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PRISCILA FREHSE PEREIRA

PSICANLISE E SURDEZ: METFORAS CONCEITUAIS DA SUBJETIVIDADE EM LIBRASDissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Letras, Curso de Ps-Graduao em Letras - rea de concentrao Estudos Lingsticos, Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paran. Orientadora: Prof. Dr. Elena Godoi

CURITIBA 2007

Para Nilceu Frehse, por seu amor aos livros, por seu modo de ver o mundo. Para Marcio Robert, pelos sonhos realizados.

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AGRADECIMENTOS

A Elena Godoi, pela confiana e pelo exemplo como pesquisadora e pensadora. A Fbio Th, pela coragem de pensar a psicanlise no contexto cientfico atual, por dividir e incentivar o pensamento crtico. A Rossana Finau, por apontar os primeiros caminhos no campo da surdez, pela ateno dispensada nos mais variados momentos do trabalho e pela leitura atenta e crtica. A Gertrud Frahm, pelo incentivo e apoio ao longo de todo o mestrado, pela luz para o ttulo do trabalho e por sua paixo pela psicologia. A Eduardo Vicenzi, por me apresentar lingstica, pelas discusses e companhia nos cafs depois dos atendimentos, mas sobretudo pela amizade. A todos os meus professores surdos, especialmente Rosani Suzin, por despertarem em mim uma admirao profunda pela Libras e pela comunidade surda. intrprete Ivy B. Cmara Leo Clelsch, pelo auxlio, ateno e pacincia nas infindveis dvidas sobre a Libras. Ao CRESA, em especial psicloga Rute, pela acolhida e disponibilidade de me auxiliar na realizao do meu trabalho. A meu primo, Paulo Barankoski, pela prontido em ajudar com traduo, mesmo no sbado noite. A meus avs, Odilma e Nilceu, por seus exemplos, por seu amor e por entenderem minhas ausncias. A meus pais, Helosa e Tadeu, pelo amor, pela confiana e pelo apoio incondicional aos caminhos que escolhi para minha vida e por me ensinarem o respeito s diferenas. A meus irmos Rodrigo e Larissa, pela ajuda na realizao do trabalho, pelas inmeras explicaes fsico-qunticas e discusses poltico-punk-jurdicas, pelo apoio e amizade. A Marcio Robert, pelas leituras, pela amizade, pelo apoio, pela pacincia e por estar sempre presente.

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Nunca me agradou, sinceramente, a palavrinha menos -vlido, e no porque a tome no sentido pejorativo. No isso, no por mim, mas sim pelos que nos olham e nos vem enquadrados em tal denominao que correm o risco de sentir-se por uma espcie de reflexo psicolgico, mxi -vlidos. Augustin Yanes Valer

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SUMRIOLISTA DE ILUSTRAES .................................................................................................vii RESUMO ...............................................................................................................................viii ABSTRACT .............................................................................................................................ix 1 INTRODUO ....................................................................................................................1 2 APRESENTANDO A SURDEZ: EDUCAO DE SURDOS, LNGUAS DE SINAIS E IDENTIDADES .................................................................................................6 2.1 A REVOLTA DOS ESTUDANTES EM GALLAUDET .....................................................6 2.2 A HISTRIA DA EDUCAO DE SURDOS ..................................................................8 2.3 O ESTATUTO LINGSTICO DAS LNGUAS DE SINAIS .........................................12 2.4 ATUALIDADE NA EDUCAO DE SURDOS: EM DEFESA DO ENSINO BILNGE .........................................................................................................................15 2.5 A surdez no Brasil: histrico da Educao dos Surdos e das pesquisas em Libras ................................................................................................17 2.6 COMUNIDADE SURDA E A QUESTO DA IDENTIDADE .......................................21 3. PSICANLISE E SURDEZ: DA TICA AO DELINEAMENTO DE UMA INTERFACE COM A SEMNTICA COGNITIVA ....................................................26 3.1 A PSICANLISE COMO CONTRAPONTO PSICOLOGIA DA SURDEZ ................26 3.2 O MODUS OPERANDI DE CONSTRUO DA PSICANLISE FREUDIANA ............................................................................................................................................31 3.3 PSICANLISE E SEMNTICA COGNITIVA ...............................................................39 4. SEMNTICA COGNITIVA: O ESTUDO DAS METFORAS CONCEITUAIS .............................................................................................................................................44 4.1 CARACTERIZAO DAS CINCIAS COGNITIVAS .................................................44 4.2 As pesquisas cognitivas sobre a mente: do formalismo imagtica mental ..............................................................................................................45 4.3 AS PESQUISAS COGNITIVAS SOBRE A LINGUAGEM: A DELIMITAO DO CAMPO DA SEMNTICA COGNITIVA ................................................................48 4.4 AS METFORAS CONCEITUAIS ................................................................................. 52 4.5 METFORAS CONCEITUAIS DA SUBJETIVIDADE: O SISTEMA METAFRICO SUBJECT/SELF ......................................................................................56

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4.5.1 O Self Objeto Fsico ........................................................................................................58 4.5.2 O Self Locacional ............................................................................................................60 4.5.3 O Self Social ....................................................................................................................62 4.5.4 Metfora do Sujeito Projetado ........................................................................................64 4.5.5 O Self Essencial ...............................................................................................................64 4.6 METFORAS EM LNGUAS DE SINAIS ......................................................................66 5. METFORAS CONCEITUAIS DA SUBJETIVIDADE EM LIBRAS ......................70 5.1 METODOLOGIA DE PESQUISA ....................................................................................70 5.1.1 O Processo de Aproximao da Comunidade Surda ......................................................70 5.1.2 Procedimentos de Anlise dos Dados .............................................................................72 5.1.3 Delimitao e Levantamento do Corpus .........................................................................73 5.2 Anlise das metforas conceituais da subjetividade em Libras ................................................................................................................................78 5.2.1 Self Objeto Fsico ............................................................................................................78 5.2.1.1 Controle do self possesso objetal .............................................................................78 5.2.1.2 Controlar o corpo do outro tomar posse do outro .....................................................79 5.2.2 Self Locacional ................................................................................................................84 5.2.2.1 Self como continente ....................................................................................................84 5.2.2.2 Controlar o self estar num lugar familiar ..................................................................85 5.2.2.3 Controlar o self estar no cho ....................................................................................86 5.2.3 Self Social ........................................................................................................................87 5.2.4 Metfora do Sujeito Projetado ........................................................................................95 5.2.5 Self Essencial ..................................................................................................................95 5.3 DISCUSSO E RESULTADOS .......................................................................................98 5.3.1 A Adequao do Sistema Metafrico Proposta de LAKOFF e JOHNSON (1999) .....98 5.3.2 Metforas Conceituais da Subjetividade e a Comunidade Surda .................................100 CONCLUSO ......................................................................................................................103 REFERNCIAS ...................................................................................................................106 ANEXOS ...............................................................................................................................112

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LISTA DE ILUSTRAES FIGURA 1 - ENUNCIADO (1) ...............................................................................79 FIGURA 2 - ENUNCIADO (2) ...............................................................................80 FIGURA 3 - ENUNCIADO (3) ...............................................................................81 FIGURA 4 - ENUNCIADO (4) ..........................................................................82-83 FIGURA 5 - ENUNCIADO (5) ...............................................................................84 FIGURA 6 - ENUNCIADO (6) ...............................................................................85 FIGURA 7 - ENUNCIADO (7) ...............................................................................87 FIGURA 8 - ENUNCIADO (8) ...............................................................................88 FIGURA 9 - ENUNCIADO (9) ...............................................................................88 FIGURA 10 - MSICA (10) ................................................................................90-91 FIGURA 11 - ENUNCIADO (13) ............................................................................93 FIGURA 12 - ENUNCIADO (14) ............................................................................95 FIGURA 13 - ENUNCIADO (16) ......................................................................96-97 QUADRO 1 SNTESE DAS METFORAS CONCEITUAIS DA SUBJETIVIDADE EM LIBRAS ...................................................100

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RESUMO O estudo das metforas conceituais da subjetividade em Libras (Lngua Brasileira de Sinais) resultado de uma proposta de estudo interdisciplinar. O percurso histrico das representaes da surdez, da educao de surdos e estatuto da lngua de sinais aponta para a necessidade de uma reflexo sobre as relaes entre, lngua, cultura e subjetividades. A psicanlise se insere neste contexto como uma possibilidade de valorizao da subjetividade dos sujeitos surdos, a partir da dimenso tica da teoria freudiana. A idia de diviso subjetiva como pressuposto da teoria freudiana e o resgate da dimenso semntica de sua obra fundamentam a interface com a semntica cognitiva e, em especial, com o estudo das metforas conceituais da subjetividade. O histrico das cincias cognitivas e a delimitao do campo de pesquisa das metforas conceituais fornecem o embasamento para o trabalho de campo: verificar a adequao do sistema metafrico subject/self, proposto por LAKOFF e JOHNSON (1999), Libras. A anlise dos dados aponta para a utilizao da metfora bsica subject/self e das cinco principais especificaes desta metfora em construes dos sinalizantes da Libras. Trata-se de um levantamento inicial, mas que fornece elementos para alguns questionamentos sobre o alcance da teoria das metforas conceituais e sua relao com a lngua e a cultura. Atravs da demonstrao da riqueza de processos metafricos na Libras, pretende-se contribuir para a valorizao das lnguas de sinais, e para a desmitificao de preconceitos acerca da subjetividade dos sujeitos surdos. Palavras-chave: Psicanlise, Surdez, Metforas Conceituais, Libras, Semntica Cognitiva.

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ABSTRACT The study of conceptual metaphors of subjectivity at Libras (Lnguas Brasileira de Sinais) is the result of one purpose in an interdisciplinary study. The historic course of the representation of the deafness, of the education of the deaf and the statute of the Sign Language shows the necessity of a reflection about the relations among language, culture and subjectivity. The psychoanalysis is inserted in this context as a possibility of the valorization of subjectivity of deaf people, from the ethic dimension of the Freuds theory. The idea of subjective division as a purpose of Freuds theory and rescuing the semantic dimension of his work base the interface with the cognitive semantic and, in special, with the study of the conceptual metaphors of the subjectivity. The historic of the cognitive sciences and the delimitation of the field of research of conceptual metaphors provide the foundation to the field work: verify the adaptation of the metaphor system subject/self, proposed by LAKOFF and JOHNSON (1999), to Libras. The analysis of the information aims the utilization of the basic metaphor subject/self and the five main specifications of this metaphor in construction of the signs of Libras. Its about an initial survey, which can offer elements for some questionings about the reach of the theory of the conceptual metaphors and its relation with the language and the culture. Through the rich demonstration of metaphoric process at Libras, it intends to contribute to the valorization of the Sign Language, and demystifying prejudices about the subjectivity of the deaf people.Key-words: Psychoanalysis, Deafness, Conceptual Metaphors, Libras, Cognitive Semantic.

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INTRODUO O avano das pesquisas em lngua de sinais e educao de surdos, nas ltimas quatro dcadas, tornou necessrio o redimensionamento do campo da surdez. O tratamento da surdez enquanto patologia e a concepo dos sinais como um modo de comunicao primitivo comeou a ser questionado, dando lugar concepo de surdez como fenmeno cultural e ao reconhecimento do estatuto lingstico das lnguas de sinais. No Brasil, no entanto, foi somente a partir da dcada de 90, que os trabalhos sobre a Libras Lngua Brasileira de Sinais1 comearam a se desenvolver, impulsionando a discusso sobre a educao e direitos da comunidade surda. Concomitantemente, a comunidade surda comeou efetivamente a se organizar e, nos ltimos cinco anos, as primeiras conquistas em termos de legislao e reconhecimento da opinio pblica dos direitos dos surdos comearam a ser percebidos. So cada vez mais visveis as iniciativas de se voltar para a surdez a partir de um novo olhar, no da perspectiva do patolgico, mas de sujeitos com uma organizao cultural especfica. (FERNANDES, 1998; FINAU, 2004) Trabalhar a questo da surdez, a partir destes novos paradigmas, portanto, implica a insero em campo por natureza interdisciplinar. No h como estudar lingstica, educao, psicologia ou antropologia, na rea da surdez, sem considerar a inter-relao entre elas. Mas, se no mbito da educao e lingstica, a necessria interdisciplinaridade e o questionamento dos paradigmas vigentes j esto se consolidando, no que diz respeito psicanlise, tal tema s entrou em discusso nos ltimos dez anos, por autores isolados, e a partir de um ponto de vista internalista, isto , de quais seriam as particularidades da constituio do sujeito surdo do ponto de vista da prpriaA partir do Decreto n 5.626, de 22/12/05, a sigla passou a ser grafada Libras, e no mais LIBRAS, como estava na Lei n 10.436, de 24/4/02 (regulamentada pelo referido Decreto), embora mantendo o nome Lngua Brasileira de Sinais. Alguns autores preferem utilizar a sigla LSB Lngua de Sinais Brasileira. Segundo SASSAKI (2006), tal nomenclatura seria a mais correta, uma vez que lngua de sinais refere -se modalidade lingstica quiroarticulatria-visual. Assim tem-se a Lngua de Sinais Americana, a Lngua de Sinais Mexicana, a Lngua de Sinais Japonesa, e assim por diante. No presente trabalho, optou-se por utilizar Libras, por ser este o nome consagrado pela comunidade surda brasileira.1

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psicanlise. (SOL, 2004) Neste sentido, o presente trabalho se diferencia de uma pesquisa psicanaltica tradicional. Embora o ponto de partida seja a psicanlise, a proposta do presente trabalho pretende se adequar s discusses atuais acerca da surdez e da Libras, abarcando questes relativas lingstica, educao e identidades surdas. Para que fosse possvel construir esta proposta interdisciplinar, foi necessrio um longo percurso, partindo da psicanlise, passando pelos estudos lingsticos at uma aproximao efetiva da comunidade surda. Uma rpida sntese deste trajeto ser apresentada a seguir2. Desde o incio de minha prtica clnica, havia uma inquietao em relao articulao teoria-prtica na psicanlise. Parecia haver uma lacuna entre a teoria e o que de fato acontecia na experincia clnica. Esta inquietao levou-me busca por respostas epistemolgicas e, inevitavelmente, ao questionamento sobre a importncia da linguagem em psicanlise e a concepo de linguagem subjacente s teorias. Imersa nestes estudos essencialmente tericos, comeou a me intrigar a seguinte questo: se a psicanlise opera via fala, e a escuta o principal instrumento do psicanalista, seria possvel pensar a anlise para sujeitos surdos? A partir desta questo, um novo leque de possibilidades de estudos se abriu diante de mim. Animada com um questionamento que me remetia prtica, resolvi lev-lo a srio e iniciei uma busca de material sobre surdez. Com algumas leituras bsicas e o incio da aprendizagem da Libras, percebi que a questo que havia me levado a estudar a surdez era, na realidade, bastante ingnua. A literatura atual j no deixava dvidas quanto ao estatuto lingstico das lnguas de sinais. Do percurso terico que me levou a esta constatao, resultou uma outra questo. No fazia mais sentido elaborar uma questo sobre a possibilidade de anlise para sujeitos surdos, pois se h uma lngua e se o uso da lngua o instrumento da anlise, a constatao da possibilidade de um tratamento psicanaltico em sujeito surdos tornou-se bvia. Portanto, a especificidade da questo

Neste momento, peo licena ao leitor para utilizar primeira pessoa para poder ser mais fiel s inquietaes que me levaram realizao desta pesquisa. Ao longo do texto, este recurso ser utilizado sempre que a referncia for meu percurso de construo da pesquisa.

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do surdo j no poderia ser abordada do ponto de vista da deficincia. Qualquer tentativa de realizar um trabalho por este vis, no estaria baseada seno em preconceito lingstico. Contudo, embora minhas leituras tivessem apontado para esta constatao, percebi que, na prtica, inmeros preconceitos sobre a subjetividade dos surdos ainda esto presentes. Como se o reconhecimento da lngua, no implicasse, necessariamente, o reconhecimento de possibilidades de uma constituio subjetiva to complexa quanto a dos falantes de qualquer lngua oral. Assim, partindo da suposio da existncia de uma inter-relao entre linguagem e subjetividade, fui em busca de estudos que relacionassem psicanlise e lingstica e que fornecessem o embasamento terico adequado para pensar sobre a questo. Dos estudam que aprofundam esta interface, elegi como referncia o trabalho de Fbio TH (2003) que realiza a interface da psicanlise com as pesquisas recentes em psicologia e lingstica cognitiva. Os estudos sobre metforas conceituais abordados por este autor pareceram bastante ricos para pensar na relao entre linguagem e subjetividade, em especial, o estudo que trata das metforas conceituais da subjetividade por proposto LAKOFF e JOHNSON (1999). A teoria das metforas proposta por estes autores advoga uma inter-relao entre cultura e cognio, e cognio e lngua. No nvel mais especfico, no que diz respeito s metforas conceituais da subjetividade, os autores identificaram, nos falantes de Lngua Inglesa, uma metfora bsica que atesta que os sujeitos conceituam a si mesmo como divididos, concepo absolutamente coerente com um dos pressupostos bsicos da teoria freudiana. Assim, a verificao da existncia das metforas conceituais da subjetividade em Libras pareceu ser uma proposta adequada ao objetivo mais amplo: relacionar lngua e subjetividade para abordar a questo da surdez. Uma vez definido o objetivo do trabalho, o prximo passo foi pensar em como ele seria sistematizado, como seria realizada a coleta de dados e qual seria a sua abrangncia. Foi ento que os problemas maiores comearam a surgir. Todo o percurso terico que me levou delimitao do campo de pesquisa teve que ser desconstrudo face realidade da populao surda no Brasil. Os surdos que eu queria investigar, membros de uma comunidade surda, tendo a lngua de sinais como lngua

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materna adquirida desde a mais tenra infncia, eram praticamente inexistentes. Mais de 90% dos surdos so filhos de pais ouvintes e acabam adquirindo uma lngua de sinais, quando adquirem, em perodo tardio. Perplexa diante desta nova realidade, que na verdade no nova, mas a nica existente, precisei novamente ampliar meu campo de pesquisa, com vistas a tentar compreender esta lacuna entre teoria e prtica (e mais uma vez, retornando problematizao inicial que motivara todo o percurso terico do meu trabalho), mas com mais algumas variveis a serem consideradas. Assim, estrutura essencialmente interdisciplinar desta pesquisa, foi necessrio acrescentar um novo campo de estudo: a educao, ou mais especificamente o percurso histrico da educao dos surdos e a problemtica das identidades surdas. Foi em meio a este embate de idias que se construiu o presente trabalho. Mais que os resultados concretos da pesquisa sobre as metforas conceituais da subjetividade em Libras, esta pesquisa pretende apontar, atravs do estudo das metforas conceituais da subjetividade em Libras, alguns caminhos para refletir sobre as inter-relaes entre lngua, cultura e subjetividade. Este trabalho tambm se constitui como uma ferramenta para desmistificar preconceitos acerca da subjetividade das pessoas surdas e utiliza e aprofunda a mais valiosa e inquestionvel conquista da Comunidade Surda Brasileira: o direito a se expressar com sua prpria lngua. Ora, se a proposta estudar as relaes entre lngua e cognio, e considerando que a Libras uma lngua e, mais que isto, a lngua materna do surdo, qualquer hiptese que se proponha a tratar da subjetividade dos sujeitos surdos em termos de dficits inerentes limitao auditiva a que estas pessoas esto submetidas, estar ancorada unicamente em vises preconceituosas no s acerca da surdez, mas tambm da linguagem e subjetividade humanas. No captulo inicial, um panorama geral da histria dos surdos e das lnguas de sinais apresentado, com enfoque nas questes lingsticas, educativas, culturais e de identidade. O objetivo deste captulo contextualizar a surdez, apresentando os novos paradigmas na educao de surdos e em defesa uma abordagem interdisciplinar da surdez.

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No captulo seguinte, apresentada uma proposta de configurao do campo de pesquisa da psicanlise na rea da surdez, situando-as como uma possibilidade de contraponto concepo ouvintista. Uma rpida apresentao sobre a tica da psicanlise freudiana realizada, relacionando-a com um pressuposto fundamental da psicanlise: a idia de diviso subjetiva e a importncia da dimenso semntica da obra freudiana. A partir destas idias, ser estruturada a proposta da interface da psicanlise com a semntica cognitiva, com a teoria das metforas conceituais da subjetividade, buscando uma valorizao da Libras e, conseqentemente, da subjetividade dos sujeitos surdos. Pretende-se demonstrar a coerncia dos pressupostos freudianos com as principais reivindicaes atuais dos Surdos. No captulo IV, apresentada a caracterizao do campo das cincias cognitivas e o embasamento epistemolgico de uma de suas vertentes, a semntica cognitiva. A definio de metfora conceitual, conceito inaugural desta rea, ser apresentada, com especial enfoque na teoria das metforas conceituais da subjetividade e nas pesquisas de metforas em lngua de sinais. No ltimo captulo, o foco a pesquisa de campo sobre as metforas conceituais da subjetividade. Aps levantamento e anlise do corpus, sero apresentadas as metforas em Libras que se adequam ao modelo proposto por LAKOFF e JOHNSON (1999), bem como algumas inter-relaes com questes bastante especficas da comunidade surda. Na concluso, ser realizada uma reflexo sobre os limites e possibilidades do estudo das metforas conceituais da subjetividade em Libras, a partir da ampla relao entre lngua, cultura e subjetividade.

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2 APRESENTANDO A SURDEZ: EDUCAO DE SURDOS, LNGUAS DE SINAIS E IDENTIDADES 2.1 A REVOLTA DOS ESTUDANTES EM GALLAUDETManh de quarta-feira, 9 de maro: Greve em Gallaudet, Greve Surda dos Surdos, Estudantes Exigem Diretor Surdo os jornais esto cheios de notcias a respeito hoje; o movimento comeou h trs dias, foi aumentando de intensidade, alcanou agora a primeira pgina de The New York Times. Parece uma histria espantosa. Estive duas vezes na Universidade Gallaudet no ano passado e passei a conhecer melhor o lugar. Gallaudet a nica universidade de artes liberais para os surdos no mundo e, alm disso, o centro da comunidade surda mundial mas em todos os seus 124 anos nunca teve um diretor surdo.

Assim Oliver SACKS (1990, p. 143) inicia seu relato sobre a revolta dos estudantes surdos em Gallaudet, em 1988. Trata-se de uma descrio que demonstra a organizao e fora da comunidade surda nos Estados Unidos, que terminou com nomeao de King Jordan, que se tornou o primeiro diretor surdo desta instituio:Estou emocionado ao aceitar o convite do conselho de administrao para me tornar o diretor da Universidade de Gallaudet. Este um momento histrico para os surdos do mundo inteiro. Esta semana podemos realmente dizer que juntos, unidos, superamos a relutncia em lutar por nossos direitos. O mundo observou a comunidade surda alcanar a maioridade. No mais aceitaremos limites ao que podemos realizar. O elogio maior vai pra os estudantes de Gallaudet, por nos mostrarem exatamente, mesmo agora, como se pode projetar uma idia com tanta fora que se transforma em realidade. (SACKS, 1990, p. 176) [grifo no original]

parte as controvrsias geradas pelo fato de King Jordan ser um surdo pslingual e seu discurso ser proferido em lngua de sinais e oral ao mesmo tempo, esta conquista representou um marco na histria dos surdos, no s por seus resultados concretos, mas por demonstrar o poder de mobilizao dos surdos no mundo inteiro. Neste contexto, notvel a presena dos surdos organizados em torno da idia de uma cultura surda lutando pelo direito de falar com sua prpria lngua, lutando contra uma poltica paternalista, mdica e assistencialista que considera a surdez exclusivamente em termos de dficits, impossibilidades e cuidados especiais. Diferente da idia ainda

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reinante no senso comum, que define os surdos apenas pela ausncia de audio, esta revolta demonstra o movimento dos surdos organizados e lutando por seus direitos. Mas por que seria necessria uma mobilizao dos surdos para lutar por seus direitos? Que direitos so estes? E que surdos so estes que esto lutando? Em poucas palavras, os surdos lutam pelo direito de ser surdos, de ser reconhecidos pela sua diferena no que isto gera de positivo: a organizao em torno de comunidades com lnguas e identidades prprias. Para que esta luta possa ser compreensvel, necessrio apresentar um histrico da educao de surdos, marcado por uma concepo patologizante da surdez que parece ser a viso que predominou na educao de surdos no final do sculo XIX e em boa parte do sculo XX e que permanece em termos de representao social da surdez ainda hoje.3 A ilustrao desta revolta, logo no incio deste captulo, no tem outro objetivo seno deixar claro que uma concepo da surdez como patologia no se sustenta, se nos voltarmos para os prprios surdos e sua capacidade de mobilizao e organizao. Era esta a luta dos estudantes em Gallaudet, lutavam para serem considerados sujeitos respeitados em sua diferena. Assim, a revolta demonstra uma inquietao da prpria comunidade surda, uma demanda dos sujeitos por serem ouvidos atravs do modo que lhes possvel falar. E esta a perspectiva desta pesquisa. Um trabalho que s se justifica a partir da escuta do que os surdos tm a dizer sobre si. No entanto, infelizmente, esta revolta no retrata a realidade da maior parte da populao surda brasileira hoje. No que no haja uma inquietao por parte dos surdos. O movimento surdo tem crescido significativamente nos ltimos anos, mas est ainda em formao, em funo de anos de marcante excluso e violncia institucional.

Um bom exemplo de como a viso clnico-teraputica est enraizada no senso comum pode ser bem retratada pelas mais diversas reaes das pessoas ao informar sobre o tema de pesquisa, inclusive profissionais da rea: Nossa que interessante isto, como ser que funciona o psiquismo de algum sem linguagem?, Ah, voc vai estudar os surdos -mudos, aqueles que no falam, n..., mas como possvel fazer uma anlise s em gestos?, Acho muito bonito quem se prope a trabalhar com deficientes. Em nenhum momento, a palavra diferena, cultura ou lngua entrou em questo.

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2.2 A HISTRIA DA EDUCAO DE SURDOS Para iniciar uma apresentao das concepes educativas acerca da surdez, necessrio ter em mente a hegemonia do modelo ouvinte na maior parte dos discursos sobre a surdez e que foi denominado como ouvintismo ou, em sua forma institucionalizada, o oralismo. SKLIAR (2005, p. 15) assim define o ouvintismo: Trata -se de um conjunto de representaes dos ouvintes, a partir do qual o surdo est obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte. Alm disso, nesse olhar-se e nesse narrar-se que acontecem as percepes do ser deficiente, do no ser ouvinte; percepes que legitimam as prticas teraputicas habituais. No entanto, esta concepo ultrapassa o simples desejo de que os surdos sejam como ouvintes, pois fruto das abordagens clnica e teraputica de disciplinamento do corpo, do discurso biomdico e da pedagogia ortopdica estabelecida a partir do sculo XVII. Alm disso, h uma srie de pressupostos filosficos e polticos como, por exemplo, a idia de que o oral representa a abstrao e a necessidade da abolio dos dialetos, que permeiam todas s prticas relacionadas surdez neste perodo e at os dias de hoje. Em termos educativos, o ouvintismo implica prticas que visam correo da anormalidade e eliminao da diferena, atravs do treinamento de leitura labial e articulao e, mais recentemente, atravs dos implantes cocleares4. Embora j estivesse gestada no final do sculo XIX e em boa parte do sculo XX, a oficializao do modelo oralista de educao se deu na ocasio da realizao do Congresso de Milo, em 1880. Nas atas deste Congresso, fica explcita a idia de uma superioridade da lngua falada:O Congresso, considerando a incontestvel superioridade da palavra sobre os signos para devolver o surdo sociedade e para dar-lhe um melhor conhecimento da lngua, declara que o mtodo oral deve ser preferido ao da mmica para a educao e instruo dos surdos-mudos (...) O Congresso, considerando que o uso simultneo da palavra e dos signos mmicos tm a desvantagem de inibir a leitura labial e a preciso das idias, declara que o mtodo oral puro deve ser preferido (...) A terceiraO implante coclear um aparelho que oferece informao sonora a indivduos com perda auditiva profunda. O implante exerce sua funo atravs da estimulao eltrica direta das fibras do nervo auditivo por eletrodos em pacientes cujo ouvido interno est danificado.4

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resoluo um voto em favor da extenso do ensino dos surdos-mudos. Considerando que um grande nmero de surdos-mudos no recebem os benefcios da instruo (...), emite o voto que os governos tomem as medidas necessrias para que todos os surdos e mudos possam ser instrudos. (GRMION5, 1991 apud LULKIN, 2005, p.37)

Nestas atas, v-se o registro documental de que os surdos sem o acesso lngua oral eram considerados seres incompletos, inferiores e que a comunicao via sinais no teria outra funo seno a de impedir o processo de instruo dos surdos, fazendoos permanecer num nvel de idias primrio e impreciso. A partir de ento, em nome dos riscos que a sinalizao representava para a aquisio da lngua falada, os surdos foram proibidos de se comunicar em lngua de sinais e, ao longo do sculo XIX e XX, houve um verdadeiro retrocesso em termos pedaggicos com conseqncias marcantes para os surdos at os dias de hoje. No entanto, no foi apenas com a oficializao do modelo oralista que os surdos perderam seus direitos. Na verdade, boa parte da histria dos surdos marcada pela excluso e pela impossibilidade da utilizao de seu meio de comunicao natural:Durante toda Antiguidade e quase toda a Idade Mdia, os surdos forma considerados ineducveis, incapazes de adquirir a fala, portanto estpidos ou mudos6, privados de alfabetizao e instruo, confinados a uns poucos sinais e gestos rudimentares, isolados at mesmo da comunidade de seus iguais e incapazes de desfrutar a livre comunicao com seus pais e famlia. (FERNANDES, 1998, p. 08) [grifo no original]

Algumas mudanas nesta situao de excluso e isolamento comearam a ocorrer no final da Idade Mdia. No sculo XVI, o italiano Girolamo Cardano procurou romper a barreira da incomunicabilidade dos ouvintes com os surdos atravs do uso da mmica e da linguagem escrita. Na Espanha, Dom Pedro de Ponce dedicouse ao ensino da fala e leitura labial para os surdos. Concomitantemente, em toda a Europa, surgiram vrias iniciativas independentes visando dar ao surdo uma possibilidade de comunicao, a partir do desenvolvimento das mais variadas tcnicas5 6

GRMION, J. La plante des sourds. Paris: Presses Pocket, 1991. Dumb, em ingls significa mudo ou estpido [nota minha]

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de ensino. Com intuito missionrio e assistencialista, a influncia da igreja notvel nestas iniciativas de ateno dispensada ao trabalho com surdos e, embora as explicaes religiosas tenham sido aos poucos substitudas por modelos pedaggicos, percebe-se ainda hoje que as igrejas so um importante espao de articulao da comunidade surda. A influncia da igreja to notvel que a fundao da primeira escola pblica para surdos a ser reconhecida pelo governo foi empreendida pelo padre francs Charles Michael Lpe. A fundao desta escola no fim do sculo XVIII tornou-se marco na educao de surdos, por ser o primeiro modelo oficial de educao com modelo gestualista. Este modelo ainda no reconhecia o estatuto lingstico dos sinais, mas considerava os gestos fundamentais para a expresso dos surdos. (BURNIER, 1983) Com esta mesma concepo fundado o Asilo Americano de Hartford, em 1817, hoje Universidade Gallaudet, palco das reivindicaes dos estudantes em 1988. Na poca da fundao do colgio, por Laurent Clerc e Thomas Gallaudet, os sinais eram utilizados como meio de comunicao de toda a instruo recebida pelos surdos. Situao muito diferente da encontrada a partir do Congresso de Milo, quando sinais foram banidos do ensino formal e tornou-se uma forma de comunicao proibida entre os surdos. (SACKS, 1990). A comunicao por sinais foi considerada primitiva e passou a ser vista como um empecilho para atingir as pretenses de incluso social que lhes seria proporcionado pelo acesso lngua oral. A partir da oficializao do mtodo oral como o nico indicado no processo de educao de surdos, surgem diversas metodologias de oralizao (verbo-tonal, audiofonatria, aural, acupdico, por exemplo). Embora apresentem prticas e concepes tericas diferentes sobre o processo de aquisio da lngua oral, estas metodologias se baseiam na idia de que esta a nica forma desejvel de expresso do surdo, no reconhecendo a importncia da lngua de sinais como forma de comunicao legtima. (GOLDFELD, 1997) Estas metodologias oralistas que pretendiam igualar, apenas aumentaram ainda mais a desigualdade entre surdos e ouvintes, pois retardam a possibilidade de aquisio da lngua (eficaz ou no, o processo de oralizao exige anos de trabalho) e

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acabam impossibilitando o desenvolvimento cognitivo e emocional adequado, alm de causar srios prejuzos em termos de identidade cultural. Assim SNCHEZ (1999, p.35) apresenta os efeitos do oralismo:El siglo XX h sido un siglo perdido para los sordos, quienes no han recuperado ni siquiera las posiciones que pudieron haber tenido hacia mediados del siglo pasado em los Estados Unidos y en varios pases europeos. No han podido recuperar su identidad, ni su dignidad, ni su autonoma, no se han reencontrado ni en individual ni como coletivo, luego del genocidio consumado por el oralismo e cuyos efectos se mantienen a travs de propuestas sucedneas ms o menos disfrazadas trs la invocacin de las seas.

Assim, percebe-se que as conquistas surdas, em termos de identidade, cultura e autonomia que comearam a se consolidar no sculo XIX foram praticamente extintas em funo da violncia do oralismo. Como a adoo deste mtodo trouxe prejuzos em termos cognitivos, lingsticos e psicolgicos, acabou por resultar tambm num alto nvel de fracasso escolar e perda de autonomia por parte dos surdos. Sueli FERNANDES (2003, p. 25) ilustra bem esta realidade ao apresentar um retrato da situao atual da educao dos surdos no estado do Paran:Os resultados de mais de um sculo de educao oralista tm demonstrado um quadro desanimador. No Paran, particularmente, um nmero significativo de surdos, alm de no possurem uma forma de comunicao sistematizada, seja oral, gestual ou escrita, apresentam seqelas da filosofia oralista, tais como problemas de identidade cultural, desenvolvimento cognitivo e intelectual no compatveis com sua idade cronolgica e sub-escolarizao. A maioria dos surdos atendidos pelas redes pblica e particular de ensino no concluiu as quatro primeiras sries do Ensino Fundamental. Quanto aos que ultrapassaram essa marca, questionvel se realmente houve apropriao de contedos correspondentes s sries que freqentaram, principalmente no que diz respeito Lngua Portuguesa.

Mas para que o fracasso escolar, os problemas lingsticos, cognitivos e psicolgicos e a ausncia de autonomia pudessem ser questionados e atribudos ao oralismo e no a um dficit inerente surdez, foi necessrio o reconhecimento do estatuto lingsticos das lnguas de sinais. Foi a partir do incio das pesquisas lingsticas em lngua de sinais, que boa parte da educao oralista comeou a ser

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colocada em xeque e , atualmente, pr-requisito indispensvel na concepo de aes efetivas em termos de educao de surdos. 2.3 O ESTATUTO LINGSTICO DAS LNGUAS DE SINAIS Independente das razes histricas, sociais e polticas que levaram concepo clnico-teraputica e oralista da surdez, h ainda uma srie de equvocos lingsticos permeando esta concepo, pois com seus intuitos corretivos, o objetivo principal a realizao adequada do comportamento verbal, sem distinguir lngua e fala, nem a importncia da aquisio da linguagem em termos psicolgicos e sociais. Talvez uma das possveis explicaes para tal impreciso, embora certamente no a nica, possa ser atribuda poca de criao e adoo do mtodo oral que foi oficializado e tornado obrigatrio a partir do Congresso de Milo, em 1880, mais de trinta anos antes da publicao do Curso de Lingstica Geral, de Saussure, um dos marcos fundadores da Lingstica pela delimitao de seu objeto7. Da consolidao da disciplina lingstica ao interesse pelos estudos lingsticos em lngua de sinais, no entanto, houve um intervalo de quase meio sculo. As primeiras pesquisas lingsticas nesta rea surgiram somente na dcada de 60, com o clebre trabalho de STOKOE (1960), intitulado Sign Language Structure. At ento, embora em determinadas pocas j houvesse reconhecimento como um meio de comunicao eficiente com os surdos, este sistema de comunicao visual no era ainda considerado lngua. Para defender a idia de que as lnguas de sinais eram efetivamente lnguas, o autor descreveu estruturalmente as unidades lexicais bsicas da American Sign Language (ASL), demonstrando a existncia de uma gramtica prpria com regras especficas em todos os nveis lingsticos. Em seu trabalho, identificou trs aspectos formais principais nas lnguas de sinais: localizao dos sinais, configurao das mos e movimento. Cada um destes aspectos foi

Em outras palavras, se em termos tericos no h fundamentao lingstica para a validao do mtodo oral na educao de surdos, esta uma impossibilidade histrica, uma vez que a lingstica como disciplina independente posterior ao advento do modelo oralista.

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denominado cheremes, conjunto limitado de elementos formadores, anlogos aos fonemas das lnguas orais. (STOKOE8, 1960 apud FINAU, 2004, p. 54) A identificao destes elementos da descrio quirmica (da forma do sinal) abriu as portas para os estudos formais em lngua de sinais. Mas no foi um processo que se deu rapidamente, todo o modelo educacional era avesso a estes novos estudos. O comentrio de STOKOE sobre a recepo de seu livro reflete bem o espao dedicado linguagem viso-gestual naquela poca:A publicao em 1960 (de Sign Language Structure) provocou uma curiosa reao local. exceo do reitor Detmold e um ou outro colega, todo o corpo docente do Colgio Gallaudet investiu com veemncia contra mim, a lingstica e o estudo da sinalizao como uma linguagem (...) Se a recepo ao primeiro estudo lingstico de um Linguagem de Sinais da comunidade surda foi fria ali, tornou-se criognica em grande parte da educao especial na ocasio um corporao fechada to hostil Linguagem de Sinais quanto era ignorante em lingstica. (STOKOE apud SACKS 1990, p.159-60)

Assim, o trabalho de STOKOE (1960) surge num ambiente desfavorvel s lnguas de sinais e permeado de desconhecimento em relao aos avanos da lingstica. Embora sempre presente no making off da formao dos surdos (por mais que fossem proibidos os alunos surdos mantinham a comunicao em sinais na interao entre os pares e os sinais continuavam sendo utilizados nos servios religiosos), a lngua de sinais ainda era considerada um modo primrio de comunicao e, portanto, excludo do ensino formal. O modelo oralista parecia definitivamente consolidado. No entanto, as pesquisas em lingstica no podiam deixar de ser consideradas e, aos poucos, os sinais passaram a ser concebidos de maneira diferenciada, modificando o seu estatuto. De l pra c, inmeros outros estudos formais em lngua de sinais surgiram, comprovando sua estrutura lingstica em termos fonolgicos, sintticos e semnticos e pragmticos, primeiramente em ASL, e depois nas mais variadas lnguas de sinais. A partir de ento, surgem os estudos queSTOKOE, W. C. Sign language structure: an outline of the visual comunication system of the american deaf. Buffalo: University of Buffalo, 1960. (Reeditado por Silver Spring: Linstok Press, 1978).8

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demonstram a existncia de inmeras lnguas de sinais em todo mundo, contrariando a idia do senso comum de que a linguagem de sinais universal e passvel de ser compreendida por qualquer pessoa independente da cultura. A idia de que cada comunidade surda possui a prpria lngua, estruturada de maneira prpria e de certa forma independente da lngua oral oficial de seu pas de origem comea a ser estabelecida e, aos poucos, no havia mais como sustentar a idia de que a lngua oral seria o nico meio de comunicao eficaz entre surdos.9 Alm dos estudos formais, que proporcionaram o reconhecimento do estatuto lingstico das lnguas de sinais, iniciou-se tambm as pesquisas sobre aquisio de linguagem em sujeitos surdos. Estas pesquisas demonstraram que a criana surda de nascena, com acesso a uma lngua espao-visual proporcionada por pais surdos, desenvolver uma linguagem sem qualquer deficincia. Os estudos da gramtica gerativa tm demonstrado que os surdos apresentam os mesmos dispositivos e processo de aquisio de uma lngua que sinais que sujeitos ouvintes na aquisio de uma lngua oral. (QUADROS, 1997) Deste modo, os possveis deficits inerentes surdez, passam a ser ressignificados e atribudos impossibilidade de se ter acesso a uma lngua natural. Alm disso, os resultados de tais pesquisas tem sugerido que os fundamentos da linguagem no esto baseados na forma do sinal, mas, sim, na funo lingstica que a serve. BEHARES (1993) confirma estas pesquisas enfatizando o fato de que as lnguas de sinais, apesar de predominantemente visuais, tm seu substrato anatmico predominantemente no hemisfrio esquerdo, o que seria um dos argumentos a favor da hiptese de que existem condies neuropsicolgicas comuns para o processamento de ambas modalidades lingsticas. Assim, v-se que as pesquisas lingsticas em lngua de sinais, seguindo uma tendncia da lingstica de maneira geral, foram aos poucos abarcando outras dimenses alm dos critrios estritamente estruturais de definio de lngua. Neste sentido, segundo BEHARES (1999, p. 131), dentro do prprio modelo terico utilizado por STOKOE, a afirmao de que a ASL uma lngua, implica oAs lnguas de sinais do Brasil e de Portugal, por exemplo, embora sejam utilizadas em pases onde se fala o portugus, apresentam estruturas distintas.9

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reconhecimento de que se trata de uma lngua natural e, portanto, utilizada por uma comunidade lingstica e com a existncia de pelo menos um sinalizante que a tenha como primeira lngua. Percebe-se ento, j na concepo do fundador das pesquisas lingsticas em lngua de sinais, que o critrio para o reconhecimento da lngua de sinais como uma lngua ultrapassa a definio de lngua em termos formais (sintticos, fonolgicos e semnticos), embora tambm reconhea estes aspectos como indispensveis para sua validao. A partir desta perspectiva, o reconhecimento das lnguas de sinais como lngua natural, possibilita a incluso de questes extra-lingusticas para tratar da surdez. Dentre as pesquisas responsveis por um olhar scio-antropolgico da surdez, merecem destaque os chamados Estudos Surdos, que se inscrevem como uma das ramificaes dos Estudos Culturais, com nfase nas questes das culturas, das prticas discursivas, das diferenas e das lutas por poderes e saberes. Os Estudos Surdos lutam contra a interpretao da surdez como deficincia, contra a definio da surdez enquanto experincia de uma falta, procurando redefini-la em termos de experincia que permite aos surdos se organizar em torno de uma comunidade historicamente constituda. (S, 2002) Assim, partindo do reconhecimento das lnguas de sinais como lnguas, uma srie de questionamentos polticos, culturais e educacionais pde ser realizada, transformando profundamente a concepo vigente sobre a surdez ao longo de boa parte do sculo passado. 2.4 ATUALIDADE NA EDUCAO DE SURDOS: EM DEFESA DO ENSINO BILNGE S (2002, p. 353), pesquisadora da surdez no estado do Amazonas, demonstra a importncia destas novas pesquisas na configurao da educao de surdos hoje:A educao de surdos est passando por uma crise e seus pressupostos bsicos precisam ser repensados em diferentes espaos e por inmeras razes. A principal delas deve-se ao fato de que, aps tantos anos de utilizao da perspectiva mdico-

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teraputica, o que mais se destaca a certeza do processo de excluso do conhecimento socialmente valorizado, do qual os surdos foram/so vtimas. No h base cientfica para a utilizao da perspectiva clnica na escola de surdos, no entanto, neste ltimo sculo- e ainda hoje - os surdos foram/so mantidos em escolas especiais sob tal orientao. A escola que poderia ter-se tornado um privilegiado espao para o desenvolvimento de sua cultura, de sua lngua e de suas identidades, acabou tornando-se o espao que lhes informou de sua deficincia e incapacidade.

A realidade do fracasso escolar, os avanos das pesquisas em lingstica e educao foram alguns dos fatores que tornaram insustentvel a manuteno do modelo oralista e que esto impulsionando uma nova significao do surdo e da surdez: As verdades dogmticas que, at ento, vinham determinando as prticas de homogeneizao destinadas integrao das pessoas surdas na sociedade, esto sendo contestadas por vozes historicamente silenciadas e encontram-se vulnerveis ao avano das teorias educacionais que discutem a questo da surdez inserida no contexto mais amplo das diferenas culturais. ( FERNANDES. 1999 p. 59) Mas o abandono do modelo oralista no significou uma mudana efetiva em termos de educao de surdos. A Comunicao Total, filosofia de ensino adotada por muitas instituies como alternativa ao oralismo, faz permanecer a ideologia ouvinte. Este modelo defende a utilizao de qualquer recurso lingstico, seja a lngua de sinais, a linguagem oral, ou cdigos manuais, que facilite a comunicao com as pessoas surdas. Assim, o objetivo no a aquisio de uma lngua pelo surdo, mas a comunicao com eles. Com uma proposta diferente da Comunicao Total, mas com o mesmo peso ouvintista, surgem as propostas de Bilingismo Bimodal, que utiliza cdigos gestuais para a comunicao com surdos, que visam representar de forma espao-visual uma lngua oral. Em sua aplicao, estes cdigos devem ser apresentados de maneira simultnea utilizao da lngua, como facilitador na comunicao entre surdos e ouvintes e tendo como objetivo a aquisio da uma lngua oral. (GOLDFELD, 1997; FINAU, 2004) Estas formas de comunicao, que pretendem acabar com a barreira de comunicao entre surdos e ouvintes, mais uma vez ignora o processo de aquisio da

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lngua de sinais como uma lngua natural. Alm disso, acaba por excluir a possibilidade de utilizao da lngua de sinais, uma vez que no pode ser utilizada concomitantemente com o portugus, por possuir uma estrutura diferente. Nesta filosofia, as especificidades das lnguas de sinais e dos surdos acabam sendo aniquiladas, a partir da criao de modelos de comunicao artificial, impostos pelos ouvintes e que acabam mantendo o privilgio da lngua oral. Mais uma vez, v-se o ouvintismo como guia para prticas educacionais. Alm disso, GES (2002, p. 50) afirma que os sujeitos estariam sempre expostos a duas formas lingsticas imperfeitas, sendo levados formulao de enunciados agramaticais. Como alternativa a estas filosofias e fruto do questionamento da surdez como deficincia, surgem alternativas de bilingismo diglssico para surdos. O Bilingismo Diglssico tem como pressuposto bsico que o surdo deve ser bilnge, ou seja, deve adquirir como lngua materna a lngua de sinais, que considerada a lngua natural dos surdos e, como segunda lngua, a lngua oficial de seu pas. (FINAU, 2004) Ao considerar a lngua de sinais como lngua materna do sujeito surdo, tal filosofia educacional representa a consolidao pedaggica de uma ressignificao da surdez em termos sociais, lingsticos e antropolgicos e no mais em termos de deficincia. A defesa de um ensino bilnge implica a pressuposio de que os conceitos de cultura e lngua esto inter-relacionados. H relatos bastante satisfatrios da implantao deste modelo de ensino em pases como Dinamarca ou Sucia. (QUADROS, 1997) Em relao realidade brasileira, no entanto, o que se percebe um hiato entre a quantidade de pesquisas sobre o bilingismo e lngua de sinais e a utilizao do bilingismo na prtica educacional. 2.5 A SURDEZ NO BRASIL: HISTRICO DA EDUCAO DOS SURDOS E DAS PESQUISAS EM LIBRAS A primeira escola para surdos no Brasil foi criada a partir do beneplcito do Imperador D. Pedro II que autorizava Ernest Huet, professor surdo francs que chegara ao Brasil em 1856, a fundar o Instituto Nacional de Surdos-Mudos, atual Instituto

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Nacional de Educao dos Surdos (INES), em 26 de setembro de 1857. Este pode ser considerado o incio da criao da lngua de sinais utilizada nos centros urbanos brasileiros, a partir dos sinais e do alfabeto manual francs trazidos ao Brasil por Huet. Em 1873, foi realizada no Brasil a primeira Iconografia dos Sinais, de autoria do aluno surdo do INES, Flausino Jos da Gama. Seguindo a tendncia mundial, em 1911, o INES adota a filosofia oralista em todas as suas disciplinas. Mesmo assim, a lngua de sinais era permitida em sala de aula. Na dcada de 20, assumem a direo do Instituto dois mdicos otologistas, famosos pelos trabalhos de reeducao auditiva que realizavam, apresentando como uma das medidas administrativas a diviso dos alunos em dois grupos, o oral e o silencioso, aos quais caberiam tratamentos distintos. (FERNANDES, 1998). Em 1957, em uma radicalizao do oralismo, a lngua de sinais foi proibida em sala de aula. No entanto, seguindo um fenmeno que ocorreu em todo o mundo nas tentativas de oralizao, os surdos continuaram a utilizar a lngua entre si e ainda ensinavam os sinais s pessoas ouvintes que desejassem aprender. No final da dcada de 1970, chega ao Brasil a filosofia da Comunicao Total, que se utilizava de meios eclticos para estabelecer a comunicao com os surdos. GOLDFELD (1997, p.37) apresenta os meios que so ainda hoje utilizados pela Comunicao Total nas escolas para surdos brasileiras:No Brasil, alm da Libras (Lngua Brasileira de Sinais), a Comunicao Total utiliza ainda a datilologia, tambm chamada de alfabeto manual (representao manual das letras do alfabeto), o cued speech (sinais manuais que representam o som da lngua portuguesa), o portugus sinalizado (lngua artificial que utiliza o lxico da lngua de sinais com a estrutura sinttica do portugus e alguns sinais inventados, para representar estruturas gramaticais do portugus que no existem na lngua de sinais) e o pidgin (simplificao da gramtica de duas lnguas em contato, no caso, o portugus e a lngua de sinais).

Percebe-se, mais uma vez, nessas iniciativas, o desconhecimento da importncia da estruturao de uma lngua natural para o desenvolvimento do sujeito. Embora j utilizada nesta poca, a lngua de sinais brasileira ainda no havia sido reconhecida.

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A primeira iniciativa e sistematizar a lngua de sinais brasileira partiu da professora Marta Ciccone, que aps uma visita a Universidade Gallaudet, conheceu os cursos e pesquisas em ASL. A partir de ento, inicia-se os trabalhos de sistematizao da lngua de sinais utilizada no Brasil. Em 1987, Com a fundao da Feneis Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos, se iniciou uma divulgao sistemtica da Libras. Aps dois anos, em 1989, comeava oficialmente o primeiro Curso de Libras oferecido pela Feneis. Em 1991, a Libras reconhecida em mbito estadual, em Belo Horizonte. (Feneis, 2006) Em termos pedaggicos e de reconhecimento do estatuto lingstico da Libras, pode-se situar o incio do desenvolvimento de uma filosofia bilnge a partir das pesquisas da lingista Lucinda Ferreira BRITO. Segundo GOLDFELD (1997), no incio de suas pesquisas, a pesquisadora utilizou a abreviao LSCB (Lngua de Sinais dos Centros Urbanos Brasileiros) para diferenci-la da LSKB (Lngua de Sinais Kaapor Brasileira), utilizada pelos ndios Urubu-Kaapor no Maranho.10 A partir de 1993, adota a sigla LIBRAS (Lngua Brasileira de Sinais). Em seu livro Por uma gramtica da lngua de sinais (1995), a autora apresenta os aspectos estruturais da Libras:A estrutura sublexical da LIBRAS, assim como a de outras lnguas de sinais, constituda a partir de parmetros (KLIMA e BELLUGI11, 1979) que se combinam, principalmente com base na simultaneidade. Tais parmetros so: CONFIGURAO DE MO (CM) MOVIMENTO (M) PONTO DE ARTICULAO (PA) (BRITO, 1995, p. 24)

A estes parmetros que so chamados principais, adicionam-se outros parmetros menores: regio de contato, orientao e disposio das mos. Alm disso,Interessante notar que se trata de uma lngua utilizada pela totalidade dos ndios, independente do nmero de surdos pertencentes regio. O que um forte argumento de que a lngua de sinais , mais que um produto da surdez, uma construo cultural.(Skliar, 2005) 11 KLIMA, E. e BELLUGI, U. Perception and production in a visually based language. In: AARONSON, D. e RIEBER, R. W. Developmental psycholinguistic and communication disords. New York: Academy of Sciences, 1975.10

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a autora apresenta como parmetros os componentes no-manuais, como a expresso facial ou movimento do corpo, que podem estar presentes simultaneamente na organizao do sinal. Em 2001, CAPOVILLA e RAPHAEL12 descrevem quatro elementos da descrio da forma dos sinais, utilizando os mesmo parmetros de QUADROS (1995)13 e FELIPE (1998): articulao de mos e braos, local de articulao, movimento e expresso facial. (apud FINAU, 2004, p.54) A partir da dcada de 90, portanto, cresceram muito as pesquisas em lingstica sobre Libras e pesquisas sobre educao de surdos, e o movimento surdo comea a se organizar de maneira mais efetiva no Brasil. No dia 24 de abril de 2002, o presidente da Repblica sanciona a Lei n 10.436, reconhece a Libras em mbito federal e, em 22 de dezembro de 2005, o atual presidente assina o Decreto n 5.626, que regulamenta a Lei n 10.436 e dispe sobre a Lngua Brasileira de Sinais (Libras). Dentre outras conquistas importantes para a comunidade surda brasileira, o Decreto estabelece que a Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatria nos cursos de formao de professores para o exerccio do magistrio, em nvel mdio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia de instituies de ensino, pblicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios. O decreto e seu impacto nos meios de comunicao e comunidade em geral demonstram que o reconhecimento da Libras vem aumentando consideravelmente, aliado aos avanos das pesquisas acadmicas. Contudo, todo este processo ainda est em fase inicial. Apesar dos avanos, a maior parte dos surdos hoje recebeu uma educao oralista, com inmeros prejuzos em todas as esferas j apresentadas, e os resultados das conquistas da luta dos surdos ter efeitos que s podero ser sentidos mais efetivamente a mdio e longo prazo.

CAPOVILLA, F. C. e RAPHAEL, W. D. Dicionrio enciclopdico ilustrado trilnge da Lngua de Sinais Brasileira. So Paulo: Editora da USP, v. 1 e 2, 2001. 13 QUADROS, R. M. As categorias vazias pronominais: uma anlise alternativa com base na LSB e reflexos no processo de aquisio. Porto Alegre, 1995. 132 f. Dissertao (Mestrado em Letras: nfase em Lingstica) Instituto de Letras e Artes, Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul.

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Uma vez reconhecida a Libras como lngua natural dos surdos dos centros urbanos brasileiros, j no h como se furtar de abarcar as questes culturais que so decorrentes deste reconhecimento.

2.6 COMUNIDADE SURDA E A QUESTO DA IDENTIDADE

Uma das primeiras tentativas de definir os surdos enquanto comunidade foi feita por SCHEIN (1968)14. Segundo este autor, o dficit de audio seria o elemento comum que levaria os sujeitos a se unirem em torno de uma comunidade. No entanto, ao utilizar um critrio fsico, ou uma limitao sensorial para definir uma comunidade, alm de partir de uma viso patologizante da surdez, h um afastamento do que, de fato, d unidade comunidade de surdos. O grau de perda auditiva entre os membros de uma comunidade varivel e possvel perceber ouvintes que pertencem comunidade surda, alm de inmeros surdos que no se integram a ela pelas mais variadas razes, desde a ausncia de contato com outros surdos, desconhecimento da lngua de sinais ou por serem oralizados ou por se enquadrarem principalmente na comunidade ouvinte. (BEHARES, 1999) A partir destas constataes, SCHELESINGER e MEADOW15 (1972 apud SACKS, 1990, p. 80) contestam a idia de que seria possvel definir a comunidade surda a partir da deficincia auditiva: A surdez profunda na infncia mais do que um diagnstico mdico, um fenmeno cultural, em que padres sociais, emocionais, lingsticos e intelectuais, assim como os seus problemas, esto inextricavelmente ligados. A partir do reconhecimento do ca rter cultural que envolve a questo da surdez, os autores criam um critrio sociolingstico: a comunidade surda se identifica

SCHEIN, J. D. The deaf community: studies in the social psychology of deafness. Washington D. C.: Gallaudet College Press, 1968. 15 SCHLESINGER, H. S. e MEADOW, K. P. Sound and sign: childhood deafness and mental health. Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 1972.

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essencialmente pela lngua que utiliza. Na mesma linha, PADDEN e MARCOWICZ16 (1975 apud BEHARES, 1999), afirmam que a lngua o elemento unificador da comunidade surda. BEHARES (1999) classifica estes autores como pertencentes a chamada viso social da surdez, numa contraposio viso mdica com um modelo ouvinte e a definio da comunidade surda a partir da patologia. Deste modo, o sujeito construiria a identidade surda como trao positivo ao utilizar a lngua de sinais em uma comunidade. Em vez de se definir a partir da deficincia, haveria uma construo de identidade a partir da diferena, delimitada pelo uso da lngua de sinais, uma lngua de um grupo minoritrio. O autor ressalta que esta concepo contm em si tambm um aspecto normativo, decorrente de uma concepo de identidade nica, estvel e supraindividual. Como se o sujeito, que antes possua uma identidade ouvinte, ao adquirir a lngua de sinais, se enquadrasse a uma identidade surda pr-modelada independente da experincia de vida do sujeito. PERLIN (2005), demonstrando a impossibilidade de unificar a identidade surda, discorre sobre mltiplos modos de configurao destas identidades e estabelece uma classificao a partir de critrios como a insero na comunidade surda, momento de perda da audio, aceitao ou no da surdez. As identidades surdas poderiam ser assim classificadas: identidades surdas, identidades surdas hbridas, identidades surdas de transio, identidades surdas incompletas e identidades surdas flutuantes. Muito embora este trabalho demonstre a multiplicidade de identidades surdas, acaba ainda carregando em si um ideal normativo s avessas. Em vez da imposio de um modelo ouvinte para a surdez, acaba revelando o ideal de uma experincia autntica da surdez, representada pela criao de um espao cultural visual singular. A identidade surda verdadeira seria aquela representada por sujeitos surdos de nascena, com a lngua de sinais como lngua materna e inseridos comunidade surda. O que, infelizmente, significa a minoria dos surdos, uma vez que 90% deles so filhos de pais ouvintes e

PADDEN, C. e MARCOWICZ, H. Cultural conflicts between hearing and deaf communities. 7 th World Congress of the World Federation of the Deaf. National Association of the Deaf, Silver Springs Md, 1975. p. 266-72.

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no tm acesso lngua de sinal precocemente. Trata-se de uma abordagem idealista porque, por mais inserido que esteja na cultura surda, pertencer a esta comunidade jamais implica pertencimento exclusivo. O sujeito surdo no tem a surdez como nico elemento definidor de identidade e subjetividade. Mais do que surdo, o sujeito pertence a uma religio, classe social, sexo, profisso e, por mais inserido que esteja na comunidade surda, possui maneiras singulares de experenciar a surdez. FERNANDES (2003, p.30) tambm problematiza a questo da multiplicidade das identidades surdas. Ao empreender uma crtica ao multiculturalismo totalizante, a autora considera as identidades surdas uma construo mvel, plural e multifacetada, transformada segundo as representaes nas quais o sujeito interpelado nos crculos de significao e sistemas de representao cultural. Assim, qualquer tentativa de estabilizar significados em torno das identidades surdas se torna infrutfera e facilmente contestvel em funo da fragilidade de apreenso do objeto discursivo. No entanto, mesmo com a multiplicidade de identidades, a lngua de sinais um elemento unificador bastante importante nas comunidades surdas. Como articular, ento, os conceitos de identidade e lngua? Com o intuito de buscar reapresentar a questo, as idias de RAJAGOPALAN (2001, p. 40) so bastante esclarecedoras. O autor reconhece que a identidade no indivduo se constri na lngua e atravs dela. Mas, de sua definio, no possvel extrair uma leitura ingnua de que a insero em uma lngua representaria o sujeito. Isto porque considera a lngua, assim como a identidade, um processo em constante evoluo com implicaes mtuas e, portanto, em permanente estado de fluxo:

Colocando essa tese na sua formulao mais radical: falar de identidade, seja do indivduo falante seja da lngua isolada, recorrer a uma fico conveniente inofensiva em si mesma, mas definitivamente prejudicial quando essas consideraes aparentemente evidentes se tornam a pedra fundamental de elaboradas teorias lingsticas.

Deste modo, a busca por uma definio de identidade surda, talvez no se configure o melhor caminho para apreender a realidade dos surdos, bem como as

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implicaes subjetivas da utilizao de uma lngua de sinais. Assim, juntamente com a impossibilidade de se realizar um trabalho acerca da identidade surda, necessrio tambm realizar o luto da possibilidade de um sujeito que possa ter uma experincia autntica da surdez, ou de uma lngua de sinais. Diz RAJAGOPALAN (2001, p.35):De fato, a idia de autenticidade acaba se revelando como nico tema comum por trs do bom selvagem de Rousseau, do falante -ouvinte ideal de Chomsky, das pessoas reais de Yngve, do usurio real da lngua de Bakhtin e do nico fenmeno real de Austin. O que se busca, em todos esses casos, o verdadeiro nativo na plenitude de sua autenticidade.

Neste

momento,

torna-se

imprescindvel

retomar

algumas

questes

apresentadas no incio do presente trabalho. A partir dos conceitos apresentados, no h mais dvidas de que o melhor caminho para pensar na subjetividade de pessoas surdas no pela via do patolgico, mas de pensar numa possvel especificidade do sujeito surdo. Foi a partir desta constatao que se definiu o objetivo da presente pesquisa. A partir de uma discusso das identidades surdas, a questo pode ser reproblematizada. A teoria utilizada para a realizao deste trabalho, a articulao da psicanlise com o referencial da semntica cognitiva poderia se enquadrar como uma tentativa de encontro com a plenitude da autenticidade do sujeito? Ou, em outras palavras, possvel delimitar as metforas da subjetividade sem cair numa viso ingnua e totalizante do sujeito, sem cair na iluso de que ser encontrado o sujeito puro, com a experincia autntica da lngua? Assim, adentrar no campo de estudo das lnguas de sinais com o intuito de pensar na relao entre lngua de e subjetividade, base sobre implica as necessariamente lingsticas. questionamento epistemolgico teorias

RAJAGOPALAN (2001, p. 42) afirma que o estudo de lnguas e fenmenos lingsticos marginais aos temas clssicos da lingstica leva, concluso de que uma aceitao acrtica da idia de identidades individuais como sendo puras, ntegras e totalizadas e do postulado associado de lnguas individuais como conjuntos plenamente integrados e auto-suficientes tem contribudo apenas para deformar nosso entendimento dos fenmenos em questo.

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Percebe-se, portanto, que para dar conta de compreender as lnguas de sinais, subjetividades e identidades surdas, necessrio muito mais do que a definio pelo uso de uma lngua comum, ou uma representao de si compartilhada imaginariamente pelos membros de um grupo, e que seria completamente dominada pelo sujeito. E justamente a partir de um questionamento desta viso totalizante do sujeito que possvel o delineamento da interface com a psicanlise. Ao mesmo tempo em que se configura como uma clnica do particular, ao se propor a dialogar com as outras disciplinas, a psicanlise pode contribuir com algumas reflexes pertinentes sobre a questo da surdez e cultura.

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3. PSICANLISE E SURDEZ: DA TICA AO DELINEAMENTO DE UMA INTERFACE COM A SEMNTICA COGNITIVA 3.1 A PSICANLISE COMO CONTRAPONTO PSICOLOGIA DA SURDEZ Antes de apresentar a abordagem da psicanlise sobre a surdez, importante mencionar a ateno dedicada pela psicologia a esta questo. Atualmente, os estudiosos17 da rea so unnimes em considerar a chamada psicologia da surdez fruto de pesquisas psicomtricas e comportamentais realizadas principalmente nas dcadas e 50 e 60, mas com ecos at os dias de hoje instrumento importante na tentativa de legitimao cientfica do ouvintismo e, portanto, ferramenta para a manuteno das relaes de poder ouvinte/surdo. De fato, o teor de tais pesquisas no deixa dvidas sobre a tentativa de patologizao da surdez, implcita na pressuposio da existncia de uma psicologia especfica para a surdez. Entre os psiclogos representantes desta concepo, destacam-se os trabalhos de COLLIN (1985)18 e MARCHESI19 (1987) (apud SOL, 2005). Segundo estes autores, os surdos teriam problemas de memria imediata, dificuldades motoras, scio-afetivas e de comportamento, alm de dificuldades intelectuais ligadas dificuldade de reflexo e abstrao decorrentes de sua deficincia auditiva. Esta idia certamente colaborou para uma abordagem assistencialista no mbito da psicologia, como se os surdos, incapazes por natureza, tivessem necessariamente um desenvolvimento psicolgico, cognitivo e social comprometidos. (SOL, 2005) Cabe lembrar, no entanto, que, infelizmente, esta no uma caracterstica somente da psicologia no mbito da surdez e que, durante muito tempo, como demonstra FOUCAULT, em Doena Mental e Psicologia (1961), a psicologia caminhou no sentindo de perpetuar as relaes de poder, ao ignorar os determinantes17

Harlan LANE (1992), psiclogo pesquisador da rea da surdez, um dos principais representantes e pioneiros da crtica ao ouvintismo presente na psicologia. 18 COLLIN, D. Psicologia del nio sordo. Barcelona: Masson, 1985. 19 MARCHESI, A. El desarrolo cognitivo y lingustico de nios sordos. Madrid: Alianza. 1987.

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histricos e defender uma suposta neutralidade cientfica na caracterizao do patolgico e na busca da verdade sobre o psiquismo humano. Nas ltimas dcadas, o reconhecimento das questes ideolgicas envolvidas no uso dos testes psicolgicos trouxe a tica para o centro do debate, fazendo as pesquisas em psicometria, de modo geral, e sobre a surdez, em particular, ganharem outros rumos. No mais possvel avaliar scores de testes desvinculados do contexto scio-histrico do indivduo, e cada vez mais se busca o desenvolvimento de avaliaes adequadas ao perfil dos indivduos e comunidade a ser estudada. No entanto, como, no captulo anterior, pde-se concluir que, embora no haja fundamentos cientficos para no considerar a lngua de sinais como lngua, alguns profissionais da rea da surdez ainda defendem a oralizao como nico meio dos surdos adquirirem uma lngua, o mesmo se pode dizer em relao s avaliaes psicomtricas: no h mais fundamentos cientficos para atribuir julgamentos a partir de resultados descontextualizados dos testes psicolgicos, mas mesmo assim, a idia de que a surdez orgnica implica, necessariamente, problemas psicolgicos, ainda permanece com bastante intensidade no imaginrio de alguns profissionais que trabalham com surdez. Muitas vezes, em meu curto perodo de convivncia com surdos e profissionais que trabalham com surdez, ouvi colocaes que atribuam problemas comportamentais e dificuldade de raciocnio abstrato nos surdos concretude dos sinais, ou ao fato de se comunicarem somente por gestos, ou porque um surdo jamais poder chegar ao mesmo nvel de simbolizao que um ouvinte. Isto sem mencionar a frase ouvida de uma profissional surda que trabalha com surdos: No adianta voc pensar em trabalhar com psicanlise com surdos, porque os surdos no simbolizam. Com eles, preciso trabalhar com figuras e atividades concretas. Ora, como bem aponta SOL (2005), verdade que se percebe problemas recorrentes em indivduos surdos, causados por fatores familiares, escolares, de processo de aquisio da lngua e que necessrio desenvolver estratgias pedaggicas especficas para sujeitos surdos. O problema quando se atribui como conseqncia da surdez congnita, uma surd ez psquica constituda por limitaes intransponveis ao sujeito surdo. Estes preconceitos psicolgicos acabam

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por gerar baixa expectativa pedaggica ( BOTELHO, 2005, p.52) em relao aos surdos, e impede que se questionem os aspectos sociais e institucionais que podem influenciar no surgimento de algumas destas dificuldades. O papel da psicologia na legitimao de problemas psicolgicos inerentes ao sujeito, no perceptvel apenas no mbito da surdez, mas pode ser atribuda s origens histricas da psicologia aplicada. Uma das primeiras reas de aplicao da psicologia surge, no comeo do sculo XX, nos Estados Unidos, com a insero do psiclogo nas escolas com um enfoque essencialmente clnico. Havia um investimento governamental considervel em educao e o crescimento do nmero de escolas gerava interesse por parte dos pesquisadores para questes educacionais. Ao mesmo tempo, havia a necessidade de absoro pelo mercado de um grande nmero de psiclogos recm-formados sem espao para trabalhar com pesquisa. A demanda das escolas consistia em resolver os problemas comportamentais e de aprendizagem dos alunos com dificuldades. Percebe -se a, uma concepo de que o problema estaria no aluno e que, ao psiclogo, caberia o papel de reabilit -lo e, caso no fosse possvel, concluir que ele no se adequava instituio (SCHULTZ, 2005). Atualmente, com o desenvolvimento da psicologia escolar, questiona-se este tipo de posicionamento e defende-se a incluso do psiclogo na escola atuando com uma viso global da instituio, e no com uma viso limitada ao aluno -problema. Apesar disso, similar idia de que dificuldades comportamentais e de aprendizagem ocorrem exclusivamente em funo de problemas no aluno, tambm h resqucios, no imaginrio da instituio escolar, da idia de que ao psiclogo cabe apenas solucionar todos os problemas de desempenho escolar. Este papel de salvador que, por gratificao narcsica ou deficincia na formao, muitos psiclogos ainda pretendem exercer. Na rea da surdez, dadas especificidades histricas de abordagem, esta viso reabilitadora ainda mais marcante e, portanto, necessria uma luta ainda maior para que se desfaam os preconceitos construdos ao longo de um sculo de culpabilizao dos sujeito s por seus desvios de conduta e dificuldades na aprendizagem.

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E qual o papel da psicanlise neste contexto? Qual seria a abordagem da psicanlise em relao surdez? E quais os determinantes histricos que nos auxiliam a pensar nesta questo? A psicanlise pode ser considerada o bero da psicologia clnica, pois a teraputica psicanaltica se consolidava quando as primeiras propostas de psicologia aplicada surgem nos Estados Unidos. Neste sentido, muitas aplicaes da psicanlise contriburam e contribuem para a manuteno de relaes de poder, o que torna a crtica de Foucault tambm aplicvel teoria psicanaltica. Maria Cristina SOL (2005, p. 35), pesquisadora e psicanalista da rea da surdez, afirma que os estudos que tratam especificamente das relaes entre psicanlise e surdez surgiram apenas nos ltimos dez anos, atravs de iniciativas isoladas, principalmente de autores franceses. Antes disto, a questo da surdez foi praticamente ignorada pela psicanlise, ou apenas apresentada como contraponto s teorias at ento propostas ou como um campo de pesquisa ainda por ser estudado.(SOL, 2005, p. 27).

Os estudos atuais entre os quais merecem destaque os trabalhos de VIROLE20 (1993, 1996), POIZAT21 (1996), THOUA22 (2000), SCHORN23 (1997), MEYNARD24 (1995) [apud SOL, 2005] e no Brasil, os trabalhos de VORCARO (1999), MARZOLLA (1996), MARTINS (2004) e SOL (2004, 2005) se estruturaram a partir da clnica psicanaltica com os sujeitos surdos, suas famlias e instituies nas quais esto inseridos e de questionamentos tericos sobre as possveis implicaes subjetivas de experenciar a surdez. So ainda trabalhos iniciais que, embora apresentem na maior parte sua fundamentao na psicanlise francesa, refletem percursos e reflexes distintas no tratamento da questo da surdez. Ao percorrer o minucioso levantamento de SOL (2005) acerca destes trabalhos, percebeVIROLE, B. Psychanalyse et surdit. La parole de sourds, Revue du Collge de Psychanalystes. Paris, Centre National des Lattres, n. 46-47, p. 15-29, 1993. e VIROLE, B. (Org.) Psychologie de la surdit. Paris: De Boeck Universit, 1996. 21 POIZAT, M. La voix sourde. Paris: Mtaili, 1996. 22 THOUA, Y. Au son du corps, les sujet aux abois. Bulletin Freudien, Paris, n. 35-36, 2000. 23 SCHORN, M. El nio y el adolescente sordo. Buenos Aires: Lugar Editorial, 1997. 24 MEYNARD, A. Quand les mains prennent la parole. Paris: res, 1995.20

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se que os mais recentes dispensam ateno especial questo da lngua de sinais e inserem a discusso do atendimento psicanaltico realizado nesta lngua. No entanto, esta no a discusso principal. A constituio do sujeito parece ser o tema preferido dos autores desta rea. As palavras de SCHORN (1997, p. 57 apud SOL, 2005, p. 52) sintetizam as principais inquietaes destes psicanalistas, normalmente voltadas para as implicaes da falta de audio no sujeito surdo e na famlia:Se a audio um sentido, juntamente com o ttil e o visual, que est presente desde o primeiro momento do nascimento e corresponde aos primeiros organizadores perceptuais psquicos do beb, como ou em que medida a falta da audio deixa sua marca na estrutura psquica da criana surda, ou como pode ou no ser metabolizada esta falta no psiquismo dos pais? Ou em que medida tomam pesos os outros organizadores na vida do beb?

Deste modo, percebe-se que as pesquisas caminham no sentido de se pensar na constituio subjetiva do sujeito surdo. O termo falta, pode, de incio, assustar o leitor no familiarizado com a terminologia psicanaltica e lev-lo a concluir, apressadamente, que a psicanlise insere-se numa viso ouvintista na surdez. No entanto, para a psicanlise no h sujeito completo e harmnico, surdo ou ouvinte. A falta para a psicanlise constituinte do sujeito.25 A esse respeito, SOL (2005) nos auxilia ao afirmar que a psicanlise um contraponto chamada psicologia da surdez, pois no se atm normalizao e, por ser um mtodo de investigao dos fenmenos psquicos, no pode ser enquadrada em uma viso reabilitadora da surdez. No enta nto, se a psicanlise no se enquadra na leitura ouvintista da surdez, por no propor um enquadramento do sujeito a normas pr-estabelecidas, a omisso da psicanlise ao tratamento da questo deve ser considerada. O isolamento histrico de uma parte dos psicanalistas em instituies, alheios aos debates sociais e cientficos da atualidade, acabaram por impedir que

O conceito de falta fundamental, principalmente nos trabalhos de orientao lacaniana. Para um aprofundamento no conceito de falta e sua importncia na constituio do sujeito, ver LACAN (1964), ou para uma leitura mais introdutria, MASOTTA (1987). Como o presente trabalho no apresenta orientao lacaniana, a seguir, apresentaremos a questo do estatuto no -normativo da psicanlise a partir da noo de conflito psquico e de inconsciente, a partir da psicanlise freudiana.

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questes particulares de seu campo de estudo pudessem contribuir para a discusso das questes relativas surdez. As justificativas do enquadramento da psicanlise a partir de uma postura tica diferenciada da psicologia da surdez e da ausncia, por tantos anos, de estudos psicanalticos sobre na rea sero apresentadas, a seguir, a partir do percurso de construo da teoria psicanaltica e as possibilidades de releitura da teoria freudiana na atualidade. 3.2 O MODUS OPERANDI DE CONSTRUO DA PSICANLISE FREUDIANA Questes relativas linguagem humana esto presentes na psicanlise desde seus primrdios. Em Estudos sobre Histeria (1895), livro clssico do perodo prpsicanaltico, escrito por FREUD em parceria com BREUER, percebe-se uma inquietao sobre o uso que os pacientes fazem da linguagem na formao dos sintomas e a importncia da fala como veculo da cura. Importncia percebida pela primeira paciente atendida pelo mtodo catrtico26, denominado pela prpria paciente talking cure. interessante notar, no modus operandi de criao da tcnica psicanaltica, como foi possvel fala adquirir tal importncia. Foi por se dispor a ouvir seus pacientes e por estar realmente disposto a atribuir um estatuto de verdade psquica s suas palavras embora nem os prprios pacientes estivessem conscientes deste saber que foi possvel para Freud desenvolver o seu mtodo, que aos poucos passou da busca pela lembrana de eventos traumticos para a tcnica da livre associao. Ao longo deste percurso, Freud descobriu que a diviso da conscincia apresentada pelosO mtodo catrtico, desenvolvido por Freud e Breuer, a partir do atendimento de pacientes histricos, consistia na busca pela lembrana do evento traumtico esquecido relacionado origem do sintoma histrico. Sob hipnose, na maior parte dos casos, o paciente era indagado sobre a origem do sintoma e, ao relembrar a situao traumtica e ab-reagir (descarregar) o afeto relacionado a esta experincia que fora outrora represado, os sintomas ressurgiam com intensidade mxima e, em seguida, desapareciam. Aos poucos, a partir das associaes trazidas pelo paciente, Freud percebeu que a maior parte dos sintomas no se relacionava a uma nica vivncia, mas a vrias situaes que tinham uma espcie de efeito traumtico por adio, e que, muitas vezes, o que aparentemente era um nico sintoma, formava muitas vezes um complexo sintomtico. (BREUER e FREUD, 1895 e FREUD 1910, 1912).26

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pacientes antes atribuda predisposio orgnica que Breuer denominava estados hipnides fazia com que determinadas idias no fossem acessveis conscincia do paciente em funo de um processo de defesa. Estes contedos, por no se harmonizarem com as aspiraes ticas e estticas do indivduo, entravam em conflito com a conscincia; a soluo encontrada pelo sujeito para resolver este conflito era enviar os contedos para fora da conscincia. No entanto, tais contedos no eram completamente apagados, reapareciam na conscincia na forma de sintomas. A Freud foi possvel inferir este processo em funo de sua prtica clnica com pacientes no submetidos hipnose. Freud percebeu que os contedos esquecidos poderiam ser acessados em estado de viglia, mas que seria necessrio vencer a resistncia de seus pacientes a estas lembranas. Em seu texto Cinco Lies de Psicanlise (1910, p.4041), FREUD apresenta uma analogia simples, mas bastante elucidativa para a compreenso deste processo. Trata-se de uma comparao do processo do dinamismo psquico com uma possvel situao de conflito em uma palestra: a expulso de um sujeito inconveniente de uma sala e o impedimento de que ele retorne para a palestra pode ser comparada ao mecanismo de represso e resistncia:Imaginem que nesta sala e neste auditrio, cujo silncio e cuja ateno eu no saberia louvar suficientemente, se acha no entanto um indivduo comportando-se de modo inconveniente, perturbando-nos com risotas, conversas e batidas de p, desviando-me a ateno de minha incumbncia. Declaro no poder continuar assim a exposio; diante disso alguns homens vigorosos dentre os presentes se levantam, e aps ligeira luta pe o indivduo fora da porta. Ele est agora reprimido e posso continuar minha exposio. Para que, porm, no se repita o incmodo se o elemento perturbador tentar entrar novamente na sala, os cavalheiros que me satisfizeram a vontade levam as respectivas cadeiras para perto da porta e, consumada a represso, se postam como resistncias. Se traduzirmos agora os dois lugares, sala e vestbulo, para a psique, como consciente e inconsciente, os senhores tero uma imagem mais ou menos perfeita do processo de represso.

Prosseguindo na comparao, Freud afirma que o incmodo que o sujeito pode continuar causando de fora da sala, gritando e se revoltando contra sua expulso, poderia ser resolvido por uma tentativa de conciliao entre os ouvintes da palestra e o sujeito expulso da sala. Esta atitude de conciliao comparada ao trabalho realizado pelo analista no tratamento das neuroses.

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(...) Suponhamos que com a expulso do perturbador e com a guarda porta no terminou o incidente. Pode muito bem ser que o sujeito, irritado e sem nenhuma considerao, continue a nos dar que fazer. Ele j no est aqui conosco; ficamos livres de sua presena, dos motejos, dos apartes, mas a expulso foi por assim dizer intil, pois l de fora ele d um espetculo insuportvel, e com berros e murros na porta nos perturba a conferncia mais do que antes. Em tais conjecturas poderamos felicitar-nos se o nosso honrado presidente, Dr. Stanley Hall, quisesse assumir o papel de medianeiro e pacificador. Iria parlamentar com o nosso intratvel companheiro e voltaria pedindo-nos que o recebssemos de novo, garantindo-nos um comportamento conveniente daqui por diante. Graas autoridade do Dr. Hall, condescendemos em desfazer a represso, voltando a paz e o sossego. Eis uma representao muito apropriada da misso que cabe ao mdico na teraputica psicanaltica das neuroses

Interessante notar que, como condio para o trabalho de anlise, necessrio o reconhecimento de algo conflitante e a pressuposio da existncia de idias divergentes coexistindo. No h como evitar a existncia de elementos no-desejveis ou contraditrios na conscincia. O que possvel, atravs do tratamento psicanaltico, que eles coabitem causando menos danos do que os causados pela represso. Atravs desta rpida explanao sobre as primeiras descobertas de Freud, pode-se perceber como, de incio, Freud uniu sua experincia clnica o aparato terico que lhe estava disponvel para criar uma teoria sobre a histeria. No entanto, conforme sua experincia clnica e a sua auto-anlise caminharam, Freud foi passando desta que era uma teoria da neurose para uma teoria do funcionamento psquico normal. Esta teoria foi apresentada em Interpretao dos Sonhos (1900), considerada a obra inaugural da psicanlise. neste texto que FREUD realiza a primeira exposio completa e sistemtica de suas teorias; pela primeira vez, a teorizao sobre os processos mentais inconscientes ir aparecer com propriedade, especialmente nos captulos VI e VII. Em outras palavras, em 1900 que Freud funda sua metapsicologia. Ao afirmar, diferente da crena da medicina na poca, que os sonhos tm um sentido e que esto submetidos censura e s leis que regem o inconsciente, Freud amplia a noo de diviso subjetiva. Uma vez que todos sonhamos, no h como afirmar, se consideramos apropriadas as colocaes freudianas, que haja sujeitos no submetidos s leis do inconsciente, sujeitos no

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divididos. Um outro caminho utilizado por Freud para demonstrar que a diviso subjetiva est presente nas manifestaes humanas, pode ser percebido pela referncia cultura na construo da teoria freudiana (Hamlet, de Shakespeare, e o mito de dipo so exemplos bastante conhecidos), ampliando, mais uma vez, os limites de sua caracterizao do psiquismo. MEZAN (2002, p. 21) apresenta os trs registros a partir dos quais Freud criou a sua teoria e que possibilitou esta expanso sua auto-anlise, a referncia cultura e a experincia clnica:O que fica claro, como desenho geral, que Freud opera constantemente em trs nveis ou registros. Um o da anlise de suas prprias produes psquicas, especialmente os sonhos. Outro o das questes clnicas suscitadas por seu trabalho, tanto no plano tcnico (questes ligadas interpretao, transferncia, resistncia e a outros aspectos do processo analtico) quanto no plano psicopatolgico (a distino e classificao das diversas neuroses). O terceiro, de fundamental importncia, o da referncia cultura e ao social-histrico, ou seja, a dimenses extra-individuais que de um modo ou de outro determinam a vida psquica do indivduo. Esto nesta categoria suas reflexes sobre a moral e seu papel coercitivo quanto aos desejos, mas tambm os primeiros estudos de obras literrias, nas quais discerne a operao dos mesmos mecanismos e elementos postos em relevo pelo estudo das neuroses e dos sonhos: defesas, condensao, deslocamento, fantasias, etc.

A estes trs registros possvel incluir ainda outro, que diz respeito ao projeto freudiano de criar uma disciplina cientfica, a partir dos pressupostos epistemolgicos da cincia natural. De qualquer modo, operando nestes registros ao criar a psicanlise, a passagem do patolgico ao funcionamento psquico geral era praticamente inevitvel. Esta passagem permitiu, de um lado, o alargamento das possibilidades de interveno da teoria psicanaltica, e, de outro, o delineamento de uma tica da psicanlise, que no permite olhar o outro de cima, buscando enquadr -lo em uma norma, ou em um padro de funcionamento psquico ideal, pr -estabelecido. Em psicanlise, necessrio voltar-se para o sujeito a palavra clnica deriva de inclinare, voltar-se para o paciente para poder escut-lo. O psicanalista precisa estar disposto a abrir mo de suas crenas e de suas verdades. Esta postura s possvel a partir do reconhecimento de que os prprios analistas so divididos e que esta diviso constituinte do sujeito. Interessante notar que, paradoxalmente, antes mesmo da

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criao da teoria psicanaltica, foi este posicionamento tico que permitiu a Freud escutar os pacientes histricos, em uma poca em que os sintomas destes pacientes ou eram considerados fingimento ou atribudos a uma predisposio orgnica, portanto, desprovidos de sentido. Nesta pequena apresentao da psicanlise freudiana, vrios aspectos podem ser destacados: a importncia da fala e da escuta para a clnica psicanaltica desde o incio, a aposta de um saber que est no paciente, o afrouxamento das fronteiras entre o normal e o patolgico e a criao de uma teoria geral do funcionamento psquico. Interessante notar a proximidade destes, que considero pressupostos ticos da teoria psicanaltica, s principais reivindicaes da comunidade surda hoje a luta por serem reconhecidos como sujeitos em suas diferenas, a busca por serem escutados pelo modo como lhes possvel se expressar e a importncia de ter a sua prpria lngua reconhecida , bem como as divergncias da proposta psicanaltica com a chamada psicologia de surdez. Apenas por estes aspectos, possvel delinear a contribuio que a psicanlise pode oferecer para pensar a questo da subjetividade do sujeito surdo. Neste contexto, po