludo: as msicas que esto nos livros.........................57 2.3.2. Como as canes esto presentes nos manuais didticos...............................60

CAPTULO 3 RELAES ENTRE OS JOVENS E A MSICA: ELEMENTOS PARA REPENSAR A PRESENA DA MSICA CAIPIRA NAS AULAS DE HISTRIA ............................................................................80

3.1. O trabalho de campo: os instrumentos e os sujeitos ..........................................80 3.2. Identificando elementos scio-culturais dos jovens ......................................... 82 3.3. Jovens, msica e ensino de Histria: elementos para repensar o uso da msica caipira nas aulas ......................................................................................... 101

CONSIDERAES FINAIS................................................................................119 REFERNCIAS.....................................................................................................127 ANEXOS.................................................................................................................134

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LISTA DE QUADROS

Quadro 01 Livros que contm msica, por perodo................................................. 03 Quadro 02 Resultado do total de colees inscritas e aprovadas no PNLD/2005.......................................................................................51 Quadro 03 Categorias das obras analisadas pelo PNLD/2005 ................................53 Quadro 04 Forma como as msicas so entendidas pelos autores a partir da proposta de trabalho ..........................................................................77 Quadro 05 Nmero de alunos pesquisados e idade .................................................82 Quadro 06 Origem do pai ........................................................................................83 Quadro 07 Origem da me ...................................................................................... 83 Quadro 08 Escola onde realizou o Ensino Fundamental ........................................ 83 Quadro 09 Atividades de lazer ................................................................................ 84 Quadro 10 Tipos de msica que gostam de ouvir .................................................. 85 Quadro 11 Gneros musicais apreciados pelos familiares .................................... 88 Quadro 12 Temas e assuntos ................................................................................... 99

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - .Por que ouve msica ....................................................................... 92 Tabela 02 Tipo de msica que agrada mais ..................................................... 95 Tabela 03 Tipo de msica que menos agrada ..................................................96 Tabela 04 - .Disciplinas que se utilizaram de msicas para ensinar.....................98 Tabela 05 Livros das disciplinas escolares que apresentaram msicas............ 98

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LISTA DE GRFICOS

Grfico 01 Nmero de horas dirias em que os jovens ouvem msica ............... 92 Grfico 02 Registro dos alunos sobre livros do Ensino Fundamental que apresentavam letras de msica .................................................... 97 Grfico 03 Possibilidade de aprender contedos escolares com a msica segundo os jovens .............................................................................100

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RESUMO Este trabalho tem como tema a msica caipira/sertaneja nas aulas de Histria. Estes gneros foram escolhidos em funo de sua importncia no mbito da cultura brasileira, sendo considerados como relevantes para se compreender a relao passado/presente. Parte-se do pressuposto de que as letras das canes podem sem entendidas como elementos histricos contextualizados e de que necessrio discutir quais as formas mais adequadas de se incorporar a msica nas aulas de Histria. A pesquisa de campo foi realizada em duas etapas. Na primeira, foram analisados os manuais didticos desta disciplina aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didtico entre os anos de 2002 e 2005, com a finalidade de verificar se a msica caipira./sertaneja est presente e tambm para identificar a forma como os autores propem ou sugerem a sua utilizao nas aulas. As anlises apontaram para uma ausncia da msica caipira/sertaneja nos manuais didticos pesquisados. A partir dessa constatao, estruturou-se uma segunda etapa, trabalho de campo desenvolvido em uma escola pblica de Ensino Mdio, com jovens da primeira srie. Foram utilizados inicialmente dois questionrios, com o objetivo de identificar aspectos scioeconmicos-culturais dos alunos e das famlias, assim como a significncia da msica em suas vidas e a presena ou ausncia da msica caipira/sertaneja na cultura de origem. Aps a aplicao dos questionrios, foi desenvolvida uma atividade com uma msica caipira, buscando compreender as relaes que os alunos podem estabelecer com esse gnero, no ensino e aprendizado de conhecimentos histricos. Os resultados permitiram constatar que: a) os jovens participantes da investigao, na sua grande maioria, no consomem msicas do gnero caipira/sertanejo; b) esse gnero est presente no passado da maioria de suas famlias e que consumido no espao familiar de muitos alunos; c) mesmo no apreciando o gnero, os alunos mostraram-se disponveis para o desenvolvimento de uma atividade escolar com a msica caipira e, ao conclurem o trabalho, mostraram-se capazes de valorizar o gnero como parte da cultura brasileira e como possibilidade para aprender Histria. Em concluso, defendese a possibilidade de trabalho com a msica caipira em sala de aula como forma de contribuir para o entendimento de vrios temas histricos, como recurso para ler e compreender historicamente o passado e como forma de valorizao e respeitar as diferentes culturas que compem a cultura brasileira. Palavras-chave: Ensino de Histria Educao Histrica Msica Caipira

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ABSTRACT

This work's main theme is the type of Brazilian popular music called "caipira" or "sertaneja" in the History classes. These genders were chosen due to its importance in the ambit of Brazilian culture, being considered as important to understand the historic relationship between past and present. The lyrics of the songs can be understood as contextualized historical elements and it is necessary to discuss which are the most appropriate forms of incorporating the music in History classes. The field research was accomplished in two stages. In the first one, the History didactic manuals approved by the National Program of the Didactic Book among the years of 2002 and 2005 were analyzed, with the purpose of verifying if the music caipira/sertaneja is present and also to identify the form as the authors propose or suggest its use in the classes. The analysis pointed at the absence of the music caipira/sertaneja in the researched didactic manuals. Based on this evidence, a second stage of field work was developed in a public High School, with kids of the initial grades. There were used two questionnaires, with the objective of identifying the students' and families' social-economic-cultural aspects, as well as the importance of the music in their lives and the presence or absence of caipira/sertaneja music in the origin culture. After the application of the questionnaires, an activity was developed with a caipira song, looking after the understanding of the relationships that the students may establish with that musical gender, in the teaching and learning of historical knowledge. The results allowed to verify that: a) the kids participants of the investigation, in its great majority, don't consume music of the gender caipira/sertanejo; b) this gender is present in the past of most of their families and that is consumed in the many students' family space; c) even not appreciating the gender, the students were able for the development of a school activity with caipira music and, as they concluded the work, they were capable to value the gender as part of the Brazilian culture and as a possibility to learn History. In conclusion, it is defended the possibility of work with caipira music in the classroom as a form of contribution to the understanding of several historical themes, as a resource for reading and to understand the past historically and as a form to valourize and respect the different cultures that compose Brazilian culture. Word-key: History Teaching - Historical Education - Caipira Music

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INTRODUO

A idia desse trabalho surgiu de minhas prticas em sala de aula enquanto professor de Histria. Ao longo de doze anos como professor da referida rea tive a oportunidade de lecionar em vrios colgios de Curitiba e regio metropolitana, pblicos e privados. Durante esse perodo, pude ter contato com os mais variados tipos de manuais didticos, fossem eles livros ou apostilas, e cada um de maneira particular contribuiu na construo de alguns conceitos e questes ainda pouco privilegiados nos debates sobre ensino e que necessitam ainda ser melhor compreendidos do ponto de vista cientfico, como o caso do trabalho com algumas linguagens, em especial a msica, nas aulas de Histria. Defrontei-me com manuais que se aproximavam de minhas aspiraes enquanto professor, assim como alguns me mantinham afastado por no trazerem em suas propostas uma perspectiva que pudesse apresentar aos alunos como algo que de alguma maneira lhes trouxesse um novo olhar sobre a disciplina de Histria, que paulatinamente vinha ganhando espao e apresentando novas perspectivas para seu estudo. Este pensamento compartilhado com Ktia Abud (2005, p. 315) quando argumenta que um trabalho com a linguagem expressa das canes foge ao convencional em sala de aula. Seu propsito auxiliar o aluno a construir o conhecimento histrico a partir de documentos diferenciados dos costumeiramente presentes nas aulas e, por isso, sua utilizao est relacionada a propostas alternativas de organizao de contedos. O contato com esses manuais contribuiu para que algumas questes fossem se tornando preocupaes: alguns traziam letras de msicas que estavam inseridas no contexto histrico estudado naquele momento, um nmero razovel de manuais trazia algumas letras mais recentes com bandas facilmente identificadas pelas geraes da dcada de 1980 e 1990, como Legio Urbana, Tits, Paralamas do Sucesso. No entanto, poder-se-ia afirmar que a maioria enfatizava os perodos de duas ditaduras: a de Getlio Vargas (1930-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985). Como professor, observo que o trabalho mais freqente com as canes desses dois perodos predispe os alunos a determinadas formas de se relacionar com elas. Os

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alunos de 7 e 8 sries (dependendo do livro didtico utilizado por eles) no vem a hora de trabalhar a famosa ditadura militar e saber quais foram os cantores que foram perseguidos e aqueles que foram exilados. Querem saber o que diz tal msica e a mensagem subliminar que traz. Sabedor do poder que os manuais didticos exercem sobre os alunos e professores uma pergunta me vinha cabea: onde estariam as letras de canes caipiras? Ser que essas canes, por tratarem de um ser em extino- o caipira seriam vistas como desprovidas de crtica social? Ou o que foge do cnone visto como degradao? Como que os alunos se relacionariam com essas canes? preciso lembrar que esses manuais com os quais estive em contato ao longo dos anos traziam em suas pginas os vrios movimentos musicais que lutaram por liberdade, ou que denunciavam sua maneira, as desigualdades sociais, o contexto poltico vivido, algumas vezes com ironia, ou ainda exaltando determinado regime ou perodo histrico. No entanto, eu no identificava a presena das letras de msicas caipiras. Com essas constataes e indagaes, foi-se configurando um projeto de investigao para buscar compreender a presena ou a ausncia da msica, particularmente da caipira, nos livros didticos de Histria para quinta a oitava sries do Ensino Fundamental. Alm disso, colocava-se tambm a necessidade de compreender as possibilidades de relao dos alunos com esse tipo de cano nas aulas de Histria. Nessa direo, a pesquisa visa contribuir para uma discusso que vem tomando corpo ao longo dos anos na rea de Ensino de Histria e que ganha espao com a publicao dos Parmetros Curriculares Nacionais, documento oficial que indica como objetivos do ensino fundamental que os alunos sejam capazes de utilizar as diferentes linguagens: verbal, musical, matemtica, grfica, plstica e corporal como meio para produzir, expressar e comunicar suas idias, interpretar e usufruir das produes culturais, em contextos pblicos e privados, atendendo a diferentes intenes e situaes de comunicao (PCNs, 1998, p. 7).

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De outro lado, a pesquisa caminha tambm na direo de estudos no campo da Educao Histrica, uma vez que a discusso diz respeito no s presena ou ausncia da msica caipira nos manuais didticos, mas tambm s relaes que os alunos podem estabelecer com ela a partir do seu uso nas aulas de Histria. importante indicar, de incio, que at a dcada de 1980 havia pouca incidncia de msicas nos manuais didticos, como observa Luciana Calissi (2003, p. 157). Ao examinar 58 livros publicados entre 1980 e 2000, a autora indica que 36,2% , ou seja, vinte e um manuais, incluem msicas em suas propostas de trabalho. Os dados apresentados por ela (ver quadro 1) permitem que se verifique, sem maior esforo, que a partir da abertura poltica 1985 h um sensvel acrscimo de canes nos manuais didticos, percentual ampliado entre 1996 e 2000, perodo da produo e divulgao dos PCNs, o que pode indicar, entre outras coisas que as propostas da utilizao de novas linguagens ou diferentes tipos de documentos histricos tiveram reflexos na elaborao dos manuais didticos.

QUADRO 1: LIVROS QUE CONTM MSICA, POR PERODO: LIVROS CATALOGADOS 15 12 12 19 (1980-1985) (1986-1990) (1991-1995) (1996-2000) 02 05 06 08 13,3% 41% 50% 42% PERODO CONTM MSICA PORCENTAGEM

Fonte: CALISSI, 2003, p. 157.

tambm na dcada de 1980 que um novo conjunto de reflexes comea a se fazer presente nos manuais didticos e que pode ser inserido no mbito da histria cultural, que para Roger Chartier ...deve ser entendida como estudo dos processos com os quais se constri um sentido. Rompendo com a antiga idia que dotava os textos e as obras de um sentido intrnseco, absoluto, nico o qual a crtica tinha a obrigao de identificar -, dirige-se s prticas que, pluralmente, contraditoriamente, do significado ao mundo (CHARTIER, 1990, p. 27).

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Ainda que se devam reconhecer as influncias das discusses historiogrficas contemporneas nas orientaes curriculares nacionais, isto no significa,

necessariamente, que as propostas de ensino nos manuais didticos tenham incorporado tais contribuies. Nesse sentido, o acrscimo de canes nos manuais didticos pode no ter representado uma nova maneira de olhar a histria, dado que, pelas anlises inicialmente feitas para a elaborao do projeto de investigao, constatou-se que alguns autores incluram essas canes apenas como ilustrao de um determinado perodo ou contexto histrico. Mas sobretudo no mbito da cultura que desejo inscrever o tema em discusso, dado que o manual didtico visto como um objeto da cultura escolar, produzido fora da escola mas para uso por professores e alunos nas aulas, enquanto sujeitos que compem o universo escolar. Nesse sentido, o livro expressa formas de relao da escola com a cultura e, para compreender melhor essa questo, interessante verificar a argumentao de Michael Apple:

Podemos falar a respeito da cultura de duas maneiras diferentes: como um processo vivido, como aquilo que Raymond Williams denominou uma forma global de vida; ou ento como uma mercadoria. No primeiro caso, focalizamos a cultura como um processo social constitutivo atravs do qual e por meio do qual vivemos nossas vidas cotidianas. No segundo caso, enfatizamos os produtos da cultura, a prpria condio de coisa das mercadorias que produzimos e consumimos. Esta distino pode ser mantida apenas no nvel analtico, claro, uma vez que a maior parte daquilo que nos parece ser coisas como lmpadas eltricas, carros, discos e no caso deste captulo, livros so na realidade parte de um processo social mais amplo. Como Marx levou anos tentando demonstrar, cada produto expresso de trabalho humano corporificado (1995, p. 82).

O mesmo autor chama a ateno para o fato de que, tomando o cuidado para evitar o reducionismo econmico, preciso observar elementos de uma economia poltica da cultura (1995, p. 83) e atentar para as dificuldades que so inerentes anlise de produtos culturais, e neste caso especfico se inclui o livro didtico. Ele afirma:(...) Esta natureza dual da cultura apresenta um dilema para os indivduos interessados na compreenso da dinmica da cultura popular e da cultura de elite em nossa sociedade. Isto faz com que o estudo dos produtos culturais

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dominantes filmes, livros, televiso, msica seja decididamente escorregadio, porque h conjuntos de relaes por trs de cada uma dessas coisas. E estas, por sua vez, esto situadas dentro da teia mais ampla das relaes sociais e de mercado do capitalismo (APPLE, 1995, pp. 82- 83).

Visto por alguns professores como grande apoio no cotidiano das aulas, e apontado por outros como sendo um atraso para a educao, o fato que assumindo-se que o livro pertence ao universo da cultura escolar, tambm se pode fazer sua anlise a partir de outras categorias. Como afirma Circe Bittencourt, O livro didtico , antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edio que obedece evoluo dos tcnicos de fabricao e comercializao pertencente lgica do mercado. Como mercadoria, ele sofre interferncias variadas em seu processo de fabricao e comercializao. E completa, afirmando que o livro didtico um importante veculo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura (BITTENCOURT, 1998, p. 71-72). Por outro lado, sendo um recurso de ensino amplamente utilizado nas escolas pblicas, possvel pensar que, a partir da anlise dos contedos apresentados pelos autores, podem ser levantados elementos para investigar a relao dos jovens alunos com o conhecimento veiculado. A partir dessas questes iniciais que se definiram os objetivos desta investigao: analisar a presena e/ou ausncia de letras de canes brasileiras nos livros didticos de Histria, de maneira especfica as letras de msicas caipiras/sertanejas e, a partir dos elementos identificados nesse primeiro nvel de anlise, investigar algumas formas pelas quais os jovens se relacionam com esse gnero musical. No processo de definio do material emprico a ser examinado, decidiu-se que o trabalho seria desenvolvido sobre os manuais aprovados pelo PNLD Programa Nacional do Livro Didtico de 2005, pois a lista com os livros aprovados acabara de sair e eles seriam encaminhados para as escolas pblicas de todo o Brasil distribudos pelo Governo Federal, gratuitamente, s escolas de ensino fundamental para uso pelos alunos de 5 a 8 srie.

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Com relao aos procedimentos para anlise do material emprico, optou-se por considerar no apenas a presena ou ausncia da msica em geral e da msica caipira em particular, mas, de forma ampliada, examinar o uso que os autores fazem das letras das canes em suas propostas de trabalho. Foram definidas, ento, categorias organizadoras do olhar sobre as obras, buscando responder as seguintes questes: as letras de msica esto presentes nos livros didticos? Quais so os gneros privilegiados? As canes so entendidas pelos autores como recursos didticos? So tomadas como documentos histricos? So tomadas como ilustrativas de um determinado perodo? Tambm se optou por buscar elementos para identificar se os autores encaminhavam o trabalho com essas canes no manual do professor ou no livro do aluno, perguntando-se: So propostas diretamente para atividades dos alunos ou so sugeridas como complementaes? Alm disso, buscou-se verificar a incidncia de algumas canes e seu contexto histrico; e, ainda, identificar compositores e intrpretes e o ano das composies selecionadas pelos autores. A escolha da msica caipira como elemento a ser privilegiado na investigao surgiu de indagaes na prpria sala de aula uma vez que tambm possui algumas caractersticas de contestao, exaltao e de stira em relao ordem poltica estabelecida. Essa msica tambm foi e reveladora dos problemas enfrentados por milhares de brasileiros que sofreram com o xodo rural e seu estabelecimento fora de seu ambiente cultural a zona urbana - e que fez o homem do campo, ao longo dos anos, ver sua primeira identidade se perder, como argumenta Jos Roberto Zan:

As migraes internas e o xodo rural, impulsionados pela modernizao econmica, faziam com que levas crescentes de populaes oriundas de reas ainda caracterizadas por formas tradicionais de sociabilidade aflussem para os centros urbanos mais industrializados. Em funo do carter excludente da industrializao brasileira, uma parcela significativa dos migrantes permanecia margem do mercado de trabalho regular das grandes cidades. Relegados condio de excludos, esses indivduos no completavam seus processos de re-socializao, continuavam cultivando elementos culturais de sua primeira socializao, ou seja, da cultura rstica1 (1995, p. 9).1

O termo emprestado de Antonio Candido que esclarece: O termo rstico empregado no como equivalente de rural, ou de rude, tosco, embora os englobe. Rural exprime um tipo social e cultural, indicando o que no

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No mesmo trabalho, Zan completa a questo quanto ao desaparecimento da cultura caipira:

(...) Inicialmente, importante lembrar que esse estilo de msica popular, identificado como sertaneja ou caipira, nos remete a um determinado modo de vida ou a um tipo de sociedade que, na atualidade praticamente desapareceu. O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, acompanhado pela industrializao e pela urbanizao da sociedade brasileira, especialmente ao longo do sculo 20, provocou o rompimento do equilbrio ecolgico e social desse modo de vida. Mas, apesar da sua desintegrao, aspectos dessa cultura ainda sobrevivem na memria de boa parte da populao brasileira (2003, p. 1).

Assim, interessa discutir se a condio de excludos apontada pelo autor se revela, tambm, na excluso dos elementos da cultura caipira nos manuais didticos de Histria, particularmente do ponto de vista da incluso/excluso das letras desse gnero musical. Por outro lado, esta pesquisa tambm se justifica pela compreenso de que a msica um fenmeno da cultura de adolescentes e jovens que, por no estarem includos ainda no mundo do trabalho e por no participarem diretamente da poltica, so ento inseridos na realidade pelo mundo da cultura. A esse respeito, Paul Willis escreve:

(...) a msica popular tremendamente importante no espao da cultura comum, para o individual e coletivo trabalho simblico e criativo. A mensagem de toda juventude pesquisada nos ltimos trinta anos tem sido de que a msica popular o centro de interesse da cultura das pessoas jovens (1990, p. 59).

Nessa direo, pode-se tambm indagar: qual a relao que os jovens estabelecem com a msica caipira? E a investigao proposta tambm se prope a buscar elementos para explicitar as relaes que os alunos estabelecem com esse tipo de cano, tomada nas suas possibilidades de seu uso nas aulas de Histria.Brasil, o universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que resultaram do ajustamento do colonizador portugus ao Novo Mundo, seja por transferncia e modificao dos traos da cultura original, seja em virtude do contacto com o aborgene (CANDIDO, 2001, p. 26).

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Postas, de forma geral, as questes que nortearam a proposta de investigao para a dissertao de mestrado na linha Cultura, Escola e Ensino do Programa de Psgraduao em Educao da Universidade Federal do Paran, apresento a seguir a estrutura do texto da dissertao. No primeiro captulo, apresenta-se uma discusso sobre o conceito de cultura a partir do pensamento de Raymond Williams que se contrape a uma cultura elitista e cannica, sugerindo uma cultura comum. Para ele, a cultura tradicional cannica um patrimnio comum, uma herana comum, que a educao tem a tarefa de difundir, tornar acessvel a todas as classes sociais, da mesma forma que a cultura popular. Essas idias so apresentadas no contraponto com as concepes de T. S. Eliot, que defende a distino entre cultura popular e erudita e aponta para a necessidade de preservao de uma cultura de elite. Ainda no primeiro captulo apresentam-se os conceitos de msica rural (caipira/sertaneja) procurando estabelecer relaes com as idias de Williams quanto cultura comum a ser difundida pelas escolas, e, portanto, pelos manuais didticos, na perspectiva de rompimento com a cultura cnone defendida pela elite. No segundo captulo so apresentados elementos mais especficos sobre a conceituao do livro didtico, de forma a articular as anlises de vinte e uma colees de manuais didticos de Histria para quinta oitava srie do ensino fundamental, aprovados no PNLD de 2005, totalizando 84 livros. As questes analisadas apiam-se nas categorias organizadoras estabelecidas, e que se referem, por um lado, ao tipo de msica selecionado para o trabalho proposto pelos autores e, por outro lado, ao encaminhamento metodolgico dado por eles, seja no manual do professor ou no livro do aluno. No terceiro captulo, so descritos analiticamente os resultados do trabalho emprico realizado com alunos de uma turma de Ensino Mdio de Escola Pblica, no qual foram estruturadas e propostas algumas questes de investigao relacionadas presena da msica no cotidiano dos jovens e de suas famlias, bem como uma caracterizao de elementos constitutivos das relaes que estabelecem com a msica fora e dentro do espao escolar e, finalmente, algumas atividades com a msica caipira

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para verificar as formas pelas quais se relacionam especificamente com este gnero, com a finalidade de contribuir para a discusso das possibilidades de seu uso em aulas de Histria.

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1 CULTURA E MSICA CAIPIRA

Conhecida popularmente como msica caipira, consumida por grande parte das famlias brasileiras, como destaca uma pesquisa realizada pelo programa Globo Rural junto ABPD (Associao Brasileira dos Produtores de Discos): o segmento caipira/sertanejo representa hoje 15% do mercado fonogrfico brasileiro, perdendo apenas para o gnero Pop em 1 lugar e a msica romntica em 2 (Globo Rural: 17/08/2003.) Em contrapartida, esse gnero visto muitas vezes como simplrio e desprovido de conhecimento cientfico, tornando-se alvo, ao longo dos anos, de crticas e de desprestigiamento em diferentes grupos sociais. Assim, pode-se supor que tambm no espao escolar haja uma maior aceitao, como cultura musical, de canes privilegiadas pela indstria cultural, na perspectiva defendida por Adorno (1975), implicando a rejeio de outros gneros, inclusive da msica caipira. Como se discutir mais adiante, a formao da cultura caipira est relacionada aos processos de ocupao do territrio brasileiro, no movimento que avanava para o interior e explicitava o surgimento da fronteira entre dois mundos, o civilizado e o atrasado este representado pelo nativo ao mesmo tempo em que favorecia a sua mistura, da qual nasceria a cultura caipira (CNDIDO, 2001, p. 45). preciso ainda destacar que essa cultura foi marcada por significados negativos, relacionados s idias de homem atrasado, de ausncia de uma cultura clssica, do serto como espao de ausncia, de vazio. A cultura caipira foi ento, ao longo dos sculos, considerada como uma cultura rstica, sem valor social. importante relembrar, aqui, a idia de tradio seletiva que tem sido usada para se compreender como que a escola, enquanto instituio social, seleciona os contedos culturais que devem ser includos - ou no nos currculos e programas que orientam os processos de produo de materiais didticos, como os livros, e tambm a elaborao de propostas curriculares para os sistemas educacionais. A partir dessa questo, entende-se que necessrio, para sustentar a presente investigao, que se construa um conceito de cultura que permita debater e

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compreender a presena/ausncia da msica caipira na escola e, particularmente nos livros e aulas de Histria, a partir das relaes entre escola e cultura, o que se procurou fazer a seguir, na parte inicial deste captulo.

1.1. CONCEITO DE CULTURA: ALGUMAS RELAES PARA COMPREENDER O OBJETO DE INVESTIGAO

Originalmente concebida para designar elementos derivados da natureza, a palavra cultura tem origem no latim colere que aplicado natureza refere-se idia de cultivar, preservar o cultivo agrcola, a plantao, ou seja, aquilo que foi plantado e que cresce naturalmente deve ser cultivado pelos seres humanos. Isso torna seu significado bastante amplo e complexo. Outra forma de conceber o termo relacion-lo preservao da memria, atravs do culto aos deuses, no caso de Roma Antiga. Neste caso, a palavra deriva tambm do latim cultus (culto, cultuar) que pode ser relacionado a expresses simblicas como a msica, a dana, o canto etc., preservando dessa forma tradies construdas no cotidiano. A Antropologia ao estudar a cultura a traz para o mundo social, o mundo das relaes humanas e a natureza humana no exatamente o mesmo que uma plantao de beterrabas, mas, como uma plantao, precisa ser cultivada de modo que, assim como a palavra cultivo nos transfere do natural para o espiritual, tambm sugere uma afinidade entre eles (EAGLETON, 2005, p. 15). Desse ponto de vista, h semelhanas entre os seres humanos e a natureza, dado que ambos so transformados e moldados fora. A diferena est no controle que os homens exercem nessa transformao podendo moldar a si mesmos, o que no pode ocorrer natureza, introduzindo assim no mundo um grau de auto-reflexividade a que o resto da natureza no pode aspirar. (EAGLETON, 2005, p. 15). No entanto, para o mesmo autor, h outras tradies no entendimento do significado de cultura, como a que entende o cultivo no apenas como algo que os homens fazem para si mesmos, mas tambm algo que pode ser feito para os homens,

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em especial pelo Estado. Neste caso, a cultura uma espcie de pedagogia tica que torna os indivduos aptos para a cidadania poltica uma vez que numa sociedade civil, os indivduos vivem num estado de antagonismo crnico, impelidos por interesses opostos, mas o Estado aquele mbito transcendente no qual essas divises podem ser harmoniosamente reconciliadas. (EAGLETON, 2005, p. 16). Deste ponto de vista, a cultura tem como objetivo moldar os indivduos a um tipo de sociedade, de forma a torn-los cidados apropriadamente responsveis e de boa ndole. Eagleton ainda chama a ateno para o fato de que nessa tradio cultura aquilo que mais tarde ser chamado de hegemonia: Nessa tradio de pensamento, ento, a cultura no est nem dissociada da sociedade nem completamente de acordo com ela. Se em um nvel constitui-se uma crtica da vida social, cmplice dela em um outro. (EAGLETON, 2005, p. 18). Raymond Williams reconhece a existncia da palavra cultura com o significado de civilidade com base em suas razes etimolgicas, depois no sculo XVIII civilizao, conforme o esprito geral do iluminismo, significando um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Mas ao final do sculo XIX, segundo o mesmo autor, a partir do idealismo alemo a cultura assume algo do seu significado moderno de um modo de vida caracterstico (EAGLETON, 2005, p. 23). Ao estudar os vrios significados da palavra cultura na lngua inglesa, Williams ressaltou trs categorias ou nveis que do um novo sentido palavra. Em primeiro lugar a ideal, a cultura vivida pelo ser humano, segundo o qual a cultura vivida em determinado tempo e lugar somente por aqueles que ali residem. Em segundo lugar a categoria de cultura documental, ou seja, aquela registrada, gravada pelo pensamento humano em suas mltiplas experincias (msica, pintura, letras etc.). Em terceiro e ltimo lugar, h o conceito social de cultura em que esta passa a determinar um modo particular de vida, uma cultura particular sem, no entanto se afastar dos interesses comuns da sociedade. Esses trs nveis de cultura no devem, segundo Williams, ser tratados cada um em particular e sim como um todo, um completando o outro.

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Foi a partir da segunda metade do sculo XX que surgiu, na Inglaterra, uma preocupao em ressaltar a importncia do resgate dos estudos da cultura, mediante uma anlise dos fenmenos sociais a partir da conscientizao das classes trabalhadoras. Surgiam dessa forma os Estudos Culturais. No est claro, porm, como realmente comeou esse movimento. Para Stuart Hall, que foi diretor do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birmingham, na Inglaterra (1968-1980), as origens esto na publicao de trs livros: The Making of the English Working Class (1963), de Edward P. Thompson; Culture and Society, 1780-1950 (1958), de Raymond Williams; e The Uses of Literacy (1957) de Richard Hoggart.2 Para Hall, essas obras traziam uma preocupao em romper com o pensamento tradicional no que se refere cultura, indicando novos caminhos para o estudo da cultura, palavra que significava para esses autores, grandes mudanas na histria, na literatura, nas classes sociais e nas artes. Para Raymond Williams, o inicio est relacionado s mudanas de perspectiva no ensino das artes e da literatura e sua relao com a histria e a sociedade contempornea. Para ele, esse movimento comeou com a Educao para Adultos e no em algum outro lugar, a partir da preocupao com uma educao democrtica para aqueles que tinham sido privados do acesso a uma escola nos moldes tradicionais, trabalhadores pobres e sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Os expoentes dos Estudos Culturais, alm de terem se tornado referncia para a compreenso desse fenmeno, foram ainda professores da Workers Educational Association (WEA), organizao de esquerda que tinha como principal objetivo a educao dos trabalhadores operrios. Faziam parte da WEA escolas noturnas para trabalhadores que tiveram sua ascenso no ps Segunda-Guerra Mundial, e naquele momento a tarefa era fazer a incluso e integrao dos excludos que lutaram ou tiveram alguma participao na Segunda Guerra Mundial. Segundo Cevasco, nos

No Brasil essas obras receberam, respectivamente, os seguintes ttulos: A formao da classe trabalhadora inglesa, So Paulo: Paz e Terra, 1988. Cultura e sociedade, 1750-1950. Trad. Lenidas H. B Hegenberg. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. E As utilizaes da cultura, Trad. M. C. Cary. Lisboa: Presena, 1973.

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anos 1950, havia 150 mil adultos matriculados em cursos de extenso universitria, e a prpria WEA tinha 90 mil alunos (CEVASCO, 2003, p. 62). Mas o que a WEA defendia? O que pretendia era uma educao pblica e igualitria, assim como a busca de uma cultura comum que inclusse a classe trabalhadora. Os alunos traziam suas angstias cotidianas e os professores transformavam-nas em contedos que tinham relao com o seu dia-a-dia, de forma a superar a idia da concepo da escola burguesa, em que o professor - e somente ele sabe, descartando a possibilidade de trocas de conhecimento. A dcada de 1960 trouxe novas tecnologias que aos poucos foram se integrando ao cotidiano das pessoas comuns. As modificaes culturais passaram a ser o centro das atenes, destacando-se os novos meios de comunicao, sobretudo, a cultura de massa, qual os Estudos Culturais, enquanto disciplina, passaram a dar nfase. Do ponto de vista histrico, o mundo vivia um momento crtico: o da Guerra Fria3. Sobre esse momento Raymond Williams escrevia em 1961:

(...) nessa altura ficou ainda mais evidente que no podemos entender o processo de transformao em que estamos envolvidos se nos limitarmos a pensar as revolues democrtica, industrial e cultural como processos separados. Todo nosso modo de vida, da forma de nossas comunidades organizao e contedo da educao, e da estrutura da famlia ao estatuto das artes e do entretenimento, est sendo profundamente afetado pelo progresso e pela interao da democracia e da indstria, e pela extenso das comunicaes. A intensificao da revoluo cultural uma parte importante de nossa experincia mais significativa, e est sendo interpretada e contestada, de formas bastante complexas, no mundo das artes e das idias. quando tentamos relacionar uma mudana como esta com as mudanas enfocadas em disciplinas como a poltica, a economia e as comunicaes que descobrimos algumas das questes mais complicadas mas tambm as de maior valor humano. (In: CEVASCO, 2003. p. 12 e 13)

Com essas palavras, Raymond Williams percebe que a histria caminha a passos mais largos e que as mudanas conceituais quanto cultura devem tambm seguir esse ritmo. Isso fica claro em sua obra Cultura e Sociedade, em que WilliamsConflito poltico ideolgico das duas superpotncias que emergiram da Segunda Guerra Mundial. Estados Unidos da Amrica e Unio das Repblicas Socialistas Soviticas. Para Hobsbawm, o perodo vai do lanamento das bombas atmicas em Hiroshima e Nagasaki at o fim da Unio Sovitica. In: HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve sculo XX 1914-1991. So Paulo. Companhia das Letras. 1997.3

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faz um levantamento histrico das palavras mais importantes do vocabulrio da lngua inglesa e que deveriam servir de referncias para a estruturao de novas disciplinas que viriam a surgir posteriormente, inclusive os Estudos Culturais.

Cinco palavras so os pontos bsicos a partir dos quais se delineia esse sistema de referncia: indstria, democracia, classe, arte e cultura. bvia a importncia dessas palavras em nossa moderna estrutura de significados. As transformaes ocorridas em seu uso, naquele perodo crtico, pem em evidncia a mudana geral das maneiras caractersticas de pensar acerca da vida diria: acerca de nossas instituies sociais, polticas e econmicas; dos propsitos que essas instituies esto destinadas a concretizar; e das relaes que essas instituies e propsitos mantm com nossas atividades no campo do saber, do ensino e da arte. (WILLIAMS, 1969).

Williams realiza uma anlise histrica dessas palavras, partindo da Revoluo Industrial at 1950 e busca, em sntese, demonstrar que cultura no apenas um corpo de trabalho imaginativo e intelectual; tambm e essencialmente todo um modo de vida. Essa passa a ser a idia central defendida pelos tericos dos Estudos Culturais no momento de sua formao. O depoimento, a este respeito, do prprio Williams:

A idia de cultura a resposta global que demos grande mudana geral que ocorreu nas condies de nossa vida comum. Basicamente constituiu um esforo por compreender, interpretar e apreciar, em seu todo, a mudana em curso. Era toda a forma comum de viver que estava a ser modificada, provocando o fato a mobilizao de toda a ateno humana para analisar a mudana e suas conseqncias (WILLIAMS, 1969).

A proposta de Williams para uma cultura comum no significa que todos devem seguir uma mesma cultura ou que no possam existir nveis culturais diferenciados, mas sim que exista uma participao coletiva e democrtica em todos os nveis da vida social, sobretudo no processo de construo e criao da cultura. No podemos esquecer que Raymond Williams vem de uma tradio socialista e que, portanto, o que ele busca defender a perspectiva de que as teorias so continuamente refeitas e redefinidas pela maioria. Raymond Williams em sua obra Cultura e Sociedade: 1780-1950, procura traar historicamente o processo de surgimento e desenvolvimento do conceito de

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cultura.

Afirma que a palavra evoluiu de tendncia de crescimento natural,

comeando com o nome de um processo-cultura, cultivo de vegetais ou criao e reproduo de animais, e por analogia o crescimento natural do ser humano. Williams continua afirmando que a palavra sofreria uma alterao a partir do sculo XIX, pois se antes a cultura se referia cultura de alguma coisa, no sculo XIX passou a corresponder a um estado geral de desenvolvimento intelectual no conjunto da sociedade (Idem, 1969). O emprego da palavra sofreria ainda outras alteraes ao longo do sculo, passando pelas artes, e j no final do sculo XIX tomaria as caractersticas defendidas por Williams como sendo todo um sistema de vida, no seu aspecto material, intelectual e espiritual. Essa perspectiva apontada por Forquin ao afirmar que (...) cultura (...) deve ser interpretada como uma reao, uma resposta mutao histrica constituda pelo advento da civilizao maquinista, pela ruptura das solidariedades e particularidades comunitrias e pela irrupo das massas na cena social (1993, p. 33). Essa reao se daria a partir da resistncia de grupos culturais marginalizados em prol da recuperao de espaos de convivncia entre as duas concepes de mundo formuladas pelas classes privilegiadas, de que existe um mundo oficial e outra no oficial, aquele da alta cultura apregoado pela e na constituio do Estado-Nao moderno que tinha como objetivo garantir a unificao das culturas, construindo assim uma nao hegemnica, superior a todas as micro-culturas do novo EstadoNao4. V-se, portanto, que um dos critrios de identificao do nacionalismo era a cultura, mas a cultura das elites, que subjugava ou at mesmo exclua a cultura das minorias, criando dessa forma um Estado Moderno em que a cultura popular, as canes, contos do povo foram aos poucos perdendo seu sentido. A cultura popular, para o Estado Moderno, representava naquele momento a ignorncia, o atraso, entrando em contradio com o avano das cincias que pouco a pouco ia tomando

O critrio histrico de nacionalidade implicava, portanto, a importncia decisiva das instituies e da cultura das classes dominantes ou elites de educao elevada, supondo-as identificadas, ou pelo menos no muito obviamente incompatveis, com o povo comum (HOBSBAWM. A Era do Capital: 1848-1875. p. 104).

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fora, tentando superar, enfim, o saber popular, construindo o conceito de que tudo que no pertencia s elites no seria conveniente aproveitar. Tal concepo comea a mudar a partir do sculo XVIII quando do surgimento do romantismo. Seus precursores passam a se interessar pela cultura do pobre, como relata Hobsbawm:

As artes que dependiam do apoio dos pobres quase no tinham nenhum interesse para o artista romntico, embora, de fato, a diverso dos pobres revistas de contos sentimentalides, circos, pequenas exibies com uma atrao principal, teatros mambembes e coisas semelhantes foram uma fonte de muita inspirao para os romnticos (...) (HOBSBAWM, 2004 p. 292 e 293)..

Por outro lado, o mesmo romantismo no dominava nem a cultura da aristocracia, nem da classe mdia, e menos ainda a da classe trabalhadora pobre (HOBSBAWM, 2004, p.292). a que se localiza o nascimento do interesse em se conhecer mais profundamente a cultura popular a partir de seu folclore, em que o povo passa a ser fonte de inspirao de vrios pensadores. Porm, em fins do sculo XVIII e incio do XIX, quando a cultura popular tradicional estava justamente comeando a desaparecer, que o povo (o folk) se converteu num tema de interesse para os intelectuais europeus (1999, p. 31) Burke refere-se a inmeros autores alemes, russos, ingleses preocupados em preservar a memria do povo a partir de poemas e canes populares, canes essas que preservavam a eficcia moral da antiga poesia, visto que circula oralmente, acompanhada de msica e desempenha funes prticas, ao passo que a poesia das pessoas cultas uma poesia para a viso, separada da msica, mais frvola do que funcional (BURKE, 1999, p. 32). Entre os sculos XVIII e XIX, a histria do povo passava a substituir as histrias dos reis, da corte, dos governos; houve a descoberta da msica popular e sua difuso no mundo europeu, como afirma Burke:

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No final do sculo XVIII, V.F. Trutovsky (um msico da corte) publicou algumas canes populares russas, juntamente com as respectivas melodias. Nos anos 1790, Haydn fez arranjos com canes populares escocesas. Em 1819, um decreto do governo ordenou que as autoridades locais da Baixa ustria, em nome da Sociedade Amigos da Msica, procedessem coleta de melodias populares. Uma coletnea de canes populares da Galcia, publicado em 1833, traz as melodias e os versos (...) a descoberta da cultura popular teve um impacto considervel nas artes (BURKE, 1989, p. 35).

Esses so, certamente, momentos de resgate de uma cultura popular que identificava os costumes populares, as crenas, as msicas e que estavam em contraste com a cultura erudita que por muitos anos esteve indiferente s coisas do povo. A descoberta da cultura popular estava, portanto, intimamente relacionada ascenso do nacionalismo, ou seja, a busca de uma identidade nacional que reconhece um povo a partir de suas realizaes culturais. Com essas palavras, pode-se retomar a discusso acerca do conceito de cultura, buscando outro autor, Norbert Elias, em sua obra intitulada: O processo civilizador: uma histria dos costumes, a sociognese da diferena entre Kultur e Zivilisation no emprego alemo. Elias argumenta que o conceito alemo de Kultur alude basicamente a fatos intelectuais, artsticos e religiosos e apresenta a tendncia de traar uma ntida linha divisria entre os fatos deste tipo, por um lado, e fatos polticos, econmicos e sociais, por outro (ELIAS, 1990, p. 24). O conceito de Kultur alemo remete ao valor de determinados produtos humanos, no o valor da pessoa em si, como o caso do conceito de civilizao ingls ou francs que pode se referir a realizaes humanas, mas tambm ao comportamento humano. Dessa forma o conceito de cultura apresentado por Williams se aproxima do apresentado por Elias quando este estabelece uma anttese entre Kultur (conceito germnico) e Zivilization (conceito empregado na Frana e Inglaterra): (...) at certo ponto, o conceito de civilizao minimiza as diferenas nacionais entre os povos: enfatiza o que comum a todos os seres humanos ou na opinio dos que possuem deveria s-lo (ELIAS, 1990, p25).

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nesse quadro que se estrutura a posio de Williams quando identifica cultura com uma forma comum de viver (1969, p. 305). Ele certamente no se refere, quando escreve sobre uma cultura comum, a uma cultura igual; o que prope a igualdade do ser humano perante as formas desiguais impostas pelo capitalismo sociedade, dado que este, na sua estrutura por si s excludente. Com base nessa perspectiva, todos os elementos da vida comum (artes, literatura, comunicaes etc.) entrariam na constituio de uma cultura comum. Mas Williams no ficou isento de crticas, nem mesmo de seus colegas, e travou dilogos intensos sobre o tema. Pode-se destacar a crtica feita por Edward Palmer Thompson sua concepo de cultura comum e sua relao com os meios de comunicao. Descartando o fato de que a criao de uma cultura comum poderia diminuir as tenses entre as classes, Thompson utiliza-se do seguinte argumento:Se comunicaes mais eficientes possibilitassem classe trabalhadora entender melhor o modo de vida dos ricos, eles gostariam ainda menos desse modo de vida e sentiriam com mais fora as barreiras de classe (...) A aspirao por uma cultura comum no sentido de Raymond Williams (significados e valores em comum) admirvel; mas quanto mais essa aspirao for incrementada, mais revoltante parecero as divises reais de interesse e de poder em nossa sociedade (THOMPSON, apud CEVASCO, 2001, p. 65).

Thompson, em seu discurso, demonstra uma certa sintonia com as idias de Williams, sendo no entanto irnico no instante em que afirma ser invivel transformar o modo de vida de uma sociedade economicamente inferior, pelo simples fato de que a partir do momento em essa sociedade conhecesse a cultura do outro, (economicamente superior) passaria a perceber e criar novas categorias de sobrevivncia, se assemelhando cultura do outro. Mas, nas leituras de Williams o que fica claro que sua concepo de cultura (articulada num momento crucial de universalizao do capitalismo), nada mais era do que a criao de um argumento contrrio noo dominante de que cultura deve ser produzida a partir de uma elite (alta cultura). A proposta de Williams, portanto, de uma cultura ampla, que possa ser vista e discutida por todos, sem distino, o que leva a crer que isso se daria a partir da educao. Isso significa compreender o

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funcionamento da sociedade, a partir das discusses geradas sobre a cultura, buscando fazer intervenes de maneira a se constituir uma cultura comum e que seja acessvel a todas as classes sociais, destruindo, a partir da educao, o mito da existncia de uma cultura superior e outra inferior. Essa proposio no era aceita por outro intelectual contemporneo de Williams que tambm discute a questo da cultura, Thomas Stearns Eliot. A estrutura de sua crtica ao pensamento de Williams est em Notas para uma definio de cultura. Para Eliot, uma cultura comum no significava uma cultura igualitria, pois, se a minoria (uma elite) e as massas podem compartilhar de valores comuns, certamente o faro em nveis diferentes de conscincia. Eliot argumenta que trs condies so importantes para a constituio da cultura: 1) estrutura orgnica aquela que alimenta a transmisso hereditria de cultura dentro de uma outra cultura; 2) a necessidade de que uma cultura seja decomponvel, geograficamente, em culturas locais: isso levanta o problema do regionalismo; 3) o equilbrio entre a unidade e a diversidade na religio isto , universalidade de doutrina com particularidade de culto e devoo. Para Eliot, essas trs condies no significam necessariamente que haver uma melhora na civilizao, mas que numa civilizao de alto nvel essas condies no devem estar ausentes. Quando o termo cultura se aplica manipulao da agricultura previsvel; porm, quando aplicando melhoria da mente e do esprito humano o termo cultura no pode ser entendido como unidade. Eliot argumenta que o acmulo de conhecimentos escolares, a erudio, a arte (do msico, pintor etc.) no so sinnimos de cultura se tratadas como individual, pois, essa no pode ser isolada do grupo e este no pode ser abstrado do todo da sociedade. Para o autor, a cultura ento no apenas um modo de vida individual, mas todo o modo de vida de um povo, do nascimento sepultura, da manh noite e mesmo no sono, e esse modo de vida tambm cultura (ELIOT, 1988, p. 45).

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Eliot aponta, portanto um sentido de cultura mais inconsciente do que consciente, pois, mesmo no sono, ou seja, sem planejamento, se faz cultura. O termo inclui ainda todas as atividades e interesses prprios de um povo, no caso especfico, o povo ingls.

Tomando agora o ponto de vista da identificao, o leitor deve lembrar-se, como o autor tem de faz-lo constantemente, do quanto abrange aqui o termo cultura. Inclui ele todas as atividades e interesses caractersticos de um povo: O Derby Day, a Henley Regatta, Cowes, o 12 de Agosto, a deciso da Copa, as corridas de ces, a mesa de pinos, o alvo de dardos, o queijo Wenleydale, o repolho cozido e cortado em pedaes, beterraba em vinagre, as igrejas gticas do sculo XIX e a msica de Elgar5(ELIOT, 1988, p. 45).

No argumento de Eliot, uma cultura minoritria beneficia a cultura como um todo, o que se diferencia quanto proposta de Raymond Williams, que argumenta:devemos planejar o que pode ser planejado, de acordo com a deciso comum. Mas no que diz respeito cultura , por essncia, insuscetvel de planejamento. Devemos assegurar os meios de vida e os meios para a comunidade constituirse. Mas o que ser a vivncia, com base em tais meios, no podemos conhecer nem traduzir. A idia de cultura apia-se numa metfora: o velar pelo crescimento natural. E sem dvida no crescimento, como fato e metfora, que se deve colocar a nfase final (WILLIAMS, 1969, p. 343).

Para Williams, a cultura no deve ser trazida para a conscincia por se tratar de um tema ilimitado e, portanto, cheia de grandes significados, que quando compartilhados, tomam novos rumos. Porm, esses significados devem crescer no meio da comunidade de forma que essa possa colaborar para a constituio de uma cultura comum, com a participao do coletivo. Aqui est a sntese do pensamento de Williams sobre a cultura comum: uma cultura construda coletivamente, com responsabilidades comuns e participao plena de todos no processo de criao, uma

Derby Day: dia em que tem lugar o Derby, uma das clssicas corridas de cavalo na Inglaterra, datando de 1780, e que ocorre na primeira quarta-feira de junho em Epson Downs, Surrey. Henley Royal Regatta: srie de competies de barco a remo, estabelecida em 1839, e realizada anualmente na primeira semana de julho no rio Tamisa, em Henley-on-Thames. Cowes: cidade, na ilha de Wight, onde so realizadas anualmente regatas a vela no incio de agosto.Sir Edward Wiliam Elgar (1857-1934): compositor ingls de msica orquestral, cuja obra, no final do sculo XIX, estimulou um renascimento da msica inglesa (EAGLETON, 2005, p. 160).

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cultura que no deve ser entendia como pronta e acabada, e sim como continuamente refeita e rediscutida pelos membros da sociedade. O conceito de cultura de Williams aponta que a diversidade da cultura comum est no resultado do envolvimento de toda a sociedade. Ao tratar da questo da educao, o autor demonstra a impossibilidade da existncia de um conhecimento nico, puro, e argumenta que todo o sistema educacional refletir o contedo de uma sociedade; toda nfase na explorao e na descoberta dever decorrer de uma nfase na necessidade comum (1969, p. 343). Para Eliot, diferentemente de Williams, uma cultura comum mesmo quando dirigida por uma minoria, como argumenta:

O que propus no uma defesa da aristocracia uma nfase sobre a importncia de um rgo da sociedade. antes um apelo em favor de uma forma de sociedade na qual uma aristocracia teria uma funo peculiar e essencial, to peculiar e essencial quanto a funo de qualquer outra parte da sociedade. O que importante uma estrutura da sociedade na qual haver, do topo base, uma gradao contnua de nveis culturais, importante lembrar que no deveramos considerar os nveis superiores como possudores de mais culturas do que os inferiores, mas como representantes de uma cultura mais consciente e de uma maior especializao de cultura (ELIOT, 1988, p. 64).

Eliot esclarece, portanto, que nem todos podero participar da construo da cultura, para ele, a cultura pode ser comum em contedo, mas no em sua construo, que deve ser assumida por aqueles possuidores de uma cultura consciente, especializada. Tomando o ponto de vista de Eliot para examinar o conceito central da presente investigao a cultura caipira pode-se compreender que ela estaria na base da pirmide, dado que por muito tempo foi (e ainda , por alguns setores) considerada subcultura. Essa posio ajudaria a explicar por que, no meio escolar, as msicas de raiz, ou caipiras, acabam sendo excludas, seja pelo professor, pelo aluno, ou pelos materiais didticos que, nessa perspectiva, deveriam contemplar os elementos da cultura de maior grau.

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Em outra direo, tomar o conceito de cultura de Williams permitir, aqui, compreender novas possibilidades de relacionar a educao, a escola e a msica caipira com um processo de construo de significados compartilhados, de desenvolvimento coletivo, buscando o entendimento da cultura brasileira como um conjunto que inclui letras de canes caipiras, que traduzam parte da memria da histria do Brasil, lembrada e esquecida, ou relegada ao esquecimento.

1.2. CULTURA BRASILEIRA E A CONSTRUO DA CULTURA DO CAIPIRA

No Brasil, pouco antes das discusses que ocorreram na Inglaterra sobre os estudos culturais, j havia uma preocupao em apontar algumas consideraes sobre a formao e a cultura do povo brasileiro, com algumas diferenciaes. Enquanto no Brasil surgia uma intelectualidade pautada no atendimento a uma classe mdia em ascenso, como o caso da fundao da Universidade de So Paulo - 1934 (USP), que atendia naquele momento a um projeto modernizador da elite paulista, na Inglaterra o surgimento dos estudos da cultura atendia aos trabalhadores marginalizados e empobrecidos do segundo ps-guerra, como o caso da WEA. Isto, claro, no impedia que no Brasil tambm se formasse uma estrutura que tivesse a preocupao de analisar, sob a tica da cultura, o seu tempo, interpretando ou re-interpretando o Brasil e a realidade nacional que entraria, a partir da dcada de 1930, num processo acelerado de industrializao das cidades, conduzindo um pas predominantemente rural a uma nova realidade urbana e de modernizao. Essa produo intelectual em formao no Brasil, a partir da dcada de 1930, tinha como princpio fazer a interpretao da realidade nacional brasileira a partir da crtica da sociedade pela cultura, a exemplo do que a New Left inglesa faria a partir de 1950. Antonio Candido lembra que:

Os homens que esto hoje um pouco para c ou um pouco para l dos cinqenta anos aprenderam a refletir e a se interessar pelo Brasil, sobretudo em termos de passado e em funo de trs livros: Casa Grande e Senzala, de

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Gilberto Freire, publicado quando estvamos no ginsio; Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda, publicado quando estvamos no curso complementar; Formao do Brasil Contemporneo, de Caio Prado Jnior, publicado quando estvamos na Escola Superior (HOLANDA, 1997, p. 9).

Para Antonio Cndido, essas obras tiveram o mrito de explicar o Brasil numa perspectiva de mudanas, pois (...) traziam a denncia do preconceito de raa, a valorizao do elemento de cor, a crtica dos fundamentos patriarcais e agrrios, o discernimento das condies econmicas, a desmistificao da retrica liberal (HOLANDA, 1997, p. 11). As obras citadas por Antonio Cndido so, de maneiras distintas, trabalhos de recuperao de uma identidade cultural brasileira que at aquele momento havia sido construda sob a marca da cultura de uma elite agrria. A obra de Freyre teve como referncia a discusso acerca do modo de vida da colnia, a cultura presente na vida do senhor patriarcal, mas, sobretudo a importncia do escravo na formao do povo brasileiro, evidenciando aspectos antropolgicos da sociedade brasileira em construo. Em Razes do Brasil, Srgio Buarque de Holanda constri uma viso dialtica de momentos histricos distintos, que se entrecruzam de maneira a entender a estrutura poltica brasileira, a herana, as razes, como lembra o prprio ttulo. Sem deixar de lado a estrutura social, o autor remete a um mundo em transformao, destacando as origens rurais e a formao de um mundo oposto quela sociedade rstica, atrasada para os moldes de uma urbanidade em formao, sobretudo a partir dos captulos Herana rural e O semeador e o ladrilhador em que Holanda analisa a transio da escravido j em crise e a formao de uma mentalidade urbana que significava aquilo que existia de mais moderno. Essa relao rural/urbana era muito caracterstica at meados do sculo XX quando a industrializao brasileira passou a atrair o homem rural para os grandes centros urbanos. Verifica-se, ento, um reajuste da cultura rural frente urbana, na qual a primeira obrigatoriamente passou a aceitar as condies impostas pela segunda, gerando uma dicotomia ainda presente no Brasil atual e para a qual Holanda j

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chamava a ateno argumentando que o malogro comercial de um Mau6 tambm indcio eloqente da radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de naes socialmente mais avanadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre ns por uma tradio de origens seculares (HOLANDA, 1997, p. 79). Portanto, a tentativa de modernidade instalada com a urbanizao sempre acabava esbarrando nas origens rurais, rsticas da populao brasileira, desde o prolongamento do patriarcalismo poltico at o encontro de culturas, como afirma Holanda: No Brasil colonial, entretanto, as terras dedicadas lavoura eram moradia habitual dos grandes. S afluam eles aos centros urbanos a fim de assistirem aos festejos e solenidades. Nas cidades apenas residiam alguns funcionrios da administrao, oficiais mecnicos e mercadores em geral (HOLANDA, 1997, p. 79). Em Formao do Brasil Contemporneo, Caio Prado Jnior faz uma interpretao do passado, em forma de um grande manual, dividindo a Histria do Brasil em trs grandes blocos: Povoamento; Vida Material e Vida Social. Prope-se a fazer, por intermdio de uma perspectiva do materialismo histrico, uma interpretao dos elementos constitutivos da nossa nacionalidade ao longo dos anos e que desembocava no Brasil Contemporneo. Como ele prprio afirma: O Brasil contemporneo se define assim: o passado colonial que se balanceia e encerra com o sculo XVIII, mas as transformaes que se sucederam no decorrer do centnio anterior a este e no atual. Naquele passado se constituram os fundamentos da nacionalidade (...) (PRADO JUNIOR, 1969, p. 10). O autor justifica ainda que alguns traos do passado colonial brasileiro se faziam presentes naquele momento: no terreno econmico, por exemplo, pode-se dizer que o trabalho livre no se organizou ainda interiormente em todo o pas (PRADO JUNIOR, 1969, p. 10). Mas o autor alarga sua viso para o plano social da vida brasileira contempornea, e esta que por hora interessa na constituio da pesquisa, argumentando que no terreno social ainda tnhamos fortes laos com o passado, sobretudo com o passado rural da populao brasileira.6

Irineu Evangelista de Souza, o Baro de Mau.

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Salvo em alguns setores do pas, ainda conservam nossas relaes sociais, em particular as de classe, um acentuado cunho colonial. Entre outros casos, estas diferenas profundas que cindem a populao rural entre ns em categorias largamente dspares; disparidade que no apenas no nvel material de vida, j inteiramente desproporcionado, mas sobretudo no estatuto moral respectivo de uma e outras e que projeta inteiramente para o passado (PRADO, 1969, p. 11).

Para aprofundar o debate sobre questes como essas levantadas pelos trs autores, surgiria no Brasil uma nova gerao de pensadores, preocupados com possibilidades que levassem compreenso da histria das pessoas comuns a partir de uma perspectiva marxista, como indica Roberto Schwarz: (...) De modo geral escolheram assunto brasileiro, alinhados com a opo pelos de baixo que era prpria escola7, onde se desenvolviam pesquisas sobre o negro, o caipira, o imigrante, o folclore, a religio popular (SCHWARZ, 1999, p. 93). De certa forma esses temas eram problematizados e explorados enquanto experincias histricas, cuja existncia era at ento ignorada ou sumariamente mencionada. De forma semelhante, Thompson chama a ateno quando da realizao de seus estudos sobre a formao da classe operria na Inglaterra: estou procurando resgatar o pobre descalo, o agricultor ultrapassado, o tecelo do tear manual obsoleto o arteso utopista e at os seguidores enganados de Joanna Southcott8, da enorme condescendncia da posteridade (BURKE, 1992, p.p. 41-42). Fica evidente que a proposta desses autores a de fazer uma leitura cultural das classes menos favorecidas, buscando a construo e valorizao de uma identidade coletiva, comum, nos moldes defendidos por Williams. As implicaes surgidas a partir desses estudos so numerosas, mas o que interessa aqui a construo de fundamentos para compreender a forma pela qualRoberto Schawrz faz aqui referncia aos estudantes e professores da USP Universidade de So Paulo. Em 1814, na Inglaterra, uma senhora de 64 anos, chamada Joanna Southcott, anunciou que estava grvida do Esprito Santo e daria luz, no dia 19 de outubro de 1814, a uma criana divina de nome Shiloh, que seria segundo a prpria Joanna, o segundo Messias. Com essa e outras profecias, Joanna exerceu forte influncia na populao inglesa mais humilde e sobretudo na classe operria inglesa que via em suas profecias a salvao para seus anseios por dias melhores. Para Thompson A maior parte das profecias de Joanna no contm mais do que um esprito apocalptico, e augrios de catstrofes to vagos que poderiam ser facilmente aplicados s crises e sublevaes da Europa napolenica, tendo o prprio Bonaparte como representao da BESTA. (THOMPSON, 1998, p. 267).8 7

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esses grupos foram interpretados no universo escolar e, em especial, no que diz respeito cano brasileira de raiz, especialmente a msica popular rural conhecida como msica caipira que, ao longo de sua histria, cantou e contou as transformaes pelas quais passaram o caipira e o discurso produzido a seu respeito. A chegada dos bandeirantes ao Brasil a partir do sculo XVI marcaria no s um novo ciclo de dominao e descobertas, mas tambm a formao de uma nova cultura, a caipira. Na medida em que os bandeirantes avanavam rumo ao interior do Brasil, criava-se uma fronteira entre dois mundos distintos, o civilizado, representado pelos descendentes brancos, e o atrasado, representado pelo nativo. Da mistura entre esses dois mundos surgia o caipira, mescla de branco e ndio com pouco de sangue negro (SOUZA, 2001, p. 106). A partir dessa ocupao, outras reas foram surgindo, como as vilas, fazendas e arraiais. O universo desse homem simples, cercado pela misria que as condies lhe impunha, no crescia na mesma velocidade que outras localidades. O homem caipira mantinha-se portador de peculiaridades marcantes como a religiosidade, literatura, comida, dana e a msica esta ltima de interesse especfico para a investigao desenvolvida. A msica, segundo Jos de Souza Martins, estava sempre associada a rituais religiosos, ao trabalho ou lazer, demonstrando dessa forma o universo em que viviam os primeiros caipiras, que tinham nesse trip o elo de sua sociabilidade com o mundo exterior. Um outro aspecto que no pode deixar de ser enfatizado: o homem caipira, ao longo do perodo colonial (e hoje, no sculo XXI), sempre foi marcado por significados negativos: homem atrasado, despido de uma cultura clssica. Seu primeiro espao social, o serto, tambm era visto como espao vazio, atrasado, terra de variados tipos como os criminosos, os degredados e, s vezes, espao de moradia de prprio demnio (SOUZA, 1986, p. 59). A cultura caipira foi ento, ao longo dos sculos, considerada como uma cultura rstica, sem valor social. Para se compreender melhor essa construo da idia de cultura caipira, preciso relembrar o trabalho de Monteiro Lobato. Reconhecido como editor e figura

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fundamental na implantao do mercado editorial brasileiro, Lobato, ao longo de sua carreira participou de vrios debates sobre a construo da sociedade brasileira, aprofundando um discurso que se tornaria a pea chave para o entendimento do carter do povo brasileiro ao construir uma figura negativa do homem rural, presente na personagem de Jeca Tatu. Jeca Tatu tornou-se um smbolo negativo de um tipo humano presente no Brasil ps nascimento da Repblica: era um homem incapaz de realizar tarefas simples num mundo baseado no cientificismo. As origens do pensamento de Lobato podem ser explicadas a partir de sua prpria histria. Filho de um cafeicultor decadente do Estado de So Paulo, Jos Bento Marcondes Lobato, aps a morte de seu pai, foi morar com seu av paterno, homem rico e poderoso, Jos Francisco Monteiro, conhecido como Visconde de Trememb. Sua me, Olmpia Augusta Monteiro, era filha ilegtima, nascida de relaes extraconjugais do Visconde, reconhecida, porm como filha, assim como seus netos. Lobato herdaria, portanto, essa aristocracia de seu av, assim como a possibilidade de tambm ele se tornar um fazendeiro. Inicialmente, teve que seguir a carreira escolhida por seu av: estudar Direito, tornar-se um promotor de Justia, trajetria que mais tarde seria abandonada. nesse momento que ele comea a trabalhar com a possibilidade de se tornar um grande fazendeiro nos moldes do modernismo nascente. A idia fracassa, mas, a que Lobato tem seu primeiro contato com a origem de seu principal personagem o caboclo de onde originaria Jeca Tatu, raa inferior para os padres da sociedade urbanizada em ascenso no incio do sculo XX. Uma das culpas pelo seu fracasso em se tornar um grande fazendeiro foi a falta de mo-de-obra qualificada, o que para Lobato estava presente na figura do caboclo, j que essa raa era desprovida de inteligncia em todos os sentidos e que s vivia naquelas condies devido sua prpria culpa. Em 1914 publicou no jornal O Estado de So Paulo o conto Velha Praga9, no qual combatia as prticas dos caboclos, criticando-os, quando esses queimavam a

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Conto que daria origem a uma publicao posterior: Urups.

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mata para o plantio, prtica contestada e combatida pelos fazendeiros mais modernos da poca. No artigo Urups10, Lobato descreve o Jeca como um indivduo ignorante, sem conhecimentos de leitura e escrita, como se v no trecho a seguir:

O sentimento de ptria lhe desconhecido. No tem sequer a noo do pas em que vive. Sabe que o mundo grande, que h sempre terras para diante, que muito longe est a Corte com os grados e mais distante ainda a Bahia, donde vm baianos pernsticos e cocos. [...] Vota. No sabe em quem, mas vota. Esfrega a pena no livro eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos a que chama sua graa.[...] O fato mais importante de sua vida sem dvida votar no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento, sarjo furadinho de traa e todo vincado de dobras; entala os ps num alentado sapato de bezerro (...) vai pegar o diploma de eleitor s mos do chefe Coisada, que lhe retm para maior garantia da fidelidade partidria (LOBATO, 2005, p. 172).

Lobato utiliza-se, ento, da Literatura para destruir seu maior inimigo, o caboclo. Em outra passagem, realiza comparaes com aquilo que belo na natureza e apresenta o Jeca como o destruidor dessa:No meio da natureza braslica, to rica de formas e cores, onde os ips floridos derramam feirios no ambiente e nas infolhescncias dos cedros, s primeiras chuvas de setembro, abre a dana dos tangars; onde h abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras, sabis, luz, cor, perfume, vida dionisaca em escacho permanente, o caboclo o sombrio urup de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas. S ele no fala, no canta, no ri, no ama. S ele, no meio de tanta vida, no vive... ( LOBATO, 1956, p. 289).

Ao longo dos anos, a personagem de Jeca Tatu passaria de ru a vtima do sistema governamental. O Estado brasileiro, para Lobato, o verdadeiro culpado pela m condio em que vivia o homem do campo, sobretudo no que se refere higiene. De certa forma, o autor inicia sua redeno, passando a tratar a figura do Jeca Tatu como um ser doente e necessitado de tratamento. Pode-se dizer que o Jeca no assim, ele est assim.

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Um tipo de fungo conhecido como orelha de pau encontrado em madeira em decomposio.

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mister curando-o, valorizar o homem da terra, largado at aqui no mais criminoso abandono. Cur-lo criar riqueza (...). Nossa gente rural possui timas qualidades de resistncia e adaptao boa parte ndole, meiga e dcil. O pobre caipira positivamente um homem como o italiano, o portugus, o espanhol. Mas um homem em estado latente. Possui dentro de si grande riqueza de foras. Mas fora em estado de possibilidade (LOBATO, 1951, p. 285-285).

Jeca Tatu entra num processo de ressurreio. Com a chegada de frades franceses ao Brasil, esses comearam um trabalho de busca de braos para a lavoura, dado que o 13 de maio de 188811 havia afastado das fazendas a mo-de-obra escrava. Os grandes fazendeiros buscavam em vo colonos. A nica opo era apelar para a mo-obra dos ribeirinhos, mas essa opo j de incio estava fadada a no dar certo, pois, Parasitas do rio e da leziria, olhavam as fazendas com horror, e da, na boca dos fazendeiros, a sua m fama de indolentes. Indolentes e ruins, incapazes, restolho de gente, lesmes humanos. Era unnime esta opinio na lavoura circunjacente, cada em modorra por falta de braos (LOBATO, 1984, p. 282). Segundo o autor, esses frades procederam a uma busca de converter o caipira com fama de preguioso em um homem apto para o trabalho:Em vez, porm, de tom-lo como o encontravam, alquebrado pela m alimentao, pela m habitao, rodo pelo ancilstomo exhaustivo, e p-lo na enxada com o feitor atrs, tiveram a luminosa idia de proceder s avessas: primeiro atucharam-lhe fibra com alimentao abundante; depois abrigaram-no em casas higinicas construdas em lugares secos e os curavam nos limites do possvel. Resultado: Uma ressurreio 12 ( LOBATO, 1951, p. 283).

O que se debatia nesse momento, no Brasil, eram os problemas referentes degenerao do carter do povo brasileiro em funo da miscigenao, e um dos fatores apontados para tal questo era a falta de higiene e a m alimentao, seguidos da ao da sfilis. Participa tambm desse debate Gilberto Freyre, que sai em defesa dos pontos positivos da miscigenao do povo brasileiro, contrapondo-se idia de que a degenerao deste encontrava-se nos fatores apontados por Lobato.

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Data em que a Princesa Isabel assina a Lei urea. Grifo meu.

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Corria a dcada de 1930, o Brasil entrava no perodo conhecido como Era Getulista e Lobato, ao regressar dos Estados Unidos em princpio de 1931 (deixara o Brasil em 1927 para ser adido comercial em Nova York), dizia que certas revolues resolvem, sabemos. Mas que no melhoram o material revolvido, ficamos sabendo. E acrescentava: Creio que hoje h por aqui mais tristeza, mais desespero resignado, porque andamos todos a sentir que a grande coisa para a qual sempre apelamos veio mas falhou. E se falhou, para que mais apelar? (CAVALHEIRO, 1955, p. 379). Em 1947, Lobato d ao Jeca sua verso final: o Z Brasil. Havia se aproximado do Partido Comunista Brasileiro e isso fez com que passasse a creditar os males do pas e de sua gente concentrao de terras e ao coronelismo, para ele os grandes causadores da pobreza do homem do campo, representado pelo Jeca Tatu, agora metamorfoseado em Z Brasil, pequeno proprietrio que sofria presso dos grandes latifundirios para vender suas terras e se dirigir para a cidade, pois ali no mais havia garantia de sobrevivncia. Nos dias atuais a cultura caipira sobrevive no imaginrio nacional, sobretudo em letras de msicas, quase sempre produzidas pelo homem urbano. Essa msica procurou ao longo dos anos se desfazer das imagens negativas do Jeca Tatu e traduzir para o imaginrio coletivo um Brasil rural cheio de histrias e virtudes.

1.3 MSICA CAIPIRA E MSICA SERTANEJA: ALGUMAS CONSIDERAES

Para se compreender a msica caipira, como elemento da cultura nacional, preciso relembrar que na dcada de 192013, surgem no Brasil estudos de resgate dessa cultura, denominada popular, e novas discusses so travadas na direo de se opor passado e presente, a msica passando a ser entendida como uma das formas de resgate do passado. Foi a partir dessa dcada que surgiram as primeiras canes caipiras gravadas em disco como a clebre Tristezas do Jeca, composta porA Semana de Arte Moderna de 1922 apontava para a necessidade de construo e consolidao de uma identidade nacional. O modernista Mario de Andrade buscava nas culturas populares rurais os elementos constitutivos de uma autntica msica brasileira.13

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Angelino de Oliveira em 1918 e gravada em 1923. Mas ser com Cornlio Pires e sua Turma que esse gnero musical entrar na indstria cultural. Cornlio passou a se apresentar pelo interior paulista fazendo shows, gravando seu primeiro disco em 1929. Como o gnero ainda era desconhecido, tirou dinheiro do prprio bolso, acreditando no sucesso que estava por vir (CALDAS, 1977, p. 4-5). Em 1931 apresentou um show no Teatro Municipal de So Paulo alcanando o que desejava, ou seja, o reconhecimento do pblico. Esse um momento relevante para a histria da msica caipira, pois foi a partir da que as canes caipiras passaram a ser industrializadas, entraram para o universo da cano de massa. Esse momento marca a transio da msica caipira (cantada pelo homem do campo) e a sertaneja, feita na cidade para o migrante caipira urbanizado. Grandes mudanas passam a ocorrer na composio das letras; as temticas que antes tratavam de ritos religiosos, canes de trabalho, ciclos da lavoura, passam agora a tratar do amor, da nostalgia (canes de exlio). Como afirma Jos de Souza Martins ... o esforo que o agente faz para reconstituir seu universo simblico no prprio contexto urbano, apropriando-se positivamente de determinadas mensagens culturais que, embora produzidas na cidade, recorrem a modos rsticos de estruturao da experincia (MARTINS, 1974, p. 34). Essa cultura rstica levada ao homem urbano atravs dos programas de rdio das grandes cidades, influenciando compositores urbanos como Noel Rosa (Festa no Cu, Minha Viola, Mardade Cabocla) Ary Barroso (Rancho fundo) e Lamartine Babo (Serra da Boa Esperana), que s mais tarde se tornariam sambistas. Mas, se o homem do campo migrou para a cidade, a que classe passa a pertencer? Dada a grande migrao gerada a partir de 1950, conhecido como perodo desenvolvimentista, esses homens passam a fazer parte dos segmentos da classe operria, entretanto sem esquecer o passado, como relata a narrativa da cano a seguir:

s eu pega na viola, me vem a recordao: o tempo do meu sitinho, que tudo era bom, ai...

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que tudo era bom. (...) Eu tinha vaca de leite e porco no chiqueiro. Tinha dois burro no pasto E lindo potro lazo, ai... E lindo potro lazo. (...) Depois tudo se acab. Tive um grande prejuizo. Viero os gafanhoto, me dexaro eu na mo, ai... me dexaro eu na mo. Hoje eu me vejo em So Paulo, nessa rica povoao, trabaiando de operrio sendo que j fui patro, ai... sendo que j fui patro.14

Verifica-se, portanto um reajuste da cultura rural frente urbana, na qual a primeira obrigatoriamente passa a aceitar as condies impostas pela segunda. Mas o caipira jamais esqueceria sua origem e, um dos instrumentos utilizados para tal fim foi a msica, como afirmado por Roger Bastide:

Os camponeses que foram atrados pelos salrios altos (...) trouxeram consigo a civilizao rural, a qual, porm no subsiste alm da primeira gerao, obrigando-os a adotar uma esttica nova. No entanto, como no possuem a cultura necessria para criar para si verdadeiros valores, adotam padres urbanos de seu novo meio, enfraquecendo-os atravs de seu uso pessoal. assim que a poesia toma entre eles a forma de cano (BASTIDE, 1971, p. 121-122).

preciso destacar, no contexto da preservao de valores culturais, o surgimento de um novo gnero dentro da msica caipira, conhecido como Tupiana, iniciado em 1958 por Alcides Felismino de Souza (Non Baslio) e Mrio Zan. Esse gnero tinha como objetivo criar um ritmo essencialmente brasileiro visto que, segundo os autores, o Brasil vinha recebendo uma macia carga de ritmos estrangeiros, denominados por eles de aliengenas, os quais prejudicavam a msica regional

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Sodade do tempo vio, de Sorocabinha, com Mandy e Sorocabinha.

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brasileira - essas msicas aliengenas na verdade eram rasqueados e guarnias do Paraguai que a cada dia ganhavam mais fora no Brasil urbano e rural. Objetivando, portanto, barrar essa influncia, os compositores iniciaram um movimento como descreve o trecho da reportagem a seguir:

Acaba de ser apresentado ao pblico um novo gnero musical que , por assim dizer, a procura de um ritmo mais genuinamente brasileiro que o rasqueado j que este possui razes na guarnia paraguaia - no fundo, parecer-se, em sua estrutura, com o andamento da discutida controversa manifestao musical: a tupiana (...) criao de Non Baslio e Maro Zan, surgiu como coroamento de trabalhosa pesquisa realizada pelos dois conhecidos compositores que procuraram oferecer ao pblico uma nova forma de sabor quase indgena (SOUZA, 1958, p. 4).

O novo gnero, entretanto, no teve repercusso e o movimento acabou por produzir apenas trs canes no ritmo tupi: Alvorada Tupi, Linda Forasteira e Manakiriki. 15 Mais tarde, em 1970, um novo movimento surgiria, agora pelas mos de um maestro que foi um dos pioneiros do movimento Tropiclia no Brasil, Rogrio Duprat, que financiado pela Companhia Rhodia pretendia lanar a moda country em uma feira denominada FENIT do ano seguinte. Para Waldenyr Caldas, essa tentativa de se criar uma nova esttica para a msica caipira se deu a partir de uma crise que permeava a msica popular brasileira antes mesmo de 1970: Foi um momento em que nossa msica atravessou uma crise no apenas de consumo no mercado, mas tambm de produo e qualidade (CALDAS, 1977, p. 46). A tentativa de se criar uma nova esttica para a msica caipira ficou conhecida como Nh Look e teve ainda a participao da cantora Rita Lee e da dupla Tonico e Tinoco. A tentativa de Duprat em incorporar a country music no Brasil tambm fracassou. Dessa forma, ao longo da histria, a msica caipira perderia seu elemento resistente e rude com a total fuso da indstria cultural aos valores rurais16.

SILVESTRINI. Bernardino V, ZAN. Mario. SANTOS. Elpdio dos. Nova Flor. So Paulo: phonodisc, 1958. 1 disco (36 min): 33 rpm, microssulco, estreo. 0-34-405-404. 16 Se vista numa perspectiva de duplas que viriam aps esse momento mesclariam elementos da cultura dos Estados Unidos da Amrica msica brasileira, como o caso da dupla Lo Canhoto e Robertinho.

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Carregada de uma identidade prpria, a msica caipira enquanto linguagem traz uma proposta de conhecimento de uma cultura que ao longo da histria foi sendo definida como uma subcultura. No entanto, essa linguagem pode ser utilizada como formadora de um novo conceito a respeito da cultura caipira e do caipira, sendo capaz de destruir alguns mitos de que esta cultura pertena a uma subcultura da cultura brasileira. No sentido de se caminhar na direo desse novo conceito, uma primeira questo deve ser discutida: e que diz respeito s distines entre a msica caipira e a msica sertaneja: a primeira foi produzida dentro de um contexto verdadeiramente rural e o texto da cano fortemente marcado por assuntos desse cotidiano. No discurso dos cantadores caipiras est sempre presente uma mensagem que os identifica enquanto comunidade, o que torna difcil para quem no pertence a seu universo entender sua mensagem, nos versos que dizem respeito a fatos ocorridos num determinado local, e relacionados natureza, s estaes do ano, ao gado, chuva, s aves ou s festas, exaltando a amizade entre os companheiros, serenatas para os futuros noivos, entre outros temas. O gnero fortemente marcado pela religiosidade. Numa entrevista concedida ao SESC So Paulo17, os cantores Tonico e Tinoco lembram o motivo de terem construdo uma capela na Vila Diva (So Paulo) em 1960.

(...) TINOCO: O Tonico foi operado... que ano foi? TONICO: Em 60?! ... TINOCO: Em 60!... TINOCO: Ento o Tonico ficou afastado... Trs anos e meio... ele ficou... uma grande operao que ele sofreu e fizeram uma promessa... Alis, fizemo no... Eu pedi na Rdio Nacionar, pedi... que o Tonico tava muito ruim que fizesse uma promessa para ele e todos fez promessa para Nossa Senhora Aparecida e foi da que ns construmos a igrejinha em homenagem a Nossa Senhora Aparecida. No puxamo o tero porque nis tambm no tem tempo, mas, tem uns conterrneo da Vila Prudente que todo 2 domingo do ms eles vo l... E depois nis gravemo tambm Aparecida do Norte, foi a primeira msica religiosa que foi gravada em dupla caipira. TINOCO: Voc lembra um versinho dela?17

Entrevista concedida ao programa MPB Especial, da TV Cultura de So Paulo, em 1973.

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TONICO: Lembro! TINOCO: Vo v se nis lembra TONICO: Como a pontiadinha? MSICA: J cumpri minha promessa na Aparecida do Norte E graas a Nossa Senhora no lastimo mais a sorte Falo com f No lastimo mais a sorte J cumpri minha promessa na Aparecida do Norte Eu subi toda a ladeira Sem carncia de transporte E beijei o p da Santa, da Aparecida do Norte Falo com f da Aparecida do Norte E subi toda a ladeira sem carncia de transporte18 TINOCO: Cumprimo a promessa e gravamo o disco e o Tonico t mais forte do que primeiro, graas a Deus. ...

Um outro aspecto importante e que diferencia a msica caipira da sertaneja que a primeira sempre acompanhada de coreografia, como o fandango, cururu, cateret, cana-verde, dana de So Gonalo etc. Jos de Souza Martins escrevendo a esse respeito argumenta:O cntico vem associado dana: canta-se para danar, como no cateret, alis, dana masculina a que as mulheres apenas assistem originalmente dana religiosa. Por isso, talvez, a msica caipira seja mais rtmica do que meldica, tornando-se montona quando o canto separado da dana (MARTINS, 1975, p. 112 ).

Outra referncia msica caipira, e esta, talvez, seja um elemento comum com a msica sertaneja sua rea geogrfica, que compreende re