Dissertacao Sobre a Parangaba

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FRANCISCO CLBIO RODRIGUES LOPES

A CENTRALIDADE DA PARANGABA COMO PRODUTO DA FRAGMENTAO DE FORTALEZA (CE).

Dissertao submetida Coordenao do Curso de Ps-Graduao em Geografia, da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do grau em Mestre em Geografia. Orientador: Prof. Dr. Jos Borzacchiello da Silva.

FORTALEZA 2006

Ficha catalogrfica elaborada pelo Bibliotecrio Hamilton Rodrigues Tabosa CRB-3/888 L852c Lopes, Francisco Clbio Rodrigues A centralidade da Parangaba como produto da fragmentao de Fortaleza (CE) / Francisco Clbio Rodrigues Lopes 160 f. il., color., enc. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2006. Orientador: Dr. Jos Borzacchiello da Silva rea de concentrao: Dinmica Territorial e Ambiental 1. Urbanizao 2. Cidade 3. Policentralidade I. Silva, Jos Borzacchiello da II. Universidade Federal do Cear Mestrado em Geografia III. Ttulo

CDD 910

FRANCISCO CLBIO RODRIGUES LOPES

A CENTRALIDADE DA PARANGABA COMO PRODUTO DA FRAGMENTAO DE FORTALEZA (CE).

Dissertao submetida Coordenao do Curso de Ps-Graduao em Geografia, da Universidade Federal do Cear, como requisito parcial para obteno do grau em Mestre em Geografia.

Aprovada em ___/___/___ BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Jos Borzacchiello da Silva (Orientador) Universidade Federal do Cear - UFC

_________________________________________ Profa. Dra. Edvnia Torres Aguiar Gomes - UFPE

____________________________________________ Profa. Dra. Maria Salete de Souza - UFC

AGRADECIMENTOS

minha famlia pelo carinho, apoio e compreenso, fundamentais nas horas mais difceis deste trabalho. Ao Professor Jos Borzacchiello da Silva por sua pacincia, dedicao e amizade. Aos Professores do Departamento de Geografia da UFC que me ensinaram a procurar a essncia das coisas e rechaar as aparncias. banca do exame de qualificao: Maria Salete de Sousa e Eustgio Wanderley Correia Dantas pelas ricas e importantes contribuies. Aos bolsistas e voluntrios do Laboratrio de Planejamento Urbano e Regional (LAPUR), em especial, Damsio, Jucier e Luciana pela ajuda no trabalho de campo. Aos amigos, antigos companheiros de graduao, que tanto me ensinaram com as suas geografias, Ailton, Dbora, Elizete, France, Regiane, Valdeci e Veridiana. Aos novos amigos da ps-graduao, Alexandre, ngela e Luizianny, pelas conversas, sugestes de leituras e apoio nos momentos difceis. Adriana pelas inmeras leituras da dissertao, crticas e sugestes. Aos funcionrios do Departamento de Geografia da UFC, em especial, Evaldo Maia e Joaquim. Fundao Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (FUNCAP) que financiou a pesquisa e me fez descobrir Parangaba.

Se digo que a cidade para a qual tende a minha viagem descontnua no espao e no tempo, ora mais rala, ora mais densa, voc no deve crer que pode parar de procur-la. talo Calvino

RESUMO A formao da centralidade de Parangaba mediante a fragmentao de Fortaleza o objeto central da presente dissertao. A extenso da mancha urbana ocorreu de forma descontnua e fragmentada. A ausncia de infra-estrutura, equipamentos e servios na periferia e a concentrao deles no centro resultaram num forte adensamento e num sistema virio congestionado, dificultando maiores possibilidades de consumo. A produo de novas centralidades aparece como alternativa. Nessa produo, tem papel fundamental o Poder pblico, com a implantao de uma legislao urbana que favorece a descentralizao. No sudoeste da Cidade, emerge uma centralidade no bairro da Parangaba. O bairro, importante n virio, tem na acessibilidade o elemento mais forte da sua centralidade. A implantao do Sistema Integrado de Transporte e dos terminais de nibus o transformou num ponto de convergncia e disperso de linhas de nibus. Outro elemento importante a presena do comrcio e dos servios. O comrcio, tanto varejista como atacadista, se encontra disperso pelas principais avenidas, embora se identifique maior quantidade de estabelecimentos no centro do bairro. Dentre os servios, destacam-se os de educao e sade. A anlise dos equipamentos de sade revelou que a atrao deles extrapola os limites de Fortaleza. A constituio de uma centralidade tem impacto direto na moradia, pois valoriza o solo, ocasionando fragmentao e segregao. Assistimos nos ltimos anos, com a chegada de condomnios verticais, ao crescimento da favelizao, diversificao do contedo social e segregao. A anlise do movimento da centralidade permitiu o entendimento das condies que produziram uma cidade monocntrica at a dcada de 1970 e, nos decnios seguintes, uma forma policntrica. Em menor proporo, esse movimento foi utilizado para compreender os conflitos no entorno do Terminal de Parangaba. A pesquisa revelou, ainda, que a produo desses novos pontos de acumulao e de atrao de fluxos, definidos como centralidade, surgem como alternativa reproduo do capital, pois permitem o consumo de novos signos urbanos. Palavras-chave: Fragmentao, centralidade e Parangaba.

RESUMEN La formacin de la centralidad de Parangaba por medio de la fragmentacin de Fortaleza es el objeto central de la presente disertacin. La extensin de la mancha urbana ocurri de forma descontinua y fragmentada. La ausencia de infraestructura, equipamientos y servicios en la periferia y la concentracin de ellos en el centro resultaron en un fuerte adensamiento y en un sistema de vas congestionado, dificultando mayores posibilidades de consumo. La produccin de nuevas centralidades aparece como alternativa. En esta produccin, tiene papel fundamental el Poder pblico, con la implantacin de una legislacin urbana que favorece la descentralizacin. En el suroeste de la Ciudad, emerge una centralidad en el barrio de Parangaba. El barrio, importante nudo viario, tiene en la accesibilidad el elemento ms fuerte de su centralidad. La implantacin del Sistema Intregrado de Transporte y de los terminales de autobuses lo transform en un punto de convergencia y dispersin de lneas de autobuses. Otro elemento importante es la presencia del comercio y servicios. El comercio, tanto minorista como mayorista, se encuentra disperso por las principales avenidas, aunque se identifique mayor cuantidad de establecimientos en el centro del barrio. Entre los servicios, se destacan los de educacin y salud. El anlisis de los equipamientos de salud revel que la atraccin de ellos extrapola los lmites de Fortaleza. La constitucin de una centralidad tiene impacto directo en la vivienda, pues valora el suelo, ocasionando fragmentacin y segregacin. Asistimos en los ltimos aos, con la llegada de condominios verticales, al crecimiento de chabolas, a la diversificacin del contenido social y a la segregacin. El anlisis del movimiento de la centralidad permiti el entendimiento de las condiciones que producieron una ciudad monocntrica hasta la dcada de 1970 y, en los decenios siguintes, una forma policntrica. En menor proporcin, ese movimiento fue utizado para comprender los conflictos alrededor del Terminal de Parangaba. La investigacin revel, aun, que la produccin de esos nuevos puntos de acumulacin y de atraccin de flujos, definidos como centralidades, surgen como alternativa a la reproduccin del capital, pues permiten el consumo de nuevos signos urbanos. Palabras-llaves: Fragmentacin, centralidad y Parangaba.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 O Centro e a Estrutura urbana de Fortaleza .................................... FIGURA 2 Estao de Parangaba em 1900....................................................... FIGURA 3 Planta de Arruamento da Povoao de Arronches em 1841............ FIGURA 4 Estrada Fortaleza Parangaba em 1932......................................... FIGURA 5 Caminho Misto: Chevrolet Ano 1959........................................... FIGURA 6 Planta de Silva Paulet (1818)............................................................ FIGURA 7 - Mapa do sistema de transporte por nibus........................................ FIGURA 8 Corredores de Integrao................................................................. FIGURA 9 Apartamento de 52 m2 no Montreal Residence................................ FIGURA 10 - Apartamento de 43 m2 no Montreal Residence............................... FIGURA 11 Condomnio Barcelona.................................................................... FIGURA 12 - Atlanta Residencial.......................................................................... FIGURA 13 Montreal Residence........................................................................ FIGURA 14 rea em torno do Terminal da Parangaba......................................

30 60 62 64 65 99 107 115 129 129 133 133 133 142

FIGURA 15 Circulao em torno do Terminal de Parangaba at maro de 2005....................................................................................................................... 143 FIGURA 15 Circulao em torno do Terminal da Parangaba a partir de maro de 2005....................................................................................................................... 145

LISTA DE FOTOS

FOTO 1 - Parte interna do Mercado Central de Parangaba.................................. FOTO 2 Runas da Usina Evereste.................................................................... FOTO 3 - Cadastro dos feirantes de Parangaba pela SER IV.............................. FOTO 4 Colgio Loureno Filho......................................................................... FOTO 5 Colgio Evolutivo.................................................................................. FOTO 6 Bradesco localizado na Rua Sete de Setembro................................... FOTO 7 Lagoa de Parangaba............................................................................ FOTO 8 - Restaurante popular Mesa do povo.................................................... FOTO 9 Verticalizao ao longo da Avenida Joo Pessoa................................ FOTO 10 - Igreja Matriz Bom Jesus dos Aflitos.................................................... FOTO 11 Chcara na Rua Cnego de Castro................................................... FOTO 12 Favela Vila Nova................................................................................. FOTO 13 Ocupao em torno da lagoa.............................................................. FOTO 14 Residencial Ilha de Vera Cruz............................................................ FOTO 15 Condomnio Evereste.........................................................................

80 80 85 87 87 88 91 92 94 95 122 124 125 127 127

LISTA DE MAPAS MAPA 1 Centralidades em Fortaleza................................................................. MAPA 2 Localizao........................................................................................... MAPA 3 Uso e ocupao do solo....................................................................... MAPA 4 Sistema virio ...................................................................................... MAPA 5 Acessibilidade na rea da Estao Parangaba.................................... MAPA 6 A fragmentao da Parangaba............................................................. 52 74 78 114 117 120

LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Populao do Municpio de Fortaleza 1890 a 2000....................... TABELA 2 Centralidades em Fortaleza 2004.................................................. TABELA 3 Horrios da Companhia Ferro Carril de Porangaba 1903............. TABELA 4 Aspectos Demogrficos de Fortaleza e Regional IV 2000............. TABELA 5 Praas em Parangaba 2006........................................................... TABELA 6 - Corredores de Transporte Coletivo de Fortaleza (CE) 2003........... TABELA 7 Demanda diria de passageiros por canal de transporte 1990...... TABELA 8 - Nmeros do Sistema Integrado de Transportes de Fortaleza 2006 TABELA 9 - Linhas de nibus e sua relao com o Centro 1990 e 2006........... TABELA 10 Empreendimentos imobilirios na regio de Parangaba - 2006... TABELA 11 - Equipamentos de sade em Parangaba 2006.............................. TABELA 12 - Nmeros do Terminal de Integrao da Parangaba 2006............

28 51 63 75 89 101 105 109 111 130 135 140

SUMRIO 1 INTRODUO.................................................................................................... 11

2 A FRAGMENTAO DO URBANO E A FORMAO DE NOVAS CENTRALIDADES EM FORTALEZA.................................................................... 21 2.1 Fortaleza e a fragmentao do urbano........................................................ 2.2 Novas centralidades em Fortaleza............................................................... 2.3 De Porangaba a Parangaba: a produo de centralidade.......................................................................................................... 3 A CENTRALIDADE DA PARANGABA............................................................. 3.1 Formas de apropriao do espao.............................................................. 3.2 Acessibilidade e centralidade...................................................................... 3.2.1 O sistema virio de Fortaleza e a descentralizao comercial..................... 3.2.2 O SIT e a descentralizao do transporte em Fortaleza.............................. 3.2.3 Formas de acessibilidade............................................................................. 3.3 A transformao no espao da moradia: do bairro aos fragmentos........ 3.3.1 Novas formas de moradia............................................................................. 3.4 Equipamentos de sade e centralidade...................................................... 3.5 A Centralidade em movimento..................................................................... 4 CONSIDERAES FINAIS............................................................................... BIBLIOGRAFIA..................................................................................................... APNDICE............................................................................................................ 22 36 uma 56 73 77 98 99 104 112 118 128 135 139 148 151 160

1 INTRODUO

A formao da centralidade de Parangaba mediante a fragmentao de Fortaleza a partir de 1970 o objeto central da presente dissertao. A Cidade, nessa dcada, mantinha-se monocntrica por excelncia, apoiada nos tradicionais corredores radiais. O processo de imploso/exploso responsvel pelo surgimento de uma forma fragmentada e dispersa j aparecia como virtualidade. A imploso/exploso de Fortaleza pode ser entendida a partir da relao entre a industrializao e a urbanizao, bem como desde fatores especficos da sua formao espacial. A urbanizao brasileira, fruto de uma concentrao industrial nas capitais, assumiu maiores propores a partir da segunda metade do sculo XX, resultando num crescimento desordenado das reas urbanas. Nas cidades, a expanso do tecido urbano provocada em grande parte pelo Poder pblico, mediante a implantao de grandes conjuntos habitacionais na periferia, forou a sada da classe de baixo poder aquisitivo das reas centrais e o fortalecimento da coroa urbana metropolitana como o lugar dos excludos, repercutindo num menor grau de insero dos moradores da periferia no conjunto da Cidade e na vida urbana. A dificuldade nos deslocamentos impedia que estes participassem efetivamente da vida urbana, restando-lhes apenas a vida familiar. O surgimento de subcentros para atender as demandas da classe de melhor poder aquisitivo, a qual se retirou das reas centrais, tambm foi responsvel pela expanso do tecido urbano. Esses dois fatores foram apenas alguns dos que contriburam para a fragmentao da Cidade, o que se inicia com o grande boom do setor secundrio no Brasil a partir de 1950. Nesse perodo, a industrializao brasileira intensifica-se. Ainda que concentrada no sudeste do Pas, ela induz uma rpida urbanizao e produz nova rede urbana nacional. As cidades das demais regies, especialmente as capitais, se transformam em grandes centros de redistribuio de produtos industrializados e pontos coletores da produo agrcola de suas respectivas reas de influncia. Fortaleza um exemplo tpico dessa situao, pois o setor

secundrio nunca teve um papel to expressivo na economia e o papel assumido pelo setor de comrcio e servios justifica em parte seu crescimento (SILVA, 2004). Embora a industrializao seja a indutora da urbanizao de forma geral, outras razes devem ser apontadas em virtude da formao espacial de cada lugar. At a primeira metade do sculo XIX, Fortaleza tinha expresso urbana diminuta, sendo inferior aos centros interioranos de Aracati, Ic, Sobral e Crato. A Aracati, em razo do desenvolvimento da indstria da carne de sol (charqueadas) e a da presena do pequeno porto, cabia o comando da faixa litornea. A vila de Ic foi considerada, at o sculo XIX, como principal cidade do serto do Cear, ponto de passagem obrigatrio dos fluxos comerciais entre Pernambuco, Paraba, Bahia e Piau. Em decorrncia da sua localizao, cabia a Ic o comando do serto jaguaribano. Sobral se destacava pela exportao de carnes e couros e sua rea de influncia abrangia o vale do Acara e a regio da Ibiapaba. Crato, localizado no sul do Cear, em funo das suas condies climticas, desenvolveu o cultivo da cana-de-acar e sua influncia abrangia todo o Cariri (SOUZA, 2005). As maiores taxas de crescimento de Fortaleza comearam a ser registradas a partir do final do sculo XIX, quando o Cear entrou na Diviso Internacional do Trabalho DIT como exportador de algodo, atendendo s necessidades da industrializao inglesa. A grande procura pelo algodo cearense decorreu da suspenso temporria da demanda do algodo norte-americano para a Europa, causada pela ecloso da Guerra de Secesso nos EUA.1 A entrada da Provncia na DIT repercutiu diretamente sobre sua capital. A adoo de medidas de cunho poltico e a implantao das inovaes tcnicas (transportes, telecomunicaes, eletrificao e outras) fortaleceram a sua funo porturia e os demais misteres urbanos, acentuando a centralidade da Capital em detrimento das demais cidades cearenses.

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A Guerra de Secesso ocorreu nos Estados Unidos da Amrica entre 1861 e 1865. Consistiu na luta entre os estados do sul e do norte. O sul era caracterizado pela presena do latifndio, trabalho escravo e economia dependente da exportao de produtos da agropecuria. O norte passava por um perodo de expanso econmica graas industrializao, proteo ao mercado interno e mo-de-obra livre e assalariada.

Com o incio do Segundo Reinado no Brasil, em 1840, h uma mudana na organizao poltica do Pas. O novo governo, sob forte presso da classe dominante, adotou medidas de cunho poltico-administrativo2 que visavam centralizao do poder no Estado-Nao e o combate precria autonomia das provncias. A partir dessas medidas, o presidente de Provncia se tornou ali o agente do poder central na gesto dos assuntos poltico-administrativos, econmicos e judicirios. A centralizao na figura do presidente resultou no esvaziamento do poder das municipalidades e, como esse agente estava sediado na Capital, todo o crescimento econmico da Provncia resultava em benefcio de Fortaleza. Outra importante medida foi a reduo de 50% nas tarifas alfandegrias dos produtos exportados a partir do porto de Fortaleza (LEMENHE, 1991). A construo do sistema ferrovirio ligando Fortaleza ao serto, a partir de 1873, propiciou a expanso da rea de influncia da Capital sobre as reas produtoras de algodo. A implantao da ferrovia desestruturou a hierarquia urbana cearense, pois as cidades, dependentes das vias de penetrao natural (os rios) e das estradas antigas, cederam lugar quelas mais prximas dos centros de produo do algodo e beneficiadas pela presena da ferrovia. Todas essas medidas contriburam para que a exportao de algodo cearense fosse feita exclusivamente pelo porto da Capital. O monoplio da exportao do algodo permitiu a Fortaleza o desenvolvimento do comrcio, a acumulao de capital e a implementao de servios urbanos. Diante do crescimento econmico da Cidade como principal entreposto comercial da Provncia, reformas urbanas3 foram realizadas pelo Poder pblico com o intuito de alinhar a Cidade aos padres de civilizao importados da Europa. Dentre essas reformas, destaca-se o plano urbanstico de Adolfo Herbster, em 1875.4

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Lei Interpretativa do Ato Adicional (1840), Reforma do Cdigo de Processos (1841) e recriao do Conselho do Estado e do Poder Moderador (1843). (LEMENHE, 1991). 3 Para maior aprofundamento sobre as reformas urbanas em Fortaleza no sculo XIX ver: Ponte (2004). 4 O plano de Adolfo Herbster atualizava o sistema de traado urbano na forma de xadrez, esboado por Silva Paulet para Cidade em 1818. O plano estendia o alinhamento das ruas at os subrbios, corrigindo becos e vias sinuosas. Esse traado retilneo conferia agilidade ao fluxo de pedestres, carros e mercadorias. (IBID, p.166).

No final dos anos de 1870, o Cear foi atingido por longa estiagem que desestabilizou a sua economia, causando a migrao e a concentrao demogrfica na Fortaleza, pois esta oferecia maior apoio aos retirantes em razo da proximidade com o Poder pblico. H registros de perodos de estiagem no Cear desde as primeiras tentativas de colonizao5, entretanto a seca era muito mais um problema natural do que social. Nos tempos de escassez de chuva, os sertanejos migravam para reas mais midas da periferia do semi-rido e com o retorno das chuvas, voltavam aos seus locais de origem. A partir do sculo XIX, o estado da populao rural cearense se agravou em virtude de dois fatores: valorizao das terras como bem econmico, provocada pela criao da Lei de Terras6 e avano da cultura algodoeira por toda Provncia (NEVES, 2004). Esses dois indicadores contriburam para concentrao da estrutura fundiria e degradao das condies de vida no campo. Com o fim da quadra de estiagem, houve aumento do adensamento populacional e, conseqentemente, maior intensificao dos fluxos de pessoas, mercadorias e veculos. A Cidade comeava a se expandir, acompanhando as estradas de caminho7 para o interior. No incio do sculo XX, Fortaleza transforma-se no principal centro econmico cearense, drenando toda a riqueza produzida, como tambm o excedente da populao rural. O incio do sculo marcado pelo aumento dos conflitos, tenses, greves e aglomeraes no Centro da urbe. Em virtude desses fatores, a elite, residente no Centro, se transfere em 1920 para Jacarecanga (primeiro bairro elegante de Fortaleza). A seguir viriam Praia de Iracema (anos 1930/40) e Aldeota (anos 1940/50), reas ocupadas pela elite, acentuando a diviso da Cidade entre ricos e pobres.

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Pero Coelho, em 1603, construiu um forte na Barra do Cear e no seu entorno surgiu uma pequena localidade chamada Nova Lisboa, entretanto essa primeira tentativa de colonizao do Cear fracassou, em razo das grandes secas que assolaram a nossa regio (SILVA, 1992). 6 A partir da criao dessa lei em 1850, todas as terras devolutas s poderiam ser apropriadas mediante a compra e venda e que o governo destinaria os rendimentos obtidos nessas transaes para financiar vinda de colonos da Europa. Eram consideradas terras devolutas todas aquelas que no estavam sob os cuidados do Poder pblico em todas as suas instncias (nacional, provincial ou municipal) e aquelas que no pertenciam a nenhum particular, sejam estas concedidas por sesmarias ou ocupadas por posse (SILVA, 1984). 7 Os principais caminhos de ligao de Fortaleza com o interior eram: Estrada de Jacarecanga, Estrada de Soure, Estrada de Arronches e Estrada do Aquiraz.

Nos anos 1950, a rea de influncia de Fortaleza abrange todo o Estado do Cear e tambm parte dos estados vizinhos, regies de Parnaba (PI) e de Mossor (RN). As exportaes, antes voltadas para o mercado externo, comeam a ter como destino tambm a regio Sudeste do Pas. O crescimento da Capital e a falta de investimentos no interior do Estado implicam uma atrao sobre a populao rural. Os deslocamentos campo-cidade se intensificam nos perodos de seca prolongada e durante as crises da agricultura tradicional. O crescimento urbano implicou o aumento da pobreza urbana. Intensifica-se a demanda por moradia, a valorizao do solo urbano e o nmero de favelas. O crescimento de Fortaleza foi favorecido nos anos de 1960, por polticas pblicas que privilegiavam o modelo urbano-industrial de desenvolvimento. Dentre elas, a criao da SUDENE (1959), do Distrito Industrial de Fortaleza (1964) e do Banco Nacional da Habitao (1964) e a construo de casas populares. A degradao das condies de vida no campo, com a implantao do Estatuto do Trabalhador Rural8 e a possibilidade de emprego na Capital, contriburam para o aumento das migraes. O disciplinamento do espao da Capital aparecia como necessidade, pois o seu crescimento desordenado contrariava a imagem de cidade moderna, progressista e civilizada, difundida naquele perodo. Em 1963, foi elaborado o Plano Diretor de Fortaleza, de Hlio Modesto. Ele foi baseado nos princpios da Carta de Atenas9, ou seja, agrupamento das funes urbanas nos locais mais adequados ao funcionamento de cada uma e do conjunto. Esse plano propunha normas que objetivavam ativar numerosos centros de bairros em forma retangular, quadrada ou circular, de modo a constituir plos de atrao para as populaes respectivas. Na maioria dos bairros,8

A implantao do Estatuto do Trabalhador Rural em 1964 concedendo aos trabalhadores os mesmos direitos trabalhistas dos urbanos aumentou o xodo rural, j que muitos proprietrios dispensaram seus trabalhadores por no suportar as novas despesas ou no querer pag-las.9

A Carta de Atenas foi elaborada em 1933 por um grupo internacional de arquitetos durante o IV Congresso do CIAM Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. A primeira publicao oficial coube aos Anais Tcnicos, rgo oficial da Cmara Tcnica de Atenas, que publicou em novembro de 1933. Por outro lado, as concluses dos trabalhos foram organizadas e anonimamente publicadas por Le Corbusier em 1941, sob o ttulo de A Carta de Atenas. A Carta de Atenas sintetiza o contedo do Urbanismo Racionalista, tambm chamado de Urbanismo Funcionalista. De acordo com esse modelo de urbanismo, a cidade deveria ser organizada para satisfazer quatro necessidades bsicas: habitar, trabalhar, recrear-se e circular. (LE CORBUSIER, 1989).

entretanto, a rea comercial assumiu a forma dispersa e linear, acompanhando as vias de trfego intenso. Nos anos de 1970, Fortaleza se consolidou como metrpole regional e a sua centralidade atentava contra a prpria Cidade, pois atraa cada vez mais pessoas. Seu crescimento demogrfico causou uma expanso da sua malha urbana e extenso da periferia. Os principais corredores radiais10 de conexo do centro com sua rea de influncia macrorregional orientaram a expanso da Cidade. A descentralizao comercial na cidade ainda era embrionria e no nucleada, dispersa por esses corredores e suas tangenciais, contrariando as normas de zoneamento do Plano Hlio Modesto. Nesse perodo, os bairros da Aldeota, Montese, Parangaba e Messejana despontavam como concentraes comerciais, atendendo, claro, a pblicos diferenciados. A partir do final dos anos de 1980, o desafio tanto do governo do Estado quanto da Prefeitura Municipal e at mesmo da iniciativa privada substituir a imagem de cidade pobre e atrasada, que recebe os flagelados da seca, pela de cidade moderna que atrai turistas11. Na elaborao dessa imagem, as administraes estadual e municipal disputam territrios onde possam realizar intervenes urbansticas e com isso garantir vitria poltica. O grupo que controla o Governo estadual chegou ao poder em 1987, iniciando um novo ciclo na poltica cearense, conhecido como os governos das mudanas12. As administraes mudancistas so caracterizadas por uma poltica de atrao de investimentos e implantao de grandes obras no espao urbano com

Os principais corredores radiais de Fortaleza so: Avenida Bezerra de Menezes/ Mister Hull, Avenida Osrio de Paiva/ Augusto dos Anjos/ Jos Bastos/ Carapinima, Avenida Godofredo Maciel, Joo Pessoa/ Universidade e Aguanambi/ Visconde do Rio Branco. 11 Para maior aprofundamento sobre a mudana da imagem de Fortaleza ver: Dantas (2002a, 2002b), Gondim (2006) e Silva (2000). 12 A opo de usar governos das mudanas em vez de governo (no singular) uma tentativa de esclarecer para o leitor que embora os governadores em suas gestes Tasso Jereissati (1987 - 1990, 1995 -1998, 1998 -2002), Ciro Gomes (1991-1994) e Lcio Alcntara (2002 - ) - compartilhando de uma forma similar de administrar e provenientes do mesmo partido (PSDB), com exceo de Tasso Jereissati, eleito em sua primeira gesto pelo PMDB, ingressando posteriormente no recm-criado PSDB (1988), apresentaram diferenas de estilo de administrao. Gondim (2002), comparando as gestes de Tasso (1987-1990) e Ciro (1991-1994), esclarece que o primeiro gestor encarnou com maior propriedade a autoridade burocrtica, ou seja, maior preocupao com o desempenho eficiente da mquina governamental no seu dia-a-dia e exerccio impessoal de sua autoridade. J o segundo optou por obras de impacto, tpicas de autoridade carismtica; obras apresentadas como um ato de herosmo, tpico de um lder carismtico.

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impacto regional ou metropolitano13. Nos anos de 1990, chega ao Poder pblico municipal o grupo liderado por Juraci Magalhes14. As administraes de Juraci foram marcadas tambm por obras de impacto (viadutos, implantao do Sistema Integrado de Transporte, remodelao do Instituto Dr. Jos Frota, reforma da Praa do Ferreira e construo do calado ao longo da Praia de Iracema). Essas intervenes urbansticas realizadas pelas administraes estadual e municipal contriburam para atrao de empreendimentos industriais, comerciais e de servios. As indstrias, em busca dos incentivos fiscais oferecidos pelo Governo do estado, optaram pelos municpios da Regio Metropolitana de Fortaleza (R.M.F.). Os novos equipamentos comerciais, principalmente as franquias15 e shopping centers, instalaram-se em vrios pontos da Cidade. O setor de servios, fortalecido pela chegada de empreendimentos tursticos nacionais e estrangeiros, concentrou-se em Fortaleza. A pulverizao dessas atividades resultou numa forma urbana descentralizada e fragmentada, na qual os fragmentos mais se justapem do que se articulam. A descentralizao e a subcentralizao dos equipamentos de comrcio e servios distantes do centro histrico produziram novas centralidades: Aldeota, Alagadio So Gerardo, Antnio Bezerra, Barra do Cear, Messejana, Montese, Parangaba e Seis Bocas. Outro importante elemento no enfraquecimento da centralidade do ncleo histrico de Fortaleza foi a implantao do Sistema Integrado de Transporte (SIT), no incio dos anos de 1990. Apoiado no modal nibus, estruturado num sistema tronco/alimentador com terminais de integrao (Antnio Bezerra, Conjunto Cear, Lagoa, Messejana, Parangaba, Papicu e Siqueira) e tarifa nica, o SIT no implantou13

Implantao da rede de esgotamento sanitrio em 1993 (SANEAR), construo do Aeroporto Internacional Pinto Martins e do Espao Cultural Drago do Mar em 1998 e, em fase de implantao, o Trem Metropolitano de Fortaleza METROFOR. 14 As gestes lideradas por Juraci Magalhes (PL) comandaram a Prefeitura Municipal de Fortaleza por 14 anos (1990-2004). Iniciaram-se em 1990, quando Juraci (na poca PMDB), vice-prefeito eleito em 1988 na chapa de Ciro Gomes, assumiu o cargo, quando este ltimo se candidatou a governador em 1990. As gestes que se sucederam a primeira foram: Antnio Cambraia (1993-1996) e Juraci Magalhes (1997-2000 e 2001-2004). 15 Franquia empresarial o sistema pelo qual um franqueador cede ao franqueado o direito de uso de marca ou patente, associado ao direito de distribuio exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou servios e, eventualmente, tambm ao direito de uso de tecnologia de implantao e administrao de negcio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador, mediante remunerao direta ou indireta, sem que, no entanto, fique caracterizado vnculo empregatcio. (Lei n 8.955/94).

nenhum terminal de integrao na rea central. Historicamente, o Centro foi o local de concentrao e disperso dos transportes urbanos e intermunicipais, entretanto o critrio utilizado para localizao dos terminais de transportes urbanos foi a presena dos principais corredores de transporte coletivo (avenida Bezerra de Menezes/ Mr. Hull, Avenida Osrio de Paiva/ Jos Bastos/ Carapinima, avenida Godofredo Maciel/ Joo Pessoa/ Universidade, BR 116/ Aguanambi/ Visconde do Rio Branco e avenida Santos Dumont). No bairro da Parangaba, foram implantados dois terminais de transportes coletivos (Lagoa e Parangaba), contribuindo para o fortalecimento da sua centralidade, pois o lugar se transformou num importante ponto de convergncia dos nibus que atendem ao setor sudoeste da Cidade, confirmando de vez o seu papel de lugar de passagem dentro da malha urbana. Outros equipamentos reforam a polaridade do bairro: Hospital Frotinha, de Parangaba (Hospital Distrital Maria Jos Barroso de Oliveira), Instituto de Medicina Infantil, o ncleo comercial e o plo de lazer do bairro. Parangaba est situada na poro sudoeste. Na diviso oficial da Prefeitura de Fortaleza, o bairro compe a Regional IV. Na diviso da cidade em distritos, realizada pelo IBGE, faz parte do Distrito de mesmo nome16. O bairro, localizado entre importantes eixos de circulao da Cidade17, possui o uso do solo bastante variado. Esta pesquisa analisa a fragmentao de Fortaleza e a formao de novas centralidades na Cidade, destacando a do bairro da Parangaba. Discutimos o papel do Sistema Integrado de Transporte no enfraquecimento da centralidade do centro histrico e fortalecimento das centralidades perifricas. Alm disso, identificamos os principais problemas acarretados pela centralidade na rea central do bairro.

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De acordo com a diviso oficial da Prefeitura Municipal de Fortaleza, os bairros Parangaba, Demcrito Rocha, Panamericano, Couto Fernandes, Benfica, Damas, Montese, Itaoca, Jardim Amrica, Bom Futuro, Parreo, Jos Bonifcio, Ftima, Vila Unio, Aeroporto (Base Area), Serrinha, Itaperi, Dend e Vila Pery compem a Regional IV. J de acordo com a diviso do IBGE, o bairro integra o Distrito da Parangaba. O Distrito da Parangaba composto pelos bairros: Parangaba, Pici, Bela Vista, Panamericano, Couto Fernandes, Demcrito Rocha, Jquei Clube, Vila Pery, Montese, Itaoca, Itaperi, Serrinha, Vila Unio, Aeroporto, Alto da Balana, Aerolndia, Dias Macedo, Castelo e Mata Galinha. 17 O bairro est localizado entre as avenidas Jos Bastos, ao oeste, e Godofredo Maciel ao leste. Alm dessas, o bairro cortado pelas avenidas Joo Pessoa e Osrio de Paiva (sentido norte/ sul) e avenida Ded Brasil (leste/ oeste).

Para ns, Parangaba tem gosto de batata frita e sempre nos lembra a msica As rosas no falam do sambista Cartola. s sextas-feiras, costumvamos ir Churrascaria Ideal, enquanto nossos parentes (me e tia) pediam sempre a mesma msica (As rosas no falam) ao seresteiro. Ns e o primo devorvamos pratos de batata frita e jogvamos videogame. A partir de 1995, a Parangaba apareceu noutro contexto em nossa vida, pois a mudana da nossa famlia para o bairro Itaperi nos imps a condio de usurio do Terminal de Integrao da Parangaba. No que diz respeito s condies de conexo com os demais bairros da Cidade, o Itaperi depende dos terminais urbanos em Parangaba. Na graduao, j estvamos envolvido com pesquisas sobre as questes urbanas, em virtude da nossa participao no Laboratrio de Planejamento Urbano e Regional (LAPUR), como bolsista de iniciao cientfica. As discusses e os trabalhos de campo orientados pelos professores nos ajudaram na reflexo sobre nossas prticas cotidianas. No momento de seleo do Mestrado, optamos por um projeto que discutia os Impactos de Vizinhana do Terminal da Parangaba, entretanto, redefinimos a pesquisa durante o perodo em que cursamos as disciplinas ofertadas pelo curso de Mestrado. Diante da reconfigurao da centralidade intra-urbana em Fortaleza, surgiram alguns questionamentos que indicaram o caminho a ser percorrido. As centralidades resultam da imploso/exploso da Cidade? Quais so os fatores responsveis pela fragmentao de Fortaleza? Parangaba, como bairro, exerce uma centralidade capaz de lhe atribuir a condio de plo urbano perifrico? Os engarrafamentos em torno do Terminal de Parangaba podem ser considerados problemas ligados expresso da centralidade do bairro? O encontro com a obra lefebvriana nos forou a repensar os conceitos trabalhados, pois estes no davam conta da problemtica que tentvamos entender. Os conceitos de fragmentao, centralidade e tecido urbano, bem como as anlises sobre a imploso-exploso das cidades e a dialtica da centralidade, discutidos por Henry Lefebvre (2001, 2004), nos ajudaram na compreenso terica do objeto de estudo. Os

trabalhos desenvolvidos por Souza (1978), Costa (1988), Dantas (1995) e Silva (1992) contriburam para o entendimento de Fortaleza. Com relao metodologia operacional, foram realizadas pesquisas bibliogrfica e documental, consultados os bancos de dissertaes e teses da UFC e UECE, levantados dados em rgos oficiais (PMF, IBGE, ETTUSA) e procedido a trabalho de campo com a realizao de 20 entrevistas. O presente trabalho est dividido em quatro captulos, o segundo dos quais aps esta introduo, que o primeiro est dividido em trs partes. Faz uma anlise da fragmentao de Fortaleza, da formao de novas centralidades na Cidade e das condies histricas que propiciaram o surgimento de uma centralidade em Parangaba. Para tanto, foi necessrio discutir na primeira parte os conceitos de cidade fragmentada, os principais fatores que levaram ao surgimento de uma cidade descontnua e fragmentada e as novas relaes centro-periferia. Na segunda, a anlise histrica da fuga das funes do Centro para outros bairros contribuiu para a compreenso da policentralidade e na deteriorao terica e prtica do Centro. A terceira faz breve recuperao da histria de Parangaba. O terceiro captulo discute Parangaba como uma nova centralidade. O segmento est estruturado em cinco partes. A primeira apresenta as diversas formas de apropriao do espao; a segunda destaca a relao entre acessibilidade e centralidade; a terceira, a fragmentao do espao da moradia; a quarta, a centralidade dos equipamentos de sade; e a ltima enfoca o movimento da centralidade, ou seja, os problemas enfrentados em virtude do seu poder de atrao. Seguem-se as Consideraes Finais, constituintes do ltimo segmento. A fragmentao e a policentralidade so fenmenos que caracterizam as atuais metrpoles, formas resultantes da urbanizao generalizada da sociedade, e de um espao que se reproduz como valor de troca. A fragmentao est presente tanto num plano fsico com o parcelamento acelerado do solo como no social com o aumento da segregao.

2 A FRAGMENTAO DO URBANO CENTRALIDADES EM FORTALEZA

E

A

FORMAO

DE

NOVAS

O objetivo desse captulo realizar uma discusso sobre os fatores responsveis pela fragmentao do urbano e da Cidade e como acontece, a partir dessa dinmica, uma reconfigurao da centralidade intra-urbana em Fortaleza. Objetiva ainda discutir a formao das novas centralidades, destacando o surgimento de uma centralidade no bairro da Parangaba. As transformaes no Centro e na periferia so resultantes da implosoexploso da Cidade, ou seja, a extenso do fenmeno urbano sobre grande parte do territrio em virtude da enorme concentrao (de pessoas, atividades, riquezas, coisas e objetos, instrumentos, meios e pensamentos) na realidade urbana. Ao mesmo tempo, ainda, muitos ncleos urbanos antigos se deterioram ou explodem. As pessoas se deslocam para a periferia e os centros so abandonados para os pobres (LEFEBVRE, 2001; 2004). Para explicar esse decurso de imploso-exploso, responsvel pela fragmentao da Cidade e da realidade urbana, Lefebvre trabalha com o processo geral responsvel pela urbanizao. O autor destaca a industrializao como ponto de partida para essa discusso, apesar da cidade preexistir ao tempo industrial. A industrializao vista como um ror de transformaes radicais de ordem social, econmica e poltica. Entender a urbanizao a partir do desenvolvimento industrial procurar compreender o prprio desenvolvimento do capitalismo. Apesar de a industrializao ser o principal indutor da urbanizao de Fortaleza, outros fatores, em virtude da formao espacial da Cidade18 sero apresentados e discutidos. Spsito (2004), a partir da teoria lefebvriana, destaca a descontinuidade do tecido urbano como responsvel pela fragmentao da cidade e da realidade urbana.

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Modo de produo, formao social, espao so categorias interdependentes. O modo de produo a unidade, a formao econmica e social, a especificidade e os dois s se tornam concretos sobre uma base territorial historicamente determinada, ou seja, o espao (SANTOS, 2005).

importante evidenciar que todos os fatores apontados por ela so resultantes da industrializao, ou seja, dos sistemas de valores trazidos pela sociedade industrial.

1.1 Fortaleza e a fragmentao do urbano

A industrializao sem dvida o principal motor da urbanizao. A cidade condio necessria para instalao da indstria, pois tal como a fbrica concentra os meios de produo num pequeno espao: ferramentas, matrias-primas e mo-de-obra (LEFEBVRE, 2001, p.8). A industrializao e os sistemas de objetos e valores trazidos pela sociedade industrial tais como a generalizao da mercadoria, entretanto, fragmentam a cidade e a realidade urbana. Com relao ao que se entende por cidade fragmentada, Salgueiro (1998, p. 39) a define como uma organizao territorial marcada pela existncia de enclaves territoriais distintos e sem continuidade com a estrutura socioespacial que os cerca. A fragmentao traduz o aumento intenso da diferena e a existncia de rupturas entre os vrios grupos sociais, organizaes e territrios. A cidade fragmentada caracterizada principalmente pela ausncia de relaes entre os seus vrios territrios. Essa nova forma urbana s pode ser entendida a partir da generalizao da terra urbana como mercadoria, em que o acesso desigual ao solo urbano conduz segregao. O urbano como forma e realidade nada tem de harmonioso, pois ele rene os conflitos, principalmente os de classes. Enquanto isso, a segregao pode ser concebida como oposio ao urbano, pois tenta resolver os conflitos de classe separando-as e desagregando os laos sociais (LEFEBVRE, 2004). A fragmentao no plano fsico territorial fruto da fragmentao socioeconmica. O conceito de fragmentao da cidade no exclui o de fragmentao do urbano, na medida em que esto imbricados. A dificuldade de diferenci-los advm da crise terica dos conceitos de cidade e urbano. O conceito de cidade em uso, compese de fatos, representaes e imagens da cidade pr-industrial, ou seja, uma realidade

em transformao. O ncleo urbano (parte essencial da imagem e do conceito da cidade), apesar de estar deteriorado, ainda no desapareceu nem cedeu lugar a uma realidade nova e bem definida. O urbano (a vida urbana e a vida da sociedade urbana) encontra-se em decurso de constituio, definindo-se como realidade inacabada (LEFEBVRE, 2001; 2004). Os territrios e as inmeras territorialidades urbanas19 devem ser entendidos a partir da extenso do tecido urbano20, da perda do sentimento de unio da cidade e de um certo esgotamento do centro como lugar de encontro de todos e da apropriao desses inmeros fragmentos por grupos sociais que se diferenciam uns dos outros, principalmente, porm no exclusivamente, pela sua condio social. A cidade fragmentada caracterizada tambm pelo rompimento da continuidade centro-periferia, ou seja, o fim das cidades mononucleares, caracterizadas pela hiperconcentrao dos servios, dos equipamentos e infraestruturas na rea central, em virtude da multiplicao de atividades que originam novas centralidades na periferia (SALGUEIRO, 1998). Em funo dos novos padres de mobilidade, a rea tradicional perde a exclusividade como principal ponto de venda da cidade, acentuando a disputa por clientes entre os novos plos de comrcio e servios e o centro tradicional. A centralidade tradicional constituda ao longo da histria

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Territrio um espao definido e delimitado por e a partir das relaes de poder, porm , antes de tudo, relaes sociais projetadas em um espao do que um espao concreto em si. Pode ser estvel ou instvel, podendo formarse e dissolver em rpido intervalo de tempo, podendo ter existncia regular ou peridica, ser contnuo ou no, conter um poder exclusivo ou no (SOUSA, 1995). As territorialidades trazem implcito um forte significado de pertena do grupo a uma poro do espao, que muitas vezes se expressa por modos especficos de comportamento. Ao mesmo tempo, essas relaes indivduo-territrio servem como uma forma de comunicao de limites e cdigos comportamentais aos indivduos que no compartilham dos mesmos interesses e expectativas (CAMPOS, 1999). O tecido urbano pode ser descrito utilizando o conceito de oecossistema (sic), unidade coerente constituda ao redor de uma ou vrias cidades, antigas ou recentes. [...]. Com efeito, o interesse do tecido urbano no se limita sua morfologia. Ele o suporte de um modo de viver mais ou menos intenso e degradado: a sociedade urbana. [...]. Semelhante modo de viver comporta sistema de objetos e sistema de valores. Os mais conhecidos dentre os elementos do sistema urbano de objetos so a gua, a eletricidade, o gs (butano nos campos) que no deixam de se fazer acompanhar pelo carro, pela televiso, pelos utenslios de plstico, pelo mobilirio moderno, o que comporta novas exigncias no que diz respeito aos servios. Entre os elementos do sistema de valores, indicamos os lazeres (danas, canes), os costumes, a rpida adoo das modas que vm da cidade. E tambm as preocupaes com a segurana, [...], em suma uma racionalidade divulgada pela cidade (LEFEBVRE, 2001, p. 11-12).

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e reforada pela implantao rgida dos transportes sobre trilhos implode com a expanso do automvel.[...] a criao de novas centralidades contribuindo para lanar as bases de uma estrutura policntrica de territrios ligados em rede custa da perda da importncia do centro tradicional e da estrutura monocntrica de base hierrquica, ao mesmo tempo em que favorece a proliferao de implantaes de tipo pontual (centros comerciais, condomnios de luxo, grandes edifcios de escritrios, conjuntos de habitao social, parques temticos), isoladas, ou no seio de territrios com outro uso, que adquirem grande visibilidade e se opem organizao tradicional em manchas homogneas. Representam a reapropriao da centralidade por atividades e grupos sociais de maior poder econmico que se vm justapor ao tecido preexistente e introduzem rupturas bruscas entre os territrios ocupados pelos vrios grupos e organizao que embora sejam contguos no apresentam qualquer continuidade (SALGUEIRO, 1998, p. 42).

A imploso do modelo tradicional centro-periferia causada inicialmente pelo deslocamento das funes antes exercidas exclusivamente pelo centro em direo as classes mais abastadas da cidade. A fuga das atividades consideradas essenciais ao modo de vida urbano, tais como os hipermercados, lavanderias, videoclubes, restaurantes, escritrios de advocacia, clnicas mdicas, lojas, butiques, shopping centers, cinemas, bancos, reparties pblicas, e at mesmo os seus locais de trabalho, permitem que a elite abandone o centro de vez e com isso inicie a deteriorao prtica dessa rea. A deteriorao prtica do centro corresponde, portanto, ao abandono do centro pelas camadas de alta renda e em sua tomada pelas camadas populares (VILLAA, 1998). A desconcentrao ou descentralizao da funo comercial conduz criao de centros de troca perifricos, servindo s reas urbanas determinadas, ou aproveitando-se de uma situao na rede de fluxos cotidianos da metrpole. A descentralizao da funo comercial do centro redefine a funo deste na cidade, tornando-se o foco varejista e de servios para segmentos sociais de nveis de renda mais baixos (CASTELLS, 1983).

Essa desconcentrao ou descentralizao deve ser entendida tambm a partir da transformao no regime de acumulao capitalista, ou seja, a passagem do fordismo para flexibilizao21. A flexibilidade em tcnicas de produo, mercados de trabalho e nichos de consumo produziu uma cidade fragmentada, dispersa, formada por heterotopias22, onde imperam a proximidade fsica e a distncia social. importante destacar a transformao no papel do consumo no cotidiano das pessoas nessa transio para a acumulao flexvel, pois a acelerao do tempo de giro na produo envolveu aceleraes paralelas na troca e no consumo. Essa transio no foi marcada apenas pela implantao de novas formas organizacionais e de novas tecnologias produtivas, mas tambm importantes transformaes na distribuio e consumo. Na arena da troca, podemos citar os sistemas aperfeioados de comunicao e de fluxo de informaes, associados com racionalizaes nas tcnicas de distribuio (empacotamento, controle de estoques, conteinerizao, retorno do mercado etc.). Enquanto isso no campo do consumo, as transformaes seguiram duas tendncias principais: a passagem do consumo de bens para o consumo de servios e a acelerao do ritmo do consumo no somente em termos de roupas, ornamentos e decorao, mas tambm numa ampla gama de estilos de vida e atividades de recreao (HARVEY, 2005). Todas essas transformaes no regime de acumulao permitiram s indstrias novas opes de localizao. No Cear, as antigas indstrias e as novas oriundas do Centro-Sul a partir dos anos de 1990, se instalam nos municpios da Regio Metropolitana e, em menor proporo, nas regies do Cariri e Sobral. As novas21

A acumulao flexvel se apia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padres de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produo inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de servios financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovao comercial, tecnolgica e organizacional. A acumulao flexvel envolve rpidas mudanas dos padres do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regies geogrficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado setor de servios, bem como conjuntos industriais completamente novos em regies at ento subdesenvolvidas [...]. Ela tambm envolve um novo movimento que chamarei de compresso do espao-tempo no mundo capitalista os horizontes temporais da tomada de decises privadas e pblicas se estreitam, enquanto a comunicao via satlite e a queda dos custos de transportes possibilitam cada vez mais a difuso imediata dessas decises num espao cada vez mais amplo e variegado (HARVEY, 2005, p. 140). Heterotopias: o outro lugar e o lugar do outro, ao mesmo tempo excludo e imbricado. Desde que se considerem os ocupantes dos lugares, a diferena pode ir at o contraste fortemente caracterizado, e mesmo at o conflito (LEFEBVRE, 2004).22

escolhas so motivadas pelos incentivos fiscais, infra-estrutura gratuita e mo-de-obra barata. A diminuio na rea destinada produo em Fortaleza provoca uma recomposio da estrutura urbana, expressa sob diferentes formas de expanso e de periferizao do tecido urbano: abertura de loteamentos urbanos (destinados a diferentes padres ocupacionais), instalao de pequenos equipamentos para a realizao de um consumo imediato e aparecimento de grandes equipamentos comerciais e de servios (shopping centers e hipermercados). Essas mudanas so de fundamental importncia para compreenso do surgimento das novas centralidades, do abandono do centro pela elite e de sua tomada pelas classes populares. O abandono do centro pela classe de maior poder aquisitivo vem acompanhado tambm do abandono do centro pelo Poder pblico, ressaltando aqui o poder que esse estrato exerce sobre o Estado, ao ponto de a rea central de Fortaleza se tornar o Centro da periferia, ou seja, destinado a abastecer a periferia distante, principalmente os conjuntos habitacionais e bairros totalmente desprovidos de qualquer infra-estrutura (SILVA,1992, 2001). Cabe aqui tambm a contribuio importante de Santos (2003), quando, ao estudar o caso de Lima (Peru), acentua que a periferia est no plo. O entendimento dessa afirmao s possvel numa cidade onde essa estrutura rgida centro-periferia ou plo-periferia, onde o centro caracterizado pela concentrao dos equipamentos, infra-estrutura e servios urbanos e a periferia em contraposio caracterizada pela ausncia, se desfez e o que se evidencia agora so inmeros centros que concorrem entre si. O conceito de periferia de Santos (2003, p. 82) deixa bem claro por que a rea central agora o centro da periferia:A noo de periferia estava at aqui carregada da noo de distncia, que constitui de longe, o fundamento da maior parte das teorias espaciais e locacionais. A essa noo de periferia, dita geogrfica, preciso opor uma outra, a de periferia socioeconmica, se levarmos simultaneamente em considerao os lugares tornados marginais ao processo de desenvolvimento e, sobretudo, os homens rejeitados pelo crescimento.

O entendimento desse tipo de cidade s possvel a partir de uma anlise do fenmeno da urbanizao no contexto geral do capitalismo. Assim, em alguns casos h uma ampliao macia da cidade e uma urbanizao (no sentido amplo do termo) como pouca industrializao. (LEFEBVRE, 2001, p.10). Lefebvre (2001) explica que a urbanizao com incipiente industrializao caracteriza grande parte das cidades da Amrica do Sul e da frica, cidades cercadas por favelas, e resultante da dissoluo das antigas estruturas agrrias e de um modelo de explorao destinado a desaparecer pelo jogo dos preos mundiais, o qual depende dos pases - plos de crescimento industriais; logo, essa urbanizao tambm depende da industrializao. Fortaleza cidade singular, pois o setor secundrio, diferentemente da regio Sudeste, nunca teve um papel to grande na economia da Cidade, pois esta sempre teve como setor fundamental o tercirio, ou seja, o comrcio e a prestao de servio, como se pode perceber em Silva (1992, p.37):O processo de industrializao no ocorreu aqui no Cear com as mesmas caractersticas evidenciadas na regio Centro-Sul do pas, [...]. Mesmo a nvel de Nordeste, so bem maiores e mais implementados os parques industriais de Recife e Salvador do que o de Fortaleza.

A concentrao das indstrias, portanto, inicialmente na zona oeste da Cidade e depois na sua Regio Metropolitana23, no pode ser apontada como nico fator responsvel pelos deslocamentos campo-cidade. Algumas razes que explicam o crescimento urbano e a urbanizao24coincidem com a concentrao fundiria no campo, as longas secas, o papel do algodo na economia cearense a partir do sculo XIX e o fortalecimento da funo porturia de Fortaleza e das demais funes urbanas,23

Em 1973, foram estabelecidas pelo Governo Federal, por intermdio da Lei n. 9800, 8 regies metropolitanas brasileiras (So Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belm e Fortaleza). A Regio Metropolitana de Fortaleza (R.M.F) era formada por cinco municpios. Alm da Capital, faziam parte inicialmente os Municpios de Aquiraz, Caucaia, Pacatuba e Maranguape. A criao das regies metropolitanas tinha como objetivo expandir o modelo de desenvolvimento urbano-industrial mediante o fortalecimento das principais reas urbanas do Pas a partir da concentrao de plos industriais nessas regies. 24 O crescimento urbano um processo espacial e demogrfico e refere-se importncia crescente das cidades como locais de concentraes da populao numa economia ou sociedade particular. A urbanizao, por outro lado, um processo social e no espacial que se refere s mudanas nas relaes comportamentais e sociais que ocorrem na sociedade (CLARK, 1991).

e conseqentemente, da atrao que a Capital exercia sobre as demais regies do Cear. O crescimento da Capital cearense est vinculado grande quantidade de migrantes provenientes da zona rural do Estado. Os dados apresentados na tabela 1 mostram o crescimento da populao de Fortaleza a partir do sculo XIX. O maior crescimento intercensitrio, de 129,4 %, ocorre entre as dcadas de 1920 e 1940. Os principais fatores que explicam esse crescimento j foram apresentados neste trabalho, entretanto importante reforar a importncia da Lei de Terras, de 1850, a seca de 1930 e o trmino da implantao da via frrea. A via frrea Fortaleza Baturit comeou a ser implantada em 1873 e chegou ao Cariri em 1927, ligando a Capital ao extremo sul do Cear. A ferrovia tinha como objetivo facilitar o escoamento do algodo do interior pelo porto de Fortaleza, entretanto contribuiu na acentuao da mobilidade populacional, resultando em altas taxas de crescimento demogrfico.

TABELA - 1 Populao do Municpio de Fortaleza 1890 a 2000. Ano 1890 1900 1920 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000 Populao de Fortaleza 40.902 48.369 78.536 180.185 270.169 514.813 857.980 1.308.919 1.767.637 2.138.234 Crescimento Intercensitrio 18,2 62,2 129,4 49,9 90,5 66,6 52,5 35,0 20,96

FONTE Dados para Fortaleza, Perodo de 1890 a 1970 Sinopse Preliminar do 8 Recenseamento Geral. Dados Para 1980 e 1991: Sinopse Estatstica do Brasil 1980. FIBGE in SILVA,1992, p. 36 e CENSO do FIBGE de 1991 e 2000.

Coincidentemente com os pressupostos de Lefebvre, a urbanizao de Fortaleza fruto da industrializao, embora o setor secundrio nunca tenha sido o principal da sua economia, pois o momento em que a Cidade se torna hegemnica, superando as importantes cidades do perodo colonial - Aracati, Ic e Sobral - ocorre a partir da segunda metade do sculo XIX, quando Fortaleza e o prprio Estado do Cear so inseridos na Diviso Internacional do Trabalho como exportadores de algodo para a Inglaterra, que vivia a sua primeira Revoluo Industrial. O papel desempenhado por Fortaleza nesse perodo permitiu a urbanizao da vila. Na qualidade de capital da Provncia do Cear, Fortaleza exercia a funo de espao onde se realizavam as trocas entre os produtos primrios, gado e algodo, pelos industrializados. A produo de um espao urbano no foi apenas produto dessas trocas, mas tambm condio, j que o investimento em estradas (rodagem e ferrovia), pontes, porto e casas comerciais tinha como objetivo facilitar as trocas das mercadorias e a reproduo do capitalismo mundial (SILVA, A., 2005). Alm desses fatores apontados, a produo capitalista da Cidade, pautada na terra como mercadoria e nos interesses fundirios e imobilirios, impulsionaram a expanso territorial de Fortaleza, bem como a ocorrncia de vazios urbanos, dentro desse tecido urbano expandido (FIG. 1). De acordo com Spsito (1999), dentre os fatores responsveis pela extenso territorial das cidades, de forma descontnua e fragmentada, esto o avano tcnico, marcado, principalmente, pela inveno da eletricidade e pela difuso do automvel que permitiu o distanciamento entre os lugares da moradia e os de abastecimento, a localizao perifrica dos grandes equipamentos comerciais e as escolhas locacionais realizadas pelo Poder pblico, para implantao dos grandes conjuntos habitacionais.

FIGURA 1 O Centro e a Estrutura urbana de Fortaleza (vias, conjuntos habitacionais e vazios urbanos). FONTE - P.M.F., 2004 a.

Na R.M.F, os primeiros grandes conjuntos habitacionais Jos Walter, Tabapu e Cidade 2000 comearam a ser instalados pelo Estado, por meio do BNH25, no final da dcada de 1960. Foram construdos em reas distantes, descontnuas malha urbana, onde o preo da terra era mais barato. Os conjuntos de habitao social construdos nos anos de 1970 eram caracterizados por ter grandes dimenses, localizao perifrica, serem mal servidos de transportes e mal articulados com as estruturas preexistentes. Segundo Salgueiro (1998), os conjuntos foram responsveis, em grande parte, pela introduo de uma imensa ruptura na paisagem urbana em termos de imagem e cultura urbana. Os conjuntos de habitao social, frutos do populismo estatal e, portanto, de uma periferia planejada, marcam de vez o fim da cidade como unidade, pois so localizados numa periferia desurbanizada e desubarnizante e, no entanto, dependente da cidade. O conjunto o isolamento da funo habitacional do restante da cidade, portanto, a realizao do habitat em detrimento do habitar26, o fim de uma conscincia urbana, ou seja, a de participar de uma vida social e coletiva (LEFEBVRE, 2001). A periferia planejada fruto de uma urbanizao desurbanizante, pois ela priva os moradores da possibilidade de se inserirem no conjunto da vida urbana, uma vez que, enquanto o centro portador da possibilidade da centralidade, como lugar da concentrao dos meios de consumo coletivo e individual e do simblico institudo historicamente, a periferia, em contraposio a negao (SPSITO, 2004, p.290), j que caracterizada pela ausncia dos meios de consumo coletivo ou, quando existem, eles no funcionam em virtude da sua precariedade.

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A partir de 1964, o regime ditatorial, com sua poltica antiinflacionria, provocou recesso e achatamento dos salrios. Para conquistar o apoio de setores populares, o Estado adotou o discurso que proclamava ser a habitao popular um problema fundamental, criando em 1964 o Banco Nacional da Habitao BNH. Em 1967, o Banco passou a receber 8% da folha de pagamento de quase todos os assalariados, atravs do Fundo de Garantia do Tempo de Servio (FGTS). O BNH foi extinto em 1987 e o programa habitacional foi transferido Caixa Econmica Federal CEF (COSTA, 1988). 26 De acordo com Lefebvre (2001), o conceito de habitar significa participar de uma vida social, de uma comunidade, aldeia ou cidade. Significa, ainda, a modelagem do espao pela apropriao dos grupos e indivduos de suas prprias condies de existncia. J a noo de habitat, ainda incerta, est ligada racionalidade imposta pelo Estado, quotidianeidade completa e ao emprego rgido do tempo que se inscreve nesses espaos.

Os conjuntos, quase sempre so construdos em reas isoladas. Apesar de possurem os equipamentos tidos como bsicos, como escolas, postos de sade, posto policial e centro comunitrio (estes ltimos, em alguns). Os mesmos no funcionam, na maioria das vezes. [...]. Alm da precariedade destes servios [...], os moradores dos conjuntos reclamam muito da infraestrutura bsica no que se refere ao abastecimento dgua, qualidade do revestimento das vias de acesso aos conjuntos, insuficincia da rede de esgoto sanitrio, deficincia do servio de coleta de lixo, de policiamento, etc., alm da quase inexistncia de comrcio local. Tal situao quase generalizada nos conjuntos habitacionais da Regio Metropolitana de Fortaleza. Quanto aos transportes, alm do preo alto das passagens so raros e aqueles que dependem do transporte ferrovirio, contam com a desvantagem de ter que fazer longos percursos a p, at que se alcance a estao do trem. (SILVA, 1992, p. 67-68).

O panorama descrito por Silva (1992) data do final dos anos de 1980 e incio de 1990, entretanto, mesmo aps uma dcada em que foi escrito, continua atualizado, j que a situao no mudou muito. Talvez a grande diferena, daquele perodo para hoje, seja o incipiente desenvolvimento do comrcio nessas reas. O texto evidencia, ainda, o isolamento dos conjuntos habitacionais, a desurbanizao das reas onde foram construdos, a urbanizao desurbanizante a que foram submetidos seus moradores em decorrncia da desintegrao social das reas em relao ao restante da Cidade, em virtude da carncia e da precariedade dos equipamentos coletivos que lhes foram oferecidos. Outro elemento importante a ser destacado a distncia desses conjuntos em relao ao Centro de Fortaleza, pois foram construdos no Municpio de Maracana e, apesar de o municpio possuir um distrito industrial, os empregos oferecidos no eram suficientes para atender os seus novos moradores, restando como opo os empregos de Fortaleza. Logo, os longos deslocamentos dirios casatrabalho-casa levam valorizao do lar em detrimento da cidade. Os lazeres no Centro ficam cada vez mais difceis, assim como a vivncia do urbano, pois o cansao acumulado durante a semana, a carncia de transporte coletivo nos fins de semana e o salrio miservel tornam os moradores refns de seus prprios territrios, restando como opo de lazer apenas a vida em famlia.

Entre os anos de 1967 e 1976, foram construdas 15 mil unidades habitacionais com recursos do BNH, levando ao declnio relativo dos aluguis (SOUZA, 1978). O que motivava, entretanto, tantas pessoas a irem morar nesses lugares isolados? A ideologia propagada pelo Estado da casa prpria. [...] todos so convidados a seguir o pressuposto da vida privada como uma conquista da Humanidade. Progressivamente constri-se a imagem da home como signo e condio indispensvel da felicidade. (PERROT, 1988, p. 124). O Estado, principalmente a esfera municipal, teve papel fundamental na disperso e fragmentao urbana, que se inicia na dcada de 1970. A implantao dos planos diretores, mais especificamente a partir do PLANDIRF (Plano de Desenvolvimento Integrado da Regio Metropolitana), em 1971, contribui para a expanso do tecido urbano. Esse Plano abrangia medidas de reestruturao do espao de assentamento e de expanso urbana, mediante investimentos em infraestrutura, objetivando a integrao dos municpios da Regio Metropolitana de Fortaleza. Estas medidas deveriam aumentar a fluidez dos mercados e da fora de trabalho, entretanto favoreceram a disperso e, indiretamente, o crescimento do mercado imobilirio (FERNANDES, 2004). Alm dos planos diretores que direcionaram a expanso da Cidade, os municpios da R.M.F realizaram alteraes em suas legislaes, como a converso da terra rural em urbana, com o objetivo de arrecadar mais impostos, especificamente o IPTU (Imposto Predial Territorial Urbano). Essa manobra poltica tinha como finalidade diminuir a arrecadao dos impostos federais que recaem sob as terras rurais brasileiras. Tais alteraes contriburam para o parcelamento desordenado das reas urbanas, o surgimento dos inmeros loteamentos sem qualquer infra-estrutura, no limite dos permetros urbanos, a fragmentao do tecido urbano com o surgimento dos vazios (SILVA, 1992). Essas alteraes favoreceram diretamente os novos proprietrios fundirios da Cidade e promotores imobilirios, pois a converso lana novos lotes no mercado, aquecendo o setor imobilirio. Os vazios urbanos funcionam como reserva de valor, espera da valorizao.

Spsito (2004) explica que, na maioria das cidades brasileiras, h um processo simultneo e articulado de descontinuidade territorial e continuidade espacial, ou seja, no plano da forma urbana, a constituio de rupturas no tecido urbano e, no plano das dinmicas e processos, a realizao da integrao espacial. O principal agente responsvel por esse processo o setor imobilirio, j que este lana no mercado novos loteamentos urbanos no limite da urbe, pois os preos desses novos terrenos so bem mais baratos do que os localizados na rea central. Isso ocorre, gerando reas urbanas em descontnuo ao tecido urbano j constitudo. A condio essencial para o lanamento desses lotes no mercado imobilirio a acessibilidade (uma avenida ou seu prolongamento, uma estrada vicinal ou at mesmo uma rodovia), pois, atravs dela, que a integrao espacial vai se realizar, inicialmente permitindo a chegada das linhas de nibus, depois da infra-estrutura de luz, gua e esgoto, telefonia, televiso e Internet, promovendo, portanto, a integrao espacial da rea recm-implantada, sem que haja a continuidade territorial urbana. Numa sociedade capitalista extremamente desigual, onde o acesso aos bens de consumo coletivo, ou seja, aqueles que proporcionam a integrao espacial, tambm desigual, pois, para existir consumo, necessrio ter renda, poderamos nos reportar tambm a uma desigualdade nessa integrao, pois algumas reas so mais distantes ou menos integradas espacialmente, sejam elas perifricas ou no. Aqueles que possuem o automvel, ou seja, uma mercadoria que permite uma mobilidade espacial que as qualidades humanas em virtude das limitaes fsicas no permitem - e aqui poderamos falar at mesmo num certo fetichismo27 - realizam a integrao espacial mais facilmente, entretanto, grande parte da populao, ou seja, [...] os mais pobres ficam refns dos territrios em que habitam e pouco integrados espacialmente, [...]. (SPSITO, 2004, p. 206).

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A existncia do automvel, como instrumento de circulao e utenslio de transporte, apenas uma poro de sua existncia social. O carro smbolo de posio social e de prestgio. Nele tudo sonho e simbolismo: de conforto, de poder e de prestgio (LEFEBVRE, 1991).

Silva (2001), ao analisar a cidade de Fortaleza, considera o deslocamento intra-urbano como um dos sete pecados da capital, ou seja, os sete maiores problemas enfrentados pelos fortalezenses, pois o sistema de transporte coletivo em nibus ainda no atende toda demanda reprimida em termos de desejo de deslocamento, permitindo maior integrao no interior da Cidade. O baixo poder aquisitivo com certeza o principal entrave dessa mobilidade espacial. De acordo com pesquisa divulgada pelo Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Pblico de Qualidade para Todos (MDT), 35 % dos residentes em Fortaleza se deslocam a p porque no podem pagar a tarifa (DIRIO DO NORDESTE, 25/11/2005). A bicicleta surge tambm como alternativa de deslocamento, entretanto os ciclistas arriscam suas vidas na disputa com carros particulares, nibus e caminhes por espaos nas avenidas, j que as ciclovias existentes no esto interligadas. Entender a periferia apenas como geomtrica limitaria este estudo a uma viso reducionista da cidade, impossibilitando a anlise mais aprofundada da cidade fragmentada. Os aglomerados urbanos brasileiros so marcados pela diversificao dos espaos que compem as reas mais distantes do centro histrico, em virtude da pluralidade de contextos e prticas socioespaciais que caracterizam seus espaos perifricos. A periferizao do tecido urbano orientada tanto pelo surgimento de usos e formas (condomnios fechados destinados s classes de mdio e alto poder aquisitivo e novos espaos de comercializao de bens e servios) como pelos loteamentos ilegais, favelizao e conjuntos habitacionais destinados classe de baixo aquisitivo. Portanto, do ponto de vista conceitual, no caberia apenas uma noo de periferia a uma dada realidade urbana, delimitada no tempo e no espao (SPSITO, 2004).

2.2 Novas centralidades em Fortaleza

A centralidade urbana pode ser abordada em duas escalas territoriais: a intra-urbana e a de rede urbana. No primeiro nvel, possvel enfocar as diferentes formas de expresso dessa centralidade, tomando como referncia o territrio da cidade ou da aglomerao urbana, a partir de seu centro ou centros. No segundo nvel, a anlise toma como referncia a cidade ou aglomerado urbano principal em relao ao conjunto de cidades de uma rede (SPSITO, 1998). No caso dessa anlise sobre a cidade de Fortaleza, enfocaremos a centralidade no interior, entretanto no exclumos a relao da Cidade com sua regio. A centralidade intra-urbana pode ser concebida como um processo que inclui vrios momentos histricos.A primeira fase corresponde obviamente formao da cidade. A segunda refere-se expanso e ao primeiro momento de diferenciao interna do centro. A fase seguinte definida por expressiva reorganizao interna, que se estende at etapas mais avanadas do crescimento. Por ltimo, h que destacar a descentralizao das funes tercirias para outras partes da cidade. A este esquema bastante operacional e com fortes evidncias empricas, so acrescentados processos recentes de reabilitao dos centros histricos, os vrios projetos de recobrar a memria urbana e a fora da tcnica como formadora do tecido comercial (VILAR, 2002). Conforme Carlos (2001), a centralidade diz respeito constituio de lugares como ponto de acumulao e atrao de fluxos, centro mental e social que se define pela reunio e pelo encontro. uma forma nela mesma vazia, que demanda um contedo, ou seja, as relaes prticas, os objetos, os atos e as situaes. Demanda, portanto, simultaneidade de tudo o que se possa reunir e, conseqentemente, acumular em um ponto ou em torno desse no espao. Na reproduo do espao da metrpole, porm, produz novas centralidades que surgem como ns articuladores de fluxos e lugares de acumulao e, de outro lado, apresenta uma estrutura menos complexa que o Centro histrico.

A descentralizao das atividades centrais que ocorre em Fortaleza leva a um espraiamento das atividades e dos equipamentos de comrcios e servios e recentralizao de tais atividades em novas reas centrais. A partir dos anos de 1970, com crescimento espacial e populacional acelerado, aflora a fragmentao do espao, com o conseqente incio da formao de mais reas centrais afastadas do centro tradicional. Corra (1997) levanta algumas hipteses sobre as causas da

descentralizao nas cidades brasileiras, dentre elas os congestionamentos, em suas mltiplas manifestaes, que eliminaram as vantagens locacionais, criando deseconomias de aglomerao; ou seria conseqncia do crescimento demogrfico e da expanso do espao urbano, tornando o ncleo central progressivamente mais distante das novas reas. Ainda de acordo com o mesmo autor, a descentralizao origina outras formas espaciais. Muitas so espontneas, como os subcentros comerciais hierarquizados, os eixos e reas especializadas, e as outras so planejadas, como shopping centers. A policentralidade no algo espontneo ou natural, mas orientado por inmeros agentes sociais, principalmente pela classe de maior poder aquisitivo, em parceria com Poder pblico, at mesmo porque os interesses destes se confundem. A atuao de ambos tem papel fundamental na deteriorao terica ou ideolgica e prtica do centro. O avano dos meios de transporte28, inicialmente o bonde sob trao animal, depois o eltrico e finalmente o automvel, permitiu maior mobilidade espacial, o que o trem preso a uma estrutura fixa no permitia. medida que evoluam, a classe mais abastada se distanciava do centro, permitindo maior diviso espacial do trabalho, j que a rea central de Fortaleza era o locus da produo, da circulao e do consumo. A classe de maior poder aquisitivo j no precisava morar na rea central onde era o seu local de trabalho, entretanto, at mesmo em funoO transporte coletivo de bonde sob trao animal foi iniciado em 1880, pela Companhia Ferro Carril. substitudo por bondes eltricos, em 1913/1914, da The Cear Tramway, Light and Power, Ltdt. Em 1909, chega Capital o primeiro automvel. Algumas ruas centrais forma pavimentadas com paraleleppedos (COSTA, 2005).28

da fragilidade dos primeiros meios de transportes, ela no se distanciou tanto da rea central. Os primeiros bairros com vocao habitacional se localizaram ao oeste e ao sul de Fortaleza, respectivamente Jacarecanga e Benfica. Alm deles, a elite tambm se deslocou para o leste e o norte da Cidade, entretanto estas reas tinham como objetivo atenderem uma demanda por lugares de veraneio e de lazer, com a construo das primeiras chcaras, no atual bairro do Meireles, e de residncias secundrias nas praias de Iracema. (DANTAS, 2002b, p. 51). A imbricao entre o avano dos meios de transportes e a expanso urbana de Fortaleza de fundamental importncia para se entender a valorizao de novas reas na Cidade e a sada da classe abastada do Centro, pois o surgimento dos primeiros bairros nobres, casares e chcaras de famlias ricas provenientes do interior, s ocorreu no final do sculo XIX, perodo que corresponde chegada do bonde de trao animal em 1880. Alm disso, esses bairros geralmente se localizavam prximos linha do bonde ou at mesmo no final das linhas. Na zona oeste, aps o cemitrio So Joo Batista, prximo ao riacho Jacarecanga, surge o bairro de mesmo nome, onde os representantes da burguesia comercial e agrria se fixaram em belssimos casares e bangals. Para atender as necessidades de servios educacionais dessa classe, instalado em 1935 o novo prdio do Liceu do Cear, na Praa Fernandes Vieira, hoje conhecida popularmente como praa dos Bombeiros. importante salientar que, durante muito tempo, desde a sua implantao at a dcada de 1970, o Liceu foi considerado um dos melhores estabelecimentos de ensino da Cidade e, em virtude da rigidez do seu processo de seleo, grande parte de seus alunos procedia da classe mais abastada. Seguindo o antigo caminho de Arronches, em direo ao sul da Cidade, em zona arborizada, comea a se organizar, tambm no final do sculo XIX, o bairro do Benfica, em cuja paisagem se destacavam os maravilhosos sobrados, bangals, chcaras e casas mais recuadas, pertencentes a famlias importantes, dentre elas, a dos banqueiros Frota Gentil.

J a ocupao em direo ao norte, em especial em direo Praia de Iracema antiga Praia do Peixe, tinha como finalidade atender as novas prticas martimas modernas de lazer29 e veraneio importadas da Europa e que contagiavam as principais cidades litorneas brasileiras, inicialmente o Rio de Janeiro, capital do Brasil na poca, e depois as demais.A antiga praia do Peixe ocupada por residncias e clubes das classes abastadas. O veraneio instaura-se com a construo de casares como o do Coronel Porto (1926 atual Estoril), os clubes estruturam-se a partir da construo da primeira sede do Nutico Atltico Cearense (1929), na praia Formosa, ao lado da ponte metlica (DANTAS, 2002b, p. 52).

As razes que motivaram a elite a se afastar do centro histrico de Fortaleza foram as seguintes: a primeira relaciona-se ao fenmeno de especializao do Centro da Cidade. Fruto da especializao do mercado fundirio urbano, ele induz a transferncia das residncias das classes abastadas para a periferia, do mesmo modo que o impedimento do acesso dos pobres. A segunda diz respeito s diretrizes dominantes dos planos urbansticos que provocam valorizao de determinadas reas, em detrimento de outras. A terceira, de carter tecnolgico, marcada pela chegada do automvel, que permitiu s classes mais abastadas se distanciarem da rea central, sem deixar de satisfazer suas necessidades materiais e imateriais (DANTAS, 2002b). A transformao do bairro Jacarecanga na mais promissora concentrao industrial do Cear, a poluio fabril, a localizao da populao operria e, posteriormente, o surgimento das favelas foram os motivos para que a burguesia deixasse as belas residncias do bairro Jacarecanga e do Benfica e escolhesse nova rea distante da presena incmoda das indstrias e dos operrios. A Aldeota surge no momento em que se registram as primeiras favelas da Cidade, instaladas em reas desvalorizadas prximas ao Centro, principalmente no litoral oeste.

29

Sobre prticas martimas modernas em Fortaleza, ver Dantas (2002b) e Linhares (1992).

A origem dos aglomerados com caractersticas de favelas em Fortaleza datam do incio da dcada de 30, pois entre os anos de 1930 1955 surgiram as seguintes favelas: Cercado do Z Padre (1930), Mucuripe (1933), Lagamar (1933), Mouro do Ouro (1940), Varjota (1945), Meireles (1950), Papoquinho (1950), Estrada de Ferro (1954). (SILVA, 1992, p. 29).

O surgimento das primeiras indstrias txteis em Fortaleza estava ligado crise que o algodo brasileiro vinha enfrentando no mercado internacional, em virtude da concorrncia do produto norte-americano. Alm da queda do preo do produto, outros fatores que influenciaram o aparecimento das indstrias foram o alto custo do transporte e o tipo de embalagem requerida. Como sada para amenizar a crise do setor algodoeiro nas principais reas produtoras do Brasil, surgiram fbricas txteis, com a finalidade de consumir os excedentes da produo e conseqentemente amenizar a crise. A Fbrica de Fiao e Tecidos Cearenses, fundada em 1882, localizou-se na avenida Princesa Isabel, no Centro, considerada a primeira fbrica txtil. Em Fortaleza, as primeiras unidades fabris se concentravam nas proximidades do Centro, mas, com o crescimento da Cidade e evoluo dos meios de transportes, foram se distanciando do permetro central e se aglomerando, principalmente, na zona oeste, tomando como referncia o Centro, ao longo do eixo virio da avenida Francisco S, antiga estrada do Urubu. A facilidade de obteno de gua, o baixo valor dos terrenos, a proximidade com o Centro, a presena da ferrovia e a construo de oficinas de reparos de vages do Urubu30 foram fatores determinantes para que as indstrias se instalassem nesta rea.31 A partir dos anos de 1950, se acentuaria espacialmente a diviso social e funcional da Cidade, dividida em trs grandes partes: o centro comercial e financeiro, a zona industrial e trabalhadora ao oeste, seguindo a Avenida Francisco S, e zona leste, lugar das residncias e do lazer das camadas mais abastadas. Ao longo daOs pavilhes das oficinas da Rede de Viao Cearense, posteriormente Rede Ferroviria Federal RFFSA, e atual Companhia Ferroviria do Nordeste CFN, foram projetados por Emlio Baumgart e inaugurados a 4 de Outubro de 1930. Estavam localizadas margem da chamada Estrada do Urubu, pavimentada em 1928 para dar acesso tanto s futuras oficinas como ao porto de desembargue de hidroavies na Barra do Cear, um pouco mais frente. Chamava-se Estrada do Urubu, por conduzir ao Crrego Urubu, hoje desaparecido com a expanso da malha urbana. (CASTRO, 1990). 31 Sobre o incio do processo de industrializao do Cear ver Amora (1978) e Nobre (1989) e sobre a ligao entre a indstria e a desvalorizao do lado ocidental de Fortaleza ver Souza (1978) Silva (1992), e Lopes (2004).30

avenida Santos Dumont, organizava-se um bairro tipicamente residencial, com ruas largas, belos casares e sobrados. O Palcio do Plcido de Carvalho, localizado no final da linha do bonde, marca o incio da construo, ao leste, de residncias de alto de luxo e, juntamente com ele, outras construes, como o Colgio Militar e a Igreja do Cristo-Rei que, so os precursores da formao de uma nova rea destinada burguesia de Fortaleza. De acordo com Silva (1992), a existncia de nico centro em Fortaleza esteve ligada concentrao da elite comercial e financeira na rea central com seus estabelecimentos comerciais, de servios e outros negcios, como tambm suas residncias. Durante muitos anos, o Centro foi o local dos clubes mais elegantes, praas arborizadas com bancos destinados animao e ao lazer. Da mesma forma, as grandes casas de espetculos, como o Theatro Jos de Alencar e os cinemas, ali estavam concentrados. O porto nas suas proximidades reforava-o cada vez mais como rea central de negcios. No momento em que a elite deixa de ser refm do espao, permitida pela vulgarizao do automvel, e passa a viver em lugares mais distantes do centro, h um deslocamento do centro na sua direo. Villaa (1998) defende a tese de que a elite, na medida que detm alto controle sobre o Estado e o mercado imobilirio, tambm detm sobre o espao urbano e o sistema de locomoo, que a fora preponderante de estruturao do espao urbano, inclusive nos deslocamentos dos centros principais.A dcada de 1960 marcou, em todas as nossas metrpoles e mesmo em cidades mdias, o incio do desenvolvimento de grandes sub-regies urbanas de comrcio e servios voltados para as camadas de alta renda; para essas sub-regies transferiram-se lojas, consultrios, cinemas, restaurantes, bancos, profissionais liberais, estabelecimentos de diverso, etc. que atendiam quelas camadas e que se localizavam no centro principal. (...). A partir da dcada de 1970, at mesmo os shopping centers passaram a se localizar dentro dessas enormes sub-regies urbanas, e as cidades mdias comearam a apresentar um esvaziamento de seus centros principais, embora de maneira to aguda quanto nas metrpoles. Nesse esvaziamento, o Estado teve papel de destaque em muitas cidades, com a construo de centros administrativos, fruns, prefeituras, etc. fora dos centros principais e na direo e at dentro das reas residenciais nobres da cidade. (VILLAA, 1998, p. 277).

Souza (1978) esclarece que, no final dos anos de 1970, Fortaleza ainda era uma cidade mononuclear, caracterizada pela ausncia de verdadeiros centros de bairros e sua estrutura urbana era marcada por um processo de hiperconcentrao no ncleo central. Apresentava, entretanto, uma tendncia de descentralizao de algumas funes, tais como administrativas e comerciais, para outras reas da Cidade. Dentre essas novas reas comerciais, destacavam-se dois ncleos de maior expresso nos bairros da Aldeota e outro no Montese. Outras pequenas concentraes comerciais ainda eram evidentes, na zona industrial da Francisco S e nas praas de Parangaba e Messejana. Ainda de acordo com Souza, essa incipiente polinucleao de Fortaleza ocorria de forma desigual, pois as duas principais reas comerciais apresentavam grandes diferenas. O comrcio da Aldeota, localizado principalmente em torno das avenidas Santos Dumont e Baro de Studart, j era caracterizado como um comrcio de luxo, ou seja, filiais de lojas sediadas no Centro, que visavam a atender uma classe de maior poder aquisitivo. Outro fator que contribuiu para o fortalecimento da sua centralidade comercial foi a inaugurao em 1974 do primeiro shopping de Fortaleza O Center Um, em plena av. Santos Dumont, principal artria do bairro. Ao longo da dcada de 1970, vrias reparties pblicas foram transferidas do Centro para o bairro, acentuando-se principalmente aps a localizao do Palcio da Abolio, sede do Governo estadual, na avenida Baro de Studart. Alm do Palcio, algumas secretarias estaduais e municipais, a Assemblia Legislativa, a Cmara Municipal e at mesmo a sede de entidades administrativas do Poder Pblico Federal, como a Receita Federal, foram deslocadas ou implantadas na Aldeota. H um deslocamento do centro de deciso do centro histrico para essa nova centralidade, pois somente as sedes dos bancos Central, do Brasil, do Nordeste e da Caixa Econmica, juntamente com as sedes de outros bancos particulares, permaneceram no Centro, bem como, a Prefeitura (at o incio dos anos 90) e outros rgos pblicos municipais e federais. (DANTAS, 1995, p. 92-93). A chegada desses estabelecimentos comerciais causou uma transformao no uso e ocupao do solo do bairro, pois as antigas manses eram adaptadas nova funo.

Fernandes

(2004)

explica

que

o

elemento

fundamental

para

a

transformao do uso do solo do bairro foi a Lei de Uso e Ocupao do Solo de 1979, fruto das presses do mercado imobilirio nascente e dos proprietrios de terras na zona leste da Cidade, que incentivava a verticalizao e o adensamento, pois estabelecia os maiores ndices de concentrao e gabarito, respectivamente mximo de 95 m e 75 m, para rea central e a sua zona de entorno imediato, ou seja, a rea situada ao oeste, sul e leste do Centro, delimitada pelo primeiro anel perifrico conformado pelas avenidas Jos Bastos, Treze de Maio, Pontes Vieira e ramal ferrovirio Parangaba - Mucuripe. A classificao do uso do solo da Aldeota passou de ZR-1 (Zona Residencial de baixa densidade) para ZR-3(Zona Residencial de alta densidade). O Montese organizou-se em torno de dois eixos, inicialmente ao longo do caminho percorrido pelos rebanhos bovinos que se dirigiam ao antigo matadouro municipal, cuja denominao atual a avenida Gomes de Matos, e depois, ao longo da avenida Alberto Magno. A sua avenida principal desempenha o papel de conexo rodoviria, acentuada depois da sua pavimentao e da ligao desta com a avenida Borges de Melo, o que resultou no desvio do trfego da avenida Capistrano de Abreu.Trata-se de um centro comercial linear com aproximadamente um quilmetro de extenso, que corta os bairros Jardim Amrica, Bom Futuro e Montese. No primeiro trecho, observamos um plo industrial de microempresas de vesturio e acessrios. As suas duas avenidas principais so consideradas corredores de atividades pela Lei de Uso e Ocupao do Solo atual. Neles, podemos observar diversas atividades comerciais e de servios, constatando-se uma especializao no comrcio varejista de peas de carros, que fazem do bairro, depois do Centro o primeiro em nmero de estabelecimentos (P.M.F., 1991). A diferena bsica entre essas duas centralidades que, enquanto a primeira surgiu para atender uma classe de alto poder aquisitivo, por isso se especializou no comrcio de luxo, servios bancrios especializados e outros servios em geral. A do Montese surgiu inicialmente para atender um pblico de passagem e motorizado, por isso a grande concentrao de lojas de autopeas;

depois passou a atender a um pblico de baixo poder aquisitivo. De acordo com Souza (1978), o limitado poder aquisitivo da populao do bairro no teria sido capaz de estimular o comrcio, embora no se pudesse negar a importncia da elevada densidade demogrfica e de ser uma rea contgua a Parangaba. A supervalorizao que a Aldeota e seu bairro vizinho, Meireles, passaram na dcada de 1970 em virtude da busca de novos espaos pela burguesia que residia nas imediaes do Centro, levou verticalizao acelerada na rea e criao de bairros em reas menos privilegiadas, porm contnuas Aldeota, em direo ao sudeste. A valorizao desses dois bairros estava ligada concentrao da infra-estrutura, de servios e equipamentos urbanos, alm, claro, do comrcio. Para mostrar a concentrao dessas infra-estruturas pelo Poder pblico no bairro, basta utilizar apenas o servio de esgotamento sanitrio em Fortaleza, pois, at dcada de 1990, mais especificamente aps a implantao do projeto SANEAR, s 17% da Cidade eram atendidos por esse servio, e essa poro correspondia exatamente ao Centro e seu entorno imediato e Aldeota e os seus bairros circunvizinhos.32 O Estado teve papel fundamental na valorizao de novas reas ao leste da Aldeota e na incorporao da rea da gua Fria, bem como no surgimento de inmeros bairros, como Papicu, Coc, Edson Queiroz, Alagadio Novo e Cambeba. Esses novos bairros eram antigos stios rurais que foram incorporados Cidade como novos redutos da classe mdia e mdia alta, com a finalidade de atender a necessidade de uma classe que queria permanecer