Dissertaçao Prof.Alexandre Ulbanere

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA - UNESP INSTITUTO DE ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA

Willy Corra de Oliveira: por um ouvir materialista histricoDissertao de Mestrado

Mestrando: Alexandre Ulbanere Orientador: Prof. Dr. Alberto T. Ikeda

So Paulo Junho/2005

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Alexandre Ulbanere

Willy Corra de Oliveira: por um ouvir materialista histrico

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Msica, do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP), como exigncia parcial para obteno do ttulo de Mestre em Msica, sob orientao do Prof.Dr. Alberto T. Ikeda.

So Paulo Junho/2005

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BANCA EXAMINADORA

Dedico este trabalho a todos os annimos que pereceram e perecero em busca da Verdade e de melhores condies de vida para muitos.

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AGRADECIMENTOS

Ao Pai, Rubens; Me Maria Thereza e ao Irmo Jefferson, pela base que me deram e que ainda do; Ao Willy que me agentou tantos anos e, depois, ainda revisou todo o material de anlise em tardes quentes ou frias, na cozinha de sua casa (na verdade, o caf que agradeo); Ao Ikeda que aceitou entrar em um vo cego, com um piloto que no conhecia; Ao De Bonis, espetacular mozo de espadas; Aos professores e aos colegas do IA, que tornaram o aprendizado divertido Paulo, Fl, Roger, Denis, Mrcia, Apro, Srgio Igor, Alessandro e tantos outros. Simone, Diva e Poliana (Escola MOPPE), que entendem minhas faltas eventuais. Mary: sem voc eu no conseguiria e no conseguirei! Virga, que veio em hora boa e tornou as seguintes excelentes. Ao Paulinho e Dani pela ajuda fundamental; E a todos os que torceram a favor e o nariz para este trabalho: so todos de suma importncia .... e tambm porque, em uma hora dessas, j no h mais memria.

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RESUMO

Este trabalho busca compreender o pensamento sobre a Linguagem Musical do compositor Willy Corra de Oliveira a partir de transcries das aulas do curso Linguagem e Estruturao Musicais, ministrado por ele no Departamento de Msica da Escola de Comunicaes e Artes (ECA) da Universidade de So Paulo (USP). O autor desta dissertao parte de trechos de aulas para encontrar relaes desse pensamento com a Filosofia Marxista e com diversas teorias e metodologias que resultam em uma maneira de entender a idia por trs das notas, caracterstica de suas anlises. O materialismo-dialtico compreendido no pensamento de Willy a partir da prtica e de uma conscincia histrica marxista. Esses tambm seriam os pontos de ligao entre a teoria marxista e outras, como a fenomenologia, a hermenutica e a semitica, no caso. As transcries encontram-se integrais nos Anexos. Assim, o pensamento musical de um compositor brasileiro contemporneo torna-se disponvel e acessvel para os que buscam trilhar os mesmos caminhos.

Palavras-chave: Willy Corra de Oliveira, composio musical, materialismo dialtico, msica erudita, linguagem musical, histria da msica

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ABSTRACT

This work aims to understand the musical thought of composer Willy Corra de Oliveira from transcriptions of a course named Musical Language and Structure taught by him at Music Department of Arts and Communication School of University of So Paulo. Author works from takes of registered classes to relate this thought to Marxist Philosophy and other theories and methodologies resulting in a way of understanding the idea behind the notes, which is one of its characterizes. Dialectic-materialism is understood in Willys thought from practice and a Marxistconscience of History. These would be the basis to join Marxist theory to others, like Phenomenology, Hermeneutics and Semiotics, in this case. All transcriptions are part of this work. Thus, musical thought of a Brazilian contemporary composer is accessible for those who go by the same track.

Key-words: Willy Corra de Oliveira, musical composition, dialetic materialism, classical music, music language, music history

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SUMRIO

INTRODUO......................................................................................................................9 1. MATERIAIS E MTODO...............................................................................................12 1.1 Willy Corra de Oliveira....................................................................................12 1.2 O material de anlise................................................................................................14 1.3 Problemtica do material.........................................................................................20 1.4 Objetivos....................................................................................................................22 1.5 Metodologia...............................................................................................................23 2. PORQUE O MATERIALISMO DIALTICO (FUNDAMENTAO TERICA)......26 2.1 Sobre as Artes ...........................................................................................................28 2.2 Investigao musical marxista.................................................................................35 2.3 Msica e Poltica .......................................................................................................40 3. ANLISE DO MATERIAL.............................................................................................49 3.1 As leis gerais do mtodo ...........................................................................................51 3.2 Primeira aproximao ao material de anlise .......................................................60 3.3 A anlise das obras na Histria ...............................................................................70 3.4 As relaes entre as propriedades da msica e os parmetros do som ...............78 3.4.1 Altura ...................................................................................................................85 3.4.2 Timbre..................................................................................................................99 3.4.3 Intensidade.........................................................................................................101 3.4.4 Durao .............................................................................................................102 3.4.5 Outros parmetros.............................................................................................105 3.5 A prtica e o rigor imaginativo .............................................................................109 3.5.1. Viso hermenutica ..........................................................................................114 3.5.2 Peirce, por uma semitica musical....................................................................119 3.5.3 Husserl...............................................................................................................125 3.5.4 Outras teorias ....................................................................................................130 4. CONCLUSO................................................................................................................132 4.1 Resultados das anlises das amostras ...................................................................132 4.2 Propostas para continuidade do trabalho ............................................................138 BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................141 ANEXOS ANEXO I Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais I ANEXO II Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais II ANEXO III Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais III ANEXO IV Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais IV ANEXO V Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais V ANEXO VI Transcrio do curso Linguagem e Estruturao Musicais VI

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INTRODUO

Com este trabalho busca-se registrar, disponibilizar e compreender o pensamento musical do compositor pernambucano Willy Corra de Oliveira, relacionando-o com a filosofia marxista. Tal pensamento foi sistematizado e exposto por ele ao longo de sua vida como professor universitrio. O autor desta dissertao freqentou o curso como aluno regular do Departamento de Msica da Escola de Comunicaes e Artes (1993-1999) e, durante as aulas, chamou-lhe a ateno, como caracterstica principal, o fato de que o importante para Willy era fazer compreender as idias por trs das notas. Assim, o compositor esperava conseguir uma compreenso da linguagem musical em uma poca da Histria em que j no havia uma norma, um sistema de referncia universalizante (princpio organizador das alturas)1. Sua maneira de compreender a linguagem passa por conhecer suas caractersticas comuns s diversas normas do passado e, abstraindo-se essas normas, verificar os procedimentos tcnicos e a estratgia do compositor para conseguir o resultado esttico final. Tudo isso relacionado a seu prprio contexto e realidade hoje, i.e., refletindo sobre a realidade hoje, para compreend-la. Assim, busca identificar o que prprio da linguagem musical e suas manifestaes em outras msicas (no ocidentais) e em outras pocas da Histria como espelho para sua prpria prtica, pois tambm parte deste processo de conhecimento da linguagem a reflexo, atravs da aplicao de procedimentos j realizados no passado (como fazer um contraponto, por exemplo) ou o repensar consciente de solues, a reformulao de estratgias; e a criao a partir de uma outra realidade, a contempornea (sem uma lngua falada para a prtica musical: um sistema de referncia universalizante).

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Definio melhor fundamentada no captulo Anlise do Material, no subitem alturas.

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Portanto, uma prtica em confronto com uma compreenso materialista dialtica da Histria. Encarar assim a linguagem musical encar-la do ponto de vista de sua matriaprima: o som e suas manipulaes pelos seres humanos no estaticamente, seno em movimento: ao longo dos diversos estados das foras produtivas; expondo suas contradies e buscando compreender o fenmeno em meio s condies que o cercam, identificando suas transformaes, suas causas e conseqncias etc; materialista e dialeticamente, possibilitando uma compreenso consciente da linguagem musical. H muitos exemplos da aplicao do materialismo dialtico no estudo da linguagem musical, tanto em trabalhos que se referem compreenso da Msica em seu contexto social: suas funes, seu uso ideolgico, suas leis prprias etc; bem como pela aproximao e relao com outras reas do conhecimento: a fsica, a antropologia, a Histria e outras; e ainda do ponto de vista de uma esttica marxista, propriamente dita. Nem todos so concordantes nos resultados finais; nem todos rigorosos na aplicao do mtodo marxista e com diferentes compreenses deste mtodo, nem todos buscando uma crtica ao capitalismo etc. Tudo isso faz com que seja complicado definir um tipo de aplicao do materialismo dialtico na massa crtica sobre a linguagem musical, embora seja possvel identificar algumas correntes de pensamento marxista, alm de alguns outros no marxistas, mas com aplicao do mtodo. O pensamento musical do compositor Willy Corra de Oliveira pode ser, portanto, um exemplo mais da aplicao da filosofia do autor de O Capital. Devido diversidade de fontes existentes sobre a filosofia marxista e, por conseqncia empregada na elaborao desta dissertao, usam-se indistintamente os termos materialismo-histrico e materialismo-dialtico para designar essa filosofia. Nesta dissertao parte-se da hiptese de que o pensamento musical de Willy Corra de Oliveira fundamentado no materialismo-dialtico. Tal pensamento foi

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sistematizado durante o curso Linguagem e Estruturao Musicais, ministrado na ECA-USP durante mais de vinte anos. No ano 2000, o autor desta dissertao registrou a parte terica do curso os trs primeiros anos de um total de cinco, sendo os dois ltimos dedicados a uma prtica mais direta e esse o material de anlise deste trabalho, disposio integralmente nos Anexos. Destes seis mdulos, apenas algumas aulas sero citadas, j que o foco principal desta dissertao so as anlises musicais contidas no curso. Mas, o projeto inicial tinha o objetivo de compilar integralmente esses seis mdulos e isto foi concretizado com a reviso do prprio Willy - exceto por algumas aulas no realizadas por feriados, greve na Universidade e motivos pessoais do professor. Com o novo projeto, essa funo pde ser satisfeita como um motivo subsidirio. Sendo assim, permaneceram integrais, os Anexos. A tempo: nesta dissertao e em seus Anexos, trata-se fundamentalmente da Msica Erudita, sendo esta compreendida como a de uma Tradio europia. Outras msicas podem at ser citadas, mas as definies e os conceitos so propostos a partir da Msica Erudita Ocidental, atualmente globalizada, tanto contempornea como a do passado.

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1. MATERIAIS E MTODO

1.1 Willy Corra de Oliveira

Compositor nascido em Recife (PE) em 1938. Foi autodidata e compositor nacionalista at conhecer, por volta de 1958, a msica contempornea europia atravs do contato com Olivier Toni e Gilberto Mendes. Teve aulas com aquele, at embarcar em uma viagem Europa, quando teve oportunidade de tomar contato direto com os criadores desse movimento, fazendo cursos no Conservatrio de Paris e em Darmstadt, preferencialmente. Foi um dos idealizadores do grupo Msica Nova, movimento de vanguarda da dcada de 60, que considerava a investigao e a experimentao como nica atitude justa no mundo contemporneo. Tornou-se, assim, um dos nomes da vanguarda brasileira. Em meados da dcada de 1970, ingressou como professor na Universidade de So Paulo, no recm criado Departamento de Msica da Escola de Comunicaes e Artes, o que lhe gerou a necessidade de conhecer conscientemente sua prpria atividade. Por volta da dcada de 80, teve a percepo de que sua atividade de compositor de vanguarda era conflitante com sua postura marxista e abandonou a vida de concertos e apresentaes em pblico, isto , parou de compor msica erudita. Trabalhou, no entanto, como msico para sindicatos de metalrgicos (fazendo uma msica de circunstncia e arranjos para bailes e afins) e para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (cujo hino comps).

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Continuou lecionando na Universidade e, aps a queda do Muro de Berlim (1989), passou a compor para si mesmo, o que no significa que essa msica no possa ser realizada em concerto. Um grupo de alunos formados mais recentemente - pouco antes de sua aposentaria - se dedica a interpretar e registrar sua obra, possibilitando uma circulao de suas composies mais recentes. Aposentou-se do cargo de professor em 2003, mas segue ministrando conferncias e compondo. Diferentemente de algumas dissertaes sobre o compositor, este trabalho no se interessa por questes de sua vida pessoal. Alguns trabalhos2 tentam explicar certas decises e acontecimentos de sua vida particular e mesmo profissional ou composicional a partir de uma educao rgida, ou de uma infncia infeliz etc. Para esses, h de se dar uma resposta e o espao este. A conscincia de que fazer uma msica de vanguarda era fazer uma msica que servia burguesia diretamente, e a vontade de ser verdadeiramente contra o capitalismo devem ser consideradas as razes predominantes para se explicar o rompimento do compositor com a vida de concertos regulares. Quaisquer outras explicaes podem ser interpretadas como subterfgios para a defesa de quem ainda se manteve acreditando que, no sistema capitalista, existe uma msica erudita contempornea com uma funo social. Se, hoje, o trabalho composicional de Willy volta a ser apresentado em alguns concertos; e ele volta a fazer parte de um circuito de encontros musicais e acadmicos, isso no lhe diminui a conscincia dos problemas musicais no sistema capitalista de produo, como ele mesmo tem mostrado em suas ltimas aparies (como no Encontro ColomboBrasileiro de Msica contempornea, em Medelln, em outubro de 2004, por exemplo). Ele encontrou intrpretes interessados em sua msica, mas principalmente (alguns deles) tambm

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Ver RIZZO, 2002.

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sabedores desse estado de coisas: que a produo de msica contempornea erudita pouco comunica, mesmo aos conhecedores da linguagem musical, cuja conscincia ele defende. Para quem se interessa por uma biografia do compositor/filsofo/educador, recomenda-se a Tese de Doutorado de sua prpria autoria, intitulada Cadernos. Aqui, nesta dissertao, trata-se apenas de suas contribuies cientficas para a construo coletiva de um conhecimento sobre a Linguagem Musical.

1.2 O material de anlise

Willy Corra de Oliveira, a partir de uma viso materialista da Histria aliada prtica como compositor, consegue se aproximar da pea musical atravs de diversas metodologias de anlise, relacionando seus resultados e se aproximando de um possvel significado para a obra de arte musical. Esse trabalho foi sistematizado e desenvolvido com maior flego e abrangncia no curso Linguagem e Estruturao Musicais, mas j havia sido esboado em seu livro Beethoven, proprietrio de um crebro (OLIVEIRA, 1979). Vale dizer que essas anlises so, na verdade, procedimentos pedaggicos: o professor est mostrando, nas obras dos mestres e mesmo em sua prpria obra, aspectos da linguagem musical para alunos universitrios de composio. A profundidade e a complexidade desse trabalho de anlise da Linguagem Musical foram possveis porque ele relacionou uma vivncia pessoal como criador; informaes da vanguarda na pesquisa do objeto sonoro em Darmstadt e no Conservatrio de Paris e os ensinamentos da Tradio sob a tica da dialtica.

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, ento, o resultado de um estudo materialista-dialtico do material musical3 comparando-o em diversos perodos da Histria da sociedade ocidental. materialista, porque parte do material musical, relacionando-o com os parmetros do som (altura, timbre, intensidade e durao) excluindo o gnio do compositor da explicao do resultado sonoro; isto , analisa a obra de arte restringindo-se aos procedimentos utilizados pelo compositor para expressar-se, tornando concreto o objeto de anlise. dialtico medida que expe as caractersticas e contradies do material musical, resultado do confronto entre natureza e cultura, nos diversos perodos da sociedade ocidental, inclusive em nossos dias: em movimento, portanto. Esse mtodo permite a identificao dos procedimentos utilizados por compositores em diversos perodos da Histria, sua comparao e, por isso, um trato mais consciente com a Linguagem Musical. Permite, ainda, uma viso mais consciente da msica do passado e da msica contempornea, j que observa o contexto social e poltico da arte na anlise das obras. Possibilita, portanto, tambm uma compreenso objetiva da Histria da Msica sob, principalmente, a tica da criao. Assim, torna-se possvel uma anlise do objeto de estudo tambm sob o ponto de vista do compositor, j que esse curso, ao mesmo tempo em que fruto de uma prtica intensa e consciente de Willy Corra de Oliveira como compositor, promove aos alunos a experincia da criao atravs de vrios exerccios. Tendo, o autor desta dissertao, freqentado seu curso e conhecido outros trabalhos sobre a linguagem musical, via relato de colegas ou bibliografia, chamou-lhe a ateno o grau de profundidade da abordagem de seu trabalho, no s sob o ponto de vista da criao musical (composio) como tambm de outras reas referentes a essa linguagem. Os trabalhos didticos e os de anlise musical geralmente, ou englobam parcialmente a linguagem, ou partem de uma viso metafsica da Tradio medida que trabalham sobre osMaterial Musical seria, em ltima instncia, o que d sentido a uma msica: motivos, frases, ritmos, as relaes harmnicas, meldicas etc.3

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significantes (formas, etc), apenas repetindo-os, sem aproximar-se do significado, que d vida ao significante e que o transforma, medida que se transforma o material musical; isto quer dizer que eles, na maioria das vezes, desligam o tempo de uma frase do sistema de referncia, por exemplo; ou proclamam o retorno de princpios de organizao do passado, como se pudssemos voltar a falar latim. Esse tipo de abordagem, apenas uma repetio da Tradio sem pensar sobre ela, extraindo suas caractersticas mais fundamentais, contribui para o empobrecimento da qualidade da compreenso das obras de arte e da prpria linguagem musical, afastando o ouvinte do verdadeiro objeto musical. Uma viso materialista-dialtica da linguagem musical no que tange a sua relao com a sociedade ocidental ao longo da Histria e, principalmente no sculo XX, no novidade. Muitos autores j se utilizaram desse mtodo de anlise para tentar compreender as relaes entre a Msica e a sociedade a que pertencia e Willy, em seu trabalho, sempre relaciona esses resultados, comparando as condies da msica em dado perodo com a msica contempornea. Porm, sob o ponto de vista do material musical, tentando estabelecer um pensamento uniforme quanto organizao dos sons, isso mais raro. Por isso, como exemplo praticamente nico desse tipo de abordagem e tambm pelo grau de sistematizao em que se apresenta o pensamento do compositor Willy Corra de Oliveira, plenamente justificvel o registro e a apresentao deste "tour de force" mental. D, ainda, mais fora a esta justificativa o fato do compositor j ter publicado, atravs deste pensamento, um trabalho de anlise da Sonata op. 57, de Beethoven (OLIVEIRA, 1979). O curso est dividido em duas partes distintas. A primeira tem a durao de seis mdulos, um por semestre, e abrange a parte terica do curso. ministrada em grupo e sua prioridade apresentar uma dissecao do material musical, utilizando-se de exemplos extrados da Histria da Msica; de maneira concisa e objetiva; em busca de uma aproximao maior ao sentido da obra; tornando evidente o objetivo do estudo e sua razo,

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mas principalmente, seu mtodo de busca para que o aluno possa realiz-la sozinho. Esse procedimento, aliado a alguns exerccios, visa criar, para o aluno, conceitos que devem ser o resultado final do trabalho. A segunda parte individual e predominantemente prtica, isto , o aluno vai aplicar os conceitos, apreendidos na fase anterior, na criao de suas prprias peas que sero encomendadas pelo professor, seguindo um plano de trabalho traado caso a caso. Por ser pessoal e individual, um registro dessa fase seria incuo, j que o foco central deste trabalho a primeira parte do curso, justamente por sua maior abrangncia. Devido ao mtodo de trabalho do professor, a maneira planejada para o registro dessa obra foi a anotao em sala de aula. A idia da metodologia de registro foi baseada no trabalho de Georges Politzer, publicado por Guy Besse e Maurice Caveing que, a partir de anotaes em sala de aula, reproduziram um curso de filosofia ministrado pelo primeiro, disponibilizando-o na forma do livro Princpios Fundamentais de Filosofia (POLITZER, BESSE & CAVEING, 1995). Outra fonte de inspirao foi a Irm Marie Rose que, da mesma maneira, disponibilizou o mtodo de Solesmes, de canto gregoriano. (ROSE, 1951) Os seis mdulos do curso foram, portanto, transcritos diretamente em sala de aula, enquanto o professor discorreu seu raciocnio, no ltimo ano em que ministrou todos os mdulos (2000). Esse mtodo se mostrou mais eficaz em relao ao mtodo de trabalho do professor, que desenvolve seu pensamento a partir de estmulos em sala de aula. Por isso, uma filtragem objetiva do assunto principal em tempo real se mostrou mais eficaz do que a transcrio de aulas gravadas, por exemplo. Em um ano foi possvel transcrever os seis mdulos do curso, j que eles ocorriam simultaneamente, sem conflito de horrio, para grupos diferentes de alunos. Durante o primeiro semestre do ano 2000, os mdulos mpares (I, III e V) correram simultaneamente. No segundo semestre do mesmo ano, a continuao dos mdulos mpares foram os mdulos

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pares (II, IV e VI). Portanto, uma mesma turma assistiu, no primeiro semestre, o mdulo III e, no segundo semestre, o mdulo IV, por exemplo. Para dirimir dvidas quanto inteno do compositor em dar a informao ou em tecer relaes; e tambm para corrigir, completar e at mesmo reescrever o discurso, adequando-o linguagem escrita, foi feita uma reviso do material, em conjunto com o professor Willy. O professor lia o texto e corrigia-o, ditando as correes ao aluno, portanto, este somente com a funo de escriba, em toda a primeira parte do trabalho. Para confirmar a hiptese inicial, o melhor caminho pareceu identificar de que maneira se manifesta o materialismo dialtico no pensamento de Willy sobre a msica. Para isso, uma anlise do material transcrito relacionando as leis gerais do mtodo marxista ao curso registrado ser o cerne do trabalho. Inicialmente, proceder-se- a fundamentao terica. Por que o materialismo dialtico, ttulo do segundo captulo desta dissertao. um captulo em que sero apresentados autores que fundamentam o pensamento filosfico e ideolgico do autor desta dissertao e que definem, portanto, a viso de mundo deste na investigao e na sntese dos dados obtidos. O terceiro captulo, destinado coleta e anlise de amostras tiradas do texto transcrito para a identificao com o materialismo-dialtico inicia-se com a apresentao das leis deste pensamento filosfico. Elas sero apresentadas com base nos Princpios Fundamentais de Filosofia e nortearo filosoficamente a comparao dos resultados da pesquisa no momento da sntese. Alm disso, serviro de base filosfica para a anlise das transcries do curso. Neste mesmo captulo, aponta-se para a preocupao do compositor em compreender a msica a partir de sua matria prima: o som. Essa preocupao se resolve na relao que Willy faz entre as propriedades da msica e os parmetros do som. Ao relacionar o que

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prprio da msica com os parmetros do som (sua matria prima) e de buscar, na prpria msica (em seu material) o ponto de partida para suas explicaes e interpretaes, o compositor d uma viso materialista em relao ao objeto Msica; e no apenas na relao desta com a vida material da sociedade em que est inserida, mas com sua prpria matriaprima. O terceiro captulo tratar, ainda, do uso que Willy faz da Histria e de outras teorias, a saber: a semitica, a fenomenologia e a hermenutica, relacionadas prtica como compositor. A partir da prtica (e no apenas como compositor, mas como intrprete ouvinte) essas teorias explicam o que est alm da anlise material: o fenmeno sonoro em si, e a inteno do compositor, em busca do significado da obra e as caractersticas da Msica enquanto linguagem. H outras prticas relacionadas atividade musical, como a de pedagogo, por exemplo. Neste trabalho que o recorte se d sobre essas trs configuraes: a audio, a interpretao e a composio musicais. Na Concluso, as relaes entre as diversas informaes sero apresentadas, em sua primeira parte. Alm disso, sobra espao para um breve vislumbrar de possibilidades de continuidade do trabalho. Quanto Bibliografia, o prprio curso em anlise tem uma vasta, que no constar deste item da dissertao. Durante as aulas, o professor ou as notas do escriba revelam as fontes bibliogrficas que referenciam o assunto estudado. Neste item, portanto, apenas as referncias presentes na dissertao sero listadas. Por fim, os anexos. Eles contm a transcrio integral das aulas, revisadas e disponveis, organizadas da maneira que o compositor pensou o curso. H um cdigo de identificao aula a aula que ser utilizado para referenciar as anlises. O mdulo vem sempre em algarismo romano e, logo em seguida, vem a aula. Por exemplo: IV_12, significa que o

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assunto est discutido na dcima segunda aula do quarto mdulo. A data em que foram ministradas as aulas est sempre no cabealho de cada aula, como testemunho da prpria vida dos participantes.

1.3 Problemtica do material

O material registrado aberto a vrios ngulos de anlise, sujeito a diversos questionamentos. Alguns devem ser levantados neste trabalho porque lhes dar uma resposta sua prpria essncia. Outros sero levantados para apontar os diversos pontos de vista que tambm completam o pensamento, objeto de estudo. Ao deparar-se com o material a ser analisado pode-se perguntar, de uma maneira mais geral: - Qual a diferena entre a abordagem apresentada e os trabalhos similares existentes? - Por que existe essa diferena? Ser fruto da aplicao de diferente mtodo de anlise? - possvel identificar esse diferente mtodo de anlise da linguagem musical no objeto de estudo? Com este trabalho procurar-se- demonstrar que o curso analisado fruto de um pensamento materialista-dialtico, portanto essas questes so fundamentais. Porm, sua hiptese inicial j responde a essas perguntas, j que se parte do pressuposto de que este pensamento de Willy Corra de Oliveira, apresentado em forma de curso universitrio, fruto de uma interpretao materialista dialtica da linguagem musical. Portanto, ao serem satisfeitas essas primeiras e mais amplas exigncias, a partir de uma reviso conceitual baseada na bibliografia ora apresentada, questes um pouco mais restritas se fazem presentes: - Como se reflete o materialismo-dialtico no pensamento em estudo?

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- E em sua organizao? - Como a prtica como compositor complementa a questo terica do trabalho com a linguagem? E a prtica como intrprete? Tambm proporciona outra viso do objeto musical? - O materialismo-dialtico tambm se reflete na maneira de organizar o curso, objeto de anlise? Como? - Qual a importncia da Histria nessa abordagem materialista-dialtica da linguagem musical? - Como se relacionam Histria e prtica nesta abordagem da linguagem musical? - Como ouvir msica, sob a tica dessa abordagem? - Qual o papel fundamental da imaginao aliada ao resultado do confronto consciente da prtica de compositor com a Histria da Msica no pensamento de Willy Corra de Oliveira? Mas o material coletado poderia, ainda, suscitar outros questionamentos, mais ou menos amplos, sobre outros pontos de vista. Por exemplo, do ponto de vista da educao musical, algumas questes podem ser levantadas: - A maneira de apresentar a linguagem musical (da matria-prima o som grande forma) fruto de uma viso materialista-dialtica? - Os resultados do trabalho pedaggico so positivos? - Como avali-los? - Para avali-los ser necessria a definio de um perfil de compositor. O que um bom compositor? possvel essa definio? - vivel a democratizao desse mtodo de ensino da linguagem? Como realiz-la? - Qual o papel da prtica discente no processo de aprendizado? No entanto, essas e outras questes no so o foco do presente trabalho de pesquisa. Mas este proporcionar o material de anlise para futuros questionadores da educao musical.

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Poder-se-ia ter um questionamento ainda mais profundo acerca da biografia do professor Willy, se perguntarmos: - Qual o papel de sua prtica como artista engajado a movimentos sociais e polticos na formao desse pensamento sobre a linguagem? - possvel apontar um curso de msica materialista-dialtico como forma de resistncia ideolgica no atual estgio do capitalismo? Em que medida essa resistncia pode ter uma influncia na formao de um pensamento ideolgico revolucionrio em meio classe de intelectuais e pequeno burgueses? Pode-se, ainda, tentar avaliar, desde j, a importncia deste trabalho com a linguagem musical para o cmputo da literatura marxista etc. possvel questionar muito sobre esses registros, mas este trabalho limita-se primeira: como se reflete o materialismo-dialtico no pensamento em estudo?, que sustentculo para outros focos de ateno mais pormenorizados.

1.4 Objetivos

O objetivo principal desta dissertao apontar as relaes entre o pensamento musical de Willy Corra de Oliveira e o materialismo dialtico a partir das anlises musicais do curso Linguagem e Estruturao Musicais. Outros objetivos, denominados aqui como secundrios, sero conseqncias do primeiro, porm em ntima relao com ele. O mais importante deles , sem dvida, registrar

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e apresentar, disponibilizando como fonte de pesquisa e como guia para trabalhos posteriores, o pensamento de um notrio4 compositor brasileiro contemporneo sobre a Msica. Outro apresentar a maneira de organizar seu pensamento relacionando as propriedades da msica aos parmetros do som.

1.5 Metodologia

O curso Linguagem e Estruturao Musicais foi transcrito diretamente das aulas ministradas pelo professor Willy no Departamento de Msica da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo durante o ano 2000. O aluno agiu como um escrivo, tentando passar o mais despercebidamente possvel para no alterar o fluxo dos pensamentos do compositor em seu exerccio acadmico. Nos anos 2003/2004, o resultado desta transcrio sofreu uma reviso que visava desde corrigir erros de ortografia ou gramtica, por exemplo, at conformar um pensamento transcrito da linguagem oral para a linguagem escrita. Enquanto o professor lia uma cpia impressa das transcries, o escriba o acompanhava, corrigindo em tempo real, com o uso do computador, as eventuais modificaes. Com esse procedimento espera-se garantir a inteligibilidade das palavras do compositor e suas intenes. Na verdade, como se o prprio Willy houvesse escrito o texto de suas aulas, j que isto, de fato, praticamente ocorreu.

4 Notrio, aqui, nos meios acadmicos mais cultos. Essa uma questo relativa: o indivduo que no tem contato com msica erudita brasileira ou se interessa pelo Movimento dos Sem Terra a ponto de conhecer o autor de seu Hino eleito pelos prprios trabalhadores poder no ter a menor idia de quem Willy Corra de Oliveira. Apenas porque ele figura em diversos livros sobre msica contempornea brasileira e latino-americana e nas principais Histrias da Msica Brasileira que, nesta dissertao, adota-se notrio.

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O trabalho de dissertao se d quando, a partir de anlises das transcries, so identificadas manifestaes do materialismo dialtico nas anlises do referido curso. Segundo Antnio Joaquim Severino (SEVERINO, 1977):a anlise um processo de tratamento do objeto seja ele um objeto material, um conceito, uma idia, um texto etc pelo qual este objeto decomposto em suas partes constitutivas, tornando-se simples aquilo que era composto e complexo. Trata-se, portanto, de dividir, isolar, discriminar (p 102).

Por meio deste processo lgico, portanto, se dar a identificao dos possveis pontos de convergncia entre o pensamento de Willy e as teorias que utiliza na formao de seu pensamento. O processo de sntese que, segundo o mesmo autor (SEVERINO, 1977), permite uma viso de conjunto, a unidade das partes at ento separadas, em um todo que adquire um sentido global e uno ser fundamental na Concluso. No entanto, todo o processo anterior segue o conceito de anlise pr-requisito para uma classificao que se baseia em caracteres que definem critrios para a distribuio das partes em determinadas ordens (p. 102). Esses critrios, representados pelas possveis relaes comentadas. , ento, a partir de um raciocnio indutivo que se forma a argumentao desta dissertao. Seguindo a linha de pensamento do autor, a induo ou raciocnio indutivo uma forma de raciocnio no qual os antecedentes so dados e fatos particulares e o conseqente uma afirmao mais universal (p. 101). Mesmo SEVERINO (1977) admite que na induo h uma srie de processos que no se esquematizam facilmente, porque faz intervir tambm a experincia sensvel e concreta (p. 101). Assim, o resultado deste processo de observao e anlise dos fatos concretos uma norma, uma regra, uma lei, um princpio universal, que constitui sempre uma generalizao. A induo parte, pois, de fatos particulares conhecidos para chegar a concluses gerais at ento desconhecidas, como mostra SEVERINO (1977).

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Embora nesta dissertao o objetivo seja menos amplo do que determinar uma regra geral uma teoria, buscar em dados concretos (como o texto transcrito, objeto de anlise) uma identificao com uma filosofia, portanto, com uma norma, um princpio universal (no caso, a filosofia marxista), pode ser considerada resultado de uma busca por meio deste raciocnio. A anlise do material se iniciou com um mapeamento das aulas em busca de uma viso ampliada do conjunto. Foram feitas duas tabelas, reproduzidas no quarto captulo, com uma sinopse quase palavras-chave do contedo de cada aula e, ento, foi possvel ter uma viso area do material de anlise. Tambm foi dividido o pensamento sobre duas vertentes: tudo o que se relaciona com a parte material da msica e o que se relaciona interpretao dos dados obtidos com as anlises sobre a partitura. Embora as duas coisas sejam inseparveis, j que atravs desta aquela transformada e vice-versa, dividi-las pareceu ser a maneira mais adequada para se iniciar o procedimento de anlise. As relaes de uma Histria da Msica a partir do material musical com a identificao e interpretao dos elementos de uma pea musical em seu contexto tambm est contemplada no processo de anlise. Nas Concluses, o processo de sntese dessas informaes se dar relacionando as partes em um todo coerente, cumprindo os objetivos. Assim, espera-se.

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2. PORQUE O MATERIALISMO DIALTICO (FUNDAMENTAO TERICA)

Mesmo no senso comum, tem-se que Msica a arte que permite ao homem exprimir-se atravs de sons (LAROUSSE, 1999). E organizando os sons sucessivamente que os seres humanos conseguem esse resultado. Mesmo na msica das sociedades no ocidentais essa organizao de sons tem leis mais ou menos claras e mais ou menos complexas (dependendo da sociedade em questo). Depende dessa sociedade, tambm, a abrangncia social do conhecimento dessas leis. Mas o que no se discute, que elas existam e sejam desenvolvidas no seio das respectivas sociedades. (HINDLEY, 1993). Em alguns momentos da Histria da Msica Ocidental, essas leis de organizao foram socialmente abrangentes - universalizantes. Neste trabalho parte-se do conceito de que a msica erudita, assim chamada, uma msica que tem uma Histria porque seu material musical se transformou ao longo do tempo: ao longo dos diversos estados das foras produtivas da sociedade ocidental. Os motivos dessas transformaes, as causas, as conseqncias e as condies sociais que as geraram no so alvo direto de discusso desta dissertao. Mas o fato de que uma msica mondica (canto gregoriano) erigida sobre um sistema de organizao das alturas baseado em modos tenha dado origem, aproximadamente oito sculos mais tarde, a uma msica erigida sobre um outro sistema de organizao das alturas (sistema tonal) diverso do primeiro na essncia (o primeiro privilegia o pensamento horizontal de sucesses de alturas e o segundo privilegia o encadeamento de blocos verticais de sons), fundamental para se compreender a Histria da

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Msica e, conseqentemente, as caractersticas prprias da linguagem musical e de suas manifestaes nos vrios perodos histricos. (HINDLEY, 1993) Juan Carlos Paz, defensor da vanguarda na dcada de 1960, interpretou a situao do compositor em sua poca ao anunciar que a norma no existe; preciso cri-la para cada circunstncia (PAZ, 1976). Isto quer dizer que para cada pea, um sistema de organizao das alturas um simulacro de sistema de referncia universalizante - deve ser criado previamente composio musical para viabiliz-la; ou seja, as regras de organizao devem ser feitas caso a caso. Colocando-se parte outros problemas que essa realidade possa criar e tambm ser esse um dos vrios fatores que contribuem para o estado de coisas em que se encontra a Msica Erudita Contempornea hoje (a falta de um pblico, sua dificuldade para entrar no Mercado, a falta de uma comunicao efetiva entre compositor e pblico etc), nesta dissertao parte-se do conceito de que conhecer o sistema de referncia (o conjunto de regras de organizao de sons e silncios no fluxo temporal) fundamental para compreender o prprio fenmeno musical, e a sociedade que a criou, por meio de uma prtica social. Essas concluses podem ser consideradas frutos de uma interpretao materialistadialtica da realidade da linguagem musical, j que condiciona as leis da msica sociedade a que pertencem. No caso de Paz, mais diretamente, sociedade capitalista. O materialismo-dialtico ou pensamento filosfico marxista, assim tambm chamado, manifestou-se inicialmente sobre as Cincias Econmicas, por serem essas as que, poca de Marx, proporcionavam condies para explicar as relaes sociais na sociedade de ento. O autor, em O Capital, desvenda as relaes sociais na sociedade capitalista (inglesa e mecanizada) por meio de um processo de anlise histrica. Destaque-se neste processo sua concepo de que a Histria feita por seres humanos, atravs da Luta de Classes; ou seja, sem a concepo de que h uma Idia: sem, segundo Lukcs, a mitologia de que tudo estaria pr-determinado pelo esprito do povo, como explicava Hegel (LUKCS, 1974). Marx

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percebeu que, em ltima instncia, a prpria matria tem, em sua unidade, contrrios que, ao chocarem-se, provocam mudanas (Tudo se Transforma) quantitativas e qualitativas. Essas concepes, aliadas a outras que as complementam (Tudo se Relaciona etc) formam a base do pensamento materialista-dialtico, pormenorizada no captulo 3 desta dissertao, sob a tica de Politzer, como parmetro de anlise do objeto de pesquisa. Inicialmente chamado materialismo-histrico, o mtodo marxista passa a ser aplicado a outras reas do Conhecimento e, por fim, ao prprio Conhecimento, na busca por explicaes que superassem as aparncias: a relao dialtica seria a dupla determinao, o reconhecimento, a superao simultnea do ser imediato; i.e., como explica Lukcs:trata-se, por um lado, de destacar os fenmenos de sua forma dada como imediata, de encontrar as mediaes pelas quais podem ser referidos ao seu ncleo e sua essncia e captados na sua prpria essncia e, por outro lado, atingir a compreenso deste carter fenomenal, desta aparncia fenomenal, considerada a sua forma de manifestao necessria. Essa forma de manifestao necessria em razo de sua essncia histrica (LUKCS, 1974, p 22/23).

Segundo o prprio autor, um pouco mais adiante, as cincias positivas tm a caracterstica de destacar o objeto (fenmeno) de seu contexto histrico determinando-o, portanto, como imutvel.

2.1 Sobre as Artes

Contribuies so muitas neste campo e fazer um recorrido sobre elas extrapolaria os limites de uma dissertao de mestrado. No entanto, chamam a ateno do autor deste trabalho os escritos de G. Plekhanov. Este pensador pode e deve figurar nesta dissertao, em primeiro lugar porque segundo o prprio Lnin contribuiu para a formao de toda uma

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gerao de marxistas que construram a Revoluo Russa, mas tambm por sua proximidade cronolgica com o prprio Karl Marx. Georges Plekhanov (1857-1918), terico russo do marxismo que operou em diversos ramos da filosofia, tentou tambm estabelecer fundamentos cientficos (materialistahistricos) esttica. Em seu livro A Arte e a Vida Social, publicado pela primeira vez em 1912, Plekhanov tenta compreender o problema do utilitarismo da arte. O autor trabalha sobre dados biogrficos de alguns artistas e relaciona-os com seu meio social na tentativa de compreender as condies sociais e individuais que levaram o artista a optar por fazer ou no uma arte utilitria. E chega concluso de que a tendncia arte pela arte dos artistas e das pessoas que se interessam vivamente pela criao artstica surge base de seu divrcio irremedivel com o meio que os rodeia (p. 24). E continua:A chamada concepo utilitarista da arte, isto , a tendncia a atribuir s obras significao de uma avaliao dos fenmenos da vida, e o alegre desejo que sempre acompanha dita tendncia de participar das lutas sociais, surge e se fixa quando existe uma simpatia recproca entre uma parte considervel da sociedade e das pessoas que sob a forma mais ou menos ativa se interessam pela criao artstica (idem).

O que deve ser lembrado aqui que essas afirmaes (e outras que viro) deste autor esto fortemente contextualizadas. Plekhanov tinha o objetivo de fomentar uma revoluo (embora tenha sido contra a Revoluo de 1917) e claramente conclama no s a uma reflexo, mas a uma tomada de posio contra o sistema capitalista. Por isso, essas afirmaes no devem ser tomadas como verdades: antes, pontos de partida para uma investigao um ponto de observao dos fenmenos; mesmo porque, a realidade hoje bem diferente da de fins do sculo XIX. Plekhanov continua investigando e passa a demonstrar que, em muitos casos, a concepo utilitarista da arte utilizada como ideologia da classe dominante, afirmando na pgina 25 que (...) qualquer poder poltico prefere a concepo utilitarista da arte, sempre e quando, claro, se interesse por esta matria. Isto se compreende facilmente: o poder poltico

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est interessado em por todas as ideologias a servio da causa que ele mesmo serve. Ento, os governantes incentivariam a arte utilitria em causa prpria, combatendo a arte engajada em causa revolucionria. Da mesma maneira, d exemplos biogrficos que demonstram esses fatos. Mais adiante, conclui que a concepo utilitarista da arte se compagina to bem com o esprito conservador quanto com o revolucionrio. O que pressupe, segundo Plekhanov, necessariamente, a tendncia a esta concepo um interesse vivo e ativo por determinada ordem ou ideal social. E essa tendncia desaparece sempre que desaparece esse interesse. Plekhanov continua a investigao identificando as tendncias artsticas que trabalham sob uma ou outra perspectiva. Identifica artistas que optam pela arte pela arte, refugiando-se no seu eu interior e na pureza dos dons artsticos, que no podem ser contaminados com o real. Mostra as causas, atravs de dados biogrficos e tambm de manifestos nos quais tais artistas explicam sua arte e as conseqncias dessa atitude em suas obras. Vale lembrar que o trabalho tem a caracterstica de um ensaio, por isso as obras so citadas e tomadas sob um ponto de vista geral. No h, portanto, anlises minuciosas dessas obras e esse nem era seu objetivo. O autor tambm identifica os artistas de tendncia contrria sua, partidrios da ideologia burguesa de sua poca. Com isso, tenta alertar contra esse contra-ataque ideolgico e garantir uma proteo contra influncias similares no futuro, desvelando as armadilhas montadas por esses autores, neo-romnticos e, em sua maioria (segundo ele), influenciados por Nietzsche. Esfora-se, ainda, em demonstrar as fragilidades das obras em questo causadas pela defesa de uma causa esclerosada (a burguesa). Quanto aos partidrios da arte pela arte, ele conclui, restam ainda aqueles que, no tendo fora artstica suficiente para dar contedo ideolgico a suas obras ou por no se identificarem mesmo com causa alguma, escondem-se nesta tendncia, cuja expresso

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filosfica era, segundo o autor, o idealismo subjetivo. Ao identificar essa tendncia filosfica, Plekhanov explica queo idealismo subjetivo sempre teve por base a idia de que a nica realidade o nosso eu. Mas, foi preciso todo o limite do individualismo da poca da decadncia da burguesia para fazer dessa idia no s a norma egosta que relaciona as relaes entre os homens que se amam a si mesmos como a um deus (como se designavam um grupo de partidrios desta tendncia), mas tambm a base terica de uma nova esttica (p 67).

O autor ainda se preocupa em demonstrar que uma das implicaes desta postura a eterna solido do artista. Portanto, Plekhanov examina problemas tais como o lugar e o papel da arte na sociedade ocidental, capitalista, sua poca. Por isso, alguns exemplos que utiliza so bastante contextualizados e muitas vezes ineficientes para garantir que essas afirmaes perdurem. O prprio autor talvez tivesse conscincia dessas fragilidades e deixa claro que apenas busca tentar olhar o fenmeno sob um outro ponto de vista, diferente do usual ( poca). Mas o autor desta dissertao aponta ainda para o fato de que o filsofo tambm mostra as armas da ideologia burguesa da poca no s em relao a uma arte engajada sua causa - como as do grupo de artistas antes citados (partidrios da arte pela arte) mas tambm dos efeitos desta nas prprias obras de Arte (o isolamento , sobretudo, a falta de comunicao com um pblico: quem faz Arte para si, pode no se comunicar com outrem diretamente). Essa tese poderia, em um outro trabalho ou contexto, fundamentar, por exemplo, uma explicao para o isolamento da Msica de Vanguarda ou mesmo da Msica Erudita Contempornea. O livro Cartas sem Endereo cinco ensaios sociolgicos sobre a arte (PLEKHANOV, 1969), trata a questo da arte sob outro ponto de vista. Investiga-a a partir da interpretao materialista da Histria, em sua relao com o estado das foras produtivas da sociedade da qual expresso.

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Para isso, recorre a relatos etnolgicos sobre sociedades no-ocidentais e relaciona os exemplos de sua arte ao modo de produo de sua sociedade. Na pgina 166, o autor justifica seu mtodo, que consiste em analisar a arte dos povos ento considerados primitivos separadamente da arte dos povos ditos civilizados, porque entre esses ltimos (civilizados) a influncia da tcnica e da economia fica muito mais velada pela diviso da sociedade em classes e pelos antagonismos de classe que derivam desta. Hoje em dia, delicado nomear esta ou aquela sociedade de civilizada ou primitiva, mas h de se procurar o contexto de tal denominao. Apesar de no definir conceitualmente os dois termos, o autor deixa claro, durante a leitura da obra, que selvagem ou no civilizada a sociedade cujo estado das foras produtivas ainda no desobriga seus membros de viverem diretamente da natureza, atravs da caa, da pesca e da coleta de alimentos. E toda a tese de Plekhanov baseia-se no pressuposto que (...) a arte de qualquer povo est determinada por sua psicologia; sua psicologia o resultado de sua situao e esta depende, em ltima instncia do estado de suas foras produtivas e de suas relaes de produo (p. 123). Para provar essa tese, o autor procura, nos estudos etnolgicos, evidncias dessas relaes (arte/modo de produo) em questes como o conceito de belo, evidenciando seu carter relativo e particular, demonstrando que mesmo esse conceito est relacionado com a economia. E que esse conceito de beleza, est tambm ligado a outros princpios estticos, como o princpio da anttese e o da simetria. Mas o que fundamental em seu trabalho a questo da utilidade e do prazer esttico. No apenas o fato de que, se algo tem apenas a funo de proporcionar prazer esttico, j tem uma funo. Mas, tambm, Plekhanov est firmemente convencido de que, antes de proporcionar prazer esttico, cada coisa tem (ou teve) sua utilidade na origem. Mesmo a pintura no corpo (tatuagem) ou os adornos utilizados em determinadas sociedades (ossos,

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peles etc). Portanto, demonstrando que, antes do jogo cnico est o que til: o trabalho. E para educar os membros mais jovens da tribo para esse modo de produo (trabalho) ou para reviver uma atividade que pode ter sido importante ou que represente o sagrado para aquela comunidade que surgem os jogos cnicos, as danas e outras diversas formas de arte. Ou seja, Plekhanov parte da idia de que toda arte surge (ou surgiu) a partir das necessidades que a continuidade do trabalho5 impunha para a comunidade em questo e que, medida que o estado das foras produtivas se desenvolvesse, essa Arte se transformaria, at sua abstrao em relao ao trabalho (sua origem), em sociedades cujos indivduos esto desobrigados a viver da Natureza, como a sociedade capitalista, por exemplo. Mas talvez no a Chinesa ou a Tibetana etc. Realmente uma explicao, mas no responde a todas as perguntas (e talvez nem fosse a inteno do autor um escopo to amplo). Sua teoria, ento, a de que o prazer esttico fruto da abstrao das artes em relao sua utilidade imediata. Interessante notar que algumas peas de Arte de sociedades extintas expostas em museus de todo mundo foram, em primeira instncia, objeto de uso nas sociedades antigas: vasos, taas, e mesmo torneiras (quando se trata da sociedade romana, por exemplo). Ainda assim, falta-lhe um aprofundamento maior das questes. Em sua defesa est o fato de que ele tentou abrir o leque de estudos sob a perspectiva do materialismo histrico (assim chamado por ele) o mais que pde, mesmo em detrimento do rigor cientfico. Uma prova disto que, em relao Msica, por exemplo, Plekhanov tem pouco a dizer. Diz apenas que ela tambm tem sua origem no trabalho. Na pgina 112, depois de alguns exemplos (bem menos do que em relao s outras artes), o autor conclui que:a capacidade de o homem perceber o ritmo e de deleitar-se com o mesmo faz com que o produtor primitivo se submeta alegre a certo ritmo no processo do trabalho e acompanhe os movimentos produtivos do corpo com sons compassados da voz e com o som cadenciado de diversos objetos que leva pendurados.

Trabalho, aqui, no sentido de fora transformadora da Naturezae no em fora geradora de capital ou maisvalia.

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E conclui respondendo que os movimentos produtivos de seu corpo e o ritmo que determina essa cadncia e no outra dependem do carter tecnolgico do processo de produo, da tcnica da produo dada (ibid, p. 113). Cada carta tem seu ttulo, embora seus objetos de estudo se entrelacem. Por exemplo, a quarta carta, As Danas, demonstra a origem destas nos processos de produo e nas relaes de produo das sociedades em questo, mas o autor no deixa de utilizar exemplos de outras artes na argumentao. De fato, predominante a presena das artes plsticas no trabalho de Plekhanov, muito provavelmente por ser o que mais chama a ateno aos autores nos quais se referencia. No entanto, o que pretende o autor que:(...) a investigao do problema particular da arte ser ao mesmo tempo uma comprovao do conceito geral da Histria. Com efeito, se este conceito geral errneo, ao tom-lo como ponto de partida, muito pouco conseguimos explicar em matria da evoluo da arte. Todavia, se nos convencermos de que esta evoluo se explica com sua ajuda, melhor que com a ajuda de outros conceitos, teremos a seu favor (da concepo materialista da histria) novo e poderoso argumento (p. 89).

Ou seja, quer provar que a filosofia de Marx pode explicar definitivamente a relao da arte com a sociedade em qualquer perodo histrico, atravs das foras produtivas dessa sociedade. Mas a correlao tambm verdadeira, j que a arte primitiva reflete to diafanamente o estado do desenvolvimento das foras produtivas, que hoje em dia nos casos duvidosos julga-se pela arte o estado em que se encontram ditas foras (p. 110). Apoiado, portanto, na sociologia e na etnologia, o autor esfora-se por construir um ponto de partida na investigao esttica apoiado na interpretao materialista da histria, como pe em evidncia: estou convencido que a crtica (mais exatamente a teoria cientfica da esttica) s pode avanar daqui por diante se apoiar-se na interpretao materialista da histria(p. 117). H de se levar em considerao, em relao a esses trabalhos de Plekhanov, suas datas de publicao; as Cartas , o autor nem conseguiu termin-las (a quinta carta est interrompida no meio de um pargrafo). Portanto, a concepo materialista da histria como a chama, era

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um pensamento ainda no incio. E era urgente sua difuso por muitos meios. E Plekhanov a difundiu por vrios, atravs de trabalhos filosficos, como Ensaio sobre a Concepo Monista da Histria e outros. A esttica um ramo da filosofia e, portanto mais um campo de ao para ele. Mas no se pode dizer, conhecendo sua obra, que ele tenha desenvolvido uma esttica. Na verdade, sua inteno, segundo o que est em seu prprio texto, era a de contribuir para um ponto de partida, uma viso geral do problema, que deveria ser pormenorizado, caso a caso. Era, em ltima instncia, a formao de uma massa crtica, que fundamentaria trabalhos ulteriores. Uma massa crtica filosoficamente bem resolvida. Essa, talvez, fosse a maior preocupao desse terico. Seguramente, outros autores, como Lukcs, por exemplo, desenvolveram um trabalho mais profundo no ramo da Esttica sob a tica marxista. Este trabalho no trata de Esttica especificamente, portanto no cabe, aqui, buscar tais relaes. A incluso de Plekhanov importante, neste tpico, porque abre um campo para algumas concluses que, do ponto de vista da Msica, gerou novas contribuies.

2.2 Investigao musical marxista

Alfonso Padilla, em sua Tese de Doutorado intitulada El Anlisis Musical Dialctico faz um recorrido sobre a Musicologia com base na Filosofia Marxista (e sobre o prprio mtodo dialtico, a partir dos pr-Hegelianos), explicando as origens desta. Sob o ponto de vista da investigao musicolgica, defende uma interao entre Musicologia e Etnomusicologia em direo a uma cincia musical nica. Trata-se da diviso entre a Cincia da Msica Erudita Ocidental (Musicologia) e Cincia das Demais Msicas - outras culturas,

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folclore, msica urbana, de consumo de massa etc (etnomusicologia). Segundo ele, o prprio Guido Adler defendeu uma viso pluralista em relao ao estudo das msicas. Padilla sustenta que, desta forma, os resultados sero obtidos a partir de diferentes pontos de vista, cercando o objeto de estudo por vrios ngulos (caracterstica do materialismo dialtico enquanto mtodo de pesquisa Tudo se Relaciona); assim as informaes contidas em diferentes pesquisas poderiam se relacionar sob o ponto de vista de uma filosofia que as organizasse. Em seu trabalho, cita diversos autores que fundamentam esses conceitos e precisamente Charles Seeger chama a ateno. Seeger, musiclogo americano, trabalhou um pensamento pluralista na investigao musicolgica que, segundo o recorte em seu Studies in Musicology 1935 - 1975 (SEEGER, 1977), vale apenas para a Msica Ocidental, na verdade pode servir de inspirao tambm para outras msicas. contrria, ao pensamento do autor desta dissertao, a adoo de um modelo; em primeiro lugar, porque seria anti-dialtico, ainda que fosse um modelo materialista-dialtico. Um investigador materialista-dialtico deve ter no um modelo, seno uma atitude, uma disposio metodolgica muito geral em direo investigao musicolgica (PADILLA, 1995; p 69). Essa assertiva est de acordo tambm com o pensamento de Seeger para o trabalho com a Musicologia. Tanto que ele tambm pensou relaes desta cincia com a lingstica:Musicologia tem muito a aprender com a Lingstica. (...) A Lingstica escapa do excessivo historicismo da filologia comparada durante a ltima metade do sculo XIX, enquanto a musicologia s agora, nos anos 1970, est comeando a mostrar sinais de escapar desse excessivo historicismo que ela mesma criou (p. 2).

Ele conclui, avaliando que a Musicologia Comparada e a Etnomusicologia temperaram, com suas primeiras tentativas, essa viso solipsista (SEEGER, 1977; p 2). Neste mesmo texto e em outros (o livro trata de uma compilao) o autor define alguns parmetros tericos que cr indispensveis para a investigao musicolgica, alm de buscar uma uniformidade de conceitos, como por exemplo, os de:

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discurso (speech): o conceito de msica, como o sistema cultural universal de comunicao auditiva predominantemente assimblica; linguagem (language): a msica percebida, como o subsistema particular cantado ou tocado que uma das muitas msicas do homem; a fala de uma lngua para faladores individuais: o cantar e tocar uma msica por msicos individuais

retirados de SEEGER (1997; p.25) para mostrar correlaes de termos da Lingstica com a Msica. Ele investigou, ainda, aspectos como a Lgicas do Discurso e Lgica da Msica, chegando trs leis do pensamento musical, ou cnones de procedimento lgico-musical:(1) identidade o que pode ser mostrado que pode ser dito que ; (2) serializao, definida como uma tcnica pela qual cada unidade de forma lgicomusical pode ser transformada em uma outra por normas tradicionais de procedimento; (3) compensao. O tpico produto de msica Ocidental consiste de alguns fatores que devem mostrar um alto grau de varincia, enquanto outros devem mostrar um muito baixo grau de varincia, ou nenhuma (ibid, p. 69).

Tudo isso em relao afinao (tom) (pitch) e proporo, em um primeiro plano; tempo e dinmica em segundo plano (ibid, p 70/71). Essa busca por desvendar uma lgica musical continua por meio de uma investigao do Processo Composicional Musical e os conceitos de estrutura e funo. primeira, ele se refere como a forma fsica de um artefato particular e de agregados de artefatos, aos padres de crena e comportamento observados nos indivduos que produzem os artefatos e os padres de distribuio populacional e de classe social que esses indivduos representam; e por funo, Seeger define:(1) as tradies ou meios de fazer (making), usar, acreditar e fazer coisas que so inerentes, inventadas, cultivadas, e transmitidas por esses indivduos; (2) a intensidade relativa da atividade; e (3) a dependncia relativa e a interdependncia entre tradies e cultura como um todo e nos corpos vivos que carregam.

Conclui, ainda, que no uso discursivo da linguagem mais fcil identificar, similarizar e diferenciar estruturas que funes, bem como as coisas elas mesmas que em seus contextos (SEEGER, 1977; P 141). Portanto, o discurso musical em relao intrnseca com a sociedade a que pertence.

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Padilla mostra um quadro que se aproxima a uma teia de aranha, para demonstrar o modelo de investigao de Charles Seeger e que, certamente, ajuda a compreender a complexidade dessas relaes e definies: cada elemento se vincula a outro (PADILLA, 1995; P 68/69). H de se notar que a anlise musical tambm faz parte da compreenso das relaes da Msica com seu entorno social, cultural e histrico. Por isso, a musicologia uma cincia multidisciplinar (ibidem). Mais adiante, o autor define a anlise de estruturas musicais como a nica coisa que a musicologia tem de prpria e que as outras disciplinas envolvidas na anlise dos contextos no podem se apropriar. O autor levanta, ainda, alguns modelos de investigao de anlise de estruturas musicais, que no tm espao na seqncia desta Reviso, por no se tratar do assunto principal da Dissertao. No entanto, fundamental unir a estrutura ao sistema de referncia, j que:em um sentido muito restrito, a anlise est dirigida a revelar, por a descoberto a estrutura interna de um corpus musical, suas normas e princpios formais, as tcnicas de composio utilizadas. Esta anlise responde s perguntas de qual o contedo musical de uma obra ou pea, qual sua estrutura, como est concebida e realizada (ibid, p 80).

No Brasil, esta tendncia de uma investigao contextualizada no novidade e muitos investigadores utilizam este procedimento metodolgico (muitas vezes no conscientemente) relacionando o fenmeno musical (partitura etc) a uma prtica contextualizada. Para ser marxista (materialista-dialtica), no entanto, essa investigao tem de estar concebida sob perspectiva poltica revolucionria: a do proletrio, j que esta, segundo Lkacs, condio sine qua non para o materialismo-dialtico:o mtodo marxista, a dialtica materialista do conhecimento da realidade s possvel do ponto de vista de classe, do ponto de vista da luta do proletariado. Abandonando este ponto de vista, afastamo-nos do materialismo histrico da mesma forma que, por outro lado, elevando-nos a este ponto de vista, entramos diretamente na luta do proletariado (LKACS, 1974; P 36).

Embora depois da queda do Muro de Berlin, no seja mais usual falar de luta do proletariado ou mesmo luta de classes, ser contra o capitalismo o sistema de relaes

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sociais baseadas na explorao do trabalho para o acmulo de mais-valia pode substituir o termo. Robert Kurz, por exemplo, acredita que o perodo de uma luta de classes j estaria encerrado no capitalismo sistema produtor de mercadorias porque os trabalhadores (proletrios) teriam direitos na sociedade burguesa e porque o estado das foras produtivas, com constante acrscimo de conhecimento fruto, hoje, da concorrncia permitiria o fim da prioridade de acumular mais-valia. Ele diz:O dinheiro total produziu o ONE WORLD e quanto a isso no possvel querer voltar atrs: este, no entanto, era apenas a muleta da humanidade, que agora deve ser eliminada. preciso libertar este mundo unificado de sua conformao mercantil, resguardando seu nvel civilizatrio, sua fora produtiva e seus conhecimentos (KURZ, 1997, p. 26).

No se pode negar o contedo marxista do trabalho de Kurz, mas ele pensa sobre uma outra realidade. So poucos (comparativamente falando) os trabalhadores deste estado das foras produtivas que descreve. No entanto, ele se esquece daqueles que nem podem ser trabalhadores ou dos que no trabalham sob as condies mais avanadas das foras produtivas do capitalismo (a maioria), que ainda no desfrutam dessas condies descritas por ele. Segundo Kurz, ainda, a causa operria teria preparado o trabalhador para o capitalismo, agora a hora da revoluo Esta tarefa histrica que marxismo operrio havia deixado de lado e protelado para um futuro supostamente longnquo, est agora na ordem do dia (ibidem). Mesmo assim, ele no nega que denunciar essas contradies inerentes ao sistema capitalista deve ser fundamental para quem quer inserir-se ou utilizar-se deste mtodo. Assim, necessrio abrir espao para um subitem um pouco mais especfico.

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2.3 Msica e Poltica

O tema do uso da msica em lutas polticas e ideolgicas foi abordado por Alberto Ikeda em Msica Poltica: imanncia do social, em que mostra os diferentes usos que se fez da linguagem musical em movimentos sociais. Uma prtica social unida a uma causa revolucionria (ou reacionria) analisada e desnudada pelo autor, que une mesmo a msica de Beethoven a uma causa! (a da burguesa revolucionria). Ikeda faz um recorrido por diversas sociedades e diversos usos de uma pea musical, tanto do ponto de vista da composio como da interpretao, levando em conta o tipo de apropriao feita pelos que a utilizaram. Mostra ainda que o sentido de uma msica poltica est diretamente relacionado ao contexto social em que foi utilizada. Em meados do sculo XX, citado por Ikeda como compositor da causa marxista, Hans Eisler (1898-1962) trabalhou compondo para algumas peas de Bertold Brecht e em alguns filmes de contedo revolucionrio. Sua produo musical no nos interessa no momento. Neste espao, mister conhecer seu trabalho como terico, cujo texto cheio de ironias, trabalha vrias perspectivas do movimento revolucionrio de sua poca e trata, tambm, da linguagem musical. Em uma compilao dos textos do compositor (GRABS, 1976) temos testemunhos de uma vida de lutas contra o capitalismo. Mas h textos em que, por exemplo, ficam evidenciadas as relaes do autor com seu professor Arnold Schoenberg, com seu colaborador Bertold Brecht e com outros colaboradores e artistas. H ainda os que falam da relao da msica e do compositor no capitalismo e, ainda, da msica como arma na Luta de Classes.

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relevante, aqui, registrar a existncia desses textos, que visam alertar, do ponto de vista materialista dialtico, os problemas enfrentados pelo compositor no capitalismo. Mas sem esquecer: Eisler foi um compositor e (infelizmente) no incomum que alunos de graduao e mesmo de ps-graduao em msica no o conheam. E para no se falar de sua obra. Ele fez msica e, atravs desta prtica, pde discorrer sobre os problemas mencionados. Mais ainda! Foi um compositor revolucionrio, isto , esteve sempre contra o modo de produo em que vivia, a no ser quando viveu na Alemanha Oriental. Mas, mesmo nesse perodo, produziu textos que visavam atentar para os problemas daquela prtica especfica e que, agora, no nos interessa, a no ser como Histria. O autor escreveu para seus colegas compositores, para msicos e para o pblico em geral, que ele queria cativar como ouvinte e como aliado poltico. No queria apenas falar de msica, mas tambm para quem ela era feita, a vida desses (para quem ela era feita), seus trabalhos, seu modo de vida e suas opinies polticas. Queria expor problemas reais que se enfrenta no mundo em que vivemos para alertar e conscientizar seus leitores. Continuando a linha ideolgica dos autores estudados, Eisler identifica o problema da msica na sociedade burguesa de vrias maneiras e sob vrios ngulos, mas mantendo uma linha de pensamento em todas elas: o compositor est isolado da sociedade em que vive e, quando quer refletir, em sua msica, o mundo em que vive, no tem um sistema de organizao das alturas que torne inteligvel, ao ouvinte, o que est ouvindo. E sua sada para esse isolamento :(...) sair do isolamento espiritual e interessar-se por tudo, no s pela vida noturna ou esportes que em qualquer caso no lhe interessa. Nunca se esquea de que as mquinas esto a para satisfazer as necessidades dos homens. Quando voc est compondo e abre uma janela, lembre-se de que o rudo das ruas no apenas rudo, mas feito pelo homem. (...) Escolha textos e assuntos que digam respeito a um maior nmero de pessoas possvel. Tente entender seu prprio momento e no evolua em meras formalidades. Descubra as pessoas, as pessoas reais, descubra a vida do dia-a-dia para sua arte e ento, talvez voc seja redescoberto (GRABS, 1976, p. 30-31).

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O autor tambm identifica em seus textos, grupos de agitao revolucionrios, ressaltando sua atuao junto aos sindicatos e associaes de trabalhadores. Nota-se que est indicando, aos leitores, uma tomada de posio poltica em relao arte e que dot-la de fundamentao ideolgica a maneira de manter-se fazendo arte. Tambm est, falando sobre esses artistas, incentivando-os e discutindo, com eles, seus problemas. Demonstra, ainda, a origem da indstria cultural e faz um recorrido sobre a evoluo do uso ideolgico da msica na Histria, relacionando com o estado da msica em sua sociedade. Sempre expondo o seu ponto de vista crtico. Trabalha, tambm, com uma variante da teoria de Plekhanov a de que as artes, antes do prazer esttico tiveram uma funo quando coloca o caso dos barqueiros do rio Volga, que utilizam a msica no para expressarem-se, mas para organizar seu trabalho em conjunto, subindo o rio (p. 135). Ele amplia a idia, lembrando que, em muitos trabalhos manuais coletivos (ainda6) comum que as pessoas cantem para manterem um ritmo de trabalho em conjunto. E, segundo ele, essa seria uma das maneiras de se criar uma verdadeira msica popular. Ele tambm se preocupa em identificar a diferena entre msica popular e folclrica, deixando o primeiro para a msica da indstria cultural que ele combate intensamente e a segunda como essa msica que nasce do trabalho manual coletivo (prcapitalista, portanto) (p. 135). escasso o espao que se dispe, aqui, para um melhor aprofundamento sobre esses textos de Eisler, j que, por serem uma compilao, no esto sistematizados. Mas h de se acentuar que ele trabalha sobre a perspectiva de resolver problemas concretos e em tempo real, isto , poca em que estavam ocorrendo e evidenciando seu ponto de vista. Ou seja, fazendo-o coerentemente, do ponto de vista filosfico. Como adiante:A contradio mais aguda entre trabalho e lazer peculiar ao modo capitalista de produo divide todas as atividades intelectuais entre as que servem ao trabalho e as Os bias-frias do interior de So Paulo ainda cantam, mas agora cantam as msicas de seus dolos da indstria cultural. A partir de reportagem de televiso que o autor coloca esse dado e essa reflexo.6

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que servem ao lazer. O lazer, no entanto, um sistema para reproduzir a fora de trabalho. O contedo desse lazer no deve ser o contedo do trabalho. O lazer dedicado no-produo nos interesses da produo. Esta a base scio-econmica para a peculiar forma de prtica musical no capitalismo (p. 39).

Mas nem s de crtica ao capitalismo vivem os textos de Eisler. H alguns que elogiam os feitos contra a opresso, qualquer que seja sua origem. Em um deles, analisando uma cano composta por trabalhadores alemes, comunistas e socialistas, presos em um campo de concentrao, na prpria Alemanha, o autor, aps descrev-la e contextualiz-la, escreve: Ns, msicos revolucionrios profissionais, tiramos nossos chapus a eles (os ditos compositores) em admirao e respeito (GRABS, 1976, p. 78). O autor discute uma esttica operria. Essa esttica se d a partir da funo da msica na sociedade. Msica, como qualquer outra arte, tem que preencher um certo propsito na sociedade. Ela utilizada pela sociedade burguesa principalmente como recreao, para a reproduo (re-criao) da fora de trabalho (...) (p. 59). O movimento musical dos trabalhadores deve ser claro sobre a nova funo de sua msica, que ativar seus membros para a luta e encorajar a educao poltica (ibidem). E, mais para frente, oferece orientaes tcnicas, como: a msica para corais e peas didticas tero um tenor frio e perfurante na base, que como o coro deve cantar expondo slogans polticos ou teorias para audincias macias (p. 60). Outro ponto que torna os conceitos utilizados por Eisler prximos dos conceitos desenvolvidos por Plekhanov que Eisler est sempre tentando convencer o compositor-leitor a engajar-se na luta poltica para sair do isolamento. No cabe tentar provar se as fontes das idias de Eisler possam ter sido, em parte, de Plekhanov, mas esses dois pontos de unio apontados so comuns tambm em outros pensadores, partes da mesma massa crtica. Hoje em dia, alguns conceitos que movimentaram a produo de Eisler podem ser discutidos. Se hoje, como discutido anteriormente, os termos luta de classes ou movimento operrio podem j no ter o mesmo sentido que em sua poca, esses textos podem interessar

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por serem testemunhos da tentativa de uma alternativa ao que estava ali. E deixaram, para o futuro, um registro histrico dessa prtica e subsdios para novas tentativas. Mas o fundamental que eles foram produzidos sob uma perspectiva: a do materialismo dialtico e, por isso, podem ser usados como base para a compreenso das condies das relaes sociais no capitalismo hoje, se relacionarmos as coisas e cambiarmos alguns dados. Se j no se fala em luta de classes porque indivduos de diferentes classes muitas vezes se unem para terem privilgios, ou se j no h mais movimentos revolucionrios como nas dcadas de 60 ou 70 do sculo XX, no Brasil, por exemplo, uma msica didtica pode ser usada nas escolas. E, se como artista, encara-se que se deve encorajar a conscientizao poltica, ou mesmo se o compositor deseja que o texto que emprega em uma cano seja compreensvel ao ouvinte, h de se pensar no campo de tessitura de uma melodia, no seu contorno meldico, em sua prosdia etc. Pode-se tirar muito proveito de seus ensinamentos e de suas peas musicais. Os textos de Eisler transcendem a um uso especfico, embora tenham sido construdos para um fim determinado. Mas Eisler no discutiu diretamente os problemas da linguagem. Falou da falta de um sistema de referncia no capitalismo e da maneira como utilizava o dodecafonismo, explicando os prs e os contras da tcnica dodecafnica; chamando a ateno para os perigos de seu mau uso, porque:ela (a tcnica dos doze sons) facilita e dificulta, ao mesmo tempo, para o compositor. Em uma m composio dodecafnica, s o que est correto o lado puramente serial, o lado aritmtico. A lgica musical, o desenvolvimento e a continuao das idias musicais tornam-se mecnicos ... (p. 162).

No entanto, essa discusso no foi sistematizada, isto , no tinha um intuito de ensinar uma artesania, nem de proporcionar uma experincia pedaggica, mas de mostrar que esses problemas da linguagem esto relacionados a outros. Pode-se tentar explicar isso, embora este tambm no seja objetivo aqui, atentando-se para o fato de que na poca em que foram produzidos a maioria desses textos (antes da II Guerra Mundial), a Tradio explicava,

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ainda, muito do fazer musical. Ele estava prximo da Tradio, que resolvia, com sua didtica, os problemas musicais mais bsicos. Hoje, provavelmente, j no exista essa garantia. Nessa mesma linha combatente e combativa, encontramos Elie Siegmeister. Em seu livro Msica y Sociedad, este autor identifica o uso ideolgico da msica erudita pela burguesia, em seu pas (Estados Unidos), e faz um recorrido, pela histria, desvelando o uso da msica como arma ideolgica nos diversos estgios das foras produtivas, pelos quais passou a sociedade ocidental. Identifica, por exemplo, a poderosa arma que foi, para a Igreja, o Canto Gregoriano. E que, um pouco mais para frente, inclusive a arquitetura de algumas catedrais era pensada para auxiliar a eficcia dessa arma de manuteno do estado de coisas, auxiliando, com a acstica, certos contrapontos, por exemplo. O autor tambm descreve o que enfrentava (na dcada de 30, aproximadamente) um compositor que era obrigado a trabalhar para a Indstria Cultural. Ele tinha que compor um refro cuja melodia fosse aprendida por um gerente, sem a menor formao musical, com apenas trs tentativas. Se no, estava fora de uso. Demonstra, a partir da, como se degrada a linguagem musical, sempre sendo sub-utilizada pelo capital e, mais ainda, como degrada os prprios msicos, esse empobrecimento lingstico. Pode-se notar, lendo esses textos, que esses msicos (Eisler e Siegmeister) preocupam-se em esclarecer as relaes sociais que explicam a prtica musical no capitalismo e indicam seus problemas. Tambm projetam os resultados dessa pratica musical cada vez mais empobrecida e, no caso de Eisler, os problemas tambm no meio da anlise musical. O trabalho de Siegmeister, no caso, tem um recorte mais evidente (j que um livro, no um conjunto de textos), por isso no trata dos aspectos mais profundos da linguagem, como Eisler. Mas pode-se dizer que sejam trabalhos complementares, at certo ponto, porque

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Siegmeister aprofunda questes que Eisler, por ter pouco espao, ou apenas levantou ou as resolveu sem discutir muito suas provas. No entanto, eles so base para a compreenso das relaes sociais na produo musical do sculo XX, principalmente do ponto de vista crtico ao sistema de produo capitalista. Assim, a base que fundamenta o pensamento do autor desta dissertao, os autores que fundamentam sua viso de mundo, esto colocados. Mas, neste espao cabem ainda dois trabalhos de Willy Corra de Oliveira, no s para que se tome conhecimento deles7, mas tambm porque eles tm ligaes com seu pensamento musical, sistematizado em forma de curso, e transcrito nos anexos desta dissertao. O primeiro deles, o mais recente, Cadernos (OLIVEIRA, 2000), apresentado como Tese de Doutorado junto Escola de Comunicaes e Artes (ECA) da Universidade de So Paulo. Trata-se de uma tese dividida em quatro partes, que o autor chamou de cadernos, elucidando a relao entre arte e sociedade (caderno do princpio e do fim), a situao do compositor no capitalismo (caderno de biografias e caderno de pnico) e o contexto social atual, isto , do momento de confeco da Tese (caderno de recortes). No objetivo aqui fazer a reviso bibliogrfica deste trabalho. Ele est aqui, porque parte de um todo. , apesar de ser resultado de toda a vivncia do autor no trato com a Msica, o que cerca e d sustentao ao curso que se apresenta nesta dissertao, alm de ser uma reflexo sobre o lugar do compositor no capitalismo. Toda essa base ideolgico-filosfica, o prprio Willy sistematizou nesta Tese e Cadernos segue a linha de trabalho estudada at aqui, com as correes de poca quanto s condies sociais; a questo da luta de classes ou do uso utilitrio da msica que os autores previamente trabalhados resolveram em seu tempo. Ento, pode-se dizer que as concluses so as mesmas, identificando-se os cmbios e os ajustes nas definies que sustentam ambos os trabalhos.

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O prprio Ikeda identifica este autor como compositor e lder ativista ao cit-lo.

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Mas o fundamento desta dissertao o registro do curso do Willy Corra de Oliveira e a identificao deste como fruto da filosofia materialista-dialtica; no sob o ponto de vista da relao da msica com a sociedade, como vimos at ento, porm sob a perspectiva da linguagem musical. E h um outro trabalho do mesmo autor, que d uma mostra dessa sistematizao no trabalho com a linguagem: Beethoven, proprietrio de um crebro (OLIVEIRA, 1979). Trata-se da anlise do primeiro movimento da Sonata op. 57, de Beethoven (Apasionata). E o autor d a uma mostra da maneira como pensa a linguagem: relacionando o que prprio da arte dos sons, seu material, com os parmetros do som. Mas Willy trabalha tambm, neste texto, uma viso da linguagem musical sob a perspectiva da semitica. Uma anlise pluralista de um fenmeno sonoro, portanto. , na verdade, um trabalho sobre a montagem no trabalho de Beethoven; ponto fundamental levantado pelo autor, na anlise da pea. Mas este discute, ainda, aspectos mais gerais da pea em relao aos problemas da linguagem (sistema de referncia, por exemplo) e prope uma escuta para cada parmetro do som. Isto , escuta-se uma vez, para ouvir a intensidade. Como Beethoven trabalhou as dinmicas da pea. Depois, escuta-se outra vez para ouvir o timbre. Como o compositor trabalhou as articulaes e os intervalos (de oitava, por exemplo) para transformar o timbre em um instrumento monotmbrico (piano). O mesmo para os outros parmetros (altura e durao). E, ainda, uma quinta audio para a montagem (tudo ao mesmo tempo, simultaneamente) para compreender de que maneira Beethoven surpreende o ouvinte. Esse trabalho, sob ponto de vista da linguagem figura em duas aulas do curso. A parte que trata da semitica est em outra aula, separada das duas primeiras, que tratam da anlise da pea. E essas idias so desenvolvidas ao longo do curso todo e unidas a outros pontos de vista, formando o pensamento de Willy. Por isso, pode-se dizer que o curso sobre o qual nos

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debruaremos mais adiante uma ampliao das idias contidas em Beethoven e que, em ltima instncia, a fase adulta, o resultado do amadurecimento e da generalizao das idias contidas nesta publicao de 1979.

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3. ANLISE DO MATERIAL

Neste captulo, inicia-se o trabalho de dissertao propriamente dito. Ele se dar no intuito de demonstrar as manifestaes da base filosfica do pensamento willyano. O materialismo-dialtico est presente nele no s quanto compreenso das relaes de produo e consumo da Msica nos diversos estgios das foras produtivas da Histria Ocidental; mas tambm na maneira de analisar e compreender as obras estudadas. Essas anlises so realizadas a partir de uma compreenso do trabalho do compositor quanto ao material musical visto a partir de sua organizao em relao prtica de sua poca. Isto , no resultado do artesanato8 do compositor qualquer que seja ele, e em qualquer perodo no trato com a linguagem. Essa viso possvel medida que se pratica, tambm, a composio, a interpretao e a audio, conscientemente em relao ao material musical. Portanto, pode-se conseguir uma viso geral da msica quanto ao seu material (som e seus parmetros) em relao Histria e sociedade atual, proporcionando a possibilidade de uma compreenso mais objetiva do fenmeno sonoro. Para conseguir uma padronizao dos conceitos filosficos que envolvem esse trabalho, adotou-se um guia para o vocabulrio e os conceitos que devero estar presentes nas transcries analisadas. Optou-se pela adoo do livro Princpios Fundamentais de Filosofia, de G. Politzer (POLITZER, BESSE&CAVEING, 1995), que foi o resultado de anotaes de aulas dos cursos ministrados por Georges Politzer de 1935 a 1936 na Universidade Operria, em Paris e publicada pela primeira vez aps a morte deste, em 1946. A obra tem asO autor se refere maneira de tramar a combinatria de sons e silncios (no ato de escrever) para obter o resultado planejado na imaginao do compositor.8

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caractersticas de um manual, dividido em lies, em seqncia. A escolha deste livro como base e referncia para as questes metodolgicas e filosficas, aqui, se baseia em duas questes. A primeira delas a prpria relao do professor Willy com esta obra, j que a indica como fonte de aprendizado para a dialtica e o materialismo. Sempre que questes desta corrente filosfica surgem nas aulas, o professor recomenda o estudo dessas definies do mtodo marxista atravs desta publicao. A segunda razo de ordem inspiradora, j que o livro fruto de anotaes de aulas do filsofo Politzer, tornando-se impulso, fornecendo a idia da anotao do curso Linguagem e Estruturao Musicais para sua disponibilizao. Apesar de os alunos de Politzer no haverem tido a possibilidade de realizar, com seu Mestre, uma reviso das anotaes, tal qual foi possvel neste caso agora. Portanto, os conceitos filosficos e o vocabulrio para a comparao dos resultados das anlises das amostras tm seu nascedouro pelas mos de Politzer, presente aqui, por meio dessa obra. Vale registrar que, neste caso, as leis gerais do mtodo que sero expostas. Outras questes do materialismo-dialtico discutidas nos Princpios, como a questo da superestrutura, por exemplo, no sero abordadas diretamente. O objetivo aqui garantir a possibilidade de evidenciar o prisma pelo qual se pode olhar a msica a partir de sua parte mais material, no deixando de relacion-la com a sociedade que a produziu. Mas o objetivo primordial, no caso, a compreenso da questo material da msica.

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3.1 As leis gerais do mtodo

Opta-se por iniciar definindo o duplo objetivo do materialismo dialtico, segundo Politzer (POLITZER, BESSE&CAVEING, 1995 p. 19) :1o) como dialtica, estuda as leis mais gerais do universo, leis comuns a todos os aspectos da realidade, desde a natureza fsica, at o pensamento, passando pela natureza viva e pela sociedade. 2o) Como materialismo, a filosofia marxista uma concepo cientfica do mundo, a nica cientfica, isto , a nica que est conforme ensinam as cincias. Ora, o que ensinam as cincias? Que o universo uma realidade material, que o homem no estranho a essa realidade, que pode conhec-la e, pelo conhecimento, transform-la, como provam os resultados prticos obtidos pelas diversas cincias.

Um pouco mais adiante, a definio se completa: cada cincia estuda um aspecto da natureza, tal como ela . A filosofia marxista , porm, a concepo geral da natureza, tal como ela . (....) , pois, uma filosofia cientfica. Logo mais, temos que a filosofia marxista no um dogma, mas um guia para a ao(p. 23), portanto devendo ser uma filosofia, no sentido mais corrente da palavra filosofia: concepo geral do mundo da qual se pode deduzir certa forma de conduta (p. 14). Percebe-se, pois, que a idia geral est muito prxima de ensinar uma metodologia de trabalho (o mtodo cientfico), porm no desligada da realidade social, j que (...) a `concepo do mundo (ou seja, filosofia) no uma questo sem interesse, uma vez que duas concepes opostas levam a concluses `prticas tambm opostas (p. 14). Ento, entende-se que fazer cincia no se utilizando o materialismo dialtico um contra-senso pois este seria o prprio mtodo cientfico e abordar aspectos da natureza ou da sociedade sem uso deste mtodo estar a servio da ideologia da classe dominante, j que esta est sempre representada por outras metodologias e filosofias, segundo a viso de Politzer. A primeira caracterstica da dialtica: Tudo se Relaciona (Lei da ao recproca e da conexo universal). Isso significa que:

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em contraposio metafsica, a dialtica olha a natureza, no como um amontoado acidental de objetos, de fenmenos destacados uns dos outros, isolados e independentes, mas como um todo unido, coerente, em que os objetos e os fenmenos so organicamente ligados entre si dependendo uns dos outros, e se condicionando reciprocamente (pp. 36, 37).

Portanto, pensar do ponto de vista dialtico relacionar o fenmeno com as condies que o cercam e esse o melhor meio de se encarar a natureza, segundo o autor. As descobertas cientficas no podem ser realizadas quando h violao da primeira lei da dialtica, isto , se o fenmeno estudado for isolado das condies que o cercam (p. 39)9. Os fenmenos sociais so compreendidos e explicados pela dialtica, porque esta os relaciona com as condies histricas que lhes deram origem, das quais esto em interao. Se a Msica um fenmeno social, a maneira, portanto, de mais se aproximar da compreenso da Verdade atravs do mtodo dialtico.E o conceito de Verdade, em Politzer, nos diz que a verdade no um conjunto de princpios definitivos. um processo histrico, a passagem de graus inferiores para graus superiores do conhecimento (p. 30). Por isso, a Verdade no uma caixa fechada, lacrada, mas a explicao engendrada mediante o acmulo de conhecimentos sobre o fenmeno, sua observao e a relao desse fenmeno com as condies que o cercam em dado perodo de tempo. Portanto, por meio da dialtica pode-se observar a msica nas suas relaes com a natureza e a sociedade, nos seus diversos perodos histricos e, a partir desse ponto de vista, aproximar-se de uma compreenso e explicao coerente e fundamentada. Por isso, conclui-se que nem a natureza nem a sociedade so um caos incompreensvel: todos os aspectos da realidade prendem-se por laos necessrios e recprocos (p. 43). Neste caso, sempre preciso, pois, avaliar uma situao, um

Essas palavras, ditas assim por Politzer (segundo escrevem seus discpulos), no devem ser tiradas de contexto.Elas foram escritas em uma poca de clara guerra ideolgica. Havia algo concreto e definido a URSS contra a ordem capitalista: um antagonismo aberto e consciente dirigido. Atualmente, palavras assim podem ofender os praticantes de outras metodologias cientficas, principalmente de base filosfica idealista. Mas estes so conceitos que esto de acordo com os pensadores marxistas citados na fundamentao terica deste trabalho (Lukcs aborda esse assunto diretamente), o que tambm no nega o valor dos resultados alcanados por outras vias.

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acontecimento, uma tarefa, do ponto de vista das condies que os determinam e que os explica (p. 43). Tudo se Transforma a segunda caracterstica da dialtica. Tambm conhecida por Lei da Transformao Universal e do Desenvolvimento Incessante, trata de reconhecer a mudana como aspecto da realidade. Isto , a dialtica se preocupa em considerar os fenmenos no apenas do ponto de vista de suas relaes e de seus condicionamentos recprocos, mas tambm do ponto de vista do movimento, da mudana, do desenvolvimento, do pon