Dissertação_paulo Vilhena Da Silva

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE EDUCAÇÃO MATEMÁTICA E CIENTÍFICA CURSO DE MESTRADO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS E MATEMÁTICAS PAULO VILHENA DA SILVA O APRENDIZADO DE REGRAS MATEMÁTICAS: uma pesquisa de inspiração wittgensteiniana com crianças da 4ª série no estudo da divisão BELÉM - PA 2011 Não é possív el exibir esta imagem no momento.

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DISCUSSÃO SOBRE O APRENDIZADO DE REGRAS MATEMÁTICAS

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAR

    INSTITUTO DE EDUCAO MATEMTICA E CIENTFICA CURSO DE MESTRADO DO PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    EM CINCIAS E MATEMTICAS

    PAULO VILHENA DA SILVA

    O APRENDIZADO DE REGRAS MATEMTICAS: uma pesquisa de inspirao wittgensteiniana com crianas da 4 srie no estudo da diviso

    BELM - PA

    2011

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  • PAULO VILHENA DA SILVA

    O APRENDIZADO DE REGRAS MATEMTICAS: uma pesquisa de inspirao wittgensteiniana com crianas da 4 srie no estudo da diviso

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao em Cincias e Matemticas do Instituto de Educao Matemtica e Cientfica da Universidade Federal do Par, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao em Cincias e Matemticas. Orientadora: Profa. Dra. Marisa Rosni Abreu da Silveira

    BELM - PA 2011

  • PAULO VILHENA DA SILVA

    O APRENDIZADO DE REGRAS MATEMTICAS: uma pesquisa de inspirao wittgensteiniana com crianas da 4 srie no estudo da diviso

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao em Cincias e Matemticas do Instituto de Educao Matemtica e Cientfica da Universidade Federal do Par, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Educao em Cincias e Matemticas. Orientadora: Profa. Dra. Marisa Rosni Abreu da Silveira

    Defesa: Belm-PA, 01 de Maro de 2011. COMISSO EXAMINADORA _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Marisa Rosni Abreu da Silveira (Orientadora) IEMCI/UFPA _________________________________________________________________________ Profa. Dra. Cristiane Maria Cornelia Gottschalk FEUSP _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Renato Borges Guerra IEMCI/UFPA. _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Francisco Hermes Santos da Silva (Suplente) IEMCI/UFPA

    BELM - PA 2011

  • Dedico este trabalho:

    meus pais:

    Raimunda e Manoel

  • Agradeo

    A meus pais, pelo carinho e por proporcionarem a possibilidade e as condies necessrias para a elaborao deste trabalho;

    Em especial, minha me, por ser a melhor me do mundo;

    Elma pelo apoio durante todo esse tempo. Obrigado amor!;

    minha orientadora, professora Marisa Silveira (UFPA), pela pacincia, por tudo

    que me ensinou e principalmente pela confiana depositada em meu trabalho; Ao professor Renato Guerra (UFPA) pelas crticas firmes que colaboraram para a

    concluso deste trabalho. professora Cristiane Gottschalk (USP) pela enorme ajuda na compreenso das idias de Wittgenstein e pela pacincia em me atender inmeras vezes.

    A todos da Escola de Aplicao da Universidade Federal do Par, em especial turma onde fiz minha pesquisa e professora responsvel;

    Ao Otvio Barros, pela ajuda na coleta dos dados na Escola de Aplicao da

    Universidade Federal do Par. A todos do Grupo de Estudos em Linguagem Matemtica (GELIM/UFPA) que sempre colaboram em suas discusses; A todos os amigos do IEMCI, em especial todos da turma de Mestrado de 2009;

    Universidade Federal do Par e ao Instituto de Educao Matemtica e Cientfica por tudo que fazem pelos alunos;

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) pelo

    apoio financeiro a mim cedido.

  • O que fornecemos so propriamente anotaes sobre

    a histria natural do homem; no so curiosidades,

    mas sim constataes das quais ningum duvidou, e

    que apenas deixam de ser notadas, porque esto

    continuamente perante nossos olhos. (IF, 129).

  • Resumo

    Neste trabalho, investigamos o aprendizado de regras matemticas no contexto da sala de

    aula, com nfase, principalmente, nas discusses sobre a linguagem. Nosso objetivo

    principal foi pesquisar as dificuldades de ordem lingstica, enfrentadas pelos alunos no

    decurso do aprendizado das regras matemticas, em especial, o conceito/algoritmo da

    diviso. Para tanto, discutimos, entre outras coisas, o tema seguir regras, proposto pelo

    filsofo austraco Ludwig Wittgenstein em sua obra Investigaes Filosficas. Nosso

    trabalho e nossas anlises foram fundamentadas, principalmente, na filosofia deste autor,

    que discute, entre outros temas, a linguagem e sua significao e os fundamentos da

    matemtica, bem como nas reflexes do filsofo Gilles-Gaston Granger que analisa as

    linguagens formais. Realizamos uma pesquisa de campo que foi desenvolvida na Escola de

    Aplicao da Universidade Federal do Par, em uma turma da quarta srie do ensino

    fundamental. As aulas ministradas pela professora da turma foram observadas e,

    posteriormente, foi solicitado aos alunos que resolvessem problemas de diviso verbais e

    no-verbais, seguido de uma breve entrevista, na qual indagamos, entre outras questes,

    como os alunos resolveram os problemas envolvendo a diviso. Em nossas anlises

    destacamos algumas dificuldades dos alunos, percebidas nas observaes e em seus

    registros escritos ou orais: alguns alunos, em suas estratgias de resoluo, inventam novas

    regras matemticas. H ainda aqueles que confundem os contextos na resoluo de

    problemas matemticos verbais, bem como a dificuldade de compreenso de problemas

    que trazem informaes implcitas.

    PALAVRAS-CHAVE: Linguagem, compreenso de problemas matemticos, diviso,

    filosofia de Wittgenstein.

  • Abstract

    In this study, we investigated the learning of mathematical rules in the context of the

    classroom, emphasizing, primarily, the discussions about language. Our main goal was to

    investigate the linguistic difficulties, faced by students during the learning of mathematical

    rules, in particular, the concept / division algorithm. To this end, we discuss, among other

    things, the theme "following rules" proposed by the Austrian philosopher Ludwig

    Wittgenstein in his Philosophical Investigations. Our work and our analysis were based

    primarily on this author, who discusses, among other themes, language and their meaning

    and foundations of mathematics, as well as the reflections of philosopher Gilles-Gaston

    Granger who analyzes the formal languages. We conducted a field survey that was

    developed at the school of pedagogical application of the Federal University of Par, in a

    class of fourth grade. The lessons taught by the classroom teacher was observed and later

    the students were asked to solve division problems, verbal and nonverbal, followed by a

    brief interview in which we ask, among other issues, how students solve problems

    involving the division. In our analysis we highlight some students' difficulties, perceived in

    observations and in their written records or oral: some students, in its resolution strategies,

    invent new mathematical rules". There are still those who "confuse" the contexts in

    solving verbal mathematical problems as well as the difficulty of understanding the

    problems that bring implicit information.

    KEY WORDS: Language, understanding of mathematical problems, mathematical

    division, Wittgenstein's philosophy.

  • Sumrio

    INTRODUO ................................................................................................................. 10

    CAPTULO 1: CAMINHO METODOLGICO ........................................................... 14

    O NASCIMENTO DA PESQUISA ................................................................................. 14

    PROBLEMA DE PESQUISA ......................................................................................... 15

    OBJETIVOS .................................................................................................................... 15

    Objetivo geral ............................................................................................................... 15

    Objetivos especficos ................................................................................................... 15

    JUSTIFICATIVA ............................................................................................................ 16

    METODOLOGIA ............................................................................................................ 17

    CAPTULO 2: LINGUAGEM, LINGUA, LINGUAGEM NATURAL E

    LINGUAGEM MATEMTICA ...................................................................................... 20

    LINGUAGEM E LNGUA .............................................................................................. 20

    LINGUAGEM MATEMTICA ..................................................................................... 22

    CAPTULO 3: ALGUMAS REFLEXES DE WITTGENSTEIN .............................. 25

    OS VRIOS JOGOS DE LINGUAGEM .................................................................... 25

    SEMELHANAS DE FAMLIA ................................................................................ 29

    AS REGRAS NA FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN ............................................... 32

    AS REGRAS MATEMTICAS ................................................................................. 37

    O CONCEITO DE COMPREENSO EM WITTGENSTEIN ................................... 44

    CAPTULO 4: ALGUMAS REFLEXES PARA O ENSINO DE MATEMTICA 48

    O USO DE PROBLEMAS VERBAIS NO ENSINO DA MATEMTICA ............... 48

    A LINGUAGEM NO ENSINO DA MATEMTICA ................................................ 50

    O CONCEITO E SEUS CONTEXTOS ....................................................................... 54

    FAZ OU NO FAZ SENTIDO: UM CONCEITO VAGO ......................................... 57

    CAPTULO 5: A PESQUISA EM SALA DE AULA ..................................................... 59

    A SALA DE AULA: OS ALUNOS E A PROFESSORA ............................................... 59

    Os alunos ...................................................................................................................... 59

  • A professora ................................................................................................................. 59

    AS OBSERVAES EM SALA DE AULA .................................................................. 61

    A PRIMEIRA AVALIAO DE MATEMTICA ....................................................... 67

    A ATIVIDADE PROPOSTA AOS ALUNOS ................................................................ 72

    ANLISE A RESPEITO DAS RESPOSTAS DOS ALUNOS ...................................... 73

    As estratgias utilizadas pelos alunos ....................................................................... 75

    O contexto no aprendizado de regras ........................................................................... 77

    A compreenso de problemas verbais .......................................................................... 80

    Erros cometidos no seguimento das regras do algoritmo da diviso ........................... 82

    O CASO DE LUCIANA .................................................................................................. 85

    CONSIDERAES FINAIS ............................................................................................ 87

    REFERNCIAS ................................................................................................................ 92

    ANEXOS ............................................................................................................................ 97

  • 10

    Introduo

    Os indicadores da eficcia da educao bsica em escalas mundial e nacional, como

    o Programa Internacional de Avaliao de Alunos1 (PISA) e o Sistema de Avaliao da

    Educao Bsica2 (SAEB), respectivamente, apontam que a matemtica uma das

    disciplinas que traz mais dificuldades aos alunos e consequentemente aos professores que a

    ensinam. A situao parece paradoxal, visto que a despeito das dificuldades encontradas na

    sua aprendizagem, um conhecimento presente em vrios campos do saber da sociedade.

    Neste sentido, algumas teorias de aprendizagem e tendncias educacionais tem sido

    adotadas visando contribuir com o ensino e com a aprendizagem da matemtica. Alguns

    educadores matemticos discutem sobre a problemtica de o aprendiz desempenhar bem

    seu papel com clculos no cotidiano e fracassar nas atividades escolares, como tambm o

    fato de alguns alunos saberem usar regras e algoritmos de forma abstrata, mas no

    compreenderem os enunciados dos problemas matemticos escritos em linguagem natural.

    Nesta pesquisa, apostamos na discusso de um tema que recentemente vem

    chamando a ateno dos estudiosos e professores da educao matemtica: a linguagem. A

    linguagem est imersa em todas as nossas atividades do dia-a-dia, como trabalhar, brincar,

    estudar, assistir a televiso ou ensinar matemtica.

    Tanto a linguagem matemtica quanto a linguagem natural obedecem a regras;

    assim, nosso interesse principal investigar as dificuldades enfrentadas pelos alunos no

    decorrer do aprendizado e aplicao das regras matemticas, em especial o aprendizado do

    conceito de diviso.

    O ensino da matemtica, como de qualquer outra disciplina, baseado na

    comunicao atravs da linguagem materna, seja nas explicaes do professor, nas

    exposies do livro didtico, nos enunciados dos problemas matemticos ou ainda nas

    perguntas dos alunos. Assim, cabe questionar se as dificuldades dos alunos, nessa

    disciplina, no se devem, entre outros fatores, a questes relacionadas linguagem.

    Visto os interesses de nossa pesquisa, parece-nos relevante que discutamos, entre

    outras coisas, a respeito de linguagem natural e linguagem matemtica, bem como suas

    1 Para mais detalhes consulte: http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/

    2 Para maiores informaes veja: http://www.inep.gov.br/basica/saeb/default.asp

  • 11

    particularidades. Assim, para desenvolver este trabalho, recorreremos, entre outros autores,

    principalmente s reflexes dos filsofos Gilles-Gaston Granger, no qual buscamos suas

    idias a respeito de lnguas e linguagens formalizadas, e do filsofo Ludwig Wittgenstein,

    no qual buscamos algumas de suas reflexes de sua filosofia da linguagem e de sua

    filosofia da matemtica.

    Apesar de Granger muitas vezes tratar de temas distintos dos tratados por

    Wittgenstein, muitas de suas reflexes sobre linguagens formais nos ajudaram a

    compreender algumas das afirmaes de Wittgenstein3, bem como nos apiam em algumas

    de nossas discusses. Inclusive Moreno (2008) aponta como profcua uma aproximao

    da filosofia de Granger filosofia dos usos das palavras de Wittgenstein.

    Wittgenstein trabalhou como professor de ensino fundamental em algumas cidades

    austracas e, segundo Chauvir (1991), a experincia pedaggica do filsofo contribuiu

    para o amadurecimento de sua filosofia posterior.

    Conforme relata Moreno (2000), Wittgenstein decidiu tornar-se educador e formou-

    se professor de ensino fundamental, trabalhando como mestre em cidades do interior da

    ustria como Trattenbach, Puchberg-am-Schneeberg e Otterthal. Nesta ltima escreveu e

    publicou um dicionrio para uso em escolas primrias das aldeias austracas, com cerca de

    seis mil palavras. O dicionrio explicitava a gramtica segundo o dialeto dos estudantes, de

    acordo como era falado pelas crianas. O filsofo criticava os dicionrios tradicionais, pois

    acreditava que as crianas deveriam compreender o significado das palavras conforme as

    usavam no seu cotidiano. Para tanto, seria preciso considerar, no processo de

    aprendizagem, o contexto em que os usos das palavras eram efetivados.

    Embora Wittgenstein tenha tido experincias como professor, seus escritos no

    tinham como tema a educao, nem mesmo suas preocupaes eram pedaggicas, mas sim

    filosficas. Entretanto algumas questes como: Como se ensina isso? ou Como isto

    aprendido?, que intrigam os filsofos (em especial o filsofo Ludwig Wittgenstein),

    tambm so de interesse dos educadores (cf. MACMILLAN, 1995).

    Em sua obra mais famosa, as Investigaes Filosficas, Wittgenstein critica a

    dieta unilateral da concepo referencial da linguagem ou seja, a exigncia de um

    isomorfismo entre linguagem e realidade que ele mesmo afirmara ser correta no

    Tractatus Logico-Philosophicus, livro publicado em 1921, o nico editado em vida.

    3 No estamos afirmando que de alguma forma a filosofia de Granger explicite a filosofia de Wittgenstein.

  • 12

    A partir de meados da dcada de trinta, Wittgenstein observa, entre outras coisas,

    que usamos frases inteligveis, sem que, no entanto, as palavras apontem para algum

    objeto no mundo real, como por exemplo, a conhecida frase de Bertrand Russell: o atual

    rei da Frana careca, de modo que Wittgenstein precisou reconsiderar o seu velho

    modo de pensar e teve de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro

    livro4 (IF5, prefcio).

    Baseados nas ideias do filsofo, que vamos discutir sobre as dificuldades de se

    ensinar e de se aprender matemtica como tambm algumas concepes e propostas

    educacionais presentes na prtica pedaggica desta disciplina, a saber, a contextualizao

    dos conceitos ensinados e o uso da resoluo de problemas nas aulas.

    Este trabalho est organizado em cinco captulos, alm da introduo e das

    consideraes finais.

    No captulo um, tratamos do caminho metodolgico da pesquisa, no qual expomos

    como e por que este trabalho foi idealizado; tratamos da pergunta da pesquisa, ou seja,

    aquilo a que nos propomos a pesquisar/responder; os objetivos, que mostram de que forma

    responderemos a pergunta da pesquisa; a justificativa que, como o prprio nome esclarece,

    justifica por que esta pesquisa pertinente para o campo da Educao Matemtica e, por

    fim, trazemos a descrio da metodologia utilizada, na qual descrevemos e justificamos os

    procedimentos utilizados para a concretizao deste trabalho.

    O segundo captulo aborda noes e algumas caractersticas de lngua, linguagem,

    linguagem comum (ou natural), bem como da linguagem matemtica, um exemplo de

    linguagem formal segundo Granger (1974), sobre a qual discutimos a respeito de sua falta

    de oralidade e sua impregnao com a linguagem natural no sentido apontado por

    Machado (1993).

    No terceiro captulo, apresentamos algumas ideias e conceitos de Wittgenstein,

    como jogo de linguagem e semelhanas de famlia. Tratamos do tema seguir regras,

    discutimos sobre a natureza das proposies matemtica, bem como apresentamos o

    conceito de compreenso, tal como visto pelo filsofo. Discutimos, por exemplo, como 4 Em geral nos apoiamos na traduo das Investigaes Filosficas para o portugus feita por Jos Carlos Bruni (coleo os pensadores), exceto nos casos que utilizamos nossa prpria traduo da verso em ingls de G.E.M. Anscombe. 5 Ao citar as obras de Wittgenstein, usaremos uma maneira que talvez no parea muito comum, mas que bastante natural entre os comentadores das obras do filsofo. Usamos as iniciais do ttulo da obra para indic-la (por exemplo, IF para Investigaes Filosficas), seguida do nmero do aforismo do qual a citao foi retirada (exceto nos casos que citamos trechos de partes no organizadas em aforismos). As siglas utilizadas encontram-se nas referncias, logo aps o ttulo do livro.

  • 13

    uma mesma palavra pode indicar aes diferentes, como algum segue regras e o que

    significa compreender algo.

    No captulo quatro, propomos uma noo e uma sucinta discusso a respeito da

    soluo de problemas matemticos, visto que o ensino da matemtica pautado, tambm,

    em problemas matemticos. Oferecemos algumas observaes sobre as dificuldades

    lingusticas enfrentadas pelos aprendizes de matemtica, pois o ensino da matemtica

    feito via linguagem natural. Trazemos tambm algumas consideraes sobre o ensino e o

    aprendizado da matemtica, no qual propomos discutir, entre outras coisas, o conceito

    matemtico e seus contextos.

    No ltimo captulo, descrevemos e discutimos a respeito de nossa pesquisa de

    campo, no qual damos alguns detalhes da sala de aula, dos alunos, da professora e sua

    prtica docente, bem como, obviamente, trazemos os resultados de nossa pesquisa e nossas

    anlises, organizadas em quatro sesses de anlise, de acordo com o referencial adotado.

  • 14

    Captulo 1: O caminho metodolgico

    1.1 O nascimento da pesquisa

    Alm da satisfao do aperfeioamento profissional, este trabalho nasceu de minhas

    reflexes e inquietaes a respeito das dificuldades de se aprender e de se ensinar

    matemtica. Desde a graduao, percebia que um dos obstculos, meus e de meus colegas,

    em disciplinas como Clculo Diferencial e Integral era compreender as proposies da

    teoria, bem como a escrita matemtica e o enunciado, escrito em linguagem natural, dos

    exerccios que os professores solicitavam que solucionssemos. Quando o significado das

    frases matemticas tornava-se claro, ficava bem mais simples entender a teoria e resolver

    os exerccios, pois sabamos o que tnhamos de fazer.

    Nas minhas experincias docentes, percebi algo semelhante no que diz respeito

    aprendizagem dos alunos. Nos problemas ditos contextualizados problemas matemticos,

    escritos em linguagem natural, que sugerem uma situao real , os alunos tem

    dificuldades de compreender o conceito matemtico presente no texto. De modo

    semelhante, no desenvolvimento do contedo com as explanaes, proposies e teoremas,

    dados pelo professor ou contidos no material de estudo, os alunos no compreendiam bem

    o significado das frases devido: a) linguagem densa utilizada; b) por conta de

    desconhecerem certas palavras; ou ainda por c) confundirem palavras que so usadas no

    dia-a-dia com significado diferente do utilizado na matemtica.

    Assim, me preocupava a respeito do como ensinar os contedos matemticos de

    forma que os alunos pudessem compreender as explicaes, focando os esforos na

    comunicao. Ento, em meu Trabalho de Concluso de Curso6 busquei nos tericos da

    Modelagem Matemtica, da Aprendizagem Significativa e do Contrato Didtico, novas

    alternativas para o ensino da matemtica. Discutimos, ento, sobre atividades de resoluo

    de situaes-problemas matemticos presentes em situaes do cotidiano, geralmente com

    linguagem mais acessvel para os alunos, no qual o dilogo entre professor e alunos era

    ponto chave para o ensino.

    6 SILVA, Paulo Vilhena da; SILVEIRA, Marisa Rosni Abreu da. Modelagem Matemtica em sala de aula: aprendizagem significativa e contrato didtico. Trabalho de concluso do curso de Licenciatura em matemtica. Belm: Universidade Federal do Par, 2009.

  • 15

    Aps terminar a pesquisa do TCC, por intermdio de minha orientadora, tive a

    oportunidade de conhecer o Grupo de Estudos em Linguagem Matemtica do Programa de

    Ps-Graduao em Educao em Cincias Matemticas da Universidade Federal do Par

    (GELIM/IEMCI/UFPA) e percebi que enquanto na Modelagem, uma das tarefas era

    explicar situaes do dia-a-dia por meio do contedo matemtico, nos estudos de

    linguagem e linguagem matemtica a preocupao , entre outras, a traduo da

    linguagem simblica da matemtica para a linguagem do cotidiano.

    Nas dicusses que participei no GELIM, pude conhecer a literatura a respeito de

    linguagem e linguagem matemtica e suas particularidades, bem como as obras de

    filsofos como Gilles-Gaston Granger e principalmente as de Ludwig Wittgenstein, cuja

    filosofia tem grande importncia no desenvolvimento e inspirao para este trabalho.

    1.2 Problema de pesquisa

    Quais as dificuldades de ordem lingustica enfrentadas pelos alunos da 4 srie do

    ensino fundamental, no aprendizado e aplicao de regras matemticas, em especial o

    conceito de diviso?

    1.3 Objetivos

    1.3.1 Objetivo geral

    Discutir o papel da linguagem no aprendizado das regras matemticas, em especial,

    o conceito de diviso.

    1.3.2 Objetivos especficos

    Verificar se o uso da linguagem natural no ensino da matemtica pode induzir o

    aluno a seguir regras que entram em conflito com as do jogo de linguagem da

    matemtica;

    Analisar, por meio das observaes e de seus registros, como os alunos

    compreendem e aplicam as regras matemticas, em especial o conceito de diviso.

  • 16

    1.4 Justificatva

    A matemtica uma das disciplinas que mais traz dificuldades aos alunos e

    tambm uma das mais detestadas por eles, fato evidenciado na pesquisa de Silveira (2000)

    quando analisa o discurso que afirma que matemtica dificil marcado nos fatos

    histricos da matemtica, na voz da mdia, na voz dos professores de matemtica e,

    consequentemente, na voz do aluno, que se torna porta-voz deste discurso pr-construdo.

    Assim, supomos pertinente a busca por informaes mais detalhadas a respeito dos fatores

    que obstaculizam o aprendizado e o ensino da disciplina.

    Apostamos nossa discusso principalmente nas dificuldades lingusticas, pois

    concordamos com autores com vasta experincia docente e acadmica, como DAmore

    (2007) e Dante (1991) quando afirmam que muitas vezes os principais obstculos dos

    alunos no aprendizado da matemtica esto relacionados com a linguagem.

    Escolhemos as sries inicias, pois onde se do os primeiros contatos dos alunos

    com a linguagem matemtica. Nessa fase do ensino, no Brasil, e particularmente no estado

    do Par, segundo dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Ansio

    Teixeira (INEP) o ndice de Desenvolvimento da Educao Bsica7 (IDEB) est bastante

    abaixo do desejado. Ainda de acordo o INEP, o ndice do Estado do Par de 2,8, bem

    distante da mdia 6 desejada.

    O conceito de diviso foi escolhido porque percebi em minha curta, porm valiosa

    experincia como docente, que este um dos contedos mais incompreendidos pelos

    alunos das sries inicias, fato confirmado pela professora da turma na qual realizamos

    nossa pesquisa de campo, quando contou que sempre que inicia um novo ano letivo,

    pergunta aos alunos qual o contedo matemtico que eles menos gostaram/tiveram mais

    dificuldades no ano anterior (3 srie), e o conceito da diviso sempre o mais apontado.

    Recorremos, como inspirao principal para a escrita deste trabalho, s reflexes do

    filsofo Ludwig Wittgenstein, pois acreditamos que suas idias tanto na filosofia da

    linguagem quanto na filosofia da matemtica originais e bastante interessantes, segundo

    nosso ponto de vista podem ajudar a clarificar algumas questes presentes na filosofia da

    7 O Ideb mais que um indicador estatstico. Ele nasceu como condutor de poltica pblica pela melhoria da qualidade da educao, tanto no mbito nacional, como nos estados, municpios e escolas. Sua composio possibilita no apenas o diagnstico atualizado da situao educacional em todas essas esferas, mas tambm a projeo de metas individuais intermedirias rumo ao incremento da qualidade do ensino. Informaes disponveis no site do Inep: .

  • 17

    educao matemtica, por conseguinte ajudando a compreender as dificuldades de se

    ensinar e de se aprender matemtica, atividades realizadas via linguagem.

    1.5 Metodologia

    A pesquisa consta de uma discusso terica a respeito da discusso de linguagem e

    aprendizagem de matemtica e, tambm a apresentao de algumas idias do filsofo

    Ludwig Wittgenstein, principalmente da sua filosofia da linguagem e da sua filosofia da

    matemtica. Esta etapa justifica-se por fundamentar a pesquisa teoricamente e por servir

    para o conhecimento do material j elaborado relacionado com o nosso trabalho.

    Para obtermos dados para o confronto com o referencial terico, engajamo-nos

    em uma pesquisa de campo, buscando as informaes para o trabalho diretamente na

    escola, mais especificamente, na sala de aula com os alunos e a professora.

    Nossa pesquisa teve lugar na Escola de Aplicao da Universidade Federal do Par,

    em uma turma da 4 srie do ensino fundamental. A escolha da escola se deu por que esta

    dispe de estrutura para receber pesquisas de campo, pois sendo uma Escola de Aplicao,

    est apta a receber estagirios e pesquisadores interessados em experimentaes

    pedaggicas. Escolhemos as sries iniciais, pois, conforme mencionado na Justificativa

    deste trabalho, onde se do os primeiros contatos dos alunos com a linguagem

    matemtica e nessa fase do ensino, no Brasil, e mais especificamente no Par, os resultados

    esto abaixo do desejado.

    J que nossa inteno observar como os estudantes aprendem, interpretam e

    aplicam o conceito da diviso, faz-se necessrio o uso de mtodos adequados que

    permitam uma anlise satisfatria. Conforme sugerem Fiorentini e Lorenzato (2006)

    Se o pesquisador pretende investigar o movimento do pensamento dos alunos na resoluo de problemas matemticos, ter que escolher um instrumento que permita explicitar as estratgias e heursticas utilizadas pelos alunos. Ou seja, pedir, nesse caso, que os alunos pensem em voz alta durante a resoluo do problema, ou registrem no caderno como construram sua resoluo (p. 98-99).

    Concordando com o pensamento dos autores, para a pesquisa em sala de aula,

    observamos as aulas de matemtica ministradas pela professora e aplicamos atividades de

    resoluo de problemas, seguidas de entrevistas com os alunos, alm de eventuais dilogos

    com a professora responsvel pela turma.

  • 18

    Em conversa com a professora responsvel pela turma, ela deixou claro que no se

    sentiria a vontade se registrssemos suas aulas em udio e/ou vdeo. Dessa forma, j que

    no tnhamos a inteno de constranger a professora, e nossa inteno era observar como

    ensinado/aprendido e aplicado o algoritmo da diviso, no poderamos interferir mais que

    o necessrio, sob pena de comprometer a atuao da professora e dos alunos e

    consequentemente, prejudicar a pesquisa. Assim, os instrumentos utilizados na observao

    foram papel, caneta e o olhar aguado na busca de fatos relevantes.

    O objetivo da observao foi ter a possibilidade de ver como as regras matemticas

    so ensinadas e como estas so compreendidas pelos alunos sempre com ateno

    linguagem utilizada e comunicao entre alunos e professora , visto que tivemos a

    oportunidade de ver as explanaes da professora, bem como as dvidas dos alunos. Foi

    possvel, tambm, no momento dos exerccios, conversar com os alunos sobre suas

    dificuldades, quando estes chamavam pedindo auxlio. Alm disso, a observao serviu

    para manter um maior contato com os alunos possibilitando conhec-los melhor, e para que

    nos tornssemos mais prximos para o momento da aplicao das outras atividades

    propostas para a coleta de dados para a pesquisa.

    Conforme afirma Gil (2008), a observao justifica-se por constituir elemento

    fundamental para pesquisas sociais e, por conseguinte, para pesquisas educacionais. Como

    o pesquisador vai diretamente ao local da pesquisa coletar os dados, a subjetividade, que

    permeia todo o processo de investigao social, tende a ser reduzida (GIL, 2008, p. 100).

    A observao possibilita obter elementos para um melhor delineamento do problema de

    pesquisa, bem como pode favorecer a construo de hipteses acerca do problema em

    questo. Alm disso, a obteno de informaes por meio de observaes, ajuda

    diretamente no processo de anlise e interpretao das resolues apresentadas pelos

    alunos na aplicao da atividade e em suas respostas nas indagaes da entrevista.

    Se por um lado as observaes so importantes para a interpretao e anlise da

    resoluo dos problemas matemticos e para as respostas dos alunos, a aplicao de

    atividades pelo pesquisador serve para verificar qual a relao entre as variveis

    observadas na classe forma de ensinar da professora e modo de compreenso de seus

    ensinamentos pelos alunos . Como afirmado na citao de Fiorentini e Lorenzato (2006)

    acima, necessrio um instrumento que permita explicitar o pensamento dos sujeitos.

    Para Wittgenstein, o pensamento no implica informaes privadas, mas um tipo de

    linguagem, que pblica, de modo que o critrio para o que pensamos sua

  • 19

    exteriorizao: o critrio para compreender o que algum imagina ou pensa o que ele

    diz ou faz, isto , a sua descrio o nico modo de eu ter acesso ao o que ele imagina

    (HEBECHE, 2002, p. 204). Asssim, pretendemos compreender o pensamento dos alunos,

    em outras palavras, suas estratgias de resoluo, por meio da voz, de seus gestos e da sua

    produo nas atividades.

    Ao entregarmos as atividades, pedimos que registrassem no papel todos os clculos,

    idias e estratgias utilizadas na resoluo. Essa uma etapa que permite, em parte,

    analisar a compreenso do conceito de diviso por meio da escrita dos alunos.

    Para melhor compreendermos as ideias dos alunos, bem como sua compreenso das

    regras matemticas, fizemos uso, tambm, de entrevistas, pois permitem obter informaes

    a cerca do que eles sabem, crem, sentem etc., como tambm ouvir as explicaes a

    respeito de fatos precedentes (Gil, 2008), como suas dvidas e solues apresentadas na

    resoluo dos problemas. Alm disso, h a possibilidade de descobrirmos aspectos que no

    foram contemplados na observao e na soluo das atividades.

    Portanto, o objetivo das entrevistas foi dar a oportunidade para que os alunos

    esclarecessem suas estratgias de resoluo e suas dificuldades, de modo que pudssemos

    entender sua lgica, bem como entender a relao entre os dados observados, e sua lgica

    nas estratgias de soluo dos exerccios.

    Segundo a denominao de Fiorentini e Lorenzato (2006, p. 121), utilizamos

    entrevistas semi-estruturadas, nas quais o pesquisador [...] organiza um roteiro de pontos a

    serem contemplados durante a entrevista, podendo, de acordo com o desenvolvimento da

    entrevista, alterar a ordem dos mesmos e, inclusive, formular questes no previstas

    inicialmente. Assim, as entrevistas tomaram o curso de um dilogo. Embora tivessemos

    algumas perguntas gerais, formuladas para todos os alunos, conforme as suas respostas,

    novos questionamentos eram includos.

    A classe que observamos era composta de 25 alunos, na faixa etria entre 09 e 10

    anos. Os professores para as disciplinas de matemtica, portugus etc. eram distintos. A

    professora de matemtica exercia sua autoridade em sala de aula sem impedir a

    comunicao na classe, permitindo que os estudantes fizessem questionamentos e

    conjecturas sobre os contedos ensinados. Maiores detalhes sobre a pesquisa em sala de

    aula sero expostos no captulo da pesquisa em sala de aula.

  • 20

    Captulo 2: Linguagem, lngua, linguagem natural e

    linguagem matemtica

    Antes de discutirmos sobre a filosofia de Wittgenstein, julgamos interessante

    alguns esclarecimentos a respeito de lngua, linguagem e linguagem matemtica (o que no

    nos impede de j mencionar algumas de suas reflexes). Tal discusso tem a inteno de

    trazer noes dos diferentes aspectos de cada uma.

    2.1 Linguagem e lngua

    Iniciemos nossa empreitada realizando uma sucinta discusso a respeito de lngua e

    linguagem, j que tais termos costumam confundir a ns, no especialistas no assunto.

    Entendemos linguagem como todo sistema de sinais8 convencionais que nos permite

    realizar atos de expresso e comunicao. Convm destacar que a linguagem uma

    instituio humana. As linguagens podem ser classificadas como verbais e no-verbais. A

    primeira faz uso das palavras, enquanto a segunda utiliza gestos, sons, cores, imagens,

    sinais etc. Muitas vezes a comunicao feita utilizando-se os dois tipos de linguagem.

    Podemos citar, a LIBRAS (Linguagem Brasileira de Sinais) como exemplo de linguagem.

    A lngua caracteriza-se como um tipo particular de linguagem, constituda de

    palavras, e comum a um povo, a uma nao, a uma cultura que constitui o seu instrumento

    de comunicao, falado ou escrito. O portugus, o francs, o alemo etc. so exemplos de

    lnguas.

    Podemos dizer que algumas linguagens so universais, como as cores, sorrisos,

    sinais etc. Por outro lado, as lnguas tm carter local: fazem parte das prticas de um certo

    povo ou de quem se dispe a aprender seus cdigos lingsticos e suas regras gramaticais.

    Uma vez que as linguagens constituem produtos da vida em sociedade, so

    suscetveis de sofrer mudanas sob presso de necessidades diversas ao longo do tempo.

    Como assinala Martinet (1975), as mudanas acontecem essencialmente para satisfazer as

    necessidades comunicativas de seus utilizadores, adaptando-se da maneira mais

    8 No se trata apenas do uso de palavras, tambm usamos gestos, entonao de voz, apontamos para objetos, etc.

  • 21

    econmica. Cabe mencionar ainda, que embora bastante parecida em suas funes, a

    linguagem difere de comunidade para comunidade, de modo que esta s funciona entre

    os membros de um mesmo grupo.

    Segundo Granger (1974, p. 138) a comunicao s pode se tornar possvel pela

    comunho, mais ou menos imperfeita, de uma experincia entre o locutor e o receptor e

    enfatiza que essa experincia envolve a tcnica lingstica. De forma semelhante, segundo

    Wittgenstein, entendemos uns aos outros porque compartilhamos um mesmo universo

    discursivo, que envolve nossas instituies, como tradies, hbitos e costumes. Da o

    filsofo afirmar que Se um leo pudesse falar, no poderamos compreend-lo (IF, p.

    201), isso porque a vida e hbitos de um leo so bem diferentes dos nossos. Retomaremos

    a questo dos significados e seus contextos no prximo captulo.

    Um termo que usamos bastante em nosso trabalho o termo linguagem comum9,

    que a linguagem que usamos para nos comunicar nas mais variadas situaes do dia-a-

    dia, muitas vezes fazendo uso, alm das palavras, de gestos, olhares, entonao de voz para

    indicar uma inteno etc. Chamamo-la de comum em oposio s linguagens formalizadas,

    como a da lgica ou a linguagem matemtica, que so construdas com o intuito de serem o

    mais abstrato e objetivas possvel. De nossa parte essa denominao no se refere a alguma

    subordinao, hierarquia ou nvel de xito.

    Nossa linguagem ordinria em muitas situaes polissmica, podendo, s vezes,

    causar confuses, mas isso no as torna imperfeitas. O fato de uma palavra ou conceito ter

    mais de um sentido ou ser usado para diferentes propsitos em geral visto como algo

    natural e at positivo: a polissemia um fenmeno comum nas lnguas naturais, so raras

    as palavras que no a apresentam, o que diz o dicionrio Houaiss (2005). A esse

    respeito, Machado afirma: tais caractersticas, prprias de nossa linguagem, so

    responsveis pela riqueza de expresso possvel neste domnio (1993, p. 105).

    Embora as reflexes de Wittgenstein no estivessem relacionadas a uma mera

    questo de polissemia, ao refletir sobre a vagueza presente em nossa linguagem, o filsofo

    chama a ateno para o fato de que

    Nossa linguagem est em ordem, tal como est. Isto , que ns no aspiramos a um ideal: como se nossas frases habituais e vagas no tivessem ainda um sentido totalmente irrepreensvel e como se tivssemos primeiramente de construir uma linguagem perfeita (IF, 98).

    9 Usaremos, sem distino, os termos linguagem comum, linguagem ordinria, linguagem natural e linguagem do dia-a-dia.

  • 22

    Em nosso trabalho, mesmo sem ignorar as especificidades de cada lngua,

    intentamos fazer consideraes de carter geral, independente da lngua em questo ser o

    portugus, ingls, francs ou outra.

    2.2 Linguagem matemtica

    Tomando como base a definio de linguagem dada no item anterior, intentamos

    deixar claro nosso uso do termo linguagem matemtica no presente trabalho, com a

    inteno de servir de alicerce para o que vamos discutir adiante. Assim, como qualquer

    outra linguagem, a linguagem matemtica um sistema de formas, um meio de

    comunicao, de criao humana, que utilizado por uma certa comunidade.

    A linguagem matemtica dispe de um conjunto de smbolos prprios ou

    emprestados da linguagem comum que se relacionam de acordo com determinadas regras.

    Vejamos dois exemplos de combinaes dos smbolos dessa linguagem10:

    = 4

    2

    + =

    Alm da simbologia supracitada, a linguagem matemtica tambm faz uso de

    representaes geomtricas e grficas, tabelas, diagramas, desenhos etc.

    A linguagem matemtica representa um certo ganho em relao linguagem do

    dia-a-dia, pois inegavelmente mais econmica, no sentido de utilizar poucos smbolos

    para expressar muitos conceitos e ideias. No devemos entender essa afirmao como uma

    indicao de superioridade, mas apenas o assentimento de que, em certos domnios, como

    o cientfico, tal linguagem preferida por sua busca pela preciso e universalidade.

    Por exemplo, para o Teorema de Pitgoras + = teramos de enunciar o quadrado da medida da hipotenusa igual a soma.... Alm disso, tal linguagem busca a

    objetividade, de modo a excluir qualquer ambiguidade ou dupla interpretao. Se por vezes

    10 Frmula de Bskara e Teorema Binomial, respectivamente.

  • 23

    a polissemia vista com bons olhos no caso da linguagem comum, busca-se exclu-la das

    linguagens formalizadas.

    A linguagem matemtica possui algumas especificidades que merecem ateno de

    nossa parte: sua falta de oralidade, sua impregnao com a linguagem natural e a natureza

    de suas proposies. Deixemos antecipadamente claro, que no consideramos tais

    caractersticas como problemas, mas caractersticas prprias da linguagem em questo.

    Quando crianas, aprendemos nossa linguagem comum tal qual um treino

    natural. As crianas aprendem a ir buscar bolas, a sentar em cadeiras e assim aprendem,

    gradativamente, o significado e uso de vrias palavras. Nesse perodo, anterior escola o

    oral tem um papel muito importante no aprendizado da lngua e configura-se como um

    degrau natural no aprendizado da escrita. Assim, as palavras na forma escrita j nascem

    prenhes de significao, mesmo que depois aprendamos novos usos.

    No caso da matemtica, a situao parece bem diferente. Conforme afirma Granger

    (1974, p. 152), o simbolismo cientfico, como o da matemtica, em certo sentido no uma

    lngua autnoma, pois no possui oralidade. A propsito da matemtica o filsofo dispara:

    estranha linguagem essa cuja funo comunicativa freqentemente apenas virtual e cuja

    presena a de uma sombra, ou se se preferir, de uma divindade (1974, p. 140).

    Concebida como linguagem formal, linguagens construdas como opo s

    imperfeitas linguagens naturais, a linguagem matemtica caracteriza-se como um

    sistema simblico exclusivamente escrito. Miller11 enftico ao afirmar que:

    a lngua com que sonhava Leibniz, sem equivocao nem anfibiologia, a lngua onde tudo o que se diz inteligivelmente dito a propsito, a lngua Del Arte Combinatria, uma lngua sem enunciador possvel. um discurso sem palavras (apud MACHADO, 1993, p. 106).

    A linguagem matemtica, para ser enunciada oralmente, no pode prescindir da

    linguagem natural. Em nossas escolas, por exemplo, tambm atravs do oral que os

    conceitos matemticos so ensinados. Esse emprstimo um dos motivos que causam a

    impregnao entre lngua materna e matemtica nas palavras de Machado (1993). O autor

    mostra, por exemplo, que quando nos referimos ao tempo, espao ou negcios usamos

    nossa linguagem mesclada com a linguagem matemtica. Costumamos dizer So 8 e

    meia, hoje dia 10, quero 3 quilos, etc.

    11 Miller, Jacques-Alain. Matemas. Buenos Aires: Manantial, 1987.

  • 24

    Continuando, o autor afirma que de modo geral, a linguagem ordinria e a

    matemtica utilizam-se de termos anfibios, ora com origem em uma, ora com origem em

    outra, que s vezes no percebemos a importncia desta relao de troca, minimizando seu

    significado (MACHADO, 1993, p. 97). Vejamos alguns exemplos: Chegar a um

    denominador comum, sair pela tangente, ver de um outro ngulo, perdas

    incalculveis, numa frao de segundo. Esta relao revela-se como uma alimentao

    recproca, uma complementao, troca, e no apenas um emprstimo ou prestao de

    servios.

    Chegado aqui, ainda temos algumas consideraes a fazer a respeito da natureza

    das proposies matemticas, bem como das condies de seu aprendizado; entretanto,

    visto que nossa base ser a filosofia da matemtica de Wittgenstein, julgamos que se torna

    mais organizado e compreensvel se deixarmos sua discusso para o prximo captulo, em

    que discutiremos, entre outras coisas, o ato de seguir regras na filosofia de Wittgenstein.

  • 25

    Captulo 3: Algumas reflexes de Wittgenstein

    Neste captulo, apresentaremos algumas ideias de Wittgenstein que so importantes

    para o decorrer do trabalho, visto que vamos us-las em nossos argumentos, bem como nas

    sesses de anlise a respeito das dificuldades dos alunos.

    3.1 - Os vrios Jogos de linguagem

    Como acontece que algum diga lajota! e queira dizer traga-me uma lajota?

    Como ocorre que algum diga cinco lajotas expressando uma informao e no um

    pedido? E como acontece que o receptor das mensagens compreenda as sentenas de

    uma forma e no de outra? Isto est ligado ao modo de funcionamento de nossa linguagem.

    Estas so apenas algumas das questes que foram objeto de reflexo do filsofo

    Wittgenstein. Diria ele: Apenas numa linguagem posso querer dizer algo com algo (IF,

    p. 41). Esclareceremos tal questo.

    Em sua chamada segunda filosofia12, Wittgenstein criticou a concepo referencial

    de linguagem que ele mesmo havia adotado em sua primeira filosofia no Tractatus Logico-

    Philosophicus.

    No Tractatus, o filsofo acreditava que tanto a linguagem quanto o mundo tinham

    uma estrutura lgica subjacente. A linguagem consistia de uma coleo de proposies,

    estas, por sua vez, eram compostas de nomes, os constituintes ltimos da linguagem. Era

    necessrio haver uma correspondncia entre linguagem e mundo: cada nome na linguagem

    nomearia (descreveria) um objeto no mundo e assim cada proposio da linguagem

    descreveria um fato no mundo.

    Nessa concepo de linguagem dizer algo equivalente a descrever (ou nomear)

    algo. Deste modo, deveria haver uma correspondncia um para um entre os elementos de

    uma proposio e aqueles da situao que a proposio descreve.

    12 Em geral costuma-se falar em primeiro e segundo Wittgenstein. Pode-se dizer que o que chamado de primeiro Wittgenstein refere-se a sua filosofia no Tractatus Logico-Philosophicus, primeiro livro publicado por Wittgenstein, e o que chamado de segundo Wittgenstein refere-se aos seus escritos aps 1933, poca que tem como principal obra as Investigaes Filosficas.

  • 26

    Uma proposio s teria sentido, s significaria algo se descrevesse algo no mundo;

    assim, caso as proposies no apontassem para nada no mundo, as proposies

    consistiriam de termos sem referncia e assim seriam sem sentido13 (FANN, 1971). As

    equaes matemticas, por exemplo, eram consideradas pseudoproposies, pois, segundo

    o Tractatus, nada dizem a respeito da realidade.

    Para a determinao da estrutura subjacente da linguagem (e consequentemente do

    mundo), suas proposies deveriam ser submetidas anlise lgica14. Nesse modelo de

    anlise, se uma proposio verdadeira, o fato que ela descreve existe; se a proposio

    falsa, o fato que ela descreve no existe (FANN, 1971). Interessante notar que no Tractatus

    a significao da linguagem considerada a priori, isto , independente dos usos feitos

    pelos seres humanos.

    Alm disso, um dos pressupostos bsicos no Tractatus que cada proposio

    deveria ter um sentido claramente definido: A proposio exprime de uma maneira

    determinada, claramente especificvel, o que ela exprime: a proposio articulada (TLP,

    3.251). Isso porque era necessrio haver uma configurao precisa de objetos no mundo

    que a verificasse ou falsificasse: A realidade deve, por meio da proposio, ficar restrita a

    um sim ou no (TLP, 4.023), isto , assim como no poderia haver objetos (ou fatos)

    indeterminados na realidade, no poderia haver significado indeterminado para uma

    proposio.

    Nenhuma possibilidade de vagueza era concebvel. Qualquer proposio que sob

    escrutnio mostrava-se incapaz de ser submetida anlise lgica isto , se no era

    possvel definir um valor de verdade (sim ou no) para a proposio era considerada um

    absurdo, no era considerada uma proposio de fato (FANN, 1971).

    Nas Investigaes Filosficas, Wittgenstein precisou reconsiderar o seu velho

    modo de pensar e teve de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro

    livro (IF, prefcio), rejeitando a idia de que a linguagem teria uma natureza nica. Por

    meio de um mtodo que ele chama de terapia filosfica, o filsofo pretende a cura para

    uma doena presente na filosofia, a saber, os equvocos que so consequncia do uso

    13 Todos os trechos de lngua estrangeira aqui citados tero traduo para o portugus de nossa autoria. 14 Em poucas palavras, a anlise lgica o processo pelo qual se decide pela verdade ou falsidade de uma proposio atravs de uma investigao dos elementos que a compem. Nesse modelo de anlise, uma proposio complexa decomponvel em partes menos complexas, at que, em ltima instncia, chegue-se em elementos indecomponveis, chamados de simples.

  • 27

    dogmtico da concepo referencial de linguagem. Lembrando que para Wittgenstein a

    principal fonte dos problemas filosficos a linguagem, ou melhor, um mal uso dela.

    Wittgenstein inicia as Investigaes com uma citao de Santo Agostinho, a qual

    denota o modelo referencial de linguagem, o mesmo adotado no Tractatus. Podemos

    destacar a essncia dessa concepo atravs dos seguintes enunciados: a) as palavras da

    linguagem denominam objetos; b) frases so ligaes de tais denominaes; c) cada

    palavra tem um significado, a saber, o objeto que a palavra substitui (IF, 01).

    Wittgenstein ento argumenta que esse sistema no tudo aquilo que chamamos de

    linguagem, pois no a usamos apenas para nomear. Diz ele:

    como se algum explicasse: Jogar consiste em empurrar coisas, segundo certas regras, numa superfcie... e ns lhe respondssemos: Voc parece pensar nos jogos de tabuleiro, mas nem todos os jogos so assim. Voc pode retificar sua explicao, limitando-a expressamente a esses jogos (IF, 03).

    Wittgenstein ento sugere comparar a linguagem com as alavancas de uma

    locomotiva: todas so mais ou menos parecidas (e por isso podem causar confuses), afinal

    todas sero manobradas com a mo; entretanto, cada uma tem uma funo diferente (IF,

    12). Em outro trecho, Wittgenstein compara a linguagem com um conjunto de

    ferramentas. As ferramentas guardam semelhanas entre si, mas cada uma tem sua funo

    Pense nas ferramentas em sua caixa apropriada: l esto um martelo, uma tenaz, uma serra, uma chave de fenda, um metro, um vidro de cola, cola, pregos e parafusos. Assim como so diferentes as funes desses objetos, assim so diferentes as funes das palavras. (E h semelhanas aqui e ali.) (IF, 11).

    A analogia entre linguagem e ferramentas deve lembrar-nos de que palavras so

    usadas para diferentes propsitos. A linguagem no uma ferramenta que serve a um

    propsito, mas uma coleo de ferramentas, servindo a uma variedade de finalidades. A

    linguagem no uma prtica ou um instrumento que tem uma funo essencial ou que

    serve a um propsito essencial, mas um conjunto de prticas.

    interessante comparar a multiplicidade das ferramentas da linguagem e seus modos de emprego, a multiplicidade das espcies de palavras e frases com aquilo que os lgicos disseram sobre a estrutura da linguagem. (E tambm o autor do Tractatus Logico-Philosophicus.) (IF, 23).

    H inmeras possibilidades de atividades nas quais empregamos a linguagem.

    Podemos us-la para comandar, descrever, relatar, conjecturar, contar histrias, representar

    teatro, ler, contar piadas, cantar, pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar etc. (IF, 23) e

    cada atividade, cada contexto possui tcnicas de aplicao diferentes.

  • 28

    As diversas prticas nas quais a linguagem est inserida, os diferentes contextos de

    emprego da linguagem, so chamados por Wittgenstein de jogos de linguagem:

    Chamarei tambm de jogos de linguagem o conjunto da linguagem e das atividades com as quais est entrelaada. O termo jogo de linguagem deve aqui salientar que o falar da linguagem uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida. (IF, 07, 23).

    Wittgenstein costumava usar o termo forma de vida referindo-se cultura, s

    nossas prticas, tradies e costumes e mitos; para enfatizar o entrelaamento entre cultura,

    viso de mundo e linguagem. Uma forma de vida uma formao cultural ou social, a

    totalidade das atividades comunitrias em que esto imersos os nossos jogos de linguagem

    (GLOCK, 1998).

    Assim, o sentido de uma proposio no dependia mais de uma anlise exata, nem

    era necessrio que tivesse um significado exato para que pudssemos entend-la, afinal

    inexato no significa intil (IF, 88), assim como uma delimitao imprecisa no

    propriamente delimitao nenhuma (IF, 99). Wittgenstein reconhece que ao contrrio

    do tratamento dado a linguagem no Tractatus o sentido de uma proposio no podia ser

    dado independente do contexto ou forma de vida na qual ocorre, diz ele: Estamos falando

    do fenmeno espacial e temporal da linguagem, no de um fantasma fora do espao e do

    tempo (IF, 108).

    O significado de uma expresso lingustica, agora, (na grande maioria dos casos)

    seu uso na linguagem (IF, 43). O sentido de uma palavra ou expresso lingstica, bem

    como sua lgica e tcnica de uso, depende da atividade em que est envolvida, de nossos

    hbitos e costumes:

    No h uma lgica da linguagem, mas muitas; a linguagem no tem nenhuma essncia nica, mas uma vasta coleo de diferentes prticas, cada qual com sua prpria lgica. O significado no consiste na relao entre palavras e coisas ou numa relao figurativa entre proposies e fatos; o significado de uma expresso , antes, seu uso na multiplicidade de prticas que vo compor a linguagem. Alm disso, a linguagem no algo completo e autnomo que pode ser investigado independentemente de outras consideraes, pois ela se entrelaa com todas as atividades e comportamentos humanos; conseqentemente nossos inmeros diferentes usos dela recebem contedo e significado de nossos afazeres prticos, nosso trabalho, nossas relaes com as outras pessoas e com o mundo que habitamos (GRAYLING, 2002, p. 90).

    A palavra gua, por exemplo, pode ser usada para referir-se ao elemento natural

    assim denominado; para ensinar uma criana ou a um estrangeiro sua aplicao como

    nome; sob a forma de um pedido, quando estamos sedentos; posso us-la como pedido de

  • 29

    rendio a meu adversrio; como pedido urgente daquilo que ela denomina, para apagar

    um incndio e muitos outros usos que podemos imaginar (MORENO, 2000, p. 55-56).

    Por apontar que o significado atribudo a uma expresso lingustica depende do

    contexto de aplicao, tais esclarecimentos sobre o conceito de jogo de linguagem so

    bastante importantes para nossa discusso a respeito do contexto de uma regra ou conceito

    matemtico.

    Voltando aos nossos primeiros questionamentos, o jogo de linguagem que

    determina o que queremos dizer. Como vimos, os jogos de linguagem esto apoiados em

    atividades, em prticas que envolvem a linguagem. no uso que as palavras adquirem seus

    significados, ou seja, dentro de seus contextos, que envolvem tom de voz caracterstico em

    cada frase, expresses faciais etc. O que nos permite compreender as aes e palavras dos

    outros a comunidade lingustica que partilhamos, o mesmo universo de atividades e

    prticas lingusticas que compartilhamos.

    Importante notar que, embora um conceito tenha diversos usos isso no pressupe

    ambiguidade. O fato de usarmos palavras como gua, nmero ou jogo em diferentes

    contextos no implica que tenhamos diferentes conceitos de gua, jogo ou de nmero, mas

    sim diferentes usos desses conceitos. o que veremos no prximo item.

    3.2 Semelhanas de Famlia

    Segundo o essencialismo corrente de pensamento segundo a qual a pesquisa

    cientfica deve penetrar at a essncia das coisas para poder explic-las , necessrio

    haver algo comum a todas as instncias de um conceito que explique porque elas caem sob

    esse conceito. Um conceito deveria ser claramente delimitado para que fosse assim

    chamado. Toda a vagueza deveria ser eliminada. Assim, seria necessrio descobrir a

    natureza, a essncia do conceito, motivo pelo qual todos os seus usos caem sob o mesmo

    conceito. Por exemplo, deveria haver algo comum a tudo aquilo que chamamos de jogo, a

    essncia do conceito de jogo.

    Como veremos adiante, atravs de conceitos como o de jogo de linguagem e o de

    semelhanas de famlia, Wittgenstein atacou a viso essencialista descrita acima,

    argumentando que no h algo comum a tudo aquilo que chamamos de jogo, em virtude da

    qual empregamos para todos a mesma palavra.

  • 30

    Wittgenstein costumava usar a expresso semelhanas de famlia para designar a

    semelhana entre os usos de palavras ou conceitos, no por sua posse comum de um

    conjunto de caractersticas essenciais ou definidoras, mas por uma relao geral de

    similaridade entre os diferentes usos.

    Como vimos, podemos dizer que os jogos de linguagem so os diferentes contextos

    de aplicao de uma palavra ou conceito. E diferentes contextos implicam diferentes

    lgicas e tcnicas de aplicao das palavras. Desta maneira, uma mesma palavra pode

    indicar diferentes aes, dependendo do contexto em que empregada, dependendo da

    atividade na qual est envolvida. Entretanto, mesmo que um conceito no possa ser

    definido por uma caracterstica, por um trao comum a todos os seus diferentes usos, no

    significa que no tenha unidade.

    No 65 das Investigaes Wittgenstein objetado por seu interlocutor15:

    Voc simplifica tudo! Voc fala de todas as espcies de jogos de linguagem possveis, mas em nenhum momento disse o que o essencial do jogo de linguagem, e portanto da prpria linguagem. O que comum a todos esses processos e os torna linguagem ou partes da linguagem. Voc se dispensa pois justamente da parte da investigao que outrora [no Tractatus] lhe proporcionara as maiores dores de cabea, a saber, aquela concernente forma geral da proposio e da linguagem.

    O filsofo ento responde:

    E isso verdade Em vez de indicar algo que seja comum a tudo aquilo que chamamos de linguagem, digo que no h uma coisa comum h esses fenmenos, em virtude da qual empregamos para todos a mesma palavra, mas sim que esto aparentados uns com os outros de muitos modos diferentes. E por causa desse parentesco ou desses parentescos, chamamo-los todos de linguagens. Tentarei elucidar isso. (IF, 65).

    Para exemplificar sua afirmao, Wittgenstein discorre sobre os processos aos quais

    chamamos de jogos (jogos de tabuleiros, jogos de cartas, de bola etc.):

    Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem. So todos recreativos? Compare o xadrez com o jogo da amarelinha. Ou h em todos um ganhar e um perder, ou uma concorrncia entre os jogadores? Pense nas pacincias. Nos jogos de bola h um ganhar e um perder; mas se uma criana atira a bola na parede e a apanha outra vez, este trao desapareceu. Veja que papis desempenham a habilidade e a sorte. E como diferente a habilidade no xadrez e no tnis. Pense agora nas cantigas de roda: o elemento de divertimento est presente, mas quantos dos outros traos caractersticos desapareceram! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver semelhanas surgirem e desaparecerem. E tal o resultado

    15 Wittgenstein adotou um estilo de escrita a vrias vozes. Em muitos de seus trechos o filsofo est dialogando com um de seus interlocutores, ora com Russel, ora com Frege, etc. Estes representam diferentes concepes filosficas a respeito do tema tratado por Wittgenstein.

  • 31

    desta considerao: vemos uma rede complicada de semelhanas, que se envolvem e se cruzam mutuamente. Semelhanas de conjunto e de pormenor. No posso caracterizar melhor essas semelhanas do que com a expresso semelhanas de famlia; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanas que existem entre os membros de uma famlia: estatura, traos fisionmicos, cor dos olhos, o andar, o temperamento etc., etc. E digo: os jogos formam uma famlia (IF, 66-67).

    Um trecho de The blue and brown books pode ser bastante esclarecedor:

    Estamos inclinados a pensar que deve haver algo em comum a todos os jogos, por exemplo, e que esta propriedade comum a justificativa para aplicao do termo geral jogo para os vrios jogos; ao passo que os jogos formam uma famlia, cujos membros tem semelhanas de famlia. Alguns deles tem o mesmo nariz, outros as mesmas sobrancelhas e outros, ainda, a mesma maneira de andar, e essas semelhanas se sobrepem umas s outras (BB, p. 17).

    Wittgenstein rejeitava a ideia de vrios significados diferentes, ainda que

    relacionados, para um mesmo conceito. Mesmo que este no possa ser definido por uma

    caracterstica, por um trao comum a todos os seus diferentes usos, no significa que no

    tenha unidade. Os jogos, por exemplo, formam uma famlia (IF, 67) e em virtude dessa

    unidade que falamos do conceito de jogo, do conceito de nmero etc. (IF, 68, 70). Em se

    tratando de conceitos definidos por semelhanas de famlia, a unidade de uma famlia de

    usos que nos permite falar do conceito de tal e tal coisa.

    Cada situao de emprego do conceito revela uma parcela, um aspecto do

    significado. Os usos que fazemos a tudo que chamamos de nmero, por exemplo, seja

    nmero real, racional, nmero de canetas ou metros, cada um, revelam um uso diferente do

    conceito de nmero (embora se possa definir de forma bem delimitada o conceito de

    nmero real, racional etc.).

    Embora conceitos definidos por semelhanas de famlia tenham diferentes usos,

    isso no significa que sejam ambguos ou polissmicos. Em geral, no temos problemas no

    emprego da linguagem; a despeito de seus diversos usos, sabemos usar palavras como

    jogo e nmero em seus diversos contextos de aplicao sem confuses.

    Wittgenstein reconhece que usamos muitos conceitos sem uma definio precisa,

    que conceito um conceito vago, mas salienta que isso no nos causa problemas no

    emprego da linguagem. O conceito de jogo, por exemplo, possui contornos imprecisos

    (IF, 71). A esse respeito o interlocutor de Wittgenstein ento pergunta: Mas, um

    conceito impreciso realmente um conceito?, e o filsofo responde: Uma fotografia

    pouco ntida realmente a imagem de uma pessoa? Pode-se substituir com vantagem uma

  • 32

    imagem pouco ntida por uma ntida? No a imagem pouco ntida justamente aquela de

    que, com freqncia, precisamos? (IF, 71).

    Um conceito definido por semelhanas de famlia pode adquirir novos usos, mas

    isso no muda o conceito; este alargado com o acrscimo de novos membros famlia.

    O conceito de arte, por exemplo, expandiu-se para incluir novos parentes como o

    cinema, a fotografia e o bal, sem nenhuma mudana no significado da palavra arte

    (BAKER & HACKER, 2005, p. 214).

    Algo semelhante pode ser dito de alguns conceitos matemticos. O conceito de

    nmero, por exemplo, foi expandido com a incluso de novos membros, como os nmeros

    imaginrios. Mesmo que os nmeros tenham sido pensados puros ou abstratos, sua

    aplicao no emprico no implica um novo conceito, mas sim o alargamento do

    conceito de nmero. De forma mais geral, mesmo que um conceito matemtico no tenha

    sido criado com vistas ao emprico, sua aplicao prtica no um novo conceito, mas sim

    uma nova cara, um novo uso do conceito. O uso civil da matemtica uma das caras

    da disciplina.

    Na Observaes sobre os Fundamentos da Matemtica, Wittgenstein chama a

    ateno para o fato de que a matemtica um fenmeno antropolgico, exercendo vrias

    funes com diferentes objetivos em nossas prticas comunitrias. A respeito dos vrios

    usos que o clculo pode desempenhar ele nos convida a refletir se Seria alguma surpresa

    se a tcnica de clculo tivesse uma famlia de aplicaes? (RFM, V, 08). O que

    chamamos de matemtica, diz o filsofo, uma famlia de atividades com uma famlia de

    propsitos (RFM, V, 15).

    Feitos tais esclarecimentos sobre os diferentes usos de um conceito ou expresso

    lingstica, vejamos mais de perto o que diz Wittgenstein a respeito de seguir regras, em

    especial regras matemticas. Semelhante s expresses lingusticas, um signo matemtico,

    como veremos, no carrega em si sua aplicao, no uso que ele adquire significado. Esta

    uma das questes que discutiremos no prximo item.

    3.3 As regras na filosofia de Wittgenstein

    A discusso sobre regras na filosofia de Wittgenstein refere-se ao ato de seguir

    regras em geral: regras matemticas, regras no uso das palavras, obedecer a comandos,

    guiar-se por uma placa de orientao (como as de transito) etc. A discusso sobre a

  • 33

    atividade de seguir regras um dos temas centrais na filosofia do chamado segundo

    Wittgenstein e, embora seus esclarecimentos e exemplos sejam bastante interessantes,

    discutiremos apenas as questes que julgamos relevantes para nossos propsitos.

    Em seus trabalhos, Wittgenstein parecia interessado em saber como algum capaz

    de compreender e seguir regras; como uma regra (ou ordem) poderia implicar sua

    aplicao, pois qualquer modo de agir poderia, de alguma forma, ser interpretado como de

    acordo com a regra (IF, 201).

    Tomemos o exemplo dado pelo filsofo austraco. Se estamos ensinando algum a

    construir sries numricas do tipo 0, n, 2n, 3n..., esperamos que ele seja capaz de

    construir sries como 0, 1, 2, 3... ou 0, 2, 4, 6.... Uma questo que poderamos colocar

    : Como deve o aprendiz, em um determinado ponto, reagir ordem some 2, se ele

    dispe apenas de exemplos e explicaes finitas, ao contrrio da srie que infinita?

    Estamos inclinados a pensar que a regra contm em si mesma todas suas

    possibilidades de aplicao, como se um signo (uma palavra, frase, gesto etc.) carregasse

    seu significado independente da aplicao feita por seus usurios, independente do

    contexto no qual ocorre. No caso da srie numrica, temos a tendncia de achar que uma

    vez dada a ordem +n, todas as passagens j estariam antecipadas:

    Sua idia foi a de que aquela significao da ordem tinha j, ao seu modo, feito todas aquelas passagens: seu esprito como que voava adiante, ao dar significao, e fez todas aquelas passagens antes que voc tivesse chegado corporalmente a esta ou quela. Voc tendia a empregar expresses tais como: As passagens realmente j esto feitas mesmo antes que eu as faa por escrito, oralmente ou mesmo em pensamento. E parecia como se fossem j predeterminadas de um modo peculiar, como se fossem antecipadas (IF, 188).

    Entretanto, como afirma Wittgenstein, Todo signo por si s parece morto, ou

    seja, no carrega em si prprio seu sentido, no tem significao independente do uso que

    fazemos dele, da situao na qual est inserida. Assim, o filsofo conclui: O que lhe da

    vida? No uso ele vive (IF, 432).

    Ento, como sei o que fazer em cada passo? Como a regra pode implicar sua

    aplicao? Wittgenstein faz questionamentos semelhantes: O que tem a ver a expresso da

    regra digamos o indicador de direo com minhas aes? Que espcie de ligao existe

    a? e ento responde Ora, talvez esta: fui treinado para reagir de uma determinada

    maneira a este signo e agora reajo assim. [...] algum somente se orienta por um

    indicador de direo na medida em que haja um uso constante, um hbito (IF, 198, nosso

    itlico). Portanto, o critrio para como a ordem, a regra etc. significada depende da

  • 34

    prtica comum de aplicao da regra, da forma como fomos ensinados a us-la. Decorre

    disso sabermos o que fazer em cada passo diferente (IF, 190)

    Wittgenstein esclarece sua posio quando salienta que seguir regras mais uma

    das atividades que fazem parte de nossa vida, uma instituio humana, faz parte de

    nossos hbitos e costumes, como comer com talheres da forma que comemos, sentar em

    cadeiras da forma que sentamos etc., como ele afirma nas Investigaes 199:

    O que chamamos seguir uma regra algo que apenas uma pessoa pudesse fazer apenas uma vez na vida? [...] No pode ser que apenas uma pessoa tenha, uma nica vez, seguido uma regra. No possvel que apenas uma nica vez tenha sido feita uma comunicao, dada ou compreendida uma ordem etc.

    Este trecho merece algum esclarecimento. Conforme explica Fann (1971), a

    preocupao de Wittgenstein no emprica, mas lgica. Obviamente, podemos imaginar

    que algum invente uma regra, a siga apenas uma vez e no a use mais. Mas se h a

    possibilidade de isso acontecer, porque j existem regras e a prtica de segui-las: claro

    que eu poderia inventar um jogo de tabuleiro hoje, o qual nunca seria realmente jogado. Eu

    simplesmente o descreveria. Mas isso s possvel porque j existem outros jogos

    semelhantes, isto , porque esses jogos so jogados (RFM, VI, 32). Ou seja, jogos,

    assim como a linguagem, o ato de seguir regras etc. so instituies humanas: Seguir uma

    regra, fazer uma comunicao, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez so hbitos

    (costumes, instituies) (IF, 199). Seguir regras pressupe uma sociedade, uma forma de

    vida.

    Assim, Wittgenstein salienta o fato de o que constitui uma regra nosso uso

    coletivo dela. Seguir regras uma prtica geral estabelecida pela concordncia, pelo

    hbito, pelo treino. A prpria prtica de seguir uma regra define o que est de acordo ou

    desacordo com a mesma, ou seja, temos critrios pblicos para julgar a aplicao de uma

    regra como correta ou incorreta.

    A prtica de seguir regras est pautada na regularidade das aes: por isso o autor

    das Investigaes argumenta que as palavras acordo e regra so aparentadas.

    Wittgenstein salienta que da maior importncia que todos ou a grande maioria de ns

    estejamos de acordo em certas coisas: posso estar completamente seguro, por exemplo, de

    que a maioria dos seres humanos que vejam esse objeto chamariam verde sua cor (RFM,

    VI, 39). Isto , se no houvesse um uso estabelecido das palavras entre seus usurios, no

    poderamos nos comunicar.

  • 35

    Para ser mais enfticos, podemos dizer que se o pano de fundo do costume (prtica,

    regularidade) de seguir uma regra fosse removido, a prpria regra desapareceria (FANN,

    1971). Vejamos um exemplo dado por Wittgenstein nas Investigaes:

    Como acontece que a seta aponte? No parece j trazer em si algo alm de si

    mesma? (IF, 454).

    Wittgenstein ento argumenta que sua significao no reside em algo acontecer

    em nossa mente ou num passe de mgica:

    Este apontar no um passe de mgica que apenas a alma pode realizar. A seta aponta

    apenas na aplicao que o ser vivo faz dela (IF, 454).

    Se em nossas atividades dirias (hbitos, costumes) no houvesse aplicaes para a

    seta, ela ainda apontaria? Se no houvesse a conveno de como usar um indicador de

    direo (uma placa de trnsito, por exemplo), se cada um de ns o interpretssemos de um

    modo particular, ele ainda serviria para indicar a direo? Cremos que a resposta

    negativa. De forma semelhante, no poderamos chamar isto e aquilo de vermelho se no

    concordssemos em relao ao nome das cores, tampouco poderamos calcular se cada um

    de ns contasse de uma forma diferente. De nossa exposio seguem algumas

    consequncias, todas interligadas.

    Em Primeiro lugar, como a regra no contm em si mesma suas aplicaes, estas

    no so de forma alguma bvias ao aprendiz, ou seja, precisam ser ensinadas ou

    aprendidas16. Se a conexo entre uma frmula aritmtica e sua aplicao no

    diretamente visvel. Ento como pode o aprendiz saber o que queremos dizer? Por meio de

    nossas explicaes e instrues! (GLOCK, 1998, p. 316).

    Em vrios de seus escritos de sua segunda filosofia, Wittgenstein deixa claro sua

    opinio de que necessrio o treino e o uso de exemplos para o ensino de algo. O treino

    o fundamento da explicao (Z, 419), de seguir regras (IF, 143) e do clculo matemtico

    (LFM, p. 58). Diz ele: So necessrias, para estabelecer uma prtica, no s regras, mas

    tambm exemplos. No consigo descrever como (em geral) aplicar regras, exceto

    ensinando-te, treinando-te a aplicar regras (DC, 139; Z, 318).

    16 Conforme aponta Macmillan (1995), Wittgenstein salienta que em certas situaes aprendemos muitas coisas mesmo que no haja a inteno do ensino. As informaes so engolidas sem explicaes. Por exemplo, quando uma criana que est aprendendo sua linguagem sente dores, ela vai expressar essa dor de alguma forma, chorando por exemplo. Seus pais ento vo dizer (ou indagar) que seu filho est com dores e assim a criana aprende este uso da palavra dor.

  • 36

    Talvez tais afirmaes a respeito da relao entre ensino e aprendizado paream,

    em um primeiro momento, triviais, mas como veremos mais adiante, temos como

    consequncia algumas importantes reflexes para a Educao Matemtica.

    Em segundo lugar, visto que uma regra no contm em si mesma sua aplicao,

    esta, seja qual for o caso uma regra jurdica, uma regra gramatical, um sinal de trnsito,

    uma regra matemtica etc. no pode estar imune a mal-entendidos ou erros em seu

    emprego.

    Analisando a vagueza de nossa linguagem (que apesar de muitas vezes ser vaga,

    est em ordem) Wittgenstein salienta que nenhuma explicao pode estar imune a mal-

    entendidos. Em um dos trechos, nas Investigaes, ele afirma:

    Quando digo a algum: Pare mais ou menos aqui, Pode essa elucidao no funcionar perfeitamente? E qualquer outra no pode tambm falhar? [...] Um ideal de exatido no est previsto; no sabemos o que devemos nos representar por isso (IF, 88).

    De forma semelhante, nenhuma regra est isenta de desvios no emprego, nem

    mesmo as da matemtica. Segundo Wittgenstein, pode sempre haver situaes nas quais

    surjam dvidas de como aplic-la (IF, 186). Em outro trecho ele afirma: Uma regra se

    apresenta como um indicador de direo. [...] algumas vezes deixa dvidas, outras no. E

    isto no mais nenhuma proposio filosfica, mas uma proposio emprica (IF, 85). O

    fato de termos segurana na aplicao de uma regra em um determinado contexto no

    garante que saberemos aplic-la em um novo contexto.

    Para o filsofo austraco, inclusive, muitas vezes seguimos regras de forma

    mecnica, sem refletir (o que no significa que a compreenso seja algo mecnico (GF,

    42)). Entretanto, se muitas vezes no temos dvidas quando seguimos regras, isto

    reflexo de nosso treino, nossa prtica, de nossa habilidade na atividade em questo:

    No assim? Primeiro, as pessoas usam uma explicao, uma tabela, consultando-a; mais tarde, por assim dizer, consultam-na na cabea (trazendo-na para diante do olho interior ou algo assim) e, finalmente, trabalham sem a tabela, como se nunca tivesse existido (GF, 43).

    Seria penoso se fosse necessrio uma nova interpretao ou reflexo todas as vezes

    que tivssemos que usar a regra + 2 ou adicionar 2 + 2, por exemplo. Para que se torne

    eficiente preciso faz-lo de forma rpida e razoavelmente sem dvidas, necessrio

    tornar-se um hbito, algo rotineiro. Parafraseando Wittgenstein, preciso excluir a tabela de

    meu jogo, pois se continuo recorrendo a ela sou como um homem cego recorrendo ao

  • 37

    sentido do tato (GF, 43). Nossa prtica tal, em algumas atividades, que temos total

    segurana em seguir certas regras, como, por exemplo, continuar uma srie numrica, mas

    sempre pode haver uma situao na qual surjam dvidas.

    Importa-nos, ainda, apontar algumas caractersticas de um tipo particular de regra, a

    saber, as regras matemticas, tal como Wittgenstein as v.

    3.4 As regras matemticas

    De forma semelhante ao aprendizado e uso de nossa linguagem e nossa prtica de

    seguir regras, a concordncia, a regularidade, enfim, os hbitos e asseres de nossa forma

    de vida so imprescindveis para os resultados na matemtica e tambm para seu

    aprendizado. Na parte II das Investigaes Wittgenstein afirma:

    Esta reflexo [a respeito da concordncia entre os homens] deve valer tambm para a matemtica. Se no houvesse essa total concordncia, os homens no aprenderiam a matemtica que aprendemos. Seria mais ou menos diferente da nossa, at o ponto de ser irreconhecvel (IF, II, p. 203).

    Assim, Wittgenstein visa mostrar que nossas proposies matemticas so

    convencionais, ou seja, dependem tambm de nossa viso de mundo, e no de uma

    realidade matemtica transcendental. Decorre que, de forma semelhante ao aprendizado

    de nossa linguagem, as proposies matemticas precisam ser ensinadas, no so

    aprendidas naturalmente nem so bvias ao aprendiz.

    Nas Observaes sobre os Fundamentos da Matemtica, Wittgenstein evoca alguns

    procedimentos, como mtodos de medida e de clculo, que a ns parece aberrante,

    entretanto, poderia muito bem fazer parte dos costumes de outra comunidade diferente da

    nossa. Por exemplo, o filsofo afirma que para uma outra comunidade, 4 poderia ser o

    resultado de 2+2+2 e no de 2+2:

    Basta que contemples a figura

    X

    X

    X

    X

  • 38

    para ver que 2+2=4. Ento me basta ver a figura

    para ver que 2+2+2=4 (RFM, I, 38).

    Wittgenstein mostra que nossas proposies matemticas so convencionais, no

    possuem uma essncia, no descrevem nenhuma realidade ou fatos mundanos. Dizemos

    que um homem sabe que 1 + 1 = 2 porque ele expe esse resultado em concordncia

    com o restante de ns (LFM, p. 30) e no porque esta proposio se refere a alguma

    realidade, seja no mundo sensvel ou em qualquer outro que possamos imaginar.

    As proposies matemticas so normativas, no descrevem entidades, nem

    objetos, sejam eles empricos, abstratos ou mentais, no descrevem nada (embora possuam

    inmeros usos descritivos), e sim expressam normas, regras a serem seguidas.

    Para explicar o que afirmamos, julgamos bastante esclarecedora a afirmao de

    Wittgenstein de que todas as proposies matemticas so regras gramaticais. Propomos,

    atravs de esclarecimentos sobre essa afirmao, apontar a natureza das proposies

    matemticas. Diz Wittgenstein:

    Lembremo-nos de que, em matemtica, estamos convencidos de proposies gramaticais; a expresso, o resultado desse convencimento , portanto, que aceitamos uma regra. Estou tentando dizer algo como isto: mesmo que a proposio matemtica demonstrada parea referir-se a uma realidade fora de si mesma, esta apenas a expresso da aceitao de uma nova medida (da realidade) (RFM, III, 26-27).

    O filsofo no usa o termo gramtica no seu sentido usual, visto que ele incluiria

    como pertencente gramtica regras que um lingusta no incluiria. A gramtica, tal como

    Wittgenstein a usa, define o modo como as expresses lingsticas so usadas, descreve as

    regras de uso da linguagem, define o que faz e o que no faz sentido dizer e especifica

    quais combinaes (de palavras ou expresses lingusticas) so possveis ou no, isto ,

    regras gramaticais so padres para o uso correto de expresses lingsticas.

    X

    X

    X

    X

  • 39

    nesse sentido que Wittgenstein costuma falar na gramtica de certas palavras ou

    conceitos, visto que aquela governa o uso destes. A gramtica da palavra xadrez, por

    exemplo, constituda pelas regras deste jogo, regras que permitem algumas aes e

    probem outras. Se ao jogar uso outras regras, no estou jogando xadrez. Se funo da

    gramtica definir as regras da linguagem, pode-se falar, como o faz Wittgenstein, na

    gramtica de certos conceitos ou palavras, como a gramtica do xadrez.

    J as proposies gramaticais, tais como: 2 + 2 = 4, todos os homens solteiros

    no so casados, bebs no podem fingir, O vermelho existe, so proposies que

    expressam regras gramaticais, estas se diferenciam de enunciados empricos, pois nada

    descrevem, nada dizem a respeito do mundo, apenas nos fornecem regras para o uso de

    palavras ou conceitos, estabelecem relaes internas entre conceitos (entre solteiro e

    no casado, por exemplo), nos permitem transformaes de proposies empricas: de

    Wittgenstein era solteiro para Wittgenstein no era casado (GLOCK, 1996, p. 202).

    Entretanto, preciso notar que uma mesma proposio pode ser emprica ou

    gramatical, dependendo do contexto no qual ocorre, do uso que fazemos dela. Uma mesma

    proposio pode ser usada para a) descrever o prprio uso das palavras e b) descrever

    objetos:

    uma mesma afirmao, como isto branco, pode ter, ora uma funo descritiva, ora uma funo normativa, dependendo do contexto da enunciao. Se for uma resposta pergunta o que branco? estar sendo empregada normativamente [uso a)], enquanto que em um outro contexto, pode estar sendo empregada simplesmente para descrever a cor de um determinado objeto [uso b)] (GOTTSCHALK, 2077, p. 117).

    Gottschalk, a partir de Wittgenstein, nos mostra um uso a) e um uso b) da

    proposio isto branco. No uso a), ao apontar uma amostra da cor branca, no

    estamos falando de objetos, mas explicitando nossa conveno lingustica de chamar

    branco a tal cor; no uso b), a frase isto branco est sendo usada para descrever um

    objeto de cor branco.

    Segundo Wittgenstein, a dificuldade em distinguir o uso gramatical e o uso

    descritivo das proposies uma das causas das confuses e problemas filosficos

    (dificuldade essa que tambm confundiu o autor do Tractatus). Muitas vezes, acreditamos

  • 40

    estar descrevendo algo com certa proposio quando na verdade uma conveno

    lingstica que est sendo proposta17.

    Proposies gramaticais no so verdadeiras nem falsas, estas so anteriores a

    verdade ou falsidade, definem o que faz sentido chamar de verdadeiro ou falso. A

    proposio 2 + 2 = 4 no verdadeira nem falsa, mas estabelece que falso dizer, por

    exemplo, que dois mais dois igual a 3, ou seja, que h algum erro no clculo. Alm

    disso, proposies gramaticais no podem ser verificadas empiricamente. No h como

    verificar empiricamente, por exemplo, que o branco mais claro que o preto analisando

    objetos das referidas cores. Esta proposio exprime uma regra aceita tacitamente quando

    falamos das cores branco e preto, conforme explica Moreno:

    A diferena que existe entre essas duas cores, e que independe da linguagem, recuperada linguisticamente sob a forma de atribuies de nomes e de relaes entre conceitos atribuies que so convencionais e no necessrias. Assim, a relao mais claro que no reproduz uma relao entre fatos, mas institui uma relao entre conceitos, o branco e o preto. No possvel verificar empiricamente que o branco mais claro que o preto, mas apenas postular essa relao entre dois conceitos de cor, ou ainda usar esses conceitos segundo aquela relao. Da mesma maneira, com maior evidncia intuitiva, os fatos tambm no podem negar essa relao entre as duas cores (1995, p. 77).

    Proposies gramaticais so enunciados que usamos com inteira certeza, conforme

    diz Wittgenstein Aceitar uma proposio como inabalavelmente certa significa us-la

    como uma regra gramatical (RFM, III, 39), so proposies que no conseguimos

    imaginar de outra forma. Se algum nos diz que um beb pode fingir, nossa reao no

    dizer que no verdade, mas que um absurdo, pois, de acordo com nossas atuais regras

    lingusticas no faz nenhum sentido dizer que um beb pode fingir. O mesmo se pode dizer

    de 2 + 2 = 4. Quando usamos esta proposio matemtica para nossos clculos, no nos

    perguntamos por sua verdade, mas a tomamos como base, a tomamos como certa.

    Todas as proposies da matemtica, como j havamos adiantado, so proposies

    gramaticais. A proposio matemtica 2 + 2 = 4 no descreve nada, no diz respeito a

    fatos empricos, tem na verdade um papel prescritivo: estabelece que quatro o resultado

    correto quando somamos dois mais dois. Se o resultado no for quatro, o clculo realizado

    foi outro, ou ento foi realizado de forma incorreta.

    Talvez se questione esta afirmao apontando, corretamente, que algumas

    proposies matemticas, hoje aceitas como regras, eram usadas no cotidiano de algumas 17 Segundo Gottschalk (2004a), confuses semelhantes acontecem nas orientaes para o ensino de matemtica. Ao invs de compreender (e ensinar) as proposies matemticas como normas, tomam-nas como descrevendo algo ou alguma realidade.

  • 41

    comunidades, mesmo antes de sua demonstrao. Como, por exemplo, segundo Granger

    (1955, p. 92), o Teorema de Pitgoras que era utilizado pelos egpcios antes mesmo de sua

    demonstrao.

    Wittgenstein nunca negou as razes (ou razes) empricas de algumas proposies

    matemticas; ao contrrio, a atividade matemtica considerada parte da histria natural

    dos homens (RFM, I, 142). Uma das contribuies de Wittgenstein filosofia da

    matemtica, inclusive, foi apontar a natureza social da matemtica . Entretanto, depois de

    estruturados na linguagem matemtica, os conceitos tornam-se independentes, so aceitos

    como regras lingusticas que independem de confirmao emprica: ns