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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo realizado sob a orientação científica da Professora Doutora Ana Isabel Afonso

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção

do grau de Mestre em Migrações, Inter-etnicidades e Transnacionalismo realizado sob a

orientação científica da Professora Doutora Ana Isabel Afonso

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Para o Luís da Cicatriz e todos os que merecem segundas oportunidades.

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Agradecimentos

A presente pesquisa só foi possível graças aos que colaboraram, apoiaram e me

incentivaram a continuar, mesmo apesar das dificuldades sentidas ao longo da jornada.

Sem essas pessoas não seria possível apresentar o resultado final da investigação sobre

os sem-abrigo de Lisboa. E porque tudo começa em casa, um agradecimento especial

pelo apoio e paciência que nunca faltou à minha mãe, pelo interesse do meu irmão, meu

pai e da minha irmã. Agradeço também à minha Avó Alcinda e ao meu Avô Joaquim,

por me transmitirem sabedoria de viver, porque “a vida é que ensina a gente”. Pelos

conselhos mas sobretudo pelo gosto incutido em ouvir e aprender com a vida dos

outros. À Leonor e ao Pedro que partilharam as ansiedades, receios, conquistas e ganhos

de realizar uma tese em ciências sociais e humanas. Ao Michael e Marco pela amizade

e, ao Pedro Graça companheiro de aventuras, aos três que prontamente se

disponibilizaram a rever o que tinha escrito. À Joana, Nuno, Sara, Elias, e Manuel por

exprimirem cada um de sua maneira, mas com sinceridade e cumplicidade nos

encontros e nas conversas sobre a minha tese. Aos meus dois Professores de guitarra

que voltaram para a sua terra natal, um enorme agradecimento pela alegria de tocar

guitarra e contagiante boa disposição brasileira que preenchiam o convívio

descontraído, aos meus dois grandes amigos: José Ricardo Araújo e ao Douglas Wagner

que me ensinaram uma outra forma de viver com mais paixão, ritmo e esperança. Ao

Ricardo Andrade por ter insistido para que fosse logo depois da Licenciatura, inscrever-

me no Mestrado. A todos os que demonstraram interesse, curiosidade e compreensão

pelo tema estudado, assim como aqueles que demonstraram interesse em ler o resultado

final. A todos os informantes, cujo contacto estabeleci e se abriram de forma sincera,

revelando a vida íntima de quem está numa situação de fragilidade. É sobretudo graças

a eles que me transmitiram conhecimentos práticos da sua realidade. Mas também sem

as bases aprendidas com todos os professores de Licenciatura que depositaram o seu

contributo em mim, ao darem-me a conhecer um novo mundo reflexivo acerca de

realidades que me eram muitas vezes desconhecidas. Aos responsáveis pelo Mestrado

de Migrações Inter-Etnicidades e Transnacionalismo pelo alargamento de horizontes,

acerca de novas perspectivas empíricas e teóricas sobre novos temas de investigação

contemporâneos. Ao “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios” que me abriu as

portas para que fizesse simultaneamente voluntariado e trabalho de campo sem nunca

levantar problemas ou percalços no indagar das minhas questões. Aos responsáveis da

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“Associação dos Albergues Nocturnos de Lisboa”, que autorizaram a entrevista aos

utentes do albergue e, ainda uma entrevista ao Director do Albergue. Apesar dos dados

desta última entrevista não terem sido usados, a utilidade dos mesmos em futuras

publicações não será de ignorar. Aos conselhos e incentivos iniciais da Professora

Susana Trovão, que me encaminharam nas primeiras tentativas de investigação. À

minha orientadora Professora Ana Isabel Afonso, pelo apoio, orientação no sentido de

finalmente concluir a dissertação de Mestrado.

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ANTROPOLOGIA E SEM-ABRIGO: PERCURSOS DE INCERTEZA

PEDRO MOGÁRRIO FREITAS LEAL

RESUMO

A presente dissertação de Mestrado utiliza o conceito de sem-abrigo, definido

por alguém com falta de casa, enquanto estrutura física e emocional de apoio, de um lar

em que se vive em família. As definições utilizadas apoiaram-se em pesquisas prévias,

contextualizando a realidade dos EUA, Reino Unido e Portugal. A evolução histórica,

do contexto europeu e a capital lisboeta, numa breve contextualização sobre o seu

contributo nas políticas públicas, dirigidas aos pobres e aos sem-abrigo, e representação

social na visão da elite. A consulta bibliográfica de outras investigações realizadas

permite formular o conceito de sem-abrigo, servindo de linha orientadora da

investigação empírica, que tem por base testemunhos biográficos. A razão da escolha do

método biográfico, deveu-se à pesquisa de dados detalhados, na procura das

implicações e peso da exclusão social e situação de sem-abrigo. A escolha deste método

pesquisa, implicou um olhar de análise qualitativo. O acesso aos informantes e a

dificuldade de contacto prolongado para obter dados, deveu-se à imprevisibilidade de

rotinas dos informantes.

Durante o trabalho de campo, a obtenção de dados centrou-se em conversas

informais com pessoas sem-abrigo e desempregados, responsáveis por instituições,

como técnicos, voluntários, assistentes sociais e directores de instituições de apoio a

pessoas sem-abrigo. A observação participante decorreu pelas ruas de Lisboa,

destacando-se o bairro dos Anjos, o “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios”

e a sua cantina social onde foi feito voluntariado. O contacto com os informantes foi

mais intenso em cafés e jardins próximos como o Jardim de Campo Santana. Para

delinear o tipo de perfil estudado, são elementos fundamentais de caracterização, a

localização do sujeito durante o dia e noite, a sua relação com as instituições, desde as

razões de queixa aos elogios sobre as pessoas e o apoio que as essas instituições prestam

a esta população.

Noutra linha de pesquisa ilustra-se o cruzamento de questões fundamentais à

sobrevivência numa sociedade capitalista dos dias de hoje, na qual pessoas

denominadas sobre uma mesma categoria geral sem-abrigo, são resultado de percursos,

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com escolhas e condicionantes diferentes. Nesta investigação, foi dado relevo à

importância das relações familiares ou conjugais interrompidas ou de fraca

proximidade. Este é um denominador comum na vida dos informantes. Vidas cujas

rotas migratórias vieram trazer inevitavelmente mudança, deixando marcas indeléveis.

Desde a emigração portuguesa ao seu regresso, à imigração de cidadãos “P. A. L. O. P.”

(Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e brasileiros para Portugal. O pano de

fundo da falta de rede social no presente, o desemprego e precariedade prolongada na

vida dos informantes, contrastam com um passado em que o trabalho não faltava.

Alguns testemunhos têm como causa a dependência, de drogas e álcool, com abandono

desses consumos com ou sem ajuda médica.

PALAVRAS-CHAVE: Sem-abrigo, Antropologia, Migração, Biografias,

Exclusão Social

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HOMELESSNESS AND ANTHROPOLOGY: JOURNEYS OF

UNCERTAINTY

PEDRO MOGÁRRIO FREITAS LEAL

ABSTRACT

The present Master’s thesis uses the concept of homeless, defined as a person

that lacks a home as a physical structure and emotional support, a home with family life.

The definitions used were based upon previous researches, contextualizing also the

definition of the homeless reality in the USA, UK and Portugal. The historic evolution,

on the European context and in Lisbon, in a brief introduction and its importance

concerning public policies, how the poor and the homeless people were taken care of,

and also about their social representations in the eyes of the elite. The bibliographic

revision of previous homeless studies supports the formulation of the homeless concept

as investigation guidance, in order to proceed to empirical research using biographical

testimonies. The reason to choose biographical method was due to the search of detailed

data, as well as the implications of the social exclusion and homeless situation reflected

on the testimonies. The choice of this method involved a qualitative analysis. The

access to the informants and the difficulties of contact prolonged to obtain data, were

due to the unpredictability of the informants routines

During the field work the data was collected through the systematic use of

informal conversations, with homeless, employees, volunteers, social assistants, and

directors of homeless support institutions. The field work occurred on the streets of

Lisbon, mostly in the area of Anjos, in the social canteen of the catholic institution

named “Centro Social Paroquial de Arroios”, where the volunteering has taken place.

The contact with informants was also more intense in coffee bars and nearby gardens

like “Jardim Campo Santana”. The outline of the studied profile is based on

fundamental subject characteristics, its location during day and during night, the relation

with homeless institutions, the complaints and compliments on people and the support

given to the homeless.

Following another line of research, the intersection of key issues to survival in a

capitalist society of today is illustrated; in which people denominated on the same

general homeless category, are the result of different paths, with different choices and

constraints. This thesis emphasizes the effect of interruption or weak proximity of

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family or conjugal relations. These are common denominators that can be found among

the informant’s lives. Lives in which migration routes came to bring inevitably changes

and indelible marks. In the various profiles, portuguese migrants and their return, “P. A.

L. O. P.” and brazilians citizens that left their homes for Portugal. The common

background of lacking a social network, a prolonged unemployment period, and

precariousness in the informants’s life contrasts with a past where there wasn’t a

shortage of work. There are individual reports that are traceable to drugs and alcohol

addiction and at some point they manage to stop the consumption, with or without

medical help.

KEYWORDS: Homeless, Anthropology, Migration, Biographies, Social

Exclusion

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ÍNDICE

Nota Introdutória……………………………………………………………..………..2

Motivação pessoal…………………………………………………………..…………..3

Breve nota sobre a pesquisa dos sem-abrigo…………………………………….……7

Capítulo I: Estrutura conceptual………………………………………..…………….9

I.1 Definição do Objecto: Como definir um sem-abrigo?...................................9

Capítulo II: Estado da Arte………………………………………....………………..17

II. Os sem-abrigo nos EUA…………………………………………………….17

II.2 Os sem-abrigo na rua de Lisboa……………………………………………20

II.3 Contexto histórico na Europa Ocidental em Portugal…………….……….25

Capítulo III: Objectivos de Investigação…………………………….………………53

Capítulo IV : Metodologia…………………………………………………………...55

IV.1 Selecção de Fontes………………………………………………….…….55

IV.2 Trabalho de Campo………………………………………………….…..56

IV.3 Recolha de testemunhos biográficos……………………………….……..60

Capítulo V: Etmografia……………………………………………………………….65

V.1 Entre a Rua o abrigo e as instituições…………………………….………65

V.2 Albergue de São Bento……………………………………………….……73

V.3 Trabalho de campo em Autocarro…………………………………….…74

Capítulo VI: Informantes - chave……………………………………………………77

VI.1 Aatif - Relato biográfico…………………………………………………77

VI.2João - Relato biográfico.......................................................................85

VI.3 Paulo - Relato biográfico....................................................................89

VI.4 Rui - Relato Biográfico………………………………………………….98

VI.5 Domingos - Relato biográfico…………………………………………103

VI.6 Aatif, João, Paulo Rui e Domingos - Institucionalização……………..115

Considerações Finais……………………………………………………….………..123

Bibliografia……………………………………………………….……………..….130

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NOTA INTRODUTÓRIA

A ideia de realizar a presente investigação sobre os sem-abrigo em Lisboa teve

origem num episódio biográfico - que em seguida reporto – e que foi em grande parte

responsável pela concretização desta tese de mestrado que implicou, sempre algum

nível de envolvimento pessoal. Tal aspecto repercutiu-se, ora de forma positiva, ora

negativa, em toda a execução da tese, pelo que funcionou como acção motivadora no

seu desenvolvimento. Para além disso provocou também, medo de não ser bem recebido

ou até acusado de oportunista ou aproveitador ao utilizar as suas histórias como

“alavanca” para investigar, levando a que tivesse bastante mais cautela quando abordava

os meus interlocutores, mas também por recear que os dados obtidos estivessem

incompletos.

A tese realizada implicou envolvimento emocional, deixando a sua marca no

investigador. Procurar-se-á demonstrar que o percurso pessoal deste investigador

assinala o início do interesse pelos sem-abrigo. Como objecto de estudo antropológico,

o que muito contribuiu para a formulação das primeiras ideias e pensamentos.

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MOTIVAÇÃO PESSOAL

Foi na década de '90 que tudo começou, com um conjunto de interesses e

motivações que podem ser resumidos a uma frase proferida repetidamente ainda em

criança: Porque é os humanos fazem mal uns aos outros? Na altura, era uma pergunta

ainda vaga, é certo - assim como igualmente ingénua -, como são as perguntas de muitas

crianças. Esta minha inquietação de infância encontrava eco nos estímulos externos que

me eram conhecidos na época, desde a televisão, que me falava de conflitos mundiais,

geradores de pobreza, aos alertas ambientalistas, passando pelo que aprendia na escola.

O facto de frequentar uma escola pública desde cedo, fez-me testemunhar em primeira

mão aspectos da pobreza.

Porém, toda a indiferença perante estas questões, por parte de quem me rodeava,

chocava-me. Mas que podia fazer? Era apenas um miúdo. No fundo, foi aí que tudo

começou com os sucessivos porquês. Com o passar dos anos, foi-se intensificando o

desejo de compreender estas realidades. Estava motivado e, sempre que na escola para

além de notícias na televisão o tema se cruzava com estes interesses, inquiria mais sobre

o assunto. Quando tinha oportunidade via atentamente documentários, extremamente

reveladores. Nos últimos tempos de escola – na adolescência - já pesquisava na Internet.

Obviamente não se tratava da minha preocupação principal enquanto criança e jovem,

claro que havia muito tempo para brincar e jogar. Mas havia um interesse genuíno em

procurar respostas, persistindo a sensação de que tudo me era muito distante. Apesar

disso, já dava para perceber que nem sempre as coisas são como nos fazem crer que são.

Era só uma curiosidade, um interesse, nem havia um foco nos sem-abrigo. Lembro-me

de perguntar uma vez ao meu pai, se sabia como as pessoas que viviam na rua, lá

tinham ido parar. Nada mais. Eram apenas temas com que me cruzava,

esporadicamente. Ajudava a compreender o mundo em que vivia. Porém, era tudo muito

superficial. Como era próprio da idade.

O momento decisivo que direccionou o meu interesse em relação aos sem-abrigo

deu-se aos 14 anos. Não me lembraria para o resto da minha vida, se não tivesse sido

tão marcante. Era já noite, depois da hora de jantar. Estava com o meu irmão a caminhar

na rua, vinha de uma vigília que tinha sido organizada pelos professores, para que a

escola que frequentava não fechasse, quando fomos os dois abordados por um estranho.

- A vigília já acabou?- perguntou o desconhecido

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- Sim já acabou. - Respondemos os dois praticamente em uníssono.

- O que 'tão a fazer com a vossa escola é o mesmo que estão a fazer com os

condomínios. São os ricos a expulsarem os pobres desta zona da cidade. Aquele

condomínio no Alto de Santo Amaro foi por pouco que não tapou a vista ao miradouro

da capela. O que 'tão a fazer, é que acham que são donos da cidade só por terem

dinheiro. – Disse indignado em tom de intervenção.

- Sim é... - Respondi eu, meio surpreendido com o raciocínio, mas concordando

ao mesmo tempo.

-Reparei que os vocês os dois, atravessaram para o outro lado da rua quando

me viram.- Observou olhando para nós os dois. Não respondi, não sabia o que dizer,

sentia-me embaraçado.

- Mas eu não faço mal... Sabem eu vivo na rua... E 'tou agarrado à droga... À

heroína... As clínicas do Estado são más e já tentei largar... Mas a ressaca é muito

grande... Não soube aproveitar quando os meus pais me tentaram ajudar, e me

pagavam clínica privada... Hoje em dia já não os vejo... E hoje vou dormir à chuva e, é

mau e é difícil… - Desabafou.

- Mas eu tento ficar actualizado e comprar o jornal – partilhou Luís connosco.

- Vocês já experimentaram droga? - Continuou.

- Não. Não - respondemos os dois.

- Um conselho que posso dar para vocês jovens é que não experimentem a

droga, porque se experimentarem vai ser muito bom e vai ser muito difícil não

quererem mais e não ficarem agarrados. - Depois de um silêncio longo e

constrangedor.

- Pronto... olha a gente tem que ir- Dissemos.

- Ele (apontando para o meu irmão) já me viu, sabe que eu costumo 'tar sempre

no jardim. Se puderem dar-me medicamentos que às vezes fico doente e preciso, era

uma ajuda. Pá se me virem na rua, cumprimentem-me se precisarem de alguma coisa,

se alguém vos fizer mal procurem-me, toda a gente sabe quem é o Luís da cicatriz. - E

assim se despediu, depois do que parecia ser mais outro desabafo.

Fui para casa e o meu irmão, comparativamente à minha reacção estava como se

nada tivesse acontecido, mas eu sentia compaixão pela história contada, foi como um

balde de água fria que veio enferrujar a gaiola dourada em que vivia. A segurança do

meu mundo tinha desabado. Nada viria a ser como dantes. Abriu-me os horizontes, mas

fragilizou-me. Demoraria meses até que adormecesse esta preocupação. Não

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compreendia como era possível. Sentia-me mal, por ter tanto e, outros como ele, tão

pouco. Mas havia sobretudo uma grande interrogação, um grande choque e

desconhecimento sobre esta realidade.

Mais tarde, procurei-o pelas redondezas, mas nunca o consegui voltar a

encontrar novamente, queria tentar ajudá-lo e também compreender o que se tinha

passado. Lembro-me nitidamente que, sempre que olhava para as reportagens na

televisão sobre o assunto, pensava no Luís da Cicatriz onde andaria ele? Será que já

tinha saído da rua? Estaria na mesma zona? Isto, claro está, se ainda estivesse vivo.

Passariam anos, até tomar novamente contacto com a realidade.

Outras preocupações me fariam esquecer este encontro, até voltar a pensar

nestas recordações. Contudo, não era o mesmo, uma marca indelével na minha

consciência havia sido feita. De tal modo que tinha a intenção de entender anos mais

tarde este problema social, estivesse eu a estudar ou a trabalhar. Alguma coisa tinha que

fazer. Apercebi-me que algo tinha mudado em mim.

Se antes o problema era distante ao futuro investigador e de certa forma

relativizado, por tomar como certas explicações de que se tratava de um mal que só

acontece aos outros que têm mau rumo, depois do encontro, uma nova luz iluminou este

problema e fez-me mudar de perspectiva, como uma nova lente que me fazia ver a

profundidade humana de uma vida. A pergunta que se seguia era certamente, como se

tornou possível esta situação? De que se tratava afinal? Uma má escolha de caminhos

ou apenas uma falta de oportunidades?

Entre muitos pensamentos surgia a interrogação do porquê de milhares de

pessoas no mundo viverem nesta situação. Se dizia o senso comum, a “cultura geral” e,

até especialistas das várias áreas científicas que nunca tinha havido uma civilização tão

avançada no que diz respeito a haver tantas pessoas a viver um nível de vida tão

elevado. Então como era possível haver tal situação ímpar e pioneira, de haver tantas

pessoas a viver obrigadas e sem escolha na rua em pobreza material e social extremas.

Estes eram à época os pensamentos, todavia discutíveis, que brotavam da revolta que o

fenómeno causava ao futuro antropólogo.

Com o tempo, o choque inicial que me provocava alguma angústia e perturbação

foi-se dissipando, dando lugar a perguntas e pensamentos com intenções construtivas:

como poderiam estas pessoas ser ajudadas? Já na Universidade, a ideia que era

embrionária foi ganhando força ao longo do meu percurso académico, que surgindo

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assim uma pesquisa, em parte, autodidacta, que me permitisse compreender o que

levava alguém o que levava alguém ser sem-abrigo.

Primeiro pensei que o caminho fosse pesquisar sobre o que é a riqueza e a

economia para o ser humano. Durante o ano curricular do mestrado, comecei a

desenvolver uma reflexão científica mais séria. Coloquei de lado várias abordagens e

perguntas de partida que tinha formulado anteriormente. Decidi que tinha de focar o

percurso biográfico, por pensar ser relevante o passado, por um lado, enquanto

explicação do caminho tomado para ser sem-abrigo; por outro, trata-se de dar a

conhecer o que está por detrás de uma generalização vazia da categoria de sem-abrigo.

Optei então por recolher relatos biográficos, partindo de um conjunto de perguntas-

chave, por achar que para ter o nível de detalhe que queria, a narrativa biográfica seria a

melhor a aposta enquanto metodologia. Em vez de uma resposta generalizada, preferia

captar um conjunto diversificado e subjectivo de experiências vividas que ilustrassem

várias respostas e perspectivas.

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BREVE NOTA SOBRE A PESQUISA DOS SEM-ABRIGO

Sem o propósito de ser demasiado exaustivo, ao referir as ideias contidas nas

obras que foram lidas ao longo desta pesquisa, pretende-se apresentar uma breve síntese

das ideias-chave, sem as quais não seria possível elaborar um quadro conceptual.

No panorama do campo de estudos sobre sem-abrigo, distinguem-se as seguintes

abordagens: a abordagem antropológica, com enfoque para as características gerais que

enquadram o sistema social no tratamento dos sem-abrigo, sobressaindo, muitas vezes,

os estudos de carácter geral deste grupo socio-histórico. Em alternativa, privilegiaram-

se estudos etnográficos com aprofundamento da densidade e do pormenor que Geertz

recomenda. (Geertz, 1973) No domínio da sociologia, verifica-se uma alternância entre

a análise micro ou macro, merecendo especial destaque, os mecanismos da sociedade,

assim como pensamentos dedutivos a partir de observações que fazem notar

características próprias dos sem-abrigo. As Ciências da educação a Psicologia são os

domínios de estudo que reúnem maior quantidade e intensidade de divulgação,

distinguindo-se entre si pelo tipo de abordagem teórica psicológica a que recorrem. Os

estudos de serviço social assumem um carácter de relatório, apresentando de resultados

para elaborar futuras propostas políticas concretas. Os estudos de História procuram

reconstruir o ambiente e atmosfera sentida pelos intervenientes que deixam transparecer

o seu testemunho, através dos documentos históricos deixados (Aldeia, 2011: 5–6).

Depois de um diminuto começo de execução de teses sobre a temática, o assunto

regista um aumento no início do novo milénio (Silva 2011, 70–71). Metodologicamente

estes estudos divergem. Porém, tipos de metodologias iguais são usados em campos

disciplinares diferentes. Os estudos oscilam entre a via qualitativa com recurso a

histórias de vida, biografias, entrevistas semi-directivas; e quantitativa, com recurso ao

inquérito por questionário e a por outros métodos que demonstram sempre uma

correlação matemática entre os dados recolhidos. Mas é sobretudo a interpretação

teórica, quando relacionada com os dados empíricos, que deixa o cunho decisivo acerca

do campo disciplinar do autor em questão.

A presente tese adopta uma perspectiva antropológica, procurando interpretar os

dados recolhidos em trabalho de campo (recolha de biografias, entrevistas informais

feitas a sem-abrigo e ex-sem-abrigo, técnicos que gerem programas de apoio de acção

social aos sem-abrigo). Ao apresentar o percurso de quem foi parar à rua procura-se

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determinar qual o papel e influência dos técnicos das instituições de apoio, do mercado

trabalho, dos próprios sem-abrigo e dos seus familiares, enquanto agentes

influenciadores na vida deste grupo particular.

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CAPÍTULO I: Estrutura Conceptual

I.1 Definição do Objecto: Como Definir um Sem-abrigo?

Múltiplas definições e perspectivas foram abordadas perante um problema, que

tem diferentes contornos, consoante o contexto estudado, os respectivos sujeitos sociais,

o observador e o paradigma privilegiado. Para a execução desta investigação torna-se

essencial, a definição do objecto de estudo em questão. Assim, reflectindo um conjunto

de contribuições de vários autores, será feita uma definição do conceito de sem-abrigo

que resulta do diálogo com instituições, e investigadores que definiram de forma

diferente o que é ser sem-abrigo.

É preciso esclarecer que sem-abrigo é uma categoria social do pensamento do

senso comum, sendo apropriada enquanto categoria popular à qual têm sido atribuídos

diversos usos. Tem um uso político do aparelho de Estado, que gere apoios públicos

dados a quem se encontra em situação de sem-abrigo. Tratasse da delegação de

competências em instituições de solidariedade social que têm financiamento público do

Estado, da Igreja Católica, assim como de contribuições privadas, com autonomia de

funcionamento prestando contas em relatórios às respectivas entidades financiadoras.

As mesmas contam com a ajuda do trabalho prestado por voluntários, funcionários. De

destacar a função de técnicos como psicólogos e assistentes sociais que elaboram

relatórios internos, convocam conferências encomendam estudos, avaliam a dimensão

do fenómeno dos sem-abrigo e suas causas.

Na 61ª Sessão da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos

(2005), Miloon Kothari, dá a conhecer o relatório sobre habitação adequada, estimando-

se que no mundo inteiro haja entre 100 milhões de pessoas a morar na rua e mais de mil

milhões a viver em condições inadequadas. Existindo ainda entre 20 a 40 milhões sem-

abrigo nos espaços urbanos espalhados pelo mundo. (Kothari, 2005: 2-4)

As Nações Unidas propõem o seguinte significado para sem-abrigo: Homeless

households are those households without a shelter that would fall within the scope of

living quarters. They carry their few possessions with them, sleeping in the streets, in

doorways or on piers, or in any other space, on a more or less random basis (United

Nations, 1997: 50).

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O governo dos EUA reiterou a seguinte definição: those persons who lack

resources and community ties necessary to provide their own adequate shelter. (USGA

O, 1985: 5). Muitas definições procuram realçar a diferença de modo a caracterizar esta

população, sobressaindo a componente do estilo de vida:

… a special housing situation, to a special minimum standard, to the duration and the frequency

of a stay without shelter, to a lifestyle questions, to the use of the welfare system and to the being part of a

certain group of the population, to the risk of becoming houseless and to the possibility to move or not if

desired (Springer, 2000: 479).

Outras definições, ilustram diferentes dimensões culturais relativamente ao

fenómeno dos sem-abrigo, no Estados do Bangladesh e da Índia. Nas grandes cidades

encontram-se muitas pessoas a viver na rua, individualmente ou em conjunto enquanto

famílias. Tal situação em muitos casos, é totalmente voluntária, tratando-se de pessoas

originárias de meios rurais que preferem viver na rua e poupar dinheiro, enviando para

familiares a viver na sua terra natal, em vez de gastarem dinheiro numa habitação

urbana. Na China, a definição de sem-abrigo é cegamente flutuante, dizendo respeito a

indivíduos não registados ou sem registo estatístico pela posse de uma casa.

Normalmente estas pessoas vivem em casas de baixa qualidade, ou abandonadas, nas

áreas mais pobres das mais importantes cidades da China. Contudo, estas problemáticas

não têm o mesmo enquadramento social, nomeadamente na ligação à família e à terra

natal, na partilha de uma morada e na situação laboral, embora tenham em comum uma

situação visível de pobreza extrema. Pode-se afirmar que estas pessoas têm problemas

de habitação, por manterem regularmente contactos na sua rede social entre amigos e

família e, porque têm trabalho de modo a auferir rendimentos; estas pessoas podem ser

classificadas de pobres sem domicílio mas não de sem-abrigo. Tendo em conta, as

definições anteriormente usadas para explicar o que é um sem-abrigo (Lúcio, 2011:45).

A diversidade nas definições de sem-abrigo devem-se, principalmente, às

políticas de cada Estado, sendo a definição articulada com as contagens feitas a nível

nacional para delinear um planeamento de política social. Contudo, com frequência as

definições oficializadas, ao terem em conta apenas quem tem casa e que tipo de casa,

ignoram importantes problemáticas sociais, que acabam por não ser contabilizadas.

É imperativo esclarecer o significado da palavra que designa esta problemática

em Portugal:

Quanta gente pensa que o único problema dos sem-abrigo é a falta de casa. A própria

designação conduz a esse mal-entendido. O termo inglês, homeless, que quer dizer sem-lar (que é muito

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mais do que sem-casa), é mais expressivo e mais correcto. A falta de abrigo é, sem dúvida, um dos

problemas, porventura o problema mais urgente, que exige solução urgente, mesmo que transitória. Mas

na maior parte dos casos, não é o único. Daí que até esse alojamento transitório deva ser um alojamento

apoiado por conjunto de outras acções dirigidas aos outros aspectos do problema (supported housing)

(COSTA, 2002 apud BENTO e BARRETO, 2002:15).

A palavra sem-abrigo vem da palavra francesa sans-abri, em inglês designa-se

de homeless, dando relevo ao facto de uma pessoa viver não somente sem casa mas sem

um lar. O lar constitui uma dimensão emocional fundamental para o conforto

quotidiano. O que remete para a vivência familiar dentro uma casa comum. Sendo a sua

ausência, elemento chave para definir este conceito (Costa, 2004: 17–19 e Telheiro,

2013: 20–21): À noção de lar estão associados significados emocionais que têm a ver

com permanência, estabilidade, familiaridade, previsibilidade, refúgio, controlo,

privacidade e base de segurança a partir da qual se constrói a identidade e se expressa

a personalidade (Bento e Barreto, 2002: 90).

Somente nos anos '90 se tornou vulgar e popular o uso da expressão exclusão

social, quando políticas e equipamentos criam uma resposta especializada aos

problemas dos sem-abrigo. Os laços sociais e estatuto definem a exclusão social (Bento

e Barreto, 2002: 28). Elias Barreto conclui que são demasiados traumas que se sucedem

na maioria dos casos que levam à condição de sem-abrigo: Em suma, os sem-abrigo

parecem sofrer ao longo da vida uma série de perdas acontecimentos perturbadores,

contando com poucos recursos internos para fazer face de forma adaptativa a essas

dificuldades (Bento e Barreto, 2002: 200).

A fragilidade da rede de relações é uma constante que acompanha estas pessoas,

sem ambiente protector do mundo exterior enquanto esfera relacional sólida:

Este trabalho permitiu pôr em evidência as dificuldades dos sem-abrigo ao nível do sentido de

pertença familiar (predominando um padrão de desligamento ou de indiferenciação familiar), da

interiorização das funções parentais (ausência de um par parental unido e apoiante) (…) este trabalho

revela que os sem-abrigo dificilmente imaginam que têm espaço junto dos outros, e que os outros,

enquanto objectos predominantemente bons, dificilmente têm lugar consolidado entre eles (Bento e

Barreto, 2002: 201).

De igual forma se registaram sentimentos negativos decorrentes da situação de

solidão: Em suma, estes dados parecem indicar que a situação de solidão tende a

desencadear angústias de abandono ou então defesas narcísicas negando esses

sentimentos (Bento e Barreto, 2002: 191).

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É importante notar que sem-abrigo é também aquele que procura proteger-se

num interior de um prédio habitando-o sem a autorização do proprietário e, muitas

vezes, sem qualquer tipo de conforto, dado a ausência de mobiliário, electricidade ou

água canalizada. Tal era o caso de algumas pessoas que conheci que podem ser

incluídas desta maneira na categoria de sem-abrigo e, ao mesmo tempo de ocupas

involuntários. Dormindo em prédios ou complexos industriais abandonados pela cidade

de Lisboa que não tinham inquilinos legais. Muitas vezes dá-se uma partilha destes

espaços entre os sem-abrigo, que convidam quem sabem que está na rua para se

juntarem a quem ocupa o prédio para se sentirem mais seguros:

Okupa é, então, o termo que representa um ocupante ilegal de imóvel abandonado, que o habita

gratuitamente. (…) pode-se ser okupa por duas ordens de razão: por necessidade de sobrevivência – que

me vou referir como okupas involuntários -, ou por opção de estilo de vida – okupas voluntários. O

primeiro caso diz respeito a pessoas em pobreza extrema, eventualmente sem-abrigo, que são forçadas,

por uma questão de sobrevivência, a ocupar um espaço, em busca do mínimo de segurança e conforto.

Não se trata de contracultura nem sequer de cultura juvenil (Fernandes, 2012: 64).

O facto de não ter oficialmente emprego não significava, em muitos casos, a

total ausência de meios para satisfazer as necessidades básicas materiais e monetárias,

seja através da assistência de instituições de solidariedade privadas, religiosas ou

Estatais; que disponibilizam comida, roupa, habitação (pequenos quartos alugados ou

abrigos institucionais), medicamentos e até consultas médicas em hospitais públicos.

Quanto a fundos monetários, para além do rendimento mínimo de inserção social e, de

reformas por invalidez, reformas antecipadas (que nem sempre são aprovadas). Existem

sempre rendimentos não declarados, resultantes dos chamados biscates, como recolher

bens abandonados, procura metais preciosos para venda na sucata, vender roupa dada

por instituições a feirantes da feira da ladra, prestação de serviço de mudanças em

empresas por norma sem descontos ou contrato, arrumação de carros em troca de

moedas, pedidos de pequenos empréstimos a transeuntes e conhecidos, e até mesmo os

próprios rendimentos materiais ou monetários retirados de pequenos furtos.

A " F. E. A. N. T. S. A. " (Fédération Européenne des Associations Nationales

Travaillant avec les Sans-abri) elaborou uma tipologia denominada ethos, que se traduz

por “tipologia Europeia sobre Sem-abrigo e Exclusão Habitacional”. Nesta tipologia,

todo aquele que vive na rua ou em abrigos institucionais como soluções de emergência

social alternativas à dormida na rua, designa-se de sem-abrigo. Sendo que todas as

pessoas em alojamento provisório ou assistido são pessoas sem-alojamento. Vários

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estudos adoptam esta definição, para situarem balizas conceptuais que definem o

objecto de estudo respectivo (Alves 1996; Silva 2007 e Telheiro 2013).

O conceito de sem-abrigo usado nesta investigação enfatiza a adopção da

perspectiva emic (Silva 2007), que procura enfatizar a visão pessoal dos intervenientes

neste estudo - como algo fundamental para compreender o processo de recolha de

histórias de vida - com consequências no processo de investigação. A definição do

conceito de sem-abrigo que se utiliza neste estudo, aproxima-se das preocupações

demonstradas no estudo do ACIDI, que chama à atenção para a diversidade de situações

que ilustram a precariedade habitacional advir de condições igualmente frágeis de

vivência social. Sem contudo, ser tão incisivo acerca da situação conjugal e familiar.

Salvaguarda ainda que o senso comum entende a questão como uma responsabilização

individual do problema, sob a forma de estereótipos negativos marginalizados.1

Podendo sintetizar-se nas seguintes observações: Se considerarmos a condição de

pessoa sem-abrigo ou desafiliada num sentido lato do termo, ela não representa apenas

a ausência de uma habitação e a pernoita na rua, mas todos aqueles que não possuem

residência fixa ou com residência sem dignidade (Monteiro et al, 2013: 27).

A definição adoptada na presente investigação aproxima-se bastante da

anteriormente citada definição, considera as pessoas sem-abrigo, como aquelas que

viveram, pelo menos durante 6 meses ininterruptos, sem lar ou habitação onde viva uma

família de sangue ou afectiva e onde se partilhe uma vivência quotidiana. Assim sendo,

três elementos chave definem a condição de sem-abrigo: estar legalmente sem vínculo

com entidade patronal que forneça emprego, não ter meios próprios para sustentar uma

habitação, ter algum desligamento com a família nuclear ou parentes directos e viver,

por isso, sozinho. Esta definição do objecto de estudo enquadra-se em todas as pessoas

que entrevistei, as quais embora nem sempre tivessem família, mesmo quando tinham

viviam sozinhos sem casa própria, evidenciando um grau elevado de solidão, acentuado

pelas horas vagas que o desemprego prolongado proporcionava.

1 Perante o afastamento de quem vive com um rendimento fixo do seu trabalho, Wacquant (2001, apud

MONTEIRO, 2013: 24) alerta para a existência de um modo de vida alternativo: Cria-se, na ausência

de inclusão, novas redes de sociabilidade e novos hábitos e formas de vida na rua, que apesar de

permitirem a sobrevivência e a continuidade da sociabilidade humana, continuam a alimentar

imagens estigmatizadas de uma marginalidade avançada que acaba por limitar o tipo de políticas,

respostas sociais e atitudes profissionais e pessoais dos cidadãos, relativamente à prevenção e

resolução do fenómeno.

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O alojamento foi sempre identificado como fundamental para solucionar o

problema social de quem dorme na rua, seja por razões práticas de conforto, seja pelo

simbolismo dado à casa, nomeadamente enquanto lugar de descanso onde se tem a sua

higiene e onde, essencialmente não existe exposição permanente a quem passa na rua.

Ao olhar o objecto de estudo, caracterizar somente a estrutura de apoio em que se vive

exclui a análise dos relacionamentos humanos. Todavia, resolver o alojamento de

alguém aparenta ser mais fácil do que resolver os seus problemas de falta de emprego e

de ordem afectiva, nas suas relações familiares e conjugais. Porém, o facto de existir um

mercado imobiliário demasiado caro para quem, muitas vezes, nem o salário mínimo

recebe, (por viver de pensões ou prestações sociais) sem uma franca reformulação das

políticas públicas de habitação social pública e também no mercado do arrendamento

privado, dificilmente os problemas dos sem-abrigo e até da pobreza serão solucionados:

A ênfase em albergues transitórios, refeitórios, ou programas de tratamento ao álcool e doenças

mentais podem aliviar e satisfazer as necessidades de alguns sem-abrigo, mas se não se abordar a

questão da habitação é difícil que se consiga mais do que redistribuir os sem-abrigo. (…) Aqueles com

mais capacidades e autonomia para trabalhar enfrentam um mercado habitacional congelado e

inflacionado, podendo aceder apenas a quartos alugados, também eles pouco acessíveis (Bento e

Barreto, 2002: 90).

A investigadora Sandra Alves (1996); explicita o conceito de sem-abrigo no que

diz respeito à protecção social e às relações sociais:

… um indivíduo que simplesmente não tem um tecto. Conjuga estes factores com outros de igual

importância na estabilidade de qualquer indivíduo, como a noção de laços familiares, as boas relações

pessoais, as condições de vida satisfatórias e a integração na sociedade. Assim, é considerado sem-

abrigo, todo o indivíduo que não tem um espaço e laços com a comunidade onde se encontra. (…) todo o

indivíduo que vive efectivamente na rua, sem ter condições de, sem recorrer a um apoio social, pagar um

alojamento ( Alves, 1996:29).

Na obra Estudo dos sem-abrigo elaborada por um vasto conjunto de

investigadores do Instituto de Segurança Social, é definido o conceito de sem-abrigo

formulando dois tipos de perfis:

Os sem-tecto crónicos, com muitos anos de rua, há muito despojados de regras e de sonhos,

onde a doença (física e mental) e a degradação física imperam. (…) E os novos sem-tecto, pessoas que se

encontram há pouco tempo na rua, por múltiplas perdas (profissionais, familiares, individuais), que

necessitam de um mecanismo de mediação que lhes permita reconstruir o seu projecto de vida (ISS,

2005: 15).

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Outra dimensão do fenómeno sem-abrigo, referente a menores de idade que com

frequência variável, que pernoitam ou na rua, ou em instituições de acolhimento, devido

à falta de condições habitacionais ou ruptura dos laços familiares. A UNICEF destaca as

seguintes situações: crianças que vivem na rua, vivendo um dia de cada vez; crianças

que habitam áreas degradadas da cidade em grupo; crianças que esporadicamente

dormem na rua por insuficiente área na casa, pobreza ou abusos; crianças internadas por

serem filhos de sem-abrigo, correndo o risco de lhes seguir as pisadas (Pinto, 2001: 36).

Este fenómeno seguindo contagens de 1993, no Brasil, ascendia às 4500 crianças,

chegando aos 2000 processos no Tribunal de Menores de Lisboa. (Pinto, 2001: 52-59).

A fuga para a rua, enquanto ida para um espaço de acolhimento alternativo, surge

quando a família não fornece as referências positivas de protecção e conforto do mundo

externo, devido à desestruturação, pobreza, maus relacionamentos, falta de objectivos

de vida (Pinto, 2001: 63-65). O espaço da rua surge também representado de acordo

com valores tradicionais, enquanto teste da virilidade, fruto de ambiente agressivo onde

nasceu, espaço de liderança masculina. Os grupos frequentemente de maioria

masculina, sob domínio do chefe. (Pinto, 2001: 86). A virilidade associada pelo sexo

masculino ao espaço da rua é contrária ao espaço culturalmente destinado às mulheres:

a casa e a lide doméstica.2 De destacar a opção de viver na rua para evitar conflitos,

preferindo regra geral a falta de horários alimentares nem regras de higiene permitidas

na rua, como factores comuns são apontados a existência de pais alcoólicos e, o

contacto precoce com drogas e álcool (Pinto, 2001: 142-171).

2 Sobre a valorização cultural da experiência de viver na rua, a perspectiva feminina e masculina

revelam grande distância entre si: Uma consequência deste facto é que será mais difícil para os

rapazes do que para as raparigas o saírem da rua dada a tácita aceitação cultural, de que, de certo

modo para os meninos, o viver na rua é uma prova de virilidade, ao demonstrarem a sua capacidade

de viver expostos aos elementos naturais, sem abrigo.(Pinto, 2001:77)

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CAPÍTULO II: Estado da Arte

II.1 Os Sem-abrigo nos EUA

Nos Estados Unidos, existiam no início do século XX, conhecidos como Hobo,

comunidades de desempregados que regularmente se abrigavam nas cidades durante os

Invernos, quando os trabalhos sazonais agrícolas escasseavam. Embora desprovidas de

um lar tradicional, estes grupos partilharam, ao longo do tempo, alguns valores e

vivências em espaços comuns, como centros de lazer, restaurantes, hotéis e instituições,

imprensa própria e associativismo civil, geridas muitas vezes pelos próprios hobo,

direccionadas à sua realidade, com pendor político proliferavam. Chicago foi uma

dessas cidades que servia de porto de abrigo nos EUA aos hobo, onde doentes de todos

os Estados Americanos vinham tratar-se nas instituições, onde também procuravam

ofertas de emprego que se encontravam concentradas em Chicago. As mulheres e

crianças eram, por definição, inexistentes nestas comunidades (Anderson 1923).

Skid Row constitui outra denominação da comunidade homeless, caracterizada

por pessoas sem-abrigo que vivem sem residência permanente e formam comunidades.

Os sem-abrigo, na Europa, podem ser caracterizados por um grande individualismo.

Apesar da ausência de vida comunitária, usufruem com regularidade de ajuda

institucional e até de espaços comuns subsidiados pelo Estado social. Contrastando com

os sem-abrigo nos EUA, que se agrupam em comunidades, enquanto espaço

privilegiado, formando uma subcultura que vive segundo padrões de vida considerados

desviantes, à luz de condições de vida de classe média. Eram frequentemente sujeitos a

apertada perseguição policial com julgamento penal pelo acto de vagabundagem,

ocupando postos precários e sem qualificações no sector primário e secundário,

instituições religiosas e estatais; e prestavam auxílio na comunidade, usufruindo de

várias modalidades de alojamento temporário. Alvo de estigma por aqueles exteriores à

comunidade Skid Row, entre os comportamentos típicos praticados destaca-se o

consumo elevado de álcool, sendo que a não concordância com este padrão conduzia ao

isolamento. Quem saía da comunidade Skid Row para trabalhar ou visitar amigos e

familiares, estabelecia laços com o mundo exterior e aproxima-se da normatividade

colectiva (Bahr, 1967: 273).

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Não existem somente sem-abrigo nestas comunidades dos EUA. À semelhança

da realidade europeia há também pessoas que usufruem dos serviços sociais

institucionais (como abrigos ou cantinas), mas que preferem viver o tempo de lazer na

rua. Para fugirem aos olhares alheios, procuram não serem vistos, tentando ocultar os

seus crimes, sejam eles comprar, consumir droga, pequenos furtos, ou até, simplesmente

fugir à criminalização do auxílio a sem-abrigo.3 Muitos preferem zonas escondidas e

cobertas, que se encontram afastadas dos centros das cidades, nomeadamente debaixo

de viadutos de auto-estradas e vias rápidas (Bourgois e Schonberg, 2009).

Nos Estados Unidos, as políticas governamentais determinam a generalização

dos serviços de assistência social nos abrigos institucionais criados para o efeito, pelo

que é oferecido tratamento psiquiátrico - através de uma leitura dos seus problemas

pessoais - segundo a linguagem da psiquiatria, que atribui a cada situação das pessoas

em situação de sem-abrigo uma doença:

While many cities have opted to criminalize homelessness, federal agencies and some local

communities have responded by advocating a “continuum of care” approach. (…) On the other hand,

however, the “continuum of care” approach also does not fundamentally address questions of access to

and distribution of resources in the community. In fact, I argue here that the focus on “disease” within

the discourses hinders developments aimed at resolving homelessness through altering class, race, or

gender dynamics (Lyon-Callo, 2000: 330).

De fazer notar a visibilidade de sem-abrigo nas ruas de cidades como Nova

Iorque, onde podemos encontrar não somente homens solteiros como na década de '30,

mas famílias que superam em número os sem-abrigo da Grande Depressão de 1930

(Hopper 2003, 176). De registar um aumento dos sem-abrigo, na passagem dos anos '60

para anos '80; com a desinstitucionalização de doentes dos hospitais psiquiátricos.4

Os censos de 1990, espelham os grandes fluxos migratórios que se fixaram

enquanto residentes pobres dos EUA, constituindo 50,6 % do total da amostra, com a

categoria de brancos a ocupar 49,4 %. No mesmo censo eram referidos 95,2 % sem-

3 Várias cidades têm aprovado medidas com o objectivo de reprimir o auxílio aos sem-abrigo:

Combined, these measures represent a 47 percent increase in the number of cities that have passed or

introduced legislation to restrict food sharing since the coalition last counted in 2010. Mais

informações sobre a criminalização da assistência aos sem-abrigo nos EUA consultar:

http://www.npr.org/blogs/thesalt/2014/10/22/357846415/more-cities-are-making-it-illegal-to-hand-

out-food-to-the-homeless

4 A extinção de hospitais psiquiátricos rapidamente se fez notar pela ausência de infra-estruturas de

apoio para este perfil especifico da população sem-abrigo: By the late 1960s in England and early '70s

in the United States, it was evident that badly planned and poorly implemented deinstitutionalization

policies effectively meant that some former hospital inmate had nowhere to go (Hopper 2003, 118).

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abrigo a viver em áreas urbanas e, apenas 4,8 % em áreas rurais. A maioria dos sem-

abrigo não eram casados e os que foram casados estavam separados. A maioria não

chegou ao ensino secundário. Quando trabalhavam já se encontravam a receber

assistência de organismos públicos. (Helvie e Kunstmann, 1999: 11)

Entre as causas apontadas para o aumento assistência social sobre os sem-abrigo

nos EUA, destaca-se: a inflacção, o mercado imobiliário inflaccionado, a

desinstitucionalização pouco planeada sem haver programas de acompanhamento

domiciliário dos doentes mentais, o desemprego, o afrouxamento dos laços e

responsabilidades tradicionais, as políticas de corte na assistência social do governo de

Reagan. Acrescentando ainda a conjuntura estrutural económica dos anos '80 nos EUA,

cuja recessão que ditou lay-offs e despedimentos em massa, desempenhou um papel

importante (Helvie e Kunstmann, 1999: 11-12).

Quanto aos factores que causam a situação de sem-abrigo, os investigadores

enumeram:

Causes can be separated into personal and societal structural factors. Personal causes include

illness, disability, domestic violence, substance abuse, and marginal job skills; structural variables

include housing shortages, racism, deinstitutionalization, inadequate education systems, inadequate

income support, and changes in the economics in the industry. A combination of any of these factors may

lead to homelessness (Helvie e Kunstmann, 1999: 12).

Tecendo ainda recomendações para prevenir o fenómeno:

The primary approach is the more comprehensive one and aims at strengthening the individual

in a competitive labor and housing market (…) If these preventive approaches do not exist or fail, a

secondary approach based on emergency measures to mitigate the extraordinary personal crisis can be

activated. Those measures can include additional financial benefits, counseling services and emergency

accommodations (Helvie e Kunstmann, 1999: 233).

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II.2 Os sem-abrigo nas Ruas de Lisboa

Ora, reconhecer a existência de factores estruturais como barreiras no acesso ao

mercado de habitação, ao mercado de trabalho, processos de estigmatização e de

exclusão social não implica que se conclua que os problemas individuais que os sem-

abrigo possam apresentar sejam um mero reflexo da conjuntura estrutural. Nem o

inverso ao reconhecer, a existência de factores individuais anula a importância dos

factores estruturais (Bento e Barreto, 2002: 80).

Note-se as características gerais enquanto investigação relacionamentos e

solidão:

Sabemos que as representações sociais de solidão, abarcando uma enorme heterogeneidade de

significados, repousam num circularidade lógica que se institui como obstáculo à interpretação. A

solidão seria simultaneamente causa, efeito e mecanismo produtor dela mesma. Optando assim por via

empírica: Então tomei uma decisão. Porque a solidão existe na medida em que é vivida, iria à procura de

quem vive. Quer isto dizer que desisti da «solidão em geral», que de tão geral só interessa enquanto

generalização, procurando descobrir os distintos rostos nos rostos distintos de quem vive (Pais, 2006:

15).

É de destacar as conclusões a que chega, confirmando o uso da categoria social

de sem-abrigo entre duas posições antagónicas: ora com ódio ilustrado em gestos como

cuspir para o chão ou até a agressão verbal e física, que demonstram o incómodo e no

limite o desejo de morte perante os sem-abrigo. No extremo oposto encontra-se a

compaixão manifestada na esmola, dada devido ao desconforto de não saber como

ajudar alguém tão desamparado. Podemos até afirmar, que quando se fala em investigar

os sem-abrigo, raras não serão as ocasiões em que surgem piadas maliciosas de

despromoção social do seu estatuto.

Machado Pais ilustra o que é ser sem-abrigo através de exemplos bem diferentes,

no que toca à sua atitude com o mundo exterior. Este é um ponto-chave: como é

percepcionada a diferença para o próprio sem-abrigo e para as restantes pessoas?

Bastante comum, é a primeira atitude, de alguém a viver na rua (num abrigo

institucional é também o mesmo tipo de atitude) que se recuse quando directamente

abordado para falar sobre a sua situação a um estranho. É difícil saber o que vai pela

cabeça deste tipo de pessoas que se recusa a falar, quando efectivamente a única certeza

é que querem permanecer no seu anonimato que a rua lhes fornece, onde pelo menos

quando se anda a pé por Lisboa, se é apenas mais um, aparentemente igual, a tantos

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outros, sem diferença na hierarquia social e na forma de tratamento. Estas pessoas, à

parte do facto de estarem na rua, são como tantas outras que fazem a sua vida e não

querem atenção e luzes sobre si próprias. Talvez se possa pensar, que não querem

justificar-se com explicações, sobre algo que nem elas percebem bem como aconteceu.

Isto, porque ir para a rua é um acontecimento que não se dá de um dia para o outro. São

várias as maneiras que podem resultar numa ida para rua, mas explicar, ou

simplesmente contar, implica passar emocionalmente por uma experiência pesada que

custou e ainda custa. É preciso não esquecer que também implica uma intimidade de

laços que é difícil criar assim que se conhece uma pessoa.

Mais raro de encontrar – refere-se a pessoas que estão dispostas a encarar

positivamente a sua experiência de vida e a partilhar as suas vivências, que espelhando

o que sentem, assim como relatando interacções negativas de exclusão em forma de

desabafo. De tipo aberto, sincera e reflexiva; algo que adquiriu com o tempo passado

consigo mesmo enquanto observava outros, caracteriza a análise do investigador, cuja

conversa com o entrevistado foca precisamente um ponto essencial da urbanidade, onde

desconhecidos se cruzam e sem falarem ou sem se conhecerem, se julgam apenas pelo

que podem conhecer, pelos códigos da exterioridade que o olhar observa. De certo

modo, os comentários do interlocutor que vive na rua, deixa uma crítica social à

precipitação do julgamento a que leva a troca de olhares cruzados, numa leitura de

quem passa na rua, em que se procura rapidamente resposta de modo a acalmar a ânsia

perante desconhecido.

A ligação aos animais afirma, é sinal de quem não tem mais companhia e

atenção, desenvolvendo com eles uma ligação notável que talvez possa ser explicada

pela fidelidade diária que estes têm, que não se tem quando afastado de humanos

diariamente. Embora se possam ver pessoas todos dias o não estreitamento de laços

sociais e de momentos de partilha duradouros que forneçam apoio emocional,

enfraquecem a alma.

Questionando até a eficácia de premissas assentes na lógica de assistência social

aos sem-abrigo, mas sempre numa óptica de compreender a realidade para ajudar com

propostas de resolução do problema a nível europeu, declara a visão do risco como

inerente à própria vida humana:

Cada indivíduo possui um «crédito pessoal de risco» que vai utilizando na construção do seu

projecto de vida (e moral) de acordo com as suas expectativas. Este crédito engloba factores como as

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condições socioeconómicas de origem, na medida em que estas começam por determinar o seu leque de

possibilidades iniciais (educacionais, habitacionais, entre vários) (Menezes, 2012: 13).

Considera igualmente que a pobreza acarreta riscos associados ao facto de existir

uma diminuição dos laços de solidariedade entre família, vizinhos e aumento do

desemprego e progressiva formação e modernização do emprego criado. Segundo a sua

investigação, são as principais dimensões que podem levar à situação de sem-abrigo

dependendo da biografia de cada um, que gerou a necessidade de recorrer a apoios

sociais do Estado, dependência de drogas ou álcool, rupturas familiares (Menezes, 2012:

39).

De destacar que resulta do impedimento na obtenção do emprego o facto de ser

pedido em entrevistas de emprego uma morada ou uma conta bancária. Em caso de

aceitação, a ajuda das instituições de solidariedade social, poderá contemplar uma de

duas situações:

Ter um emprego enquanto sem-abrigo (e passar pelas dificuldades já mencionadas como

transportar bens pessoais, conseguir alojamento de emergência, etc.), ou esperar por uma solução

habitacional apoiada sobrevivendo através do apoio social, e ver as suas dificuldades de obter emprego

como desempregado de longa duração aumentarem (Menezes, 2012: 55).

O destaque dado à dimensão política da pobreza, questionando o conceito

moderno de democracia enquanto sistema político e os direitos que concede, entre as

várias chamadas de atenção que faz, acerca da atitude tomada pela sociedade,

adverte: … focamos a atenção nos pobres e nos excluídos (indivíduos), e reflectimos

menos na pobreza e na exclusão social (fenómenos sociais) (Costa, 1998: 38). Enquanto

problema social, de entre a multiplicidade de significados da palavra, o autor afirma: …

qualifico de social um problema cujas causas se encontram na sociedade (Costa, 1998:

38). Bruto da Costa vê a pobreza enquanto fenómeno cíclico, constituindo um jogo de

forças desequilibrado: estilo de vida, cultura dominante, estrutura do poder político,

económico, social e cultural, mudança estatuto económico para geração seguinte. A

eliminação dos mecanismos sociais que produzem pobreza, trariam mudanças sociais,

chamando à atenção que a escola na maioria dos casos não impede a progressão do ciclo

de pobreza.

O enfoque dado à questão enquanto problema político da própria sociedade em

que vivemos, cuja responsabilidade deve ser repartida pelos indivíduos, enquanto

cidadãos activos de uma democracia. Esperando-se dos responsáveis políticos e

institucionais que tomem medidas de redistribuição da riqueza como o Rendimento de

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Inserção Social, equipas multidisciplinares de estudo, projectos de formação

profissional e de reabilitação social com participação efectiva de quem é excluído entre

outras medidas (Costa, 1998: 56).

Para o autor, a pobreza é conceptualizada, enquanto realidade que espelha uma

série de handicaps estratégicos, que enfraquecem o ideal político de cidadania, quando

o mesmo é exercido em pleno direito. Como o próprio afirma:.. a exclusão de um

sistema social básico acarreta a exclusão de outros sistemas sociais (Costa, 1998: 33).

A cidadania, define-se pelo acesso ao conjunto de sistemas sociais básicos a que o

cidadão tem direito, por estar previsto na legislação nacional. Nomeadamente, a nível

social, económico, institucional, territorial, referências simbólicas. Especificamente, é

necessário ter em atenção a intensidade da exclusão social, enquanto processo. Contudo,

pobreza tem significado distinto de exclusão social. A pobreza define-se pela privação

de recursos. A exclusão social caracteriza-se pela falta de condições básicas:

alimentação, vestuário, condições habitacionais, meios de transporte, comunicações,

condições de trabalho, possibilidades de escolha, cuidados de saúde, educação,

formação profissional, cultura, participação na vida social e política. De salientar a

relação causal entre estas variáveis enquanto processo activo de exclusão social. Ser

pobre, é estar destituído de poder devido à importância material e simbólica do dinheiro,

a erradicação da pobreza implica devolver ao pobre o poder perdido. Nomeadamente

poder: político, económico, social e cultural.

As más condições habitacionais e a pobreza tendencialmente geram tensões, que

podem originar rupturas familiares e comportamentos destrutivos como o alcoolismo.

Existindo uma perda da anterior identidade que corresponde a uma posição perdida na

sociedade, sucedendo-se uma nova identidade derivado da nova situação (Bruto da

Costa, 1998: 28). Operacionalmente trata-se de inquirir as causas de determinada pessoa

viver na rua, regra geral, desentendimentos familiares ou conjugais segundo autor: ...o

abandono da casa pode não ser mais do que uma consequência do verdadeiro

problema, que pode estar, por exemplo no desentendimento no seio do casal ou da

família (Costa, 1998: 82). Não obstante, trata-se de igual modo de compreender o

conjunto de casos estudados: É verdade que cada «caso» é um caso, mas não menos

verdadeira a verificação de que o conjunto dos casos também tem «causas comuns» e

estruturais, que revelam que enquanto problema social não se resolve sem mudanças

sociais (Costa, 2004: 17).

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Relativamente a contagens de sem-abrigo realizadas na cidade de Lisboa, o

LNEC contabilizou em 2000 um total de 1366 sem-abrigo, entre os quais 91 são apenas

potenciais e os restantes 1275 foram efectivamente observados. As freguesias com mais

sem-abrigo sofrem mudanças relativamente ao estudo anterior de 1998, nos três lugares

cimeiros estão: Beato em primeiro com 363 sem-abrigo (26,6%), Campolide com 159

sem-abrigo (11,6%), Alcântara em terceiro lugar conta com 92 sem-abrigo (6,7%). No

estudo de '98 registou-se aproximadamente, 600 homens em proporção para menos de

100 mulheres, no estudo de 2000, contou-se 794 homens para 162 mulheres (LNEC,

2001: 31–39 e LNEC, 1999: 49).5

Contrariamente aos EUA, os sem-abrigo em Portugal não formam uma

comunidade, não estão inseridos num grupo que está unido num espaço e actividades

partilhadas. Inserem-se no grupo de “sem-abrigo individualistas” por antítese aos “sem-

abrigo comunitários” (hobo e skid row nos EUA). Enquanto categoria designada pelo

mesmo nome, agrupadas segundo definições oficiais de políticas de assistência social,

com biografias semelhantes devido a um estilo de vida semelhante. Mantêm relações

superficiais onde sabem pouco da vida das pessoas com quem se dão, não mantêm

sólidos laços ao longo do tempo que vivem na rua. Existem na maioria das vezes como

conhecidos, não mantendo um sítio geográfico de referência na cidade de Lisboa, seja

na rua ou em abrigos. Mas mantêm um sítio de referência onde se desenvolve o seu dia.

Passam, portanto, por uma mudança constante de sítios de passagem ou de vivências e

das relações que mantêm, iniciadas quando tinham residência própria. Existem duas

características únicas no que se chama de sem-abrigo: não têm residência fixa agregada

à existência de laços de parentais. Não estamos perante uma comunidade com uma

cultura própria, em que laços alargados de vizinhança, amizade e parentesco

estabelecem uma coesão social através de uma partilha de práticas comuns.

Ao traçar perfis segundo uma investigação empírica, evidenciam-se diferenças

estruturais que estas pessoas têm, resultado da sua biografia e personalidade

diferenciadas. A não constituição de uma comunidade, nem a partilha de um conjunto

5 É de fazer notar que numa contagem realizada no dia 14 de Maio de 2015, por 1200 voluntários que

percorreram as ruas de Lisboa, contabilizaram um total semelhante: Durante a noite, foram

sinalizados 440 sem-abrigo na rua e 376 em centros de acolhimento, totalizando 816, o que se traduz

num decréscimo relativamente a 2013. Na primeira contagem realizada em Lisboa, foram sinalizadas

853 pessoas a viver nas ruas da capital. Para mais detalhes acerca da contagem realizada pela Santa

Casa da Misericórdia de Lisboa consultar: http://www.scml.pt/pt-

PT/destaques/recontar_os_sem_abrigo_em_lisboa/

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de crenças e comportamentos fruto de um distanciamento pessoal, onde raramente

existem laços de proximidade e interesses comuns. As diferenças registadas, apontam

que, contrariamente à percepção de senso comum, que identifica as pessoas sem-abrigo

como um todo igual, rapidamente é possível verificar que se trata de uma categoria que

está estilhaçada de várias maneiras. Esta heterogeneidade, fácil de identificar, apenas os

une na condição de sem-abrigo, nos diferentes percursos de vida. O que não

corresponde necessariamente a um relacionamento de proximidade. A partilha de uma

condição estruturalmente comum, verificando-se: O desemprego, a precariedade, a

relegação (o abandono) certamente são sofridos por indivíduos que podem sofrê-los no

isolamento, mas também são experiências colectivas que exprimem o destino comum de

alguns grupos sociais (Castel, 2006: 72).

A sua diferença é notável, nos mais variados indicadores sociodemográficos tal

como o facto de não possuírem um elo de parentesco entre si, não se manterem unidos

com um número significativo de laços fortes, não terem uma origem única comum

ligada a um sítio onde reúnem toda a descendência. A diferença de comportamentos que

os identifica segundo padrões de vida tradicionais, são a ausência de uma família

constituída por descendência, uma habitação e de um emprego.

II.3 Contexto histórico na Europa Ocidental e em Portugal

Ligado à noção de sem-abrigo, a concepção de mendigo conhece várias

transformações ao longo do tempo. Uma linha de continuidade pode ser encontrada,

relativamente a uma definição de marginalidade e de exclusão social. Este grupo

heterogéneo, é visto sempre com falta de algo em relação as restantes pessoas: sem

trabalho, sem família, sem cidadania, sem ocupação, com demasiado ócio (Pinto, 1999.

Bastos, 1989 e Relvas, 2002).

Durante o século XIX havia três nomenclaturas para quem pedia na rua: vadio

para todo aquele considerado capaz de trabalhar (mendigo válido) e que pedisse esmola

na rua. O mendigo classificado como inválido podia pedir na rua, mediante autorização

das autoridades competentes, no decorrer dos anos em que a legislação penal previa,

devido à sua situação de incapacidade. Por último, o pedinte profissional, que pedia

durante anos, embora detendo posses próprias, como uma casa e bens preciosos como

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pratas. Eram frequentemente acusados nos jornais pelas elites, indignadas com a sua

fácil acumulação de fortunas. Inicialmente eram apenas previstas políticas públicas

repressivas, com internamento em prisões e envios para o degredo, assistindo-se a uma

propagação de políticas de regeneração pelo trabalho.

O auxílio aos pobres, vagabundos ou mendigos, praticava-se já na Idade Média

e, até, antes, a título individual ou colectivo de benfeitores e, pela Igreja Católica, cuja

doutrina assentava num acto de fé, praticado em que os ricos deveriam dar aos pobres

para receber salvação divina.

Da caridade à repressão na Europa Ocidental

A assistência aos indigentes possuía uma dualidade de critérios. No século XIV,

a imposição legislativa da coroa ditava que, pedintes saudáveis, fossem

obrigatoriamente trabalhar, sofrendo condenações em caso de desobediência. Os

restantes pobres incapazes eram assistidos. No final do século XIV, a associação da

criminalidade à mendicidade era crescente. Neste contexto, surgem as casas de trabalho.

Fundadas maioritariamente no Século XVIII por toda a Europa do Norte: Holanda,

Noruega, Finlândia, Áustria, Dinamarca e Alemanha. Abriam casas de trabalho, cujo

modelo ideal era como a casa de trabalho de Londres, aberta em 1557, a qual ocupava

regularmente desempregados. (Relvas, 2002: 14)

De destacar que a criação de casas de trabalho na Europa no séculos XVII e

XVIII, se fica a dever a uma lógica de regeneração e repressão da mendicidade.

Procurou-se adaptar vadios à lógica capitalista da valorização do valor do trabalho,

enquanto forma de reeducação e de afastamento dos hábitos ociosos. Como refere

(Bastos, 1989: 104) o desfasamento temporal português das primeiras iniciativas da tese

social da regeneração moral através do trabalho, que se iniciam no final do século

XVIII, explicam-se devido à tardia industrialização de Portugal e aos valores católicos

menos propícios à implantação destas medidas repressivas da mendicidade.

Quanto às penas aplicadas, em Inglaterra lei de Vadiagem de 1597 os mendigos

e vadios eram deportados para as colónias – para trabalhar ao serviço da coroa.

Inicialmente a deportação dirigia-se apenas para o actual território dos EUA,

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posteriormente também para onde hoje se situa o Estado Australiano. Igualmente em

França, em 1718 pedintes e vagabundos eram deportados, após enclausurar os mesmos

no Hospital Geral de Paris, criado em 1656. Quatro anos mais tarde a contestação

popular faria revogar a medida de deportação. Espanha e Itália também tiveram os seus

hospitais para mendigos.

Pobreza e assistência em Portugal: visões das elites e governos

O êxodo rural, levou à concentração de pessoas sem trabalho e residência em

grandes metrópoles urbanas, como Lisboa. A solução apontada no século XVIII

reflectia a opinião; exprimida por liberais intelectuais, cuja solução passaria pela

iniciativa privada, isto é, por uma política de incentivo ao trabalho, descurando assim, a

faceta de uma política social.

No início do Século XIX a pobreza aumenta, aumentando as desigualdades entre

classes altas e classes baixas. Surgem, então, vozes socialistas, entre outras, que

reclamam uma política por parte do Estado, dentro dos ideais burgueses. O

reconhecimento de que os activistas de organizações de altruísmo social teriam

necessariamente que ter ajuda do Estado. No final do mesmo Século, na Europa

Ocidental inicia-se uma assistência básica. Com a distribuição de alimentos em época

de crise e com a assistência domiciliária. As classes que trabalhavam, consideradas

respeitáveis, ensaiavam formas de assistência mútua como cooperativas. Segundo a

historiadora, o pavor dirigia tais políticas, pois o principal objectivo era eliminar a

existência de mendigos e vadios.6

Ao nível das representações e imagens, que suscitavam os pedintes na restante

população, é de fazer notar duas distintas abordagens, num plano discursivo, elites

intelectuais opinavam em periódicos, manifestando o medo de uma eventual revolta, o

repúdio pela existência de pedidos de ajuda. Num outro tom situavam-se pintores, (que

desde a idade média) registavam visualmente uma preocupação de cariz social, embora

reproduzissem estereótipos resultantes de dramatizações artísticas. Os estrangeiros,

6 A ideia de bode expiatória entre as elites foi ganhando força, pedindo-se medidas concretas enquanto

solução: Mais do que o sentimento de culpa, o pânico e o medo dominaram as novas políticas sociais;

os mendigos/vadios … eram o principal inimigo a atingir, os primeiros a suscitar medidas policiais,

tendo em vista a sua erradicação. (Relvas, 2002: 16)

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28

descreviam ao pormenor uma Lisboa, cuja miséria os parecia chocar (Relvas, 2002: 20-

29).

A discussão era feita em praça pública, especialmente a partir da segunda

metade do século XIX. Nos periódicos, era notória a preocupação de separar classes

laboriosas das classes ociosas: entre quem trabalhava e tinha pouco dinheiro; e entre

quem não tinha dinheiro por não trabalhar. Nesta separação, classes ociosas eram a

origem do mal da sociedade, por não trabalharem por sua vontade. Estas deveriam ser

tratadas como criminosos que precisavam de reeducação que passava pela introdução de

hábitos de trabalho. Nesta classificação, a venda ambulante era confundida com

mendigar. Pretendia-se evitar ao máximo os comportamentos de má moral, excluindo e

dando má fama a esses grupos, marcados pela prática de jogo, alcoolismo, furtos

(Relvas, 2002: 30–31).

O medo de transmissão de doenças era recorrente sobressaindo a noção de

espaço social distinto entre classes, que importava preservar a todo o custo. Tratava -se

fundamentalmente de um jogo de classificação social, no qual a burguesia se apavorada

com a vida levada pelas classes mais pobres. Como principais factores apontados: fraca

higiene, sobrelotação e confinamento do espaço das casas, pouco arejamento de ruas

estreitas, acumulação de lixo pela cidade. A insuficiência monetária do povo, a falta de

investimento público na gestão da limpeza da cidade, por exemplo nunca era tida como

fonte das epidemias. Para a elite, ser pobre era sinónimo de pouca higiene, epidemias e

crime (Relvas, 2002: 81–83).

Do julgamento moral às sanções legislativas

Crime, miséria, pobreza, tudo era considerado um mal que era necessário

reprimir e controlar rigorosamente. Existindo assim filantropia, caridade e repressão em

conjunto devido à atitude binária do Estado, a legislação variava frequentemente. Tudo

dependia dos governos ao definirem quem merecia ser ajudado – a sua justa aplicação

ou não - dos dispositivos legais por parte de organismos públicos. Sem realmente

conhecer quaisquer factos, a acção repressiva policial e judiciária constituía um

aparelho acusatório, que agia regularmente e indiscriminadamente ao avaliar a moral do

cidadão. Pedintes e pobres eram confundidos e a aparência era critério de avaliação de

ilegalidades. Os pequenos delitos eram classificados como perigosos e associados a uma

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marginalidade, sendo adicionados ao crime de vadiagem que, com as novas mudanças,

constituía um leque alargado de diferentes situações.7 Entre os criminosos julgados,

importa realçar que a estatística oficial não tinha lugar para pessoas que fossem

trabalhadores agrícolas, estes eram remetidos para categoria de vadios por não terem

profissão reconhecida.

Os dados fornecidos de 1890 até 1910 permitiram à investigadora estabelecer

duas grandes conclusões: uma larga maioria de homens preenchia os números desta

população e, uma maioria relativa era originária de fora de Lisboa (no caso das

mulheres) e de Lisboa (no caso dos homens); com menos de vinte anos de idade,

encontravam-se a maioria dos mendigos, fossem homens ou mulheres. A mendicidade e

o furto eram os crimes mais comuns (Relvas, 2002: 44–46).

7 Entre os crimes mais frequentemente julgados estavam:… falsos mendigos, os exploradores de

mendicidade de menores de dezasseis anos, os que cedessem guia de trabalho a outrem, os que

exercessem mendicidade sob a simulação de venda de lotarias, cautelas ou artigos de comércio, ou

prestação de outros serviços semelhantes os proxenetas, os rufiões e os homossexuais. (Relvas, 2002:

37)

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Código Penal sobre os sem-abrigo

Data da legislação Descrição da lei

século XVIII Primeira regulamentação em Portugal dos pedintes, introduz o

Bilhete de Intendência Geral da Polícia que servia de credencial

aos inválidos que sem obrigação de trabalhar podiam mendigar

18 Outubro de

1806

Determina que o mendigo que fosse inválido, para além da

obrigatoriedade de ser ajudado pelas Misericórdias, tinha que

andar com uma carta guia que lhe era fornecida, de modo a

identificar-se nas suas deslocações de terra em terra

Abril do ano de

1836

Proíbe pedir esmola acompanhado de actos musicais de rua, sendo

necessária licença especial do governo civil para os cegos tocarem

instrumentos musicais.

30 de Abril de

1859

Dá-se licença para pedir dinheiro aos mendigos inválidos sem

lugar nos asilos, o edital definia que quem estivesse apto para

trabalhar comprometia-se em assinar declaração de abandono da

mendicidade.

21 Agosto de

1866

Revoga-se todas as licenças para mendigar nas cidades de Lisboa e

Porto e, interna-se todo aquele que mendigue na rua. Em asilos

mendigos inválidos e em casas de correcção mendigos de

profissão

Regulamento

Policial de

Mendigos 1900

Novo licenciamento de mendigos inválidos através de chapas

identificativas, fornecidas pelas autoridades policiais que

procuravam sedentarizá-los e limitar seus movimentos. Cada

chapa tinha um número de inscrição, identificação do bilhete de

identidade, nome, idade, residência, sítio onde podia esmolar.

12 de Agosto

1905

Volta-se a proibir toda e qualquer mendicidade. Internando-se em

casas de trabalho ou de correcção quem estivesse apto a trabalhar

e, dando, uma residência obrigatória em asilos e albergues aos

inválidos.

12 de Agosto

1905

Volta-se a proibir toda e qualquer mendicidade. Internando-se em

casas de trabalho ou de correcção quem estivesse apto a trabalhar

e, dando, uma residência obrigatória em asilos e albergues aos

inválidos.

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O decreto promulgado no dia 14 Abril de 1836 determinava a apresentação

obrigatória em sede de governo civil, para quem vivia na rua da certidão de baptismo ou

residência, para além de ser criado o Asilo de Mendicidade de Lisboa. Com

possibilidade de expulsão, a ideia era que cada comunidade fosse responsabilizada pelos

seus pobres, de modo a que vaga migratória fosse travada. (Relvas, 2002: 66) Em 1839,

no dia 28 Setembro, uma portaria atribuía directamente as culpas de crimes a quem

pedia na rua, sendo o ócio o comportamento nefasto que causada a imoralidade (Relvas,

2002: 100).

Em 1852 estabelece-se a proibição no código penal da mendicidade profissional.

Legislação mais específica procurou definir aqueles que não têm trabalho, do ponto de

vista da moral. Deste modo, o código penal de 1852 no artigo 256º (que viria a ser

copiado pelo código penal de 1886) afirma que ao provar a existência de uma residência

fixa, mesmo não existindo meios de sustento, não se podia ser considerado vagabundo.

A segurança pública era o principal receio que os pedintes representavam: temia-se a

associação a criminosos, adesão a movimentos políticos reivindicativos, ameaça a

transeuntes (Relvas,2002: 100-106).

O código de 21 de Abril de 1892, apenas vem acentuar a premissa da

perigosidade e errância incorrigível, de quem cumpria os requisitos para ser julgado

como vadio, ao mandar para o degredo reincidentes no sistema judiciário e vadios. Anos

mais tarde, em 1894, dia 15 de Dezembro, castigava-se quem vivia de biscates, não

integrando, desse modo a sociedade através da sua contribuição no mercado de trabalho.

De referir que a mesma pena era aplicada a quem mandasse mendigar um menor de 14

anos (Relvas, 2002: 101-102).

O Regulamento Policial dos Mendigos na Cidade de Lisboa de 17 Setembro de

1900 reconhece o direito à mendicidade, enquanto função social essencial à

sobrevivência, daqueles que sem família que lhes providencie alimentos, se revelassem

incapazes de se sustentar pela via do trabalho (Relvas, 2002: 75-76).

É em diferente tom, que o regime republicano legisla: estabelecendo a legalidade

mediante uma autorização pedida ao governo civil destacando-se a criação da colónia

agrícola de Sintra em 1915. Contudo, os vadios julgados aptos para trabalhar eram

enviados para a prisão e quem reincidisse seria enviado para o degredo nas colónias

(Pinto, 1999: 115).

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Políticas Sociais: Século XIX e XX

O Estado encarrega-se de pessoas em diferentes situações: desde adultos sem

trabalho para se sustentar que procuram saída em asilos e abrigos, a órfãos acolhidos

pelo Estado em orfanatos, apesar de se registarem, na época, vários casos de rejeição do

acolhimento dado por instituições em abrigos e asilos. Perante dificuldades de

adaptação de pessoas; cuja vivência foi desprovida de afectos e do conforto de um lar e

de uma família, passando a sua vida inteira em instituições. Ou simplesmente decorria

de nunca terem criado o hábito de cumprir horários. A agressividade perante

funcionários era frequente; outras vezes eram os utentes mais susceptíveis sentiam-se

mal tratados pelos funcionários (Pinto, 1999, 72–83).

Em 1835 é criado o Conselho Geral de Beneficência que visava tratar da

assistência social e da saúde pública, enquanto instrumento legal concebido para laicizar

e tentar contrariar políticas do Estado, apenas opressivas, e a caridade cristã, ineficaz,

substituindo-a por mecanismos de solidariedade social. Dá-se assistência apenas a quem

não é capaz de trabalhar: menores, órfãos, famílias numerosas pobres, mulheres

grávidas, doentes sem cura. Todos eram ajudados na junta paroquial, criticada pela sua

pouca agilidade nos serviços e coordenação interna com outras instituições e também

pela falta de dados sobre quem auxiliava. Até à instauração da República, são várias as

configurações administrativas que originaram desentendimentos, nunca estando

totalmente resolvida a questão do poder central e do poder local. Pelo que é de notar,

que não é totalmente clara qual é a posição do legislador (Relvas, 2005:65).

A assistência aos pobres pretendia transformar esta classe, qualificada como

diferente e, por isso, perigosa. Assim expressam os critérios de ajuda do Visitador dos

Pobres. A educação das crianças era entendida como indispensável para alcançar o

progresso, mas também como meio de apaziguamento dos próprios pais. A vacinação

em dia era essencial na luta contra a propagação de doenças (Relvas, 2002: 67).

Apesar do aumento de iniciativas de cariz social, no final do século XIX quem

ficasse sem trabalho e sem possibilidade de pagar uma renda, não tinha qualquer tipo de

ajuda. A valorização da caridade enquanto dever individual católico estendia-se à

divulgação das boas acções públicas, sob a forma de festas e espectáculos. Constituía

incentivo para alcançar estatuto social, sendo via frequente para a obtenção de títulos

nobiliárquicos. À frente da organização da caridade pública estavam mulheres da elite,

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consequência da interdição geral ao mundo do trabalho, de acordo com os cânones da

alta sociedade (Relvas, 2002: 78-79).

Para além da caridade, há que realçar as Caixas de Socorros Mútuos que foram

fomentadas pelo Estado, iniciadas por volta de 1840, no final do século XIX, com mais

de 100 000 mil associados. Vistas como método mais eficaz de prevenir a mendicidade,

quando esta se devia ao desemprego (Relvas, 2002: 85-87), as Juntas Paroquiais geriam

um fundo solidário, cujos depositantes seriam idealmente todos os que pudessem

contribuir (ricos e pobres), devendo ainda fomentar a criação de fundos mutualistas do

mesmo género. Destinavam-se, deste modo, a combater a ausência de fundos, a nível do

Estado e do patronato, para situações de ausência de trabalho.

O Regime Republicano realizou uma reforma social, apesar da ausência de

novas soluções. Destacam-se algumas medidas tomadas: deslocações de asilos para fora

de Lisboa, o pagamento do Estado a famílias rurais para cuidar de menores e velhos que

não tinham quem deles cuidasse, assim como o envio de indesejáveis para o campo. A

27 de Maio 1911 cria-se o tribunal de infância designado de Tutoria de Infância que

procurava proteger os inúmeros menores sem cuidados suficientes por parte dos pais.8

Entre a caridade Cristã privada e Assistência pública Estatal

Devido à insuficiência de fundos e meios humanos para sustentar programas de

assistência para tantas pessoas necessitadas e, sem alternativa viável, o Estado decide

autorizar de novo a assistência privada maioritariamente de iniciativa da Igreja Católica,

mas sob sua a direcção, de modo a assim cooperar e colmatar a assistência insuficiente.

Com a prática de esmola proibida cabe ao Estado pôr em prática um saneamento social.

Os dois modelos, segundo a historiadora, foram alvo de competição e confusão na sua

execução, com reticências acerca da eficácia de tais políticas ao longo do século XIX e

início Século XX.9

8 Ao assumir o papel da família, assumindo responsabilidade de educação quando a família não o fazia,

demonstrava a importância dada pela Primeira República à educação e assistência pública: Esta forma

de intervenção colidia com o funcionamento autónomo da estrutura familiar, transferindo para o

Estado responsabilidades que, tradicionalmente, pertenciam aos pais, muito embora se

salvaguardasse que o objectivo não era criticar as suas incapacidades mas defender os direitos dos

menores (Pinto, 1999: 133).

9 Uniam-se assim esforços entre dois modelos de assistência bastante diferentes. Contrapondo caridade

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A institucionalização da esmola no século XVI passou pela atribuição regular de

géneros alimentares por várias associações da igreja, até à atribuição de subsídios aos

mendigos inválidos por parte da Câmara Municipal Lisboa. O estatuto do mendigo foi

profissionalizado e colocado no domínio do sagrado, tal como ilustram a criação de

duas confrarias – Jesus e Santo Aleixo. As mesmas tinham direito a procissão anual,

para a indispensável bênção do indigente à população, enquanto seu intermediário que

recebia uma esmola em troca de uma reza (Bastos, 1989: 101–104).

A esmola foi sendo uma prática cada vez mais instituída ao longo dos tempos e

foi organizada tendo em vista a sua maior eficácia e regulação enquanto actividade

económica que implica uma gestão de bens e de recursos financeiros. Em Lisboa, foi

esse o modelo aplicado pelo governo civil, a “Santa Casa da Misericórdia de Lisboa”

(“S. C. M. L. ”) e o Jornal O Século repartiam entre si as diversas iniciativas de

caridade. O Século tinha parte da distribuição de receitas de impostos, cobrados sobre

bilhetes de espectáculos; outras ofertas eram feitas em géneros: vestuário e distribuição

de senhas de refeição de cozinhas económicas. Esta política de encaminhamento de

fundos, centralizando a distribuição de esmolas nestas três instituições, atingiu

instituições privadas de solidariedade negativamente (Pinto, 1999: 85-86).

O Regime Republicano, ao iniciar o século XX põe em prática as novas teorias

da medicina. A higiene do banho, constituía uma forma de prevenção à propagação de

doenças entre a população. Defendia-se que, uma vez por ano, dever-se-ia tomar banho.

A “S. C. M. L. ”, as juntas de freguesia, O Século disponibilizam, gratuitamente, aos

mais necessitados e tentam motivar junto dos mesmos, idas aos banhos públicos - seja

em mar aberto, na cidade de Lisboa, desde os banhos medicinais aos banhos regulares e

sulfurosos. De salientar que em 1921, existiam já sete banhos públicos em Lisboa. São

ainda, de assinalar as medidas pioneiras na assistência à saúde, protagonizadas pelo que

a “S. C. M. L. “ inicia em 1907, de modo gratuito, consultas básicas bem como o

fornecimento de medicamentos em farmácia própria, criada também nesse mesmo ano

(Pinto 1999: 99–103).

à assistência pública: A caridade, de origem mais remota, está ligada à piedade cristã, que motiva as

pessoas a ajudar o próximo, sem avaliar antecipadamente as necessidades reais. Trata-se de uma

atitude de carácter particular, que é simbolizada pela esmola - uma forma de alimentar a

mendicidade e a manutenção da miséria. (…) … beneficência filantrópica, mais pragmática, mais

preocupada em socorrer criteriosamente e em fazer um investimento, por forma a evitar gastos

futuros... (Pinto, 1999: 35)

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35

Têm igualmente lugar ofertas de bens alimentares em bodas, cabazes de natal,

sopas e distribuição de vestuário e calçado através de revistas dedicadas ao assunto

como O Século, às quais se associam Paróquias, Juntas de Freguesia, Irmandades

religiosas. Toda esta oferta diversificada, era supervisionada pelo governo central,

através do órgão da provedoria central da assistência. Era usual existirem contribuições

particulares regulares para as instituições públicas ou privadas que canalizavam as

dádivas para os pobres.

A repartição das doações eram alvo de constante dúvida, quanto à sua isenção e

justiça. A falta de fiscalização, dificultada pela dispersão das iniciativas, facilitava o

favorecimento. O modelo da descentralização das iniciativas por diversos agentes,

revelou-se insuficiente para a procura elevada, em especial em Lisboa. Assim, aponta a

estatística recolhida, que dá conta de apenas 33,5 % dos pedidos nas sopas económicas

ter sido aceite. É de realçar que a grande maioria dos pedidos de ajuda, corresponde a

um número elevado de pessoas que não iam para os asilos e albergues mas que era

igualmente pobre (Pinto, 1999: 92–99).

A esmola é substituída por subsídios estatais, entregues directamente a quem

pedia, tal como é visível nos registos de 1926, do Governo Civil de Viseu, na sua

“cruzada contra a mendicidade”. O estatuto do mendigo ainda é reconhecido até à

implantação de outras políticas do novo regime do Estado Novo, período durante o qual,

apesar das detenções de mendigo aumentarem (somente por uma noite nos calabouços

da PSP) apenas os mendigos profissionais seriam presos (Bastos, 1989: 109–110).

No Estado Novo paralelamente ao papel repressivo assumido, pela PSP, que

acumulava igualmente funções de assistência social. A população deparava-se, então,

com uma mensagem contraditória, da qual discordava e até estranhava tal atribuição de

papéis, dada a importância histórica da Igreja Católica nas mais diversas iniciativas de

caridade. A nova política do Estado faz notar o distanciamento das elites governativas,

da visão do povo acerca dos pobres e até do vadio. Isto é revelador da dessacralização

do mendigo aos olhos das elites, contrariando a visão do povo em relação ao vadio,

enquanto intermediário do sagrado, representando Jesus Cristo.10

10 Sobre a visão adoptada relativa aos sem-abrigo: Após uma primeira perspectiva genética sobre a

emergência de um corpus significativo de representações sobre a mendicidade e sobre a vadiagem

francamente contrastante com o modelo aos «pobres de Cristo» questionámos tais conceptualizações,

mais concretamente a do mendigo-vadio «imoral» «inimigo de Deus»... (Bastos, 1989: 370).

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A política da regeneração pelo trabalho

Monarquia e República ambas enfatizaram nas políticas decorrentes da visão

ideológica da necessidade de criar hábitos de trabalhos naqueles considerados que são

como vadios. A primazia dos trabalhos manuais, diferenciados por género, fazia-se

sentir em prisões, asilos, casas de trabalho, casas de correcção, ou no degredo. Nas

penas aplicadas, existia um constante apelo à realização de trabalhos manuais e, por

vezes, aprendia-se um ofício. O objectivo das penas visava aplicar a teoria da

regeneração através do trabalho, contribuindo ao mesmo tempo para diminuir os custos

do Estado com o vadio. Embora a vida aos olhos de quem realizava estes trabalhos

pudesse parecer não ter mudado, devido à persistência de poucos meios financeiros,

pelo menos aos olhos da elite burguesa, que julgava este estrato da sociedade como

resultado dos males da ociosidade, podia parecer que o problema tinha desaparecido

pois o Estado encarregava-se de lhes dar uma ocupação. Transversal a todas estas

instituições de assistência era a degradação que se vivia, cuja marginalidade se instalava

e coabitava com as regras impostas diariamente, sendo crítica constante em jornais, por

arrastar quase sempre quem passava por estes espaços (Pinto,1999: 152).

No asilo da mendicidade, criado em 1836, todos os utentes tinham

obrigatoriedade de trabalhar para comer, embora recebessem uma módica quantia pelo

seu trabalho. A valorização burguesa do trabalho pretendia dignificar os utentes do asilo

(Relvas, 2002: 92). Preocupação visível com a introdução da categoria de

desempregado por via de um decreto distinguindo, assim, quem queria trabalhar, pela

primeira vez publicado em 20 de Julho de 1912.

Nas cadeias da capital, à cadeia do Limoeiro e Aljube, acrescentou-se em 1885 a

penitenciária de Campolide. Nesta instituição, os presos trabalhavam para organismos

públicos como a Imprensa Nacional. De fazer notar que as capacidades e técnicas de

trabalho demonstradas ao Estado de nada valiam fora da prisão, onde devido ao cadastro

qualquer trabalho era negado aos ex-reclusos (Relvas, 2002: 101).

Em 1905 são criadas as Casas de Trabalho, sendo de realçar que o seu objectivo

não era ensinar uma profissão, mas criar no vadio o hábito de trabalho, ininterrupto

(Relvas, 2002: 103). Os utentes eram obrigados a fazer a manutenção do espaço e a

mantê-lo limpo, a cultivar as hortas e a participar nas oficinas de trabalho. Em caso de

bom trabalho e bom comportamento receberiam um salário, do qual seriam descontadas

as despesas de internamento. Estas casas acabam por se tornar uma ocupação para

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desempregados, tal como acontecia em Londres na mesma época, para estrangeiros em

busca de trabalho.

Relativamente às casas de correcção para menores, elas eram organizadas em

trabalhos por oficinas braçais para os rapazes e tarefas que na época eram exclusivas

para raparigas, como costura e lavandaria. O ambiente destas instituições caracterizava-

se pela sua dureza e constante disciplina imprimida pelos castigos11

, reflexo da política

republicana que via no trabalho uma acção regeneradora e transformadora de hábitos

imorais, multiplicando-se as maneiras de cumprir pena trabalhando. Uma vez presos, os

mendigos que não tivessem fiança, iriam ou para a colónia agrícola de Sintra (iniciada

em 1912) com pena até 6 anos; ou para o depósito de degredados de Angola, por norma

com 2 anos de pena no máximo. Os menores eram internados em Casas de detecção e

correcção, como as existentes em Caxias (criada em 1872), Mónicas (inaugurada em

1871) e na Casa Agrícola Correccional Vila Fernando (a funcionar desde 1895).

Existindo ainda reformatórios, para raparigas apenas na capital e, para rapazes, em

Caxias, São Fiel, Vila do Conde e Guarda (Pinto, 1999: 135).

A política do degredo

Os degredados no final do século XIX, eram, na sua maioria enviados para

Angola, urbanizando as colónias, ou inseridos em oficinas do Estado (de carpintaria

marcenaria, lavandarias, costuras etc…). Recebia-se um salário equivalente a um

trabalho. Para os que desejavam repelir os mendigos de Portugal - como se fosse uma

praga - concretiza-se em sucessivas leis que condenavam vadios para as colónias

(Relvas, 2002: 103).

Contudo, colonos livres reivindicavam por direitos e regalias iguais, ao que era

assegurado a colonos forçados no degredo, pois no final da pena eram livres de

regressar à metrópole ou ficar pela colónia. O principal destino do degredo era “o

depósito de degredados de Luanda”, os seus residentes queixavam-se do envio de presos

em grandes quantidades. Inclusivamente o governador-geral de Angola ordena o

11 Assim nos revela a historiadora, a realidade vivida: Na verdade, a Casa de Correcção era uma prisão,

onde pelo trabalho se amontoavam rapazes, sujeitando-os à promiscuidade, a castigos bárbaros e aos

trabalhos em oficinas (Relvas, 2002: 110).

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bloqueio de navios que vêm de Lisboa com presos, pois defende apenas o envio

daqueles passíveis de serem recuperáveis de uma vida de crime (Pinto,1999: 121–125).

Assistência nos albergues a asilos: quem os geria e quem os utilizava?

Os albergues e os asilos, pensados inicialmente para públicos de diferente tipo,

tornam-se frequentemente difíceis de distinguir devido à falta de vagas para os pedidos

existentes. O albergue era destinado a uma estadia temporária - para quem não tinha

onde dormir, ou era apanhado a mendigar pela polícia e era para lá enviado para, não

dormir na rua. No asilo, de carácter mais permanente, as admissões eram feitas através

de um requerimento ao governo civil, sendo a sua população constituída por pessoas

mais velhas, com incapacidade física de trabalhar devido a doença (Pinto, 1999: 42).

Na época, havia apenas dois albergues: a albergaria de Lisboa, criada em 1913

pelo governo civil de Lisboa em cooperação com as associações comerciais de Lisboa

(lojistas, vendedores de víveres a retalho e propaganda de Portugal), que sobrevivia com

dificuldades económicas ao recurso constante ao albergue enquanto asilo, recebendo

subsídios do Governo Civil e de Câmara Municipal de Lisboa; o Albergue Nocturno,

criado pelo rei Dom Luís, segundo as notícias da época seria o mais eficaz no seu

funcionamento e assistência (Pinto, 1999: 42–48).

Existiam outras instalações de assistência, mas eram asilos: o asilo de Marvila

criado pelas “irmãzinhas dos pobres” passou a ser gerido pelo governo com a

implantação da República, sendo alvo de notícias acerca de boas condições de vida que

suscitaram o debate acerca da caridade cristã face à assistência pública; o asilo da Nossa

Senhora da Amparo, gerido pela “S. C. M. L. “, com 70 utentes de sexo masculino e

feminino. O asilo da mendicidade, localizado no Convento dos Capuchos e transferido

para Alcobaça em 1928, através de receitas próprias resultantes dos espectáculos

organizados conseguia o pagamento modesto das profissões exercidas por homens e

mulheres no asilo (Pinto, 1999: 42–48). Face à sobrelotação do Asilo da Mendicidade

de Lisboa, criado em 1836, tem lugar um novo asilo a 14 Março 1867; Asilo de Dona

Maria em Xabregas, em que mendigos válidos e inválidos estão em espaços diferentes:

casa de detenção e correcção, respectivamente, e casa de asilo (Relvas, 2002: 111).

Acerca dos dados recolhidos, destacam-se os seguintes indicadores: o facto de

uma grande maioria afirmar impossibilidades por doença ou idade avançada (56,5). Os

utentes da albergaria terminaram o seu acolhimento tendo sido entregues à família; já

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nos asilos foi a morte a razão do fim da estadia; a maioria apresenta-se como tendo tido

pai e mãe (86%). Mais de metade dos utentes era solteira com naturalidade de fora de

Lisboa (54%) (Pinto, 1999: 48–52).

Acerca da imposição de regras nestas instituições, esta fazia-se pela via dos

castigos e regalias: retirar direito à refeição até à transferência ou expulsão, etiqueta

publica visível com a penalização cometida, chamando em certos casos a polícia;

participação na manutenção dos asilos e abrigos seja por questões económicas seja para

combater o ócio. Uma vez por semana era dada a liberdade de passear, desde que se

voltasse dentro do horário de admissão. Estar alcoolizado, más maneiras com os

funcionários, incumprimento de horários era algo recorrente entre os homens dos asilos

(Pinto, 1999: 61, 62, 72).

O reforço da repressão da mendicidade a partir de 1930, com o Estado Novo,

permite afirmar que a mendicidade se mantinha nas ruas enquanto problema de grande

dimensão e impacto (Pinto, 1999:142).

A Continuidade entre Monarquia e República

A degradação das condições de vida de quem vivia do trabalho braçal prosseguia

nos dois regimes. Quase sempre precário e mal remunerado, não oferecia segurança e

longevidade, nem uma vida que fosse digna.

No campo político, a moral e legitimidade política era partilhada entre o Estado

e a Igreja, para além de discordarem sobre quem deveria liderar as iniciativas de

resolver o problema, discordavam na forma de ajuda prestada. O Estado não apoiava a

esmola de caridade que a Igreja dava, por não concordar com a medida enquanto

solução. A visão burguesa da época considerava que apenas quem trabalhava merecia

auxílio, caso não fosse inválido. Dentro do próprio Estado, Estado Central e Estado

local, disputaram sempre em quem assumia as responsabilidades do problema,

nomeadamente devido a questões de financiamento e respectiva gestão.

A opção pelo internamento em prisões, casas de trabalho, casas de correcção,

envio para o degredo e asilos foi recorrente, dada a impressão visual que o fenómeno

causava, a julgar pelas críticas manifestadas nos jornais. Resolvendo assim, o medo de

contágio social e de higiene pública de doenças causadas.

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A historiadora Eunice Relvas parte do pressuposto teórico que se tratava de um

problema cuja única dimensão era o desemprego, não se abordando a rede familiar, ou a

rede social com o factor desencadeante de se ter ido parar à rua. Facilmente se

reconhecerá que o acesso daqueles que realmente foram considerados vadios é limitado

às visões e acções e aos dados de instituições do poder e de individualidades com

publicações feitas em livros ou jornais. Trata-se de uma visão a partir de quem tem

poder sobre quem pede na rua ou não tem meios de subsistência, embora haja sempre a

sua diversidade.

A Pobreza em Portugal durante o Estado Novo

A marginalidade de quem pedia dinheiro na rua constituía um facto social

indiscutível entre elites ao longo dos tempos. Contudo, factores estruturais, como

emprego precário, a rede social e familiar, permitem entender os motivos de tal prática.

A investigadora Susana Trovão (1989: 61–99) foca certos factos que espelhavam a

realidade vivida pelos que foram ininterruptamente apelidados por marginais,

desconstruindo essa aura de inevitabilidade em redor das camadas mais pobres,

sobretudo daqueles apelidados de “vadios”.

Recordar que durante o século XX a precariedade e incerteza de trabalhos pouco

qualificados e manuais tornaram a esmola um recurso comum, em caso de velhice ou

insuficiência de rendimentos, Sobretudo durante os ciclos de pobreza vividos com as

crises económicas - períodos de escassez de bens devido à crise provocada pelo crash

da bolsa de 1929 e também durante a crise ligada à Segunda Guerra Mundial.

Perante tais factos, e ainda recordando que entre camadas mais baixas da

população não era raro sobreviver mendigando ou cometendo pequenos furtos para

comer, a PSP torna-se impopular por prender vadios, pois o povo via-se próximo da sua

necessidade de sobreviver, pedir esmola não constituía nenhum crime, pois era uma

prática tolerada.

Note-se ainda a desproporcionalidade existente entre o número de fogos e

habitantes em Lisboa. Segundo os Censos (anos 1898 até 1940), evidenciava que era

impossível alojar todos os habitantes da cidade de Lisboa, existindo necessariamente

pessoas sem domicílio (Bastos,1989: 61–99).

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Retrato sociodemográfico dos “vadios”

O Estado Novo delegava nas instituições privadas de carácter religioso a

intervenção social, cabendo ao Estado apenas auxiliar família no cumprimento das suas

responsabilidades, passando a polícia a administrar albergues de Mendicidade em todas

as capitais de distrito e respectiva gestão nas sopas dos pobres das mais variadas

instituições.

A partir dos anos '40, o impacto da Segunda Guerra Mundial e o respectivo

agravamento das condições em que a população mais necessitada vive, fazem sobressair

a insuficiência das iniciativas privadas face à dimensão do problema a combater,

desenvolvendo o Estado iniciativas próprias de assistência aos pobres.

No albergue da Mitra quem era internado incluía-se a faixa etária dos 22 anos e

os 51 anos e eram regra geral solteiros (Bastos, 1989: 159). O maior motivo de saída

entre os mitreiros foi o falecimento, seguido de uma saída mediante uma guia através da

qual se exigia o pagamento de uma multa. Acontecia, por vezes fugas ocasionais bem

como encaminhamento para outras instituições, hospitais psiquiátricos, hospitais

estatais e sanatórios, asilos, ou instituições que apoiavam crianças. A maioria dos

albergados era natural do concelho de Lisboa (Bastos, 1989: 123–137).

De destacar que estamos perante uma problemática relativa a movimentos

migratórios, os quais ainda hoje têm relevância de ser exploradas.12

Gerou-se uma

generalização em torno da temática, sendo identificado o migrante ora como

aventureiro por não estar conotado como homem ligado à família, nem com projecto de

futuro para vir a constituir uma família por opção própria; ou como bom migrante

denunciando o favoritismo da opinião pública em torno deste perfil, tratando-se de

alguém que não procurava somente a fortuna fácil e rápida apenas para si, mas para

sustentar os pais e constituir família pela via do matrimónio.13

12 É de destacar a seguinte tendência migratória entre os perfis traçados:… convergem com as histórias

de vida de muitos internados ainda hoje residentes no CASL e no CASP, isto é, reconhecem que uma

proporção significativa do universo adulto admitido na Mitra entre 1933 e 1951 havia, em

determinado momento da sua vida, migrado para Lisboa ( Bastos, 1989: 140).

13 Os dois perfis correspondiam disputa ideológica relativa ao projecto de vida: Latente e estruturante

destes dois perfis salientava-se a oposição entre um projecto de vida supostamente movido pela

ambição, pelos sonhos, pela fantasia, pela aventura ou pelo prazer – eminentemente narcísicos e

desinvestidos das instituições e referências de origem – e um outro trajecto, orientado por motivações

bem mais modestas, caracterizado pelo «espírito de retorno» e totalmente organizado em função da

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Sendo de realçar que mais de metade da população da mitra era migrante, não

constituindo por isso algo que fosse visto como desviante. A fuga do meio de onde se

nasceu era algo recorrente como uma escapatória à fome e tratamento pouco generoso

dos familiares, cortando assim abruptamente as raízes familiares. Noutros casos, migrar

constituía parte integrante de um projecto familiar. Entre as mulheres a rede de

solidariedade era factor crucial para garantir um trabalho fora do meio em que tinha

nascido (Bastos, 1989: 146).

Igualmente de passado familiar tão ou mais problemático eram os “mitreiros”

Lisboetas, sendo elevado o registo de órfãos. Os bairros Lisboetas de onde a maioria

dos mitreiros eram originários, eram reputados de inegável marginalidade devido ao

estilo de vida que por ali se vivia. Sendo-lhe ligada a mesma delinquência da fama do

bairro de onde vinham (Bastos, 1989: 148). Nesses mesmos bairros sobrelotados, em

que a mulher trabalhava fora de casa, moralmente mais repreensível do que a

prostituição e mendicidade era denunciar alguém à polícia e roubar alguém ou cometer

um crime de sangue (Bastos, 1989: 53).

Destaca-se o facto de pessoas sem profissão eram encarceradas na mitra, mas

também pessoas com profissão. Sendo que o critério número um para definir um vadio

pelo Estado Novo era não possuir morada, pois qualquer trabalho incerto, realizado fora

de uma casa, em horário que não fosse exclusivamente diurno, era visto com maus

olhos pelo regime. A regularidade do trabalho que proporcionasse regalias sociais, seria

excepção e a economia paralela abundava, com serviços ocasionais. Por Lisboa

proliferavam habitações ilegais pelos bairros populares de Lisboa, face à incerteza dos

salários.

Entre os motivos de internamento a população juvenil na Mitra, eram apontados

vários factores: filhos de famílias numerosas que pediam para comer, frequentemente

andavam livremente pela rua, sem existir disponibilidade de alguém na família que

obrigasse a ir à escola. Os amigos de rua eram os exemplos a imitar, estabelecendo

práticas e condutas na fronteira da ilegalidade: como pedir esmola e atirar pedras à

polícia. Mas, acima de tudo, a falta de rendimentos devido à instabilidade dos postos de

trabalho eram uma constante (Bastos, 1989: 210).

sobrevivência da família, do casamento e da terra (Bastos 1989, 142).

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Contrariamente ao senso comum da época da e actualidade, os dados apontam

que apenas um perfil corresponde ao homem solitário que nunca constituiu família e,

por isso não se casou. Outro perfil, diz respeito a homens que entraram na Mitra com

mais de 67 anos – casados ou viúvos – correspondendo a outro percurso biográfico. No

caso das mulheres, a maioria de profissão domésticas, mendiga por necessidade, dada a

ausência de apoio económico quando morre o marido (Bastos, 1989: 196).

Legislação defensora dos valores tradicionais

Progressivamente, desde o século XIX, descrições nos jornais dão conta e

estudos científicos – sociológicos, de antropologia criminal de Psicofisiologia atribuem

um conjunto de traços que correspondiam ao vadio, numa consciente construção de um

personagem feminino equivalente devido ao conhecimento de rua, que as tornava

imprevisíveis e em constante movimento. Sem moral ao acederem ao prazer sexual,

seguiam uma profissão sem honra, em que ganhavam dinheiro facilmente, levando um

homem a quebrar as juras de fidelidade à esposa. Sendo classificadas, frequentemente

como selvagens e próximas nos atributos morais e fisionómicos dos homens. O alvo

eram as prostitutas que actuavam na rua.14

A partir de 1945 proxenetas, prostitutas, homossexuais, entre outros

personagens, com condutas sexuais diferentes que desafiavam a visão dos papéis de

género. A rua era palco central à fuga da repressão policial. A equiparação a vadio,

estendia-se muito para além do acto de mendigar, incluindo os actos considerados

imorais e por isso crimes graves: desordem pública, furto, agressão, burlar, praticar

crime organizado em grupo e alcoolizar-se.

Vistos negativamente como primitivos, ociosos, itinerantes e perdulários eram

célebres pela rejeição de quaisquer papéis sociais, sobretudo em relações de

subordinação como as existentes no trabalho e na família. Justificando, assim, o

projecto de assimilação cultural - da moral da civilização Ocidental - executado desde o

século XVI até ao início do século XX, num encontro improvável, entre povos nativos

14 Entre as mulheres alvo de suspeitas de não cumprirem a boa moral: Ardilosas (como a clandestina ou

como o mendigo profissional), surgiam, paralelamente, como um perigo para saúde pública quando

geriam casas toleradas em contravenção com as normas sanitárias e enquanto agentes (movidos pela

«avareza» e pelo «cálculo») de contaminação moral de muitas moças puras, inocentes ou ingénuas –

geralmente «criadas de servir», «vendedoras de alguns géneros pela cidade», «saloias dos

arrabaldes», recém-chegadas da província. (Bastos, 1989: 237)

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naturais das colónias e portugueses vadios enviados para serem reeducados, enquanto

serviam o Estado português em qualquer trabalho necessário ao colonialismo. A

perigosidade biológica e moral que ameaçava a existência da família, estaria de algum

modo ligada a doenças contraídas devido ao modo de vida do vadio. Revelando, assim,

uma contínua insistência na ideia de contágio do vadio, combatida com renovação de

comportamentos15

(Bastos, 1989: 252).

Vejamos como funcionava o mesmo modo de produção simbólico:

essencialmente trata-se de uma triangulação, cujos intervenientes – Bons governantes

vadios-ficção e povo português - estabelecem relações simbólicas. A passividade,

facilidade em ser influenciável, possibilitava a corrupção moral do povo português por

parte do vadio-ficção, cuja sua tomada de iniciativa tendia para a desordem, por ser

classificado como anti-herói; Os bons governantes purificavam simbolicamente o povo

português, que apropriava-se dos comportamentos de má moral transformando-os em

qualidade considerados dignos, impondo-se assim uma nova ordem e moral feita à

medida do Estado Novo.16

A colónia agrícola do Pisão

Com a inauguração da mitra dá-se uma clivagem entre mundo exterior e

instituição. Em 1945, com a criação da Colónia Agrícola do Pisão, cria-se a segunda

divisão: sede Mitra/ Colónia Penal Pisão. Isolada de Alcabideche e das restantes vilas,

para que fosse possível uma mudança de carácter ao estar longe de um meio onde

reinava a corrupção activa ou passiva o regime projectava uma visão distante do meio

rural cheio de exotismo positivo, onde o trabalho e os hábitos – ignorando a sua

15 Entre as intenções de ordem ideológica do Estado Novo estava a ...substituição da (des)ordem

«velha» por uma «nova» sociedade compreendendo que (…) não podemos escamotear o peso

ideológico que adquiriu na época a ameaça de contaminação moral projectada sobre vadios e seus

assimilados (Bastos, 1989: 277–278).

16 A autora enuncia os intervenientes expostos a esta operação simbólico: O movimento seguinte de

transformação deste sistema simbólico esvaziava o combate mítico entre «bons governantes» e

«vadios», por intermédio da utilização de uma arma poderosa – a da classificação patológica ou

criminogénea, capaz de imobilizar o «inimigo» num espaço carcerário e de o afastar, ao mesmo

tempo, do terceiro actante, o «bom povo português» de pureza vulnerável. Contudo, logo o discurso

simbólico se encarregava de afirmar novas tensionalidades triangulares (Bastos, 1989: 280).

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frequente escassez e dureza – virtudes morais, ligação à comunidade de origem e

família curavam os males vindos da cidade (vício, delinquência, mendicidade). O

internamento no Pisão era visto como algo regenerador. Apenas homens eram

transferidos e por norma todos aqueles que eram vistos como irrecuperáveis, eram

castigados e segregados: alcoólicos, tuberculosos por serem contagiosos; doentes

mentais, delinquentes de longo percurso com conhecimento em primeira mão das

instituições penais e esquemas do crime, que recebiam castigos mais duros. Entre os

transferidos estavam os desobedientes perante as normas e visão regeneradora do

regime17

, sendo de destacar a transferência devido à especialidade profissional útil para

realizar obras na Mitra ou Pisão. Muitos regressavam ao Pisão, depois de ir ao tribunal

ou ao serviço militar. Vindos da consulta no médico da Mitra, ficavam curados, sendo

algo frequente no final da década de quarenta. A maioria dos albergados do Pisão

cumpria pena decretada.

Quanto aos comportamentos fomentados pela via do trabalho rural e dos castigos

impostos, destaca-se o primado da subserviência, gratidão, controle e trabalho, enquanto

objectivo ideológico de contrariar uma rebeldia e insubmissão inata, aos olhos do

Estado Novo (Bastos, 1989: 297). As regalias dadas por bom comportamento,

explicavam a voluntária submissão aos padrões morais. De fazer notar ainda relação

simbólica estabelecida no papel de pai e filho entre instituição e albergado. A própria

PSP afirmava defender o uso de uma estratégia familialista, procurando sempre reforçar

os elos à instituição e reprimindo a solidariedade entre albergados.18

A visão de recuperação e apoio aos albergados pautava-se por uma verdadeira

reeducação, sobretudo ao nível moral, com os três princípios morais - Deus Pátria e

Família - assentes nas acções decorrentes da evangelização e da mocidade portuguesa.

A nível técnico, os papéis de género e classe reflectiam-se nas expectativas deixadas aos

17 É reconhecido no confronto típico entre homens, como motivo desobediência, em ambientes onde o

domínio é linguagem comum: O que estava assim em jogo, para o insolente, não era a sua relação às

normas mas um confronto homem a homem, na defesa da sua identidade. Nele, reconhecemos o

ambiente de certos bairros, ruas, tabernas, casas de jogo etc., de outrora, lugares onde era afinal, um

habitual (Bastos, 1989: 285).

18 A socialização entre mitreiros era punida, procurando preservar contacto com a autoridade: Como

convinha, este projecto refamiliarizante atravessava e dominava unicamente as relações entre o

«amigo internador» e os albergados. Pelo contrário, a formação de grupos internados, os laços entre

gerações diferentes, as ligações entre sexos, a emergência, as ligações entre sexos, a emergência de

hierarquias entre albergados, etc., eram duramente combatidos e punidos (Bastos, 1989: 310).

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albergados. Ao serem ensinados trabalhos manuais (principalmente ofícios e

agricultura) aos homens e tarefas domésticas às mulheres, os ganhos simbólicos de tal

investimento consistiam na crença da promoção dos albergados de animais a homens,

contrapondo a civilização à natureza.

No que diz respeito à interpretação antropológica da Mitra – foca-se a estratégia

ideológica de determinado grupo para uso narcísico identitário - enquanto acto ritual de

natureza simbólica, procurando manipular a imagem do grupo ritualizado por

comparação de posições micro familiares polarizadas positivamente e negativamente.19

A infantilização e anulação da individualidade era outro factor estruturante na

Mitra20

Tratando-se de um jogo triangular entre posições idealizadas entre a visão

paternalista do governo, com auxílio do Estado sob condição de obediência. No polo

positivo estava o povo português, infantilizado na sua posição passiva de bom filho,

com ingenuidade e moldável e submisso, pró-activo de natureza manipulativa fazendo

valer a sua vontade. A figura da autoridade paternal era substituída pela do irmão que

deveria ajudar no sentido de todos os filhos da mãe pátria - a trabalhar no projecto

político nacional do regime do Estado Novo.21

19 Consistia numa crença da transformação da pessoa que entrava na «Mitra» enquanto renascimento de

uma nova identidade:… ocupada por um conjunto de devotos ao projecto de devotos ao projecto

salazarista movidos pelo desejo de regeneração identitária do todo português em crise que elegeram

o vadio e seus fins como vítimas sacrificiais privilegiadas e sobre eles agiram uma dose de violência,

concebida como simbolicamente mortal mas, em simultâneo, formulada como uma gestação

renovadora (Bastos, 1989: 319).

20 Assim interpreta a antropóloga a política seguida pelo Estado Novo ao gerir a “Mitra”:… submetido a

várias austeridades, preparatórias da grande metamorfose do «excremento social» em «rebento

fecundo» apaixonado pela terra-mãe nação. Só depois de lhe terem cortado os cabelos e as barbas

(…) só depois de lhe retirarem tudo o que poderia individualizar, poderia ser transformado numa

espécie de «embrião», passivo, submisso, infantilizado, assexual, em condições de ser moldado pelo

internador e de, subsequentemente renascer das suas artes renovadora (Bastos, 1989: 322-323).

21 Tratava-se de uma idealização do Estado Novo em a nação surge como figura materna, como revela a

análise teórica executada: … cada um dos elementos participasse parcialmente na natureza do outro,

como irmãos mais velhos e mais novo, solidários, vivendo harmoniosamente, trabalhando para obra

de engrandecimento do Portugal-mátria (Bastos, 1989: 325).

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Sem-abrigo, doentes mentais e assistência Psiquiátrica em Portugal

A Mitra constituía, efectivamente, um caso paradigmático na Europa, enquanto

instituição policial que integrava um aparelho repressivo sobre a mendicidade. Com um

ambiente relativo ao doentes mentais que albergava, bastante próximo dos hospitais

gerais do século XVII e XVIII em voga pela Europa Central. A Mitra surge, assim com

relativo atraso em 1933, num formato institucional de casa de trabalho tendo em visto a

criação de hábitos de trabalho. Apesar de receber desde o seu início um universo amplo

em comportamentos. Houve, desde a criação do albergue da Mitra, uma especial

vocação para encarcerar doentes mentais sem qualquer tipo de assistência. Tal deve-se,

em parte, à atribuição de incapacidades devido a uma predisposição patológica que

facilitava o internamento na mitra. A teoria social da época assim prescrevia

transversalmente em todas as disciplinas.22

Somente em 1956/57 houve assistência

psiquiátrica para doentes mentais no Pavilhão do Pisão.

Desde 1824 que O hospital de São José prestava assistência. Em 1883, inicia

funções o manicómio Miguel Bombarda em Lisboa e o asilo Conde Ferreira, localizado

no Porto. Estimativas da época de inauguração da Mitra contabilizavam 8000 doentes

mentais que viviam pelas ruas pedindo dinheiro, face a somente 2000 internados. Os

calabouços da PSP e instalações do Governo Civil. O problema era o mesmo que se

sentia nos hospitais uma sobrelotação decorrente da política de internamentos

compulsivos das pessoas que pediam na rua. A polícia prendia e tentava, ao máximo

encaminhar para os hospitais psiquiátricos, que tal como os restantes organismos

públicos não teriam meios suficientes.

A Mitra foi, portanto estratégica na transferência de doentes mentais da rua, das

esquadras. Sobretudo dos hospitais psiquiátricos - com vagas insuficientes – que lá

faziam chegar doentes mentais, classificados como incuráveis, sem direito a assistência

psiquiátrica. A falta de fundos ou vontade política para instaurar um aparelho de

assistência psiquiátrico, com capacidade para a maioria dos doentes mentais que

22 A insistência de forma absoluta em atribuir a demência a quem vivia na pobreza e cuja diferença

chova elites era considerada legítima: Apesar deste «facto» não poder ser desligado das contradições

e das limitações que marcaram a vida nas instituições psiquiátricas portuguesas neste período, a

ligação estreita da vadiagem e da mendicidade à alienação mental (e vice-versa) constituía uma

constante nos discursos científicos da época. (…) a patologização da mendicidade e da vadiagem

(extraordinariamente eficaz para afastar qualquer reflexão sobre as causas socioeconómicas de tais

práticas) reflectia-se também nos discursos jurídicos, antropológicos, médicos etc. , vadios e

mendigos portugueses (Bastos, 1989: 217-218).

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necessitavam de assistência, era por demais evidente, dado que a maioria dos doentes

não tinha ocupação e assistência nas ruas.23

A assistência social e a reforma da mitra no seu fim de vida

No mesmo ano de 1956 é introduzida a figura da assistente social no corpo de

trabalhadores ao serviço da Mitra. Esta medida destinava-se à selecção dos apoios

sociais, fossem programas reinserção em instituições. Entre outras medidas é de

destacar a procura de trabalho fora da Mitra e as licenças para visitas de familiares. No

que toca ao quadro ideológico, regista-se uma concordância entre os julgamentos morais

das assistentes sociais e dos agentes da PSP, para quem a falta de boa educação moral

era a raiz de todos os males: desde a dependência de estupefacientes, álcool, à

desonestidade, rebeldia, não esquecendo a marginalidade moral como promiscuidade,

criminalidade e a ociosidade. Esta mesma continuidade traduzia-se num apoio do

projecto regenerador da Mitra com recurso ao encarceramento.24

Contudo, visões diferentes espelhavam uma política diferente de gestão do

albergue das amigas internadoras, constituindo assim uma adesão parcial ao projecto

regenerador da Mitra, que traduzia numa vontade reformista de maior contacto com o

mundo exterior.25

Para além da responsabilização da família, os castigos no limite

23 Sobre a acumulação de sem-abrigo na via pública e a solução pensada pelo Estado Novo: Dir-se-ia

que a inauguração do albergue da polícia proporcionou uma solução à PSP para o gravíssimo

problema dos alienados que deambulavam na via pública ou que se acumulavam pelos calabouços e

pátios do Governo Civil( ...) Na ausência de estabelecimentos psiquiátricos de retaguarda o albergue

da mitra ia, portanto, funcionando, mesmo que informalmente (mas com o conhecimento das

autoridades oficiais), como asilo de crónicos e incuráveis, sem qualquer vigilância

psiquiátrica(Bastos, 1989: 267).

24 Segundo a investigadora concordância ideológica era evidente nos seus fundamentos básico do

projecto da “Mitra”: Muito embora, como veremos de seguida, a emergência do Serviço Social tenha

contribuído para modificar alguns padrões do funcionamento institucional, as representações

veiculadas pelas trabalhadoras sociais sobre os vários rostos do «mitreiro» não diferiam

significativamente das enunciadas pelo «amigo regenerador», favorecendo a perpetuação do quadro

ideológico que suportava o encerramento (involuntário) do vadio-mendigo nos albergues da polícia.

(Bastos, 1989: 352).

25Para além de aprovar os castigos rígidos e humilhantes, a nova política social passava pela manutenção

de contactos com família e o seu meio de origem: No mesmo tom que exaltava o familialismo como ideal

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físicos mantiveram-se, aliado à ênfase dos trabalhos manuais, enquanto recuperação

moral. As idas a espectáculos no exterior da mitra e o grupo de teatro com peças em

ciclos festivos, constituía assim a tentativa de humanizar a mitra e dar algo mais que

disciplina através do enriquecimento cultural, dando a conhecer a realidade que existia

para além dos muros da Mitra.

Nos anos que antecedem o encerramento da Mitra – '74 '75 '76 – dá-se uma

grande chegada de imigrantes vindos dos PALOP, com especial incidência para a

população envelhecida. Na década de '80 dois outros perfis convergiam ainda neste

espaço no fim das suas vidas: os internados contra a sua vontade e os que, em final de

vida sem rede familiar e a debilidade física e psicológica, não têm outra forma de serem

assistidos. Desta maneira determinando a vocação, com o passar dos anos, de

assistência a idosos. O novo staff constituído por civis, na sua maioria mulheres, que

tinham uma visão pragmática da realidade, face à inevitável presença da morte.26

Em 1977, chega o fim da mitra enquanto instituição de repressão policial que

tinha em vista o encarceramento de todo aquele que era julgado como vadio e que, por

isso, tinha que obrigatoriamente cumprir pena, habitualmente sem direito a julgamento

pelo crime cometido. Posteriormente, a Mitra transformou-se em instituição somente de

domínio da assistência social, dividindo-se em três sectores: um Lar para a terceira

idade, um centro de acolhimento e triagem.

Características identitárias da Mitra

De assinalar uma proximidade identitária entre vadios e povo português,

produzindo uma relação ambivalente face ao vadio: que perante o projecto de

de funcionamento das instituições onde trabalhava, a «amiga social» criticava, ao «amigo regenerador»,

o fechamento espacial e totalitário que este prescrevia para os asilos da polícia, a disciplina militarista,

as práticas uniformizantes, as penas vexatórias, certas medidas correctivas, etc.. A tese dos contactos

familiares aquando do internamento, a da necessidade de restituir o «marginal» à sua comunidade de

pertença, de o reinserir no mundo profissional e na família original, de lhe arranjar colocação num

família outra, etc., entravam moda, entre nós (Bastos, 1989: 360).

26 Tal visão da assistência tinha os seus ganhos e propósitos: … sobre a gestão do último ritual de

passagem do ciclo vital, a omnipresença da angústia pragmática-familialista que comportava funções

defensivas e, ao mesmo tempo, possibilitava gratificações (conscientes e inconscientes) tanto para os

velhos moribundos como para os próprios cuidadores (Bastos, 1989: 368).

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segregação do Estado Novo rejeitava o respectivo distanciamento imposto à

marginalidade dentro de muros, contudo, tentava-se constantemente demarcar criando

repulsa à proximidade. Sobre os dois grupos: os internados à época denominados de

mitreiros ou vadios; e a estrutura que geria o internamento intitulados de internadores,

sobressai uma visão que procura dar a conhecer a multiplicidade de olhares dos dois

grupos sobre a mitra. Espelhando necessariamente distintas ideias, visões, motivações,

morais, contextos.27

Os anos da Democracia dos Cravos

Após o golpe de Estado no dia 25 de Abril de 1974, o novo regime democrático

trouxe uma abolição das leis repressivas do anterior regime: o Estado Novo. De acordo

com o decreto de lei nº 365º (de 15 de Maio de 1976) declara a mendicidade como

problema de causas económicas resultante de situação de desemprego, por doença física

ou mental (Pimenta 1992, 18). Significando a despenalização da mendicidade devido à

incapacidade económica de ser auto-suficiente. É oficializada a saída da Polícia de

Segurança Pública enquanto órgão de gestão, a nova gerência dos albergues de

mendicidade distritais cabe ao Ministério dos Assuntos Sociais. Determina a criação de

uma rede de serviços adequados nas instituições, adaptados às necessidades regionais

do País, impondo como limite o período de 3 meses de estadia nos albergues. De acordo

com o de decreto de lei de 1976 veio criar um vazio nem os sem-abrigo estão proibidos

de permanecer em espaço públicos pela polícia; nem as autoridades passam a estar

obrigadas, por lei, a proteger e promover a solidariedade.28

O artigo 296º do código Penal de 1995, veio proibir expressamente a

mendicidade prevê até 3 anos de prisão, caso se prove haver exploração de menores de

27 As diferentes posições criavam uma visão desigual dos mesmos factos: … ambas as visões (dos

próprios ou dos seus regeneradores); podiam até concordar nas vicissitudes biográficas narradas ou

apontadas como trajectos propiciatório de comportamentos desviantes mas diferiam profundamente no

respeitante às motivações que lhes atribuíam; ou ainda como, muito frequentemente, estes dois grupos

divergiam nas suas apreciações ou julgamentos morais das mesmas condutas em função de se orientarem

por espectros ou valores distintos, nomeadamente acerca do que era ou não legítimo em determinadas

circunstâncias, do que era mais ou menos condenável e da hierarquia das suas punições, etc.. (Bastos,

1989: 372)

28 Para mais detalhes consultar: DECRETO-LEI nº 365/76 “D. R. 1ª Série” 114 (1976-05-15) 1092-1094

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16 anos ou sujeitos psiquicamente incapacitados29

(Bento e Barreto, 2002: 44–45). A

Lei da Saúde Mental, de acordo com o Decreto de Lei de 36/98 de 24 de Julho, dita os

novos moldes legais de internamento compulsivo em medicina psiquiátrica com equipas

multidisciplinares, sem, no entanto, mencionar directamente os sem-abrigo. A

possibilidade de internamento compulsivo é contemplada por ordem judicial

fundamentada em avaliação psiquiátrica, caso exista risco de deterioração da saúde sem

tratamento, ou haja uma notória perigosidade pessoal ou perante terceiros30

O novo milénio trouxe legislação especificamente direccionada ao impedimento

da degradação da condição humana. De acordo com o Decreto de Lei 60/2013 que

resulta da transposição da directiva da União Europeia 2011/36 relativa à prevenção e

luta contra o tráfico de seres humanos e à protecção das vítimas. De acordo com o artigo

160º a condenação do alojamento, oferta, recrutamento com objectivo de exploração de

trabalho, exploração sexual, extracção de órgãos, a mendicidade, a escravidão.31

O fim da política de encarceramento forçado, e respectiva criminalização da

vadiagem, trouxe uma vaga de descentralização de assistência social aos sem-abrigo,

colocando a pobreza na agenda pública. Porém, oculta à vista desarmada uma grande

quantidade de sem-abrigo que estão sem acompanhamento psiquiátrico nos hospitais,

derivado de novas políticas32

. Sinais silenciosos dão conta de políticas de repressão, em

operações esporádicas de repressão e expulsão, como bloqueio do acesso a prédios

abandonados e a arcadas de prédios e acções de expulsão de zonas específicas da cidade

de Lisboa.33

29 Para mais detalhes consultar: DECRETO-LEI n.º 59 /2007 “D.R. 1ª Série” 170 (2007-09-04) 6196

30 Para mais detalhes consultar: DECRETO-LEI n.º 36/98 “D.R. 1.ª Série - A” 169 (1998-07-24) 3545-

3549

31 Para mais detalhes consultar: DECRETO-LEI n.º 60/2013 “D.R. 1ª Série” 162 (2013-08-23) 5089

32 O problema criado pelo fecho de hospitais psiquiátricos e, a falta de assistência alternativa resulta no

aumento de pessoas sem-abrigos: Poder-se-á então dizer que desinstitucionalização não significa

necessariamente menos despesas e que ela começou a correr mal quando foi interpretada como uma

solução mais económica. O objectivo de dar mais liberdade aos doentes mentais foi facilmente

interpretado como significando que eles tinham mais a obrigação de ser autónomos e pagar as suas

despesas. O problema é que neste esquema ficam desprotegidos aqueles sem família e sem autonomia,

dependentes de cuidados. É preciso também ter em conta que enquanto o hospital providenciava uma

estrutura aos doentes e concentrava uma série de funções, na comunidade essas funções tendem a ser

espartilhadas e os doentes facilmente se perdem. (…) É preciso acrescentar ainda que, na prática, a

questão que se levanta não é tanto quantos doentes mentais foram despejados para a rua,

engrossando o número de sem-abrigo, mas quantos ficam de fora com os actuais critérios. (…)

Facilmente se perde de vista o número de doentes mentais que acabaram na rua, nas prisões e

noutras instituições correccionais. (Bento e Barreto, 2002:87)

33 É de notar uma tentativa recente de limpar a imagem de Lisboa perante estrangeiros: … durante a

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Actualmente existem mais vagas de acolhimento para os sem-abrigo - os

albergues: todos com condições variáveis: a “Associação de Albergues Nocturnos de

Lisboa” em São Bento mantém-se em funcionamento desde o tempo do rei D. Luís; a

organização não-governamental “Assistência Médica Internacional” (A.M.I.), na Graça,

a “Associação Vitae”, no Beato; O “Exército de Salvação”, em Xabregas; a “Santa Casa

da Misericórdia de Lisboa”; acolhe sem-abrigo no Centro Temporário de Alojamento da

Mãe de Água (C. A. T. M. A.), na Praça da Alegria.

presidência portuguesa da União Europeia em 2000 houve acções de desmobilização dos sem-abrigo

das zonas históricas centrais para outros locais menos visíveis …(Menezes 2008, 74)

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CAPÍTULO III: Objectivos de Investigação

À primeira vista, poder-se-á ficar espantado pela vida bastante diferente da

restante população, que os sem-abrigo levam: praticamente são assistidos em todos os

aspectos da vida material e têm que desenvolver alguns mecanismos para aceder a esses

bens: ir buscar bens essenciais através do(a) assistente social de alguma instituição de

solidariedade social; ou directamente nas Juntas de Freguesia; ou ainda em carrinhas de

Instituições de Privada de Solidariedade Social (I. P. S. S.), instituições ou organizações

do Estado, que todas as noites trazem comida, roupa e produtos de higiene. Se fossemos

olhar somente para a vida material, teríamos apenas uma descrição e classificação de

como se vive de quem recorre a ajuda de instituições, a pessoas alheias, cometendo até

crimes, por vezes. Porém, sem recorrer à entrevista, e optando por descrever apenas

situações em que as carrinhas prestam ajuda nas ruas de Lisboa teríamos: quem vive na

rua, num abrigo institucional, em casa própria, em casa arrendada com ajudas do

Estado; pouco mais se saberia da vida dos sem-abrigo na primeira pessoa.

Efectivamente, observam-se muitas situações diferentes, existindo uma grande

quantidade de caras conhecidas entre os que frequentam os mesmos sítios na sua rotina.

Dependendo das relações de amizade estabelecidas preferem, por vezes, poupar o

diálogo ou a partilha de alguma coisa que acontece ou, simplesmente conversar para se

distrair, como falar de futebol ou outras notícias, o que é visto como algo de bom senso

para se protegerem de ataques pessoais. Não criar demasiada intimidade é visto como

bom senso, para não se magoarem emocionalmente ao sofrerem de acusações pessoais

indiscriminadas. É bastante comum quem dorme ao relento fazer-se acompanhar de

outras pessoas que dormem na rua, de modo a protegerem-se de perigos alheios. Outros

preferem efectivamente dormir escondidos, sem que ninguém saiba onde, para não

correrem riscos de visitas inesperadas.

Pode-se afirmar que se trata de uma minoria da população que vive muitas vezes

com um estigma social. Para a definição do que é ser sem-abrigo toma especial

relevância, é viver sem ser numa unidade familiar, numa casa, impossibilitado de

constituir um lar. Não ter dinheiro para pagar uma casa não é sinónimo de sem-abrigo.

Um problema de habitação não se torna um problema de sem-abrigo, por não ter uma

dimensão social e afectiva. Não ter emprego também não torna alguém sem-abrigo por

si só. São as consequências de despejo da casa e de ir viver na rua ou num abrigo

institucional, porque se está menos inserido e protegido.

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Viver num abrigo institucional, num quarto alugado com ajudas de custo da “S.

C. M. L. “ ou por qualquer outro programa estatal de beneficência social, determina

uma situação social de ausência de um lar, constituído por uma casa e uma família

monoparental. Essa é a linha divisória entre um desempregado e um sem-abrigo: um

desempregado pode ter praticamente o mesmo nível de pobreza; tem ainda uma casa

onde vive com a sua família e estabelece laços. As pessoas que entrevistei visitavam

apenas a família com menor regularidade devido ao afastamento físico de não viverem

na mesma casa, havendo mesmo casos em que praticamente não falavam ou tinham

deixado de falar para sempre. Marcas desse afastamento são os casos em que se prefere

viver sozinho – seja em casa alugada com ajuda de custo, abrigo institucional ou até na

rua – do que com família próxima como mãe pai irmãos e filhos.

Partindo de uma orientação que diversificou os perfis biográficos dos

informantes, registaram-se histórias de vida abreviadas. Procurou-se, assim, não ir ao

encontro de uma descrição sem orientação estratégica da pesquisa perante o objecto de

estudo, sob risco de leitura errónea da realidade. Procurou-se debater, aprofundar e

analisar a operacionalidade do conceito de exclusão social, sem-abrigo, estigma,

marginalidade. Com recurso à revisão bibliográfica, recolhendo estudos de caso sobre

sem-abrigo no Reino Unido, EUA e Portugal. Definiu-se a orientação desta

investigação, que se pauta pelos seguintes eixos:

1º Pergunta: Como se chega a sem-abrigo?

2º E como se saí de sem-abrigo? Quais são os diferentes percursos que podem

existir para se chegar a essa situação de sem-abrigo? Trata-se sobretudo de caracterizar

as principais problemáticas biográficas acerca da situação sem-abrigo ou ex-sem-abrigo.

3º Como se caracterizam identitariamente os sem-abrigo? Qual é a auto-

representação, narrativa e visão do mundo dos sem-abrigo? Como se vêm, como

justificam e contam a sua história? De que maneira os próprios sem-abrigos e ex-sem-

abrigo se vêm e que razões atribuem à situação actual?

4º Quais as forças externas que são centrais a este percurso? Qual o papel da

assistência social do Estado, ONG's, IPSS, enquanto parte da vida pública. De que

maneira contribui para a permanência na situação de sem-abrigo e possibilitam uma

saída dessa situação? Quais são as interacções dos sem-abrigo com os programas de

apoio social? Que posições, papeis e visões existem por parte dos utentes face aos

programas de apoio existentes para sem-abrigo?

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CAPÍTULO IV: Metodologia

O presente capítulo pretende dar conta qual foi a metodologia usada,

demonstrando quais as escolhas por detrás da investigação em curso, assim como o

reconhecimento das mesmas condições em que se investigou. Pelo que pretende-se dar

conta do caminho seguindo, chamando à atenção para as condicionantes e factores

determinantes no desenrolar da pesquisa.

IV.1 Selecção de Fontes

De entre as várias fontes documentais que contribuíram para esta investigação,

destaca-se a importância da pesquisa de fontes não oficiais: de livros, artigos científicos,

artigos publicados na imprensa nacional e estrangeira. No que toca aos documentos

oficiais: documentos institucionais, relatórios, análises estatísticas e leis publicadas em

Diário da República. O seu uso foi fundamental para iniciar uma familiarização com o

tema; igualmente importante foi a observação directa do fenómeno estudado e a sua

documentação, enquanto fonte não escrita, nomeadamente a recolha de fontes orais, ao

gravar o som das entrevistas, bem como apontamentos feitos durante as conversas

informais e respectiva observação participante em trabalho de campo. (Albarello et al,

1997: 19-29)

Segundo um critério de pertinência, todas estas fontes foram alvo de reflexão e

selecção, pretendendo encontrar um alcance heurístico à investigação. Procurou-se

atingir a utilidade, ao não repetir o que já foi dito sobre este assunto e trazer uma outra

perspectiva. (Eco, 1995: 53) De modo a que não se encontrasse o excesso de informação

e que houvesse intenção de clarificar as dimensões e contornos desta problemática.

Tornou-se claro com o avançar da investigação, que a selecção de dados conduziu a que

nem toda a informação recolhida fosse trabalhada, para efeitos de coerência, sentido e

devido a limites editoriais.

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IV.2 Trabalho de campo

A introdução no terreno referente ao campo social dos sem-abrigo de Lisboa foi

feita enquanto voluntário, de modo a estabelecer uma relação com os informantes,

estendeu-se às conversas, passeios e, mais tarde, entrevistas com os mesmos,

conduzidas através do método bola de neve, com recurso a amostragem da população

alvo devido à grande dimensão da população de estudo e à limitação da recolha possível

de dados e análise aprofundada (Quivy e Campenhoudt, 2005: 157–163)34

.

Rapidamente saí do “Núcleo de Apoio Local” (“N . A . L .”), gerido pelo “Centro Social

Paroquial de São Jorge de Arroios”, em direcção aos locais de convívio, como Jardim

Campo Santana e as instalações do Projecto “Margens”, denominada de “Casa de

Todos”, onde testemunhei a fase inicial de preparação da edição 2014 dos Festival

cultural “Todos”.

Após duas experiências iniciais em Fevereiro de 2012, enquanto voluntário da

“Re-food”, na Igreja de Fátima e do “Centro de Apoio ao Sem-abrigo” (“C. A. S. A.”),

decidiu-se que o serviço de voluntariado ia ao encontro da necessidade de ter contactos

prolongados com os informantes, seria o do “Centro Social Paroquial de São Jorge de

Arroios”. Nesse caso, o contacto não era tão curto como no momento de entrega da

comida com a “Re-food” e com a “C.A.S.A.” , havendo um maior acompanhamento dos

utentes dos serviços das instituições.

Nas visitas temporárias a convite de um informante à “Casa de Todos”, tive a

oportunidade de visita-lo no abrigo da “Associação dos Albergues Nocturnos”

localizado em São Bento, onde decorriam aulas práticas de carpintaria com alguns dos

utentes do abrigo, tiveram aulas diárias e realizaram actividades durante cerca 8 meses,

direccionadas à formação cultural para realização conjunta com os programadores

culturais do festival de Lisboa “Todos”. Ao observar a execução da peça de teatro

exibida no Festival permitiu-me criar laços com os informantes, por ter realizado

algumas actividades em conjunto, realizadas por alguns sem-abrigo que viviam no

abrigo de São Bento e os programadores culturais que eram os professores. O facto de

34 Deste modo, os informantes surgiam por conhecimento de um outro informante que, por o conhecer,

mais facilmente se prestavam a colaborar do que se fosse só eu, um “investigador/estudante

universitário” que dizia querer fazer um trabalho académico.

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não haver disponibilidade para realizar entrevistas, devido ao preenchimento total do

seu tempo com as aulas, pelo que pude, pelo menos aumentar a rede de contactos.

Acerca dos benefícios e desvantagens de realizar investigação num contexto

social distante e desconhecido, por oposição a uma realidade que o investigador

conhece, levou-se a concluir que essa distância foi positiva, ao levar-me a questionar a

realidade. Sabendo que o conforto e rotina de certos padrões culturais, próximos do

investigador, poderiam dificultar a compreensão do fenómeno, para além das

explicações que localmente são dadas a conhecer (Burgess, 1997:22). Entre as

dificuldades sentidas - sempre difíceis de ajuizar - mas inerentes ao processo de

pesquisa etnográfica, a familiaridade perante os informantes, deu a conhecer as várias

explicações do contexto cultural, a estranheza perante o mesmo; reflexo de uma visão

que espelha as diferenças de funcionamento e a contradições do contexto. É, entre estas

posições, que me colocava: ...a situação era-me simultaneamente familiar e estranha.

(Burgess, 1997: 27). É de realçar a distância perante o meio estudado e

desconhecimento inicial do tema de investigação, trouxe um maior desprendimento de

laços sociais e obrigações, permitindo ter maior poder de observação. Por ser menos

permeável a influências externas, o olhar e curiosidade afinaram-se, de modo a lançar as

suas questões: It is the stranger, too, who finds what is familiar to the group

significantly unfamiliar and so is prompted to raise questions for inquiry less apt to be

raised at all by Insiders. (Merton, 1949: 33)

Lisboa não era nova para mim, mas conheci novas zonas da capital com os meus

informantes durante as conversas e entrevistas que tivemos. Já tinha lido em livros e

jornais sobre os sem-abrigo, mas nunca tinha estabelecido contacto próximo com os

mesmos. Durante o voluntariado e todo tempo que acompanhei os meus informantes em

trabalho de campo, tive a hipótese de conhecer uma realidade nova que por sua vez, sem

para isso sem ter de sair da cidade onde nasci, por ter aprofundado a observação

participante. Não se trata uma simples escolha do alvo, da pesquisa e da sua localização

geográfica, mas também como se vai recolher os dados e que teoria se vai usar. Neste

sentido, é preciso reconhecer o conhecimento é construído de maneira plural. É preciso

reconhecer que todo o conhecimento é feito de escolhas e opções, teóricas,

metodológicas, disciplinares e, no limite, pessoais. Não dar a conhecer essas escolhas,

seria sustentar a visão do conhecimento omissa.

Sem experimentar o que é viver na rua, uma única noite, o acesso à realidade

vivida pelos sem-abrigo foi indirecto, os dados recolhidos resultam de entrevistas e

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conversas informais do que os meus informantes me transmitiram sobre o que foi viver

na rua. As minhas observações permaneceriam sempre demasiado pessoais quando sem

esses testemunhos prestados, justificando a necessidade de recolher histórias de vida.

Na presente investigação, a estratégia utilizada na selecção de informantes decorreu do

enquadramento teórico e da própria natureza do problema estudado: a “amostragem em

bola de neve” resultou numa escolha dos informantes que foram também recomendados

por sem-abrigo entrevistados. Para além dos sem-abrigo, tive também como

informantes directores, técnicos, voluntários e dos assistentes sociais. Depois de uma

ida ao terreno junto de assistentes sociais do “Centro Social Paroquial de São Jorge de

Arroios”, a participação semanal no voluntariado permitiu interagir com a população em

estudo, ter obtido informações, bem como a obtenção ao falar em primeira mão ou de

maneira indirecta junto dos respectivos informantes que permitiu ter maior consciência

do problema em foque. Optou-se pela aplicação da amostragem intencional e casuística.

A selecção obedeceu ao critério de ser sem-abrigo que vive ou viveu na rua, ou num

abrigo institucional ou que foi um sem-abrigo. Em suma, se por um lado se confirmou o

uso da:

… amostragem intencional os informantes podem ser selecionados para o estudo de acordo com

um certo número de critérios estabelecidos pelo investigador, tais como o seu estatuto (idade, sexo,

ocupação) ou experiência prévia que lhes confere um nível especial de conhecimentos. O investigador

por conseguinte, exige dos indivíduos que têm diferentes qualificações como informantes, um

pormenorizado conhecimento do universo (Burgess, 1997:59).

Também foi preciso contornar dificuldades devido ao universo extenso e

fragmentado no que diz respeito a relações sociais. Como refere (Burgess, 1997: 61):

problemas especiais associados com as circunstâncias reais significam que estas

estratégias não podem ser directamente aplicadas a pesquisas de terreno requerendo

alguma modificação por parte do investigador

O facto da população em estudo ser pobre e participar ocasionalmente em

práticas ilícitas, fez com que apenas cafés, bancos de jardins e caminhadas pela cidade

restassem para observar. Não havia muito mais, não estava interessado em observar

alcoolismo e drogas, não era esse o meu foco, restringi assim o foco às entrevistas e à

acção resultante daí e do voluntariado que realizava. Essencialmente tratou-se de

conquistar os informantes e estabelecer um vínculo que dê frutos. (Burgess, 1997: 100)

Este processo deu-me a conhecer a existência do projecto cultural “Margens” de

preparação do Festival anual “Todos”, dirigido pela “Academia de Produtores

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Culturais”, apoiado financeiramente pela “Fundação Calouste Gulbenkian” e a “Câmara

Municipal de Lisboa” (“C. M. L.”), o abrigo de São Bento sob gestão da “Associação

dos Albergues Nocturnos de Lisboa”, através de convite do informante Aatif. A partir

do qual foi possível permitindo-me chegar a outro tipo de informantes: os que em vez

de permanecerem ao relento ficavam em abrigos. A mobilidade em Lisboa permitia aos

meus informantes usufruírem de vários serviços sociais, espalhados pela cidade, pelo

que fazia da mesma maneira sentido, seguir o percurso de convívio dos meus

informantes e seus conhecidos. A observação que realizei fixava-se no início do

trabalho de campo, nas imediações da Igreja de Arroios onde as instituições distribuíam

comida e ocorria nos jantares do “N. A. L.” do “Centro Social Paroquial de Arroios”.

Escolhi este local pelo facto das pessoas, tantos voluntários como utentes permanecerem

por lá mais tempo do que nas restantes experiências de voluntariado. Assim havia mais

hipóteses de interagir, de modo a conhecer possíveis informantes e marcar entrevistas.

Partiria sempre da minha iniciativa e aceitação em iniciar contacto e, sobretudo, em

encontrar fora da instituição informantes-chave e espaços de sociabilidade que

permitissem um bom trabalho de campo.

Durante o trabalho de campo foi preciso estar bastante positivo em relação à

receptividade no terreno. Como em qualquer trabalho de campo, a questão da hierarquia

e do poder revelou-se essencial para entender o posicionamento relativo aos

informantes. O facto de nenhuma das pessoas com quem contactei nestas organizações

ser formada em Antropologia, mas em outras áreas, fez com que tivesse pouco impacto

de ser formado em Antropologia ou a minha condição de estudante de Mestrado de

Migrações Inter-etnicidades e Transnacionalismo na FCSH-UNL. Relativamente às

entrevistas aos técnicos das instituições. Por contraste com a resposta presencial, no

momento dos sem-abrigo entrevistados que aceitavam ou rejeitavam o convite para a

entrevista, a autorização das instituições e o censo a respectivas entrevistas com

técnicos demorava tempo por necessitar de agendamento e marcação de natureza

institucional e burocrática.

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IV.3 Recolha de testemunhos biográficos

A utilização das histórias de vida, método criado no século XX na década de '20

nos EUA - para aprofundar o estudo nas ciências sociais da questão migratória

do melting pot Americano – também foi adoptado na Europa nos anos '50.

(Poirier, Clapier-Valladon, e Raybaut, 1995: 9). Metodologicamente a primazia

dada ao método biográfico, para além da sua eficácia na recolha de informações: A

biografia permite-nos contemplar um indivíduo num contexto socio-histórico de três

dimensões: o seu passado de sucessos ou de fracassos, o seu presente pletórico de

estratégias e o seu futuro de receios e expectativas; a biografia permite-nos descobrir

os nexos duma história pessoal com uma macro-história social (Yánez, 1997: 88)

Quanto à posição do investigador, este revê-se na tomada de posição

e reconhecimento que:

...a relação de exterioridade não é apenas uma simples premissa técnica para que o relato

biográfico tenha lugar. A relação de exterioridade irá adquirir, ao longo do relato, uma outra dimensão

mais complexa e profunda, residindo aí a sua verdadeira eficácia metodológica: é a dimensão de

proximidade – distanciamento entre duas culturas, dois contextos ou dois horizontes, a cultura do

investigador e cultura do biografado (Yánez, 1997: 93).

Ao colocar a vida íntima enquanto foco de investigação principal,

nomeadamente a maneira como os sentimentos e situações se conjugavam. Tentou-se

perceber como eram as relações humanas foram desenvolvidas na vida dos informantes.

Foi dado especial atenção à forma de estar associada a episódios biográficos marcantes,

enquanto pistas para descortinar o que despoletou os diversos caminhos das biografias

estudadas. O acesso aos informantes dependeu da simpatia e capacidade ouvir, da sua

receptividade e boa vontade em ajudar, a minha preocupação relativa aos informantes

aumentava quanto maior a minha proximidade. Fazendo recordar estudos clássicos

como Os filhos de Sánchez (1979), cujo acesso a uma população com pouco espaço de

divulgação e discussão pública. Através do método privilegiado, que se distingue pela

riqueza das informações obtidas. O recurso ao gravador de voz nas recolhas biográficas,

para além de permitir o acesso em primeira mão aos protagonistas deste estudo, depois

de algum tempo de conversa, permitiu superar a fronteira e rigidez de perguntas que

frequentemente, não correspondem aos percursos vividos. O informante podia falar sem

pausas, permitindo também ultrapassar a barreira dos diferentes registos de linguagem,

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entre o antropólogo e o informante. Para além da interrogação do que é viver na rua,

saber como e porquê se foi viver para a rua, sobretudo em conhecer quem é esta pessoa

que vive ou viveu na rua.

Segundo um critério de pertinência, de categorias chave que estruturam a vida

do informante, assim como conceitos teóricos que leiam a realidade de forma adequada:

Qualitative observers are not bound, thus, by predetermined categories of measurement

or response, but are free to search for concepts or categories that appear meaningful to

subjects. (Adler e Adler, 1994: 378).

As entrevistas dependeram muito do estado espírito do informante, do

antropólogo, bem como da atenção, precisão e entendimento das perguntas e do seu

conteúdo. As entrevistas tiveram um carácter biográfico, com mais perguntas

específicas acerca das vivências de rua. As mesmas trouxeram profundidade com

exemplos práticos visíveis dos hábitos da realidade estudada. A gravação áudio de

entrevista não impediu a abertura de parte a parte. Detectaram-se ressentimentos com o

passado, arrependimentos, desejo de uma segunda oportunidade e de um

aconselhamento. Durante as entrevistas evidenciaram-se traumas decorrentes de

episódios de vida marcantes. Vi, paradoxalmente, lágrimas, sorrisos, esperança,

desespero, arrependimentos, mentiras e verdades.

Para se compreender quem são estas pessoas que vivem ou viveram na rua,

temos de compreender qual é o conjunto de características que surge enquanto

denominador comum, que permite identificar este fenómeno social. De modo a fugir ao

uso de categorias estanques já existentes, seria útil recorrer-se a uma análise micro-

social, através do uso de histórias de vida, seleccionando os informantes em função do

percurso biográfico enquanto tipologia a estudar.

É de notar que a estratégia de observação participante foi mudando ao longo do

decorrer da investigação: Observational research can vary considerably in its character

among different practitioners, through the stages of a research project, in various

settings and depending on the relationship of researchers to their subjects (Adler e

Adler, 1994: 379).

Nunca é demais sublinhar a continuidade entre questões de dimensão micro e

macro, pelo que, ao longo do trabalho de campo, houve um diálogo constante entre as

duas escalas: The scope of research can range along a continuum from «macro-

ethnography to micro-ethnography». (Spradley, 1980: 29). O respectivo ciclo de

pesquisa etnográfica, recomendado por James Spradley (1980), é posto em prática no

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regresso alternado ao trabalho de campo e à escrita da etnografia, de modo a completar

a investigação com mais dados e enquadrá-los no estudo: The last major task in the

research cycle occurs toward the end of a research project. However, it can also lead to

new question and more observations.(…) Those who begin their writing early and when

they still can make observation will find that writing becomes part of the research cycle

(Spradley, 1980: 34).

Na organização posterior do material recolhido, tentou-se reconstituir a vida do

informante em função de sobressaltos e marcos que imprimiram mudanças de relevo.

Inicialmente esse foi o eixo que estruturou a entrevista: procura-se reconstruir os

acontecimentos chave para a mudança na vida do informante. Só depois se tentou

colmatar as lacunas existentes entre acontecimentos. A investigação seguiu também o

rumo de agrupar sujeitos sociais por biografias semelhantes, no que respeita a atitudes

relativas a traços de personalidade.

A marcação de entrevistas era sempre feita para o dia seguinte, excepto com

Domingos e Aatif, com quem marcava uma data consoante a disponibilidade deles, por

ter o seu número de telemóvel e saber que cumpriam compromissos. Convidava-os para

tomar para um café ou realizava a entrevista num banco de jardim. Escolhia a situação

mais confortável para o informante. Apesar das informações disponibilizadas de bom

grado, recusavam na maioria das vezes serem identificados pelo nome, pois era

frequente a família não sabia que viviam na rua.

Queriam ser deixados em paz na maioria dos casos, sem ser lembrados

constantemente que são sem-abrigo, de passagem na rua. A maior dificuldade sentida

foi de estabelecer contactos em conversas e em conseguir que comparecessem à

entrevista, pois na maioria das vezes tinham sempre uma história para contar. O

investigador tinha que saber conduzir a entrevista organizando perguntas que, dessem

um sentido à história, sem silenciar o raciocínio do informante. Não gostavam de ser

tratados apenas como mais um sem-abrigo, nem de serem alvo de atenção por isso. Por

pensarem que lhes queriam resolver a vida com soluções que já conheciam e com as

quais não concordavam. Muitos davam o testemunho para falar, num esforço sincero de

tentar ajudar o investigador, contando o resultado dos maus caminhos das drogas e

álcool, revelando a importância de também terem alguém a quem contar a sua história.

Devido à complexidade deste problema, desde cedo decidi sacrificar algumas

fontes de trabalho de campo, por serem demasiado incompletas e estabeleci como

método de trabalho principal a entrevista com recurso a gravador áudio, por entender

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dar a conhecer com profundidade suficiente os casos dos meus informantes. Adoptei a

estratégia de abordar informantes, segundo a sua receptividade, o relacionamento foi

fácil quando houver abertura para diálogo. Privilegiei situações em que os informantes,

não estavam alterados por substâncias químicas, como álcool e drogas, de modo a que

as respostas correspondessem a um Estado de sobriedade e não de catarse aditiva. Após

uma primeira conversa, decidia se queria ou não voltar entrevistar, baseando-me na

pertinência do perfil e sua respectiva história, para o decorrer da investigação.

Se, inicialmente, eu não perdia tempo a encurtar a história do meu interlocutor,

perguntando directamente - Como é que foi parar à rua?, percebi rapidamente que era

necessário dar espaço para que se contasse bem a história que havia para contar. Neste

âmbito, estímulos indirectos que contextualizassem a história de vida e que

fomentassem a criação de um cenário repleto de recordações, apenas enriqueciam a

minha relação com quem entrevistava. Apercebi-me que uma entrevista define bem

quem somos, sobretudo pela maneira como se conta a sua vida a um, até então,

completo estranho. É de destacar a dificuldade em obter entrevistas e de comparecer aos

compromissos marcados com o investigador para as entrevistas, devido à instabilidade

dos percursos pela cidade e dos respectivos horários, falta de rotina, e dificuldade de

contacto por telemóvel. Os resultados mais frutuosos do trabalho de campo foram a

exposição a momentos de acção, em que as perguntas não foram feitas e apenas se

conversava, da mesma maneira que quando encontrada uma maneira de o entrevistado

se lembrar do que sentia e pensava do rumo da sua vida, sem que houvesse necessidade

de ser direccionado para esse tema.

Entrevistar é arte de saber conversar, de saber contar uma história, do

entrevistador mostrar genuíno interesse. Tentei respeitar o rumo das conversas tidas

durante as entrevistas e somente quando era estritamente necessário intervinha para

introduzir um tema ainda não falado. Na maior parte dos casos entrevistas apenas foi

possível obter entrevistas longas, mas sem possibilidade de repetição, pelo facto de não

ter maneira de contactar novamente com o informante pois o local onde tinha sido a

entrevista (“Igreja de Arroios” ou “N. A. L. ” gerido pela “Junta de Freguesia de

Arroios”, ou um jardim nas imediações ou café onde se sentiam à vontade) não os

voltava a ver novamente. Tal facto relaciona-se com a grande dispersão de percurso

diário pelos vários serviços sociais de apoio da cidade Lisboa, desde abrigos

institucionais, refeitórios sociais, hospitais, instituições de solidariedade social e até

igrejas.

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CAPÍTULO V: Etnografia

V.1 Entre a Rua, o Abrigo e as Instituições

O terreno que percorri nunca se cingiu a uma zona, pelo menos no sentido

geográfico do termo, pelo facto do universo estudo ser plural. Optou-se por seguir as

passadas dos informantes e ir para onde precisavam de ir, pois o que importava, numa

primeira abordagem, era entender o percurso diário feito pelas pessoas que queria

entrevistar para, desse modo, ir ao encontro dos meus informantes.

Foi no “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios” que se iniciaram os

contactos para realizar entrevistas e onde era também possível observar as interacções

entre utentes sem-abrigo e desempregados, voluntários, funcionários e assistentes

sociais. Um olhar não familiarizado, não conseguiria distinguir quem é quem,

especialmente entre os utentes desta instituição.

O trabalho de campo realizou-se em dois locais. Numa primeira fase, nas

imediações da Igreja de Arroios - ficando numa rua ao lado da sede do “Centro Social

Paroquial de São Jorge de Arroios” onde eram feitos os atendimentos pelos assistentes

sociais e onde decorriam várias actividades de cariz social, como refeições comunitárias

para os utentes e até actividades de ocupação de tempos livres, como ginástica para

idosos. O voluntariado decorria todas as terças e quintas-feiras, das 20:30 até

sensivelmente às 22:30. Sendo que os dois dias, eram compostos por uma equipa de

voluntários diferente, repetindo-se apenas os assistentes sociais que conheciam melhor o

terreno, devido à proximidade que a sua actividade proporcionava. A dinâmica de

existir uma ronda, em que se procurava saber o que acontecia desde que a última vez se

tinha falado, permitia estabelecer um contacto directo não só com sem-abrigo, mas com

outros utentes de várias instituições. Existiam situações muito diversas, desde pessoas

que comiam na rua onde eram dadas as refeições, pessoas que levavam a comida dada

para casa, ou até utentes que jantavam na cantina social da “S. C. M. L. ”, na Avenida

Almirante Reis, e subiam ao jardim em frente à Igreja de Arroios. Muitas vezes estar ali,

onde a as refeições eram distribuídas representava simplesmente um espaço de

convívio.

Era ali, em frente à Igreja de Arroios, que todos os dias já se sabia que se

dirigiam instituições, esperava-se pelas carrinhas cada uma no seu horário para não se

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sobreporem umas às outras, fazendo concorrência e provocando conflitos. Às sete horas

em ponto, chegava o “Exército de Salvação” que servia um pão e uma sopa num copo.

Por volta das oito horas chegava uma família indiana que se tinha auto-organizado, há já

algum tempo, e doava comida vegetariana (prato principal de hidratos e alguma fruta)

naquele ponto da cidade. Era conhecida pela sua opção de ementa:

- Eu não quero comer isso! Massa com Massa! - Comentavam alguns

beneficiários.

Mais tarde, vinha a “C. A. S. A.” que tinha normalmente várias opções enquanto

prato principal: peixe, vegetariano e alguma carne. Variando muito o stock existente da

oferta em cada dia. Era o auge das noites, junto à Igreja de Arroios. Era nesta altura que

afluía mais gente e as filas eram maiores. Era também a altura em que havia maior

confusão:

- Ele já repetiu e eu ainda nem comi!

- Ele passou à frente!

Os voluntários tentavam acalmar os desacatos: Vá! Vocês têm que se organizar!

Obviamente em espaços tão abertos e já em situação de mal terem mãos a medir para a

as dezenas de pessoas que se juntavam à procura de comida gratuita.

Às dez horas chegava a Comunidade Vida e Paz com uma sandes e um copo de

leite. Esta refeição seria supostamente para a ceia ou até para o pequeno-almoço. Muitas

pessoas, para além de comerem no local, procuravam levar comida para os familiares

outras simplesmente optavam por levar para casa, em vez de comerem na rua.

Precisamente contra a atitude de comer na rua, por não ser digno, a vereadora

Helena Roseta quis começar a criar espaços alternativos, dar seguimento às situações

das pessoas que iam buscar comida à rua para as instituições. Era seu objectivo que, se

começasse a dar início a uma assistência integrada dos serviços, e não somente dar

comida sem procurar soluções. 35

Foi a partir da 15 de Setembro de 2013, que essa

vontade se concretizou. António Costa, à época Presidente da Câmara Municipal de

Lisboa, inaugurou um espaço de duas antigas áreas comerciais reabilitadas, que

pretendem responder em exclusivo à situação de sem-abrigo, ou em risco de estar sem-

abrigo, sendo o espaço constituído por uma sala que tem como função servir de cantina

social com lotação para cinquenta pessoas comerem sentadas. Nesse espaço, desde o dia

35 Acerca da discórdia do modelo de dar comida na rua por várias instituições aos sem-abrigo, consultar:

http://www.publico.pt/sociedade/noticia/mais-de-2000-pessoas-dormem-nas-ruas-de-lisboa-1595561

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em que inaugurou que se inaugurou, são servidas três refeições a quem tem

insuficiências económicas: pequeno-almoço, almoço, e jantar. Desde que o dia que

abriu que se encontra aberto em permanência.36

Foi este terreno de pesquisa que privilegiei, numa primeira fase, o Largo de

Santa Bárbara, onde se localiza o N. A. L. administrado pelo Centro Paroquial de São

Jorge de Arroios, trata-se de uma infra-estrutura que era um espaço comercial,

entretanto recuperado pela C. M. L. onde diariamente desde o dia 17 Setembro de 2013,

são feitas três refeições. O pequeno-almoço e almoço são fruto de contribuições de

hotéis e da cozinha do “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios”, ao jantar a

sopa é dada rotativamente pela “Associação Católica Sofia Frei Fabiano de Cristo”,

“Igreja Evangélica e Verdade”, “Casa da Sopa Mãe Maria Nazaré” (uma família de

Indianos dá prato principal a “C. A. S. A. “ contribui para o prato principal e fruta). Ao

jantar o voluntariado tinha bastantes tempos mortos, limitando-me a ajudar na logística

de servir refeições (pôr a mesa e levantar a mesa ocasionalmente servir as refeições da

“C. A. S. A. “, varrer, e lavar o chão, colocar mesas e cadeiras). Tive por isso que saber

adaptar-me e ao ouvir uma história de alguém receptivo, fazia logo convite para

entrevista.

Existem algumas diferenças entre os dois tipos de voluntariado feitos nestes dois

espaços, embora fossem realizado para a mesma instituição. No voluntariado das

imediações da Igreja de Arroios pode-se considerar que os voluntários tinham uma

postura mais activa, interagindo mais com quem distribuía comida e com quem vinha

abastecer-se, uma vez que tinham a obrigatoriedade de se manter ao corrente dos vários

utentes que usufruíam das várias ajudas alimentares das instituições que aí actuavam,

mas que eram acompanhados, no plano do seu enquadramento social, com especial

enfoque a nível de saúde e habitação. O facto do voluntariado consistir implicitamente

em saber o que se passava com cada utente, levava a que se conversasse com as pessoas

que por ali passavam, relatando depois a conversa aos assistentes sociais, revelando

pequenos detalhes importantes para conhecer o quotidiano de quem tem poucos

recursos económicos.

Quando o voluntariado se passou a realizar no espaço do Largo de Santa

Bárbara, deixa de ser necessário fazer rondas no exterior com os assistentes sociais para

36 Acerca da inauguração do Núcleo de Apoio Local assinalado pelos média:

http://rr.sapo.pt/informacao_detalhe.aspx?fid=29&did=122097

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se saber o que acontece ou tem acontecido. O procedimento passa a ser outro,

funcionários e voluntários asseguram o funcionamento da cantina social, destinada a

sem-abrigo, nas suas tarefas de logísticas, como limpeza, pôr mesas, levantar mesa e pôr

a máquina a lavar. Sendo que os assistentes sociais passam a dedicar-se mais a marcar

atendimentos no gabinete ao lado da cantina social, para acompanhar tanto

desempregados como sem-abrigo. Deixa, de portanto haver disponibilidade por parte

dos assistentes sociais e, até de fazer sentido – dadas as novas exigências da cantina

criada – para recolher informação na rua, passando até a realizar inquéritos aos utentes

da cantina social. Tal abordagem é feita ou em conversas mais informais na cantina

social, ou nos atendimentos. Os voluntários apoiam logisticamente os jantares, dispondo

de pouco tempo e, por isso, interagem muito menos com quem recorre ao Centro

Paroquial. Nos tempos mortos, a diferença na distância entre quem está sentado e de pé,

respectivamente utentes e voluntários, assinala uma diferença e uma distância nem

sempre fácil de superar. Quando me era possível, procurava conhecer as pessoas que ali

estavam, independentemente de ir fazer ou não entrevista. O facto de haver três

refeições por dia, para além do conforto proporcionado de comer com regularidade, é

também vantajoso porque estabelece um horário possível de encontro para realização de

entrevistas, tendo assumido grande importância ao longo do trabalho de campo.

Estava eu em mais um dia de voluntariado quando, no final do jantar, por

iniciativa da direcção que toma conta do “N. A. L. ” de “Centro Social Paroquial de São

Jorge de Arroios”, houve um visionamento de um pequeno vídeo que convidava a

encarar, de forma positiva, os problemas na vida.

No final houve algumas intervenções que se destacaram:

- Isto mal, não é dada nenhuma ajuda. É só esta caridadezinha! Não há

programas do Estado de formação para empregos. Como marceneiro, electricista...

Como eu... Eu gostava de ser marceneiro. Mas não! Não investem no emprego! -

Desabafava um Senhor de meia-idade que tinha deixado a rua há pouco tempo.

- Claro, que quando somos jovens, não queremos saber da escola. E faltamos

porque gostamos de falar com os nossos amigos. E depois pagamos as consequências –

Dizia um jovem que tentava explicar o rumo da sua vida profissional. Por ter de vez em

quando trabalhos braçais de curta duração procurava adaptar-se à precariedade dos

trabalhos que tinha, recorrendo aos serviços do Centro Paroquial.

- Eu dou a cara não me importo podem filmar e tudo! Eu perdi o RSI

(Rendimento Social de Inserção) por causa do Coelho. (Primeiro-Ministro do Governo

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PSD/CDS-PP no poder no ano de 2014)... A minha mulher largou-me. Vou fazer o quê?

- Um senhor de cinquenta anos, Madeirense explicava o que lhe tinha acontecido.

O filme tinha funcionado como incentivo de conversa em público, em estilo de

debate, e cada um dava a entender a sua perspectiva sobre um assunto que lhes dizia

directamente respeito. A conversa tinha começado por um desabafo da parte do homem

de meia-idade:

- Eu tive no estrangeiro e depois quando voltei... não tinha cá nada... Olha não

devia ter voltado!-

- Mas não 'tá num quarto?- Perguntei eu não percebendo o problema.

- E o que é que faço no quarto? Olho para as paredes?! A culpa não é tua, mas

é mesmo assim sair da rua não é tudo... Continuo desempregado…- replicou tem tom

de desespero.

Várias vezes aconteceu existir bastante receptividade para a realização de

entrevistas, mas como o encontro com essas pessoas se dava ao jantar, a hora avançada,

isso já não permitia realizar a entrevista nesse dia, dado que quem dorme na rua ou

dorme em abrigos deita-se cedo porque acorda cedo (seis ou sete da manhã). Nessas

ocasiões agendava a entrevista para o dia seguinte mas infelizmente, seja por

esquecimento ou impedimento devido a outros compromissos, seja por dificuldade em

se deslocarem a pé e chegarem às horas combinadas, houve um grande número de casos

em que foi impossível realizar a entrevista até porque, na maioria dos contactos

estabelecidos, não dispunham de contacto de telefónico.

A imprevisibilidade é algo frequente ao lidar com sem-abrigo, a dificuldade

deveu-se, em alguns casos, a constantes mudanças de opinião e incapacidade em

assumir compromissos. Apresento, assim, alguns exemplos de depoimentos travados em

primeira mão, com sem-abrigo, que podem ser caracterizados como desejáveis e

inesperados, pois relembram aspectos inusitados no que toca à biografia de alguém, sem

terem sido recolhidos sob a formalidade de uma entrevista.

Era um homem de 40 e tal anos, que, quando lhe expliquei que ali estava com o

propósito de fazer entrevistas me respondeu:

- Eu vou-te dar um testemunho que tu vais ter um bom trabalho! Eu nasci no

meio das prostitutas, a minha mãe era prostituta. - Disponibilizou-se prontamente

dizendo.

- Tás a ver esta tatuagem?- perguntava ao mesmo tempo que apontava para o

braço esquerdo.

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- Sim- Acenei rapidamente.

- Isto significa o amor de mãe que eu tive, eu fui muito amado! - disse

emocionado.

- Tu estudas é? Estudas o quê?

- Sim estudo Antropologia. - Respondi.

- O que é isso?- perguntava cada vez mais intrigado.

- É tentar perceber porque é que as pessoas fazem as coisas que fazem. -

Respondia meio atrapalhado.

- E Português gostas? E Matemática?- Perguntava interessado.

- Português gosto, Matemática não. - Respondia.

- Tão mas depois como é que é, quando tiveres de fazeres exames?- Perguntava

preocupado.

- Já fiz os exames que tinha a fazer agora tenho de fazer este trabalho, a tese.-

Respondi eu, mesmo sabendo que era difícil de explicar.

Depois de falar com ele e com o amigo mais algum tempo, tinha ficado

agendada uma entrevista para o dia seguinte. Infelizmente, no dia seguinte não

compareceu, apesar de me ter garantido que lá ia almoçar.

Depois iniciei conversa com outra pessoa no “N. A. L.”:

- Eu 'tou a fazer histórias de vida, gostava de ter a tua.… - perguntei-lhe

cuidadosamente.

- Sim vamos fazer entrevista, eu vou contigo aos albergues estudar contigo a

situação dos sem-abrigo. Sempre fui bom aluno, vou-te ajudar. Eu tenho é um

problema, eu ando a pé pela cidade, não uso transportes. Por isso não sei se consigo

chegar a tempo. Eu sou insolvente sabes o que é?... Quer dizer que não posso ter conta

no banco… A minha família lixou-me. A minha ex-mulher… - Respondeu ele com

entusiasmo ao pedido.

- Não tens filhos?- inquiriu.

- Não - respondi surpreso.

- Um dia hás-de ter! - disse descontraidamente.

- Ok... Onde é que dormes?- perguntei eu.

- Num prédio abandonado. - revelou ele sem vergonha.

Passado uns meses voltei a vê-lo novamente no "N. A. L." . Quando lhe

perguntei o que lhe tinha acontecido, pois tinha ficado à espera dele nesse dia e não o vi,

respondeu-me:

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- Não. Olha nesse dia, não consegui chegar a tempo. Cheguei mais tarde e não

'tavas cá.- Justificou-se perante a minha pergunta.

-Ganhei um processo num tribunal, contra agressão de um polícia, tinha razão.-

Dizia ele de fato vestido.

Mas ser pobre nem sempre era sinónimo de estar desanimado com a vida. Havia

um leque de distintas atitudes, encontrando-se muitas pessoas que procuravam levar a

vida pela positiva. Um dia, um utente do “N. A. L. ” despertou-me o interesse:

- Em que é que acreditas?- perguntou mudando de assunto.

-Não acredito em nada. - disse-lhe espantado com a pergunta.

-Então não vais conseguir vencer na vida. - replicou ele sentenciando o meu

destino.

-Bem acreditar... Acreditar... Acredito na música.- disse eu ainda admirado com

a direcção da conversa.

-Bem pode ser... podes acreditar na música mas isso não chega para vencer na

vida! - insistiu o utente que eu estava errado. Este é um exemplo que guardo daquele

espaço, onde me cruzei com pessoas com uma biografia e maneira de ser diferentes, que

geravam diferentes interacções das quais beneficiei como aprendizagem de vida.

Como passam os sem-abrigo os seus dias?

Como é um dia de um sem-abrigo? Naturalmente apenas se pode responder a

essa pergunta, como se responderia para qualquer outro grupo identificado. Existem

muitos factores cuja variabilidade é preciso ter em conta. Apenas se poderá dar

exemplos e estabelecer algumas tipologias de sem-abrigo. Por exemplo, se está muito

frio ou chuva que não permita estar ao ar livre, com certeza existem zonas da cidade

onde se encontram com mais facilidade sem-abrigo, devido à concentração dos serviços

institucionais junto desta população, mas não se pode dizer que são uma população

restrita a determinada área. Não se podem delinear áreas com régua e esquadro, pois

circulam bastante, e sempre com mais frequência entre as zonas onde existe mais apoio

social (Mateus, 2008). Dependendo depois da zona da cidade em que estão pessoas com

quem se socializam e, sobretudo onde pernoitam, podendo ser locais escolhidos

simplesmente, zonas da cidade com as quais simpatizam, por serem mais calmas ou,

pelo contrário movimentadas.

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A constituição da rede social, no caso dos sem-abrigo migrantes e étnicos, vai

para além de quem se encontra na rua, ou das instituições de solidariedade social que

frequentam, na verdade, há contactos anteriores à situação de sem-abrigo que não se

perdem bem até reencontros. Os imigrantes possuem uma afinidade maior entre si

quando da mesma região linguística ou mesmo país, do que entre os portugueses, que

permanecem mais distantes. Mas é sobretudo de destacar contactos feitos com base no

marcador da nacionalidade, por reconhecerem traços físicos ou por ouviram falar a

mesma língua, correspondendo muitas vezes aos contactos mais duradouros e íntimos

que fazem. É o marcador étnico que corresponde simplesmente a pertencer à mesma

nacionalidade num país estrangeiro, que define a ténue linha entre com quem mais

falam e entre quem mais consideram amigo ou conhecido e entre com quem mais se

dão.

Regra geral se não têm nenhum compromisso, como visitar algum familiar,

amigo, ir a uma consulta médica ou um encontro com a assistente social, caminham

pelas zonas da cidade que mais gostam descansando em jardins públicos da cidade de

Lisboa. Tal é o caso do Jardim da Igreja de Arroios, Jardim da Casa da Moeda, Praça do

Campo Pequeno, Jardim do Campo Grande, Jardim do Campo Santana, Praça do

Martim Moniz, Jardim Constantino, Jardim em frente à Igreja dos Arroios, pátio em

frente à Igreja dos Anjos na Avenida Almirante Reis. Por esses jardins podem conversar

com alguém ou simplesmente contemplar o passar do tempo, acompanhados ou

sozinhos. Algumas das pessoas que entrevistei também gostavam de passar tempo a ler

nas bibliotecas públicas. O uso ou evitação de álcool, tabaco, e drogas dependerá do seu

percurso de vida.

Outras experiências e tentativas de perceber os sem-abrigo através de uma franca

conversa, esbarravam em desconfiança:

- Sim, sim já toda a gente sabe que vivo na rua, não quero conversas estou

chateado. O assistente social quer mandar-me para Xabregas, já disse que não quero.

Aquilo é para os drogados. Não sou drogado. Vendem lá droga e roubam. 'Tou

chateado não quero conversas. Quero emprego. Com tantas casas da Câmara fechadas

podiam abrir noutros sítios – Reclamava, revoltado um sem-abrigo madeirense de

meia-idade.

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V.2 O Albergue de São Bento

Cheguei à morada da “Associação dos Albergues Nocturnos de Lisboa” por

volta das oito e meia da noite, já lá tinha estado antes quando fui pedir autorização para

entrevistar os utentes do Albergue e entrevistei o seu Director. Era um edifício antigo,

com cerca de 4 metros de altura, com portas de madeira e azulejos antigos. Chegado ao

local expliquei a situação, e perguntei se podia entrevistar os utentes do abrigo. O

funcionário que se encontrava sentado na recepção disse que não sabia de nada.

Expliquei novamente que tinha autorização para entrevistas e, passado um tempo de eu

explicar que entrevistei o Director e que por telefone me tinha dito que todos os

membros da direcção não se opunham à ideia de eu entrevistar os utentes, fui posto em

contacto, via telefone, com o gabinete da assistente social, à qual repeti o mesmo que

anteriormente tinha dito explicitando o objectivo de entrevistar os utentes do albergue.

Como resposta foi-me dito para aguardar um momento. Passado uns minutos, saiu a

jovem assistente social, deu-me uma resposta afirmativa, esclarecendo que poderia fazer

as entrevistas, mas apenas no período depois do jantar: a partir das sete horas e até às

nove horas.

Entrei, cumprimentei o meu informante-chave Domingos, que estava a jogar

matraquilhos. As restantes pessoas observavam enquanto fumavam, olhavam para a tv e

assim como um pequeno grupo conversava sobre a sua vida. Passado pouco tempo saí

para o pátio com ele, onde outras duas pessoas também fumavam sozinhas. A atmosfera

de bastante tensão e “cada um por si”, onde a necessidade de apreciar a sua própria

companhia parece ser regra. Como que estranhando a minha presença, um conhecido

meu do projecto “Festival Todos”, aproximou-se de nós, que estávamos sentados no

banco, e inquiriu:- Então tu também vens para aqui?- Ao que respondi - Não venho só

fazer entrevistas. Estranhou obviamente eu estar no ambiente dele.

Conversei um pouco com Domingos, o que é se passava com ele, como decorria

o “Festival Todos”, se estariam receptivos a fazer uma entrevista. Eles não se

comprometem, voltam atrás, porque isto não é só ali que é feito. É também visto

noutros sítios. E como foi a filmar já não queriam. … É agora não vai haver tempo o

pessoal vai ver a bola... O pessoal é muito desconfiado não dá para fazer entrevista...

Vá só na sexta, para falar, agora eles tão a levar tudo na casa ainda tá lá pessoal até à

meia-noite, amanhã há um almoço e é a despedida. O Luciano e o Brasileiro também

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colaboram lá... Eu eu posso-te dizer um ou dois que acho que colaboram. Vá Adeus

Pedro, estamos juntos!

Abordei eu o funcionário, enquanto esperava pelo fim do jantar:

O que é que acha destas pessoas que vivem aqui?

Há de tudo... é preciso 'tar com um olho no burro e outro no cigano, meteram-se

na má vida... trabalhar 'tá quieto. Muitos nunca tiveram muita sorte... mas há de tudo...

como na política... Mas eu trabalho desde os 12 anos sabe? E eles trabalhar 'tá quieto?

- Respondeu o funcionário resmungando e sentindo-se injustiçado. Era notável o

sentimento de injustiça e, talvez de revolta, de quem 'teve de trabalhar desde muito

cedo. Não entendendo a razão de benefícios ou bens materiais são dados às pessoas

como as que vê diariamente no albergue, sem requerer nenhum trabalho como

contrapartida.

V.3 Trabalho de Campo em Autocarro

O autocarro 756 por três vezes me proporcionou de surpresa a oportunidade de

realizar trabalho de campo, devido a acontecimentos que surgiram por mero acaso. A

primeira vez que tal aconteceu tratou-se de um episódio curto, quando vi um

informante, que tinha entrevistado duas vezes, a entrar e sair do autocarro.

Da segunda vez, um informante que conheci através do “N. A. L. ” e que faltou

o compromisso para realizar a entrevista, por duas vezes disse-me que ia formalizar uma

queixa-crime, contra as instituições que prestavam auxílio aos sem-abrigo, não

especificando quais as instituições, afirmando que a culpa não era minha e que só podia

dar-me a entrevista passado um ano...

A terceira e última vez verificou-se quando um sem-abrigo, foi interpelado pelos

fiscais da empresa carris, sob suspeita de seguir com o passe de outra pessoa.

Inicialmente havia mostrado apenas o passe, como todos os passageiros já haviam feito,

porém o fiscal reparou que ao mostrar o passe, o dito viajante tinha tapado a foto.

- Mostre lá esse passe que tem aí! Mostre lá! Mostre lá!- Vociferava o fiscal da

carris.

- Não mostro é meu!- Gritou-lhe de volta o passageiro importunado.

- Mostre lá !!Mostre lá!! Mostre lá!

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- Não mostro!

- Espere lá! Esse passe que tem aí, na sua mão, não é seu!

- É sim!

- Então mostre lá, Se faz favor!

- Nós temos aqui uma situação grave! Este senhor tem um passe furtado!

A equipa de fiscais, fez um braço de ferro com este passageiro, durante quinze

minutos.

- Eu tenho de sair aqui, tenho de ir tomar o meu xarope ali.

- E vai, mas primeiro vai ali connosco.

-Mostre lá o que tem aí!- Insistia, já desesperado o fiscal.

- Não tenho, já não tenho, deitei fora, pela janela.

-O fiscal rapidamente iniciou uma busca no autocarro, caso o passe estivesse

escondido.

- Agora se tiver juízo, deixa-me sair. Pode procurar à vontade, não tenho!

O passo seguinte que a equipa de fiscalizadores tomou, foi passar uma multa

devido ao facto do passageiro não ter título transporte.

- Nome... Morada...

- Sem-abrigo... não tenho...

Durante o percurso do autocarro, de uma paragem a outra, houve um momento

de tensão que antecipava no autocarro a confrontação física entre os quatro funcionários

da carris e o passageiro que recebeu a coima. O primeiro indício deu-se quando o

passageiro revelou que precisava de sair para tomar o xarope, ao referir-se à

necessidade terapêutica de tomar o medicamento denominado de metadona (que visa

substituir o consumo da droga heroína). Tal revelação remetia para um passado

estereotipado, cheio de experiências sombrias e perigosas, como roubos, agressões e

esferas de relações que se alimentavam da ilegalidade. Visto aos olhos de muitos como

algo negativo e assustador e até cheio de doenças, devido a partilha de seringas e outros

imaginários sobre a categoria de impureza e sujidade. O segundo facto conhecido, de

que o sujeito a quem castigavam era sem-abrigo, reforçava somente ideias pré-

concebidas, sendo lugar-comum a ideia de que o sem-abrigo não tem higiene, tem

doenças infecciosas e é violento. Entre duas paragens, estes dois factos, pareciam incutir

o medo espelhado na cara dos fiscais, de não quererem arriscar um confronto físico.

Não havia grande vontade em participar do dito viajante à polícia, dado que já tinha

passado a coima e não havia prova de furto.

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- Ó Colega, deixamos ir?- perguntou um deles depois de os quatro terem trocado

olhares apreensivos.

Antes sequer de terem tempo de decidir, já o viajante deu por terminada a sua

viagem, fazendo impor o seu corpo, de modo a abrir caminho entre os fiscais, que lhe

bloqueavam a passagem. Os quatro funcionários da carris, saíram na paragem seguinte,

entre vários comentários que trocavam em forma de desabafo, por ter acabado tal

situação de aperto. Destacam-se os seguintes, que apenas confirmam os lugares comuns

sobre os dois factos anteriormente referidos:

- Epá estes gajos andam sempre com navalhas! Sabia-se lá o que podia

acontecer!- Gritou um fiscal à saída do autocarro visivelmente assustado.

-Tu viste aquilo?-perguntou ainda surpreso com o sucedido.

- Estes gajos andam cheios de sida! Cheios de doenças!- Acusou um outro

fiscal.

Os quatro iam trocando justificações, tentando convencer-se que deixar ir

embora o passageiro sem título de transporte foi o melhor que fizeram, dado os sem-

abrigo serem perigosos aos olhos deles. Acompanhei a situação toda com grande

surpresa, desde o início ao fim, tendo, por coincidência saído na mesma paragem que os

fiscais da Carris.

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CAPÍTULO VI: Informantes - chave

É sempre difícil avaliar, à posteriori, o resultado de um percurso de vida.

Enquanto ouvinte e observador entusiasmado, procurei sempre entender o contexto,

perscrutando o que foi decisivo nos acontecimentos que se sucedem na vida dos meus

informantes. Especialmente quando se analisa biografias, que ainda não

acabaram ,corre-se o risco de qualquer interpretação poder ser lida como um julgamento

precoce do que foi a vida de determinada pessoa, retirando, assim, qualquer réstia de

esperança de uma mudança de vida, ao cristalizar no papel tais biografias. É de

salvaguardar que nas entrevistas feitas aos meus informantes, recorreu-se a nomes

fictícios de modo a salvaguardar a sua confidencialidade, para além de contarem com a

sua autorização, não encerram um percurso em definitivo, pois, obviamente a biografia

de alguém só acaba quando se morre.

VI.1 Aatif – Relato Biográfico

Conheci Aatif em Agosto, quando o voluntariado era ainda em frente à Igreja de

Arroios. Aatif tinha acabado de sair da prisão em 26 Junho de 2013, trabalhou algum

tempo ainda a fazer mudanças, mas rapidamente foi viver para rua, razão pela qual o

encontrei ali onde ia buscar alimentos. Demorei meses a aproximar-me dele até que,

gradualmente, a afinidade surgiu, dizia sempre que iria contar a sua história pouco a

pouco, mas sem nunca aceder a que fosse gravada a sua voz em entrevista.

No dia 10 de Janeiro de 2014, no final da refeição, Aatif, que apenas costumava

dizer boa noite todas as semanas, decidiu dirigir-se a mim. Saímos a andar e a conversar

pela rua.

- Sim, disse que dava uma entrevista, não estou esquecido.- confessou Aatif.

- Eu estou sempre a aprender. Agora estou a aprender contigo. O que perguntas

na tua entrevista?- inquiriu curioso.

- Uma das coisas que vejo é que, por exemplo as pessoas não pedem ajudas aos

familiares, como por exemplo no seu caso podia querer voltar a Marrocos para junto

dos seus irmãos e não quer e isso é o que eu chamo ser narcísico – Tentei eu explicar o

meu ponto de vista.

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- Narcísico sim... significa pensar só nele próprio ser narciso. – Discordava

Aatif.

- Mas isto não, não. Não é ser narcísico. Nunca ouviste dizer “posso perder a

batalha mas não a guerra?” É a mesma coisa eu ir para Portugal e agora voltar assim,

voltar pelo menos igual ou melhor. Eu tinha vizinhos em Casablanca, que descendentes

de Portugueses que já falavam bem Árabe. Só em Casablanca há 30 mil Portugueses! E

eu pensava e eu também vou... Então é isso, ir para melhor.- Justificava Aatif.

- Tem amigos na rua? - Perguntei eu para saber o grau de isolamento.

- Ouve vou-te contar uma história. Uma vez um pai disse para um filho pensas

que tens muitos amigos? Pede a esses teus amigos que ajudem a enterrar um cadáver,

depois vês quantos amigos tu tens. Todos os amigos que convidava diziam que não.

Tenho um cadáver queres vir enterrar? Eles diziam, eu?!não! Até que o que menos lhe

era chegado disse que sim. Vamos enterrar um cadáver ? Vamos! Às vezes é preciso

simplesmente uma atitude de nada, uma coisinha, e pode ser o menos chegado, sabes,

pode ser teu amigo. Amigos são poucos. Uma vez, onde eu estava dormindo chegou um

outro para tentar assaltar um homem que estava ao pé de mim. Eu vi-o agarrei-o e tirei

a faca, pisei-a, e aí aos poucos fui-me tornando amigo. Tenho um outro amigo meu que

trabalhava em hotelaria…

Acompanhou-me à paragem do autocarro e aconselhou:

-Descansa ainda vais aprender muito. Eu sinto que ainda estou a aprender

Demos a conversa por terminada, cada um seguiu o seu rumo. Na semana

seguinte, retomei contacto com Aatif.

Aatif - A vida antes de ser sem-abrigo

À uma hora em ponto iniciou-se o meu trabalho de campo. Apresentei-me aos

voluntários e utentes do NAL:

- Não eu não venho comer, sou voluntário vim falar com o senhor Aatif.

- Ah, ok. Ele ainda não chegou. Olha vai levantando os pratos. - disse o

funcionário.

Assim fiz e, depois de pôr a máquina a lavar, recolhi os pratos.

Tinha chegado o senhor Aatif, pelo que interrompi o trabalho para falar com ele

assim que o vi a acabar de comer. Contou que tinha andado no Ginásio Clube Português

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dos Anjos em 2005, onde têm lá um amigo inscrito que conhece, que fazia preparação

para a modalidade de kickboxing em alta competição. Chama-se Paulo e vive perto do

mesmo ginásio, tinham ido jantar num dia em que se encontraram, mas não lhe disse

que vivia na rua porque não se queria aproveitar da boa vontade dele.

Quando passávamos juntos pelo Campo Santana apontou para a estátua e

perguntou:

Conheces este senhor? Este senhor ajudava muitos pobres aqui em Lisboa.

Não?- Começa a falar orgulhosamente - Tenho aprendido mais com pessoas da rua,...

do que com as outras... estava um senhor a contar coisas da história de Portugal.

Tem três irmãos, trabalhou em limpeza de barcos e pintura de barcos em

Marrocos, foi guarda de barcos recebia um salário aos igual dos pescadores. Foi estudar

e trabalhar aos 14 anos em portos marítimos em Espanha. Em 2010 veio para Lisboa

tratar dos papéis, trabalhou em cozinha como ajudante (preparava os legumes para

serem cozinhados). Desde que chegou a Portugal nunca trabalhou legalmente com

descontos por não ter contrato, embora afirme ter vindo anteriormente trabalhar com

visto de trabalho para Portugal.

Aatif- Como foi parar à rua?

Durante esse ano de 2010 e no ano seguinte de 2011 veio para Lisboa com o

intuito de regularizar a sua situação de imigrante. Por não haver trabalho como ajudante

de cozinha, aproveitou a oportunidade de trabalho em pinturas. Nesse mesmo trabalho

ainda como imigrante ilegal, teve um acidente enquanto pintava sobre um andaime de

madeira com uma lata às costas, o que o deixou sem trabalho durante quatro meses. O

patrão pagou-lhe as despesas médicas numa clínica privada, onde mentiu sobre a causa

do acidente. O patrão que prometeu ajudá-lo sempre que não tivesse que comer, só

apareceu da primeira vez. Depois mudou de número e não atendeu mais o telefone:

- Caí e disse “tu não me contrataste, ‘tou sem contrato de trabalho... e eu não

sou chibo mas me vais ajudar”. Fui lá na clínica, não num hospital, perguntaram: tão

que é que foi isso? “Ah, caí de umas escadas” disse eu. Olharam para ferida “É, foi

mesmo?” E eu disse que sim- relatou ao imitar ar cara de desconfiado dos médicos

- Patrão disse que quando for preciso comida “liga que eu te levo.” Passado

três dias liguei. Levou-me lá a comida, da segunda vez liguei, nada... 'tava desligado

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tinha mudado de número. Tive 4 meses e meio à rasca e ainda arranjei trabalho na

pintura e depois só me meti em confusões.

- Como é que foi parar à rua? - insisti interrompendo.

- Achas que essas pessoas que vivem aí são felizes? - interrogou ele desafiando a

minha percepção

- Eu já vivi assim, já tive isso só me meti em confusões...- julgou ele desiludido

- A felicidade não é isso.- respondi prontamente sem saber bem do se falava ao

certo.

- Só tive problemas...- reflectiu com pesar.

Explicou que estava a referir-se aos vários roubos que realizou para ter dinheiro

para o consumo de cocaína. Que não o deixaram feliz. Possivelmente também a droga

pesada crack. Disse-me que consumiu recentemente – quando tinha falado com ele - e

que também roubava devido a influências de uma amiga que era no quarto era na

cama. Chegavam a somas elevadas diárias em furtos com a técnica de carteirista: eram

uns mil euros por dia.

-Sentia-se mal por roubar? - Perguntei por curiosidade.

Sim senti-me mal nunca me senti bem por roubar não estava certo mas nunca

roubei a pessoas pobres, sempre a ricos – adiantava como justificação.

Deixou implícito que foi por ter sido apanhado que foi preso. A embaixada de

Marrocos perguntou-lhe se queria ir para a prisão na terra natal, mas oferta foi recusada

por Aatif.

Os dias de Aatif no presente

Acompanhei Aatif várias vezes na sua rotina entre refeitório social da “ S. C. M.

L. ” nos Anjos, idas a instituições, deslocações ao abrigo, encontros com amigos de rua.

Os seus dias eram incertos, por isso aqui fica um relato das principais temas de conversa

em que acompanhei Aatif e, o que foi mudando na sua vida. Acerca da assistência

proporcionada pelos abrigos é de opinião que lá não ajudam mas só querem dinheiro

dos subsídios:- Eles recebem à cabeça. É tipo prisão tudo beliches uns cima dos outros.

Isto é um negócio. A assistente do abrigo ficou decepcionada quando lhe disse que não

precisava de tratamento de drogas, porque recebem mais por isso. 'Tou armado... mas

'tou armado em parvo... finjo que não sei, que não percebo...

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Quanto a crenças que o guiavam neste mundo, algumas particularidades

caracterizavam Aatif: - Conheces o código morfe, Não?

- Não – respondi surpreso.

- O código morfe é, se pensas coisas boas vão atrair coisas boas e atrair coisas

más se pensas coisas más vão acontecer coisas más – Explicava Aatif muito convicto.

Já anteriormente me tinha falado em algo semelhante, acerca da lei da atracção e das

suas intenções de querer ganhar o Euromilhões quando se pensava em coisas boas ser a

maneira de querer sair da rua.

Apesar de céptico em relação às ajudas prestadas, utiliza de bom grado o que é

disponibilizado nas instituições. Embora inicialmente tenha dormido ao relento desde o

natal de 2013 que estava no abrigo da Vitae onde não podia ficar mais de 3 dias

seguidos. O motivo da ida à “S. C. M. L. ” destinava-se a assegurar uma maneira de

obter os medicamentos para a epilepsia. A caminho do Centro Social de apoio da “ S. C.

M. L. ” passámos pelo Campo Santana. Cumprimentei 3 pessoas que me foram

apresentadas como conhecidos e eu fui apresentado como amigo

- É um amigo, vamos para a Santa a Casa. - disse senhor Aatif.

- Pois tão lá as assistentes a ganharem, aquilo é um negócio - criticaram os

conhecidos.

- São conhecidos moram por aqui - disse alegremente Aatif.

Já no Centro de Apoio Social, na Praça de Alegria no Príncipe Real em Lisboa,

comentou experiências anteriores sobre pedidos de ajuda:

- Se não viesse aqui com a Filipa (a assistente social) não vinha mais, porque da

outra vez esperei 4 horas e meia, 'tava chateado e fui embora.

- Fiquei chateado com a Associação Médicos do Mundo… Fui lá uma vez e não

me queriam dar mais medicamentos. Estes são os meus direitos não é?

Durante a reunião com a psicóloga e assistente social da “S. C. M. L. “, explicou

sua situação brevemente, referindo que tinha estudado e trabalhado em Marrocos,

Espanha e Portugal, que tinha sido preso, cumprido a pena e estava ilegal. Dirigiram-se

a Aatif:- Uma vez que a sua proposta é explícita em relação aos medicamentos mas

ainda é um pouco embrulhada – como se costuma dizer – em relação ao trabalho não

está legal e com a crise os imigrantes e ainda por cima ilegais, é muito difícil arranjar

trabalho e uma vez que não ajudamos a procurar emprego só vamos conseguir dar

resposta aos medicamentos.- expôs a psicóloga a solução disponível.

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Eu, Aatif e a assistente social dirigimo-nos à Farmácia da Rua da Escola

Politécnica para saber o orçamento da medicação. Desta vez caminhávamos mais

devagar. Aatif andava agora mais devagar talvez devido à dor da sua condição física.

Houve um problema com uma receita que não estava discriminada segundo indicações

normativas que se reflectiu da segunda vez que voltámos para obter medicamentos com

autorização da “S. C. M. L. “ Explicámos pelo caminho que tinham de ser feitas as

coisas com calma e que a resposta podia não vir num dia nem no dia seguinte, ao que

retorquiu que preferia então pedir dinheiro a uns amigos e comprar ele próprio os

medicamentos.

Ao voltarmos pela segunda vez, a assistente social comenta: - Então faz a

refeição e vai para o abrigo. Mas é melhor estar no abrigo do que estar na rua?

- Sim de inverno à Chuva- responde ele

- Mas assim de verão faz-se bem naquelas noites quentes?- inquiriu novamente a

assistente social.

- Sim ponho uma toalha.- disse em tom indiferente.

- Ai eu não sei como te agradecer aparece amanhã- falava com sinceridade

Aatif dirigindo-se a mim.

Notava-se que estava agradecido por eu ter passado o tempo com ele a falar e ter

ido com ele ao centro de apoio da “S. C. M. L. “: - Tu comigo és diferente és amigo

fazes companhia.

Contudo, nem tudo correu bem, Aatif apresentou a receita mal escrita pelo

médico à “S. C. M. L. “. que não dava direito a medicamento, acabando por decidir

juntar dinheiro a arrumar carros e ir buscar nova receita ao hospital São José, no serviço

de urgências, a “S. C. M. L. “ rejeitou pedido e não tentou novamente. Mas

afirmava :sou optimista sempre consegui os meus medicamentos, vou conseguir! No dia

24 de Março soube que entretanto, a “S. C. M. L. “ acedeu em pagar os medicamentos

mediante recibo, reembolsando em dinheiro. Desde então é desta forma que tem vindo a

receber os medicamentos. Passados poucos dias foi para o abrigo de São Bento por ser

mais perto do “N. A. L.”

Em Março voltei a vê-lo. Estava muito feliz e cheio de novo ânimo com o

projecto “Margens”, na sede “Casa de Todos”, diariamente tinha actividades e formação

(inglês, música, teatro, informática, produção cultural, dança, carpintaria) de preparação

para participar no festival em Setembro. São pessoas muito simpáticas, não são

religiosas. Com este projecto consegui ficar contente, estou feliz.

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Convidou-me a ir ao encontro dele, a ver o projecto em que participava. Fui até

São Bento à “Casa de Todos”. E voltámos a falar, desta vez sobre droga, sobre haxixe

erva chamom, sobre o sangue quente, como em Marrocos se denomina aquele que

aguenta consumir muita droga, ao contrário do sangue leve, que denomina aquele que

não aguenta consumir muita droga e que depressa acusa os seus efeitos. Falámos sobre

as nossas experiências e respectivas perspectivas culturais, confessou-me que um dia

queria largar aquele seu amigo (droga). Aquele relaxante para quando está mais triste,

mais nervoso, mais em baixo. Mas chegou a confessar-me: É um dia quero largar isto

(haxixe)!

Outra curiosidade minha foi satisfeita ao explicar-me porque no Islão se sangra a

carne como os judeus fazem. Segundo Aatif, para não apanhar doenças e para o animal

não sofrer e ser sacrificado. O porco, é considerado pecado comê-lo porque come tudo e

é sujo. Relacionou isso com uma história de um porco que soube enquanto estudava em

Espanha ter comido um rapaz que tinha uma ferida enquanto o alimentava. Mas realçou

que Deus é misericordioso se não houver mais nada para comer.

Acerca da participação no projecto Margens, referiu várias vezes que é melhor ir

para formação neste projecto do que estar o dia todo a beber, que era bom estar de

mente activa, queria voltar a ser activo intelectualmente, voltar a ter correio electrónico

e contactar mais a família, como o fez no fim-de-semana seguinte por videoconferência,

no programa informático skype. As reacções à minha temporária estadia de terreno na

“Casa de Todos” eram positivas a confiar no testemunho de Aatif. Onde o encontraste?

– toda a gente me diz isso lá na Casa e gostam muito de ti. É o meu irmãozinho! digo

eu!- contava o Aatif orgulhoso.

Quanto a projecto para o futuro, afirma que tem um irmão que é médico, vive na

Suíça e vai ajudá-lo a legalizar-se, comprando um contrato de trabalho. Vai pagar-lhe

um quarto e vão investir uma empresa familiar, vendendo cerejas biológicas em

Portugal, produzidas na terreno na posse da família, em Rabat, com ajuda do trabalho

do sobrinho. Diz que já tem um contacto com um produtor que lhe escoa o produto.

Enquanto me contava o seu projecto entrou comigo em duas mercearias para saber o

preço das cerejas cá em Portugal.

Relacionado com o seu progresso na vida, afirma como importância extrema

constante três crenças: Código morfe, o segredo, optimismo pensar em coisas positivas

atrai coisas positivas e o dom enquanto capacidade que tem de realizar coisas de atrair

pessoas a realizar seu desejo de convencer as pessoas uma espécie de poder persuasor.

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São várias as histórias que Aatif partilhou comigo, uma delas é ainda mais

curiosa por se tratar de um ex-alcoólico que teve ataques epilépticos, com quedas

aparatosas, que levaram a traumatismos. Quando iniciei a conversa, com a seguinte

pergunta, porque é que bebias? O álcool é como uma namorada faz-te companhia… e

contou-me a seguinte história: Um dia um homem disse para outro, o que preferias

beber uma garrafa de whisky, violar uma mulher ou matar um homem? Respondi:

beber o whisky. Ele disse O homem se embebedou violou a rapariga e matou o homem.

Encontros inesperados em árabe no Martim Moniz

“Fazia já cerca de 7 ou 8 meses que conhecia este meu informante Marroquino,

de seu nome Aatif. Nesse dia telefonou-me, pedindo-me que eu fosse testemunhar junto

da assistente social, que ele estava agora em formação com os programadores culturais

do Festival “Todos”. Assim o fiz, fui ter ao “N. A. L. ” no Largo de Santa Bárbara em

Arroios, depois de dar conta da situação à assistente social, como pedido. Fomos em

direcção à “Casa de Todos” onde iria haver uma formação enquanto parte integrante do

projecto do Festival Todos. Passámos pela Rua Febo Moniz e virámos à direita em

direcção à Almirante Reis. Disse-me para esperar, enquanto ele ia ao outro lado da

avenida, nas imediações Igreja dos Anjos era lá que ia comprar a sua dose de haxixe. Ao

que parece, era um local em que costumava-se comprar barato, indo lá vários pobres,

até sem-abrigo. Quando atravessou de novo a avenida, perguntei se havia muitos

traficantes que vendiam droga a sem-abrigo, ao que me respondeu, afirmando: - Sabes o

primeiro mundo alimenta-se do segundo mundo, o segundo mundo alimenta-se do

terceiro mundo e, o terceiro mundo vive de nós o quarto mundo - A metáfora de Aatif

do lugar dos sem-abrigo no mundo coloca em 4º mundo as pessoas que vivem na rua.

Mas referia-se concretamente, ao facto de haver negociantes de droga a sustentarem-se

com pessoas com poucos recursos como ele.

Chegados à porta do refeitório da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, situado

de frente para a Igreja dos Anjos que se encontra do outro lado da Avenida, Aatif

cumprimentou dois velhos, que se pareciam segurar à parede, ao mesmo tempo que se

encostavam. Possuíam uma aparência meio andrajosa, roupa gasta, barbas brancas por

fazer e uma escuridão na boca, pois os restantes dentes eram, em grande parte escuros e

partidos.

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Trocaram sorrisos, que apesar de não serem radiantes, revelavam felicidade em

rever caras conhecidas. O meu sorriso era o mais tímido. Cumprimentaram-se os três.

Houve uma pausa. Para não parecer excluído do grupo cumprimentei também, tendo

sido logo introduzido como amigo.

- Então como vão? Como estão? - Perguntou com sinceridade, evidenciando

interesse genuíno em saber o estado dos velhos.

- 'Tá tudo bem...- Respondeu um dos dois, olhando-me de alto a baixo.

- Ah! Cá vamos...- Retorquiu o outro igualmente intrigado com a minha

presença.

Continuou e perguntou – 'Tão por onde é que andas agora?

O Marroquino respondeu – Ando lá no Abrigo e agora vou para… Já não bebo!

- Tá bem tá bem... Tens é de largar as bicicletas! (risos)

- A gente fala depois... – referindo-se ao facto de eu estar ali.

Continuamos a andar em direcção à baixa.

- Vês como falamos? Da bicicleta, palavras que só nós conhecemos- disse Aatif

alegremente orgulhoso.

- Sim- Acenei.

Houve sempre uma desconfiança por parte dos velhos em relação a mim pois

não era sem-abrigo como eles e, também não comia no refeitório da “S. C. M. L. ”.

Havia uma notória diferença de classe.

Caminhámos juntos em direcção ao Martim Moniz, onde Aatif pretendia ir

comprar uns óculos com lente sem graduação, devido à sua sensibilidade à luz. Dirigia-

se ao centro comercial do Martim Moniz, e eu limitei-me a segui-lo. Passado algum

tempo de espera na loja encontrou um conterrâneo seu. Falaram 15-20 minutos de pé, à

minha frente e em árabe, pedindo desculpa por não estarem a falar português. Fomos os

dois convidados por este novo conhecido a tomar um café com ele. A conversa que se

seguiu já junto a um café à saída da Praça Martim Moniz, foi quase exclusivamente

entre os dois muçulmanos. Mas consegui saber que este novo conhecido era empresário

chamava-se Hassid, comprava a baixo preço mercadorias no Martim Moniz e noutros

sítios, para depois fazer imitações na sua empresa, mas apenas se o modelo funcionasse.

Por exemplo, naquele dia estava a comprar óculos de sol para depois mandar fazer em

larga escala e vender no sul de Espanha. Era ele que controlava a operação comercial,

desde a produção à venda. Vivia em Badajoz onde tinha constituído família com uma

mulher de nacionalidade espanhola.

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- Viste como fiz uma amizade rapidamente?- disse Aatif orgulhoso.

- Ele me disse que Deus ia castigar se não pedisse ajuda. Mas eu claro não falei

que estava na rua. Não me quero aproveitar das pessoas. Fiquei com o número dele. -

Disse Aatif contente com o recente contacto. Afirmou ainda que não precisava de

caridade do seu novo conhecido. Continuámos a caminhar em direcção a São Bento.

Este foi uma parte de um dia que eu testemunhei, com esta pessoa, que vivia na

altura no abrigo de São Bento e tinha ido almoçar ao “N. A. L. ” e me tinha telefonado

com o seu telemóvel, como fazia várias vezes durante este período.

Acerca da minha reacção ao testemunhar o encontro entre dois Marroquinos em

Lisboa, só o meu diário de campo pode ser testemunha fiel:

Senti-me como um estrangeiro numa terra nem minha nem do outro nem do outro mas de todos.

É isto que significa pertencer ao globo, é estar com um português com um Marroquino amigos por

circunstância de uma tese de mestrado que necessita de trabalho de campo. Entram no espaço comercial

do Martim Moniz numa loja de um paquistanês para comprar óculos e encontra-mos um homem de

negócios Hassid que compra óculos para reproduzir numa fábrica e vender aos distribuidores da sua

zona comercial em Espanha. Encontrou o meu amigo Aatif seu compatriota e trocam muitas palavras em

árabe de imediato, daí a pouco somos convidados para tomar um café que depois nos iria pagar. Porquê

estrangeiro? Porque não pertencendo à identidade nacional e linguística marroquina e árabe fiquei

excluído da afinidade da língua e da história pertencer ao mesmo sítio. Fiquei mais de uma hora a ouvir

árabe sem nada perceber, a identidade humana é feita de partilha mas também de divisões. Ali passou-se

uma cena da qual não fazia parte, mas como amigo respeitei o espaço do meu amigo e informante

(Diário de campo, Lisboa, Março 2014).

As últimas que notícias que tive de Aatif, foram-me dadas por Domingos que me

disse que ele tinha ido ter à “Casa de Todos” do projecto “Margens”, com uns

conhecidos do norte da Europa e que seguiram todos viagem de carro para a Holanda.

Também outro conhecido de rua, argelino, me disse que Aatif já não estava na rua e que

o tinha visto com uma companheira. Semanas depois disse-me que estava ao telefone

com o Aatif e que ele estava na Holanda.

VI.2 João – Relato Biográfico

Foi o primeiro sem-abrigo que conheci e falei no contexto do voluntariado,

abordando-o directamente para realizar uma entrevista. Nessa altura, o voluntariado

ainda era feito junto à Igreja de Arroios. Toda a equipa de voluntários e os assistentes

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sociais lhe dispensavam muita atenção. Era cooperante ao prestar informações sobre o

que se passava e apreciava uma boa conversa. Falava de bom grado de experiências

passadas sobre a sua vida.

Quando lhe perguntei se me concedia uma entrevista, disse-me:

Ah eu é que lhes dou as entrevistas e eles é que ganham o canudo! ‘Tá bem!

Traz lá isso tudo escrito num papel! Que eu depois vou-te respondendo!- acenava ele ao

pedido. Assim fiz, trouxe as perguntas escritas e marquei a entrevista durante essa

semana.

Chegado ao local da entrevista à hora marcada e de gravador na mão, sentei-me

num banco do jardim em frente, à igreja de Arroios, numa tarde solarenga.

Cumprimentei o meu informante:

- Boa tarde senhor João! 'Tá aqui há muito tempo?

-'Tou aqui desde as quatro horas da tarde!- exclamou ele.

Estudou até à quarta classe, vivia no Barreiro com os pais, conhece a primeira

mulher e casa-se em 1979. Nesse mesmo ano nasce a primeira filha e começa a

trabalhar com o sogro como electricista, volta depois a trabalhar no ramo da hotelaria na

Vernou Berna no Chiado. Em 1982 nasce a sua segunda filha.

João – Como era a vida antes de ser sem-abrigo?

Em '83-84 viveu na rua, tendo emigrado depois. Contudo não é claro como foi

parar à rua, nem como ocorre a separação ou o que fez depois de estar na rua. Conta que

viajou a pé, de Lisboa até Almancil no Algarve, onde se emprega a fazer reparações

eléctricas, depois decide ir trabalhar para o casino de Vila Moura e conhece a sua

segunda mulher. Durante um período em que trabalha no sector da Restauração. Neste

novo ciclo de vida é convidado para a Carrelage, empresa especializada no fabrico de

ladrilhos. Andou pela Europa inteira onde ganhou bom dinheiro a assentar ladrilhos em

série em várias obras. Desde Espanha, França, Bélgica, Holanda, Liechtenstein,

Andorra. O último país onde emigrou foi Espanha, tendo lá vivido durante 6 anos

seguidos.

Ocorre em 94' uma separação forçada da segunda mulher de livre vontade, por

estar a conviver com os filhos da segunda mulher que eram toxicodependentes, porque

enquanto ex-toxicodependente não podia suportar o risco de uma recaída. Afirma que aí

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foi a data decisiva para largar a droga, no dia em que se afastou da segunda mulher e

dos filhos dela. Aqui parece existir uma confusão de datas, como pode ter-se afastado

dos filhos da segunda mulher e da mesma em '94; se afirma ter-se casado um ano

depois?

João - Como se vai para à rua?

Outro episódio assinala uma ruptura na vida de João. Descobre que tem uma

infecção pulmonar, obrigando-o a largar o trabalho realizado na Carrelage. Regressa a

Lisboa e vai morar para a pensão Josefina, na Avenida Almirante Reis, enquanto pode.

Paga três “contos” por noite, até ter como última morada a porta da igreja de Arroios.

Confessa-me que nem sempre foi alcoólico. Apenas desde 2004 ou 2005 que

recorre ao alcoolismo enquanto escape, e várias pessoas suas conhecidas lhe dão

garrafas de vinho. Admitiu que apesar de ainda nem cinco da tarde serem, já tinha

bebido quatro litros de vinho naquele dia. João destaca-se pelo tom moralista em forma

de lições. Orgulha-se de saber o que é preciso para viver na rua, como ser humilde, mas

sobretudo da sua atitude de se pôr de parte e de saber salvaguardar-se de conflitos.

Destaca que é preciso habituar aqueles que convivem no seu espaço a respeitar os seus

horários. E isso fez parte de hábitos que teve de incutir no que ele chama de saber viver

pois simultaneamente ninguém se mete com este grupo de pessoas, porque as mesmas

não se metem com ninguém. Assim como se orgulha de, se quisesse, poder tirar mais

sopas que os restantes utentes das carrinhas de comida. Mas não o faz porque é diferente

dos restantes que vão com gula, apressadamente, à espera na fila para a carrinha. Ao

contrário de João que destaca que eles não conseguem metade daquilo que eu… se eu

quiser... Sublinha o seu comportamento de paciência, orgulhando-se de muitas vezes,

doar as suas refeições.

Recentemente, em 2010, perdeu uma filha que faleceu, acontecimento que se

veio a repetir dois anos mais tarde com a outra filha em 2012. No último ano, a sua mãe,

o genro e o neto também faleceram. Como consequência diz sentir-se isolado no

mundo, com a perda do carinho que se tinha a pessoas que tiverem um papel importante

na sua biografia. Sente-se sozinho: um gajo e ao fim ao cabo tinha tudo e não tem nada.

Afirma que, quando se lembra do que perdeu, passa noites em branco a recordar-se de

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memórias há muito esquecidas. Sente que perdeu auto-estima em consequência de todas

essas perdas.

Os dias de João no presente

Levanta-se às cinco seis da manhã todos os dias, obrigatoriamente antes da

Igreja de Arroios abrir portas ao público. Entremeia as horas vagas a beber vinho tinto

que lhe é dado por conhecidos (muitos que não são sem-abrigo) e a fumar. Admite que

fala apenas com um grupo seleccionado de pessoas e, que as restantes pessoas com

quem convive na zona em que dorme a maioria deles não interessa. O livro dos cinco e

jornais são a sua grande companhia no Jardim da Casa da Moeda e no Jardim

Constantino. As idas aos balneários públicos são diárias, destaca-se entre os balneários

que frequenta o balneário de Alcântara, mas também o da Alameda. Faz parte da sua

rotina carregar a bateria do seu telemóvel, que a Associação Conversa Amiga (A. C. A.)

lhe deu, nos cafés e mercearia ao pé da igreja de Arroios.

Mas é sobretudo com André, que também vinha buscar comida às carrinhas das

instituições de solidariedade e que conheceu João no convívio gerado durante o período

de espera das carrinhas das instituições que fez uma grande amizade, desabafando os

dois sobre as respectivas vidas. É receptivo ao contacto com as instituições, embora já

tenha recusado ajuda em alojamento assistido socialmente tenha sido em casa arrendada

ou num abrigo institucional. Como o seu melhor amigo André afirmou as pessoas só

podem ser ajudadas quando querem ser ajudadas.

VI.3 Paulo – Relato Biográfico

Conheci Paulo Carvalho nas últimas dias de Agosto de 2013, junto à igreja de

Arroios. Embora ainda fossem os primeiros dias de voluntariado em equipa com o

“Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios” os dois assistentes sociais lideravam

cada um, uma equipa de voluntários que se dispersava pelas carrinhas de distribuição de

comida e ou ia conversando com os utentes enquanto esperava pelas refeições.

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Numa noite de voluntariado, quase no final, dei de caras com um senhor de

meia-idade, queimado pelo sol e um pouco vermelho na cara, mais baixo que eu, de

olhos bem abertos e um sorriso simpático. Encontrei neste futuro confidente uma

vontade enorme de falar, de partilhar a sua história, o que tinha feito, por onde tinha

andado. Fiz três Perguntas: Como se chamava, que idade tinha, se vivia na rua há muito

tempo. À medida que Paulo falava incessantemente, apenas pensava em tomar notas,

memorizar primeiro e escrever depois. Por fim perguntei: O senhor aceita fazer uma

entrevista? É que eu 'tou a recolher histórias de vida de pessoas que vivem ou viveram

na rua... Respondeu prontamente de forma afirmativa, concordou que seria bom

conversar, ficou combinado para de manhã no dia seguinte, pelas nove horas, que era a

hora que lhe dava mais jeito. Depois tinha que ir ao atendimento à assistente social e à

Igreja.

No dia seguinte, por volta dessa hora, lá estava o Paulo. Fomos tomar o

pequeno-almoço no café ao pé da Igreja e o senhor brasileiro apenas aceitou que lhe

pagasse um café. Hesitei, mas decidi fazer a entrevista no jardim, porque não costumava

estar ninguém no Jardim, era Verão, pelo sempre havia mais privacidade ao fazer a

entrevista no jardim em frente à Igreja, do que no café onde estavam sempre os clientes

e os proprietários.

Uma vez sentados no Jardim, liguei o gravador, pousei sobre banco, entre o

senhor e Paulo e eu. Estávamos lado a lado, já estávamos a falar de quem ele conhecia

nas redondezas, quer seja sem-abrigo, voluntários, assistentes sociais etc… Mas

interrompi, peguei no guião e comecei a entrevista: Como se chama?...

Paulo Carvalho – Como era a vida antes ser sem-abrigo?

Paulo de Carvalho tem 56 anos. É natural do Nordeste Brasileiro, da cidade de

Fortaleza. Viveu com a Avó. Reconhece que vivia separado dos restantes irmãos e conta

que costumava andar sempre de mota deixando-lhe as quedas que deu cicatrizes para a

vida, mas também alguma idas a esquadras de polícia. Faz questão de contar que não

bebia nem consumia drogas, nem nunca ninguém na sua família tinha esses hábitos. Os

irmãos e o pai eram desportistas. Estudou até ao 9º ano, abandonou mais cedo os

estudos, porque o irmão (um ano mais velho) que lhe pagava os estudos, disse-lhe que

tinha de devolver-lhe os custos do seu curso. Afirma ter sido por orgulho que não pagou

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ao irmão o dinheiro da sua formação, recusou-se e desistiu de estudar. Já não se sentia

bem fechado, dentro de uma sala de aula. O curso que desistiu de prosseguir era um

curso técnico, em que aprendia as técnicas de dj (Disc Jockey) usadas em discos vinil de

música. Quando a sua avó morre, por ser uma pessoa próxima que o criou com quem

vivia na mesma casa, decide ir embora do Brasil. O facto de o pai também querer ir

embora, contribui para que Paulo abandone a sua terra natal. Viaja por toda o continente

Americano, juntamente com o seu pai num Camião, a carregar mercadorias, como fez

ao carregar pneus na Costa Rica.

Chega aos Estados Unidos em '85, já com trabalho assegurado graças à ajuda do

irmão que lhe garantiu a vaga. Apesar de mal saber ler e falar inglês, conseguiu trocar a

carta de condução brasileira para uma carta de condução norte-americana, copiando as

letras nos espaços de preenchimento adequados. Passado também uma semana, depois

de chegar aos Estados Unidos, um conhecido seu, o Espanhol, ia voltar para a Costa

Rica, pelo que o aconselhou a casar-se por contrato com a Júlia. Paulo seguiu o

conselho e casou por contrato, pagou quinhentos dólares pelo casamento. Este

casamento tinha como objectivo legalizar Paulo nos EUA, através da obtenção da

autorização de residência, o Green Card. O contacto de um Índio que conheceu

permitiu-lhe passar a trabalhar na cozinha, mas também lhe permitiu no Verão usufruir

do artesanato na Reserva dos Índios, numa festa anual com duração de dois a três dias,

onde todos os participantes estavam nus, ilustrando uma Filosofia de “amar a mãe

natureza”. Nestes locais, reunia-se uma multidão de pessoas vindas, principalmente, das

cidades, mas também de todo o território dos EUA. No acampamento, nenhum químico

podia ser deitado às fontes de água existentes, nem champô ou sabonetes eram

permitidos usar nos lagos ou rios.

Trabalhou no hotel Casablanca, rapidamente subiu a hierarquia da cozinha,

porque percebia os pedidos que o Chef de cozinha gritava e, fazia o steak - o bife de

vaca - com bastante grossura na chapa, um prato que era acompanhado com mash

potatos (puré de batata), entre outros pedidos que cozinhava regularmente.

Tinha um irmão também a viver nos Estados Unidos, na Florida e uma irmã que

exercia a profissão de medicina nos EUA. Na época de Inverno ficava em Vermont,

com a irmã e o cunhado, que lá viviam. Tratava-se de um local onde havia estâncias

para praticar ski, e onde fazia dinheiro a limpar as botas e os skis de neve e, inclusive, a

procurar os skis perdidos nos circuitos. Na cidade de Nova Iorque, nas poucas folgas

que tinha do trabalho de cozinheiro, fazia mais um biscate a limpar a neve da porta de

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cafés e prédios. No fim-de-semana, quando os estudantes andavam em festa, Paulo saía

à noite do trabalho e procurava escapar dos excessos dos estudantes embriagados.

Paulo ia com frequência à cidade de Los Angeles, por diferentes ocasiões. Foi

duas vezes com o cunhado fazer exames à cabeça, entre outros exames que realizou

num hospital na cidade destinado a pessoas com VIH (alvo de atenções por ter morto,

nos anos '80, milhões de pessoas) e com insuficiência económica. O ex-jogador de

basquetebol Johnson através da sua fundação “Magic Johnson Foundation” contribui-o

financeiramente para o dito hospital. Ia também a Los Angeles por ser contratado, para

realizar viagens, nas quais ia buscar os imigrantes ilegais que chegavam de pára-quedas,

vindos do México, de Guadalajara e que se aleijavam ao aterrar, junto à fronteira do

México. O tráfico de imigrantes ilegais era simultaneamente de pessoas e drogas como a

marijuana. Paulo era motorista nos EUA, pois tinha carta norte-americana, e o destino

final destas viagens era o de conduzir os imigrantes até ao hospital, em Los Angeles.

O irmão que lhe pagava os estudos é o seu contacto mais próximo. Mais velho

do que ele um ano, estudou e era Delegado (polícia). Mais tarde tirou um curso de

Direito e agora é Juiz. Mais tarde, foi eleito e é, actualmente, Deputado suplente. O

camião em que Paulo viajou pelo Brasil foi vendido, uma vez que não havia já ninguém

que o usasse. Paulo afirma que escolheu ficar na Reserva dos Índios, em vez de voltar

para o Brasil onde tinha um camião ao seu dispor.

Paulo Carvalho - Como se vai parar à rua?

Paulo decide vir para Portugal em 1990, juntamente com um grupo de

Brasileiros com quem viaja até à cidade de Madrid, para assistir a uma corrida de

Fórmula um de Ayrton Senna. Queria conhecer a cidade e fazer turismo, assistir a uma

partida da equipa do Real Madrid, onde actuavam estrelas mundiais do futebol, como o

jogador brasileiro Roberto Carlos, que Paulo refere. Depois chegar à cidade de Madrid,

Paulo decide viajar para Lisboa e comprar os bilhetes de avião. João tinha combinado

ser recebido numa casa, através de contactos com a comunidade Brasileira. Contudo,

quando chega a Lisboa, Paulo, ao ver a Polícia na porta assusta-se e recua, desistindo

rapidamente de habitar nesse sítio. Em busca de uma solução rápida e temporária de

alojamento, Paulo dorme numa residencial em Casal de Cambra no concelho de Sintra.

Depois de ficar admirado por apenas ver na rua tanto preto, descobre ao perguntar aos

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transeuntes que está nos arredores de Lisboa, e fica a saber a direcção correcta para o

centro da cidade.

Neste primeiro período em Portugal, João está sem trabalho, mas tinha

poupanças acumuladas, (cerca de cinco mil dólares), que trocava regularmente por

escudos, no Rossio, uma das poucas casas de câmbio existentes em Lisboa, na época. A

taxa de câmbio reflectia uma desvalorização da moeda norte-americana, revelando,

assim, a João uma surpresa desagradável, pois cada dólar trocado por escudos baixava o

valor monetário das suas poupanças. Enquanto João ainda tentava aumentar o seu

rendimento nas idas à Casa de Câmbio do Rossio, cobrando um ou dois dólares, por

fazer de intérprete entre quem não falava português. Praticamente sem rendimentos

fixos, nestes tempos iniciais e, com a obrigação de pagar uma conta na residencial,

Paulo Carvalho decide pedir ajuda a um padre, que o enviou para o albergue do

“Exército de Salvação”. Pouco depois, João saiu do “Exército de Salvação” e muda de

morada para um albergue “Vitae - Associação de Desenvolvimento e Solidariedade

Internacional”, pois vê a oportunidade de ter aí melhores condições, quando aí abriu um

novo albergue, mais pequeno, inaugurado oficialmente pelo então Presidente da

República Portuguesa, Mário Soares.

Paulo Carvalho - Como sai Paulo da rua?

Paulo conta que entrou e saiu várias vezes dos abrigos institucionais. Numa

dessas vezes em que saiu do abrigo, trabalhava com o Fragoso seu patrão numa empresa

de construção civil, que lhe deu trabalho numa obra em Carnaxide. Nesse

empreendimento construíam-se prédios, e Paulo carregava baldes de massa (cimento) e

pintava posteriormente as fachadas. Foi o seu patrão que ao saber que João era fotografo

sugeriu que ele mostrasse o seu trabalho ao brasileiro, que à época trabalhava na área de

publicidade na “Sociedade Independente de Comunicação” (“S. I. C. ”) João dirigiu-se

às instalações da “S. I. C. ”, que eram perto do local onde trabalhava, mas o responsável

da publicidade não estava. A secretária não o deixou entrar e João regressa, assim, sem

apresentar o seu trabalho: uma fotografia de uma parede a cair com o vento.

Entre os motivos de ter saído e entrado do albergue da “VITAE - Associação de

Solidariedade e Desenvolvimento Internacional”, conta-se o facto de terem sido

admitidas muitas pessoas, tendo o abrigo ficado muito cheio com duzentas e tal

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pessoas, também soube de algumas pessoas que lá morreram, por homicídio e por

ressaca. João, que nunca consumiu drogas, fazia-lhe impressão ver as pessoas a

injectarem-se com agulhas no corpo. Esta realidade passava-se não só no abrigo, mas

também na CAIS onde fazia o curso durante o dia.

Desde '90 até '99 'andou por Lisboa, de instituição em instituição. Depois,

sedentarizou-se durante algum tempo junto dos missionários São Tomé, no distrito de

Coimbra, na zona da Serra da Lousã na Vila de Miranda do Corvo, onde esteve muito

tempo para tentar trocar a carta de condução brasileira, que tinha, pela carta de

condução portuguesa, semelhante ao processo que fez nos Estados Unidos. Vendiam o

que produziam no mercado para terem comida. Mais tarde, decide voltar novamente

para Lisboa, para tentar legalizar-se, porque estava a sentir-se demasiado isolado na

quinta, longe da povoação, longe das pessoas e do movimento, apenas rodeado de gado,

árvores e plantas.

Quando chega em Lisboa insere-se no futebol de rua da “S. C. M. L. ”. Treinava

na “Fundação INATEL”, onde via os treinos das equipas de futebol do Sporting e

Benfica. Contudo, Paulo sabe que vão para a Suécia num torneio e a sua fotografia

aparece no jornal A Bola, o que faz com que seja reconhecido na rua, no Campo

Santana, e que passe a ter tratamento diferenciado. A mãe de um miúdo que o reconhece

do jornal paga-lhe cerveja e depois de passar a noite toda a beber, Paulo é excluído do

torneio no dia seguinte, ao lhe ser detectado álcool nos exames realizados no Hospital

da Instituição “Cruz Vermelha”. Recomendam-lhe o caminho da desintoxicação na

instituição “Associação Reto à Esperança” em Loures, para depois de dois meses de

desintoxicação participar no torneio de futebol de rua no Brasil. Mas sentia-se já

demasiado velho para jogar futebol e desistiu de praticar a modalidade. Teve problemas

em voltar a entrar para a “S. C. M. L.”, onde foi acusado de ter abandonado a equipa.

Acaba por ficar três anos na “Associação Reto à Esperança”, onde chegou a sentir-se

indisposto quando via pessoas a injectarem-se, algo que acontecia demasiadas vezes,

contrariando o objectivo de desintoxicação da instituição.

Posteriormente, esteve quatro anos na CAIS a fazer vários cursos: Informática,

Português (onde aprendeu a compreender melhor o Português de Portugal), Inglês onde

viu as diferenças de pronúncia e vocabulário entre inglês do Reino Unido que se fala na

Europa e o inglês de rua que aprendeu na América do Norte, Relações Pessoais, e o

último curso que fez foi de Repórter de rua, fotografando as pessoas que viviam na rua,

muitas das quais ele conhecia. Esteve em contacto com a CAIS desde o início da

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formação da instituição e quando se ergueram as infra-estruturas, como o refeitório,

vendeu revistas durante algum tempo. Orgulha-se de ter conseguido vender revistas

dentro do Corte Inglês, depois de ter pedido autorização ao segurança para ter uma

banca permanente à tarde. Durante algum tempo conseguiu o suficiente as suas

despesas, mas depois desistiu visto as vendas serem insuficientes. Também engraxou

sapatos nas imediações de um Centro de Advogados, mas depois de descobrirem que

era ilegal, avisaram-no que havia condições legais a cumprir nos programas da CAIS,

tal como documentação obrigatória, nomeadamente possuir residência, estar legal e ter

conta no banco, para poder continuar a engraxar. Sem estas condições viu-se forçado a

abandonar o programa, por não ter subsídios para praticar os cursos. Exigiram também

de Paulo dedicação total aos cursos que estava a tirar na CAIS, forçando-o a escolher

entre as actividades que tinha com a Igreja Adventista, onde ia pintar casas, na Quinta

da Laje. Contudo, acresce o facto de o novo professor de fotografia praticar fotografia

aquática, à qual Paulo não estava habituado, nem sequer gostava. Enquanto esteve a

realizar esses cursos, envolve-se também com a comunidade da Igreja de Arroios, com

o Padre Paulo, participando nas festas de Natal, e seguindo um curso bíblico. Também

fez outros cursos bíblicos com os Jeová e com a Igreja de São Sebastião da Pedreira.

Quando esteve na Picheleira no projecto “Orientar” na Instituição “ORIENTAR

– Associação de Intervenção para a Mudança”, desenvolve também uma relação

próxima com a comunidade da Igreja Evangélica da Picheleira. Depois, participou num

projecto da instituição “Desafio Jovem (Teen Challenge) Portugal”. Refere várias vezes

que afastou-se de todas as actividades para se dedicar, em exclusivo, aos cursos da

CAIS. Mas o problema da documentação surgia de novo no “Exército de Salvação”,

onde esteve e tirou o curso para apresentar as lojas. Disseram-lhe o mesmo que na Igreja

da Picheleira, para ir empregar-se nessa instituição assim que tivesse documentação.

Frequenta a "Centro Nacional de Apoio ao Imigrante."(“C. N. A. I. ”) onde lhe é dada

ajudas de custo para o bilhete da rodoviária, quando tem de apresentar-se,

quinzenalmente, nos regularmente em Loures nos “Serviços Estrangeiros

Fronteiras“ ("S. E. F. “) para além de ser reunida a documentação e enviada para o

controlo da mesma Polícia Fronteiriça.

Nunca pagou segurança social nem teve contrato, convencido que não era

necessário pelos patrões que o recrutavam para a construção civil. Também fez

trabalhos de limpeza e jardinagem. Num concurso de limpeza do metro, participou e

ganhou um prémio, que lhe foi negado quando lhe pediram os documentos e se

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aperceberam que não estava legal. Uma vez, Paulo recorreu a um conhecido seu, do

Porto, que na loja do cidadão confirmou a identidade de Paulo, em troca de dinheiro, e

ficou também responsável pelo seu número de contribuinte. Contudo, cada vez que este

conhecido via Paulo, pedia-lhe sempre dinheiro.

Conheceu Azarinha, líder da Igreja Adventista, num café, tentava pôr em prática

o sistema americano e convidou Paulo a ir à Igreja da Estefânia. Costumavam vender

muita roupa na Feira da Ladra, Azarinha comunicou com a irmã de Paulo dizendo-lhe

que estava tudo bem, que ele estava na Igreja.

Viveu num quarto num prédio da rua Morais Soares. Vendia revistas da CAIS

em São Sebastião da Pedreira, à tarde. Chegava por volta das dez horas e pagavam-lhe

para fazer a limpeza do prédio, quando já todos os inquilinos estavam a dormir. Porém,

numa dessas vezes, uns paquistaneses que lá viviam, desencadearam um conflito que

resultou em homicídio. Paulo viu a Polícia Judiciária à porta e saiu desse quarto, de

maneira forçada, com medo que as sirenes da polícia lhe fossem apontadas.

Quando se muda, vai para casa da Dona Fernanda, que conhece quando foi viver

para o Campo Santana, através do senhor Valente, que possuía um restaurante, a quem

Paulo limpava o tecto, subindo a árvores. Nesse restaurante trabalhava o filho do dono e

a funcionária Sónia. À época eram solteiros e agora, quando foi realizada a entrevista já

tinham filhos. Paulo dormia dentro do restaurante, quando o cheiro, o permitia; quando

era um cheiro nauseabundo do tabaco era insuportável, dormia por cima, no exterior.

Dona Fernanda conheceu Paulo através do filho, que era já utilizador assíduo do

restaurante e depois convidou Paulo a ir a sua casa utilizar a Internet. Dona Fernanda,

convidou-o também a tomar um Panaché, que ela costumava tomar e sentar-se. Depois

Paulo passou a passear regularmente o seu cão, Snoop. Começou pouco e pouco, a ser

convidado para ficar em casa da Dona Fernanda, quando estivesse a chover, e depois

quando estava mais regularmente em casa foi mesmo convidado e ficar a morar em casa

com Dona Fernanda. Aos Domingos via a Missa na televisão com ela e ia ao Pingo

Doce, para além de fazer as refeições em sua casa. Mas afirma que ficava com pouca

liberdade, pois tinha um horário fixo, ao ter de esperar por Dona Fernanda no Banco –

no final do dia quando acabava o trabalho. Refere o exemplo de lhe tirar a liberdade de

ir à igreja ao Domingo, pelo que, saiu da casa da Dona Fernanda e foi morar com o

senhor Guimarães.

Antes de ir para o Alentejo trabalhar na construção civil, através do contacto dos

Adventistas da Igreja da Estefânia, fica num quarto a cinco euros por noite na Alameda

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em Lisboa. Depois foi trabalhar para o Alentejo, onde tentou que o patrão lhe pagasse

os descontos da segurança social e também que lhe fizesse um contrato, mas sempre

estes pedidos eram silenciados e sem resposta afirmativa. Abandonou o trabalho devido

a um problema de saúde, pois tinha tensão alta. Quando regressou do Alentejo, foi viver

para casa do senhor Guimarães que conhecia da Igreja de São Sebastião da Pedreira.

Pede ao pároco para lhe guardar o ordenado que ganhou de seiscentos euros no

Alentejo, que lhe dá dinheiro à medida das suas despesas, para não gastá-lo todo.

Quando o senhor Guimarães voltar da visita ao seu irmão à cidade de Guimarães,

pretende voltar morar com ele.

Paulo Carvalho – Como são os seus dias de no presente?

Paulo fica de novo a dormir na rua. Visita a Igreja do senhor Guimarães para ir

utilizando o dinheiro do seu ordenado do trabalho Alentejo e, para saber se senhor

Guimarães voltou a Lisboa. Sem os medicamentos para baixar a tensão, utilizava o

vinho como calmante, mas depois de aconselhado pelo médico, parou de beber. Mas

evita ir à Igreja, pois as leituras bíblicas acabam muito tarde e, apesar de servirem

sandes ao almoço, prefere não perder o jantar das carrinhas em frente à Igreja de

Arroios, onde serviam refeições completas, tendo passado em Setembro 2013 para o

largo de Santa Bárbara, aí distribuindo o pequeno-almoço, o almoço e o jantar. Paulo

tinha por hábito vender muita roupa da mulher do senhor Guimarães, que era viúvo e

não queria a casa cheia de roupa de que não necessitava. Tinha em seu nome uma

mercearia e com a sua reforma pagava sempre as compras todas e recusava aceitar que

Paulo comprasse algum produto para a casa. Afirmava simplesmente: - A minha

reforma chega muito bem para viver.

Quando realizei a entrevista, em Agosto 2013, fazia duas semanas que estava na

rua novamente. Afirmava claramente que tinha saudades de amizades verdadeiras,

porque as pessoas que viviam na rua e nos abrigos desentendiam-se com frequência e

não se podia confiar nelas. Por esse motivo deixou de utilizar os serviços dos abrigos.

Mas também a rua era igualmente perigosa como os abrigos onde há roubos e

desentendimentos. Na rua aconteceu-lhe ameaçarem-no diversas vezes, assim como

reclamarem protegendo bens que são seus, precipitando-se por mal entendidos acerca de

caixotes. Outras vezes ameaçando-o mesmo de violência física, quando descobrem o

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sítio de que dorme na rua. Normalmente cobiçam dinheiro, drogas e álcool. Por uma

garrafa de vinho uns sem-abrigo do Leste Europeu ameaçaram Paulo – que trazia duas

garrafas dadas por um segurança do abrigo – tendo sido obrigado a dar uma garrafa.

Afirma que é por causa disso que não gosta de dormir sozinho na rua. Diz que não

entende como é que estão sempre a mudar de opinião nas conversas que têm. Espera

normalmente que todos se vão deitar, para se sentir seguro. Nas horas de chegada das

carrinhas onde há maior confusão e os conflitos surgem, depois de comer, fica com

frequência em casa de uma senhora de idade a ver televisão. Ela convida-o várias vezes

para sua casa que fica em frente ao Jardim da Igreja de Arroios. Iria passar a ser

acompanhado pelo “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios”, onde tinha

iniciado contactos com uma das assistentes sociais, pelo que tinha uma hora de

atendimento no dia da entrevista. Ia passar a comer no “N. A. L.”, uma vez que as

carrinhas iam deixar de distribuir comida na rua, ao pé da Igreja de Arroios.

Costuma passar o Sábado com os Adventistas, com quem almoça e evangeliza as

pessoas que encontra em hospitais e bairros, falando da sua fé e distribuindo panfletos

sobre a Igreja Adventista da Estefânia. No Domingo fazem estudo bíblico. Todos os

dias, excepto quarta, realizam distribuições de comida à hora de jantar pela cidade de

Lisboa. Na sexta-feira acompanha a Igreja Adventista de Queluz que também distribui

comida aos sem-abrigo.

VI.4 Rui – Relato Biográfico

Rui foi a primeira entrevista realizada no “N. A. L. “, desde que este que foi

inaugurado. Conheci Rui em Outubro 2013, ao final do dia, mais precisamente à hora de

jantar quando realizava voluntariado na cantina social. Usei a mesma técnica de sempre

– cumprimentei-o e abordei-o para saber como estava, fazendo depois perguntas mais

pessoais. Ao ver que se abria ao falar da sua vida, convidei-o a realizar uma entrevista,

para que pudesse falar com mais tempo sobre a sua vida. Ficou agendada para o dia

seguinte à hora de almoço.

No dia seguinte, quando cheguei à hora acordada, foi-me dito que já tinha

Estado à minha espera o senhor Rui:

- O senhor Rui esteve cá? - inquiri ao assistente social

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- O senhor Rui já cá esteve, disse que já cá voltava. - Deu-me assim as boas

notícias.

Pouco mais de dez minutos tinham passado, quando voltou o meu informante.

Não estava planeado. Mas pensei que seria melhor sugerir ao senhor Rui, para fazer a

refeição na cantina e depois falarmos, quando acabasse. No espaço da cantina, depois de

todos se irem embora, Perguntei se havia algum problema em fazer isto ao assistente

social, ao que ele respondeu que não.

Rui é brasileiro, natural de Santo André na cidade de São Paulo, de onde afirma

ter boas recordações. Rui casou aos dezoito anos, com a mulher Márcia, de 17 anos, que

conhece na escola. Resultam cinco filhos desse casamento. Erica é filha mais velha, que

tinha trinta e quatro em 2013. Seguiram-se os gémeos Fernando e Henrique com trinta e

dois, a Suéri, com vinte e nove e, finalmente a Natali com vinte oito anos. Mas também

já é avô: O filho da Erica que tem quinze, e o Fernando tem dois gémeos de dez anos.

Rui - Como era a vida antes de ser sem-abrigo?

Rui esteve a maior parte da sua juventude ligado às drogas e álcool, lembra que

aos quinze anos de idade já tinha consumido pó do diabo. Depois veio a canábis e

marijuana, que passou a consumir com regularidade. Afirma que começou por

curiosidade e, que depois passou para outras drogas, como álcool com cuba benzena,

heroína e cocaína. Isto porque as drogas e o seu consumo têm um patamar que se vai

subindo.

As drogas inicialmente não constituíam problemas de força maior na sua

biografia, contudo quando se casa com a sua mulher que conhece na escola, os pais dela

e dos colegas na escola já tentavam afastar os filhos de Rui por este fumar drogas. É de

notar que se casa apenas com o apoio do pai de Rui, que os ajuda a construir a casa para

onde foram viver. A restante família, de Rui e Márcia era contra o casamento.

Admite que levou uma juventude violenta, com consumos de drogas e lutas de

rua. Mesmo depois de casado continuou com essa vida, onde a prostituição, álcool,

drogas eram uma constante. Constituíram motivo para que que não viesse a casa, por

vezes, durante três noites, preocupando a mulher que chorava toda a noite. Diz entre

lágrimas que perdeu por ter sido um pai ausente, levando à perda contacto com os

filhos, quando tomou iniciativa de acabar com o sofrimento da mulher e se divorcia. Os

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filhos não suportam que abandone a mulher e cortam relações com o pai, afirmando que

não falam mais com ele.

Estudou até ao nono ano e, confessa que queria ser advogado. Em São Paulo

trabalhou nas empresas do pai que tinha serração e hotéis que usufruía gratuitamente

quando lhe apetecia.

Alguns anos após o casamento a sua vida denota uma orientação focada em

arranjar dinheiro para consumir drogas. Os bens herdados da riqueza que as empresas

do pai de Rui – falecido em 1984 com quarenta e oito anos - geravam, eram

sucessivamente vendidos para que Rui tivesse liquidez para consumir drogas, álcool e ir

às casas de prostituição. Vendeu cinco habitações, que era proprietário em São Paulo,

três camiões. Mesmo depois dos quatro internamentos em clínicas pagas pela família,

Rui voltava sempre aos velhos hábitos. Por isso, tinha sempre necessidade de mais

dinheiro, pelo que chegou a vender medicamentos e a fazer tráfico de droga no

Paraguai. Depois do divórcio e da perda de contacto com os filhos, sentiu um desejo de

sair do Brasil. Depois de vender tudo o que tinha e lhe restar apenas um automóvel Fiat

Uno, pediu dinheiro aos irmãos para viajar para Itália. Os irmãos acederam ao pedido e

deram-lhe cinco mil e trezentos dólares.

Rui - Como se chega à rua?

Quando Rui viaja para Milão rapidamente esgota as suas finanças. Ao fim de

três meses na rua a polícia notifica-o da sua deportação de volta para o Brasil. Mas Rui

afirma que falou com o Coronel na sala de detenção Aeroporto e convenceu-o a ir para

Portugal, sob pretexto de não gostar de Itália e de gostar de Portugal.

Chegou a Portugal no dia 3 de Setembro de 2001. Quando chega vai para o

Algarve trabalhar. Em 2004 vai para o Porto. Trabalhou em várias obras de construção

civil, como no São Carlos, e em obras nos Anjos e noutras zonas no centro de Lisboa,

inclusivamente na multinacional MacDonald’s. Diz que deixou de ter trabalho por

deixar de haver obras com frequência no centro de Lisboa. Em 2005 estava a viver na

rua em Lisboa. Várias vezes deixou de viver na rua, mas nunca teve períodos de

recuperação superiores a um ano e meio. Foi ajudado pela “Comunidade Vida e Paz”,

ao ir para uma comunidade terapêutica. É ajudado uma segunda vez pela associação

"Desafio Jovem (Teen Challenge) Portugal". A "Associação Remar Portuguesa" está a

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ajudá-lo presentemente. Foi internado cinco vezes em Portugal. Nunca é

suficientemente claro acerca do que acontece para voltar à rua. Acerca dos abrigos

institucionais, reconhece que existem drogas levadas por pessoas dependentes, como

ele, dentro do abrigo, mas que quando são apanhadas são expulsas e aconselhadas a

fazer desintoxicação.

Perante o seu insucesso económico na sua rota de migração em Portugal, voltar

para sua terra natal com a família em boa situação económica poderia ser uma solução

para a vida de Rui, o irmão tem uma microempresa de hortas, a irmã encontra-se bem

financeiramente assim como a mãe que diz ter uma mansão em São Paulo. Mas Rui não

supera a zanga dos filhos e não aceita voltar para o Brasil e ter que ouvir o irmão dizer

que não tem dinheiro e ficar dependente da Mãe. Deste modo, os contactos que

estabelece são esporádicos com o irmão, a irmã e com a mãe e apenas com uma

periodicidade média de dois em dois meses.

Toda a entrevista é marcada por uma enorme contradição entre as práticas de

consumos de drogas e álcool e recomendações para não se iniciarem nessas substâncias

desde jovens, como ele fez, pois só conduz à dependência das mesmas. Rui afirma que

já foi a palestras recomendar e aconselhar jovens para ninguém se iniciar nas drogas e

álcool como ele próprio afirma várias vezes na entrevista. Quando o confrontei, já no

fim da entrevista, porque é que ia aconselhar se continuava a consumir, afirmou sim é

verdade, mas nesse dia não consumi. Rui discursivamente reconhece essa contradição,

teme pela sua vida, pela maneira como pode a vir morrer, sem casa, e sem falar com os

filhos há 13 anos, o medo de morrer antecipadamente por contrair doenças devidos aos

consumos de drogas. Reconhece até que todos esses medos podiam ter vindo a

concretizar-se. E que a vida apanhou-o de surpresa, pois tinha por hábito desdenhar de

quem dormia na rua e hoje recebe comida de instituições e de pessoas como uma

brasileira vizinha, nas arcadas de um prédio onde dorme num colchão antigo. E como se

interroga- E porquê ela fez isso? Por compaixão é pode ser. É assim Pedro agora você

viu o outro lado.

Usa a linguagem médica técnica para se definir e autodenomina-se um adicto,

um alcoólico e drogado, mas na sua opinião considera-se acima de tudo manipulador

por natureza por ser esperto por utilizar o contexto em que se encontra a favor da sua

dependência. Faz questão de frisar que não se considera esperto, pois se fosse, não

estaria nesta vida de dependência e excesso diária de drogas. Rui admite ter concordado

em conceder esta entrevista para obter dinheiro para vinho que rouba diariamente no

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supermercado, e chamom que compra depois do dinheiro angariado a arrumar carros.

Não, eu vou dar esta entrevista. O Pedro vai-me ajudar. O Pedro vai-me dar dinheiro.

Tomei a decisão de que cada um faz o que quer com a sua vida e, se é decisão de

alguém que diz que quer sair de toxicodependente e alcoólico em entrevista, sair da rua

e ter um lar, para somente depois me pedir dinheiro, eu iria somente contribuir para o

vício porque Rui me tinha ajudado com a entrevista.

Os dias de Rui no presente

Passa os dias em passeio por Lisboa, para além de roubar vinho e por vezes

comida nos supermercados e de arrumar carros para comprar droga, passeia até ao

Campo Grande, Campo Santana, Parque Eduardo Sétimo. Diz ser uma estratégia tentar

levar uma vida de aparente normalidade no que toca à imagem, por isso trata da higiene

diária, esforçando-se ao máximo para ir às casas de banho, tomar banho e trocar de

roupa diariamente e tenta manter um calçado em bom Estado: - Não, não fico a ver as

pessoas a passar, eu saio. Vou p'ra Alameda, vou p'ró Campo Santana, então quem me

vê, eu. Nunca diz que sou sem-abrigo. Agora discorda do que dizia de quem era pobre e

dormia na rua; quando tinha uma vida desafogada, sem dificuldades, falava com desdém

olhando as pessoas agora da sua condição - Não quero saber não! Não sou como eles!

Vou tomar o meu banhinho… Hoje olha Pedro… Onde eu vim parar… É a vida tem

disso… né? Mantém contacto apenas com a mãe, a irmã e o irmão. E praticamente não

tem contacto com instituições, excepto no apoio às refeições.

Passado um ano, as políticas de colocar gradeamentos a bloquear o acesso nas

arcadas dos prédios nas imediações da Avenida Almirante Reis, levaram a que três sem-

abrigo (incluindo Rui) tivessem que procurar outros sítios para dormir.37

Facto curioso

de várias voluntárias que realizavam voluntariado no “Centro Social Paroquial de São

Jorge de Arroios”, ajudando no refeitório social de sem-abrigo e desempregados, eram

contra os sem-abrigo dormirem naquele local, justamente nas arcadas de um prédio

onde moravam freiras; pois, davam tão mau aspecto.

37 Acerca destas medidas tomadas por comerciantes e moradores dos prédios, destinada a combater o

uso destes espaços para pernoitar por parte dos sem-abrigo consultar:

http://www.publico.pt/local/noticia/grades-a-entrada-dos-predios-contra-semabrigo-na-almirante-reis-

em-lisboa-1590358

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VI.5 Domingos - Relato Biográfico

Quando vi Domingos, através de Aatif, que tinha conhecido meses antes em

Agosto de 2013, foi-me apresentado como colega do abrigo de São Bento. Tinha

combinado ir ter comigo ao jardim de Campo Santana numa solarenga tarde de Março

no ano de 2014. Queria dar-me a conhecer a sua nova vida e como sempre, telefonava-

me para eu me encontrar com ele, pois via-me como um amigo. Nas palavras dele: - é o

meu irmãozinho, tu és diferente, tu fazes-me companhia. Essa seria ao longo de

praticamente um a ano a sua abordagem, conviver, contando-me pedaços da sua vida,

nunca gravando entrevista alguma.

Domingos e Aatif, costumavam passar os dois na altura algumas horas por dia, à

tarde, nesse jardim, até irem para o abrigo por volta das 17:00 horas. Mais tarde percebi

que o motivo de união entre os dois para passarem as tardes naqueles bancos, se devia

ao facto de ambos terem deixado de beber álcool. Protegendo-se mutuamente para não

correrem riscos de terem uma recaída do seu antigo hábito. É necessário compreender

que, quando se deixa de beber, significa deixar de frequentar os antigos sítios onde se

bebia, bem como os antigos conhecidos com quem se bebia não quer dizer que se deixe

de falar a quem bebe. Mas a abstinência marca um afastamento de quem bebe, como

nestes dois informantes, levando necessariamente a uma vida com outras ocupações e

muitas vezes com outras companhias.

Desabafei com Domingos a minha preocupação acerca da entrevista:

O Aatif está a enrolar-me, anda a dizer já há não sei quanto tempo, que fazemos

a entrevista e nunca mais!

Era de facto como me sentia, apesar de gostar do convívio com ele, e das

respectivas informações que me ia dando. Mas necessitava de uma abordagem em

profundidade sobre a sua vida, para que a investigação avançasse.

Eu posso dar a entrevista. Uma vez lá uns gajos na Trafaria 'tavam a fazer um

documentário e eu 'tava lá a morar numa casa que eles tinham. Depois eles

desentenderam-se, aquilo acabou e eu saí de lá.- Propôs Domingos enquanto solução

para o meu problema.

E assim foi, de improviso ganhei um novo informante e, aproveitando o

gravador áudio que trazia para entrevistar Aatif, fiz a primeira de muitas entrevistas com

Domingos.

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A afinidade que já tinha com o seu colega de albergue e o facto de estar

habituado a ser alvo de atenções em projectos como o “Margens”, ou em conferências a

convite de instituições, onde ia falar sobre os malefícios das drogas fazia com que

estivesse receptivo a falar com pessoas sem ser do mesmo estrato social ou em situação

de sem-abrigo. A maneira informal como cheguei à sua rede informal, é algo com mais

lógica para se ganhar intimidade para Domingos e a maioria dos sem-abrigo, do que a

maneira institucional. Mas tratava-se sobretudo de alguém que estava disposto a rever a

sua vida em várias conversas, com o objectivo de poder aprender com a sua própria

experiência de vida. A apresentação dos factos não obedece necessariamente à ordem

pela qual eles foram contados nas várias entrevistas, trata-se de um resumo das várias

dimensões vividas na vida de Domingos que no momento do seu percurso biográfico

permita analisar e traçar um perfil dos principais dinâmicas na vida de Domingos.

Breve biografia

Domingos nasceu no dia dez de Setembro de 1966 em Luanda, capital de

Angola. Tem seis irmãs e cinco irmãos. Um dos irmãos morreu no antigo bairro

Lisboeta degradado o Casal Ventoso - devido a overdose de heroína. Órfão de pai que

nunca chegou a conhecer, praticamente não foi criado pela sua mãe, por ser traquinas e

não parar em casa; foi criado desde os cinco até aos quinze anos numa espécie de casa

dos rapazes, cujos funcionários eram da Igreja Católica. Depois viveu com a mãe por

uns tempos e volta a entrar nessa instituição, a partir de onde ingressa numa Escola de

Formação Profissional, tirando o curso de tipógrafo, pertencendo à secção de

composição dentro de uma tipografia. Não concluiu a educação secundária, não chegou

a acabar o curso de educação física. Tem quatro filhos em Angola, dois de uma mulher

que conheceu na escola, no curso de tipografia, e com quem viveu algum tempo; outros

dois filhos nasceram da segunda mulher, com quem viveu num aldeamento em que

estava destacado enquanto militar.

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Que vida tinha Domingos antes ser sem-abrigo?

Passou a infância na ilha de Luanda, onde se situava o lar da casa dos rapazes.

Devido à localização próxima da linha de costa, ia à praia e pescava com regularidade.

Tempos passados que não voltam, mas que recorda com alegria e saudades. Foi durante

esses tempos de felicidade que sonhou ser marinheiro mercante. Costumava pescar com

pequenos barcos a remos, que em Luanda chamava de chata, em conjunto com os

colegas da casa dos rapazes, junto aos navios dos marinheiros, pois o lixo dos navios

atraía muitos peixes, tornando-se o sítio ideal para pescar à noite, junto ao porto de

Luanda. Confessa que a sua grande paixão era a água e os navios, por passar os dias na

praia da ilha de Luanda. Era uma maravilha segundo Domingos.

Entrou para o “Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola” ("J.

M. P. L. A. ") aos onze/doze anos. Pertenceu à banda nacional da Organização de

Pioneiros de Angola” ("O. P. A. ") durante um/dois anos, onde tocava tamborete, cuja

função da banda destinava-se principalmente a receber as comitivas dos Estado Chefes

de Estado de países que visitavam Angola, em missão diplomática. Durante esses anos é

de destacar a participação em 1978 no 3º acampamento internacional da "O. P. A. " no

Lubango, entre outras participações em eventos do género. Exerceu a profissão de

militar a partir de 1982, quando entra para as Forças Armadas Populares de Libertação

de Angola ("F. A. P. L. A. ")

Nas Forças Armadas enquanto fuzileiro de infantaria ligeira, tirou o primeiro

curso para oficiais de tropas especiais de luta contra banditismo, um curso acelerado.

Enquanto militar participou directamente nos confrontos armados da Guerra Civil de

Angola, entre o Movimento Popular de Libertação de Angola ("M. P. L. A. ") – partido

pelo qual lutava e que viria a ganhar a guerra civil, contra o partido concorrente a

ocupar o poder: a “União Nacional para a Independência Total de Angola” (“U. N. I. T.

A. “). Foi um soldado destacado regularmente, em aldeias entre quatro meses a um ano,

de modo a proteger de ataques, pilhagens e homicídios indiscriminados.

É neste contexto de movimento e deslocações constantes que conhece a segunda

mulher, já depois de ter tido vários relacionamentos esporádicos. Afirma que por

pertencer à força militar que protegia a aldeia, a aldeia que estava isolada das cidades,

tinha gratidão pelo serviço prestado e tinham uma boa relação com os habitantes, pelo

que era fácil, para Domingos que era bem falante, ser bem sucedido nas suas conquistas.

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Teve quatro filhos em Angola, dois filhos de uma primeira mulher, que conhece

na tipografia onde tirou o curso de composição. Depois, mais tarde, durante o período

de destacamento militar para defender as aldeias, teve outros dois filhos. Conta que

viveu com três mulheres em Angola. Mas a sua vida de constante movimento enquanto

soldado serve de justificação à instabilidade conjugal. Domingos considera-se um vadio

e um nómada. Diz que sempre foi alguém que esteve em constante movimento de um

sítio para outro, por isso nunca assumiu compromissos sérios com mulheres.

Quanto ao colonialismo considera ser prática normal da época, e que o

colonialismo português não era o pior dos colonialismos, pois quem tinha mais poder

militar dominava e controlava o país. Relativamente à guerra civil de Angola, não se

considera afectado psicologicamente, mas são e ciente do que diz. Era crente da causa

em que combatia. Esteve em zonas de conflito, mas sem confrontos intensos e,

prosseguiu com a sua vida. Durante as várias entrevistas nunca falou da guerra, como se

tivesse alguma recordação do possível terror que esta causou. Não está zangado por ter

participado na guerra civil, mas sim pela falta de valorização dos dez anos de serviço.

Chegou a ir ao Consulado de Angola em Lisboa, onde pediu uma reforma ou subvenção

(que lhe foi negada) ao Estado Angolano pelo serviço prestado enquanto militar que

lutou durante a Guerra Civil.

Por esse motivo, uma década depois de Maio de 1982, quando recebe a sua

patente de Aspirante, decide emigrar para Portugal, por se sentir revoltado e injustiçado

por não subir de posto dentro das “F. A. P. L. A. “ pois durante uma década esteve uma

patente que oficialmente deveria durar apenas seis meses, juntamente com facto de a

Guerra Civil de Angola estar bastante activa e, de ter já familiares a viver em Portugal.

Leva Domingos a emigrar aos 27 anos para Portugal. O facto de já ter irmãs, tios e

sobrinhos a viver em Portugal, onde se oferecia salários mais atractivos, mais

oportunidades de emprego e onde se vivia um período prolongado de paz, aliado à

língua falada ser a mesma em Portugal e Angola, apresentavam-se como circunstâncias

favoráveis para Domingos emigrar para Portugal. Conheceu como primeira morada a

casa das irmãs até atingir a sua autonomia morando em várias sítios em Lisboa,

dedicando-se a conhecer a noite ao fim-de-semana.

Viveu na Póvoa de Santo Adrião, depois muda-se para a Cela das minas de Rio

de Mouro. Aí decide alugar um anexo, onde começa a morar sozinho. Nessa época,

inicia-se também o seu período de exploração da noite Lisboeta. Estabelece vários

relacionamentos temporários numa vivência que descreve como vida de discoteca e

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putas e vinho verde. Muda-se para o Concelho de Lisboa, na zona do Cais Sodré. Vive

também durante um período em Pêro Pinheiro, no concelho de Sintra. Domingos conta

que morou em muitos zonas e aponta esse facto de mudança constante de moradas para

se auto-apelidar de nómada. Afirmando que não passeia mais por Lisboa devido ao seu

problema de saúde, que o faz andar de muletas e, ficar parado junto do abrigo em

Lisboa.

Ao chegar a Portugal Domingos, com preparação física da vida de militar,

aproveita as oportunidades que surgem para trabalhos não qualificados. Nos anos '90

encontra trabalhos manuais com regularidade. Orgulha-se de ter trabalhado muito.

Desde obras no sector da construção civil a fábricas como a unidade de transformação

de mármores e rochas Pardal Monteiro Mármores SA ainda em funcionamento em Pêro

Pinheiro. Já trabalhou com leitões, chegando inclusivamente, a reviver parte da sua

infância ligada ao mar, quando se torna nadador salvador, contratado pelo café da praia

Malhação, na Costa da Caparica e, aí tinha a oportunidade – dada a proximidade física

da linha de água – de voltar a ir à praia com regularidade.

Em Portugal viveu também com mulheres. Mas as suas idas constantes a Lisboa,

para sair à noite ao fim-de-semana, levaram a que se criasse desconfiança e abandono

da própria relação. Tal como ilustra pelas próprias palavras a última relação que teve:

…Porque nos sítios onde eu 'tava, as pessoas com quem eu convivi, com quem eu andei assim,

diziam-me sempre: “Olha tu vais. Se tu, te acontecer mais algo contigo. Não ponha mais cá os pés. Ou

não venhas mais ter comigo.” Isso aconteceu em sítios onde eu passei, onde eu tinha... Houve uma gaja

que eu andei com ela, que eu vivi com ela ultimamente que disse-me assim: “Você se for embora daqui,

nunca mais ponha cá os pés depois” .... Passei mal.

(…) Às vezes pronto, ela até comprou-me uma bicicleta para eu não sair mais... eu era mais

novo... sempre discutíamos por causa disso... De fim-de-semana eu ia visitar a minha irmã... e não

vinha... e ia sexta-feira e só voltava domingo à noite. Às vezes ela dizia, “você anda a sair muito, vou

comprar uma bicicleta pá' você passear aqui” Aquela bicicleta não andei quase nada. Mas uma vez, a

gaja não sei o que é que se passou ela disse-me assim: “Tu 'tás farto de me foder a cabeça, se você

alguma vez for a Lisboa. Domingos- É melhor ficares por lá”, Até hoje (Entrevista nº 4: 176-177).

As relações familiares de Domingos sempre foram distantes, sendo de destacar

que Domingos nunca foi criado num ambiente familiar, enquanto crescia com a família

numa casa. Apenas conheceu a mãe. Nunca cresceu na mesma casa com as irmãs,

apenas já em adulto viveu breves períodos de tempo com mulheres, quer em Portugal,

quer em Angola. Sendo que em Angola chegou a ter filhos. Por um breve período de

tempo viveu com as irmãs em Lisboa, sofrendo uma constante institucionalização.

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O percurso de Domingos reflecte uma vida marcada pela ausência do aconchego

familiar onde nunca houve grande proximidade. Segundo Domingos afirma, que foi a

sua própria traquinice que levou a que a família o colocasse na casa dos rapazes aos

cinco anos. Quando sai da casa dos rapazes, é colocado como militar nas “F. A. P. L. A.

“ do “M. P. L. A. “. Sai depois directamente para viver uns tempos com as irmãs em

Lisboa, vivendo sozinho logo a seguir. Foi uma situação que gerou distância ao longo

da vida da sua família.

Relativamente a Lisboa, o fascínio pela noite Lisboeta apresentou a Domingos a

possibilidade de experimentar novas drogas, álcool e novos encontros com mulheres,

gerando um afastamento das irmãs, que inicialmente o tinham acolhido em sua casa e de

quem actualmente se reaproximou, depois da desintoxicação, pois o álcool e as drogas

levaram a que deixasse de falar com elas. Porque Domingos mudou e reconhece agora

que a vida que levava não tinha futuro nenhum.

Domingos - Como se chegou a sem-abrigo?

As drogas que desde cedo começam a fazer parte do quotidiano de Domingos,

seja em Angola ou em Portugal, gradualmente começam a ter maior importância,

derivado à dependência que os consumos causavam. Enquanto forma de diversão para

ocupar os tempos livres, a iniciação ao uso de drogas e álcool, proporciona-se devido à

ausência de regras que impedissem que se começasse a consumir. Pelo contrário, na

esfera institucional da Casa dos rapazes era prática comum beber cerveja e fumar

chamom e liamba. Bebia também bebidas tradicionais de Luanda, como o Quimbombo,

o Caprosque. Conta que ninguém controlava o que lá se fazia. Na tropa aumenta a

quantidade dos seus consumos, pois tinha mais acesso a este tipo de bebidas e drogas.

Em Lisboa, conhece a noite e a possibilidade em consumir o que quisesse sem controlo

de ninguém, desde que tivesse dinheiro. Encarado inicialmente como uma experiência,

pela aventura, para descontrair, tornando uma forma de passar o tempo. O consumo de

droga dá-lhe uma motivação para viver, procurando sempre usar o tempo disponível

para se drogar de forma recreativa e arranjar dinheiro para se drogar novamente.

Quando na recta final deixa de trabalhar, num primeiro momento porque o pensamento

é dirigido para o consumo da droga enquanto nova experiência.

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Aqui (Lisboa) comecei a experimentar pronto, as outras drogas. As drogas

fumava quando tinha muito dinheiro, mas eu dediquei-me muito, muito, muito ao

alcoolismo (Entrevista 4: 129).

Num último momento, já não se vive para a droga mas sobrevive-se para a

droga, não se passando um dia sem ela. Inicialmente aumentou os consumos, passando

a consumir para além dos fins-de-semana, gastando o dinheiro todo que tinha do seu

ordenado. Iniciando-se uma fase em que fica na rua até gastar o dinheiro todo que tem,

regressando a casa e ao trabalho. Lentamente com avanços e recuos, os consumos de

droga e álcool na rua foram aumentando até abandonar a residência própria e o trabalho:

Epá ainda fiquei um bom tempo, ainda fiquei um bom tempo. Agora eu não me recordo muito

bem, porque eu andava muito maluco, eu 'teve vezes já cheguei a estar na rua e voltar p'ra casa e voltar

a trabalhar a ter uma vida normal.

(…) Muitas vezes, muitas vezes. Porque eu por exemplo naquela altura, quando eu recebia

dinheiro, ficava muitos dias sem ir para o trabalho. Ficava a gastá-lo e às vezes chegava aqui no Cais do

Sodré, porque eu quando conheci o Cais do Sodré, o Cais do Sodré também foi um destino que estragou

a minha vida. Quando eu conheci o Cais do Sodré, todas as vezes que eu recebesse dinheiro, que viesse

do meu ordenado, eu vinha cá passá-lo. Eu ficava dias e dias enquanto o dinheiro não acabasse. 'Tás a

perceber? Isso foi a curtir. Depois quando aconteceu tudo do piorio deixei de... deixei de.... deixei

trabalho deixei tudo para me dedicar a esta vida de merda (Entrevista 4: 132).

Necessitando sempre de mais dinheiro para consumir droga. Nesta fase, segundo

Domingos, a debilitação física mal permite viver um quotidiano sem a preocupação

constante da droga, se existe suficiente para alimentar a dependência, pautando-se o

consumo de droga por ser desenfreado tendo apenas como limites o dinheiro para

comprar droga e o que o corpo aguenta; estando-se muitas vezes acordado mais que um

dia a curtir a moca:

Curte aquela moca, mas quis experimentar outras mocas, isso me levaram aí para esses campos

e, a ficar cacetado… (...) A fazer nada. A andar a arrumar carros, só porque…. Um gajo não dormia.

Porque, aquela ansiedade de um gajo vir fazer dinheiro para o dia seguinte. Pa' um gajo andar a

consumir. Um gajo tem dinheiro no bolso e, um gajo ficava maluco. Fazia dias e dias que nem fechava o

olho, 'tá a perceber? Mas pa' não fechar o olho tinha que... andar sempre… mas quando… tentasse

dormir um bocado… só acordava no dia seguinte… (Entrevista 4: 155) (…) Os vícios cegam

praticamente um gajo. Um gajo 'tá cego. Quero lá saber da tua família! Quero lá saber da… Um gajo…

A tua vida vinte e quatro horas, 'tá em redor do… do… vício… Tu… tu não pensas em mais nada

(Entrevista 4: 175).

Há cerca de dez/doze anos na rua, Domingos recorda que o quotidiano para

quem tinha de viver na rua era bastante mais difícil. Lembra-se que nos primeiros

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tempos em que vivia na rua já se arrumavam carros, havia poucos albergues e não

existiam carrinhas de distribuição gratuita de comida pela cidade de Lisboa como

existem hoje em dia. Apenas existia a possibilidade de comer no refeitório social dos

Anjos na Avenida Almirante Reis, onde se tinha de estar legal e com tudo em dia.

Podia-se ir receber comida doada ao final do dia, comida por vender do Celeiro e de

algumas Pizzarias. Mas esperar até ao final da noite implicava uma adaptação dos

horários, o que dificulta a vida de um sem-abrigo; dado o hábito de deitar cedo, devido à

necessidade de se levantar cedo quer se vá dormir na rua ou num albergue: (...) No

celeiro, pois! Era o único sítio e, tinha aí umas pizzarias também, mas isso só davam

depois da casa fechar 'tá a perceber? Agora, agora tu a esta hora vais e muitos sítios

dão de comer é diferente. O sacrifico antigamente era maior que agora, não havia

muitos albergues (Entrevista 4: 133).

A actividade regular de arrumar carros resultou em várias idas à esquadra em

que esteve horas detido, onde lhe diziam que era proibido arrumar carros. Onde era

aconselhado: diziam pa' não fazer, “pa' procurar outra vida, pa' procurar trabalho, que

era muito novo e, que isto não é vida.” Aqueles conselhos (Entrevista 4: 138).

A rotina de um sem-abrigo de longa duração é marcada pelas doenças, derivado

à falta de cuidados médicos e exposição constante às condições meteorológicas e a

respectiva falta de defesa contra as mesmas. Exemplo disso foi que, em 2000,

Domingos saiu directamente da rua para o hospital, pois estava doente, com

Tuberculose e foi internado no hospital em Torres Vedras durante três meses.

Conseguiu curar-se com sucesso. O momento da desintoxicação chegou mais tarde, em

2009, quando sentia a dependência a debilitar-lhe o corpo, não se vendo mais a droga

como algo bom que apenas tem benefícios, mas como algo que retira saúde,

independentemente do prazer que possa dar.

Sentia-me muito mal meu, já nem tinha força para andar meu. Não comia. Passava vinte e

quatro horas a beber, a fumar a droga, a fumar chamom. Eu não pensava noutra coisa. Você vai

aguentando, aguentando. O teu corpo vai suportando, suportando né? Até um dia que dá o berro. Né? Já

não tinha estabilidade, não comia, passava os dias e dias só a consumir, depois comecei a sentir

problemas de saúde meu. Mal, mal, mal, mal, mal, mal! (Entrevista 4: 176)

Saído da comunidade de Abrantes em 2010 consumiu de novo até 2011 e em

Novembro faz desintoxicação no Júlio de Matos até Janeiro de 2012. Desde então não

teve mais recaídas. Para além do acompanhamento terapêutico para o alcoolismo no

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Júlio de Matos, recebe cuidados médicos regulares para a doença de Osteoporose no

Hospital dos Capuchos e no Hospital Domingos Barreiro, da “S. C. M. L. ”.

O afastamento está presente, pois Domingos vive sozinho, tolerando-se apenas

essa necessidade de parte a parte; sem tentar inverter, talvez até por força de hábito que

não questiona a realidade. Limitando a resignar-se com essa separação precoce dos

irmãos que tanto marcou a sua vida.

A resposta à seguinte pergunta foi a que mais me esclareceu sobre a sua relação

familiar no presente: E sentes que, apesar de tudo, as tuas irmãs gostam de ti?

A pessoa que eu 'tava quando consumia e, elas souberam que eu deixei. E elas me vêem no meu

dia-a-dia. Ocorre uma grande transformação no que eu era antes, e o que sou agora. 'Tou a ser aceite

devagar, devagarinho. Porque eu já 'tive recaídas que... tive a viver com elas e que “bem este gajo

acabou e não coiso" e andava a enganar e, às vezes consumia às escondidas. Mas agora é diferente

(Entrevista 4: 173).

A sua inquietude, leva-o a apelidar-se de vadio e a dizer que nunca criou grandes

ligações com as pessoas que encontrou ao longo da vida, devido ao seu movimento

típico de vadio e nómada que considera ser. Vê nessa sua característica, um movimento

que o leva a afirmar que não tem amigos, mas sim conhecidos.

Não é uma distância, é que todos nós atravessamos um momento muito difícil nas nossas vidas.

Acho que eu não tenho tempo para fazer uma amizade com determinada pessoa, só se for com uma

mulher. Com um homem aquela amizade não é... Por exemplo uma amizade de rua que se vive e que os

verdadeiros amigos estão nas horas dos sacrifícios tudo bem.(…) Porque sempre fui um nómada e uma

pessoa nómada normalmente, não cria bases não cria raízes, numa determinada amizade. O movimento

tá a perceber...? (Entrevista 4: 134-135)

Vários motivos se conjugam para que não volte para Angola onde tem família,

nomeadamente filhos já adultos. O facto de não ter contacto directo com os filhos

parece ser determinante; mas sobretudo os problemas de saúde grave, como a doença da

osteoporose, para além dos documentos caducados, o que o faz ver as vantagens de

permanecer em Portugal; ter saúde de qualidade, apesar de não possuir rendimentos

próprios.

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Os dias de Domingos no presente

Relativamente à sua ocupação diária, Domingos reconhece que a sua atitude ao

longo dos anos mudou, se dantes quando consumia drogas e álcool dormia na rua e

arrumava carros - para angariar dinheiro para drogas e álcool – participava em brigas

sem qualquer tipo de problemas na consciência; quando fez a desintoxicação passou

novamente a ter uma vida com vínculo institucional, largando a vida de vadio, de

alguém que nunca pára de andar na rua, e de nómada que muda constantemente de

morada. Fixou-se no concelho de Lisboa, percorrendo o circuito onde se situam os

abrigos, hospitais, refeitório da “S. C. M. L. “ e instituições que o auxiliam.

Considera que a rua não é sítio para ninguém viver, mas de passagem, passeio e

lazer, afirmando que daí advém a necessidade de se construírem casas para morar. Não

obstante, Domingos vive pelo menos durante metade do dia na rua, visto que ainda que

por imposição das regras do abrigo tenha que passar os dias (das oito às seis) na rua.

Mas afirma que não consegue passar muito tempo dentro de casa porque … não me

sinto bem dentro de casa. Por morar num abrigo institucional, autodenomina-se de

semi-abrigo, diferenciando a mudança relativamente à vida que tinha de dormir ao

relento. Afirma que sempre manteve a sua higiene tomando banho, nunca foi um porco.

E faz questão de destacar, que como ele muitos sem-abrigo o fazem diariamente.

Os dias de Domingos são marcados pela rigidez dos horários do Albergue de

São Bento, de saída obrigatória do albergue às oito da manhã e entrada às cinco da

tarde, para que se possa servir o jantar no albergue às sete da tarde, o limite de entrada é

às nove da noite. Domingos, habituado à disciplina institucional, sempre foi homem de

cumprir horários, saí e entra às horas previstas. Toma banho, o pequeno-almoço e o

jantar no albergue todos os dias, lava a sua roupa no albergue com frequência,

arranjando roupa nova em instituições. Esta mesma rotina, aponta, é responsável pela

recaída de muitos sem-abrigo no álcool e nas drogas, destacando que a falta de

ocupação dos tempos livres, rapidamente faz com que se eleja como amigo o álcool e as

drogas: quando um gajo não tem vida (Entrevista 4: 216), como o quotidiano de

Domingos que ele implicitamente admite: Agora um gajo 'tá aí... Vais-te embora... Eu

vou andar aí de um lado para o outro... Vou agora almoçar aos Anjos. E depois que eu

vou fazer? Vou andar aí o dia todo, à espera que toque as seis horas? (Entrevista 4:

215)

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Durante o dia tempo divide a rotina entre as várias consultas onde é seguido,

respectivamente de psiquiatria para vigiar o seu alcoolismo, osteoporose, grupo dos

alcoólicos anónimos. Quando necessita de algum bem de primeira necessidade, como

dinheiro para produtos de higiene, pagar título de transporte para viajar, as suas irmãs

optam sempre por lhe dar os bens em falta em vez do dinheiro, para evitar tentações de

recaídas na droga. Quando não podem trazer elas arranjam alguém em seu nome para

dar esses bens. Tem por hábito passar as manhãs e tardes no jardim do Campo Santana.

Aí encontra com regularidade os seus conhecidos onde passa o tempo com companhia,

pequenas conversas, conselhos. De vez em quando compra o jornal, outras vezes faz

buscas nos caixotes do lixo. Prefere ficar sozinho a ter companhias que consomem

álcool ou drogas e o podem levar a recaídas ou que sejam temperamentais. É frequente

utilizador da biblioteca de São Lázaro, procura sobretudo jornais que são da sua

preferência, embora também passe os olhos por livros. Confessa que gostaria que a

biblioteca tivesse horário mais alargado e que se habituou mais a ler e a fazer grande

parte das suas actividades na rua. Custa-lhe a passar os dias em que a biblioteca fecha.

Esta localização escolhida por Domingos, possuí a vantagem de ser

relativamente perto do refeitório social da “S. C. M. L. ” e do Albergue de São Bento.

Contudo, diferencia positivamente a ligação que tem com os Angolanos que conhece há

bastantes anos em Lisboa, nomeadamente na zona da rua Passos Manuel, onde falam

tudo o que esteja relacionado com Angola. Tem várias amizades de rua, com vários

Angolanos que vivem também em Lisboa, e que foi conhecendo ao longo dos anos.

Vive com grande emoção esses reencontros com a sua terra natal pela maneira como

fala deles, onde a música angolana e outras referências a Angola são o tema central do

convívio.

Durante o resto do ano, destaca-se a sua actividade de participação voluntária,

no festival anual “Todos”, no projecto “Margens” comparticipado pela “Câmara

Municipal de Lisboa” (“C. M. L. ”) e pela “Fundação Calouste Gulbenkian”. Nesse

âmbito, desde 2013, tiveram lugar várias actividades tendo em vista a realização desse

espectáculo multicultural. Por exemplo, houve uma exposição de fotografias itinerante,

levando os sem-abrigo do albergue de São Bento os seus próprios retratos fotográficos,

num circuito designado pelo festival em 2013. Em 2014 participam na montagem de

uma peça de teatro, com papéis restritos aos bastidores ou ao palco. Numa casa que

pertencia à “C. M. L. “, em frente ao Parlamento de São Bento e ao Mercado de São

Bento, beneficiou de aulas de informática, dança, português e aprendizagem de teatro.

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Foi aí que, para além de se ocupar e estar mais activo intelectualmente, alargou a rede

de contactos com pessoas que participaram no festival. Embora considerasse demasiado

tempo a trabalhar de graça para o festival – 8 meses em 2014 – gostou bastante da peça

e ficou com esperança de ser bem recebido pelos organizadores.

Esporadicamente, retoma contacto com as suas irmãs e realiza estadias durante o

fim-de-semana, alternadamente em suas casas. Procura, sobretudo, descansar da rotina

que diz ser fatigante e que tem durante o resto da semana, seja por andar de um lado

para o outro com muletas – devido à osteoporose – mas também por se levantar cedo e,

se sentir sem ocupação confrontado com o Estado de degradação da sua vida. Destaca

sobretudo a comida Angolana feita pelas irmãs e a oportunidade de estar a par de

actualidade e cultura angolana ao ver a “Televisão Pública de Angola” (“T. P. A.”). É

também nestas ocasiões que tem oportunidade de saber mais detalhadamente notícias

dos seus familiares, sobretudo dos filhos, e de lhes enviar mensagens mais concretas.

Domingos admite que não vai mais vezes à casa das suas irmãs, principalmente

porque não consegue ficar muito tempo dentro de uma casa, pois não está habituado a

ficar fechado num edifício por muito tempo. Quando lá vai passar os fins-de-semana,

come e dorme, pois é descanso e repouso que procura. Nem mesmo a ler ou ver

televisão consegue passar muito tempo numa casa. Quando chove prefere abrigar-se

num sítio público. Reconhece estar habituado a esta vida e, não tem outros meios para

passar o tempo.

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VI.6 Aatif, João, Paulo, Rui e Domingos – Institucionalização

Aatif, que recuperou na altura rapidamente das suas convulsões devido ao

consumo de álcool e à falta de medicamentos para epilepsia, aproveitou ao máximo as

ajudas da “S. C. M. L. “, desde os medicamentos, à vaga concedida no abrigo de São

Bento, à nova placa dentária postiça, passando pelo convívio e formação das actividades

do festival “Casa de Todos”, onde afirmou que era feliz graças ao apoio recebido.

Inclusivamente teve direito a arranjo novo dos dentes. Demonstrava boa vontade em

receber as ajudas, fazia o que era acordado e agradecia os apoios, não temendo a sua

situação de ilegal em Portugal.

Rui prefere estar em Portugal, apesar de estar ilegal, mas devidamente

monitorizado pelo “S. E. F. “ que acompanha a sua situação de imigrante ilegal.

Considera-se injustiçado devido ao facto de ter pago “Segurança Social” quando

trabalhava, e a polícia, ou outra entidade responsável, não tentarem garantir os seus

direitos, de maneira a legalizá-lo, aproveitando o facto de nessa altura ter efectuado os

devidos descontos. Pensa que tem de ser ajudado por uma instituição para regularizar os

documentos e estar legal em Portugal. Mas reconhece – embora não seja explícito na

mensagem – que é difícil ser ajudado dado que já teve tantas recaídas de

institucionalizações e, inclusivamente, chegou a enganar a assistente social da “S. C. M.

L. “, usando o dinheiro atribuído pela instituição para a renda do quarto e para renovar

passaporte para as suas dependências, enganando a assistente ao morar novamente na

rua. Mas não acredita que o senhorio ou a instituição não se tivessem apercebido que ele

não vivia onde dizia viver.

Afirma que enquanto esteve a trabalhar, sentia-se bem, tinha uma vida

confortável e ocupada, via televisão brasileira – o canal tv globo - numa casa que era

por ele sustentada. A roupa lavada não faltava, nem comida feita na cozinha no conforto

do lar, com a possibilidade de tomar banho quando quisesse. Referindo-se a uma

dignidade que ainda hoje procura manter, tenta não ser identificado como sem-abrigo. É

dessa vida e dessa possibilidade que tem saudades, e de não estar tão condicionado

pelos horários e regras ditados por outros: de não ir tomar banho somente quando o

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balneário está aberto, e de não comer somente o que lhe dão e a horas determinadas. É

pois a falta de privacidade e descanso, para além de conforto que Rui mais sente falta.

João considera que os abrigos em que esteve eram um “ninho de drogas” e,

enquanto ex-toxicodependente, acha insuportável que os seguranças passem drogas para

dentro dos abrigos. Não compreende como é que depois de trabalhar e ter uma vida de

descontos, não tem direito ao “Rendimento Social de Inserção” (“R. S. I. “) que lhe foi

cortado, depois de pedir duas vezes. O que acha injusto, quando imigrantes de leste e de

outras nacionalidades têm com facilidade o rendimento sem qualquer tipo de historial de

descontos para segurança social, como várias vezes reclamou perante os assistentes

sociais do “Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios” que lhe trataram dos

pedidos. Recusa tratamento ao alcoolismo e prefere trabalho. Não entende para que quer

o centro de emprego a morada dele (João dá a morada do “Centro Social Paroquial de

São Jorge de Arroios”) se nunca lhe mandou nenhuma carta de trabalho.

Paulo de Carvalho deparou-se sempre com entraves a ser empregado de forma a

prosseguir os programas de apoio nas instituições por onde passou, devido a nunca ter

conseguido legalizar-se. Na altura da entrevista estava triste com a dificuldade em

legalizar-se, de modo a aproveitar a ajuda dos programas das várias instituições. Estava

envolvido de forma voluntária, nas actividades dos movimentos Adventistas,

Evangélicos e Jeová, de Lisboa, para criar a rede social que lhe faltava. A falta de saídas

profissionais e de possibilidade de aproveitar as ajudas institucionais, faziam-no

ponderar voltar ao Brasil, por não querer ficar sem-abrigo por mais tempo.

A quinta em Abrantes onde Domingos foi internado, apoiada pelo “Instituto

Droga e Toxicodependência” e “Segurança Social”, sob gestão na altura pelo Padre José

da Graça, responsável pela Igreja de Abrantes, tem como missão a desintoxicação do

alcoolismo e drogas. Considera que, no seu caso, não teve resultados práticos, pois teve

uma recaída no alcoolismo, assim que saiu da Quinta, na Estação de comboios de

Abrantes. A prática terapêutica seguida, prescrevia vitaminas e medicação às horas da

refeição e os doentes eram acompanhados durante um ano por médicos, psicólogos,

psiquiatras e enfermeiros. Durante esse período de internamento existia apoio aos

medicamentos, tabaco, produtos de higiene, e subsídio. A sua experiência da Quinta, tal

como o albergue faz-lhe lembrar a tropa, talvez devido ao rigor e disciplina impostos

pelo tratamento. Realidade a que já está habituado, a recaída de Domingos deveu-se à

forma como acedeu em ir para a Quinta de Abrantes, que partiu de um engano em

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relação aos serviços que os técnicos de serviço social lhe prometeram que iria usufruir

em Abrantes.

Foram uns gajos com... Os... Os assistentes sociais. Porque eu não fui com esse objectivo.(...)

Disseram que não é aquilo que eu encontrei. Porque eu quando fui pa' lá, já tinha o problema Na... Na....

Nas pernas, tinha... Já andava de canadianas. Disseram-me que lá era um sítio bom, era uma clínica,

que tinha lá fisioterapia, que tinha tudo. Quando cheguei lá, não era aquilo nada que eu encontrei. Não

havia lá fisioterapia, não fiz lá tratamento nenhum. (...) A única coisa que eu fiz lá, foi o tratamento da

minha doença do alcoolismo, mais nada. O alcoolismo... e drogas (Entrevista 4: 167).

Não concorda com o modelo de funcionamento dos programas de ajuda, e cujo

seguimento é feito pelos técnicos. O seu caso ilustra o caso de muitos sem-abrigo, ao

fim de viver um ano internados numa quinta regressam ao albergue sem tratamento

médico para o alcoolismo e voltam a beber. Vivendo o seu quotidiano praticamente sem

nenhuma ocupação, para além das leituras de jornais e livros em bibliotecas, as visitas

às irmãs em Lisboa, médicos e alguns conhecidos de Angola que encontra na rua. No

geral, os programas destinados a sem-abrigo só servem, na sua opinião para assegurar

que funcionários e técnicos tenham garantido o seu ordenado, porque sabem que

existem sempre pessoas a ocupar as vagas criadas nestes programas.

Apesar das regras rígidas que são semelhantes a um funcionamento militar; da

degradação física, com paredes com bolor; (não deixa apesar de tudo de ficar satisfeito

por ter onde sítio onde dormir), dos roubos de telemóveis que teve no albergue São

Bento; afirma ser a má educação no tratamento dos sem-abrigo por parte de

funcionários e o seu cheiro a álcool que o fazem ter medo de uma recaída. Queixa-se de

não existir dignidade no tratamento dos utentes do abrigo, causando um sentimento de

raiva, e sendo frequente a expulsão do abrigo sem ninguém averiguar os motivos para

tal acontecer. Refere ainda que as assistentes sociais não fazem praticamente nada! para

impedir esta situação.

Sim uma humilhação, porque eles sabem que eles... eles tratam mal muitos deles... Os

funcionários tanto como segurança, como funcionário, tratam mal o... O... os utentes porque sabem hoje

sai aqui, amanhã vai aquele, o Estado vai pagar sempre p'ra alguém lá 'tar. (…) Até às vezes vão

inventar motivos que não de facto não aconteceram, porque eles não não... Nunca chamam, nunca dizem

porque é que aconteceu isso de facto, porque é que você foi pa' rua. (Entrevista 4: 143.)

Em São Bento aqueles merdas que lá 'tão à porta são uma cambada de bêbados! Cheiram a

álcool da cabeça aos pés meu! Se eu... Se eu já fiz o tratamento. (…) Mas 'tamos num período de

abstinência, porque um gajo 'tá sujeito a uma recaída a qualquer altura. E aqueles palhaços ali que 'tão

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lá a trabalhar! Tão sempre bêbados, cheiram a álcool da cabeça aos pés. Isso pa' mim dá-me mau estar!

(Entrevista 4: 193)

Mas a falta de ocupação resulta num sentimento de não saber o que fazer ao

tempo. E é essa falta de alternativa recreativa e profissional à vida de desempregado que

leva a recaídas, o facto se encontrarem novamente no albergue, um ano depois de

realizarem o internamente para o álcool e drogas, mas sem nenhuma ocupação

profissional.

Tens lá os técnicos. O acompanhamento é feito lá. Depois quando sais de lá já não... Vens pa'

aqui (albergue São Bento). Vens pa' aqui como? Chegas aqui não tens... Mandam-te para um albergue.

Se não tiveres uma cabeça forte. Se não tiveres espírito de querer mesmo deixar de consumir. Há muitas

pessoas que por exemplo as más companhias é que levam à pessoa ter uma recaída. Porque não há

aquele acompanhamento. O Estado gasta milhões de euros no no... No combate ao consumo de álcool de

drogas. Por exemplo eu 'tou aqui nessa situação, porque eu tento esforçar muito, fazer uma força

psicológica para não consumir. Porque toda a vontade é pouca. (...)Por exemplo eu, 'tar na rua o dia

todo, isto não é... não é... não é lógico. Se um gajo não tem nada que fazer, que é isto? Sai das oito às

seis da tarde. Isto é algum acompanhamento de alguém que 'teve a fazer um tratamento? Isto é algum

acompanhamento? (Entrevista 4:140)

(…) 'Tão o que é que eu fazia. Andava aí a deambular. Ali hoje 'tou aqui. Amanhã 'tou ali. Isso

também fatiga. Essa rotina fatiga. Um gajo dá em doido. E pa' uns não darem em doido continuam a

consumir, tem recaída. E não há um acompanhamento dessas pessoas. O Estado gasta dinheiro, no

tratamento dessas pessoas. Mas não, não, não dá o acompanhamento muito, muito importante na vida

dessas pessoas, não faz uma integração sociedade das pessoas. Que é, as pessoas depois são, depois são

internadas três, quatro vezes vão para quintas. Porque não há o acompanhamento, das pessoas assim à

deriva. A maior parte desses sem-abrigo que estão aqui em Lisboa, a maior parte deles já andaram em

comunidades. A maior parte deles já andaram em comunidades, sei eu. Mas muitos continuam a

consumir, tanto álcool como droga. Até porque não há acompanhamento (Entrevista 4:140-141).

Domingos defende é preciso ir além os modelos institucionais de internamento,

só uma política de empregabilidade dos sem-abrigo por parte do Estado, resultaria como

forma de combate ao imenso tempo livre que levam a recaídas no consumo de álcool e

drogas.

(...) Por exemplo criou-se a EMEL, a EMEL é uma empresa municipalizada. Porque é que não

pegaram nessa maior parte das pessoas que estavam em situação de sem-abrigo e davam trabalho a essa

gente? Nós por exemplo vamos para centros, vamos para um centro de recuperação. Não que fizemos o

tratamento do álcool com as drogas até o... Isto não somos acompanhados depois. Somos entregues

aonde 'távamos. Voltamos outra vez para os albergues, voltamos outra vez na mesma situação. No me'mo

ambiente, no me'mo grupo onde a gente 'tava a consumir. E não... não... É um trabalho mal feito... Isto

tinha que haver um acompanhamento muito... Muito sério sobre essa situação. O sem-abrigo devia... é

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que depois de fazer tratamento de alcoolismo de drogas, ele tinha que ser acompanhado, tinha que

arranjar uma... Um emprego, uma casinha, não digo uma casinha. Com o emprego ele logo conseguia

pagar uma renda... agora não, eles pegam nas pessoas... pagam o tratamento... Isto tudo é uma questão

de negócio para mim, isto tudo é negócio porque cada cabeça do sem-abrigo para o álcool lá para essas

comunidades. Eles estão lá a funcionar, ganham dinheiro com isto. Isto tudo é uma questão de dinheiro.

Negócio. Eles dali não vêm que a situação social da pessoa, eles ali vêm tá tratado vem outro e 'tá lá a

entrar dinheiro. Eles querem é dinheiro não querem resolver o problema social. Eles querem é resolver o

problema deles. Não é o problema dos sem-abrigo. Essas instituições que andam aí, que dizem que 'tão

a... Combater como é.... Como é que eles dizem... contra os sem-abrigo. Dizem que querem tirar a gente

da rua, isso é uma questão de negócio. É mentira não conseguem porque... Eles não dão andamento no

processo, mandam um gajo para uma comunidade. Eu tive um ano na comunidade... Vim para aqui, onde

é que eu estou, 'tou aqui. Se eu quisesse consumir, voltava a consumir. Porque não quero mesmo.... Né?.

Porque vontade não me falta. Mas não quero. Já 'tive em todo o lado. Ora mandaram-me para um

albergue onde os funcionários são bêbados. A maior das pessoas que 'tão lá bebem e fumam drogas, se

eu quisesse consumir eu tinha agarrado aquilo... (Entrevista 4, página 192-193)

Confessa achar menos adequada a vivência em quartos alugados, pois o senhorio

controla mais o que se faz, embora admita que muitas vezes os problemas surgem

quando não são cumpridas regras básicas que permitam manter a higiene nas áreas

comuns da casa, começando em simples actos como lavar a louça. Transmite na

entrevista que se sente melhor no abrigo, onde é mais livre de movimentos, onde o

senhorio não sabe de tudo o que se faz e onde a distância relativa aos companheiros do

abrigo é maior do que se vivesse num quarto partilhado com outros residentes na

mesma casa. Por viver agora num abrigo, considera-se não um sem-abrigo mas um

semi-abrigo pois tem um tecto, ainda que seja temporário. Pode-se afirmar que, até

certo ponto, existe um amparo institucional que substitui ausência do lar e de uma

família nuclear. Actualmente está a renovar os documentos oficiais, que caducaram.

Não tem o “R. S. I. “ e prefere não o ter, por recear que o dinheiro que daí viria lhe

pudesse causar uma recaída dos consumos de álcool. Por ter osteoporose, prefere tratar-

se em Portugal, nos serviços de saúde públicos, uma vez que afirma que os cuidados de

saúde de Angola não estão ao mesmo nível. Mas admite a possibilidade de voltar, um

dia, para Angola.

Encara com naturalidade o facto de viver separado das irmãs, resignado e

atribuindo a situação actual ao percurso familiar inicial de infância, pelo facto de ter

sempre vivido separado das meias-irmãs:

(…) Ah! Assim 'tou melhor! Eu acho que, já, já... Gosto de 'tar assim, já me habituei a esta vida.

Vou acabar por viver sempre assim. Afastado delas. Mas também nunca vivi com eles. Nunca vivi com

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eles. Somos irmãos, vivemos, nascemos, mas nunca fomos criados juntos. Nunca fomos criados. Nunca

vivemos assim, muito tempo no me'mo lado (Entrevista 4, página 174).

Domingos regista com agrado um sentimento de amparo ao ser seguido, de

saberem como ele 'tá no que toca à sua participação no projecto “Margens”, que o faz

viver no abrigo e não consumir. Contudo, a atitude de aceitação de algum tipo de ajuda

emocional, para além da materialidade das ajudas dadas, contrasta com as atitudes

intempestivas e revoltadas que tem contra a inacção dos projectos relativos aos sem-

abrigo, cujos modelos de assistência empregam técnicos e funcionários mas não

prevêem a empregabilidade dos sem-abrigo, mantendo-os por isso sem-abrigo

dependentes para toda a vida nas instituições.

Se, antes do projecto “Margens” se realizar em 2014, estava desconfiado e

descrente face aos 8 meses de preparação e à pouca recompensa financeira, hoje

considera que, apesar de ser uma experiência positiva – uma alternativa ao grande

período de desocupação de actividade que conhece – todavia não deixa de representar

mão-de-obra gratuita para o festival, recebendo apenas cerca de 50 euros no seu

aniversário. Enquanto os organizadores responsáveis formados recebiam ordenados,

Domingos não recebia. No mesmo tom zangado que tem em relação aos serviços de

assistência social, afirma que não havia razão para dar justificação no projecto, quando

tinha que se ausentar para ir ao médico, se não se tratava de um trabalho. Após a

realização do festival sentiu que compensou a sua colaboração, pelo prazer que lhe deu

entrar numa peça de teatro, o que lhe permitiu também conhecer mais pessoas na cidade

de Lisboa.

Enquanto ex-toxicodependente e ex-alcoólico, o controle do aparelho médico

institucional, faz-se sentir regularmente sobre Domingos, com a sua aprovação e

vontade própria. É acompanhado nos alcoólicos anónimos do Hospital Júlio de Matos,

na terapia de grupo, em consultas de rotina com o psiquiatra. O controlo psiquiátrico

influencia a admissão de Domingos na possibilidade de receber propostas do centro de

emprego. Com efeito, a carta psiquiatra que o acompanha notificou ao assistente social

do centro de emprego, que Domingos é considerado uma pessoa irresponsável, devido à

sua doença de alcoolismo. Para além da incapacidade de realizar a maioria dos

empregos devido à osteoporose, sob o rótulo de patologia, é negado a alguém que vive

das ajudas sociais do Estado o acesso ao instituto emprego devido a avaliação

psiquiátrica. O discurso a que foi sujeito, de que tem uma doença e que está em

constante recuperação do seu vício, faz com que não discuta esta rotulagem negativa.

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Porém, admite que nunca criou expectativas negativas, ao ponto de pensar vir a

ser sem-abrigo. Pelo contrário, pensou que um dia viria a ter uma vida desafogada com

uma casa para morar:

Epá sempre... Olha te digo, vou ser sincero. Nunca pensei chegar no Estado em que eu cheguei.

Sempre pensei ter uma vida boa. Não sei. Nunca pensei ter uma vida... Uma vida de uma pessoa por

exemplo muito rica. Porque eu nunca cresci assim nessas mordomias... Fui sempre crescendo assim....

Eu também não cresci com muitas dificuldades. Porque eu... A minha família não é uma família pronto,

não era uma família da classe média (Entrevista 4, página 195).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os episódios ocasionais de entreajuda e solidariedade de quem vive rua, não

fazem esquecer que existe uma grande diversidade entre os sem-abrigo. Na verdade

cada um parece viver a sua vida, de maneira bastante individual. Não obstante a

existência de grupos de amigos ou conhecidos para passar o dia, pouca união se verifica

que permita afirmar que formam uma comunidade, tal é a sua fragmentação. Nos

abrigos e nos espaços públicos que frequentam também é assim, existe quem queira

partilhar algo da sua vida, outras pessoas não. A maior proximidade ou cisão está

organizada entre alcoólicos e ex-alcoólicos, drogados e ex-drogados, nacionalidades,

línguas faladas e grupos linguísticos próximos que tornam a comunicação possível.

A falta de recursos sente-se, de forma constante, no quotidiano de alguém que é

pobre, sobretudo na esfera do consumo de bens e serviços, limitando possibilidade de

uma vida pública na cidade. Este é facto incontornável na vida destas pessoas, invisíveis

durante o dia na maioria das vezes, à noite, tornam-se visíveis nos espaços onde

dormem, sem privacidade. Esse é um factor que enuncia uma espiral de perda na vida

(Susana Silva 2007). Os espaços públicos à excepção de parques e passeios pela cidade,

requerem sempre o consumo, sobretudo se forem espaços de diversão. Até os próprios

transportes públicos, assim como a participação na vida política e cívica. A falta de

dinheiro, impede obviamente de frequentar espaços públicos em que é obrigatório o

consumo de bens. Outra situação que advém da falta de posses é o excesso de pessoas

em casas, não permitindo espaços para convívio. A maior utilização do espaço público,

surge assim como consequência da falta de privacidade e espaço nos quartos arrendados

ou nos albergues. É na rua onde se pernoita. Tive a oportunidade de observar que havia

conhecidos que se falavam mais ou menos, mas que era raro uma amizade íntima de

laços fortes e duradouros. Pediam-se favores regularmente, normalmente dinheiro. Estes

mesmos favores poderiam dar origem a que mais tarde, quando cobrados, houvesse

violência verbal e, em última instância, física. A luta de recursos na rua, seja por lugares

de dormida ou por bens, também pode causar situações de conflito.

Contudo, apenas são visíveis ao olhar alheio, de curiosidade ou até de

julgamento malicioso, aqueles que assim o deixam. A opção de dormir em abrigos

institucionais, retira-os da rua e dos seus riscos, de serem reconhecidos e serem vistos,

ora como coitadinhos ora como praga. Porém, até pelas mais variadas razões, ao preferir

dormir na rua, existem maneiras de evitar estas situações. A estratégia número um de

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quem não quer ser mal visto e consequentemente excluído, consiste em manter a higiene

diária em balneários públicos espalhados pela cidade ou no abrigo, se por lá dormem.

Frequentemente, as idas às bibliotecas durante o dia e os passeios pelo centro da cidade

garantem as vantagens do anonimato. Quase sem excepção, essa manutenção da

aparência, através de estratégias variáveis revelava-se central entre as pessoas que

entrevistei. Em pequenos grupos, ou sozinhos, prosseguem a sua vida na rua, passando

sempre despercebidos. As pessoas com quem falei – a grande parte, pelo menos – dava-

me a entender que não ter posses não significava não ter essa dignidade, uma espécie de

moral que preza a boa higiene. Faziam questão de sublinhar, que zelosamente,

mantinham a sua higiene com mudas de roupa.

Todos os entrevistados, utilizaram (ou utilizavam) o álcool para se acalmarem e

entorpecerem, quando se encontraram na rua. Uns não prolongaram o hábito devido a

contra-indicação dos medicamentos que tomavam. Sendo de notar entre os entrevistados

o afastamento da maioria dos outros sem-abrigo, quando largam os hábitos ligados ao

alcoolismo e estupefacientes, outrora prática comum de convívio entre eles. A constante

mudança nas suas vidas denota uma falta de orientação geral no plano profissional, mas

contudo, nem sempre se verificou o isolamento e rancor devido a experiências

negativas, tão apontado aos sem-abrigo.

O ambiente vivido pauta-se pelas ocasionais ameaças físicas e verbais, crimes

(como pequenos furtos), agressões físicas, com possibilidade de homicídio devido a

disputas de recursos disponíveis são frequentes nos testemunhos recolhidos. A escolha

por dormir ao relento, sozinho, ou acompanhado de vizinhos; ou sob um tecto de

albergue institucional, ou de um alojamento arrendado com recurso a apoio social não

pode de forma alguma ser vista enquanto alternativa única, sem saída, cuja

objectividade não deve nem culpabilizar nem vitimar, apenas ver vontades e decisões

tomadas, de forma mais ou menos consciente.

A ausência de laços ou a existência de fracos laços familiares torna-se

recorrente, devido a afastamento, perda de família directa, seja por morte ou por ruptura

nas relações pessoais. São frequentes as situações de homens solteiros ou divorciados,

após uma relação de longa duração com mulheres, que terminou. Quando existem

filhos, os contactos são, em iguais longínquos.

O desemprego prolongado, de uma forma ou outra, iniciado por uma ruptura (ao

nível das relações conjugais, familiares) na rotina diária da estabilidade de uma vida de

trabalho, é outro factor desencadeante. Nem sempre a vontade é suficiente para aderir

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aos programas de apoio institucionais, cujos programas de apoio ao emprego nem

sempre têm correspondência a esta população.

De fazer notar que um conjunto de características comuns se destaca nos

percursos analisados. No que toca à atmosfera familiar, pauta-se pelo afastamento, seja

uma ausência causada por um corte ou pelo enfraquecimento dos laços. O impulso

migratório é forte enquanto tendência identificado na ida para países estrangeiros, de

pendor aventureiro, aliado a uma ambição profissional de salários mais bem pagos, nos

trabalhos braçais desqualificados. O desemprego, consequência frequente da situação de

sem-abrigo - originada em cortes e rupturas familiares - é muitas vezes acompanhado de

uma falta de rede de apoio informal capaz de colmatar as insuficiências económicas,

seja ao assegurar uma vaga de trabalho ou um abrigo temporário para poupar dinheiro e

reorientar um projecto de vida capaz de sucesso.

A frequente mudança de morada e o recurso ao trabalho de natureza precária

dificulta o fortalecimento de redes de solidariedade. Também a recusa de ajuda de quem

lhes oferece, ou a relutância em procurar de ajuda (instituições ou familiares e amigos)

produz o mesmo efeito. Apesar do hábito de esconder a situação em que se vive da

família, as políticas de assistência também não resolvem a situação da invisibilidade dos

sem-abrigo.

Com traços gerais de carências afectivas, de uma rede familiar de suporte,

valorizando, por vezes, a necessidade de um trabalho para a sua independência

financeira, ou até por simples ocupação, a experiência migratória – mesmo que curta e

temporária - seja dentro do país ou extravasando as fronteiras da própria nacionalidade,

verificou-se em todas as pessoas sem-abrigo que entrevistei bem como, em grande parte

das pessoas em situação de sem-abrigo que abordei. Para além dos portugueses

emigrantes entrevistados que rumaram em direcção à Europa, entre os estrangeiros que

entrevistei, é de notar tendência semelhante à contabilizada no panorama geral da

imigração dirigida a Portugal. Em que se destaca uma maioria de imigrantes que têm

Portugal como país de destino, de nacionalidade de “Países Africano de Língua Oficial

Portuguesa” (“ P. A. L. O. P. “) e do Brasil, pelo que os informantes eram de

nacionalidade angolana, cabo-verdiana e brasileira. Fazendo sobressair o protagonismo

dos informantes enquanto membros das maiores comunidades de imigrantes em

Portugal, apesar os residentes estrangeiros em Portugal foram uma população estável na

sua constituição ao longo da cada de '80 e 90, até à chegada da vaga de imigrantes do

leste europeu em 2001/2002. (Baganha, 2009:267) Assim como se nota a tendência de

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portugueses do sexo masculino de mão-de-obra não qualificados, maioritariamente na

construção civil, imigrarem de forma temporária para a Europa, usufruindo de direito

políticos da União Europeia38

. Verificando-se que africanos dos “P. A. L. O. P. “ e

brasileiros ocupam postos na construção civil em Portugal, devido à desregulamentação

do sector e facilidades de legalização na emissão de autorizações de residência e falta de

trabalhadores portugueses que preferem outros sectores ou o estrangeiro. (Peixoto, 2007:

460-463). Sofrendo assim com a crise de desemprego da construção civil e maior

dificuldade legalização, devido à situação de desemprego. Para além do sector da

construção civil o uso de mão-de-obra ilegal, em restaurantes enquanto ajudantes de

cozinha foi possível de verificar entre um informante marroquino e, outro brasileiro.

Apesar da importância do alojamento, raramente se analisa ou se pensa que viver

numa casa não impede o isolamento de alguém praticamente sem rede social. Vários

utentes do “ Centro Social Paroquial de São Jorge de Arroios ” afirmavam que perante o

desemprego, mesmo depois de deixado de viver na rua, continuavam isolados como

anteriormente. Entre os sem-abrigo portugueses existem duas configurações típicas,

uma resulta de êxodo rural para a cidade de Lisboa; outra que decorre da emigração

para outras cidades estrangeiras, sucedida por um revés no regresso. Entre os imigrantes

a principal motivação da partida é sempre a procura de uma vida melhor, sendo que a

insistência em ficar em Portugal, na rua, está sempre relacionada com relações

familiares, visões pessoais acerca do intuito da imigração ou até com motivos de

assistência na saúde, usufruindo dos benefícios de ajuda do Estado social português.

Entre os “sem-abrigo emigrantes” as relações familiares enfraquecidas, ou a sua

ausência, constituiu uma situação muito comum.

Nenhuma pesquisa bibliográfica, ou teórica, pode preparar alguém perante o

impacto da realidade, especialmente quando a pobreza, solidão e atitudes destrutivas,

ainda que não sejam totais, estão latentes. Especialmente quando a pesquisa foi feita de

coração, preocupação sincera, mas também com extrema curiosidade científica. Durante

o decorrer da investigação, desde o projecto à redacção e entrega da dissertação, a

minha atitude perante o problema estudado mudou, assim como a respectiva perspectiva

38

Como indica o investigador, o regresso ao país de origem no caso Português é uma diferença no ciclo

migratório: A primeira excepção é que a situação relativa dos portugueses tende a ser melhor na

origem, o que explica percursos mais estritamente temporários de migração (Peixoto, 2007: 464).

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de investigação. São as relações sociais positivas que se estabelecem ao longo da vida

que fazem um saldo positivo nas memórias de uma vida. É a sua manutenção enquanto

benefício que transmite estabilidade para progredir na vida, tornando claro o papel das

rupturas e ausências da família, amigos, conhecidos e colegas. Resultando na construção

de um projecto de vida duradouro e estável, sendo pertinente acrescentar que, mesmo

quando o sucesso no mundo do trabalho e das relações pessoais não seja atingido, torna-

se fundamental possuir contactos dentro de uma rede social bem estabelecida, de modo

a combater a situação de exclusão social e isolamento. Um retracto, o mais aproximado

possível, da vida vivida destas pessoas permitiu perceber que o futuro começa hoje, para

todos de igual forma, embora uns tenham seguido rumos que proporcionaram felicidade

momentânea, sucedido de desilusão. Nunca é demais salientar as lições de vida

aprendidas com o decorrer do tempo.

A explicitação dos discursos dos informantes pretende ser ilustrativo da

realidade estudada, ao dar voz a pessoas que facilmente são alvo de classificações

estereotipadas, sem se procurar saber quem são ou como vivem. Por não terem espaço e

tempo de exposição para além de breves momentos mediáticos, ao conhecer a sua

versão dos acontecimentos sem intermediários, sem distorção de outros intervenientes,

foi possível executar uma análise em profundidade do que aconteceu e que teve como

resultado a situação de sem-abrigo. Onde se pretendeu destacar os motivos, para além

da falta de recursos, para se viver em situação de sem-abrigo, em que as relações sociais

que se mantêm, o percurso profissional assim como a relação com as instituições.

Inicialmente, o sentimento de querer ajudar, de indignação, eram os únicos

pensamentos que me ocorriam, depois percebi que as oportunidades na vida destas

pessoas existiram e que não houve capacidade de as agarrar, por vezes, ou de tirar o

melhor proveito das situações adversas. Pensei, então, que aprendia mais se percebesse

qual o motivo de terem perdido a janela de oportunidade para estabilizar a sua vida.

Embora sempre respeitando as suas escolhas e tentando ao máximo colocar-me na sua

pele. Quis saber o que pensavam, sentiam, como se viam, que tipo de ajudas acham que

poderiam receber e não recebiam, que ajudas recebiam e consideravam que não tinha

efeito. Tentei sempre preservar a coerência e lógica e não antecipar as suas respostas

sugerindo eu próprio.

O contacto prolongado com os informantes e o conhecimento do seu percurso de

vida, fez com que a dimensão e significado emocional da relação estabelecida ganhasse

destaque. De todos as entrevistas formais e informais que realizei com os meus

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informantes, em quase todas pude sentir empatia e criei amizades, dando-se o caso de

entrevistas gravadas com guião de perguntas de estrutura rígida seguirem rumos

imprevistos, para explorar um tópico sobre o qual o informante tinha vontade de falar.

Das pessoas que entrevistei e com quem mantive o contacto e que, aliás, foram poucas,

tornei-me amigo confidente, partilhando com eles visões, pensamentos, opiniões, que

possibilitaram ganhar confiança, para além de meros propósitos de investigação.

Cada vez que melhor conhecia, mais ficava ciente de que se tratava de pessoas

com algumas características relativas à maneira de ser que podia encontrar em pessoas

de outro meio social. Isso permitiu-me tirar da cabeça preocupações, perguntas-cliché

apressadas, mas saber aguardar para perceber quando era tempo de perguntar e de ouvir.

Também do ponto de vista humano, considero que este trabalho me enriqueceu.

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Entrevistas

João. 2013, “Entrevista 1”, transcrição.

Paulo. 2013, “Entrevista 2”, transcrição.

Rui. 2013, “Entrevista 3”, transcrição.

Domingos. 2014, “Entrevista 4”, transcrição.