Dissertação - Poliana Oliveira - Narrativas Digitais - Um Passeio Pelo Universo Das Obras...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS Poliana Barbosa Martins de Oliveira NARRATIVAS DIGITAIS: UM PASSEIO PELO UNIVERSO DAS OBRAS MULTIMÍDIA Recife, 2012

Transcript of Dissertação - Poliana Oliveira - Narrativas Digitais - Um Passeio Pelo Universo Das Obras...

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    Poliana Barbosa Martins de Oliveira

    NARRATIVAS DIGITAIS: UM PASSEIO PELO UNIVERSO DAS

    OBRAS MULTIMDIA

    Recife, 2012

  • Poliana Barbosa Martins de Oliveira

    NARRATIVAS DIGITAIS: UM PASSEIO PELO UNIVERSO DAS

    OBRAS MULTIMDIA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Teoria da Literatura.

    Orientadora: Prof. Dra. Ermelinda Ferreira

    Recife, 2012

  • Catalogao na fonte Bibliotecria Glucia Cndida da Silva, CRB4-1662

    O48n Oliveira, Poliana Barbosa Martins de. Narrativas digitais: um passeios pelo universo das obras multimdia / Poliana Barbosa Martins de Oliveira. Recife: O autor, 2012.

    114 f. : il. ; 30 cm.

    Orientador: Ermelinda Ferreira. Dissertao (Mestrado) Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Letras, 2012.

    Inclui bibliografia.

    1. Literatura. 2. Literatura eletrnica. 3. Sistemas hipertextos. 4. Multimdia interativa. I. Ferreira, Ermelinda. (Orientador). II. Titulo.

    809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC2012-34)

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente a Deus, por dar sentido a tudo. Ao CNPq, pela bolsa de estudos, que me permitiu dedicao exclusiva pesquisa. A todos os professores e funcionrios do PPGL, em especial professora Ermelinda Ferreira, pela dedicao que sempre teve ao me orientar, por ter compartilhado tantos anos no exerccio de um aprendizado constante e pela coragem de trilhar novos rumos, sempre.

    s professoras Dilma Luciano e Evandra Grigoletto por aceitarem o convite para estar novamente na banca para a defesa de mais uma etapa deste trabalho, que se iniciou na minha graduao.

    minha famlia, pela compreenso em todos os momentos em que precisei estar ausente; e em especial quela que entende a minha alma, Lady Laura, por sua luz e por seu amor incondicional.

    Aos amigos, pelos belos momentos de vida.

    A Lucas, pelo amor, pelo refgio, pela vida, por tudo.

  • RESUMO

    O universo das narrativas digitais multimdia tem se expandido e consolidado tanto dentro como fora das academias. Diversos grupos de autores e pesquisadores tm se reunido com o intuito de fomentar as discusses sobre o fenmeno, bem como de divulgar as obras e pensar estratgias que tornem os projetos de criao economicamente viveis. Ao mesmo tempo, o aprimoramento dos recursos tecnolgicos utilizados na composio destas narrativas faz com que elas adquiram, cada vez mais, feies de jogo, e proporciona uma maior imersividade do leitor na obra. Este trabalho tem por intuito: apresentar um panorama do universo das narrativas digitais, atravs da exposio dessas novas estratgias de criao e divulgao das obras; e examinar como o elemento jogo, que j permeava as composies da literatura experimental impressa tem se incorporado s narrativas digitais com o uso de recursos multimdia.

    PALAVRAS-CHAVE: Narrativas digitais; Literatura eletrnica; Narrativas multimdia; Inanimate Alice; Ludologia.

  • ABSTRACT:

    The universe of multimedia digital storytelling has expanded and consolidated both within and outside the universities. In recent years, several groups of authors and researchers have gathered in order to foster discussions about the phenomenon, to disseminate the works and think about strategies that can make the creative projects economically viable. At the same time, the improvement of the technological resources used in the composition of these narratives makes them acquire more and more game features, and provides greater immersiveness of the reader. The objective of this work is: to provide an overview of the universe of digital narratives by exposing these new strategies for the creation and dissemination of works and to examine how the element "game" that has permeated the compositions of the print experimental literature has been incorporated into the digital storytelling with the use of multimedia.

    KEY-WORDS: Digital narratives; Electronic literature; Multimedia narratives; Inanimate Alice; Ludology.

  • SUMRIO

    Introduo.................................................................................................................... 1

    1. A arte de contar histrias hoje e o mercado editorial digital........................... 4

    1.1. O fim do livro e o livro sem fim.................................................................... 4

    1.2.As estratgias de divulgao das obras e o mercado editorial digital....... 10

    1.2.1. ELO - Electronic Literature Organization ........................................ 12

    1.2.2. Concursos e eventos de cunho acadmico........................................... 16

    1.2.3. Coletneas e sites de divulgao: Web Yarns e Dreaming Methods................................................................................................ 18

    1.2.4. Booktrack: uma aposta no mercado.................................................... 25

    2. O homo ludens e as interfaces narrativas........................................................................................................... 28

    2.1.O jogo e a narrativa experimental impressa............................................ 29

    2.1.1. Estruturas experimentais e narrativas hipertextuais eletrnicas............. 41

    2.2.O game e a narrativa digital.......................................................................58

    2.2.1. Games precursores/geradores de narrativas digitais (RPG presencial; RPG online; The Sims; Second Life) ......................... 59

    2.2.2. Game, Play, Paidea e Ludus (o caso Faade)................................................................................................ 69

    2.2.3. O conceito de Avatar.......................................................................... 75

    3. Estudo de caso: a obra Inanimate Alice.............................................................. 88

    Consideraes Finais..................................................................................................101

    Bibliografia..................................................................................................................103

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    INTRODUO

    Quando a expresso literatura digital surge em algum debate acadmico, geralmente est designando textos narrativos com uma estrutura hipertextual, ou seja, uma obra literria formada por blocos de textos que se relacionam entre si e que se comunicam, ou se ligam, atravs de hyperlinks, de termos que levam a outros fragmentos de narrativa atravs do clique do mouse. Muitas vezes, inclusive, a expresso utilizada para designar textos que foram digitalizados, transpostos do formato impresso, no qual foram originalmente concebidos, para o meio eletrnico e disponibilizados atravs de arquivos no formato PDF ou mesmo como um ebook, para serem lidos no computador ou em algum dispositivo porttil, como o Kindle. Na verdade, as duas acepes mencionadas tangenciam o tipo de obras sobre o qual iremos nos debruar a fim de melhor compreendermos as recentes manifestaes artsticas que vm ocorrendo no ambiente virtual, e principalmente na Web. So estas, obras que, sim, muitas vezes esto estruturadas nos moldes do hipertexto eletrnico e que podem ser lidas atravs de dispositivos mveis, mas que no encontram nessas caractersticas uma definio que corresponda sua natureza, a qual se mostra muito mais inovadora, alm de mais imersiva, e que apresenta recursos de interatividade e de multimdia.

    Essas narrativas ficcionais se constroem a partir da combinao de textos imagticos, sonoros e cinematogrficos que se entrelaam a outros textos escritos ou declamados. Devido ao alto potencial de imersividade apresentado nessas obras, o leitor experiencia novas formas de leitura, confundindo-se com o autor e com os personagens da trama que se desenvolve, medida que interage com os elementos do texto, modificando-o, criando novas possibilidades para o enredo, expandindo-o atravs de regras de funcionamento prprias de cada obra e atualizadas a partir de recursos eletrnicos do software que a comporta.

    Tais regras assemelham-se quelas presentes nos jogos, constrangindo o desenvolvimento da narrativa, mas criando textos potenciais, que podem ou no vir a ser realizados, dependendo de como leitor/jogador vier a interagir com esse elemento ldico. Seja criando uma fala para um personagem que tenta salvar o casamento de um casal amigo, como veremos na obra eletrnica Faade (2005), de Michael Mateas e Andrew Stern, seja realmente jogando um game inserido na narrativa de Inanimate Alice (2007), de Kate Pullinger, com intuito de salvar a personagem dos perigos que se lhe apresentam em diferentes cidades do mundo, o leitor convidado a imergir no universo da obra, muitas vezes emprestando ao personagem caractrsticas suas e compondo um avatar, atuando ativamente no desenvolvimento da narrativa.

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    Alguns dos elementos inovadores presentes nessas obras j eram anunciados, e mesmo concretizados, guardadas as devidas propores, em meio impresso, a partir dos estudos vanguardistas dos escritores experimentais, que j encontravam guarida nas idealizaes literrias de escritores como Mallarm, no sculo XIX, e que se intensificam a partir da segunda metade do sculo XX, sobretudo com o experimentalismo da literatura latino-americana e com os estudos do grupo europeu OuLiPo, Ouvroir de Littrature Potencielle, que uniam pesquisas matemticas a tcnicas de composio de obras literrias potenciais. Porm, muitas dessas ideias s puderam se realizar com o advento da informtica, com o suporte eletrnico, que comporta uma escrita imaterial, e com a programao dos softwares que permitem o uso de recursos multimdia.

    Para o desenvolvimento dessas obras nas quais os elementos acima mencionados se combinam, necessrio que se tenha o domnio da escrita da mquina, ou seja, necessrio que o entendimento acerca das tcnicas narrativas some-se ao entendimento acerca das tcnicas computacionais. Muitas vezes, a etapa do processo de produo relativa informtica desempenhada por um programador, ou por uma equipe maior que atua fazendo a correspondncia entre a proposta criativa dos autores e o suporte eletrnico da obra. Dessa forma, a facilidade de criao e divulgao trazida com o advento da internet passa a ser relativizada, se levarmos em conta a necessidade de desenvolvimento de ferramentas digitais e da participao de uma equipe multidisciplinar para a composio das narrativas eletrnicas.

    Muitos projetos criativos so financiados por seus prprios desenvolvedores, que disponibilizam gratuitamente as obras para o pblico leitor. Tal atitude condiz com o momento pelo qual a literatura digital est passando, de intensa divulgao por parte de autores e estudiosos do tema, que buscam fomentar a criao e as pesquisas acerca do fenmeno literrio em meio eletrnico, tanto atravs da disponibilizao dos recursos utilizados na composio tcnica das obras, quanto atravs de seminrios e workshops voltados para a construo de um conhecimento mais especfico sobre as formas de estruturao deste tipo de narrativa.

    Porm, j percebe-se que, assim como tem acontecido com as indstrias fonogrficas e cinematogrficas, o mercado editorial literrio comea a ensaiar novas formas de atuao, condizentes com a atual facilidade de acesso s obras por parte de um pblico familiarizado com as ferramentas de busca e de download dos artigos de seu interesse. Este mesmo pblico passa a ser convidado a tomar parte na construo das obras, financiando-as e ajudando na sua divulgao.

    Este trabalho tem por objetivo, portanto, apresentar essas inovaes prprias do universo das narrativas digitais, tanto no que diz respeito s estratgias de divulgao e de comercializao das obras, atravs de sites, de eventos acadmicos e de concursos; quanto no que se refere aos

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    elementos presentes na composio destas, tais como o seu aspecto ldico e o uso dos recursos multimdia.

    A pesquisa empreendida para tanto pesquisa esta realizada, sobretudo, em blogs e sites dedicados ao tema das escritas digitais -, bem como as consideraes por ns apresentadas tm como suporte terico estudos j consagrados como os da pesquisadora Katherine Hayles, Literatura eletrnica: novos horizontes para o literrio (2009) e How we became posthuman (1999); do filsofo da informao Pirre Levy, Cibercultura (1999); do importante terico dos jogos Johan Huizinga, Homo ludens (2008), dentre outros.

    Faremos, incialmente, uma apresentao acerca das estratgias de venda e divulgao das obras, elencando alguns importantes sites e coletneas, passando, a seguir, para as consideraes acerca do carter ldico que permeia as diversas formas de narrativas multimdia, e mostrando como o experimentalismo da literatura impressa de vanguarda potencializado com o advento da informtica e com a escrita em meio virtual. Por fim, apresentaremos um estudo de caso com Inanimate Alice (2007), obra emblemtica da literatura digital, com o qual poderemos aplicar algumas das consideraes levantadas ao longo trabalho, bem como exemplificar melhor alguns dos aspectos prprios das narrativas multimdia.

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    1. A arte de contar histrias hoje e o mercado editorial digital

    1.1. O fim do livro e o livro sem fim

    Mais do que falso problema, o debate sobre o suposto fim do livro impresso descarta a necessidade de compreender as transformaes nas experincias de leitura que se abrem com a digitalizao e sua potencialidade mais interessante: o fomento de uma cultura cbrida, em que se conectam redes on e off line, promotora e promovida pelo dilogo entre as mdias e seus repertrios.

    Giselle Beiguelman, O livro depois do livro

    O nmero de pginas deste livro exatamente infinito. Nenhuma a primeira; nenhuma a ltima. No sei por que esto numeradas desse modo arbitrrio, talvez para dar a entender que os termos de uma srie infinita admitem qualquer nmero. (...) chamava-se o livro de areia, porque nem o livro nem a areia tem princpio ou fim.

    Jorge Luis Borges, O livro de areia

    Os profetas apocalpticos que h dcadas anunciam o fim do livro esto se tornando definitivamente cansativos. A crescente familiaridade do pblico e a cada vez mais ampla acessibilidade aos meios digitais tm levado percepo de que o livro no ter um fim enquanto no se esgotar no ser humano a propenso narrativa: a necessidade de contar histrias. Isto ele continuar a fazer indefinidamente, por meio oral, escrito, impresso, digital, performtico e o que mais vier, atravs dos sons, das palavras, das imagens, dos gestos e de outras provocaes sensoriais, como forma de ativar a compreenso de sua passagem no mundo pela memria e de repass-la s novas geraes: seja organizando os fatos de sua vida privada, seja elencando os eventos histricos de seu tempo, seja projetando seus sonhos e esperanas no porvir. As histrias que ajudaram Sherazade a no morrer nas mil e uma noites do passado no diferem essencialmente daquelas que ajudam as crianas a adormecer nas mil e uma noites do presente... E tambm a acordar. Porque este o papel das histrias desde sempre: embalar o esprito, confortar o corao e iluminar a mente embora no necessariamente nessa ordem.

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    Figuras 1-4: A arte de contar histrias, ainda que tenha sofrido algumas alteraes, um ritual que se preserva em sua essncia, seja entre os povos primitivos ou nas culturas hodiernas, de Oriente a Ocidente.

    Figuras 5-6: O costume de ler histrias para adormecer as crianas atravessa as eras e as culturas.

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    O que pode estar ocorrendo, de fato, a transposio do suporte das histrias narradas em linguagem escrita para outros ambientes mais compatveis com as configuraes relacionais de um mundo no qual a mquina passa a desempenhar um papel fundamental. O que no constitui novidade, na opinio de tantos estudiosos do assunto, como Roger Chartier1, Umberto Eco2, Maurice Blanchot3, entre outros, que j se pronunciaram exaustivamente sobre a migrao das narrativas atravs dos mais diversos suportes ao longo da histria da cultura: desde as inscries nas cavernas e nas pedras, passando para as peles dos animais usadas na confeco do papiro e do pergaminho, at chegar pele das rvores que constitui o papel, matria-prima do livro na modernidade. A ps-modernidade, contudo, trouxe como novidade uma contribuio paradigmtica: a possibilidade de se escrever no espao imaterial do ambiente virtual, o

    1 Em A aventura do livro: do leitor ao navegador (1999), Roger Chartier comenta que, no que diz respeito s formas

    de escrita, a primeira tentao que surge quando se pensa na revoluo eletrnica compar-la com a revoluo de Gutenberg. Contudo, para ele, a transformao trazida por esta no to absoluta quanto se diz, pois um livro manuscrito e um livro impresso baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais as do cdex. Tanto um como o outro so objetos compostos de folhas dobradas um certo numero de vezes, o que determina o formato do livro e a sucesso dos cadernos. Estes cadernos so montados, costurados uns aos outros e protegidos por uma encadernao. A distribuio do texto na superfcie da pgina, os instrumentos que lhe permitem as identificaes (paginao, numeraes), os ndices e os sumrios: tudo isto existe desde a poca do manuscrito. H portanto uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura do impresso, embora durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total entre uma e outra. Com Gutenberg, a prensa, os tipgrafos, a oficina, todo um mundo antigo teria desaparecido bruscamente. Na realidade, o escrito copiado mo sobreviveu por muito tempo inveno da imprensa (CHARTIER,1999, p.7). O mesmo poderia ser transposto para a questo da permanncia do livro face s publicaes em ambiente virtual, ainda que as inovaes entre os processos de escrita trazidos pela revoluo eletrnica tenham sido muito mais significativas: embora na disputa entre o formato eletrnico e o impresso este ltimo se mostre muitas vezes desvantajoso comercialmente, h diversas razes que podem assegurar a sua sobrevivncia, e inclusive a sua valorizao como objeto de culto e de arte. Algo semelhante ocorreu com a pintura aps o advento da fotografia, e hoje as galerias representam uma atividade talvez mais rendosa do que jamais tero sido no passado. 2 A esse respeito, Umberto Eco, em conversa com Jean-Claude Carrire publicada no livro de debates This is not the

    end of the book (2011) afirma que, no futuro, o livro talvez possa vir a interessar apenas a um punhado de entusiastas, que buscaro satisfazer sua curiosidade em museus e livrarias. Na sua opinio, no h nada mais efmero que os formatos miditicos de publicao de textos, e isso representa uma franca desvantagem com relao ao livro tradicional.

    3 Em O livro por vir (2005), Maurice Blanchot comenta sobre a transformao do livro, h muito anunciada por

    escritores como Mallarm: Um lance de dados nasceu de um entendimento novo do espao literrio, um espao onde podem ser engendradas, por meio de novas relaes de movimento, novas relaes de compreenso. Mallarm sempre teve conscincia do fato, mal conhecido at ele e talvez depois dele, de que a lngua era um sistema de relaes espaciais infinitamente complexas, cuja originalidade nem o espao geomtrico ordinrio nem o espao da vida prtica nos permitem captar. Nada se cria e nada se diz de maneira criativa seno pela aproximao prvia do lugar de extrema vacncia onde, antes de ser falas determinadas e expressas, a linguagem o movimento silencioso das relaes, isto , a escanso rtmica do ser (BLANCHOT, 2005, p.346).

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    ciberespao. Esta escrita impalpvel causou e ainda causa grande receio e angstia, porque transfere para uma inteligncia artificial muitas das atividades que at hoje cabiam ao homem realizar: ativar cdigos, memoriz-los e compartilh-los.

    No que a inteligncia humana tenha perdido algo no processo: at onde se sabe, ela economizou tempo na burocracia dos registros para ser empregue na realizao da atividade principal, que pensar. Tambm contribuiu para a partilha mais ampla e incondicional do saber acumulado atravs das eras, progressivamente mais acessvel pela internet do que nas bibliotecas do mundo4; e facilitou os intercmbios entre sujeitos, em tempo real, sem limitaes de espao e sem a necessidade de deslocamentos fsicos. O mundo ficou menor dizem , mas talvez no exatamente melhor, pelo menos na tica dos profetas apocalpticos, que no vem tanto as conquistas da maior e mais democrtica acessibilidade s informaes, quanto a efetiva perda da experincia humana no mundo dito emprico.

    A ps-modernidade trouxe, incontestavelmente, contradies aparentemente insolveis, como a realidade de um devastador isolamento das pessoas a despeito dos meios propiciadores de contatos impensveis antes do advento das novas tecnologias; e o empobrecimento aparente dos contedos mais veiculados ou mais acessveis do material cultural disponvel. A tambm aparente liberdade de escolha tende ao paradoxo: investe-se muito na mesmice e na repetio, na facilidade e na diverso gratuita, e o tempo que teria sido economizado para o exerccio de atividades criativas e crticas parece estar sendo tomado, muito mais frequentemente do que desejaramos, pela prtica de atividades vazias. Mas no seria esta uma opinio tendenciosa, nascida talvez do desconhecimento das experincias efetivamente desafiadoras e inovadoras j postas em prtica pelos novos escritores multimiditicos? So essas experincias bem sucedidas que pretendemos apresentar e discutir ao longo deste trabalho, com o objetivo de contribuir para superar um pouco a lacuna que ainda nos separa de prticas j comuns em contextos mais desenvolvidos, ou pelo menos mais familiarizados com as linguagens da mquina.

    4 Ainda no livro citado, Chartier (1999) comenta que: Desde Alexandria, o sonho da biblioteca universal excita as

    imaginaes ocidentais. Confrontadas com a ambio de uma biblioteca onde estivessem todos os textos e todos os livros, as colees reunidas por prncipes ou por particulares so apenas uma imagem mutilada e decepcionante da ordem do saber. O contraste foi sentido como uma intensa frustrao. Esta levou constituio de acervos imensos, vontade das conquistas e confiscos, a paixes biblifilas e herana de pores considerveis do patrimnio escrito. Ela inspirou, igualmente, a compilao dessas bibliotecas sem paredes que so os catlogos, as coletneas e colees que se pretendem paliativos impossibilidade da universalidade, oferecendo ao leitor inventrios e antologias. Com o texto eletrnico, a biblioteca universal torna-se imaginvel (seno possvel) sem que, para isso, todos os livros estejam reunidos em um nico lugar. Pela primeira vez na histria da humanidade, a contradio entre o mundo fechado das colees e o universo infinito do escrito perde seu carter inelutvel (CHARTIER,1999, p.117).

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    Figuras 7-8. Tabuleta de argila escrita em lngua sumria, e pergaminho feito de couro animal

    Figuras 9-10. Uma Bblia em cdex e uma pgina da Bblia de Gutenberg, impressa.

    Figura 11. O livro na tela do computador.

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    Em O livro depois do livro (1999), a pesquisadora e artista brasileira Giselle Beiguelman oferece um bom exemplo, na prtica, de como possvel redimensionar positivamente essa discusso que tende a ser to sombria. O livro depois do livro um ensaio sobre literatura, leitura e internet, escrito em dois formatos: website e livro, mas no numa relao de complementaridade. Segundo a autora, busca-se a frico, soma e interseco, e por isso a nomenclatura dos dois formatos foi propositalmente invertida. Enquanto a verso livro tem seus captulos divididos com termos da computao (label, instalao, configurao e sair), a verso Web apropria-se dos recursos de organizao de materiais impressos (ndice, capa etc.), revalidando suas funes de localizao e referncia. Inspirado no conto O livro de areia (2009), de Jorge Lus Borges, tem nmeros negativos e exponenciais associados s pginas, e recursos tcnicos que impedem de se voltar s pginas lidas pelos botes de avano e recuo do navegador.

    Na discusso proposta, a autora afirma desde logo que No se pensa aqui sobre o fim do livro impresso, narrativa messinica que impe um falso confronto entre fim e comeo,

    estabelecendo polaridades entre as culturas impressa e digital, que se valem de antinomias inexistentes (BEIGUELMAN, 1999, p.10). Recusando este tipo de abordagem, a autora reflete sobre um contexto de leitura mediado por interfaces conectadas em Rede, discutindo projetos criativos que tm como denominador comum o fato de expandirem e redirecionarem o sentido objetivo do livro, permitindo pensar experincias de leitura pautadas pela hibridizao das mdias e cibridizao dos espaos (on line e off line) (BEIGUELMAN, 1999, p.11). Entramos em sintonia com esta proposta quando defendemos, como Beiguelman na esteira de Borges, no o fim do livro, mas a ideia de um livro sem fim, mutante, migratrio, interativo, feito de memria e de esquecimento, de antigo e de moderno, de matria e de sonho, de corpos e de almas. Um livro total, virtual, aberto, rizomtico: le livre a venir, de Mallarm e de tantos outros escritores que, nascidos na era de Gutenberg a era do livro impresso no suporte de papel , projetaram-no em suas mentes e trabalharam efetivamente em busca de sua viabilidade.

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    Figuras 12-15. A pele humana como suporte da escrita, na arte da tatuagem. Ornamentos hindus e cenas do filme O livro de cabeceira (1995) de Peter Greenaway, no qual os textos redigidos pela amante no corpo do amado so transformados num cdex aps a sua morte, retirando-se a pele do jovem e submetendo-a aos processos de obteno dos pergaminhos. Apesar do grotesco da proposta, Greenaway sugere que o conceito de livro muito mais amplo do que a atual discusso sobre o suporte da escrita consegue comportar. O prprio corpo que habitamos tambm pode ser entendido como o suporte de uma narrativa, tanto por se constituir na materializao de um cdigo o DNA , como por registrar, em sua superfcie e ao longo da existncia, as marcas e cicatrizes dos acontecimentos que contam a histria de uma vida. Dessa forma, como pensar num escatolgico fim do livro que no implique, tambm, no fim do humano?

    1.2. As estratgias de divulgao das obras e o mercado editorial digital

    Se Bill Gates, com outros, interpreta o ciberespao como um shopping center em escala mundial concluindo o ltimo estgio do liberalismo econmico, evidentemente porque vende ferramentas de acesso ao supermercado virtual bem como os instrumentos de transao correspondentes. Por trs da interpretao mercantilista do ciberespao, aparece o projeto de redefinio do mercado em proveito dos atores que dominam certas tecnologias e em detrimento (ao menos no ciberespao) dos intermedirios econmicos e financeiros habituais, a includos os bancos. Os pequenos produtores e os consumidores, que podem beneficiar-se com a transparncia do cibermercado, esto convidados a partilhar ao mesmo tempo desse projeto e da leitura dos fenmenos que ele controla.

    Pierre Lvy, Cibercultura

    H uma ambivalncia fundamental na atividade editorial e no comrcio do livro. De um lado, somente eles podem assegurar a constituio de um mercado dos textos e dos julgamentos. So eles uma condio necessria para que possa ser construda uma esfera pblica literria e um uso crtico da razo. Mas, de outro, em virtude de suas prprias leis, a edio submete a circulao das obras a coeres e a finalidades que no so idnticas quelas que governaram sua escrita. Entre essas duas exigncias, a tenso no se resolve facilmente. Mas ela que faz que a histria da mediao editorial no seja apenas um captulo da histria econmica, mas tambm o ponto em que possa ser compreendida uma dupla trajetria: a dos textos cujas significaes mudam quando mudam as formas de sua feitura ou de sua paginao; e a do pblico leitor, cuja composio social e cujas expectativas culturais se modificam quando se modificam as possibilidades de acesso cultura impressa.

    Roger Chartier, Os desafios da escrita

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    Como vimos anteriormente, as inovaes trazidas pelo avano da tecnocincia fomentaram discusses sobre novas formas de concepo das manifestaes artstico-culturais, tanto no que diz respeito criao das obras de arte quanto no que se refere ao entendimento que temos sobre estas. O nascimento de novas formas de construo de narrativas, que aproveitam as possibilidades habilitadas pelos novos recursos disponveis graas ao desenvolvimento da tecnologia digital, demanda um novo tipo de leitor, que esteja mais adaptado e familiarizado ao ambiente virtual, a fim de que este possa aproveitar melhor as potencialidades dessa forma de mdia. Tal leitor, por sua vez, entrar em contato com as obras digitais no mais como o faz com relao ao livro impresso, em livrarias e bibliotecas nas quais ele caminha por entre as prateleiras procura do volume que pretenda ler. Agora, ele passeia pelas pginas da Web em busca das novas narrativas imersivas, performticas, multimodais, em sites que comportem, do ponto de vista tcnico, as inovaes trazidas pelas obras.

    Estes sites podem se configurar como pginas de divulgao das obras de algum autor especfico, que os tenha desenvolvido com esse propsito, ou como coletneas organizadas por especialistas no estudo das escritas digitais. H, ainda, o crescente pblico leitor que comea a fazer parte de um grupo mais interessado em debater sobre as obras em eventos e congressos destinados difuso do fenmeno da escrita ficcional em suporte eletrnico. A ELO, Electronic Literature Organization ou Organizao Literatura Eletrnica, nasce como parte desse esforo de divulgao, e sua importncia se d, tambm, pelo fato de que seus integrantes mais ativos procuram ampliar os conhecimentos acerca do tema com artigos e ensaios disponibilizados para os leitores atravs do site da organizao, bem como buscam garantir uma forma de arquivamento mais duradouro das obras, frente relativa efemeridade dos blogs e dos sites pessoais.

    Com o auxlio dessas estratgias de divulgao, percebe-se um aumento da popularidade e do reconhecimento com relao literatura eletrnica, que vem conquistando, a cada ano, um nmero maior de interessados sejam eles autores, leitores, programadores ou pesquisadores. Essa crescente procura por novas obras por parte de um pblico leitor promove no apenas a continuidade do fenmeno, mas tambm incentiva as editoras, e at mesmo algumas empresas criadoras de dispositivos eletrnicos e programas que permitem a criao ou a apresentao das narrativas multimdia, como veremos, a buscar uma inovao nas estratgias de funcionamento do mercado editorial. Vejamos, a seguir, como funcionam algumas das vias de propagao e de comercializao desse novo tipo de produto.

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    1.2.1. ELO - Electronic Literature Organization

    A ELO Electronic Literature Organization, ou Organizao de Literatura Eletrnica, uma organizao sem fins lucrativos, fundada em 1999, que rene diversos professores, escritores, artistas, acadmicos e programadores, e que tem como principal objetivo fomentar e promover a leitura, a escrita, o ensino e a compreenso da literatura enquanto ela se desenvolve e persiste em um ambiente digital mutvel5. A ELO, que ainda , atualmente, umas das maiores e mais influentes organizaes fomentadoras da literatura eletrnica, formou uma comisso chefiada por Noah Wardrip-Fruin, um renomado autor e crtico de literatura eletrnica, para oferecer uma definio mais adequada ao novo fenmeno; tal comisso decidiu incluir no conceito tanto trabalhos criados com recursos eletrnicos e que se realizam ou se atualizam, em meios de comunicao digitais, quanto aqueles escritos em um computador mas publicados em meio impresso, desde que, em sua criao, o emprego dos recursos eletrnicos tenha tido uma funo de destaque. A definio criada pela comisso a seguinte: obras com importantes aspectos literrios que aproveitam as capacidades e contextos fornecidos por computadores conectados ou no internet.6.

    A respeito da definio proposta, uma das mais influentes pesquisadoras da literatura eletrnica, Katherine Hayles, no estudo que marca o incio de um perodo de divulgao mais intensa das novas narrativas multimdia, seu livro Literatura Eletrnica: novos horizontes para o literrio (2009), salienta que:

    essa definio levanta questes sobre quais capacidades e contextos do computador so significativos, dirigindo a ateno no apenas para a natureza em constante processo de modificao dos computadores, mas tambm para as novas e diferentes maneiras pelas quais as comunidades literrias mobilizam essas capacidades (HAYLES, 2009, p.21).

    5 Citao retirada da seo About da pgina da ELO na internet: . ltimo acesso em:

    11 nov. 2011.

    6 Idem, Ibidem.

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    Alm disso, a definio proposta seria tambm um tanto tautolgica, uma vez que assume a existncia de um conhecimento prvio do que seria um aspecto literrio importante, questo que costuma levantar debates acirrados nos meios literrios no apenas no que se refere literatura eletrnica, mas ao longo de boa parte da histria da crtica e da teoria literria. Hayles destaca o fato de que, apesar de a tautologia no ser vista com bons olhos pelos escritores de definies, nesse caso especfico ela parece justificvel, porquanto a literatura eletrnica aparece aps cerca de quinhentos anos de literatura impressa (e um tempo muito maior de tradio manuscrita e oral). Assim, os leitores que chegam literatura eletrnica possuem expectativas formadas pelo contato com as obras no meio impresso, incluindo a um conhecimento profundo das convenes, formas das letras e estilos literrios impressos; a literatura em meio digital, por sua vez, precisa preencher tais expectativas ao mesmo tempo em que as modifica e as transforma. interessante perceber que, tanto ao esclarecer seu objetivo quanto ao oferecer uma definio da literatura eletrnica, a ELO est preocupada em tratar no s do objeto que se dedica a promover, mas tambm do contexto no qual esse mesmo objeto se desenvolve. Tal preocupao compreensvel no somente porque a literatura eletrnica ainda um fenmeno relativamente recente, cujo contexto de produo e recepo (e, consequentemente, perpetuao) ainda no to slido e tradicional quanto o da literatura impressa, mas tambm porque o prprio meio no qual a maior parte dessas obras nasce e exibida, ou seja, o meio digital, marcado por uma transformao constante e cada vez mais veloz, tornando uma grande fatia de seus produtos facilmente esquecvel. Mais do que um problema de memria, a constante evoluo dos softwares e hardwares vitima programas e mdias que no se atualizam, tornando-os obsoletos e impossveis de serem executados em verses mais recentes de gadgets ou sistemas operacionais. Dessa forma, como aponta Hayles:

    Com um cnone reduzido, limitado a alguns anos e sem a oportunidade de construir o tipo de tradies associadas com a literatura impressa, a literatura eletrnica corre o risco de ser condenada ao domnio do efmero, seriamente restrita em seu desenvolvimento e na influncia que pode exercer (HAYLES, 2009, p.50-51).

    A afirmao que aparece na citao acima foi feita em 2008, quando Hayles lanou seu livro nos Estados Unidos; felizmente, de l para c, a literatura eletrnica ainda no foi alcanada pelo risco que a autora pressentiu que ela corria. Para isso, os esforos da ELO, sem dvida alguma, ajudaram a proteger a literatura eletrnica da efemeridade. Consciente das dificuldades que o meio digital propicia para os autores das narrativas eletrnicas, a ELO procurou desde cedo tecer

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    parcerias com certas instituies a fim de fomentar a preservao e a circulao das obras literrias, como destacado na pgina da organizao:

    Devido ao fato de a tecnologia da informao ser cada vez mais guiada por preocupaes relacionadas autoria, autores que trabalham com novas mdias precisam do suporte de instituies que possam defender a preservao, o arquivo e a livre circulao das obras literrias. A ELO tem estado, desde o incio, em causa comum com organizaes como a Creative Commons, Archiving the Avant Garde, ArchiveIT.org, e a United States Library of Congress, para garantir a livre circulao, a atribuio de citaes e a preservao de obras, elementos sem os quais nenhum campo pode se desenvolver.7

    Uma das primeiras aes de grande relevncia realizadas pela ELO foi o desenvolvimento de um projeto chamado PAD The Preservation, Archiving, and Dissemination project , cujos principais resultados so as antologias Electronic Literature Collection, vol.18, de 2006, e vol.29, de 2011, que renem obras inovadores e de alta qualidade no mbito da literatura eletrnica. Como salienta Hayles (que participou da organizao do primeiro volume da Electronic Literature Collection), coletar esse tipo de obras (inovadoras e de qualidade), um passo importante para a abertura da literatura eletrnica para um pblico mais amplo e para introduzi-la na sala de aula (HAYLES, 2009, p.51).

    Ao lado do PAD, um dos principais projetos da ELO foi a criao do Electronic Literature Directory10, ou Diretrio da Literatura Eletrnica, que rene vrias obras de diversos autores e gneros, com o intuito de preservar as obras de literatura digital, bem como facilitar o acesso do pblico a esse novo fenmeno esttico. Atravs do diretrio da ELO podem ser acessadas vrias obras, artigos, ensaios, sites de autores e revistas eletrnicas, e, aps criar-se um cadastro, pode-se enviar trabalhos pessoais. Atualmente, o diretrio est passando por algumas alteraes para que se transforme em um ambiente de interao que valorize cada vez mais as produes das inteligncias coletivas. Dessa forma, o diretrio est sendo adaptado para o formato wiki, e, ao invs de apenas oferecer um link para a obra escolhida juntamente com um pequeno comentrio acerca do trabalho e das ferramentas por ele utilizadas, como acontecia na verso 1.0, todas as obras contidas no diretrio na verso 2.0 devero conter uma descrio na forma de um pequeno artigo, ser

    7 Idem, Ibidem.

    8 Disponvel em: .

    9 Disponvel em: .

    10 Endereo eletrnico do diretrio da ELO: . Acesso em: 12. nov. 2011.

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    catalogadas e, possivelmente, comentadas, uma vez que a nova verso dispe de um espao para a discusso coletiva sobre os trabalhos. Assim, embora a quantidade de obras e artigos disponveis aos leitores tenha diminudo na passagem do diretrio 1.0 para a verso 2.0, a inteno que a qualidade das apresentaes dos textos seja maior, alm de proporcionar uma interao mais atualizada e articulada com o novo contexto de uso da internet, atitude esta coerente com a proposta da ELO de fomentar a preservao e a circulao das obras literrias num contexto miditico essencialmente mutvel.

    Alm da iniciativa de reunir uma boa parte das obras de literatura eletrnica disponveis, o diretrio da ELO tambm contribuiu fortemente para a organizao das obras literrias em meio digital ao propor uma catalogao dos textos a partir de suas caractersticas especficas. Ainda na verso 1.0, havia duas formas de disposio das obras, uma que as organizava em funo do gnero (poesia, drama, fico, no-fico) e da extenso (curta, longa, coleo); e outra que as organizava a partir do gnero e da tcnica (hipertexto, colaborao do leitor, outras interaes, leitura gravada/performance, texto animado, outros tipos de udio/vdeo/interao, grficos proeminentes, texto generativo).

    A partir dessas formas de disposio e catalogao das obras, nota-se que os critrios adotados no so idnticos queles comumente utilizados na classificao de textos literrios tradicionais, tais como os gneros, por exemplo, que se distinguem com base nas categorias de tempo, espao e ao: o gnero conto se caracterizaria pela unidade dessas categorias, j o gnero novela, pela multiplicidade destas. Essa diferena na catalogao se d pelo fato de que, apesar de haver um dilogo entre os gneros das narrativas eletrnicas e os das narrativas impressas, alguns dos elementos que se destacam naquelas so, muitas vezes, de ordem tcnica, e dizem respeito construo de narrativas a partir da interao do leitor com a obra e tambm da utilizao de recursos multimdia. De toda forma, a verso 2.0 do diretrio contm critrios, seno idnticos, ao menos bastante parecidos com aqueles utilizados na verso 1.0 para determinar as caractersticas das obras, alm de incluir novos elementos de catalogao. Isso parece indicar que j possvel discernir uma certa tradio crtica na maneira como se encara essas obras, apresentando formas mais ou menos constantes de se diferenciar um tipo de produo da outra, e que tendem a ir se expandindo, revisando e aprofundando.

    A ELO tambm contribui com a propagao das narrativas digitais atravs da produo e divulgao de diversos eventos importantes sobre o tema. Um dos mais importantes projetos atuais do grupo a organizao da ELO Conference, a ser realizada em 2012 na Universidade de West Virginia.

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    Podemos perceber, portanto, a importncia da ELO no cenrio de produo, divulgao e recepo da literatura eletrnica, uma vez que o grupo est h vrios anos promovendo e estudando esse fenmeno artstico, tendo constitudo, dessa forma, uma certa tradio que guia a maneira como se entende e se examina as obras literrias no meio digital.

    1.2.2. Concursos e eventos de cunho acadmico

    Uma das formas encontradas para fomentar a literatura eletrnica j utilizada na literatura tradicional h muito tempo: atravs de concursos e premiaes. Vrios grupos e sites organizam concursos exclusivos para as obras de literatura eletrnica, incentivando tanto os jovens autores a criarem novas obras, quanto os autores j maduros a continuarem produzindo. Se a elaborao de concursos para obas de literatura digital segue o mesmo princpio bsico do utilizado na literatura impressa, aqui, contudo, existe uma peculiaridade: o incentivo produo de obras que possuam uma qualidade esttica destacvel importante por separar, por assim dizer, o joio do trigo em um ambiente em certo sentido mais complicado que o da literatura impressa porque muito mais transitrio e, tambm por isso, muitas vezes marcado pela trivialidade. Alm disso, ao contrrio da literatura impressa, que j possui uma tradio secular, e, consequentemente, um canon bem definido (embora, atualmente, atacado e questionado com certa constncia) que determina as principais obras de maior qualidade dessa tradio, a literatura eletrnica ainda luta para provar seu valor diante dos ideais mais tradicionalistas presentes no meio literrio; nesse sentido, os concursos promovidos exclusivamente para obras digitais ajudam na consolidao do fenmeno artstico perante um ambiente tradicional que ainda as recebe mais com preconceito do que com curiosidade. Um dos prmios de grande relevncia no meio da literatura eletrnica o New Media Writing Prize, cuja ltima edio teve sua cerimnia de premiao concretizada em Novembro de 2011. A leitura do website do prmio indica que este segue a linha de incentivo que mencionamos acima, o que pode ser notado logo na pgina inicial do site, quando descrito de forma sucinta o objetivo do concurso: O prmio incentiva os escritores que trabalham com novas mdias a mostrar suas habilidades, provocar discusses e estimular o aumento de conscincia acerca da escrita em

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    novas mdias, o futuro da palavra "escrita" e das narrativas.11. Procurando incentivar tanto artistas veteranos quanto iniciantes, o prmio dividido em duas categorias que indicam a natureza de seus concorrentes: estudantes e profissionais. Embora a premiao possa ser considerada modesta, se comparada a concursos literrios tradicionais de literatura no meio impresso (alm da publicao das obras, o vencedor da categoria estudante recebeu um laptop, e o da categoria profissional um iPad2), os organizadores do evento ressaltaram que as obras vencedoras recebero um bom destaque no meio, o que ajudar bastante na construo do nome do autor, e, possivelmente, na sua carreira como autor de literatura digital. Alm do grande incentivo para autores jovens e profissionais para que iniciem ou continuem a produzir obras de literatura eletrnica, concursos como o New Media Writing Prize, tambm auxiliam na construo da ideia do que a literatura digital, ou seja, do que so essas new media writings que esto sendo premiados, na medida em que delimitam as produes que esto e que no esto procurando:

    Estamos procura de boas narrativas (ficcionais ou no) escritas especificamente para serem disponibilizadas e lidas/visualizadas em um PC ou Mac, na internet, ou em um dispositivo porttil como um iPad ou um telefone celular. Pode ser uma histria curta, um romance, documentrio ou poema usando palavras, imagens, filme ou animao com interao por parte da audincia.

    Estamos procurando por criatividade, ento tentem ser imaginativos para criar uma histria envolvente, isto , combinando um certo nmero de elementos miditicos, como palavras em uma tela combinadas com imagens e videoclipes. A escrita em novas mdias pode ser criada usando-se uma variedade de ferramentas, como um processador de texto, cmera de vdeo digital, ferramentas de relacionamento social (como o Twitter), telefones celulares, um scanner vale tudo! () Ns no estamos procurando por histrias/poemas os quais voc possa enviar para uma pgina na internet ou gravar em um CD. Ns no estamos procurando por telas de palavras enviadas para seu blog, nem estamos procurando por uma mostra de fotos em slides enviados para o Flickr ou um vdeo enviado para o YouTube.12

    Vemos que a ideia que os organizadores do concurso possuem da literatura digital bastante parecida com aquela sugerida pela ELO, uma vez que consideram apenas obras que tenham sido

    11 Citao retirada da sesso Introduction do website do evento New Media Writing Prize:

    . Acesso em: 05. dez. 2011.

    12 Citao retirada da sesso About the competition do website do evento New Media Writing Prize:

    . Acesso em: 05. dez. 2011.

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    criadas especificamente atravs de recursos oferecidos pelo meio eletrnico, excluindo da lista as produes criadas fora desse contexto mas transpostas para o meio digital. Outra forma bastante utilizada para promover e fomentar a literatura eletrnica a realizao de eventos de cunho acadmico especficos sobre o tema ou sobre temas paralelos, sejam eles congressos, encontros, seminrios, fruns, etc. As vantagens desse tipo de eventos so vrias: a possibilidade de troca de experincias analticas e tericas por parte de pesquisadores, autores e interessados no assunto; a oportunidade de entrar em contato com obras que j passaram por um crivo crtico prvio e que, portanto, j demonstram um primeiro grau de relevncia para o meio; a produo efetiva de conhecimento sobre o tema em formas de artigos, ensaios, painis, comunicaes, mesas-redondas, etc., com a consequente publicao e divulgao desses trabalhos atravs de anais; a integrao entre diversos ramos do conhecimento em eventos de reas afins ou que adotam programaticamente uma perspectiva interdisciplinar; alm de outras possveis. Uma consequncia muito positiva dos eventos acadmicos srios que se voltam para a literatura eletrnica o combate eficiente ao preconceito ainda existente em certos setores mais tradicionalistas da academia, uma vez que apresenta contribuies consistentes para o fortalecimento da importncia do objeto investigado. O crescente nmero desses eventos tem demonstrado que a academia est finalmente aceitando a importncia dos estudos sobre a literatura e outras formas de manifestaes artsticas no meio digital. O interessante blog italiano mantido pelo doutor em literatura eletrnica Fabio de Vivo, eLiterature & Electronic Literature, divulga vrios eventos sobre literatura eletrnica, cibercultura e mdias digitais, alm de chamadas de trabalhos para revistas acadmicas e outras notcias ligadas ao estudos de mdias digitais. A ltima postagem do seu blog, datada de 7 de Outubro de 2011, comenta um encontro internacional chamado Literature and digital society, realizado na Frana e organizado pelo Laboratoire Paragraphe, quipe critures et Hypermdiations numriques, da Universidade de Paris 8 uma das instituies universitrias mais respeitadas e tradicionais da Europa.

    1.2.3. Coletneas e sites de divulgao: Web Yarns e Dreaming Methods

    Uma terceira forma de divulgar a literatura eletrnica por meio da criao de coletneas de obras relevantes, organizadas tanto por pesquisadores quanto pelos prprios autores. Duas

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    coletneas de obras importantes foram realizadas pela ELO, como j foi mencionado acima; mas a expanso e a popularizao da literatura eletrnica demandou a criao de outras coletneas, organizadas de acordo com temticas prprias que as tornam responsveis pela criao de novos pontos de vista acerca da literatura digital. Citaremos aqui duas coletneas organizadas pelos prprios escritores. A primeira delas, disponvel no website webyarns.com, foi organizada por Alan Bigelow e rene suas prprias obras. Ela , assim, um misto de coletnea e de espao de divulgao do trabalho do autor. A pgina, alm de exibir vinte e oito trabalhos de Bigelow, que podem ser acessados gratuitamente, tambm possui sesses nas quais so exibidos textos do autor que, com uma carga de humor muitas vezes cida e irnica, refletem sobre a natureza da literatura digital, seu mercado, e a recepo do pblico e dos crticos diante dessa forma de arte. Em um desses textos, organizado em forma de F.A.Q. (Frequently Asked Questions sesso comum em pginas de empresas que oferecem servios, destinadas a tirar as dvidas dos clientes), Bigelow, respondendo a uma possvel pergunta sobre o que necessrio para ser um escritor de literatura digital, comenta o que se deve ter para encarar o trabalho dos crticos: Ter uma pele grossa e (novamente) mais pacincia vai ajudar a proteger contra as pedras e flechas de crticos afrontosos. Crticos amam criticar, e quando se tratar de algo novo e sem precedentes, eles iro rir e triturar isso sob seus calcanhares13. Na mesma sesso, quando perguntado se possvel ganhar dinheiro sendo um escritor de literatura digital, Bigelow oferece a seguinte conta:

    Faamos os clculos: Despesas anuais: $330 Renda por publicaes: $0 Renda por leituras: $0 Renda por exibies: $0 Obras vendidas: $0

    TOTAL: -$330 Seu talento? No tem preo.14

    Dessa forma, alm de uma pgina de divulgao do seu trabalho que se soma ao contexto de produo e recepo da literatura eletrnica, a coletnea de Bigelow tambm uma reflexo e uma

    13 Citao retirada da sesso Ten FAQs about Digital Literature do website de Alan Bigelow:

    . Acesso em 26. out. 2011.

    14 Idem, Ibidem.

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    crtica a respeito desse mesmo contexto. Seja falando da m vontade dos crticos ou do mercado ainda pouco desenvolvido, o autor revela as dificuldades que o artista digital precisa enfrentar para seguir adiante com seu trabalho.

    Figura 16. Pgina inicial do site de divulgao de obras Webyarns.

    A segunda coletnea da qual trataremos aquela disponvel no site do grupo Dreaming Methods, que apresenta as obras produzidas por seus membros. Embora a coletnea da Dreaming Methods se assemelhe de Alan Bigelow em alguns elementos como, por exemplo, o fato de ser ao mesmo tempo um espao para a divulgao da literatura eletrnica e de trabalhos pessoais, ou por apresentar tambm textos crticos que refletem sobre a literatura digital e seu contexto, ela apenas uma das partes de um projeto que vai muito alm dos limites (compreensveis, claro, uma vez que se trata apenas de um projeto pessoal) da coletnea de Bigelow. Alm de oferecer obras de literatura eletrnica gratuitas, contribuindo para a divulgao da arte, a Dreaming Methods tambm disponibiliza ferramentas para download com o intuito de ajudar outros autores a criar novas obras, alm de promover workshops que ensinam a utilizar as ferramentas necessrias para a criao de obras ou para desenvolver o potencial eletrnico que algum autor pretenda atribuir ao seu projeto.

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    Figura 17. Pgina inicial do site da Dreaming Methods, no qual so disponibilizadas as obras e os trabalhos de pesquisa do grupo, bem como ferramentas prprias para a criao de narrativas digitais.

    Alm disso, vrios trabalhos da Dreaming Methods se articulam com outros projetos, ligados, por exemplo, ao desenvolvimento de softwares ou educao. Nightingales Playground, por exemplo, um projeto de fico digital dividido em quatro captulos, sendo o segundo deles um jogo em 3D que pode ser baixado e executado em plataformas PC ou Mac. J Ebb and Flow um projeto conduzido pela autora premiada Kate Pullinger, que consistiu em uma viagem pelo rio Orwell, seguida de uma srie de workshops com alunos de cinco escolas localizadas nas reas prximas ao rio, cujo resultado foi a criao, por parte dos alunos, de obras de fico digital inspiradas nesse rio to presente na realidade cotidiana dos estudantes.

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    Figuras 18-19. Imagens de uma das obras produzidas por estudantes do projeto Ebb and Flow, conduzido pela escritora Kate Pullinger.

    Um dos trabalhos mais importantes da Dreaming Methods, e escrito pela mesma autora, o Inanimate Alice (2007), tambm se desenvolve em um projeto mais amplo ligado educao; contudo, como abordaremos essa obra com maior profundidade adiante, deixaremos os comentrios a seu respeito para um momento posterior.

    Destacamos, acima, que os trabalhos oferecidos pela Dreaming Methods em sua pgina so gratuitos; de fato, uma das propostas do grupo continuar criando e disponibilizando fico digital de qualidade sem custo algum para os leitores. Contudo, os membros do grupo apelam para o bom

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    senso ou a boa vontade de seus leitores, esperando que estes imaginem que a criao de obras de arte de qualidade exigem tempo e dedicao e, consequentemente, tambm dinheiro. Dessa forma, existe no site uma sesso atravs da qual os leitores podem fazer doaes para que o grupo continue o seu trabalho.

    Mais do que uma forma de garantir a sobrevivncia do empreendimento artstico, essa atitude dos membros da Dreaming Methods revela uma conscincia ao mesmo tempo lcida, esperanosa e sincronizada com as transformaes recentes que o universo da Web tem sofrido. O grupo, obviamente, no alheio s dificuldades enfrentadas pelos autores de literatura eletrnica em meio a um mercado que ainda privilegia e incentiva a publicao de obras impressas. Como prova disso, podemos apresentar um artigo escrito por Kate Pullinger e publicado em seu blog pessoal. No texto, intitulado sugestivamente de To Self-Publish Own Backlist as E-Books or Not to Self-Publish Own Backlist as E-Books? (2011) (Autopublicar ou no autopublicar obras prprias como e-book?), Pullinger destaca a vantagem financeira de continuar publicando, por meio de um contrato com uma editora, livros em formato impresso, ao invs do formato e-book; se, por um lado, a taxa que ela recebe para cada livro seu em formato e-book superior taxa paga para cada livro impresso vendido (25% para o formato e-book e 15% para o impresso), ainda mais vantajoso para ela vender mais livros no segundo formato, uma vez que, pelo fato do e-book ser muito mais barato que o livro tradicional, o lucro advindo de sua venda acaba sendo menor. Se continua sendo mais vantajoso publicar no meio impresso, por que os membros da Dreaming Methods continuam com o projeto? E se continuam, por que no cobrar pelas obras, na tentativa de conseguir ainda algum retorno em cima do que produzido? Por que continuar apenas pedindo doaes para os leitores? Muito provavelmente porque os membros da Dreaming Methods possuem conscincia de que, diante da facilidade de se ter acesso aos produtos culturais gratuitamente na Web (seja pelo compartilhamento entre usurios, seja pela pirataria), o mercado precisa inventar novas estratgias para continuar obtendo um retorno satisfatrio. No por acaso, a estratgia da Dreaming Methods se assemelha bastante utilizada pelos produtores do seriado criado para a internet Divine .

    Divine: The Series um projeto elaborado por uma parte da equipe responsvel pela srie televisiva de grande sucesso Supernatural. A ideia fazer uma srie nos moldes das grandes produes televisivas (embora numa escala reduzida, uma vez que cada episdio possui apenas dez minutos quatro vezes menor que o tempo padro do episdio de um seriado tradicional, ou seja, quarenta minutos) a exemplo de Supernatural, mas que esteja disponvel apenas para a Web. O projeto descrito da seguinte maneira em seu website:

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    Divine: The Series uma storytelling para a gerao smartphone. Tem o DNA de graphic novels (romances em quadrinhos), filmagens de ao e aventura, obscuras intrigas sobrenaturais e efeitos especiais de ponta, tudo isso combinado para criar algo novo e excitante para a Web. Queremos alargar as fronteiras do entretenimento online e contar histrias s quais voc possa assistir em pequenos pedaos e em qualquer ordem que voc queira, mas que, ao mesmo tempo, quando voc assistir a mais episdios, as respostas para mistrios sobre os personagens e seu mundo sejam desvendadas.15

    V-se, portanto, que os produtores de Divine realmente acreditam que uma srie nos moldes das produzidas para televiso pode ser criada e disponibilizada diretamente na Web: Ns acreditamos que esta a hora para sries online16. Um dos propsitos principais do projeto justamente provar para os executivos que isso possvel; para tanto, a ajuda dos telespectadores requisitada. Tal ajuda vai desde o pedido de divulgao da srie pelos fs, at a doao de dinheiro, com o intuito de atingir uma quantia determinada. Embora tal quantia (que foi alcanada sem grandes esforos), no fosse o suficiente para pagar o custo de produo nem mesmo de um nico episdio, seus produtores acreditam que ela suficiente para despertar a ateno dos grandes produtores e provar que possvel fazer uma srie online com grande potencial para gerar um retorno financeiro satisfatrio.

    A atitude dos produtores de Divine: The Series reflete um conhecimento aprofundado acerca do comportamento dos expectadores de seriados que possuem familiaridade com o ambiente da internet, o que pode ser demonstrado pela utilizao do potencial de propaganda que os usurios interligados online entre si disponibilizaram, principalmente atravs das redes sociais (no por acaso Divine tambm possui uma pgina no Facebook), quando foi requisitado que os fs divulgassem a srie entre seus amigos e conhecidos. Assim, bastante provvel que os produtores saibam como fcil encontrar episdios de sries televisivas famosas, a exemplo da prpria Supernatural, disponveis para download gratuitamente na internet. Essa facilidade de acesso gratuito, ao mesmo tempo em que prejudica as grandes produtoras e distribuidoras das sries, tambm populariza sua circulao: os consumidores no mais precisam pagar uma assinatura de TV a cabo para assisti-las, basta que tenham uma conexo que permita uma taxa de download rpida o suficiente para tornar a procura e a coleta online satisfatrias. Tendo conscincia dessa

    15 Citao retirada da sesso About do website do seriado Divine: The Series:

    . Acesso em: 12. out. 2011.

    16 Idem, Ibidem.

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    realidade, os produtores de Divine, ao invs de lutar contra ela em uma batalha quase impossvel de ser vencida, resolveram aproveitar suas potencialidades, produzindo uma srie diretamente para o meio virtual; assim, a procura dos fs torna-se muito mais simples e eficiente, ajudando a criar um pblico fiel, com alto ndice de satisfao e, consequentemente, um mercado passvel de ser explorado.

    Podemos dizer que a Dreaming Methods usa uma estratgia semelhante. Ao invs de taxar suas obras na tentativa de se equiparar com o mercado da literatura impressa, o grupo oferece seus trabalhos de graa, conquistando um pblico consciente, que, atravs das doaes, por assim dizer investe do trabalho do grupo. Alm disso, eles liberam softwares e ensinam como utiliz-los com o intuito de divulgar e fortalecer a produo e o reconhecimento da literatura eletrnica atravs de obras que apresentem qualidade e assim possam conquistar um maior pblico leitor. Por fim, ao se envolver em projetos educacionais, a Dreaming Methods trabalha na formao de leitores muito mais preparados para lidar com as obras de fico digital desenvolvidas no s pelo grupo, mas tambm por vrios outros autores de literatura eletrnica de maneira geral. Dessa forma, assim como os produtores de Divine, os membros do grupo Dreaming Methods investem na construo de um mercado a longo prazo, com a esperana e a conscincia de que as mudanas proporcionadas pela evoluo e desenvolvimento das novas mdias ajudem a consolidar esse mercado que eles mesmos procuram expandir.

    1.2.4. Booktrack: uma aposta no mercado

    Esse mercado j comea a demonstrar indcios de um desenvolvimento mais slido. Uma dessas evidncias a criao do Booktrack um novo captulo na evoluo do storytelling17, segundo a descrio do produto em seu website. O Booktrack uma verso do ebook que articula o texto com uma trilha sonora composta especificamente para o livro, de modo que os efeitos sonoros elaborados fiquem sincronizados com o texto escrito, desenvolvendo-se medida que a leitura realizada, criando assim uma nova dramatizao para a narrativa.

    17 Citao retirada da sesso About do website do Booktrack: . Acesso em: 20.

    nov. 2011.

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    As evidncias de que os investimentos na rea da literatura eletrnica comeam a se tornar mais slidos no tanto pelo princpio supostamente revolucionrio do Booktrack (que, alis, j podia ser encontrado de forma semelhante em obras de literatura eletrnica famosas como Nippon18(2003), de Young-Hae Chang), mas mais pela posio de seus criadores: o principal investidor do projeto Peter Thiel, cofundador do PayPal (uma das maiores empresas que realizam a transferncia de dinheiro entre negociantes do mundo, que movimenta boa parte dos negcios online atualmente) e membro do quadro de diretores do Facebook. Alm de Thiel, o Booktrack tambm conta com a parceria de vrias editoras, escritores de best-sellers e compositores e msicos renomados. Por ltimo, o produto vendido diretamente nas lojas online da Apple, e disponvel para os principais dispositivos mveis da empresa: iPhone, iPad, e iPod Touch.

    Todo esse cenrio demonstra o peso dos investimentos que o produto representa: financiado por um grande empresrio, produzido por uma equipe com experincia na rea de produo de equipamentos tecnolgicos, e disponibilizado para os dispositivos portteis de ltima gerao mais vendidos e utilizados no mundo. Nesse sentido, de fato, o Booktrack revolucionrio, pois pretende construir um mercado, ou ao menos ajudar na sua construo: o da literatura digital para os dispositivos mveis.

    Essa proposta de desenvolver um produto pensado para dispositivos mveis demonstra um conhecimento prvio do perfil do leitor familiarizado com o ambiente virtual, uma vez que um dos principais propsitos do Booktrack auxiliar na imerso buscada por pessoas que costumam ler em espaos pblicos como nibus, lanchonetes etc. Muitas vezes os leitores que esto em espaos pblicos muito movimentados procuram escutar alguma msica para escapar da confuso externa leitura do livro. Pensando nisso, os idealizadores do produto o desenvolveram com a inteno de criar uma trilha sonora pensada especificamente para o leitor que escuta msica ao mesmo tempo em que l. Atentos s possibilidades fornecidas por aparelhos como celulares e tablets, os criadores do Booktrack aproveitaram o contexto da interao com o ambiente virtual para potencializar a imerso do leitor na obra que l e escuta. A partir da o Booktrack se torna um produto diferenciado, que pode conquistar no apenas os leitores que procuram uma experincia de leitura imersiva no espao pblico mais profunda, mas tambm todos aqueles que desejam uma nova forma de desfrutar o texto literrio aqui, especialmente, atravs da sua articulao com uma trilha sonora produzida especificamente para o texto lido.

    18 Nippon uma obra muito conhecida no universo da literatura eletrnica e articula as palavras do texto com o ritmo

    de uma msica no ritmo de Jazz que executada de forma sincronizada com o aparecimento destas na tela.

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    Essas foram apenas algumas das possibilidades mais recentes que o cenrio de produo e divulgao das novas obras digitais tem oferecido aos interessados, sejam eles leitores, escritores, produtores ou empresrios e s vezes, todos esses esto reunidos numa nica pessoa. O ambiente digital revela novas formas de se lidar com produtos culturais, e, pelo que foi demonstrado, percebe-se que grande parte daqueles que se interessam pela literatura eletrnica est consciente dessas formas. O resultado disso a expanso e o desenvolvimento dessa forma de arte, o que proporciona uma maior quantidade de obras interessantes e de valor no apenas no meio eletrnico, mas tambm para a literatura de maneira geral.

    Vimos que o universo das narrativas multimdia se expande e se pluraliza, apresentando obras com propostas e tcnicas diferenciadas. Vejamos, agora, como elas se relacionam com um aspecto que permeia as narrativas desde as pocas do experimentalismo da literatura impressa, mais especificamente a partir da segunda metade do sculo XX, e que se potencializa no meio digital com a crescente interatividade nas obras e com o uso de recursos multimdia: o aspecto ldico das narrativas.

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    2. O homo ludens e as interfaces narrativas

    Em poca mais otimista que a atual, nossa espcie recebeu a designao de Homo sapiens. Com o passar do tempo, acabamos por compreender que afinal de contas no somos to racionais quanto a ingenuidade e o culto da razo do sculo XVIII nos fizeram supor, e passou a ser de moda designar nossa espcie como Homo faber. Embora faber no seja uma definio do ser humano to inadequada como sapiens, ela , contudo, ainda menos apropriada do que esta, visto poder servir para designar grande nmero de animais. Mas existe uma terceira funo, que se verifica tanto na vida humana como na animal, e to importante como o raciocnio e o fabrico de objetos: o jogo. Creio que, depois de Homo faber e talvez ao mesmo nvel de Homo sapiens, a expresso Homo ludens merece um lugar em nossa nomenclatura.

    Johan Huizinga, Homo Ludens

    A epgrafe acima, retirada do Prefcio do livro Homo Ludens (2008, p.28), de Johan Huizinga, indica um dos propsitos que o autor relega sua obra: mostrar que o jogo seria uma das atividades essenciais ao ser humano. De fato, a importncia que Huizinga d ao jogo na constituio do homem se destaca no seguinte comentrio: J h muitos anos que vem crescendo em mim a convico de que no jogo e pelo jogo que a civilizao surge e se desenvolve (HUIZINGA, 2008, p.28). Para o autor, o jogo seria um fenmeno cultural, e no biolgico, que estaria presente em todas as produes humanas, sendo, portanto, um fator da cultura, e no na cultura; ou seja, o interesse de Huizinga no o de tentar determinar o local que o jogo ocupa no meio dos demais produtos culturais, mas sim de mostrar que a prpria cultura possui uma dimenso ldica. O ser humano seria, portanto, no s um homem que sabe e um homem que fabrica, mas tambm um homem que joga. Estando presente, assim, em todas as atividades humanas, o ludismo no poderia deixar de estar presente nas artes incluindo-se a a arte narrativa. Certas manifestaes dessa arte, contudo, se realizaram num esforo especial para acentuar sua dimenso ldica, algumas delas assumindo-a explicitamente e fazendo dela um elemento estrutural importante, levando o leitor a experimentar diferentes maneiras de apreciar a forma como uma histria pode ser contada. Por outro lado, talvez dando-se conta da potencialidade da dimenso ldica que as narrativas possuem, os criadores de jogos passaram a incorporar mais o elemento narrativo s suas produes, elaborando assim jogos que permitem a construo de histrias instigantes para aqueles que, jogando, as vivenciam. Nas obras digitais multimdia, percebemos esses dois elementos: nelas, formas variadas de narrativas e jogos se articulam para criar um produto novo, rico em possibilidades de interao e de experincias ldicas e estticas. No captulo a seguir, veremos alguns exemplos dessas duas

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    dimenses os jogos nas narrativas e as narrativas nos jogos cujas contribuies inovadoras influram no desenvolvimento da literatura digital, para que com isso possamos ter uma noo mais apropriada do objeto que estamos estudando.

    2.1. O jogo e a narrativa experimental impressa

    O valor conceitual de uma palavra sempre condicionado pela palavra que designa o seu oposto. Para ns, a anttese do jogo a seriedade, e tambm num sentido muito especial, o de trabalho, ao passo que seriedade podem tambm opor-se a piada e a brincadeira. Os dois termos no possuem valor idntico: jogo positivo, seriedade negativo. O significado de seriedade definido de maneira exaustiva pela negao do jogo seriedade significando ausncia de jogo ou brincadeira e nada mais. Por outro lado, o significado de jogo de modo algum se define ou se esgota se considerado simplesmente como ausncia de seriedade. O jogo uma entidade autnoma. O conceito de jogo enquanto tal de ordem mais elevada do que o de seriedade. Porque a seriedade procura excluir o jogo, ao passo que o jogo pode muito bem incluir a seriedade.

    Johan Huizinga, Homo Ludens

    No meu, no meu quanto escrevo./ A quem o devo? No sou eu quem descrevo/ Eu sou a tela./ E oculta mo colore algum em mim.

    Fernando Pessoa, Poesias

    Se as pginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de t-lo usurpado eu, previamente. Nossos nadas pouco diferem; trivial e fortuita a circunstncia de que sejas tu o leitor destes exerccios, e eu seu redator.

    Jorge Luis Borges, Fervor de Buenos Aires

    A modernidade na literatura, entre outras turbulncias, foi assinalada por um profundo movimento de revoluo interna das narrativas. Enquanto se anunciava o esgotamento e a morte do romance herdeiro natural do clssico gnero pico que registrava os grandes feitos nacionais imperialistas e exaltava o herosmo individual , as histrias sofriam uma guinada reativa na direo das mais diversas contestaes que assolavam o planeta na era ps-colonial: voltavam-se para o menor, para o menos, para o ntimo, para o cmico, para a dvida, para o anti-heri.

    Em sua famosa Teoria do Romance (2000), e muito antes que o gnero sofresse seus abalos mais devastadores, Georg Lukcs j o definia como uma busca degradada de valores autnticos por um heri problemtico num mundo tambm degradado. Embora vlida para definir o Dom Quixote, de Cervantes, escrito no sculo XVII, considerado o precursor do romance moderno, (em

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    contraposio ao pico Os lusadas, de Cames, por exemplo) a histria de um velho leitor aficcionado por novelas de cavalaria, que tenta pr em prtica a tica templria num tempo em que esta j no cabe mais; a definio proposta por Lukcs j no comporta a personalidade cnica de Pierre Menard, o moderno e hipottico autor do Dom Quixote de Cervantes, imaginado por Jorge Luis Borges em seu livro Fices (1999), no sculo XX.

    Figuras 20-21. A imagem da dupla Dom Quixote e Sancho Pana: to codificada no imaginrio popular ocidental que reconhecvel atravs de uma meros rabiscos caricaturais. Na charge, a dupla aparece como uma representao de opostos, na qual o personagem Sancho apresentaria a viso que uma cincia que muitas vezes confunde-se com o senso comum concede aos sujeitos hiperativos e excessivamente imaginativos do mundo atual (Quixotes): receitando-se umas doses de Rivotril, eles param de causar transtornos.

    Autor de contos, um gnero menor (em extenso, obviamente), e certamente menos pretensioso que o romance, Borges transforma o escritor e o crtico literrio nos seus personagens

    favoritos, espelhando-se ironicamente em Menard ao afirmar, no prlogo s Fices:

    Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas pginas uma idia cuja exposio oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento simular que estes livros j existem e apresentar um resumo, um comentrio. (...) Mais razovel, mais inepto, mais ocioso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginrios (BORGES, 1999, p.473).

    Enquanto o Dom Quixote, como leitor, um aventureiro que procura transformar a literatura em vida, e sai pelo mundo afora para dar vazo aos seus nobres e generosos sonhos cavalheirescos, Pierre Menard, como leitor, um preguioso e um oportunista: importa-se mais

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    com honras circunstanciais e glrias pessoais do que com a salvao de sua alma ou das almas alheias. Tambm no tem escrpulos de autoria nem de legitimidade, j no se preocupa com a originalidade criativa, e nem mesmo acredita nela. Figura, assim, como um pr-modelo de rebeldia autoral contempornea, fornecendo uma imagem do escritor em meio digital que contraria, aparentemente, toda a tica passada; mas que, por outro lado, fornece uma resistncia tica s expectativas e critrios norteadores da publicao pelas editoras de livros impressos, responsveis pela transformao do livro numa mercadoria.19

    O que Borges parece proclamar em seu conto, no entanto, no a ruptura com a tica da novela de Cervantes (assim como esta no teria rompido essencialmente com a tica das epopias), mas, de forma peculiar, a sua continuao, na medida em que pe em prtica um critrio do jogo mencionado por Huizinga (2008): o exerccio de uma seriedade que se expressa atravs da brincadeira, do ldico e do humor, em outras palavras, de um herosmo, que no deixa de existir, ainda que disfarado no seu oposto.20

    Da a narrativa impressa moderna haver encontrado no paradoxo uma estratgia para o nico jogo possvel de seu tempo: o jogo dos disfarces e das mscaras, das figuras ambguas e dos

    19 Huizinga muito claro a respeito da degenerescncia do conceito sagrado do jogo quando fala da dificuldade de se

    procurar um verdadeiro contedo ldico na confuso da vida moderna: No caso do esporte temos uma atividade nominalmente classificada como jogo, mas levada a um grau tal de organizao tcnica e de complexidade cientfica que o verdadeiro esprito ldico se encontra ameaado de desaparecimento. Todavia, h outros fenmenos que parecem apontar no sentido oposto ao desta tendncia para o excesso de seriedade. Surgem certas atividades cuja razo de ser depende inteiramente do interesse comercial e que em sua fase inicial no tinham nada a ver com o jogo, nas quais o elemento ldico s pode ser coisas srias que se transformam em jogo e nem por isso deixam de ser consideradas srias.(...) Esse impulso dado ao princpio agonstico, que parece estar novamente levando o mundo em direo do jogo, deriva principalmente de fatores externos e independentes da cultura propriamente dita, numa palavra, dos meios de comunicao, que tornaram toda espcie de relaes humanas extraordinariamente fceis. A tcnica, a publicidade e a propaganda contribuem em toda a parte para promover o esprito de competio, oferecendo em escala nunca igualada os meios necessrios para satisfaz-lo. claro que a competio comercial no faz parte das imemoriais formas sagradas do jogo. Ela surge apenas a partir do momento em que o comrcio passa a criar campos de atividade em que cada um precisa esforar-se ao mximo por ultrapassar o prximo. (...) A conseqncia disso haver hoje um aspecto esportivo em quase todo triunfo comercial ou tecnolgico. (...) Os negcios se transformam em jogo. (HUIZINGA, 2008, p.222) 20

    Ainda segundo Huizinga, A verdadeira civilizao no pode existir sem um certo elemento ldico, porque a civilizao implica a limitao e o domnio de si prprio, a capacidade de no tomar suas prprias tendncias pelo fim ltimo da humanidade, compreendendo que se est encerrado dentro de certos limites livremente aceites. De certo modo, a civilizao sempre ser um jogo governado por certas regras, e a verdadeira civilizao sempre exigir o esprito esportivo, a capacidade de fair play. O fair play simplesmente a boa f expressa em termos ldicos. Para ser uma vigorosa fora criadora de cultura, necessrio que este elemento ldico seja puro, que ele no consista na confuso ou no esquecimento das normas prescritas pela razo, pela humanidade ou pela f. preciso que ele no seja uma mscara, servindo para esconder objetivos polticos por trs da iluso de formas ldicas autnticas. (HUIZINGA, 2008, p.234)

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    objetos impossveis. O jogo de uma nobreza disfarada, de um prncipe que pede para trocar de vestes e de realidade com um mendigo; um jogo de espelhos que foi exaustivamente posto em prtica por muitas figuras exponenciais da literatura na modernidade, e que assinalou por diversas vezes, na prpria esttica dessas obras, o esboo de novos recursos expressivos e o ensaio de novas tcnicas narrativas que viriam a se constituir numa demanda por uma escrita s plenamente alcanada no futuro, com o advento do ambiente hipertextual, multimdia e interativo da atualidade.

    Figuras 22-23.Un coup de ds jamais nabolira lhasard (Um lance de dados jamais abolir o acaso), afirmou Mallarm, uma frase que se tornou smbolo da superioridade do imprevisvel sobre as regras do jogo, e da liberdade da criao sobre os constrangimentos da tcnica. Os objetos impossveis, figuras ambguas da matemtica, expressam este princpio no mbito da cincia, desafiando a lgica e tornando-se importantes como metafiguras inspiradoras da arte e da literatura na atualidade.

    Figura 24. Gravura ambgua ou paradoxo visual de M. C. Escher. O fascnio que os desenhos de M. C. Escher exercem parece ser inesgotvel, desafiando-nos o tempo todo a dar sentido a algo que aos nossos olhos est correto, mas que o crebro se recusa a aceitar. No foi por acaso que seu trabalho teve uma influncia concomitante da Psiquiatria e da Matemtica: Escher j era um artista conhecido por suas gravuras geomtricas e divises regulares do espao,

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    merecendo uma exposio durante o Congresso Internacional de Matemtica de Amsterd, em 1954. Ali o matemtico Roger Penrose ficou maravilhado pelos desenhos, e decidiu criar as figuras impossveis. Junto com seu pai, Lionel Penrose, psiquiatra ingls bastante influente, elaboraram um pequeno artigo no qual apresentaram o famoso tringulo impossvel. Sem ter onde publicar o trabalho, dada a sua indita multidisciplinaridade, Lionel convenceu o editor do British Journal of Psychology a public-lo com o ttulo Impossible objects: a special type of visual illusion, em 1958. Num objeto impossvel, embora a geometria das partes que o constituem seja perfeita, o conjuto no o . Como eles explicam no artigo, os componentes do desenho individualmente fazem sentindo, mas as conexes entre eles so falsas. Assim, a geometria da figura torna-se ambgua ou contraditria paradoxal, portanto forando-nos constantemente a reintepret-la, medida em que a percorremos com o olhar.

    Encontramos este jogo no lance de dados de Mallarm, na impressionante ulisseia de James Joyce, nos labirintos de Poe e Kafka, nos abismos profundos e superficiais de Lewis Carroll, nos desassossegos do livro de Fernando Pessoa, nos castelos de cartas de talo Calvino, e em diversos exemplos mais recentes extrados tanto da literatura potencial europeia como da literatura experimental, sobretudo na Amrica Latina, como nas obras de Julio Cortzar e Osman Lins, para no mencionar novamente o prprio Borges.21

    Esta noo pode ou no apelar para a metfora de jogos conhecidos, sejam eles de tabuleiro, de linguagem, adivinhatrios, infantis ou erticos, com suas regras e contraintes, porm sem aquele imperativo que to frequentemente faz do jogo uma competio: a obrigatoriedade de ganhar ou a inevitabilidade de perder, que rouba ao exerccio toda a leveza e transforma todo o prazer num trabalho. Tais jogos incluem, quase sempre, um princpio de fragmentao da continuidade narrativa, e um forte apelo participao do interlocutor o que poderia ser considerado um elemento precursor da interatividade, conceito hoje quase indissocivel da prtica ps-moderna de se narrar uma histria em parceria, co-autoria, co-laborao ou mesmo em dilogo com o leitor.

    Um dos projetos mais visionrios (e, por isso mesmo, irrealizado), proposto ainda no sculo XIX, foi idealizado por Stphane Mallarm. A obra de Mallarm le Livre seria um livro integral, um objeto no qual estariam contidos, virtualmente, todos os livros possveis, que se organizariam e reorganizariam seguindo regras prprias em busca de uma organicidade, de modo que nenhuma leitura poderia ser repetida, uma vez que, devido ao seu movimento contnuo de se refazer, o livro no teria nem comeo nem fim. Dessa forma, le Livre no seria uma obra que daria

    21 Huizinga cuidadoso quando comenta sobre essa constante procura de formas novas e nunca vistas da arte no sculo

    XX: A arte est muito mais sujeita do que a cincia influncia deletria da tcnica moderna. A mecanizao, a publicidade e o desejo de fazer sensao atingem muito mais fortemente a arte, porque regra geral esta produz diretamente para o mercado e pode escolher livremente entre todas as tcnicas que no momento se encontram disponveis(HUIZINGA, 2008, p. 223). O terico dos jogos alerta para um risco da autoconscincia nos meios artsticos e a metalinguagem praticamente a marca das produes contemporneas. Diz ele que: era altamente benfico para a arte no ter conscincia de sua importncia e da beleza que era capaz de criar. Quando a arte se torna autoconsciente, isto , consciente de sua prpria grandeza, ela se arrisca a perder uma parte de sua eterna inocncia infantil e da alegria espontnea do ldico. (HUIZINGA, 2008, p.224). Isto soaria um tanto conservador no contexto dos movimentos artsticos que buscam a autoconscincia, se no atentssemos para o fato de que os artistas de que falamos tornam-se (e buscam tornar seus leitores) conscientes de seus meios, e no de sua prpria importncia.

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    espao para uma multiplicidade de interpretaes, mas sim uma obra potencial, que poderia gerar uma infinidade de poemas ou narrativas a partir da combinao de um nmero reduzido de clulas de base. Embora Mallarm tenha realmente tentado redigir a obra (como se soube atravs das pesquisas do fillogo Jacques Scherer), faltaram-lhe os recursos tecnolgicos para realizar seu projeto, restando ao le Livre de Mallarm o papel de livro do futuro (le livre venir), ou seja, o papel de apontar para as produes que seriam desenvolvidas a partir dali.

    Como sugere Arlindo Machado22, o sonho de Mallarm se atualizaria numa srie de obras da literatura contempornea, como o poema combinatrio Cent mille milliards de pomes (1961), do oulipiano Raymond Queneau, os poemas-imagens dos concretistas, os poemas hologrficos de Julio Plaza, alm do prprio hipertexto. Somado a essa lista, poderamos dizer que, na prtica eletrnica, o stir fry texts, um dos gneros mais populares da atualidade, desenvolvido com o uso de softwares geradores de textos, conseguiu desenvolver e expandir o princpio bsico da escrita combinatria, realizando o sonho de Mallarm atravs da criao de textos mais ou menos aleatrios a partir da seleo de certas unidades lingusticas, e de uma programao que determina as possibilidades que elas possuem de se articular a fim de gerar um texto novo.

    Nesta mesma linha posiciona-se o poeta portugus Fernando Pessoa, autor de um nico compndio narrativo: O livro do desassossego (2006), escrito ao longo de sua vida (1888-1935): uma obra fragmentada, inacabada e de publicao pstuma (a primeira datada de 1982). O que h de surpreendente neste livro o seu carter potencial, seu carter de vir-a-ser na dependncia de seus leitores, que se tornam os organizadores das mltiplas verses possveis desse livro inclassificvel. Composto por diversos fragmentos de narrativas atribudas a um mesmo heternimo (o ajudante de guarda-livros Bernardo Soares), O livro do desassossego pode assumir variadas formas dependendo do projeto editorial; e a isso somam-se as infinitas variedades de ordenao de leitura que tais fragmentos podem adquirir depois de reunidos e publicados.

    22 Uma arquitetura permutatria e tridimensional de escrita algo que s recentemente pde ser experimentado,

    praticado e at mesmo vulgarizado atravs das novas tecnologias. As mquinas contemporneas parecem fadadas a realizar e difundir amplamente o projeto construtivo das vanguardas histricas, esse sonho de poder concretizar um dia a representao do movimento, do virtual, do simultneo, do instantneo e do eternamente mutante. Quando um usurio moderno se coloca diante de um terminal de videotexto e se pe a selecionar as pginas de informao, percorrendo um caminho singular dentro do imenso labirinto das eqiprobabilidades do banco de texto, ele est, num certo sentido, materializando (mas tambm banalizando) o sonho mallarmiano de uma escritura em contnua expanso e em permanente metamorfose, graas s propriedades combinatrias do sistema. (Machado, 1996, p.167)

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    Mais que a realizao de uma obra potencial, O livro do desassossego serve como uma metafigura23 de toda a obra de Fernando Pessoa e seus heternimos, como argumenta Ferreira (2007): j que o nico livro que Pessoa publicou em vida foi sua epopeia lrica Mensagem (1934), todos os textos restantes do autor, guardados numa arca e espera de serem encontrados pelas geraes futuras, poderiam ser entendidos como uma obra potencial, uma vez que so formados por vrios fragmentos textuais de diversos heternimos que dialogam entre si, podendo ser recompostos de inmeras maneiras para gerar uma infinidade de significados.

    Figura 25. A metafigura do Pato-Coelho, conforme apareceu na revista de humor alem Fliegende Blatter, em 1892. Tal figura torna-se alvo de estudos de psiclogos, filsofos e tericos das artes a partir do ano de 1900.

    23 Metafiguras so imagens que se mostram a si mesmas para que possam conhecer a si mesmas: elas encenam o

    autoconhecimento das imagens. () Elas no se referem a si mesmas, ou a uma classe de imagens, mas empregam uma gestalt nica para mudar de uma referncia para outra. A ambiguidade da sua referencialidade produz um tipo de efeito secundrio de autorreferncia ao desenho como desenho, um convite ao expectador para que ele retorne com fascnio ao misterioso objeto cuja identidade parece ser to mutvel e, ao mesmo tempo, to absolutamente singular e definida. (...) Elas no so meramente modelos epistemolgicos, mas montagens (assemblages) ticas, polticas e estticas que nos permitem observar observadores. Em suas formas mais fortes, elas no servem meramente como ilustraes para teorias; elas ilustram teoria. (MITCHELL, 1994, p. 49). Um bom exemplo de uma metafigura o famoso Duck-Rabbit, ou Pato-Coelho, usado como alegoria nos textos de Wittgenstein e nos compndios da psicologia Gestalt (Fig. 25).

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    Figuras 26-27. O teatro ntimo do ser, de Miguel Yeco, sobre a obra de Fernando Pessoa. Em Pessoa na janela de Magritte, do livro Dois estudos pessoanos (2004), Ermelinda Ferreira analisa a importncia que a pintura do surrealista Ren Magritte exerceu na vertiginosa recepo plstica de que foi alvo a obra literria de Fernando Pessoa a partir dos anos 1980 em Portugal. Autor do famoso quadro Ceci nest-pas un pipe, ou Isto no um cachimbo, verdadeira metafigura que inspirou a obra homnima de Michel Foucault sobre a importncia do caligrama na arte moderna, Magritte funcionou, para os artistas plsticos portugueses modernos, como um verdadeiro terico do espao virtual, da interatividade e da atemporalidade presentes na obra pessoana, tambm muito antes do advento dos discursos sobre o ciberespao.

    interessante notar que a forma como Pessoa constri sua relao com os heternimos que criou, na qual o dilogo que os personagens-autores estabelecem com o prprio autor, convertido em personagem, cria uma espcie de teatro ficcional; assemelha-se forma como se comportam os atuais usurios de jogos eletrnicos. Em The Sims24, por exemplo, o usurio lida com os personagens que cria e controla, fazendo com que cada um desempenhe um papel importante na trama que se desenvolve. Parte dessa relao entre Pessoa e seus heternimos, na qual a linha divisria entre o autor real e os personagens-autores t