Dissertação Rodrigo MN 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA RODRIGO PEREIRA Espaço e Cultura Material em Casas de Candomblé no Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2013

Transcript of Dissertação Rodrigo MN 2013

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM ARQUEOLOGIA

    RODRIGO PEREIRA

    Espao e Cultura Material em Casas de Candombl no Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro

    2013

  • ii

    RODRIGO PEREIRA

    Espao e Cultura Material em Casas de Candombl no Rio de Janeiro

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Arqueologia do Museu Nacional, da

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte

    dos requisitos necessrios para obteno do ttulo de

    Mestre em Arqueologia.

    Banca Examinadora:

    _______________________________________________

    Prof Dr Tania Andrade Lima (Orientadora)

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional

    _______________________________________________

    Prf Dr. Rita Scheel-Ybert

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional

    _______________________________________________

    Prof Dr Mrcia de Vasconcelos Contins Gonalves

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    Suplentes:

    _______________________________________________

    Prof Dr Denise Cavalcante Gomes

    Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional

    _______________________________________________

    Prof Dr Rosa Cristina Corra Luz de Souza

    Universidade Federal Fluminense

  • iii

    Para meus pais, Joaquim Pereira Filho e Almira Wagner Pereira, pelo amor,

    dedicao e apoio incondicionais para a obteno desta vitria. meu irmo,

    Ricardo Pereira, pelo exemplo de profissionalismo e de pesquisador. Frederico

    Antonio Ferreira, sem o qual no teria chegado at aqui.

  • iv

    AGRADECIMENTOS

    minha orientadora, Prof Dr Tania Andrade Lima, por acreditar no meu

    potencial e no meu desejo de trilhar os rumos da arqueologia, pela pacincia e sbios

    ensinamentos durante a produo da dissertao.

    Aos professores Rita Scheel-Ybert, Maria Dulce Gaspar, Denise Maria

    Cavalcante Gomes, Andrea Lessa, Adilson Dias Salles, Antonio Brancaglion Jnior,

    Luci de Senna Valle e Dante Luiz Martins Teixeira, pelo aprendizado e pacincia

    durante as aulas.

    Claudine B. Leite, da Secretaria do Programa de Ps-graduao em

    Arqueologia, pela ajuda nas burocracias acadmicas.

    Aos discentes do Museu Nacional, em especial Llian, Mara, Andria, Luiza,

    Pedro, Rui, Jlio, Victor, Sandra, Silvia, Sabrina, Emerson, Morgana, Ricardo, Gina,

    Ana Luisa, Diogo, Marcela e Anglica, por to grande amizade e companheirismo.

    Aos amigos Alexandre Dias, Rosa Cristina Corra, Luciana Witowski, Luciane

    Zanenga Scherer, Marilda Goulart, Gloria Demamann, Francine Medeiros, Ayala

    Pessoa, Alejandra Saladino, Regina Coeli, Regiane Barreto, Adler Homero, Tatiana

    Weska e Tatiane Freire, pelo apoio durante a pesquisa.

    s mais que amigas Danielle Dias de Carvalho e Marina Czar Buffa, pela

    amizade incondicional, ajuda e conselhos.

    equipe que pesquisou comigo o candombl na Musas Projetos Culturais

    LTDA - Telma, Sabrina, Tadeu, Anderson e Roberto Conduru - pela compreenso

    quando tive momentos de dificuldades.

    Ao meu eterno mestre, Prof. Dr. Francisco Lissando Albernaz (PGCS/UFES),

    pelo incentivo aos estudos do campo da antropologia, arqueologia e patrimnio.

    Sobretudo, por sua amizade.

    Aos orientadores do mestrado em Cincias Sociais na Universidade do Estado

    do Rio de Janeiro, Prof Dr Mrcia de Vasconcellos Contins Gonalves e Prof. Dr.

    Valter Sinder, por acreditarem que daria conta de dois mestrados ao mesmo tempo.

    Claudia Bacca, Edna Esperandio e Nazar Dalvi amigas do Esprito Santo e a

    quem devo muito por ter chegado at aqui.

    Ao "povo de santo" que muito tem me ensinado sobre o candombl.

    Deus, que se mostrou gracioso e compassivo em momentos de angustia, sendo

    sempre consolo, paz e vida em todas as situaes.

  • v

    "Se a fala constri a cidade, o silncio edifica o mundo".

    (Provrbio africano)

  • vi

    RESUMO

    PEREIRA, Rodrigo. Espao e Cultura Material em Casas de Candombl no Rio de

    Janeiro. 2013. 304 f. Dissertao (Mestrado em Arqueologia) - Museu Nacional,

    Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, Rio de Janeiro, 2013.

    O estudo se prope a analisar a cultura material, nos aspectos malacolgicos e

    botnicos, e os espaos edificados e rituais em uma amostra de 32 casas de candombl

    do estado do Rio de Janeiro. Em especial lanamos a hiptese de que os espaos so

    ocupados pela ao da trade formada pelo dirigente, as entidades e a rea disponvel.

    Tal ocupao se relaciona a um modelo de classificao dos espaos, em pblicos,

    privados e espao mata proveniente da bibliografia utilizada.

    Realizamos uma quantificao de tais locais entendendo como ocorre uma subjetivao

    de tal modelo na formulao dos candombls cariocas, o que torna as adaptaes s

    especificidades do culto e das reas disponveis mais visveis. As anlises dos aspectos

    malacolgicos e botnicos complementa o estudo informando usos, formas e as

    principais espcies de moluscos e famlias botnicas presentes nos axs.

    Palavras-chaves: Candombl. Estudo de Cultura Material. Anlise de Espaos

    Edificados, Rituais e Profanos.

  • vii

    ABSTRACT

    The study aims to analyze the material culture and the built environment and rituals in a

    sample of 32 houses of Candombl state of Rio de Janeiro. In particular we launched

    the hypothesis that the spaces are occupied by the action of the triad formed by the

    manager, the players and the available area. This occupation relates to a classification

    model of spaces, public and private space kills from the bibliography used.

    We performed a quantification of such sites as understanding occurs subjectivity of

    such a model in the formulation of Candombl Carioca, which makes adaptations to the

    specific service areas available and more visible. The analysis of aspects malacolgicos

    and botanical supplements the study informing uses, and forms the main shellfish

    species and plant families present in Axs.

    Key-words: Candombl. Study Material Culture. Analysis of Constructed Spaces,

    Rituals and profane.

  • viii

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1. Ciclo da circulao do ax em um terreiro de candombl. ............................. 22

    Figura 2. Espaos edificados em terreiros de candombl analisados pela dissertao. .. 47

    Figura 3. Assentamento que marca o centro do barraco do Terreiro Il Ogun Anaeji

    Igbele Ni Oman. ............................................................................................................. 73

    Figura 4. Pequeno porro no teto do barraco do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni

    Oman. ............................................................................................................................. 74

    Figura 5. Assentamento de Ogum do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. ......... 76

    Figura 6. Assentamento de Oxumar do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. .... 77

    Figura 7. Casa de Exu do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. ........................... 77

    Figura 8. Espao mata ainda presente no antigo Terreiro da Gomeia, Duque de Caxias

    (RJ). ................................................................................................................................ 82

    Figura 9. Planta baixa do Terreiro da Gomeia, Duque de Caxias (RJ). ......................... 82

    Figura 10. Planta baixa do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. ......................... 84

    Figura 11. Trono da dirigente do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. ............... 86

    Figura 12. Conjunto de atabaques do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman. ......... 87

    Figura 13. Cadeiras para filhos de santo e entrada dos quartos de Oxal e Ogum (da

    esquerda para a direita). .................................................................................................. 87

    Figura 14. Iroko do Terreiro Il Ogun Anaeji Igbele Ni Oman enfeitado com Ojs. .. 108

    Figura 15. Dendezeiro presente no espao do extinto Terreiro da Gomeia. ................ 111

    Figura 16. Wadudu. ...................................................................................................... 132

    Figura 17. Acarajs. ...................................................................................................... 132

    Figura 18. Amal de Xang Oy, Ob e Ibejis. ............................................................ 136

    Figura 19. O vendedor de arruda, Jean Batiste Debret (1939). .................................... 141

    Figura 20. Aspectos morfolgicos da Monetaria moneta. ........................................... 148

    Figura 21. A posio deitada e em p nos bzios (Monetaria moneta). ...................... 149

    Figura 22. Fios de contas da orix Oxum, um feito de bzios, e outro feito de ouro e

    corais. ............................................................................................................................ 150

    Figura 23. Joia artesanal da orix Oxum ou do Vodum Azir Tobossi, pea artesanal

    feita de bzios, fios e bolas de ouro.............................................................................. 151

    Figura 24. Fio de contas de Iemanj adquirido no Mercado de Madureira em 2012.

    Pea artesanal feita em codorn azul, contas translcidas, Cypraea caputserpentis,

    Cypraea tigris e conchas das famlias famlias Arcidae e Veneridae. ......................... 151

    Figura 25. Uso da Monetaria moneta na roupa de Ogum. ........................................... 152

    Figura 26. Uso da Monetaria moneta no Og do assentamento de Exu. ..................... 152

    Figura 27. Abeb de Iemanj na parede acima de seu assentamento. Feito em madeira,

    codorn e Strombus pugilis........................................................................................... 154

    Figura 28. Achatina fulica (Bowdich, 1822), indivduo adulto. ................................... 160

    Figura 29. Conus figulinus ........................................................................................... 306

    Figura 30. Conus planorbis ou Conus quercinus. ........................................................ 306

    Figura 31. Cymbiola vespertilio. .................................................................................. 307

    Figura 32. Cypraea caputserpentis. .............................................................................. 307

    Figura 33. Cypraea tigris - Viso da superfcie do molusco. ....................................... 308

  • ix

    Figura 34. Cypraea tigris - Viso dorsal. ..................................................................... 308

    Figura 35. Monetaria Moneta. ...................................................................................... 309

    Figura 36. Cypraea vitellus. ......................................................................................... 309

    Figura 37. Lambis scorpius. ......................................................................................... 310

    Figura 38. Lambis scorpius - Viso da superfcie do molusco. .................................... 310

    Figura 39. Lambis scorpius - Viso dorsal. .................................................................. 311

    Figura 40. Pugilina morio - Viso da superfcie do molusco. ..................................... 311

    Figura 41. Pugilina morio - Viso dorsal. ................................................................... 312

    Figura 42. Strombus aurisdiane. .................................................................................. 312

    Figura 43. Strombus pugilis. ......................................................................................... 313

    Figura 44. Strombus sinuatus. ...................................................................................... 313

    Figura 45. Telescopium telescopium. ........................................................................... 314

    Figura 46. Turbo petholatus. ........................................................................................ 314

    Figura 47. Vasum turbinellus........................................................................................ 315

    Figura 48. Zidona dufresnei - Viso da superfcie do molusco. ................................... 315

    Figura 49. Zidona dufresnei - Viso dorsal. ................................................................. 316

  • x

    LISTA DE MAPAS

    Mapa 1. reas de dispora negra da frica e seus locais de entrada no Brasil. ............ 25

    Mapa 2. Principais portos e rotas da Dispora Africana no Brasil. ................................ 27

    Mapa 3. Dispora das comunidades de Candombl do Rio de Janeiro Do sculo XIX

    at a atualidade ............................................................................................................... 42

    Mapa 4. A Regio Metropolitana do Rio de Janeiro. Os crculos vermelhos identificam

    os municpios onde esto localizados os terreiros inicialmente selecionados para a

    dissertao. ..................................................................................................................... 45

    Mapa 5. Mapa das zonas geogrficas identificadas para os moluscos analisados. ...... 158

  • xi

    LISTA DE GRFICOS

    Grfico 1. Porcentagem das naes de candombl entre os terreiros estudados. ........... 91

    Grfico 2. Distribuio da filiao dos terreiros por naes e a identificao do gnero

    dos/das dirigentes dos terreiros analisados. .................................................................... 93

    Grfico 3. Entidades s quais foram dedicadas casas de santo e sua porcentagem de

    ocorrncia. ...................................................................................................................... 95

    Grfico 4. Entidades s quais foram dedicados quartos de santo e sua porcentagem de

    ocorrncia. .................................................................................................................... 100

    Grfico 5. Entidades s quais foram dedicados assentamentos e sua porcentagem de

    ocorrncia. .................................................................................................................... 103

    Grfico 6. reas e Espaos Verdes identificados e seu percentual de ocorrncia. ..... 109

    Grfico 7. reas verdes identificadas em relao nao do terreiro. ........................ 113

    Grfico 8. Roncs identificados nos terreiros analisados. ............................................ 115

    Grfico 9. Tipos de Fontes e Poos identificados. ....................................................... 117

    Grfico 10. Demais espaos edificados nos terreiros analisados. ................................ 120

    Grfico 11. Principais famlias botnicas identificadas a partir da reviso bibliogrfica.

    ...................................................................................................................................... 133

    Grfico 12. Gneros de gastrpodes identificados na amostra e suas porcentagens (Ano

    base: 2012). ................................................................................................................... 153

    Grfico 13. Porcentagem das famlias identificadas na amostra. ................................. 154

  • xii

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1. Principais terreiros de candombl, ou os mais tradicionais de Salvador/BA, e

    suas datas de fundao. ................................................................................................... 33

    Tabela 2. Historicizao e expanso geogrfica dos terreiros de candombl do Rio de

    Janeiro entre os sculos XIX e XX. ................................................................................ 41

    Tabela 3. Casas de candombl selecionadas para anlise. ............................................. 51

    Tabela 4. Tipos de cozinha nos terreiros analisados. ................................................... 124

    Tabela 5. Espcies de moluscos identificadas na pesquisa no Mercado de Madureira

    (Ano base: 2012). ......................................................................................................... 146

    Tabela 6. reas geogrficas de ocorrncia das espcies identificadas na amostra. ..... 156

    Tabela 7. Edificaes ligadas s entidades nacionais na amostra analisada. ............... 162

  • xiii

    LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

    BA Bahia

    INRC Instrumento Nacional de Registro Cultural

    IPHAN Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    PE Pernambuco

    RJ Rio de Janeiro

    UERJ Universidade do Estado do Rio de Janeiro

    UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

  • xiv

    SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................ 16

    1. PRINCPIOS COSMOLGICOS E PANORAMA HISTRICO DO

    CANDOMBL NO RIO DE JANEIRO ..................................................................... 21

    1.1. Introduo, conceitos e tipos ideais no candombl .............................................. 21

    1.2. A dispora negra na formao do candombl do Brasil ...................................... 24

    1.3. A formao histrica e social do candombl brasileiro ....................................... 28

    2. METODOLOGIA ..................................................................................................... 44

    2.1. Histrico sobre a metodologia adotada inicialmente para a dissertao.............. 44

    2.2. Nova metodologia adotada para a dissertao ..................................................... 49

    3. REVISO BIBLIOGRFICA E A RELEVNCIA DAS OBRAS

    ANALISADAS PARA A DISSERTAO ................................................................ 58

    3.1. Anlises de Cultura Material e Espaos Edificados ............................................ 59

    3.2. O candombl na produo antropolgica e histrica no Brasil ........................... 61

    4. ESPAOS EDIFICADOS, PROFANOS E RITUAIS, EM TERREIROS DE

    CANDOMBL .............................................................................................................. 70

    4.1. A diviso tripartida entre espaos construdos, barraco e mata ......................... 70

    4.2. Anlise dos espaos edificados, profanos e rituais, em terreiros de candombl.. 88

    4.2.1 A diviso por naes nos terreiros analisados ................................................ 89

    4.2.2. Diviso por gnero dos dirigentes dos terreiros analisados .......................... 92

    4.2.3. Entidades s quais foram dedicadas casas de santo e sua porcentagem de

    ocorrncia ................................................................................................................ 93

    4.2.4. Entidades s quais foram dedicados quartos de santo e sua porcentagem de

    ocorrncia ................................................................................................................ 97

    4.2.5. Entidades quais foram dedicados assentamentos e sua porcentagem de

    ocorrncia .............................................................................................................. 101

    4.2.6. As reas verdes ou o Espao mata identificados e sua porcentagem de

    ocorrncia .............................................................................................................. 106

    4.2.7. Os Roncs, as Fontes e os Poos identificados na pesquisa ....................... 114

    4.2.8. Outros espaos edificados, profanos e rituais ............................................. 119

    4.2.9 Os Barraces ................................................................................................ 125

    4.2.10. Os terreiros sem identificao de espaos edificados, na amostra analisada

    ............................................................................................................................... 125

    5. CULTURA MATERIAL ANALISADA ............................................................... 127

  • xv

    5.1. Levantamento Botnico ..................................................................................... 127

    5.1.1. A classificao vegetal em terreiros de candombl .................................... 128

    5.1.2. Anlise do Inventrio Botnico realizado .................................................. 130

    5.1.3. Correlaes entre o Inventrio Botnico e os dados obtidos na amostra de

    terreiros.................................................................................................................. 142

    5.2. Material malacolgico identificado ................................................................... 145

    5.2.1. A amostra proveniente do Mercado de Madureira: caractersticas, usos e

    procedncias .......................................................................................................... 146

    5.2.2. O Boi de Oxal (Achatina fulica Bowdich, 1822) ..................................... 160

    CONSIDERAES FINAIS ..................................................................................... 162

    REFERNCIAS ......................................................................................................... 170

    GLOSSRIO .............................................................................................................. 177

    ANEXOS ..................................................................................................................... 192

    ANEXO A. Espaos identificados nos amostra de 32 terreiros analisados .............. 193

    ANEXO B. Inventrio botnico de plantas utilizadas no candombl, conforme Barros

    & Napoleo (2013) e Verger (1995b) ....................................................................... 194

    Schinus terebinthifolius Raddi .............................................................................. 204

    Bowringia mildbraedii Harms. ............................................................................. 213

    ANEXO C - LISTA DE FAMLIAS BOTNICAS IDENTIFICADAS A PARTIR

    DA BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ................................................................... 300

    APENDICES ............................................................................................................... 305

    APNDICE A ESPCIES DE MOLUSCOS IDENTIFICADAS PELA PESQUISA

    NO MERCADO DE MADUREIRA ..................................................................... 306

    DECLARAES ..................................................................................................... 317

  • 16

    INTRODUO

    "Se a fala constri a cidade, o silncio edifica o mundo".

    (Provrbio africano)

    Se no silncio que se constri o mundo, tambm neste silncio que as casas

    de candombl vm construindo uma cosmogonia rica em tradies, saberes e crenas.

    No como segredos ou em meio a discursos de perseguies, mas sim no necessidade

    de alarde de sua f e de seus locais de culto. Se pela fala as coisas se fazem, foi por ela

    que muitas vozes chegaram a esta pesquisa e compuseram um quadro de como se

    organiza materialmente o culto aos ancestrais afro-brasileiros em nosso pas.

    Fala e reflexo, informao e devoo, crena e identidade, so muitos os

    binmios que permeiam os terreiros de candombl no Brasil e em especial no Rio de

    Janeiro. Estas categorias apresentam uma religio viva e pujante que, na formao de

    seu culto, remonta s suas origens africanas. As riquezas advindas do acar, do

    minrio, do caf e do trabalho urbano produzidos por negros, no funesto processo de

    escravido que foi instalado em nosso territrio, dizimaram milhes de almas, deles e

    seus descendentes, porm no embotou a sutileza e a profundidade de sua

    espiritualidade.

    Hoje as vozes falam, no apenas do passado amargo, mas de um orgulho tnico

    e de como o candombl se mantm vivo para alm da mcula escravista. Os brados

    expressam o orgulho ao culto dedicado aos ancestrais mticos da frica, os orixs. Ao

    mesmo tempo tambm absorvem as falas de ancestrais brasileiros e dos dirigentes de

    tais locais, divinizados ao morrerem.

    O provrbio africano representa muito sobre o que desenvolvemos aqui: um

    estudo de cultura material e espacial em terreiros de candombl do estado do Rio de

    Janeiro, tendo como nfase a descrio do material malacolgico e botnico utilizados

    nos axs pesquisados.

    As vozes e o silncio reunidos nesta dissertao permitem entender o que o

    candombl quanto a sua materialidade, e a organizao de seus espaos edificados e

    rituais. Para alm de uma religio afro-brasileira que cultua as foras da natureza, os

    ancestres divinos e a energia que permeia os terreiros (o ax), o estudo se prope a

    analisar como os espaos erigidos so configurados, a partir de uma amostra de trinta e

    duas casas.

  • 17

    A pesquisa busca entender, a partir de quantificaes de cmodos e locais

    recorrentes em uma amostra selecionada, como o candombl est organizado no

    trinmio: espao, tempo e forma. Se, por um lado, a antropologia tem fornecido muitos

    dados sobre os simbolismos desses locais, a pesquisa de aspectos materiais procura

    mostrar como eles se configuram na dinmica dos terreiros estudados.

    Buscamos o papel e a significao da cultura material nesses locais, entendendo

    como ela a dimenso concreta das relaes sociais, sempre intencionais, dos homens.

    Para alm de um fenmeno meramente adaptativo, percebemos que a materialidade

    expressa nesses lugares se relaciona a aspectos sensoriais e cognitivos, a gnero e ao

    sistema econmico vigente. Ela fala todo o tempo sobre relaes sociais e sobre a ao

    volitiva de determinados indivduos ou grupos.

    A presente dissertao est dividida em cinco captulos, organizados por suas

    temticas. Alm deles, produzimos um glossrio, onde informamos os significados de

    palavras em iorub e termos utilizados nas casas de candombl. Desenvolvemos um

    apndice, com fotos do material malacolgico identificado, e trs Anexos contendo as

    tabelas relativas s plantas que identificamos a partir da reviso bibliogrfica e todos os

    cmodos e locais rituais presentes nos terreiros analisados, bem como as declaraes

    dos especialistas que auxiliaram na identificao e reviso dos materiais identificados.

    No Captulo 1 apresentamos um panorama histrico do desenvolvimento do

    candombl na Bahia, e em seguida no Rio de Janeiro. Nele podemos entender como as

    migraes (de baianos, indivduos de outros estados brasileiros, africanos) e ainda

    cariocas contriburam para a formao dos axs no Rio de Janeiro. Assim, longe de

    pensarmos em um exclusivismo baiano, se torna claro que um processo de interao de

    pessoas, ideias e crenas ocorreu, e dele emergiu o que denominamos como terreiros.

    No Captulo 2 apresentamos a metodologia desenvolvida na pesquisa. Em

    especial, descrevemos as modificaes ocorridas no curso do processo e como adotamos

    a amostra de trinta e duas casas que haviam sido previamente pesquisadas pelo autor da

    dissertao para o Inventrio Nacional de Referncias Culturais (INRC), referente aos

    Terreiros de Candombl Tradicionais do Rio de Janeiro. Tal projeto foi financiado pelo

    Instituto de Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) Rio de Janeiro e visa

    um duplo resultado: o tombamento de determinadas casas e o registro do culto como

    saber imaterial fluminense.

    Nesse mesmo captulo, descrevemos a escolha realizada quanto aos elementos

    da cultura material analisados: as conchas e as plantas, bem como as diretrizes

  • 18

    metodolgicas adotadas para a sua anlise, delineando a relevncia que o Mercado de

    Madureira grande entreposto comercial do Rio de Janeiro teve para a realizao da

    pesquisa, muito especialmente devido oferta dos materiais avaliados.

    Tambm definimos nesse captulo como a amostra das 32 casas foi analisada:

    quantificando seus espaos declarados na pesquisa do INRC e analisando os possveis

    motivos de tais recorrncias. Para tanto adotamos um modelo de organizao dos

    espaos edificados e rituais, adaptando-o da bibliografia consultada. Sobre esse padro

    lanamos a hiptese inicial de que ele seria um resultado da interao entre o dirigente,

    o espao disponvel para a construo do local de culto e as entidades veneradas.

    No Captulo 3 nos voltamos para a reviso bibliogrfica, a qual tivemos

    dificuldades em desenvolver devido ausncia de estudos que versassem sobre cultura

    material em terreiros de candombl, em especial sobre os materiais analisados. Optamos

    por realizar uma reviso de estudos sobre o espao edificado na Arqueologia, seguido

    de uma descrio da literatura disponvel sobre os espaos edificados e rituais, e de

    objetos utilizados nos terreiros de candombl.

    Em cada obra destacamos os pontos que nos foram teis ou de interesse

    pesquisa, o que tornou o Captulo 3 uma fonte de dados extremamente relevante para o

    desenvolvimento da dissertao. Para tanto, como alguns autores se repetiam entre o

    Captulo 2 e a reviso bibliogrfica realizada , optamos por desenvolver o captulo de

    forma mais condensada e mais centrada nas principais ideias dos pesquisadores,

    enquanto que o arcabouo terico desenvolvido por eles se encontra exposto na

    metodologia.

    No Captulo 4 analisamos os espaos erigidos para usos rituais e cotidianos

    identificados na amostra. Para tanto dividimos as anlises nas categorias de edificaes

    conforme verificadas durante a anlise de dados obtidos no INRC. Isto permitiu

    observar recorrncias e ausncias dentro dos espaos construdos, bem como analis-los

    de forma comparativa. Com estes elementos pudemos realizar inferncias que sero

    retomadas nas Consideraes Finais da dissertao.

    No Captulo 5 apresentamos as anlises da cultura material selecionada,

    resumida a elementos da natureza culturalmente apropriados, no caso, conchas e

    vegetais. O captulo foi subdividido em sesses especficas para cada grupo: uma sobre

    plantas, e outra para os materiais malacolgicos - entendidos como segmentos do meio

    fsico modificados por comportamentos culturalmente determinados (DEETZ, 1977,

    apud LIMA, 2011). Em cada uma delas discutimos os tipos mais encontrados, suas

  • 19

    recorrncias e ausncias, os significados de uso e informaes quanto procedncia, por

    exemplo, de certos materiais como os moluscos.

    Para a parte relativa aos vegetais, utilizamos duas obras que descrevem as

    plantas empregadas em terreiros de candombl, sendo elas sistematizadas em uma

    tabela onde correlacionamos os dados relativos famlia de cada vegetal, nome em

    iorub, nome popular e autor que a identifica. A partir dela pudemos realizar algumas

    averiguaes quanto s cultivadas nos terreiros analisados, bem como ao conjunto

    botnico que, potencialmente, pode compor um ax. Alm disso, conseguimos expor as

    formas de classificao nativa de tais vegetais, estabelecer um dilogo entre os dados

    dos autores e informar quais so os txons mais significativos no conjunto listado.

    Acerca dos moluscos, aps a sua aquisio no Mercado de Madureira e

    identificao realizada por especialistas, descrevemos suas procedncias geogrficas e

    tambm seus usos como adorno e na composio do orculo denominado de jogo de

    bzios, constitudo pela Monetaria moneta. As espcies foram fotografadas e

    constituem um Apndice desta dissertao.

    Nas Consideraes Finais trazemos ao debate os dados oriundos das anlises dos

    espaos edificados e rituais identificados na amostra das casas. Descrevemos os

    apontamentos realizados sobre eles, em especial destacando a especializao do

    candombl no culto a alguns orixs, sua influncia na prevalncia de determinadas

    formas de construo e as adequaes pelas quais o modelo de espao utilizado passa

    nos axs analisados. Para a cultura material analisada pudemos realizar concluses dos

    tipos mais utilizados e os motivos que levam a tal preeminncia.

    Produzimos um Glossrio onde explicamos determinados termos utilizados

    durante a elaborao da dissertao, em especial palavras em iorub. Entendemos ele

    como necessrio para a compreenso dos dados expostos como forma de manter o texto

    mais limpo sem constantes interrupes em seu desenvolvimento para a explicao de

    terminologias. O leitor ter, assim, um guia explicativo de tais termos.

    Desenvolvemos ainda trs Anexos, dois com tabelas de vegetais utilizados no

    candombl, e outro com a listagem de todos os espaos erigidos e rituais que

    identificamos na amostra das trinta e duas casas. De forma semelhante ao Glossrio

    decidimos colocar estes dados no final da dissertao para no tornar sua leitura pesada

    e cansativa.

    Tambm elaboramos um Apndice onde alocamos as fotos das espcies de

    moluscos identificadas para esta dissertao, sendo possvel observar os elementos

  • 20

    morfolgicos e ornamentais que diferenciam os gastrpodes identificados no Mercado

    de Madureira.

    Por fim, anexamos as declaraes dos pesquisadores que realizaram as

    identificaes malacolgicas e botnicas e que muito auxiliaram a produo da

    dissertao, como meio de verificao do acompanhamento de especialistas.

    Esperamos que a dissertao contribua para os estudos de cultura material no

    mbito do candombl, de forma a se somar a outras pesquisas j realizadas em diversos

    campos do conhecimento, mas salientando a compreenso da materialidade e do espao

    nessa religio. Assim pretendemos, atravs da cidadela formada por estas poucas

    palavras, tornar audvel o silncio imemorial dos filhos da frica e expressar um pouco

    do envolvente, misterioso e profundo mundo do candombl.

  • 21

    1. PRINCPIOS COSMOLGICOS E PANORAMA HISTRICO DO

    CANDOMBL NO RIO DE JANEIRO

    1.1. Introduo, conceitos e tipos ideais no candombl

    De forma geral, tanto o Candombl, como a Umbanda, a Macumba, o Batuque, o

    Xang, o Tambor de Mina, o Omoloc e outras religies denominadas afro-brasileiras,

    podem ser entendidas como cultos aos ancestrais e s energias que fundaram a Terra,

    seus elementos, os seres vivos e o mundo no material e espiritual (BENISTE, 1997).

    Tais entidades podem ser de duas ordens, ou de duas origens1: a primeira, mais

    "africanizada", relaciona tais espritos a ancestres divinais africanos que fundaram o

    plano material e viveram como homens (VERGER, 1981 e 1988), se divinizaram e

    tendem a se incorporar em seus adeptos para atualizarem ou reviverem seus feitos

    (BASTIDE, 2001).

    Em outra leitura, mais "abrasileirada", tais entidades podem ser compreendidas

    como seres que viveram no Brasil como: preto velho e escravo, a ndia, o marinheiro, o

    boiadeiro e os ciganos. Eles voltam terra em busca de elementos materiais que os

    satisfaam e em troca prestam favores para seus adeptos (CARNEIRO, 1991). Em

    ambos os casos, as matrizes africanas, amerndias e europeias catlica e kardecista

    se fundiram dando origem a estes cultos se no nacionais, com uma marcante

    identidade negra que perpassada pela indgena e pela branca, gerando os cultos afro-

    brasileiros em suas vrias expresses regionais.

    Se pode entender os cultos afro-brasileiros como religies ligadas natureza e que

    retiram dela a energia necessria para a manuteno da vida, da sade e a sua

    continuidade, como num fluxo de ddiva e contra-ddiva proposto por Mauss (2002),

    para que esta energia, denominada de ax, se mantenha circulando entre os homens e

    entre os homens e as entidades. Nestes cultos se tem a presena de entidades ligadas a

    elementos (gua, ar, terra e fogo) e seus derivados (lama, rvores e animais) e a

    necessidade constante de retribuir a eles a energia dada para a manuteno da sade e da

    vida (o ax) e que se denominam orixs, guias ou entidades. Assim, rituais de sacrifcio

    de animais, oferecimento de alimentos preparados, frutas, velas, danas, msicas e

    cantos marcam no apenas a retribuio, troca e repasse de energias entre as entidades e

    1 Para esta pesquisa adota-se a perspectiva de Wagner (1981) e a de Hobsbawm & Ranger (1997) quanto

    dinmica da construo constante da cultura e da tradio pelos grupos, entendendo assim que as

    entidades dos cultos afro-brasileiros e suas origens se ligam mais a processos de elaborao constante da

    tradio do que de uma origem stricto sensu quanto ao local geogrfico mtico de construo.

  • 22

    os homens, mas a ligao entre elas e o mundo fsico (ver a Figura 1, onde se apresenta

    esse ciclo de ax em um terreiro de candombl).

    Figura 1. Ciclo da circulao do ax em um terreiro de candombl.

    Fonte: Adaptado de Pereira (2013).

    A realizao de giras ou das festas para com muitas bebidas, cigarros, charutos,

    cachimbos, carne e msicas caracterizam a forma de adorao de entidades nacionais

    denominadas de caboclas (LANDES 2002, CARNEIRO, 1991). Estas entidades ainda

    ligadas ao plano material, pois ainda so espritos sem tempo de experincia como tais,

    aceitariam essas oferendas em trocas de favores que prestam a seus adoradores. Tais

    giras apresentam como entidades, alm dos orixs (em especial Ogum, Xang, Iemanj,

    Oxal, Oy e Oxossi), os Pretos Velhos ou Pretas Velhas, (que so espritos de ex-

    escravos), como, de Ciganos ou Ciganas, Marinheiros, Boiadeiros e de duas qualidades

    de Exus: os femininos, como a Maria Padilha, Sete Saias entre outras, e os masculinos

    como Exu Tiriri, Bar, Exu Caveira, Z Pelintra, Tranca Ruas, e uma mirade de outras

    entidades do mesmo tipo. Todos estes promovem atendimentos pblicos seus adeptos

    e, realizam servios ou trabalhos, se contentando com bebidas, cigarros e msicas.

  • 23

    Conforme Caciatore (1988), o termo candombl significa: 1. Da lngua kibundo -

    "ka" ou "kia" - costume ou uso, e "ndombe" - "preto", ou seja, um costume dos pretos;

    2. Dana com atabaques ou 3. Dana profana de negros. De qualquer forma, pode-se

    entender o candombl como uma manifestao religiosa negra ligada ao culto dos

    ancestrais que se tornaram divinizados ao longo dos sculos da histria mtica da

    frica.

    Lopes (2003) indica que o termo designa: 1. tradio religiosa de culto aos orixs

    Jeje-Nags; 2. celebrao, festas dessa tradio, xir e 3. comunidade-terreiro onde se

    realizam essas festas, localizando o termo originariamente banto e com razes

    lingusticas num proto-banto. A posio de Lopes (2003) , portanto, a mesma quanto a

    uma identidade proto-banto, categoria desenvolvida por Slenes (1995) em suas

    pesquisas, ao se referir construo de uma identidade banto no Brasil, no contexto da

    dispora africana e aplicada apenas a este contexto.

    Esse conjunto de crenas, que vo alm dos orixs ou das entidades, adentrando

    aspectos da vida, do destino e da prpria pessoa (aspectos subjetivos), tendem a ser

    conceituados por Lopes (2011) como um conceito maior que estaria presente em vrias

    regies da frica, seja ela Subsaariana ou mesmo a Equatorial, podendo ser expresso

    em um tipo ideal denominado "religio tradicional negro-africana" (LOPES, 2011). Na

    caracterizao realizada por Lopes (2011) possvel perceber que existiria uma fora

    suprema criadora do mundo e, sob ela, a presena de vria entidades que, sendo tanto

    antepassados como foras da natureza, devem ser cultuadas.

    Neste contexto importante destacar a presena de uma fora vital, o ax, e como

    esse deve transitar entre os dois mundos existentes: o fsico, dos homens, e o espiritual,

    das entidades, reestabelecendo, de forma contnua, a troca de energias entre os planos.

    Tambm de forma geral, ou como uma tipologia ideal, esses dois mundos so

    permeados por um mensageiro, ou um "agente dinmico" (LOPES, 2011), que entre os

    nags recebeu o nome de Exu. Ele tem por funo fazer a ligao e a intermediao

    entre os planos, distribuindo essas energias entre os homens e as entidades.

    Para este amplo sistema de crenas negras, o destino decidido pelo homem,

    antes de sua reencar"nao" na Terra, junto ao deus supremo, sendo que nesse momento

    o ser pode escolher por quais provaes, deseja passar em vida. No se trata de uma

    predesti"nao", mas de uma escolha deliberada dos sofrimentos pelos quais se dever

    passar ainda antes de viver (LOPES, 2011).

  • 24

    Assim, sob esta tipologia ideal que o candombl, mais especificamente o "Rito

    Nag" (BASTIDE, 2001), se configura no Brasil como um modelo predominante

    (BASTIDE, 2001). Contudo, no se descarta que ele mesmo seja fruto de outras

    movimentaes culturais. Sobre essas circulaes se destacam as pesquisas de Pars

    (2007) na defesa de que o candombl baiano deve muito mais ao grupo tnico Jje do

    que aos Nags, pois localiza no sculo XVIII e no recncavo da Bahia a formao dos

    primeiros terreiros deste tipo de culto. Para esse autor, o terreiro, com valor de moradia

    e de sociabilidade, precede as casas de candombl, com o valor de local de culto, sendo

    um espao de vivncia de um parentesco de "nao" e que permitiu aos africanos e seus

    descendentes a criao de um espao de culto e sociabilidade. A experincia

    comunitria da religio que dar, nessa leitura, os contornos de um terreiro de

    candombl que congrega tanto um espao de culto como um local de residncia e

    vivncia.

    Pars (2007) indica, no caso da formao do Jje na Bahia, que o termo "nao"

    deve ser visto sob uma tica das relaes tnicas e intertnicas de Barth (2000) e como

    essa construo funciona como uma fronteira onde internamente so criados elementos

    de autoimagem e de concepo de mundo. Esta identidade foi construda no contexto

    da dispora negra para o Brasil, e reflete uma ao intencional dos africanos na

    elaborao de uma identificao entre os escravos de diversas regies da frica, s

    vezes com troncos lingusticos semelhantes, e que se aglutinaram no Brasil em torno

    deste "conceito-identidade" (PARS, 2007) aproximado de procedncia. Esta

    perspectiva assemelha-se adotada por Slenes (1995), para explicar a formao deste

    ncleo de pessoas, e que se adota aqui como significado para o termo "nao" ou

    "proto-nao" (SLENE, 1995), sendo um ponto central para a compreenso da

    identidade e da religiosidade do africano no Brasil.

    1.2. A dispora negra na formao do candombl do Brasil

    O que se conhece como candombl no Brasil , sem dvida, resultado do processo

    da dispora africana para as Amricas, em especial para o Rio de Janeiro e Salvador,

    grandes portos de entrada de mo de obra negra no pas. Heywood (2009) destaca como

    o comrcio atlntico de escravos teve influncia direta na formao desta cultura e

    religio no Brasil, afirmando uma proeminncia no envio de africanos ocidentais, em

    especial da Costa do Ouro ou da Mina, de Angola e do Reino do Congo, todas reas

  • 25

    controladas direta ou indiretamente pelo comrcio colonial portugus e europeu e,

    posteriormente, pelo prprio Brasil. Conforme Florentino (1997), apesar de ocorrer, o

    comrcio de escravos com a costa oriental africana no teve grande destaque, se

    comparado ao ocidental, devido aos altos custos da navegao e do tempo de travessia.

    O mapa 1 apresenta estas principais reas da frica Central e, a partir delas, a entrada

    nos portos brasileiros.

    Mapa 1. reas de dispora negra da frica e seus locais de entrada no Brasil.

    Fonte: Miller, 2009.

    O temo dispora pode se definido como a disperso mundial dos povos africanos

    e de seus descendentes como consequncia da escravido e outros processos de

    imigrao (SINGLETON & SOUZA, 2009, p. 449), entendendo o termo dispora

    como algo mais do que xodo ou deslocamento, especialmente no contexto africano,

    assumindo, ao contrrio, a importncia do aspecto transnacional, uma vez que, sem o

    trnsito entre naes e a consequente adaptao dos indivduos "viajados", o conceito

    em questo certamente no estaria merecendo tanta ateno por parte dos acadmicos,

    como Gilroy (2001), por exemplo. O fato de confrontar duas (ou mais) sociedades traz

    ao indivduo em dispora desconforto, especialmente se este encontro se d com base

    em diferenas de poder e subjugao. A dispora africana para o Novo Mundo,

    impulsionada e propagada pelos pases europeus que viam nela grande fonte de lucro e

  • 26

    que foi uma das maiores empreitadas comerciais dos idos coloniais, atualmente

    estudada em toda a sua extenso geogrfica, antropolgica, sociolgica, arqueolgica e

    literria e em todas as outras maneiras atravs das quais o contato entre seres humanos

    pode gerar expresses.

    A dispora pode ser entendida, ento, como a ausncia de um lar em um primeiro

    momento e, em seguida, a reconstruo do ambiente acompanhada do frequente desejo

    de retorno ao que foi perdido. A publicao est no prelo, assim que eu tiver os dados

    eu a repassarei. A partir deste pressuposto que se pode entender a formao do

    candombl no Brasil: um forma de reconstruir a frica onde se estivesse. Bastide

    (2001) entende o candombl como uma reconstruo temporal de um microcosmos

    africano dentro do terreiro, presentificando o passado e reatualizando-o para o

    cotidiano.

    Esse processo fortemente ligado ao desembarque destes negros-mercadorias,

    permitiu, em reas urbanas e rurais de diversas regies do Brasil, o substrato para a

    construo de novas identidades que, por sua vez, podem ser vistas "em trnsito"

    (GILROY, 2001), ou seja, na perspectiva da adaptao e das manutenes das

    manifestaes culturais desses homens e mulheres nas novas terras. Para Hall (2008), o

    conceito de dispora est fundado sobre a construo de uma fronteira de excluso e

    depende da construo de um 'outro' e de uma oposio rgida entre o dentro e o fora

    (HALL, 2008, p. 32), ou seja, o confronto entre o eu e o desconhecido que causa a

    indisposio presente entre os indivduos da dispora. Nesse sentido, os portos de

    embarque e desembarque de negros podem ser vistos como locais destes confrontos e

    como marcadores temporais e geogrficos deste processo scio-histrico (sobre estes

    portos e zonas de desembarque observar o Mapa 02).

    A partir desta constatao possvel entender o candombl como um dos frutos

    da dispora negra, no apenas como uma religio ou um conjunto de postulados sobre a

    vida, mas tambm a permanncia e ressignificao de um conjunto de saberes-fazeres

    que se perpetuara ao longo dos sculos e ainda hoje reverberam ou ressoam na

    construo das identidades negras (PEREIRA, et alii, 2012). O mapa 2 apresenta as

    principais reas de desembarque de negros em dispora no Brasil, e nele se pode

    perceber a preponderncia de Salvador, Recife e do Rio de Janeiro neste processo.

  • 27

    Mapa 2. Principais portos e rotas da Dispora Africana no Brasil.

    Fonte: Miller, 2009.

    Heywood (2009) e Miller (2009) afirmam que durante a dispora, os portos de

    embarque de negros na frica - Cabinda, Luanda, Benguela, Ajud e So Jorge da Mina

    - se tornaram formas identitrias ou nominativas e genricas para designar a

    procedncia dos negros. Desta forma, o trfico luso-brasileiro acabou fixando grandes

    naes, ou na verdade portos de embarque: Ktu/Nag, Angola, Congo, Hauss/Mals,

    Minas, Jjes, entre outras. Tais naes j eram identificadas pelos estudiosos

    africanistas no final do sculo XIX e incio do XX (RODRIGUES, 1939 e 1977), ao

    descreverem a procedncia dos negros da Bahia e Brasil, mas ainda muito ligados a

    paradigmas de pureza tnica ou de sobrevivncias culturais (RAMOS, 1946). Lopes

    (2011) afirma que se tornou costumeiro associar dois nomes para a designao do

    negro, sendo o primeiro do porto de embarque e o segundo da possvel etnia ou

    localidade que o negro advinha. Assim, nascem as variaes mina-jje ou mina-nag,

    por exemplo.

    Ainda conforme Lopes (2011), tal forma de designao incerta e devido

    precariedade das informaes, ela nem sempre pode ser considerada fidedigna. De

    qualquer forma, a intelectualidade do sculo XIX, ou mesmo o sistema escravista,

    funda-se no que se pode considerar como um mito de origem abrangente para os negros

    ao trabalhar com uma quantidade mnima de naes para a identificao das populaes

    escravas. Foi delas que adveio, devido a esta dispora, a formao de naes no

    candombl, que, em ltima instncia e sob forte conotao de fronteiras intertnicas

    (BARTH, 2000), criaram as clivagens identitrias entre os terreiros . Se pode, ento,

    pensar o candombl como uma instituio, onde existem formas de interao social

  • 28

    regular e com carter normativo e que, no contexto da dispora, permitiram aos negros

    criar comportamentos agenciais de inovao e continuidade, alm da j citada interao

    social, para se oporem, de forma ativa ou disfarada, dominao branca (PRICE,

    2003).

    Ter um sentido de pertencimento a uma "nao" e a uma determinada casa, neste

    contexto de reformulao do mundo em trnsito (GILROY, 2011), torna o individuo

    ligado a um determinado grupo, a um determinado passado e a uma determinada

    quantidade de capital simblico a ser instrumentalizado (BOURDIEU, 1997).

    indubitvel que as variaes existiram, permanecem e devam ser revistas, atrelando os

    estudos historiogrficos a estudos antropolgicos com a finalidade de determinar com

    maior preciso, a origem tnica destes negros na dispora, processo que ainda precisa

    ser aprimorado pelos estudos historiogrficos, antropolgicos e arqueolgicos.

    1.3. A formao histrica e social do candombl brasileiro

    Os primeiros estudos sobre o carter africano no Brasil e a sua relao com o

    candombl na sociedade nacional datam do sculo XIX com Rodrigues (1977). O

    enfoque das suas pesquisas era entender este grupo, recentemente liberto da escravido

    e deslocado na sociedade brasileira da poca, no conjunto das teorias do evolucionismo

    social e do determinismo biolgico. Os estudos privilegiaram as informaes

    disponveis na poca, enfatizando a origem tnica via a anlise das reas de embarque

    destes escravos na frica e os nascentes terreiros de candombl em Salvador (Bahia).

    Para Rodrigues (1977) haveria duas principais provenincias para os escravos: o

    tronco sudans (costa ocidental africana localizada mais ao sul entre o Congo e Angola)

    e o tronco banto (costa ocidental do Golfo da Guin, ou Costa da Mina) como as

    principais ascendncias raciais trazidas para o Brasil com a escravido, dando aos

    sudaneses uma superioridade, seno numrica, mas intelectual e social sobre os demais

    grupos. Rodrigues (1977) afirma ser a Bahia a rea de maior manuteno da

    permanncia da cultura negra no Brasil. Este conceito de permanncia ou de pureza

    negra, vista como uma inferioridade racial defendido por Rodrigues (1977) como

    forma de explicar a manuteno e sobrevivncia das crenas ou do sincretismo negro

    junto ao catolicismo brasileiro:

    Antes de demonstrar a persistncia do estado mental dos selvagens nas concepes fundamentais das mitologias negras, ensaiaremos o seu estudo,

  • 29

    como simples sobrevivncia, nos usos e costumes africanos introduzidos

    pelos escravos pretos. (RODRIGUES, 1977, p. 173)

    Um aspecto relevante analisado por Rodrigues (1977) a presena do totemismo

    entre os negros da Bahia. O totemismo entendido como a ligao parental entre os

    membros do grupo, filiao a um determinado animal e a observncia de determinadas

    regras e coeres, a expresso da mitologia negra, ou seja, de suas festas e folclore

    transpostos para o Brasil. Sendo ento o totemismo uma condio permanentemente

    latente aos escravos, pois [...] os negros importados no Brasil eram todos povos

    totmicos. (RODRIGUES, 1977, p. 174). Pela viso da poca, a o evolucionismo

    social, Rodrigues (1977) v nessa manifestao um atraso ou a prova da inferioridade

    racial negra no Brasil, o que explica o candombl no s como relativa resistncia, mas

    manuteno de um atraso mental:

    Como se v, so eloquentes vestgios de uma religio atrasada e africana que, transportada para o Brasil, aqui se misturou com as cerimnias

    populares da nossa religio e outras associaes e seitas existentes,

    resultando de tudo isso uma perigosa amlgama, que s serve para ofender a

    Deus e perverter a alma. (RODRIGUES, 1977, p. 260).

    Para alm da constatao de que o candombl seria uma religio totmica e

    animista, o trabalho realizado por Rodrigues (1977) se destaca por ser um dos primeiros

    estudos que visa dar conta no s da procedncia e tipos raciais negros, mas tambm

    analisar este elemento na sociedade brasileira. Rodrigues (1977) sobressai no apenas os

    principais troncos negros, mas salienta ainda grupos menores, tais como os maometanos

    ou mals: [...] em geral vo quase todos sabendo ler e escrever em caracteres

    desconhecidos que assemelham-se ao rabe, usado entre os usss, que figuram ter hoje

    combinado com os nags [...]. (RODRIGUES, 1977, p. 41).

    A maioria das revoltas negras ocorridas na Bahia, segundo Rodrigues (1977)

    foram articuladas por este grupo sendo de sua natureza cultural e tnica fruto dos anos,

    ainda na frica, do processo de islamizao2. O autor conclui ainda que estas revoltas

    seriam acarretadas por germes de rebelio plantados pelo islamismo (RODRIGUES,

    1977). Lopes (2011) tambm tem a mesma opinio, pensando inclusive em uma quase

    jihad ou uma intencionalidade em converter os negros da Bahia ao islamismo.

    2 Conforme Marzano (2008), a islamizao da frica Ocidental no se deu a partir de conquistas

    territoriais. O fator principal da expanso muulmana nesta regio foi o comrcio transaariano, que

    envolvia a frica Ocidental e o norte do continente. O processo ocorreu aps a consolidao da conquista

    rabe ao norte, se iniciando a partir do sculo IX. Esse comrcio envolvia a captura de escravos que eram

    levados ao norte do continente. Esse trfico teve inicio com as guerras santas, includas no processo de

    expanso do islamismo para o norte da frica e para a Europa mediterrnica.

  • 30

    Entretanto, a maior contribuio de Rodrigues (1977) para a presente anlise

    uma listagem de [...] raas e povos africanos de cuja introduo no Brasil h provas

    certas e indiscutveis (RODRIGUES, 1977, p. 261) sendo utilizadas poucas fontes

    aduaneiras brasileiras e de relatos de visitantes estrangeiros ao Brasil. Assim, Rodrigues

    (1977) descreve a procedncia dos negros brasileiros:

    1)Camitas africanos: fulas (berberes (?) tuaregs (?)).

    Mestios camitas: filanins, pretos-fulos.

    Mestios camitas e semitas: bantos orientais.

    2)Negros bantus:

    a.Ocidentais: eazimbas, schschs, xexys, auzazes, pximbas, tembos, congos

    (Martius e Spix), cameruns.

    b.Orientais: macuas, anjicos (Martius e Spix)

    3)Negros Sudaneses:

    a.mandes: mandingas, malinkas, sussus, solimas.

    b.Negros da Senegmbia: yalofs, falupios, srrs, kruscacheu.

    c.Negros da Costa do Ouro e dos Escravos: gs e tshis: achantis, minas e

    fantis (?) jejes ou ewes, nags, beins.

    d.Sudaneses centrais: nups, hausss, adamaus, bornus, guruncis, mossis (?).

    4)Negros Insulani: basss, Bissau, bizags.

    Mesmo desenvolvendo uma lista to detalhada, Rodrigues (1977, p. 261-262)

    destaca que:

    Ser escusado dizer que a esta enumerao bem podem e devem ter escapado muitos povos negros que, principalmente no curso dos trs

    primeiros sculos do trfico, no deixaram de sua passagem vestgios e

    documentos. Seguramente, africanos de muitas outras nacionalidades haviam

    de ter entrado no Brasil. [...] apenas nos preocupam aqui aqueles povos

    negros que, pelo nmero de colonos introduzidos pela durao da sua

    imigrao, ou pela capacidade e inteligncia reveladas, puderam exercer uma

    influencia aprecivel na constituio do povo brasileiro.

    Tal listagem pode ser lida no apenas como uma classificao de procedncia

    tnica dos negros, mas tambm como uma lista da formao do candombl, dando

    maior nfase, como j colocado, ao elemento Nag. Tal fato no passado de forma

    desapercebida por autores subsequentes Rodrigues (1977): Landes (2002) tambm

    afirma a "primazia nag" no candombl baiano, seguida por Bastide (2001) e, de forma

    geral, por Verger (1981, 1995, 1998 e 2009).

    Ramos (1946), assim como Rodrigues (1977), encontra dificuldades para

    delimitar a procedncia tnica do negro trazido para o Brasil (Nag, Mina, Angola ou

    Moambique), tendo em vista que, no perodo escravista, o que era levado em conta era

    a sade e fora do negro, no sua procedncia. Ramos (1946, p. 280 e ss.) segue as

    concluses de Rodrigues (1977) quanto primazia dos sudaneses na Bahia, destacando,

    porm, a presena dos bantos e uma possvel polarizao entre estas duas etnias. Desta

    forma, divide a raa negra em trs grandes troncos:

  • 31

    1)Culturas sudanesas Yorubas (Nigria) : Nag, Ijch, Eub ou Egb, Ketu, Yebu ou Ijebu e grupos menores: Daomeianos (Geg, Ewe, Fon);

    Fanti-Ashanti da Costa do Ouro (grupo Mina: Fanti e Ashanti) e grupos da

    Gmbia, Serra Leoa, Libria, Costa da Malagueta e Costa do Mafin (Agni,

    Zema e Timin);

    2)Culturas Guineano-sudansas islamizadas: Peuhl (Fulah, Fula); Mandinga

    (Solinke, Bambara); Haussa do norte da Nigria e grupos menores Borns e Gurunsi;

    3)Culturas Bantus: Inmeras tribos do grupo Angola-Congols e do grupo da

    Contra Costa.

    Tentando no se fechar em um possvel erro descritivo dos negros que vieram

    para o Brasil, Ramos (1946) conclui:

    [...] preciso assinalar que essas sobrevivncias culturais no existem em estado puro, nem so facilmente identificveis [...] possvel que futuras

    pesquisas identifiquem novos padres culturais; sero elementos que, parece,

    iro congregar em torno dos padres principais referidos. (RAMOS, 1946, p. 280).

    A tentativa de Ramos a de justificar um Paradigma da Pureza Negra

    (RAMOS, 1946) no Brasil, valorizando as raas negras mais puras e menos

    miscigenadas e detentoras, em sua anlise, de uma cultura e religio mais autntica e

    mais africanizada. Por outro lado, ao observar os negros que se miscigenavam tnica e

    culturamente ao elemento brasileiro, Ramos (1946) percebia uma cultura vista como

    inferior devido mistura. Se Rodrigues (1977) deu primazia aos sudaneses, Ramos

    (1946) a concedeu ao bantos.

    Entre as culturas negras no Brasil este autor destaca quatro de maior influncia:

    Iorub/Nag (onde ressalta a primazia da lngua iorub sobre as demais), as culturas

    Daomeianas e Fanti-ashanti, as Negro-maometanas e a Banto. Sobre esta ltima afirma:

    [...] O exclusivismo de Nina no deve ser substitudo por outro exclusivismo [...].

    (RAMOS, 1946, p. 330).

    Neste contexto histrico de percepo do negro pela sua "nao" de origem, que

    no denotava sua origem geogrfica, que as casas ou terreiros de candombl se

    formaro em Salvador/BA, tendo as grandes naes ou grandes aparatos tnicos e

    culturais como guarda-chuvas para sua existncia. Landes (2002), pesquisando na

    dcada de 1930 a proeminncia feminina na direo dos terreiros de candombl, destaca

    como as casas de origem nag seriam as maiores, as mais prsperas e as que mais

    teriam guardado o capital cultural da religiosidade africana. Pierre Verger (1981, 1995,

    1998 e 2009) e Roger Bastide (2001) no so diferentes, todos unnimes em destacar a

    primazia nag no candombl.

  • 32

    Anos subsequentes, analisando o xang do Recife (PE) e questionando um

    suposto Mito de Pureza Nag, Dantas (1988) produz uma obra onde se questiona se

    essa pureza do culto acionada intencionalmente, na finalidade de obteno de status

    ou proteo contra perseguies ou mesmo se ela existe ou existiu de fato. Dantas

    (1988) permite ento pensar criticamente sobre a formao do candombl e como esta

    formao foi mais ativa e intencional por parte dos terreiros e menos passiva e linear

    como afirmava Rodrigues (1977) e Ramos (1946), elegendo traos identitrios e

    ideacionais que permitiam a certas casas se destacarem de outras, devido a uma

    determinada identidade mais nagolizada, vista como mais pura e como sobrevivncia

    cultural pelo raciocnio de Rodrigues (1977) e Ramos (1946), em detrimento de casas

    mais plurais ou com menor bagagem nag em sua formao.

    Ramos (1946) complementa Rodrigues (1977), ao descrever os povos/etnias

    provenientes de Angola ou Ambundas, Congo ou Cabinda, Benguela e Moambique.

    Percebendo as inmeras regies e denominaes tnicas que estes grupos bantos

    sofreram. Ramos (1946) destaca as duas principais sob a sua viso: Angola (elemento

    marcante na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco) e Cabindas, que [...] so os mesmos

    Congos, que vieram para o Brasil intimamente ligados aos Angolas, tendo o perfil

    antro-psicolgico quase idntico e cultura equivalente aos destes. (RAMOS, 1946, p.

    334).

    Assim, a partir de uma identidade baseada em naes, em que h a fixao de

    traos identitrios intencionais para a demarcao de fronteiras (Barth, 2000 e Dantas,

    1988), os terreiros de candombl de Salvador (BA) se formaram em meados do sculo

    XVIII (PARS, 2007) e do XIX (BASTIDE, 2001), sendo possvel esquematizar

    cronologicamente esse surgimento , como se v na tabela 1:

  • 33

    Tabela 1. Principais terreiros de candombl, ou os mais tradicionais de Salvador/BA, e suas datas de

    fundao.

    Terreiro "Nao" Data de fundao Il Ax Iy Nass Ok / Terreiro

    da Casa Branca/ Casa Branca do

    Engenho Velho/ Sociedade So

    Jorge do Engenho Velho ou Il

    Ax Iy Nass Ok

    Ktu 1735

    Sociedade So Jorge do Gantois/

    Terreiro do Gantois ou Ax

    Yamass

    Ktu 1849

    Il Ax Op Afonj Ktu 1910

    Terreiro do Bogum ou Tumba

    Jussara

    Angola 1919

    Terreiro do Alaketu Ktu

    1836 (?) ou 1867

    Il Ax Oxumar Ktu 1836

    Sociedade Cultural e Religiosa

    Il Axip

    Culto aos Eguns, mas com razes

    em Ktu

    1980

    Il Bab Agboul

    Culto aos guns, mas com razes

    em Ktu

    Primeiro quarto do sculo XX

    (sem data precisa)

    Fonte: Mapeamento dos Terreiros de Candombl de Salvador, 2007.

    De casas iniciais, atualmente cerca de 1.500 outros terreiros so filhos ou saram

    ou se desmembraram destas casas e se constituram como terreiros autnomos

    (MAPEAMENTO DOS TERREIROS DE CANDOMBL DE SALVADOR, 2007). O

    candombl, seja por fatores tnicos ou pela necessidade religiosa, se formou em

    Salvador tendo o elemento negro como seu aglutinador e motor de existncia

    (VERGER, 1981; BASTIDE, 2001).

    Por fim, a concluso de Ramos (1946) de suma importncia para a compreenso

    da formao do candombl, ou melhor frisando, dos cultos afro-brasileiros, na cidade do

    Rio de Janeiro:

    Pela primeira vez, no O Negro Brasileiro identifiquei a procedncia angolana-congolsa para a maior parte das macumbas do Rio de Janeiro e

    algumas da Bahia. Os nossos estudiosos apenas haviam acentuado a

    contribuio lingustica de origem bantu, no realizando nenhuma pesquisa

    sistematizada com relao s outras formas de cultura. [...] Esta identificao foi realizada num sentido amplo, nas minhas pesquisas na

    macumba do Rio (1934) e hoje os estudiosos da etnografia negra j falam

    comumente em religies e cultos de procedncia bantu, em macumbas de origem angola-congolese, em sincretismos geg-nag-bantu, etc. [...] (RAMOS, 1946, p. 335-336)

    Assim, apesar de uma forte formao angola-congolesa e mina nos grupos negros

    no Rio de Janeiro e, consequentemente, na formao das matrizes religiosas afro-

    brasileiras, Rocha (2000) percebe a proeminncia de um Modelo Nag ou Ktu nos

    candombls formados na cidade. O principal motivo, sem dvidas, foi uma segunda

  • 34

    dispora de negros da Bahia para o Rio de Janeiro, entre o final do sculo XIX e meados

    do sculo XX, sendo a escravido, a busca por empregos e melhores condies de vida

    os principais motivos deste segundo deslocamento (SOARES, 1988)3.

    Ao analisar a formao histrica do candombl no Rio de Janeiro, se pode pensar,

    com certeza, em uma segunda dispora negra ou uma dispora de candombl ocorrida.

    A chegada de migrantes baianos praticantes, a includos muitas ialorixs e babalorixs,

    no fim do sculo XIX e incio do XX, pode ser entendida como uma remodelao ou

    adaptao da religio ao Rio de Janeiro.

    Sobre esta leva de dirigentes vindos da Bahia, a ialorix Maria de Xang, em

    entrevista, descreve a chegada de seu av, Cristvo dos Anjos, fundador do Il Ogun

    Anaeji Igbele Ni Oman:

    "Eu vim com meu av com oito meses, aqui ele veio e fundou... comprou este

    terreno. Primeiro ele morou no Gramacho, que ele veio junto de Salvador.. na

    poca que veio quase todos os pais de santo antigo n? Pra c, e a n

    [veio] o finado Joozinho da Gomeia, finado Bob, finado Seu lvaro P

    Grande, finada Senhorazinha. [Meu av] veio nessa leva com eles todos para

    c. Cada um se localizaram num lugar e meu av pegou e comprou isso aqui,

    esse imvel aqui na Rua Ea de Queiroz 17, Pantanal, quadra 69, e aqui ele

    fundou o ax, mas ele continuava dando assistncia na casa da Bahia, o ax

    da Bahia [] que foi [fundado] pelos africanos". (PEREIRA, et alii, 2012)

    Com essa nova migrao, que pode ser considerada como uma nova dispora

    negra, a formao dos terreiros de candombl ou das comunidades de terreiro

    (CONDURU, 2010) no Rio de Janeiro e em sua Regio Metropolitana deve ser

    entendida como um processo que se instala em um novo contexto: a urbanizao.

    Analisando a formao destas comunidades de terreiro, Conduru (2010) indica

    uma movimentao histrica do centro da cidade para as periferias, com a transferncia

    ou mesmo o fechamento das casas que funcionavam em regies eminentemente negras,

    como a Pequena frica, e arredores. Para Corra (2009), frente aos processos de

    modernizao e adaptao da cidade, os locais de culto, , passam por uma perseguio,

    fechamento e recolhimento de objetos de culto pela polcia, o que os leva a se

    transferirem do Centro do Rio de Janeiro para os bairros perifricos mesmo no sculo

    XIX antes do fim da escravido e no incio do XX com Pereira Passos e suas reformas.

    Sobre estes locais interessante observar os apontamentos de Soares (1988) sobre

    os zungs ou as casas de angu, locais no apenas de venda de alimento, repouso ou

    meio de fuga da escravido no sculo XIX, mas como tambm possveis locais de cultos

    3 Entende-se que a primeira dispora de negros da Bahia para o Rio de Janeiro tenha ocorrido aps a

    Revolta dos Mals, em 1835.

  • 35

    afro-brasileiros. Tais locais, estivessem eles no Centro ou em bairros mais afastados da

    vida econmica e comercial, tambm eram, conforme os relatos policiais de batidas,

    "casas ligadas s prticas religiosas" (SOARES, 1988, p. 58).

    possvel lanar uma hiptese de que tais locais poderiam ter contribudo para a

    formao das comunidades de terreiro (Conduru, 2010)4, como ainda locais de

    sociabilidade negra, de compra e venda de produtos e de extrema desconfiana para a

    polcia do sculo XIX (SOARES, 1988). Assim, apesar das primeiras casas de

    candombl serem datadas do final do sculo XIX (CONDURU, 2010), os "zungs"

    poderiam expressar o incio dessa formao de locais culto e iniciao de nefitos

    anteriores aos registros dos terreiros.

    Sobre estes zungs interessa a esta pesquisa a descrio, mesmo que superficial,

    dos espaos edificados e da cultura material ligada aos cultos afro-brasileiros

    encontrada nas batidas policiais. Atravs da descrio possvel, por comparao com

    bibliografia disponvel, perceber uma similaridade enorme de elementos que

    constituem, na atualidade, tais cultos. Quanto aos espaos erigidos, Soares (1988, p. 65)

    descreve, a partir de tais relatos policiais que

    "Nos fundos do prdio, cujo o interior se achava em "'grande imundice" o

    delegado encontrou um quintal, com uma pequena casinhola de tbuas e

    telhas vs. Arrombada a porta, ele e seus asseciais depararam com uma cena

    imprevisvel: cinco jovens mulheres negras, completamente nuas, com as

    cabeas raspadas, conservadas em total escurido e recluso. As jovens,

    como se comprovou depois nas investigaes, ficaram vrios dias fechadas

    no pequeno compartimento, a fim de se purificarem as nefitas que deveriam

    habilitar-se para serem admitidas e receber a fortuna. Quando a escurido se

    dissipou, o delegado e sua equipe ficaram ainda mais espantados com a cena

    seguinte: diversas vasilhas de barro se dispunham no cho de terra da

    casinhola, algumas com azeite de coco, outras com sangue, ervas, cabeas

    decepadas de cabritos, bzios, que cercavam o exguo espao onde as

    "nefitas" estavam sentadas".

    Se a descrio for observada comparativamente aos relatos etnogrficos e

    historiogrficos atuais referentes a uma "feitura de cabea", ou seja, iniciao nos

    cultos afro-brasileiros (Beniste, 1997 e Vogel, 1993) possvel concluir que se tratava

    mesmo de uma iniciao de ia (nome que recebem os nefitos em muitos cultos afro

    brasileiros).

    4 Por "Comunidade de Terreiro", Conduru (2010) indica serem locais em que eram implantados os "axs"

    ou terreiros e onde pessoas passaram a fixar sua residncia, construindo moradias no entorno dos espaos

    rituais dos terreiros. Assim, poderia-se no apenas se ter uma vida ligada ao terreiro e ao culto, mas

    tambm usufruir de uma rede de mtua ajuda entre os diversos membros ali residentes quanto a dinheiro,

    sade e alimentao, por exemplo.

  • 36

    Em outro caso policial, Soares (1988, p. 66-67), ao descrever a viso de um

    jornalista que noticiava o fato, utiliza o relato para compor uma descrio da cultura

    material relacionada aos cultos afro-brasileiros, podendo, da mesma forma que o espao

    construdo, ser comparado s descries atuais da cultura material correlatas s religies

    afro-brasileiras e, em especial, ao candombl:

    [...] 4 jabutis, um cesto com crnios humanos, cabeas de cabritos, 7 peles de

    cabritos, argolas de diversos tamanhos, uma frigideira com vrios bustos,

    colados com uma substncia que parecia uma argamassa e tinha o formato de

    bolo, chocalhos de diversos tipos e tamanhos, e bzios em grande quantidade.

    Alm disso a polcia apreendeu tambores "africanos", colares e um ba velho

    com roupas que provavelmente tinham uso ritual, pois o jornalista que cobriu

    a diligncia disse serem "fantasias". Muitos outros objetos escaparam do

    olhar minucioso do reprter

    Em outra incurso policial batida contra essas casas de "dar fortuna" (SOARES,

    1988) possvel ainda perceber mais da cultura material destes locais e como eles eram

    procurados para males relacionados alma e tambm para "males fsicos" (SOARES,

    1988, p. 82-83):

    [...] Na casa, localizada no antigo Pendura Saia, o subdelegado encontrou

    diversos vasilhames de barro com razes, ps e guas, onde havia grandes

    favas. Uma grande variedade de bzios ervas e caramujos tambm foram

    encontradas. Em um dos quartos as autoridades depararam com numerosa

    quantidade de imagens de santos, desde santos catlicos at indecifrveis

    totens "africanos".

    Sobre tal relato se poderia dizer que, por semelhana com a cultura material

    utilizada nos cultos afro-brasileiros atualmente (BENISTE, 1997 e VOGEL, 1993), as

    favas poderiam ser o obi (Cola acuminata), uma noz africana utilizada em ritos de

    candombl e umbanda, os caramujos poderiam ser os bois de Oxal ou Igbin (Achatina

    fulica), animal utilizado em sacrifcios e para a iniciao de nefitos, e as numerosas

    imagens poderiam se configurar como um "proto-cong", ou mesmo um cong, altar

    utilizado na umbanda que contm as imagens de santos catlicos, orixs e entidades

    caboclas (Maria Molambo e suas variantes, Exus, Ciganos/Ciganas, Boiadeiros,

    Caboclos e ndios).

    Ainda no texto de Soares (1988) se pode notar a presena de negros forros, livres,

    escravos e os contatos destes entre si e com africanos vindo de outras regies do Brasil

    aps o fim do trfico atlntico. Tal situao colocaria tais pessoas em relao, o que

    poderia ocasionar trocas religiosas ou absores de elementos religiosos externos aos

    indivduos. Alm deste contato pessoal possvel pensar em intersees entre regies,

  • 37

    como Bahia e Rio de Janeiro, em sistemas de fluxo e contrafluxo de culturas, o que, em

    ambas situaes, poderia ser lido como uma cultura em dispora.

    Conduru (2010), ao analisar a formao dos terreiros, afirma que "se delineia uma

    panorama extenso de comunidades de candombl no Rio de Janeiro vinculadas a

    comunidades baianas de vrias naes, em paralelo continuidade das comunidades

    anteriormente constitudas na cidade e na regio" (CONDURU, 2010, p. 14). na

    interao, na troca de experincias e mesmo na necessidade da perpetuao da crena

    que tais comunidades religiosas se desenvolveriam.

    A formao dos terreiros de candombl no Rio de Janeiro no incio do sculo XX

    pode ser dividida em trs interpretaes quanto origem dos membros desta religio.

    Tais leituras, de certa forma opostas, afirmam a maior ou menor presena de baianos na

    formao do candombl carioca, a sua ausncia ou ainda a presena de pessoas de

    outros estados da federao.

    A primeira interpretao, mais ligada ao elemento negro presente no Rio de

    Janeiro pode ser vista na obra de Joo do Rio (2006), em sua clebre descrio sobre a

    religiosidade carioca, na qual afirma que [...] as casas dos minas conservam a sua

    aparncia de outrora, mas esto cheias de negros baianos e de mulatos. Tambm

    Caldas (2008) destaca a presena de uma religiosidade africana visvel inclusive em

    "mdicos" ou curandeiros negros, de origem angolana, na Corte Imperial, para os quais

    membros da elite carioca buscavam as curas de seus males.

    As pesquisas de Lima (2012) indicam, pelo vis da arqueologia, a presena de

    uma religiosidade africana no Porto do Valongo. Uma prova de que as concepes de

    magia, de proteo do corpo e do culto ancestralidade estavam presentes entre os

    negros j desde o incio do sculo XIX.

    Netto (2010) consegue indicar a existncia de axs que no possuem ligao

    alguma com Salvador, mas sim com a frica. O que liga alguns terreiros cariocas no

    tradio baiana, mas sim a uma migrao direta de africanos para o Rio de Janeiro:

    "Guaiaku Rosena, africana, natural de Allada Benim, que veio para o Brasil em 1864 (...) para o Rio de Janeiro, fundou um terreiro no bairro da Sade,

    com o As Podab-Jeje. O que confirmado por Mejit Helena de Dan, bisneta de santo de Guaiaku Rosena, em seu depoimento contido nesse

    mapeamento: O nosso (as) aqui do Rio, especialmente o da minha casa, o

    Jeje original, oriundo da frica, mas no tem descendncia da Bahia. Jeje

    do Rio de Janeiro mesmo" (NETTO, 2010, s/p.).

    Gomes (2003) defende, para a procedncia no baiana pura, de que os

    baianos, por mais importantes que possam ter sido na constituio de uma cultura

  • 38

    popular urbana na cidade do Rio de Janeiro, necessariamente dialogaram com tradies

    j existentes e com outros grupos recm-chegados" (GOMES, 2003, p. 179). Assim,

    deste mesmo autor temos a constatao de que:

    "Deve-se sempre ter em mente, enfim, que a experincia afro-brasileira na

    Corte, depois Capital Federal, necessariamente multifacetada e no pode,

    de forma alguma, se restringir trajetria de alguns indivduos destacados em

    uma comunidade da regio porturia da cidade (GOMES, 2003, p. 198).

    J Moura (1995) oferece outra perspectiva na qual os baianos teriam uma maior

    proeminncia na fundao de tais casas:

    "Os baianos se impem no mundo carioca em torno de seus lderes vindos

    dos postos do candombl e dos grupos festeiros, se constituindo num dos

    nicos grupos populares no Rio de Janeiro, naquele momento, com tradies

    comuns, coeso, e um sentido familstico que, vindo do religioso, expande o

    sentimento e o sentido da relao consangunea, uma dispora baiana cuja

    influncia se estenderia por toda a comunidade heterognea que se forma nos

    bairros em torno do cais do porto e depois na Cidade Nova, povoados pela

    gente pequena tocada para fora do Centro pelas reformas urbanas" (MOURA,

    1995, p. 43).

    Rocha (2000), se alinhando proeminncia baiana no candombl e

    consequentemente na formao social carioca, pode ser citado como defensor dessa

    presena baiana marcante nos candombls do Rio de Janeiro pois afirma que:

    "Ao longo da segunda metade do sculo XIX concentraram-se na cidade do

    Rio de Janeiro, em nmero significativo, negros baianos que constituam um

    grupo parte na massa de ex-escravos e seus descendentes, que, na virada do

    sculo, estavam dispersos pela cidade, com ocupaes variadas (ROCHA,

    2000, p. 21).

    Em entrevista ao Inventrio Nacional de Registro Cultural do Candombl no

    Estado do Rio de Janeiro (2012), Ivanir dos Santos (babala de grande destaque no Rio

    de Janeiro) fala sobre a preponderncia da Bahia na formao do candombl e da

    ligao entre as cidades de Salvador e do Rio de Janeiro neste contexto. Ele destaca

    ainda a importncia desta ligao na tradicional raiz do Bambox, originado na Bahia, e

    com representao na capital fluminense.

    "...o velho Bambox, tem algumas coisas [que] ainda se fala sobre ele, mas

    ainda no deu a ele a grandiosidade que foi o seu papel na organizao do

    Candombl na Bahia, primeiro, n nos primeiros Candombls. Tambm

    como sacerdote que orientou e fez tambm algumas sacerdotisas importantes

    naquele perodo, n , tanto que dizem e eu j ouvi da famlia dos mais velhos,

    que ele quando veio para o Brasil veio pra primeiro dar autorizao para

    raspar primeiro Oxum, aqui, e disseminar o [incompreensvel], o popular

    jogo de bzios, que vai ser mais disseminado ainda por Benzinho seu neto, n

    depois. Pra voc ter ideia que eles tem um papel importante no s na

    organizao do candombl mesmo, n, conta umas histrias que o candombl

    nasce como roda nessa forma que a gente conhece hoje em parte, n , essa

    forma... , ... quando ele preso, n, na Bahia, quando ele solto feita uma

  • 39

    recepo pra comemorar a sada dele, e fazem uma roda, n , ento dizem

    isso, eu j ouvi falar sobre isso. Agora o que todo mundo sabe que a roda de

    Xang foi um ritual criado por ele, criado de Xang. Ento, todas as casas

    tradicionais, como a casa Branca, o Ax Op Afonj, o Gantois tem essa

    roda, pode variar um cntico ou outro, uma forma de fazer, mas todos tm

    essas casas, isso uma herana direta dele, n da prtica religiosa, n de

    organizao deles, dos Ob de Xang, nasceu o Op Afonj, todo mundo

    sabe, n que [incompreensvel] foi inspirado, n por ele. ... ele teve uma

    importncia, no s como sacerdote mas como babala na Nigria, ele o

    lder espiritual e poltico de seu povo, ele o guardio do seu povo, n [sic],

    e ele cumpriu bem esse papel. E depois tambm o seu neto, Benzinho, de

    qual a famlia hoje que existe basicamente aqui, .. na Bahia e aqui,

    justamente a de Benzinho, seu neto, n, , que a me Regina de Bambox, a

    Tia Irene, , Me Caetana, [incompreensvel] que hoje t no Pilo de Prata,

    n, essas famlias vem de Benzinho, que era neto de Bambox e que continua

    perpetuando todo o trabalho. Ento costumo dizer que o candombl

    brasileiro, ele deve a essa famlia muita coisa, n... a essa famlia muita

    coisa" (PEREIRA, et alii, , 2012, s/p).

    Quanto a presena de indivduos de outros estados da federao na formao do

    candombl carioca o prprio Rocha (2000) informa que, na formao do Ax de

    Mesquita, fundado aps 1926, por Dona Pequena e por seu marido, Joo Bankol, [...]

    juntou-se tia Bibiana (Oxal) que veio de Recife" (ROCHA, 2000, p. 26-27).

    A partir destas trs formas de interpretar a formao do candombl do Rio de

    Janeiro se tem a clara percepo de que houve a somatria de cultos aos ancestrais.

    Estes cultos j existiam devido aos negros de diversas origens desembarcados

    majoritariamente no Cais do Valongo. Ao mesmo tempo dirigentes baianos, e de outros

    estados brasileiros migrados, se somaram na composio de uma religio que,

    claramente, tem origens diversas. Apesar das formas especficas de adorao, a cultura

    negra em dispora na capital federal, ps tais pessoas em contato, resultando assim num

    amlgama religioso que pode ser considerado genericamente como a gnese dos

    terreiros de candombl carioca.

    A partir dos estudos de Conduru (2010) se pode historicizar a formao de tais

    terreiros na seguinte ordem cronolgica dos acontecimentos, conforme a tabela 2

    abaixo. A historicizao somada a uma viso geogrfica da dispora das casas na

    formao do candombl interessa presente dissertao, pois situa a formao das casas

    aqui analisadas ou das casas mes5.

    O Mapa 3, a seguir, apresenta esse movimentao e atenta para seu fluxo

    concntrico a partir da regio porturia ou central do Rio de Janeiro para as periferias da

    5 O Mapeamento dos Terreiros de Candombl de Salvador (2007) indica que as "casas mes" so aquelas

    que, obedecendo ao funcionamento do candombl, permitiriam a determinados membros, aps sua

    formao concluda nesse culto, sarem de suas casas e fundarem novas. Isso torna o terreiro nascente

    "filho" ou "da descendncia" da "casa me".

  • 40

    cidade, para a Baixada Fluminense e Regio de Niteri e So Gonalo, impulsionada,

    sobretudo, pela presso urbana contra tais cultos e pela necessidade de espao para as

    casas se expandirem com novos membros (Rocha, 2000).

  • 41

    Tabela 2. Historicizao e expanso geogrfica dos terreiros de candombl do Rio de Janeiro entre os

    sculos XIX e XX.

    Perodo Movimentao

    geogrfica ou diasprica

    Principais Comunidades ou Casas de Candombl

    e suas caractersticas

    Da Segunda

    metade do sculo

    XIX at a dcada

    de 1930

    Instalao das primeiras

    casas conhecidas nos

    bairros centrais da cidade

    do Rio de Janeiro

    Destaque para lderes como Rodolfo Bambox, Joo

    Alab, Cipriano Abed e Me Aninha ("nao"

    "Ktu"); de Rozena Besseim, Domotinha de Oi e

    Natalina de Oxum ("nao" "Jje") e Joozinho da

    Gomeia, Joo Lessenge e Joo Gamb ("nao"

    "Angola").

    Aps a morte de muitos dirigentes algumas casas

    fecham ou se dispersam em novas casas com seus

    antigos membros. O perodo se caracteriza por

    certas descontinuidades quanto aos locais de

    instalao, do culto e permanncia dos dirigentes no

    Rio de Janeiro.

    H uma forte migrao de baianos para o Rio de

    Janeiro no perodo.

    Anos de 1940 Transferncia das

    comunidades para o

    subrbio da cidade do Rio

    de Janeiro ou para a

    Baixada Fluminense

    Caracteriza-se pelo duplo movimento de fechamento

    de algumas casas e abertura de outras pelos ex-

    membros das casas encerradas. Ao mesmo tempo,

    outras casas se consolidam no cenrio do candombl

    carioca. Podem ser descritas como casas fundadas a

    partir deste perodo: Op Afonj, as comunidades de

    Meninazinha d'xum, Regina do Bambox, Casa de

    Pai Nin, Casa de Me Dila, Casa de Cristvo de

    Efon (inaugurando a "nao" "Efon" no estado),

    Terreiro de Valdomiro de Xang e o Tumba Jussara

    de Manoel Ciriaco de Jesus.

    Anos de 1950 e

    1960

    Fixao das casas nos

    subrbios do Rio de

    Janeiro, Baixada

    Fluminense e Regio de

    Niteri e So Gonalo.

    Manuteno da migrao de baianos para o Rio de

    Janeiro. Fundao do Terreiro de Tata Fomotinho,

    de Zezito de Oxum ("nao" "Ijex); Zezinho da

    Boa Viagem"Angola"); Me Beata de Iemanj.

    Delinha d'Ogum e Janete d'Oxum (tradio

    "Alaketu"); Nitinha d'Oxum, Tet de Oi e Elza de

    Iemanj (tradio da Casa Branca do Engenho

    Velho); Marina de Ossain, Letcia d'Omolu,

    Almerinda d'Oxossi, Edelzuita d'Ogui, Lindinha

    d'Oxum, Margarida d'Oxum, Marta d'Oxum e

    Simone d'Oxossi (tradio do Gantois) e, por fim,

    lvaro P-grande, Benta de Ogum, Teodora

    d'Iemanj e Tomazinha d'Oxum (tradio do

    Engenho Velho de Cima).

    No mesmo perodo chegam ao Rio de Janeiro as

    primeiras casas ligadas ao culto de Bab-Eguns:

    Larcio e Braga, Oj Josiel.

    Consta ainda a entrada da tradio do Bogum de

    Salvador (BA) neste perodo com Margarida

    d'Iemanj e Wildirzinho de Oxumar

    Anos de 1970 aos

    dias atuais

    Manuteno das casas de

    candombl nas periferias

    do Rio de Janeiro e na

    Regio Metropolitana do

    Rio de Janeiro.

    Proliferao de casas de todas as naes, mas com

    especial destaque para as de origem "ketu".

    Fonte: Adaptado de Conduru (2010).

  • 42

    Mapa 3. Dispora das comunidades de Candombl do Rio de Janeiro Do sculo XIX at a atualidade:

    1 - Da segunda metade do sculo XIX at a dcada de 1930

    2 - Anos 1940

    3- Anos 1950 aos dias atuais

    Fonte: Adaptado de Conduru (2010).

    A partir da Tabela 2 podemos perceber um movimento que, surgindo no Centro

    do Rio de Janeiro se transfere primeiro para bairros mais afastados da regio central e

    porturia ocupando reas distantes do centro administra