Dissertação de Mestrado Edna de Falchide Mato Grosso do Sul com um olhar voltado ao sujeito que a...
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EDNA DE FALCHI
NA LUTA POR UM PEDAÇO DE CHÃO: EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS DE SEM-
TERRA DO SUL DE MATO GROSSO DO SUL
Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, para obtenção de título de Mestre em História.
Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Souza
Dourados/ MS 2007
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EDNA DE FALCHI
NA LUTA POR UM PEDAÇO DE CHÃO: EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS DE SEM-
TERRA DO SUL DE MATO GROSSO DO SUL
COMISSÃO JULGADORA
Presidente e orientador_______________________________________________
PROFº DRº JOÃO CARLOS DE SOUZA – UFGD
2º Examinador______________________________________________________
PROFª DRª MARISA DE FÁTIMA LOMBA DE FARIAS – UFGD
3º Examinador______________________________________________________
PROFª DRª GENI ROSA DUARTE – UNIOESTE
Dourados, 30 de Novembro de 2007.
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DADOS CURRICULARES
EDNA DE FALCHI
NASCIMENTO 04/04/1981 – CAARAPÓ/MS
FILIAÇÃO Osvaldo de Falchi Inês Manfré Falchi
2000/2003 Curso de Graduação em História Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Campus de Dourados.
2005/2007 Curso de Pós-Graduação em História, nível de Mestrado Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).
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RESUMO
Este trabalho de pesquisa tem como objetivo a análise da luta pela terra no sul
de Mato Grosso do Sul com um olhar voltado ao sujeito que a personifica e a vivencia.
Assim, entre a análise e uma breve etnografia de três acampamentos que existiram nessa
região – acampamento Oito de Março (1997), em Itaquiraí, acampamento Laguna Peru
(1999), em Eldorado e acampamento Mambaré (1999), em Mundo Novo - busquei
construir uma narrativa que contemplasse a luta cotidiana desses sujeitos por um pedaço de
chão, com todos os conflitos, contradições e dificuldades oriundas do espaço/tempo do
acampamento de forma a garantir a especificidade de cada mediador analisado (MST,
FETAGRI, CUT). Esse período de luta acabou, em muitos casos, tornando-se um modo de
vida; as famílias analisadas viveram de um a dez anos sob o barraco de lonas às margens
das estradas. Os meandros desse processo, no entanto, são marcados pela espera e pelos
antagonismos entre a anomia e a esperança, a solidariedade e a competição, a resistência e
o conformismo, a harmonia e o conflito. Trata-se de uma análise voltada ao campo da
história social e cultural de um tempo histórico bastante recente, portanto, de fenômeno
histórico ainda em curso, que pode ser denominado como uma história do tempo presente.
Palavras-chave: luta pela terra, sem-terra, Mato Grosso do Sul, acampamento.
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ABSTRACT
This research about the camps of landless has the aim to review by the struggle
for land in the south of Mato Grosso do Sul, with a look back to the person that embodies
and lives. Thus, from the analysis and a brief ethnography of three camps of that region,
which are: the Oito de Março (1997), in Itaquiraí, the Laguna Peru (1999), Eldorado and
the Mambaré (1999), in Mundo Novo, all of them in Mato Grosso do Sul, sought to build a
narrative that reviewed the daily struggle of landless for a piece of land. We retrieved, in
the process, conflicts, contradictions and difficulties from the space / time of the camps, in
order to ensure also the specificity of each mediator involved (MST, FETAGRI, CUT).
During this period of struggle, the establishment of the camps, interpreted the principle as a
temporary situation, in many cases, however, eventually becoming a way of life, because
many families analyzed came to live 10 years under tents along the roads. The meanders of
this process, however, are marked by hopes and the antagonisms between the anomia and
the hope, solidarity and the competition, the resistance and the conformism, the harmony
and conflict. This is a focused analysis to the field of social and cultural history, a long
history of fairly recent and still ongoing historical phenomenon, which may be called as a
history of this time.
Keywords: struggle for land, landless, Mato Grosso do Sul, camp.
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DEDICATÓRIA
Ao Eduardo, anjo que me ilumina. Pessoa que, ainda tão pequena, ensina-me, na prática, que a história é resultado da invenção humana e construída cotidianamente. Ao Ronaldo, que nossa história de amor seja reconstruída eternamente.
Aos meus pais, que imigraram a Mato Grosso do Sul, movidos pelo desejo de realização de um sonho e pela busca de um mundo possível, assim como meus avôs, que um dia imigraram ao Brasil. Esse mesmo sonho e essa mesma busca ainda movem multidões na luta por um pedaço de chão.
A todos os trabalhadores sem-terra pela possibilidade de pesquisa, e “por nos afirmar como gente diante de uma vontade reacionária histórica implantada neste país”.
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AGRADECIMENTOS
Ao final desta caminhada, gostaria de agradecer às pessoas que fazem parte da minha história e que de alguma forma contribuíram para a concretização deste trabalho; assim, agradeço tanto àquelas que me proporcionaram contribuições acadêmicas, como também àquelas sem as quais a vida não teria sentido.
Agradeço, em especial, ao Prof. Dr. João Carlos de Souza, pessoa que me orientou nessa caminhada e que sempre soube exercer o verdadeiro significado da palavra orientador quando por esses caminhos me via sem norte.
Agradeço, também, de forma muito carinhosa, à Prof. Dr. Marisa de Fátima Lomba de Farias, que sempre esteve disposta a me ajudar e a me ouvir, mesmo com tantas atribuições. Mulher sábia, sensível e que carrega consigo todas as belezas de ser - humano.
Aos professores do curso de pós-graduação pelas contribuições acadêmicas, especialmente, ao Prof. Dr. Damião pelo incentivo no início dessa caminhada.
Aos colegas de turma pelas discussões, mesmo que às vezes tão banais, principalmente a Gilmara, que se tornou uma amiga para vida toda; pessoa que dividiu comigo durante essa caminhada momentos de angústias e conflitos, mas também de os de alegrias e de lucidez.
Ao Carlos, Alzira, Tereza, Ceres, Vanessa e demais colegas dos projetos de pesquisa, com quem dividi dias e dias de viagens pelos assentamentos.
Aos trabalhadores Antônio, Neuza, Celso, Claudinéia, Dércio, Edinéia, Eleonora, Erondi, João, Valdir, José, Leonice, Lídio, Lucas, Lucio, Lurdes, Nair, Osmar, Tadeu, acampados e ex-acampados, por mim entrevistados. Agradeço pela possibilidade de pesquisa e pela disponibilidade em me atender. Carrego comigo o semblante, o tom de voz e os sonhos de cada um e espero ter conseguido textualizar um pouco disso.
À FUNDECT, pela concessão de bolsa para a pesquisa.
Ao Ronaldo, companheiro que soube compreender minhas ausências e surpreendeu-me na superação de seus pré-conceitos ao lançar-se comigo às visitas aos acampamentos. Ao Eduardo, filho querido, que espera ansioso a concretude desse trabalho.
À minha mãezinha Inês, pois, graças ao seu amor incondicional foi possível aflorar em mim a sensibilidade com que hoje vejo o mundo. E a toda minha família – pai, irmãos, sogra, sogro, minha cunhada Claudia – pelo apoio de sempre e, principalmente, pelos cuidados com meu anjo, Eduardo, quando estive ausente.
Sem vocês a vida não teria sentido...
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“Seria feliz se eu visse o Brasil cheio em seu tempo histórico de marchas, marcha dos que não tem escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem,
marcha dos que se recusam a uma obediência serviu, marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser. Eu acho, afinal de contas, que as marcha são
andarilhagem históricas pelo mundo e os sem-terras constituem pra mim hoje uma das expressões mais fortes da vida política e da vida cívica desse país. Por isso mesmo é que se fala contra eles, e até de gente que se pensou progressista, e que fala contra eles, contra os sem-terras, como se fossem uns desabusados, como se fossem uns destruidores da ordem. Não! Pelo contrário, o que eles estão é mais uma vez provando certas afirmações teóricas de analistas políticos, de que é preciso mesmo brigar para que se obtenha um mínimo de
transformação. [...] Como eu acredito em Deus, eu agradeço muito a Deus por estar vivo e poder ver e saber que os sem-terras marcham contra uma vontade reacionária histórica
implantada neste país. Meu apelo, quando eu termino sua primeira pergunta, meu desejo, meu sonho, é que outras marchas se instalem nesse país... eu acho que essas marchas nos
afirmam como gente, como sociedade querendo democratizar-se”. Paulo Freire
(áudio digitalizado, Instituto Paulo Freire)
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
CAPÍTULO I
A TERRA E OS SEM-TERRAS NO MATO GROSSO DO SUL: MIGRAÇÃO E TRABALHO. ...................................................................................................................... 30
1.1 Terra e (falta de) trabalho: a “sociedade descartável” .................................................. 31 1.2 Em busca de um lugar................................................................................................. 41 1.3 Um cenário anunciado: os brasiguaios e os atingidos por barragens............................ 47 1.4 A terra: reordenamentos em Mato Grosso do Sul ........................................................ 56
CAPÍTULO II MEDIAÇÃO E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA TERRA EM MATO GROSSO DO SUL .............................................................................................................. 64
2.1 Emergência dos Movimentos Sociais na agenda a Reforma Agrária............................ 65 2.2 Em cena a CPT, a FETAGRI, o MST e a CUT ........................................................... 67
2.2.1 Lançando as sementes: A CPT ............................................................................. 67 2.2.2 Novos mediadores: O MST, a FETAGRI e a CUT ............................................... 72
2.3 Acampamentos e Assentamentos, um panorama das conquistas. ................................. 80 2.3.1 Anos 1980: a luta marcada pela violência ............................................................. 80 2.3.2 A difícil luta pela terra entre 1990 e 1995 ............................................................. 90 2.3.3 Revigoramento: a luta pela terra a partir de 1996.................................................. 96
CAPÍTULO III
POR OUTRA HISTÓRIA: “É POR ISSO QUE A GENTE LUTA”................................... 104 3.1 Ser sem -terra: a adesão de trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra.. 105 3.2 (Des) socialização na luta por um pedaço de chão..................................................... 119 3.3 O sonho da terra prometida nas representações dos sem-terras .................................. 131
CAPÍTULO IV VIDA PROVISÓRIA, EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS.......... 135
4.1 Ocupação de terras: o preâmbulo em busca de um novo lugar ................................... 136 4.2 As dificuldades do cotidiano ..................................................................................... 156 4.3 Trabalho, organização e relações de poder nos acampamentos ................................. 179 4.4 A visibilidade das lonas pretas e a persistência da luta .............................................. 193
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 210 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 215
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LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1981-1989 .............................................88
Figura 2: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1990-1995 .............................................91
Figura 3: Mapa das ocupações de terras em MS – 2000-2005...........................................98
Figura 4: Mapa acampamentos rurais existentes em MS - 2005........................................99
Figura 5: Chegada das famílias à fazenda Santo Antônio, em Itaquiraí, dia 08.05.1997.. 138
Figura 6: Visão geral do acampamento Oito de Março. Imagem veiculada na Revista Isso É em, 27.08.1997. .............................................................................................................139
Figura 7: Policiais no momento em que foram abordados pelos acampados do acampamento Oito de Março. ........................................................................................145
Figura 8: Primeiros barracos construídos no acampamento Oito de Março (1997). .........158
Figura 9: Mulheres do acampamento Oito de Março produzindo doce de vegetal encontrado na mata. .......................................................................................................160
Figura 10: Acampados do Oito de Março em dia de mobilização na estrada.. .................163
Figura 11: Dia de assembléia no acampamento Oito de Março.. .....................................165
Figura 12: Festa Junina no acampamento Oito de Março................................................167
Figura 13: Construção da escola no acampamento Oito de Março. .................................168
Figura 14: Acampados lavando roupas no rio. . ..............................................................172
Figura 15: Criança acampada em frente aos barracos do acampamento Oito de Março. ..173
Figura 16: Recuperação de Alimentos no acampamento Oito de Março..........................198
Figura 17: Acampado ferido em dia de mobilização.. .....................................................205
Figura 18: Mobilização do MNP na cidade de Campo Grande. Imagem veiculada no Jornal O Progresso, 28/29.03.1998...........................................................................................206
Figura 19: Mobilização dos acampados do Oito de Março na cidade de Itaquiraí..........2077
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1: MS: Pessoal ocupado no campo – população urbana e rural. .............................33
Tabela 2: Censos agropecuários de 1975, 1980, 1985 e 1995-1996 - MS..........................35
Tabela 3: Número de mobilizações do MST – Nacional ...................................................74
Tabela 4: Projetos de assentamentos em MS – 1984-1989................................................86
Tabela 5: Projetos de assentamentos em MS – 1990-1995................................................90
Tabela 6: Número de sem-terra presos e assassinados por conflitos agrários por estado....92
Tabela 7: Acampamentos/ocupações e número de famílias acampadas por mediadores 1996-2005........................................................................................................................97
Tabela 8: Projetos de assentamentos em MS – 1996-2005..............................................101
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LISTA DE ABREVIATURAS
CAND – Colônia Agrícola de Dourados CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CEFF – Concessão de Terras na Faixa de Fronteiras CESP – Companhia Energética de São Paulo CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil COAAMS - Coordenação das Associações dos Assentados do Mato Grosso do Sul COAGRAN – Cooperativa dos Assentados da Grande Dourados COARJ – Cooperativa dos Assentados da Região de Jardim CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT – Comissão Pastoral da Terra CUT – Central Única dos Trabalhadores CUT/MS – Central Única dos Trabalhadores no Mato Grosso do Sul DETR – Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais DOF – Departamento de Operações de Fronteira DTR – Departamento do Trabalhador Rural FAF/MS – Federação da Agricultura Familiar do Mato Grosso do Sul FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul FUNDECT/MS – Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDATERRA – Instituto de Desenvolvimento Agrário, Assistência Técnica e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MNP/MS – Movimento Nacional dos Produtores de Mato Grosso do Sul MS – Mato Grosso do Sul MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra NOB – Estrada de Ferro Noroeste do Brasil PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária PROCERA – Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária PRRA – Plano Regional de Reforma Agrária PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores SOMECO – Sociedade de Melhoramento e Colonização SSP – Secretaria de Segurança Pública STF – Supremo Tribunal Federal STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais SUS – Sistema Único de Saúde TERRASUL – Departamento de Terras e Colonização de Mato Grosso do Sul UDR – União Democrática Ruralista UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados
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INTRODUÇÃO
É sempre gostoso a gente poder estar lendo, relembrando, alguma coisa. Então, esse papel de vocês dentro do assentamento, ele é muito importante, porque vocês estão resgatando a nossa história e com isso a gente não perde de vista a nossa história. Você pode ver que na maioria das vezes você pergunta a gente pensa antes de fala. Por quê? Porque a história já tá sendo esquecida. E uma das coisas que a gente não pode esquecer nunca, é a nossa história, principalmente o período de acampamento, que aquele foi doído (POLACO, Entrevista, 10.10.2005).
Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido (MATTOSO, 1988, p.22).
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O objetivo principal desse trabalho de pesquisa é compreender o processo de
luta que antecede aos assentamentos rurais, numa análise que transcenda as posições
ideológicas dos mediadores da luta pela terra e tenha o olhar voltado ao sujeito que a
vivencia e a personifica. Assim, algumas questões foram postas de forma a nortear o
estudo da luta por um pedaço de chão e a sua forma estrutural e variada presente às
margens das rodovias sul mato-grossenses. Quem são os sujeitos da luta pela terra? Quais
as relações de trabalho e vida mantidas por esses sujeitos no período que antecede a luta?
Como vivem esses sujeitos no espaço do acampamento? O que se renova e o que se
mantém durante esse processo histórico? Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que
essas questões só poderiam ser respondidas a partir da compreensão de outras, tais como:
Como são formados os acampamentos? Quem são seus idealizadores e qual papel
desempenham nesse processo? Quais são as estratégias de luta e sobrevivência? Quais as
relações de poder ali impostas? De onde vêm esses sujeitos e para onde vão?
Assim, para que fosse possível fazer o registro dessa história, foi necessário
estabelecer parâmetros de ordem prática, como recortes e delimitações. Embora todo ato de
selecionar carregue certa arbitrariedade, esse estágio foi precedido por um levantamento de
dados e documentações disponíveis e acessíveis no INCRA (Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária), jurisdição de Dourados e Campo Grande, e em visitas às
secretarias estaduais do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), da FETAGRI
(Federação dos Trabalhadores na Agricultura), do DETR/CUT (Departamento Estadual do
Trabalhador Rural da Central Única dos Trabalhadores), assim como a sindicatos
municipais. Esse levantamento teve como propósito um conhecimento geral da luta pela
terra no estado de Mato Grosso do Sul, de forma a conduzir às delimitações do tempo e do
espaço da pesquisa.
A partir dos dados coletados junto ao INCRA, da leitura de outros trabalhos,
como SOUZA (1992); FABRINI (1995); FARIAS (1997 e 2002); MENEGATI (2003);
ALMEIDA (2003), e do conhecimento empírico sobre as questões da luta pela terra em
Mato Grosso do Sul, constatou-se que o extremo sul do estado, entre a divisa com o estado
do Paraná e a fronteira com o Paraguai, região também conhecida como cone-sul, mantêm
certa tradição em relação às mobilizações de luta pela terra. O município de Itaquiraí e
municípios vizinhos concentram grande número de acampamentos e assentamentos, como
se pode constatar pelas figuras de um a quatro, no decorrer do texto. Itaquiraí, por
exemplo, possuía até o ano de 2005, oito assentamentos e 1700 famílias assentadas, o que
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representava mais de 10% das 16 mil famílias assentadas em todo o estado1 e, se
considerada uma média de quatro pessoas por famílias, os assentados representavam cerca
de 38% da população municipal, que era de 17.449 habitantes2.
A região está localizada entre a divisa com o oeste do estado do Paraná e a
fronteira com o Paraguai e apresenta características peculiares, como a questão dos povos
ribeirinhos atingidos por barragens, a presença de brasiguaios e de imigrantes paraguaios.
Deste modo, as especificidades fronteiriças dessa região são compreendidas a partir da
definição e da problematização proposta por Buordieu (1989). A definição do conceito de
fronteira é discutida por diversos campos de estudos e quase sempre apresentada como um
espaço dispersamente habitado, um sistema estrutural fraco, um espaço de banditismo e
lugar de forasteiro. Nesta pesquisa, no entanto, a fronteira é reconhecidamente um espaço
de conflitos e que “nunca é mais do que produto de uma divisão” (1989, p. 114), ela
produz as diferenças culturais ao mesmo tempo em que é fruto dela, assim a fronteira esta
relacionada ao produto de uma divisão arbitrária, que quando criada faz parte do real.
A partir das informações levantadas, tendo-se em vista a problemática
previamente pensada e as limitações temporais e humanas impostas, optei, então, por
analisar três acampamentos, envolvendo os diferentes mediadores que mais atuam no
estado (MST, FETAGRI e CUT), situados nos municípios de Itaquiraí, Eldorado e Mundo
Novo.
Dos inúmeros acampamentos listados nesses municípios, optei delimitar os
grupos para estudo com a maior diversidade possível, contemplando situações que não
restringissem a análise a determinados aspectos. Assim, entendi ser necessário envolver na
pesquisa acampamentos que movimentaram um número grande de pessoas, mas também
pequenas organizações; mobilizações que tiveram famílias assentadas e outras que ainda
aguardam por uma definição. Desta forma, os acampamentos selecionados foram:
Acampamento Oito de Março, acampamento Laguna Peru e acampamento Mambaré.
Acampamento Oito de Março – foi organizado pelo MST e ficou conhecido
como o maior acampamento do Brasil. Originou-se de uma ocupação que ocorreu na
manhã do dia oito de março de 1997, na fazenda Santo Antônio, de 25.560 mil ha, de
propriedade de grupo Bertin, com sede em Lins/SP e localizada no município de Itaquiraí, 1 O Chefe da Divisão do Assentamento do INCRA afirmou, em Seminário realizado em Três Lagoas (fevereiro de 2002), que: “O INCRA não tem estrutura para fazer Reforma Agrária em todo lugar, ele é muito pequeno no Estado. Aonde nós vamos então? Onde a pressão é maior. Nós temos áreas de conflito como no sul do Estado, na região de Itaquiraí, Eldorado, Iguatemi, em que os movimentos sociais como o MST, CUT e FETAGRI são fortes e estão lá com milhares de famílias e têm conflitos sociais por terra, envolvendo índios, posseiros, trabalhadores rurais” (Apud, ALMEIDA, 2003, p. 125). 2 Dados do IGBE, população municipal estimada em 01.07.2005.
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rodovia BR-487, a qual se destinava à criação de gado de corte para abastecer frigoríficos
do Grupo. Inicialmente o grupo acampou dentro da fazenda, de onde foram despejados e
montaram acampamento na BR-163, estrada que liga o município de Itaquiraí a Naviraí. O
acampamento chegou a abranger mais de duas mil famílias, ultrapassando sete mil pessoas,
que vieram, sobretudo, das cidades de Juti, Caarapó, Naviraí, Itaquiraí, Eldorado, Iguatemi,
Mundo Novo, Japorã, Dourados, brasiguaios e algumas do estado do Paraná. Deste
acampamento foram assentadas cerca de 1000 famílias em nove assentamentos diferentes,
localizados nas cidades do sul do Estado.
No ato da pesquisa, entre 2005 e 2006, ainda existiam cerca de trinta famílias
remanescentes do acampamento Oito de Março vivendo às margens da BR-487, em local
próximo ao do acampamento inicial, mas haviam agregado novas famílias e estavam sob
nova denominação. Essas famílias, no entanto, foram assentadas em julho de 2007 na
fazenda Santo Antônio, que foi desmembrada em 1600 lotes de terras para projeto de
reforma agrária, após dez anos de luta, para atender aos trabalhadores de diversos grupos
mediadores que já se encontravam acampados naquele espaço.
Acampamento Laguna Peru – organizado pela CUT/FETAGRI. O
acampamento foi montado no dia três de março de 1998, na fazenda Laguna Peru, BR-163,
estrada que liga o município de Eldorado a Itaquiraí. A fazenda de aproximadamente 2.700
ha era destinada à criação de gado e foi ocupada por cerca de 100 famílias. O
acampamento foi articulado pelas lideranças sindicais do município de Eldorado e teve sua
mediação alternada entre a CUT e a FETAGRI. No ato da pesquisa (2006) o acampamento
estava composto por 38 famílias, a maioria do município de Eldorado, mas também
algumas oriundas do estado do Paraná. Passados oito anos de luta, nenhuma família havia
sido assentada e não havia mais perspectiva de desapropriação da área, as famílias que
resistiram permaneciam na expectativa de remoção para outras áreas.
Acampamento Mambaré – foi articulado pelas lideranças sindicais
municipais de Mundo Novo e recebeu apoio da FETAGRI. A primeira ocupação da
fazenda Manbaré3, localizada no município de Mundo Novo, BR-163, estrada que liga
Mundo Novo ao município de Guaíra no Paraná, ocorreu no dia 28 de março de 1999. A
primeira ocupação concretizou-se com 26 famílias, mas o acampamento chegou a contar
com 143, oriundas, em sua maioria, do município de Mundo Novo e brasiguaias. A
desapropriação da fazenda Mambaré, que também se destinava à criação de gado de corte, 3 A fazenda conhecida como fazenda Mambaré tinha como referência também o nome de Pouso Alegre. Para denominar o acampamento uso apenas a denominação Mambaré como se acostumou chamar. Quando assentados, porém, a denominação é alterada para assentamento Pedro Ramalho.
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foi confirmada pelo INCRA pela portaria 28 de 26.09.2000, no entanto, devido aos
recursos judiciais, o lote só foi entregue às famílias no ano de 2003. Assim, o
acampamento manteve-se por quatro anos à margem da BR-163. Na área de 1.948 ha
foram assentadas 78 famílias.
Entre os trabalhos acadêmicos voltados às questões agrárias, poucos estudos
estão direcionados ao processo de luta pela terra e à vida dos acampados nos barracos de
lona à margem das rodovias. Foi com o intuito de conhecer e entender melhor esse
processo, tomando como referência essas três mobilizações, que essa dissertação foi
pensada e desenvolvida. Assim, pode-se dizer que essa pesquisa não se configura como um
estudo da questão agrária, mas sim, como uma “compreensão da questão agrária enquanto
questão social”.
Além da pesquisa específica para esse fim (que será explicitada a seguir), há de
se ressaltar também a experiência vivenciada na participação como colaboradora em
alguns projetos de pesquisa desenvolvidos em conjunto pela UFGD (Universidade Federal
de Grande Dourados) e UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), são eles:
Vida de mulheres em assentamentos de reforma agrária no município de Itaquiraí-MS
(Fundect, 2005-2007) e Assentamentos rurais no sul de Mato Grosso do Sul: estudos
econômicos e sociais das mudanças no meio rural (CNPq, 2005-2007). Essa colaboração
me proporcionou maior contato com as realidades desses grupos. A visita a vários
assentamentos do estado contribuiu para que, nos trabalhos de campo para a concretização
das pesquisas desses projetos, fosse possível a reflexão sobre minha própria problemática
e, ainda, tecer relações com sujeitos que, de alguma forma, contribuíram para a construção
de uma rede de informantes necessária à elaboração da pesquisa. Ressalta-se, ainda, neste
contexto, a contribuição, apoio e incentivo dos coordenadores dos projetos.
Muito embora não sejam os mediadores (MST, FETAGRI e CUT), enquanto
instituições, os objetos de pesquisa, foi necessário assinalar suas distinções, pois a
desconsideração dessas diferenças, poderia levar-me a erros grosseiros de interpretação
desse espaço/tempo de lutas. Entendi ser necessário também a apresentação de certas
contradições, paradoxos e mesmo contrariedades e arbitrariedades identificadas na atuação
desses mediadores. Muito embora seja solidária à causa desses sujeitos e reconhecendo que
a tentativa de uma objetividade plena e de uma imparcialidade positivista já esteja há
tempos superadas dentro das discussões historiográficas, acredito que uma visão míope,
apologética e descomprometida descaracterizaria qualquer pretensão de um trabalho
acadêmico que vislumbre alguma objetividade histórica.
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O trabalho historiográfico, que buscou “não deixar que essa história seja
esquecida”, pode ser identificado em abordagens ou temáticas que suscitam dois grandes
debates acadêmicos, entre outros presentes na atualidade: a história oral, termo que aqui
será substituído por fontes orais e a História do tempo presente, ou melhor, a análise de
acontecimentos recentes ou ainda em curso.
A história hoje abre-se como um leque inesgotável de possibilidades de
pesquisas. Novas questões, novos objetos, novas discussões vêm sendo propostas nas
últimas décadas, isso relaciona-se a “uma nova postura diante da história, um outro olhar
que interroga o passado a partir de pressupostos que constroem também novos objetos e
formulam novas questões” (PESAVENTO, 2004, p. 7), o que requer novos métodos e que,
conseqüentemente, embalam novos embates teóricos.
Essa “nova postura diante da história” abriu caminhos para construção de
“outras histórias”, entre elas as “histórias de pessoas comuns”, como denomina Hobsbawn,
e a uma análise voltada para as histórias do cotidiano. Segundo Matos:
[...] o renascer dos estudos do cotidiano se encontra vinculado a uma redefinição do político, frente ao deslocamento do campo do poder das instituições públicas e do Estado para a esfera do privado e do cotidiano, com uma politização do dia-a-dia (2002, p. 22).
Essa história renovada e aberta a novos olhares pode ser entendida como um
processo de amadurecimento do olhar e da sensibilidade do pesquisador. Para Chartier, as
mutações do trabalho histórico, nos últimos anos, estão ligadas a distância tomada nas
práticas de pesquisa e aos princípios de inteligibilidade que governavam o método
histórico: o projeto de uma história global, aos moldes do estruturalismo de Braudel; a
definição territorial dos objetos de pesquisa, influência recebida da escola de geografia
humana; e a primazia dada ao recorte social, esborraram-se progressivamente “deixando o
campo livre a uma pluralidade de abordagens e de compressões.” (2002, p. 65-66).
Esses embates teóricos (questões relativas às fontes orais e ao trabalho com um
tempo histórico recente), no entanto, parecem amenizar-se diante da epígrafe de Matoso. O
que é a História? “Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas
uma forma de interpretar o presente”.
Como trata-se de processos efêmeros, dos quais raramente se encontra registros
escritos, as principais fontes utilizadas para a apreensão de informações, que levou a
construção da história desses grupos, foram às fontes orais associadas às fontes
iconográficas, dados estatísticos, pesquisa em arquivos e a apreensão pela observação. A
19
memória desses indivíduos, exteriorizadas através de relatos orais, uma vez conjugadas
com outras fontes e registros históricos, foi indispensável para a análise desse processo.
Em face ao assunto pesquisado e a problemática proposta, qual seja, o
cotidiano nos acampamentos rurais de sem-terra, suas estratégias de sobrevivência,
sociabilidades internas, suas experiências, percepções e valores, fez-se necessário um
trabalho de campo e a elaboração de fontes através de um conjunto de entrevistas. Nesse
sentido, o ato de relembrar e rememorar, seguido de uma posterior compreensão de seus
significados, sistematização dos dados e articulação com o contexto e conjuntura histórica,
aspectos que se referem ao tratamento metodológico do historiador no seu ofício de
interpretação, fazem dos relatos orais uma fonte viável de pesquisa.
A responsabilidade em não deixar com que essa história de lutas se perca no
tempo e no espaço (como na fala em epígrafe) fez com que fosse necessário pensar e
repensar o papel do historiar diante de seu objeto e no trabalho com as fontes, visto que
“pessoas não são papéis”, mas sim, sujeitos de carne e osso, que além de merecer cuidado
e respeito específico, são possuidores de uma fonte de pesquisa viva e seletiva.
Segundo Janaina Amado, a maioria dos entrevistados concorda em conceder
entrevistas pela oportunidade de ter sua história registrada e difundida em outros círculos.
A negação desse aspecto é reveladora de um sentimento paternalista. Longe de demonstrar
respeito, essa preocupação social revela uma postura de desvalorização e desprezo para
com o outro, pois desconsidera a capacidade dos sujeitos excluídos socialmente em
construir e executar projetos pessoais (1997, p. 153-154).
Esses aspectos ficam evidentes na fala de Polaco (em epígrafe). Há da parte
dele a preocupação em registrar sua história de lutas e de sofrimentos, destacando a
importância do trabalho de pesquisa para não deixar que suas histórias caiam no
esquecimento. Talvez essa seja a essência do trabalho historiográfico e o que produz
sentido ao ofício do historiador. Por meio da história de pessoas comuns, parafraseando
Matoso, é possível desvendar relações humanas numa conexão entre o ontem e o hoje, e
assim poder decifrar a ordem possível do mundo, sem se diluir num mundo fenomenal e
sem sentido (1988, p. 22).
Não se trata, no entanto, em dar voz a sujeitos, mas sim de oferecer-lhes a
oportunidade de falar e ser ouvido, de forma que suas histórias possam ser levadas a outros
círculos; sem, contudo, aniquilar o papel do pesquisador e suas responsabilidades na tarefa
de historicisar, sistematizar, analisar e interpretar as rememorações que ouve e,
conseqüentemente, arcar com os possíveis equívocos que essa tarefa pode trazer. Como
20
Martins, acredito que “o oprimido pode ser a voz dele mesmo. É só a gente ficar atento
para ouvi-la e atendê-la. Acho que essa é a questão básica” (1991, p. 157).
O trabalho com fontes orais no Brasil marca uma oposição à “historiografia
‘tradicional’ brasileira que, sempre partiu do geral, amplo, nacional, sem nunca ter chegado
ao mínimo, ao específico, ao local”. Partindo da perspectiva de Meihy de que a história
oral brasileira nasceu “com o destino de ser uma voz diferente”, (2000, p. 94-95, aspas no
original), faço uso dessa fonte de forma tão relevante quanto as fontes documentais
escritas, visto que, “se a memória é socialmente construída, a documentação também o é”.
Deve-se, então, realizar a crítica a todo tipo de fonte, o que prevalece é a postura ética do
pesquisador, quer seja diante das fontes orais ou das fontes escritas (POLLAK, 1992, p.
207).
Há que se ressaltar, no entanto, que os “riscos da inocência”4 são muitos e
nocivos, mas não intrínsecos ou irremediáveis. A prática de participação na produção das
fontes com as quais o pesquisador vai trabalhar requer um cuidado epistemológico
constante, devendo-se atentar às diferentes formas de narração, ao indizível5, aos discursos
pré-construídos, estar consciente da não unificação entre o vivido e o narrado, cabendo ao
pesquisador a interpretação desse processo.
Nesse sentido, tomando os cuidados devidos, as fontes orais podem representar
um rico campo de análise de acontecimentos recentes. Esses dois campos, metodológico e
temporal, põem-se como desafios ao trabalho historiográfico, visto que o historiador situa-
se como pesquisador e espectador ao mesmo tempo, o que pode dificultar uma tentativa de
objetivação na análise. Segundo Borges, a objetivação, dentro desse contexto, é uma tarefa
árdua, “pois objetividade e subjetividade são as interfaces do mesmo processo” (2004, p.
37).
O fato de estar consciente de que “pessoas não são papeis” e que essas, muitas
vezes, reconhecem-se como sujeitos da história quando são incitadas a falar de suas
experiências de vida e de luta e somando-se, ainda, a clareza com que muitos se mostram
interessados pelos resultados desse levantamento histórico, gera uma dualidade de
sentimentos no pesquisador; por um lado, a satisfação humana de poder contribuir para a
discussão de um problema social que afeta diretamente milhares de brasileiros, por outro, a
certeza de que o comprometimento com a forma acadêmica de produção pode não atender
4 Tema de artigo discutido por Hall, 1992, p. 157. 5 PEREIRA de QUEIROZ, 1988.
21
às expectativas imediatas dos grupos estudados. Nesse sentido, são importantes as
considerações de Bourdieu:
Pode-se dizer então que o pesquisador não tem qualquer possibilidade de estar verdadeiramente à altura de seu objeto a não ser que ele possua a respeito um imenso saber, adquirido talvez ao longo de uma vida de pesquisa e também, mais diretamente durante entrevistas anteriores com o próprio entrevistado ou com informantes (BOURDIEU apud ALMEIDA, 2003, p. 30).
A contemporaneidade do pesquisador com seu tema de trabalho tráz
dificuldades em relação à sua aproximação com o acontecimento, pois o sujeito pode
acabar por se influenciar, deixando-se condicionar pelas circunstâncias. Porém, como
coloca Chauveau e Tétard, a disciplina problematiza a relação entre o historiador, seu
tempo e seu tema, mas qualquer posição estaria incompleta se desconsiderasse o
historiador, a história e a sociedade (1999, p. 35).
Quero com isso dizer que só me atrai, no passado, aquilo que me permite compreender e viver o presente. O que acontece, é que, para o compreender, não me basta conhecer uma pequena parcela, tenho de o conhecer todo, não, obviamente, em todos os pormenores, mas como uma totalidade na qual tenho que me inserir (MATTOSO, 1988, p. 21-22).
O estudo de acontecimentos recentes ou em curso é percebido aos olhos de
muitos como não pertencente ao campo da disciplina Histórica, reservando a história de
acontecimentos recentes e, portanto, não finalizados, a outras disciplinas ou profissionais,
como aos jornalistas, politólogos, sociólogos, antropólogos, entre outros. Entendo, no
entanto, que o que caracteriza um trabalho histórico são métodos e teorias próprios, pois “a
história não é somente o estudo do passado, ela também pode ser, com um menor recuo e
métodos particulares, o estudo do presente” (CHAUVEAU, TÉTARD, 1999, p. 15).
O que não se pode negar, no entanto, em especial nesta pesquisa, foi a
contribuição de conceitos tradicionalmente utilizados por outras áreas de conhecimento,
como a noção de identidades e representações utilizados pela sociologia, além da
recorrente utilização de reflexões do sociólogo José de Souza Martins. O trabalho é
tributário também da análise de práticas cotidianas que se aproxima, por maneira, de
reflexões antropológicas e das noções e definições de espaço tradicionalmente utilizados
pela geografia. Essa interdisciplinaridade necessária elimina qualquer pretensão
historiográfica de uma determinação epistemológica pura e contribui à desmistificação de
uma disciplinaridade rígida no ensino e pesquisa.
Outro recurso utilizado nessa dissertação, sobretudo no terceiro e quarto
capítulo, é a narrativa histórica, uma forma de escrita historiográfica com forte inspiração
literária, não só na forma de construção textual, mas também na valoração dos
22
acontecimentos. No final dos anos de 1970, o britânico Stone incitou uma discussão sobre
o “renascimento da narrativa” na escrita historiográfica, o que Burke veio melhor
denominar no início dos anos de 1990 de uma “regeneração da narrativa”. Para Burke “o
objetivo de buscarmos uma nova forma literária vem do fato de nós mesmos assumirmos
que as velhas formas já estão inadequadas ao nosso propósito” (1992, p. 335). O
historiador deve buscar alcançar uma síntese, quer seja em relação à narrativa/análise, quer
seja em saber estabelecer relações entre acontecimentos/estruturas.
Como trata-se de um fenômeno social novo (se for pensado em tempo
histórico) e presente no cenário nacional da atualidade, vê-se que esse assunto perpassa o
campo da história social, mas também, segundo Pesavento, o estudo historiográfico sobre
processos em curso, comparece, sobretudo, como forma de análise de movimentos sociais
a partir de uma abordagem cultural:
Questões relativas à força das imagens e dos discursos na composição de um imaginário mobilizador são fundamentais para que os pesquisadores se voltem pata tais processos em curso. Estes correspondem a uma espécie de laboratórios, ao vivo, da construção e da aplicabilidade das representações sociais que se apresentam aos olhos do historiador (PESAVENTO, 2004b, p. 94).
Assim, compreendo que a abordagem sobre o prisma de uma história social e
cultural se apresenta como eixo fundamental desse trabalho, mas não só, pois como coloca
Barros: “na verdade não existem acontecimentos que sejam exclusivamente econômicos,
políticos, sociais ou culturais, todas essas dimensões se integram ou, sequer, existem como
dimensões separadas” (2004, p. 15), principalmente se for pensado na perspectiva da luta
pela terra, acontecimento em que esses aspectos encontram-se imbricados.
Para discussões sobre aspectos culturais e suas formas de apropriação, faço uso
dos conceitos apresentados por Chartier. Segundo o autor, diferente do habitual, a cultura
deve ser pensada distanciando-se de idéias sociográficas, na qual as clivagens culturais
estariam organizadas, necessariamente, de acordo com um recorte social construído
previamente. As diferenciações culturais não estão divididas em uma grade única. Nos
movimentos sociais de luta pela terra há a necessidade de se pensar essa formação cultural
a partir dos objetos, das formas e dos códigos, como propõe Chartier, e não
necessariamente dos grupos. Os processos de mobilizações não podem ser pensados
ignorando-se a perspectiva do sentido que um texto, uma norma, os discursos mediadores,
os símbolos têm para os que deles se apropriam ou os recebem. Assim, esse historiador
propõe que passamos de uma história social da cultura, para uma história cultural do social
(2002, p. 68-69).
23
Foi importante, também, a análise pelo prisma social e a apropriação dos
conceitos formulados por E. P. Thompson, tanto em seus estudos sobre a classe operária
inglesa, com a definição do conceito de “economia moral”, de “experiência” e de
“formação” social (1987); quanto na releitura que faz da economia como “motor da
história” (1981). A partir das considerações de Thompson, pode-se concluir que os
trabalhadores rurais sem-terra se formam social e culturalmente numa relação histórica. O
determinismo econômico perde sua razão de ser diante da aceitação da história construída
a partir da ação humana.
Os trabalhos de campo foram realizados com alguns critérios previamente
estabelecidos: entrevistar trabalhadores sem-terra acampados, algumas pessoas que
participaram da constituição do acampamento desde o início da ocupação da terra e
pessoas assentadas pelos processos de mobilização social e que passaram pela experiência
do acampamento; manter um equilíbrio na questão de gênero e entrevistar também
lideranças que participaram da articulação e organização dos acampamentos.
São ao todo vinte e cinco relatos, além de três entrevistas realizadas por grupo
de pesquisa sobre assentamentos, as quais não correspondem aos acampamentos analisados
mas revelam experiências significativas em relação às condições dos acampados. Os
relatos têm duração de trinta minutos a duas horas de gravação. Apesar de ter obtido
autorização para utilização das entrevistas, foi feita a opção por apresentar somente o
primeiro nome dos entrevistados ao longo do trabalho para preservar suas identidades.
Foi elaborado um roteiro de entrevista para ser utilizado como norteador dos
assuntos pesquisados, no entanto, as entrevistas foram conduzidas de forma com que o
entrevistado “deixasse a fala correr”, interferindo-se apenas quando se fazia necessário.
Entre os questionamentos priorizados estão um pouco da história de vida desses sujeitos,
como: onde nasceu (se é migrante), quais as experiências de vida e trabalho, questões
relacionadas com a decisão de acampar, vida no acampamento, sociabilidades internas,
sonhos, família...
Na textualização das falas foi mantida na escrita a forma como as palavras
foram expressas, suprimindo apenas algumas repetições, mas mantendo a construção da
oralidade, pois como coloca Souza, “a linguagem tem o potencial de revelar o sujeito em
toda sua força, com sua concepção de mundo, suas leituras, desvelando sua cultura” (1995,
p. 24). Assim, apenas alguns pequenos erros foram corrigidos, de forma a não dificultar a
compreensão do texto e ao mesmo tempo não retirar as características das falas.
24
Não é, no entanto, uma tentativa de expressar na escrita toda a riqueza dos
relatos ouvidos, com todas as suas particularidades e distinções. O ato de transcrever, por
si só, submerge grande parte dessa riqueza; o tom de voz, silêncios, pausas, sorrisos são
complementos da oralidade, e que, muitas vezes, dão sentido a ela; os sotaques, por sua
vez, são a própria caracterização do sujeito. Esses são elementos, que embora não
presentes na textualização, tornam-se ponto de reflexão e análise no decorrer do trabalho.
Para sistematização das fontes orais coletadas, os relatos foram divididos por
fichas temáticas, de acordo com a problemática e seguindo a ordem proposta dos capítulos.
Durante o processo de reflexão e construção do texto, foi imprescindível a volta ao arquivo
oral e a minha própria memória, ao relembrar os rostos, as expressões e o tom de voz,
assim como a volta ao caderno de campo, em que foram anotadas conversas informais e
impressões do local, das condições de vida e dos entrevistados.
Os entrevistados, assim como os grupos como um todo, foram bastante
suscetíveis e dispostos em me atender. Nas entrevistas, as emoções, não raro, são expostas
pelos olhos cheios de lágrimas ao relembrar da ocupação, das dificuldades, dos
sofrimentos... As falhas de memória e os esquecimentos foram sempre notados, pois a
memória é seletiva e viva. Alguns discursos foram, às vezes, repetitivos ou contraditórios
em relação aos de outros entrevistados.
Além das entrevistas gravadas e transcritas, merecem destaque também as
conversas informais e as várias discussões que mantive com os grupos durante o período
da pesquisa. Em alguns momentos mantive-me no local sem uma lista de pessoas à
entrevistar, apenas para vivenciar o cotidiano daquele espaço. Nesses momentos, apesar de
ser bem recebida, pude verificar certo desconforto por parte dos acampados, que me viam
como um ser estranho naquele espaço. Minha intenção era acompanhar as atividades
cotidianas, mas minha presença parecia alterar as ações do dia-a-dia daquelas pessoas.
Ainda assim foram momentos ricos, dos quais pude tirar muitos elementos de análise.
Do acampamento Oito de Março, foram entrevistadas pessoas que ainda
estavam acampadas e também algumas que já haviam sido assentadas. A esse grupo fui
apresentada por representantes do MST que já conhecia de contatos anteriores, o que
facilitou minha inserção. Para conhecer a história do acampamento Mambaré pelos
acampados que vivenciaram-na, dirigi-me até o assentamento e, a partir de conversas
informais, selecionei para gravar entrevistas, algumas pessoas que participaram do
acampamento desde o começo. No acampamento Laguna Peru, iniciei meus contatos por
intermédio do sindicato, local em que fui sempre bem recebida e com as informações
25
fornecidas pude compor uma rede de informantes que pudessem contribuir com a pesquisa.
Poucas pessoas desse acampamento puderam ser encontradas nos barracos e a busca por
informações e entrevistados ocorreu, também, na periferia da cidade de Eldorado.
Outra fonte utilizada no decorrer do trabalho foram os registros iconográficos
obtidos junto às famílias pesquisadas, nos STRs (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) e
algumas veiculadas na imprensa. Para a utilização dessas fontes parti da premissa de que
“Toda fotografia tem atrás de si uma história” (Kossoy, 2001, p. 45), de que ela é uma
representação de um determinado fragmento historiográfico, além de ser produto de uma
intenção (assim como outros documentos históricos). Ressalte-se que esses registros
também são priorizados pelos mediadores e pela imprensa, que geralmente fazem leituras
bastante distintas de uma mesma imagem gráfica.
É importante observar, no entanto, que as fotografias que integram essa
dissertação são majoritariamente do acampamento Oito de Março, isso ocorreu pois desse
acampamento foi conseguido um número maior de fotografias, com melhor qualidade de
imagem e com referências mais precisas. Muitas outras, embora não estejam expostas no
trabalho, contribuíram para produção da narrativa.
Foi utilizada, ainda, como fonte histórica, a pesquisa em periódicos. Como a
intenção do trabalho não era uma análise das várias posições jornalísticas de forma mais
ampla, decidi por recorrer às reportagens do jornal O Progresso, da década de 90 do século
XX, por ser um jornal que circula e está vinculado à região estudada.
A análise do trabalho realizado pela CUT no cotidiano dos acampamentos
rurais ficou um tanto prejudicada, pois além da pequena atuação dessa Central na região
analisada, o acampamento Laguna Peru, que em momentos iniciais de levantamento da
pesquisa era coordenado pela CUT, passou a ser coordenado pela FETAGRI, e poucas
famílias que participaram desde o período de ocupação puderam ser contatadas, tendo em
vista que o acampamento existiu por quase oito anos e muitas famílias entraram e saíram
da área durante período.
Os sujeitos da pesquisa:
A compreensão da questão agrária enquanto questão social, ou a compreensão das implicações sociais da questão agrária, depende de que se compreenda, também, a gênese do sujeito social que a personifica e vivencia (MARTINS, 2003, p. 11).
26
Os trabalhadores aqui analisados são sujeitos com especificidades distintas,
alguns trabalhadores expropriados do campo, bóias-frias, diaristas, ex-arrendatários, ex-
assalariados (urbanos e rurais), filhos de pequenos proprietários, trabalhadores da
construção civil, empregadas domésticas, entre outros. O que caracteriza a condição dos
mesmos, na maioria dos casos, é o fato de terem um meio de vida marcado pela
informalidade, trabalhos eventuais, sem vínculo empregatício. Essas distinções conceituais,
no entanto, também apresentam semelhanças quanto a características que antecedem a
identificação enquanto ser sem-terra. Ambas as condições os fazem deliberadamente
pobres, sem terra, sem emprego, sem direitos de exercerem sua cidadania.
Muitos trazem consigo a tradição rural, alguns já de segunda geração, outros,
apresentam em sua práxis características tipicamente urbanas. A quase totalidade dos sem-
terras analisados são migrantes; homens e mulheres que vieram principalmente do estado
de São Paulo e do Nordeste brasileiro; brasiguaios que retornaram ao Brasil; alguns
ribeirinhos da margem do Rio Paraná, como também tornou-se visível dentre os
trabalhadores rurais sem-terra do sul de Mato Grosso do Sul, a grande quantidade de
sujeitos que tiveram experiência de trabalho no Paraná, paranaenses ou não, que se
direcionam ao estado de Mato Grosso do Sul a partir dos anos de 1990, especificamente
para se inserirem em movimentos sociais de luta pela terra.
O termo sem-terra, reconhecidamente genérico e abstrato, foi utilizado no
decorrer do texto por ser entendido como a melhor forma de designar categorias tão
variadas de reivindicantes da terra. Se possuem diferenças de categorias e até mesmo de
“propósito e necessidades” (como fala Martins 2003, p. 16), possuem em comum o fato de
não terem terra e de estarem lutando por ela, e por tanto, são essencialmente sem terra.
Faço uso, também, para designar os sujeitos que vivem sob o barraco de lona
na luta por um pedaço de chão, a designação de família (famílias assentadas, famílias
acampadas...) isso porque, ainda que o sujeito esteja sozinho sob o barraco e mesmo que
seja solteiro, sua vivência e sua luta não estão desassociadas da noção de rede de
parentesco. Existiram ao longo da pesquisa referências de uma luta voltada aos filhos que
hipoteticamente ainda virão, ou à necessidade de se manter perto da família.
A composição dessa dissertação foi pensada de forma a apresentar uma história
dos meandros do espaço/tempo do acampamento que não abdicasse do “movimento da
história6”, para uma melhor apresentação dos assuntos ela foi divida em quatro capítulos:
6 Expressão de Chalhoub, 1999, p. 18.
27
No primeiro capítulo apresento as experiências de vida e de trabalho de sujeitos
que estão (ou estiveram) inseridos na luta por um pedaço de chão, enfocando as relações
que esses sujeitos traçaram com a terra ao longo de suas vidas, assim como processos de
exclusão, expropriação, exploração, desenraizamento e (falta de) trabalho.
O estado de Mato Grosso do Sul é marcado desde sua gênese por políticas
conservadoras, elitistas, baseada na concentração de renda e de terra, mas também por
contestações, reivindicações e resistências. Vê-se que a conjuntura histórica nacional
associada às especificidades regionais do sul de Mato Grosso do Sul engendraram um
processo de mobilizações sociais de lutas pela terra, que se inicia em fins da década dos
anos de 1970 e se estende e se fortalecem nos anos finais do século XX e início do século
XXI.
Através de entrevistas, levantamento histórico, bibliográfico e de dados
censitários, busquei fazer uma articulação com as experiências de vida, de trabalho e de
migração apresentadas por trabalhadores sem-terra acampados às margens das estradas, e
outros já assentados por processos de mobilização social, no extremo sul de Mato Grosso
do Sul, com o contexto histórico dessa região.
A partir do problema social evidenciado nas falas dos sem-terra, faço um
retorno útil à composição do espaço agrário sul-mato-grossense, ainda que de forma
concisa, enfatizando processos políticos, econômicos e sociais que atingiram mais
diretamente o espaço historicamente conhecido como extremo sul do antigo Mato Grosso.
O segundo capítulo foi construído a partir da compreensão de que a análise dos
sujeitos sociais envolvidos nos movimentos de luta pela terra de tempos recentes, depende
também que se compreenda a gênese desses conflitos sociais, o que busco fazer a partir da
emergência dos então chamados “novos movimentos sociais” de fins da década de 1970.
Assim, um breve histórico foi construído com algumas das características dos principais
mediadores da luta pela terra no Estado de Mato Grosso do Sul a FETAGRI, o MST e a
CUT. À CPT faço um retorno indispensável, ainda que conciso, por ter sido ela a
organização precursora, no estado, para o aflorar da luta pela terra.
A partir da análise de atuação dessas organizações, a próxima etapa foi a
historicização do processo de luta travado por trabalhadores sem-terra no estado de Mato
Grosso do Sul, desde suas primeiras manifestações de luta em fins da década de 1970 até
sua relevante expansão nos primeiros anos do século XXI.
28
Neste capítulo faço uso de documentos dos próprios mediadores, documentos
do INCRA (Jurisdição de Dourados), entrevistas, em especial a dos três representantes dos
mediadores, dados e relatório elaborado pela CPT (1993).
No capítulo três analiso as experiências vivenciadas por trabalhadores sem-terra
ao aderirem aos movimentos sociais de luta pela terra e como esses sujeitos reconstroem,
ou não, nesse (não) espaço social o mundo de sociabilidades que é desestruturado com a
decisão de participar de uma ocupação de terra.
Foi importante, pensar, neste momento, como esses trabalhadores passaram a
idealizar uma (re) construção de suas histórias com a perspectiva da reforma agrária. O
objetivo foi entender como os sujeitos aderem à luta, de que forma assumem essa
identidade de sem-terra, o que relegam, na prática, para essa inserção e quais as
dificuldades encontradas.
Priorizei também, neste capítulo, demonstrar como as distintas concepções de
luta apresentadas pelos diferentes mediadores que atuam nesse processo de luta por um
pedaço de chão imprimem diferentes formas de organização, o que interfere diretamente na
vida dos sujeitos acampados, nas formas de sobrevivência e nas experiências cotidianas
vivenciadas nesse espaço.
Para tal análise faço uso de publicações, fotografias, reportagens, alguns
registros dos mediadores, mas principalmente das entrevistas feitas com trabalhadores
sem-terra, que são os sujeitos históricos desse processo.
O capítulo quatro concentra-se na narrativa do cotidiano dos acampamentos.
Entender os mecanismos de funcionamento, as estratégias de sobrevivência, as
experiências vivenciadas e as formas de luta travada por esses sujeitos para se manterem
nesse espaço/tempo são os principais objetivos. Trabalhei a experiência da vida sobre o
barraco desde o período da ocupação, as estruturas, organizações e estratégias de lutas
travadas por esses sujeitos, não só para chegarem à terra, mas também para se manterem
acampados.
O centro das discussões e da narrativa desse capítulo foi o acampamento Oito
de Março, uma vez que, dos três analisados, foi este o que apresentou maior número de
famílias, as quais foram assentadas em diferentes áreas. Tal situação gerou mais elementos
de análise e fontes acessíveis, contudo, esse estudo foi enriquecido com dados
evidenciados nos outros acampamentos e as especificidades existentes entre esses três
29
casos analisados foram apresentadas sempre que necessário, muito embora o objetivo não
seja em apresentar um quadro comparativo.
Para a composição desse capítulo foram utilizadas entrevistas, fotografias e
reportagens de jornais, mas foram também indispensáveis os elementos aprendidos pela
observação.
30
CAPITULO I:
A TERRA E OS SEM-TERRAS NO MATO GROSSO DO SUL: MIGRAÇÃO E TRABALHO.
Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito do lucro, direto ou indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa para trabalhar e não a tem. (José de Souza Martins, 1991, p. 55)
31
1.1 Terra e (falta de) trabalho: a “sociedade descartável”
Da primeira vez em que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha...
(Mário Quintana, Da Primeira Vez - parte)
O estado de Mato Grosso do Sul apresenta um grande contingente de
trabalhadores sem-terra acampados às margens das estradas, sob barracos de lona,
mantendo por vários anos os maiores índices de ocupações e pessoal acampado do país,
segundo dados da Ouvidoria Agrária Nacional. O elevado número de trabalhadores sem-
terra no estado está relacionado a vários fatores, entre eles, a migração de trabalhadores
pobres em busca de terra e/ou trabalho, a concentração agrária, a automação do trabalho
desenvolvido nas últimas décadas e as inúmeras políticas públicas de incentivo às
empresas rurais.
O problema da exclusão social vem se agravando nas últimas décadas, isso por
que o processo de inclusão é cada vez mais demorado. Em momentos históricos anteriores,
os camponeses eram excluídos da terra e logo absorvidos pela indústria, hoje, esse
processo é mais lento e os meios de inclusão, muitas vezes, ainda mais degradantes. O
processo de exclusão desenvolvido na sociedade moderna está gerando uma grande massa
de população sobrante, que tem poucas chances de ser reincluída de forma digna dentro
dos padrões atuais de desenvolvimento (MARTINS, 1997b, p. 32-33).
Os sujeitos sociais envolvidos nos processos de mobilizações sociais de luta
pela terra carregam consigo uma história de peregrinação, de buscas, de desencontros, de
faltas, de gostos e desgostos em suas relações com a terra, com as relações sociais nela
estabelecidas, com as relações de trabalho a qual foram submetidos ao longo da vida e,
sobretudo, pela falta de terra para trabalho.
Após um olhar mais acurado surge a indagação: quem são esses sujeitos? Vê-se
que são trabalhadores de alguma forma descartados das velhas relações de trabalho no
campo. Se esses trabalhadores possuem diferenças entre si, possuem também semelhanças,
entre elas a de estarem à margem da sociedade e de serem vítimas de processos de
desenraizamento e expulsão de trabalhadores da terra, o que tornou-se uma forma clássica
de exclusão dentro do sistema capitalista.
32
Fruto de um processo histórico de longa data, a evidência da questão agrária
enquanto questão social passou por momentos de intensificação nas últimas décadas do
século XX, em virtude do processo de automação do trabalho no campo desencadeado a
partir de 1970 e intensificado na última década do século com a inserção da política
neoliberal. A mecanização e o desenvolvimento das técnicas e dos mecanismos de
produção no campo aceleraram o processo de movimento de êxodo rural desencadeado ao
longo dos anos de 1970 e que persistiu e intensificou-se até o final do século.
Essa política de desenvolvimento econômico no campo, que objetivava o
aumento da produção e da produtividade agrícola, extrativa e agroindustrial, iniciada
durante o período do regime militar, desencadeou um processo de exclusão do trabalhador
rural. Os efeitos do uso tecnológico em detrimento ao trabalho humano deram origem ao
que Martins denominou de uma “sociedade descartável”, um fenômeno que criou miséria,
marginalidade e fez emergir uma “nova desigualdade”7.
Os princípios de modernização do mundo rural foram plenamente assegurados
pelo Estatuto da Terra, promulgado em 1964, e outros decretos-leis promulgados para
regulamentar o trabalho no campo e a utilização das terras rurais, como a Lei n.5.889, de
1973 e a Lei n.6.019, de 1978. Entre outros aspectos, essas leis criadas durante o regime
militar, analisa Silva, buscaram assegurar o poder político dos proprietários rurais, conter a
organização política dos trabalhadores a despeito de evitar a constituição dessas classes
como força social. A substituição do termo “trabalhadores rurais” pelo de “empregados
rurais” apontava as deliberadas intenções de transformar o campo em grandes empresas
rurais, substituindo as velhas relações de trabalho nele estabelecido (1999, p. 65-66).
Isto não significa que o processo de dominação-exploração não tenha existido antes. O que ocorreu foi uma mudança nas relações sociais, no interior da dominação capitalista. Os antigos coronéis e fazendeiros foram substituídos pelos usineiros e fazendeiros via novos mediadores, sob a égide do Estado e dos aparatos jurídicos (SILVA, 1999, p. 18-19).
No então estado de Mato Grosso, a política de créditos agrícolas e incentivos
ficais acelerou o processo de consolidação do modelo desenvolvimentista baseado na
monocultura de soja e na criação de gado de corte. Com ainda grandes extensões de terras
cobertas por matas nativas, em idos dos anos de 1970, esse processo atraiu ao estado, tanto
capitalistas, que compravam vastas extensões de terras a baixo custo, quanto trabalhadores
rurais sem terra e descapitalizados.
7 Segundo Martins, todos estão de alguma forma inseridos no contexto social e econômico, mesmo que de forma precária, e esta inclusão precária gera uma nova desigualdade. Assunto tratado sobretudo em Travessias, 2003 e Exclusão Social e a Nova Desigualdade, 1997.
33
A emergência de um padrão de ocupação de terras e formação de
estabelecimentos rurais, sobretudo a partir de 1970, mostra a forma com que o capital foi
encontrando seu espaço em terras sul-mato-grossenses, estruturando-se em unidades de
produção capitalista em prejuízo da forma camponesa de produção, que embora diminuta,
ainda permanece presente nos campos sul-mato-grossenses (QUEIROZ, 1998, p. 38-39).
Ao mesmo tempo em que essa modernização provocou um processo de atração
desses trabalhadores, ela ocasionou um posterior processo de exclusão, tendo em vista que
o trabalho braçal de abertura de fazendas, desmatamento e destocamento não é uma
atividade renovavel. Os trabalhadores foram desenraizados porque as grandes propriedades
necessitavam de mão-de-obra para a abertura das fazendas, atividade que se encerraria
dentro de quatro a cinco anos, causando um processo de exclusão social desse sujeito.
Atraídos pela possibilidade de trabalho, esses sujeitos eram excluídos tão logo
conseguissem formar as propriedades rurais.
De acordo com um estudo organizado por José Gaziano da Silva, o país perdeu
cerca de 1,6 milhões de empregos rurais entre 1990 e 2000, sendo a região centro-oeste a
que menos apresentou demanda pela força de trabalho agrícola no país, com sistema de
produção baseado em grandes propriedades e altos índices de mecanização. O estado de
Mato Grosso do Sul nesse período era responsável por “apenas 0,9% da demanda da força
de trabalho agrícola” nacional (2002, p. 10,30-31)
Entre os anos de 1975 e 1995/96, conforme dados do censo agropecuário, no
estado de Mato Grosso do Sul o número de trabalhadores empregados no campo foi
reduzido em mais de 50 mil, ao mesmo tempo em que a população total do Estado cresceu
em quase 600 mil habitantes, conforme tabela a seguir:
Tabela 1: MS: Pessoal ocupado no campo – população urbana e rural.
Pessoal ocupado 1975 1980 1985 1995-1996 Pessoal ocupado 257.132 230.983 253.993 202.709 Homens 180.135 178.323 193.702 156.019 Mulheres 76.997 52.660 60.291 46.690
População urbana e rural 1960 1980 1991 1996 Urbana 242.088 919.256 1.414,447 1.604,318 Rural 337.564 450.513 365.926 323.516 Total 579.652 1.369,769 1.780,373 1.927,834 Tabela I – Fontes: IBGE, Censos agropecuários e Censos demográficos
34
Os dados coletados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)
confirmam os relatos de experiências vividas por trabalhadores rurais inseridos em
mobilizações sociais no Estado. Percebe-se que os números apresentados pelos últimos
censos agropecuários não contradizem a situação vivenciada pelos trabalhadores rurais,
que passaram por processos de expropriação e de exclusão acentuados no período de
modernização conservadora, quando as grandes propriedades direcionaram sua produção à
monocultura de grãos para exportação, produção de cana-de-açúcar ou mesmo a criação de
gado de corte, atividades caracterizadas pela mecanização ou que requerem pouca mão-de-
obra.
Diante desse quadro, o contingente de trabalhadores rurais expropriados do
campo é submetido ao trabalho temporário, precário e sem nenhum direito trabalhista
(FARIAS, 2002, p. 37). Esses sujeitos, quando excluídos da terra para que o capital
pudesse dar à terra outro uso, são absorvidos por essa mesma sociedade de forma marginal,
instável e precária:
A sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica. O problema está justamente nesta inclusão (MARTINS, 1997b, p. 32-33). [Grifos no original].
A falta de trabalho, o trabalho marginal, a negação ao direito da cidadania, e
todas as imbricações dessas formas de inclusão cada vez mais precárias impostas pelo
sistema capitalista, são histórias recorrentes entre os protagonistas da luta pela reforma
agrária no estado de Mato Grosso do Sul. É o que expõe o relato do senhor Dércio, que
vive acampado a dez anos, e lembra que na chegada a Mato Grosso do Sul em busca de
uma vida mais tranqüila, quando já não conseguia mais trabalho no Paraná, deparou-se
com a mesma situação vivenciada na terra de origem: Aí nós veio aqui pro Mato Grosso, aí ficamos trabalhando por aí, trabalhei acho que sete anos, aí eu vi que não dava também pra sobreviver, sempre numa situação difícil, né? Você vai, trabalha, trabalha e não consegue nada, fica que nem ta acampado ou talvez até pior (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).
A precariedade do trabalho temporário faz com que esses sujeitos lutem,
cotidianamente, pela sobrevivência. Trabalhar incansavelmente e não conseguir nada, nem
o suficiente para o sustento familiar, causa dor, mágoa e ressentimentos. Ressentimentos
contra a sociedade, contra a vida, contra os patrões latifundiários.
A falta de trabalho no campo, local que garantiria o mínimo de condições de
sobrevivência aos trabalhadores rurais, é também expressão de uma modernização que
35
priorizou a plantação de produtos como soja, milho e cana-de-açúcar e à criação de bois,
em detrimento dos produtos alimentícios.
A partir dos anos de 1970, a pecuária – uma das atividades econômicas do
Estado desde seu período colonial – fortaleceu-se com a instalação de empresas frigoríficas
na região, com o barateamento do transporte e com a possibilidade de preparo da carne
bovina para a exportação. Segundo os censos agropecuários, entre os anos de 1975 e 1995,
houve um aumento de mais de 120% no número de cabeças de gado, enquanto a área
destinada à pastagem subiu de pouco mais de cinco milhões de ha para mais de 15 milhões
de ha.
Em 1995, o Estado possuía 31 milhões de ha de área rural, dos quais apenas
1.383 milhão de ha (4,47%) era destinado à produção agrícola, e nestes, em sua maioria,
eram cultivados grãos para exportação, enquanto mais de 21 milhões de ha (70%) eram
ocupados com pastagens destinadas à criação de gado de corte9. O declínio da área
destinada à produção agrícola está relacionado a queda do número de pequenas
propriedades, o que trás como conseqüência a redução de culturas tradicionalmente
camponesas.
Tabela 2: Censos agropecuários de 1975, 1980, 1985 e 1995-1996 - MS
Condição do produtor, utilização das terras, e tratores 1975 1980 1985 1996
-1995 Estabelecimentos 57.853 47.943 54.631 49.423 Proprietário* 32.276 33.147 38.485 41.395 Arrendatário** 8.945 5.719 6.511 2.874 Parceiro*** 5.904 3.114 2.745 458 Ocupante**** 10.728 5.963 6.890 4.696 Lavoura Permanente (ha) 65.912 52.526 28.501 16.215 Lavoura temporária(ha) 1.208,715 1.589,475 1.847,459 1.367,496 Pastagem natural(ha) 15.580,241 12.266,007 9.658,224 6.082,778 Pastagem plantadas (ha) 5.213,256 9.068,931 12.144,529 15.727,930 Produtivas não utilizadas (ha) 1.063,020 839.809 583.530 403.943 Área total (ha) 28.692,584 30.743,739 31.108,815 30.942,772 Tratores 12.291 23.162 31.076 36.387 * próprias (inclusive por usufruto e foro) **arrendadas (mediante pagamento em quantia fixa em dinheiro ou cota-parte da produção)***parceiros (mediante pagamento de parte da produção obtida - meia, terça, quarta); **** ocupadas (ocupadas a título gratuito, com ou sem consentimento do proprietário). Tabela 2 – Fonte: IBGE, Censos Agropecuários.
9Segundo dados da Secretaria de Estado de Receita e Controle/MS a pecuária é responsável por apenas 8,6% do ICMS arrecadado no estado anualmente (ALMEIDA, 2003, p. 118).
36
Pelos dados apresentados, vê-se que o número de estabelecimentos rurais caiu
de 57.853 mil para pouco mais de 49 mil entre os anos de 1975 a 1995, considerando,
ainda, que a área rural ocupada em 1975 era inferior à área ocupada em 1995. A análise
desses dados revela as dificuldades de manutenção e estruturação da pequena propriedade.
O avanço das empresas rurais subsidiadas por incentivos fiscais e financiamentos
governamentais dificultou a manutenção da vida como colono, cujo sistema de produção é
caracterizado por pouca ou nenhuma mecanização e baseado na mão-de-obra familiar.
Os relatos em que o “sitinho” da família já não podia sustentar a todos são
histórias comuns entre os trabalhadores rurais sem-terra. A falta de terras onde trabalhar
faz com que muitos trabalhadores do campo se dirijam às cidades ou aos trabalhos diários
em terras de terceiros. É o que se evidencia no relato do assentado Celso, que com a
pequena criação de gado que seu pai mantinha, não lhe restava trabalho no sítio, a
alternativa foi sair de casa para trabalhos diários e de empreitas em outras terras:
Trabalhava na lavora, né? De diarista. Roça a gente... O sitinho do meu pai era pequeno, e ele gostava de criar gado, aí não tinha nem aonde ou trabalhar. Então, meu negócio era sair pro... pegar empreita de rancar mandioca, esses coisas. Vivia assim, meio alongadão assim (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Viver “alongado” em terras de outrem era a forma do senhor Celso se sustentar
diante da dificuldade da família. A migração temporária é a saída encontrada por muitos
trabalhadores rurais quando a pequena propriedade já não consegue produzir o suficiente
para o sustento familiar. Segundo Martins, a migração temporária é muito comum entre
filhos de pequenos proprietários, arrendatários, posseiros ou parceiros, que aproveitam
períodos de entressafra em suas lavouras para trabalhar em culturas diferentes para outros
produtores (1986, p. 47-48).
Esse também é o caso do senhor Antônio, que com mais nove irmãos, sentiu a
dificuldade de subsidência nas terras arrendadas em que viveu com seus familiares por
dezoito anos:
Na região onde eu morava sempre fomos arrendatário, né? Sempre trabalhei com meu pai, minha mãe e os nove irmão meu. Aí foram casando eles e nós continuamos tocando arrendamento. Onde? Em Naviraí. Aí trabalhamos dezoito anos numa área lá. E depois... nós tocava roça e sobrava mão-de-obra, entendeu? Foi ficando ruim de serviço, ruim, ruim, e as vez tinha que andar quatro, cinco, km pra pegar uma diária de serviço na época (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
A falta de trabalho, que muitas vezes expulsa filhos de pequenos proprietários
da terra, também os obriga, em muitos casos, após o casamento, a permanecerem vivendo
como agregados no sítio dos pais, situação que logo se torna inviável, já que, com o
37
nascimento dos netos, a renda da pequena propriedade se torna insuficiente para a
sobrevivência de todos. Essa é a situação apresentada no depoimento de dona Rosana, que
hoje é assentada, mas que após o casamento, viveu com seu esposo no sítio do pai e diante
das dificuldades financeiras, mudou-se com a família para as terras do sogro, onde
novamente passaram a viver de favores e com muita dificuldade:
Olha, eu e meu marido mesmo, não tínhamos renda nenhuma, e no caso era minha sogra que recebia o leite e daí ela que fazia compra, a gente tava assim... comendo lá... Que antes eu morava junto com meu pai, e meu pai também não tinha renda nenhuma, que ele mexia só com lavoura não tinha gado. Nós sofremos bastante, nós fomos assim, uma família muito humilde, com muita dificuldade, na casa do meu pai... (ROSANA, Entrevista, 10.10.2005).
O mesmo é evidenciado na fala de uma outra assentada, Leonice, que na
iminência de ter que deixar a casa dos pais, descarta a possibilidade de vida na cidade e
decide lutar por um pedaço de terra:
Meus pais era assentado na Gleba Nova Esperança, município de Jatei, perto de Novo Horizonte. Antes de eu entrá pra luta eu morava com meus pais lá. Aí eu vi que a terra não deu, que eu tava crescendo e precisava de terra e queira ou não, amanhã ou depois eu ia construir uma família, tinha que lutar por mim (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Os relatos de pobreza em que viviam na pequena propriedade dos pais, da
terras de arrendamento que estavam cada dia mais limitadas, e até mesmo da dificuldade
em encontrar trabalho diário em outras lavouras, são lembranças presentes na memória dos
sujeitos inseridos nos processos de mobilizações sociais. É sabido, no entanto, que não se
trata de casos isolados, mas que essa conjuntura faz parte de um processo histórico do qual
a força de trabalho humana fora substituída pela mecanização. Entre os anos de 1975 a
1995, o número de tratores dos campos sul-mato-grossenses subiu em quase 300% e eles,
segundo Queiroz, estavam concentrados em apenas 30% dos estabelecimentos rurais do
Estado (1998, p. 34).
Outros dados estatísticos permitem aferir tais situações. Com exceção dos
proprietários, todas as categorias de formas de apropriação da terra apresentam queda ao
longo dos anos; as terras para arrendamento e trabalho em regime de parceira são reduzidas
consideravelmente, assim como o número de trabalhadores empregados no campo. Essas
são realidades facilmente perceptíveis nas histórias de vida narradas por trabalhadores
acampados e trabalhadores rurais assentados por processos de mobilização social.
Dona Teresinha, que também vivenciou o processo de luta pela terra e hoje
encontra-se assentada, fala de como viveu a vida toda em terras arrendadas, mas que
chegou um momento em que “o pessoal não queria mais arrendar”. A perspectiva de
38
permanência no campo foi sendo sorrateiramente destruída, uma vez que as pastagens se
formavam e a mecanização passou a possibilitar um aumento ainda maior da área cultivada
pelos grandes fazendeiros:
Nós trabalhávamos de arrendatário, era arrendatário, a gente arrendava um pedacinho de terra pra tocar. Né? Que sempre a gente gostou de lavoura, de roça, aí a gente foi trabalhando, trabalhando e chegou uma data que as crianças ficaram no ponto de estudar um estudo mais avançado, a gente não conseguiu mais morar no sítio também por falta de terra pra arrendar. O pessoal já não queria mais ta arrendando (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).
A falta de emprego no campo, associada à inexistência de pequenas
propriedades para arrendamento, forçou um processo de êxodo do campo para a cidade.
Em 1960, mais da metade da população do estado (58,24%) residia na zona rural, ao passo
que em três décadas e meia, essa população representa apenas 16,78%, contra 84,08% da
urbana (ver tabela 1). Esses números assumem dimensões ainda mais agravantes se
considerarmos que as últimas décadas do século XX foram momentos de extrema
seletividade do mercado de trabalho, especialmente os anos de 1990, com a inserção
política neoliberal e uma maior automação do trabalho.
A dificuldade em ter que viver na cidade sendo “bicho do mato” (na expressão
do senhor Antônio, um desses personagens) fez com que muitos desses sujeitos se
submetessem ao trabalho esporádico nas zonas rurais (bóias-frias), tarefa caracterizada
pela exploração do trabalho, sem nenhum vínculo empregatício e direitos trabalhistas.
Dona Teresinha fala das dificuldades que passou com a família ao se mudar para a cidade,
quando não mais conseguiram terras para arrendamento:
A gente passou a... mudou pra cidade. Aí fomos trabalhar em serraria, de serraria meu esposo arrumou um serviço na cidade, e eu sempre trabalhei de doméstica, depois de doméstica trabalhei num clube de danças. [...] e meu esposo sempre desempregado, porque ele não tem nenhum grau de escolaridade, ele mal assina o nome dele. Não tem estudo e foi difícil o serviço pra ele. Enquanto tinha serviço de serraria, essas coisas, tinha até emprego pra ele, depois passou a viver de bóia-fria. Aí, trabalhava um dia, passava uma semana sem trabalhar, o dia que chovia não tinha serviço. E aí a vida foi ficando cada vez mais complicada (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).
O aumento do êxodo rural para as cidades é expressão de um processo de
expropriação vivido por esses sujeitos, que, expulsos do campo, passam a exercer as mais
degradantes tarefas. Diante da situação à qual estão expostos nas cidades, esses sujeitos são
facilmente aliciados a exercerem trabalhos caracterizados pela precarização e degradação
do homem, entre elas, atividades em serrarias, usinas e carvoarias.
O campo foi o lugar em que muitos trabalharam grande parte da vida, muitas
vezes reproduzindo a vida e os valores camponeses herdados dos pais. Trata-se do espaço
39
em que aprenderam a viver e a trabalhar e que, em decorrência de processos alheios as suas
vontades, são obrigados a deixar:
[...] Resta-lhes a cidade, lugar que não tem a sua marca, não trás suas histórias de vida, cujo espaço não foi por eles e nem para eles construído. Resta-lhes, também, a força de trabalho, acompanhada, porém, de uma inexperiência que muitas vezes leva-os a executar tarefas “sobrantes”. São sobrantes neste sistema capitalista, que vai acumulando tudo, destruindo a vida, alastrando a fome e a miséria (FARIAS, 1997, p. 100) [Aspas no original].
Dona Lurdes, que a oito anos vê o marido na espera por um lote de terras, fala
ressentida de como gostaria de que essas terras já tivessem saído para poder levar o filho
para o campo. Dona Lurdes conta que criou os filhos na roça, trabalhavam de arrendatários
em Naviraí, quando já não conseguiram mais arrendar terras para trabalhar, o esposo
passou a cultivar lavoura em uma ilha do rio Paraná, de onde saiu para acampar. Eu fui criada na fazenda, criei meus filho até uns bons anos na fazenda, longe das violência, né? Até poco que eu tinha meu rapaz solteiro que tava dentro de casa aí, eu tinha muuuita vontade que saísse essas terras, mais rápido, ligero possível, menina, pra nois i embora pro sítio [...] Criei meus filho no sítio. Arrendamento. Nos moremo em Naviraí, num arrendamento do japonês, lá. Era muito bom. A gente trabalhava pro outros mais tinha sempre feijão, arroz... (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
O que se pode inferir das entrevistas coletadas é o medo em relação aos riscos
que a cidade oferece, como por exemplo, as drogas, a bebida e o aliciamento à
marginalidade. São sentimentos que se misturam ao desejo de educação escolar para os
filhos, o qual se torna ainda mais difícil na zona rural. Para aquele sujeito que não tem
mais possibilidade de trabalho no campo, resta-lhe não a cidade como um todo, mas a
periferia dela, as favelas, os subúrbios.
O processo de êxodo rural marca também a formação, no estado de Mato
Grosso do Sul, de um contingente de trabalhadores que, sem alternativa de emprego,
passaram a efetuar trabalhos diários e temporários em fazendas, sem vínculo empregatício,
os chamados bóias-frias. Segundo Silva, essa categoria de trabalhadores teve sua gênese na
década de 1970, especialmente a partir da Lei nº 6.019, de 1978, que legitimou a definição
de empregado rural e definiu como trabalho eventual, sem nenhum direito trabalhista,
aquele com duração de menos de 90 dias:
Surge o "bóia-fria", trabalhador volante, eventual, banido da legislação. O "bóia-fria" é duplamente negado, enquanto trabalhador permanente e enquanto possuidor de direitos. Negam-lhe até o direito de ser trabalhador. Imprimem-lhe a nominação de "bóia-fria", sentida como vergonha, humilhação, tal como as frases em epígrafe demonstram. Arrancam-lhe não só a roça, os animais, os instrumentos de trabalho. Desenraízam-no. Retiram-lhe, sobretudo, a identidade cultural, negando-lhe a condição de trabalhador (SILVA, 1999, p. 66) [Aspas no original].
40
As transformações das relações sociais, trabalhistas e culturais com a terra foi
um processo que gerou uma população sobrante, “os descartes”, segundo a expressão de
Martins (2003); além dos bóias-frias transformou também parte dessa população de
trabalhadores rurais em desempregados, andarilhos, peões-do-trecho, processo chamado
por Silva de “processo de acumulação primitiva de proletários” (1999, p. 72).
Segundo Queiroz, como expressão desse processo de dizimação do
campesinato no final do século XX, pode-se observar uma multiplicação de favelas nas
periferias de todos os núcleos urbanos de maior importância do Estado (1998, p. 38). O
crescimento populacional que o estado de Mato Grosso do Sul apresentou nas últimas três
décadas do século XX direcionou-se, sobretudo, às áreas urbanas, que, sem ofertas de
empregos e serviços sociais que atendessem a essas demandas, gerou uma multidão de
trabalhadores subempregados, com dificuldades de acesso a direitos fundamentais, como
saúde e educação, por exemplo.
Dona Teresinha, um desses tantos personagens, continua a descrever sua
história, agora não mais como arrendatária, mas como sujeito marginalizado no meio
urbano. O repúdio à favela e ao espaço urbano desnuda uma vida baseada em valores
tipicamente camponeses, é como se ela não se sentisse parte daquele todo. O sonho de
liberdade é contraposto às drogas, à bebida alcoólica, à criminalidade, enquanto o ideal de
uma vida farta é limitado pela fome e pelo desemprego:
Nós morava numa favela, que até hoje ainda tem a favela lá no município de Ivinhema. Então, a gente começou a se ver... não encontrava mais uma diária, não tinha mais serviço, e as pessoas começaram a passar fome. [...] que na cidade eu num tinha como dar liberdade pro meus filhos, a gente morava numa favela, você sabe, você sai daqui... daqui... daqui até a dez metros, 15 metros, lá na frente tem um oferecendo droga, tem um oferecendo coisa ao roubo, convidado pra roubar. Você sabe que em favela tem essas coisas, oferecendo um cigarro, oferecendo uma cachaça (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).
Também revelando a opção pela vida no campo, outra entrevistada discute as
dificuldades econômicas que trabalhadores do campo enfrentam ao saírem do sítio para
viver nos centros urbanos:
[...] hoje em dia tanto na cidade quanto no campo ta difícil, né? Mas pra quem é acostumado a trabalhar na roça, na área rural, e vem pra cidade, é uma diferença muito grande, né? Por que na cidade tudo você tem que comprar, no sítio a gente tem essa vantagem que a gente pode produzir, né? É melhor você te um salário lá no sítio do que você te três aqui na cidade (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
São dificuldades não só financeiras, mas que envolvem questões simbólicas,
como a de conviver com a falta de produtos que poderiam estar produzindo; situações que
não raro causam desconforto e frustração. Essas lembranças são também carregadas de
41
idealizações do passado, quando as dificuldades do presente são postas como empecilho, o
passado se mostra mais doce.
A falta de trabalho na cidade e o problema habitacional são grandes
preocupações da vida de dona Lurdes. Consciente de que políticas públicas deveriam
buscar soluções para os problemas sociais do país, dona Lurdes chama a atenção para a
falta de trabalho e de habitação enfrentadas nos centros urbanos por trabalhadores pobres:
Eu gostaria muito que o governo tomasse uma decisão sobre isso aí. Você procura uma cada de aluguel na cidade você não acha, você caça serviço na cidade você não acha. Até uma lavação de roupa é difícil na cidade. Se você mora em cima do que é da gente, se é 4 alqueires, 6 alqueires, mais sabe que é da gente. Você vai mora ali, ninguém nunca vai dize que você vai te que pagar o aluguel hoje, né? Ou vai te que saí porque não pagou o mês passado (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Para muitos trabalhadores rurais, a luta pela manutenção da vida na terra foi, ao
longo de suas histórias, sendo sorrateiramente destruída. Viver fora do campo, “sem terra”,
desempregados, tendo que se voltar ao trabalho esporádico nas lavouras, morar nos
subúrbios, e sobretudo, viver com a falta de trabalho e de moradia, são fatores que levaram
muitos trabalhadores a lançarem-se na luta pela terra em busca da recriação de suas
histórias.
Os quadros estatísticos, mesmo que sumariamente, apresentam os efeitos dessa
transformação, não só com relação à questão agrária e agrícola, mas da própria relação
entre o homem, a terra e o trabalho. Associado à expansão da pecuária, à mecanização
agrícola, ao fechamento de terras para arrendamento e as crescentes correntes migratórias
desencadeadas desde meados do século XX, temos em fins do século e início do século
XXI a emergência das mobilizações sociais de luta pela terra no estado de Mato Grosso do
Sul.
1.2 Em busca de um lugar
Minha vida é andar Por esse país
Pra ver se um dia Descanso feliz
Guardando as recordações Das terras por onde passei
Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei.
(Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil)
42
Eu tava cansado, né? Com 40 e pouco anos, que tava cansado de ficar andando e não ter nada pra mim. Eu falei: “Eu vou arrumar um local pra mim fixar. Fixar ter minha moradia”. Por que eu nem sabia onde eu morava, de repente eu tava aqui, de repente eu tava lá (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
O sul do Estado de Mato Grosso do Sul é uma região onde as especificidades
fronteiriças são marcadas pela mobilidade dos sujeitos sociais, em especial, entre três
espaços: Paraguai, o oeste do Paraná e o sul de Mato Grosso do Sul. A busca por um
pedaço de chão onde se firmar é o caminho tecido por muitos trabalhadores que se vêem
sem alternativa de trabalho em sua terra de origem. A insistência na vida como trabalhador
rural e a necessidade de sobrevivência exigem constante mobilidade na busca por novas
terras, novas empreitas e novas áreas de arrendamento. Entre os trabalhadores rurais sem-
terra envolvidos em mobilizações sociais, as referências à migração são histórias que se
repetem.
Os trabalhadores rurais sem-terra acampados, ou ex-acampados, no sul de
Mato Grosso do Sul, destinaram-se às ocupações de terra a partir desses três espaços (Mato
Grosso do Sul, oeste paranaense e Paraguai), mas esses sujeitos têm origens diversas: o
Paraná como um todo, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e o nordeste brasileiro são
as referências mais comuns.
Uma das principais características da frente de ocupação, vivenciada no Estado
de Mato Grosso do Sul nos anos de 1960 e 1970, foi a concentração agrária, que acabou
trazendo a necessidade de reprodução da classe trabalhadora rural sem lhe permitir o
acesso a terra, uma vez que esses trabalhadores não eram proprietários, e sim arrendatários,
meeiros, peões10 que tiveram acesso limitado à terra (FABRINI, 1995, p. 72).
A colonização dirigida, desenvolvida a partir dos anos de 1970, concedia
grandes glebas de terra à empresas privadas, sob créditos subsidiados a juros irrisórios,
incentivando a formação de grandes empresas rurais na fronteira. Assim, ao mesmo tempo
em que essas empresas necessitavam de mão-de-obra de trabalhadores rurais, elas
cercaram as terras, dificultando a existência de pequenas propriedades. Como
conseqüência desse processo de modernização conservadora no campo, vê-se uma
transformação nas relações de trabalho e na própria relação do homem com a terra.
10 Definição usual para a pessoa que lida com gado, mas que se generalizou para todos os empregados por empreitada (ALBANEZ, 2003, p. 151).
43
Foi, portanto, esse quadro de expansão do capital e de busca de mão-de-obra
que viesse a suprir as necessidades da grande empresa rural, que impulsinou à vinda de
trabalhadores sem-terra ao estado de Mato Grosso do Sul. Homens que foram usados na
limpeza das fazendas, peões, arrendatários, meeiros, e que logo se viram sem alternativa de
trabalho. Famílias pobres que buscavam uma terra para se firmar e que novamente as
circunstâncias lhes faziam migrar de uma terra a outra.
Segundo Roesler e Cesconeto “as migrações dizem respeito a um fenômeno
universal” e é também um fenômeno estrutural, fruto de uma sociedade de fronteiras cada
vez mais franqueadas e “das estruturas de pobreza e violência mantidas ou criadas por essa
nossa sociedade”. O impulso às migrações está relacionado a estratégias de
desenvolvimento, assim como a uma expectativa de melhores condições de trabalho e a
busca pela manutenção de um determinado modo de vida (2004, p. 1-2).
Os impulsos migratórios que lato sensu estão relacionados a questões
econômicas e políticas, são também, visto a partir de cada família, causadores de uma
degradação sócio-cultural. Segundo Martins, as migrações não acontecem sem efeitos
devastadores na vida desses sujeitos; laços de amizades, parentescos e uma vida de
sociabilidades são rompidos. Além de evidenciar dificuldades de sobrevivência nas áreas
de origem, esses processos impõem ao sujeito uma “vida nômade”, o que empobrece sua
vida social (1997, p. 42).
Entre trabalhadores rurais sem-terra acampados no sul de Mato Grosso do Sul,
e muitos trabalhadores já assentados em decorrência de processos de mobilização social,
são comuns as histórias de migrações, em especial a referência ao estado do Paraná. A
ocupação da fronteira pioneira no Estado do Paraná ocorreu sob a concessão de grandes
glebas de terras em áreas pouco povoadas, favorecendo o fortalecimento de grandes
empresas estrangeiras que exploraram de forma predatória as matas e os ervais nativos.
Esse processo colonizador, subsidiado e intermediado pelo Estado, dificultou uma
distribuição de terras a colonos que possibilitassem a formação de pequenas propriedades
(FOWERAKER, 1982, p. 66-67)11.
Corroborando esse modelo centralizador de colonização, a modernização
agrícola de idos dos anos 1970 acelerou o processo de êxodo rural dessas áreas,
direcionando-as às fronteiras agrícolas do Brasil. No contexto específico desta discussão, 11 De acordo com dados do Censo Demográfico, no Estado do Paraná a população rural residente caiu de 4.425.490 pessoas para 2.440.000, no período de 1970-1995, o que significa um decréscimo de 45%, quase a metade da população rural (SILVA, 1999, p. 69).
44
esse processo gerou uma migração de trabalhadores rurais do oeste do Paraná ao sul de
Mato Grosso do Sul e também ao Paraguai. Esse curso migratório é também evidente nos
relatos analisados:
Eu nasci em Paranavaí no Paraná, e de Paranavaí mudei pra Ivinhema, fica aqui próximo, pra lá de Naviraí, e de lá que eu vim pra ocupação aqui em Itaquiraí (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).
Eu nasci em Ubirajara, no Estado de São Paulo. De lá eu vim para o Paraguai, fiquei um tempo no Paraguai, daí a gente veio pra cá. No Paraguai eu morei 22 anos, depois vim pra cá (ANTÔNIO, Entrevista,11.10.06).
Outra entrevistada, ao ser indagada sobre onde nasceu e onde viveu até chegar
a Mato Grosso do Sul, pára, pensa e responde com exclamação: “Vichi! Eu nasci em
Minas Gerais. De lá viemos pro Paraná, né? E do Paraná viemos pro Mato Grosso” [do
Sul] (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005). Já dona Eleonora, sem saber precisar por quantos
lugares passou até se mudar para o acampamento Laguna Peru, diz que “Vim vindo, vindo
e vim pra cá. Nasci no Rio Visita no Estado do Paraná. De lá eu vim, vindo e vim pra...”
(Eleonora, Entrevista, 11.10.06).
Assim como nos relatos proferidos, as histórias de migração e desenraizamento
são histórias que se repetem e que marcam um processo histórico que ocorre de forma
acentuada no Brasil: o direcionamento de correntes migratórias por incentivos
governamentais.
A recordação de Dona Eleonora de que “veio vindo” até chegar ao
acampamento onde mora, na BR-163 estrada que liga o município de Itaquiraí a Eldorado,
revela a vida nômade levada por esses sujeitos, que muitas vezes limita-os até mesmo de
saber por quantas cidades passaram para chegar até onde estão, situação que revela a
degradação da vida social e cultural que marca a vida e a memória desses sujeitos.
Na luta pela sobrevivência muitos desses trabalhadores passaram a peregrinar
na busca por terra e trabalho. É o caso do senhor Dércio, que veio a Mato Grosso do Sul a
procura de trabalho e logo se integrou a processos de mobilização de luta pela terra.
Acampado há nove anos na beira da estrada, esperando um pedaço de terra, senhor Dércio
relembra da falta de trabalho no Paraná, onde as fazendas se formaram primeiro, o que fez
com que deixasse o sítio dos pais após o casamento e se remetesse às terras sul-mato-
grossenses:
Eu nasci na região de Umuarama, em Alto Paraíso, aqui no Paraná, aqui. Aí trabalhei muito tempo lá, trabalhei em torno de uns 20 ano, mais ou menos. Com sete ano eu comecei trabalhar. Aí fomo trabalhando, aí vimo que não dava, né?
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tava solto de serviço, e tal. Morava no sítio [...] Aí em 90 (eu casei em 89), aí em 90 nós veio aqui pro Mato Grosso. [...] (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).
“Tava solto de serviço”. Com essa expressão o senhor Dércio traduz o
esgotamento do trabalho como diarista e bóia-fria no estado do Paraná, situação também
vivenciada, anos depois, pelos trabalhadores rurais de Mato Grosso do Sul, como
expressão do processo de modernização conservadora do campo, quando muitos
fazendeiros absenteístas foram incentivados a transformar seus latifúndios em grandes
empresas rurais.
É historicamente conhecida no Estado de Mato Grosso do Sul e nas regiões
vizinhas, uma forma de parceria em que o proprietário legal da terra a concede a outra
pessoa, por um período de aproximadamente três anos, para derrubada das matas e abertura
de pastagens, uma forma do proprietário capitalista abrir sua fazenda sem grandes
investimentos econômicos. Sabe-se que essa foi uma prática largamente utilizada nessa
região. Uma atividade que desvincula o homem da terra, uma vez que sua permanência
nela é temporária e passageira, já que dentro de três a cinco anos essas famílias são
obrigadas a buscar novas terras para desmatarem e destocarem. Essa foi uma tarefa
realizada também por peões imigrantes paraguaios, que passaram a se dedicar ao trabalho
temporário com o fim da atividade ervateira, e ainda realizada por famílias pobres oriundas
do estado de São Paulo, Paraná e do nordeste brasileiro.
Além da referência ao Paraná e ao interior de São Paulo, destaca-se também a
presença de nordestinos que, principalmente a partir dos anos de 1940, são incentivados
por projetos de colonização a migrarem rumo ao sul do país. Esses colonos atendiam a
demanda de força de trabalho necessária à reprodução do latifúndio. Antes de chegarem ao
atual estado de Mato Grosso do Sul, grande parte desses migrantes tiveram experiências de
trabalhos em estados como Minas Gerais, São Paulo e Paraná.
Segundo Albanez, um grande contingente de retirantes nordestinos, após
trabalharem em terras paulistas e paranaenses, acomodava-se em áreas ribeirinhas do Rio
Paraná e logo atravessava o rio para se alojar em terras sul-mato-grossenses (2003, p. 49).
Esse processo migratório também é evidenciado por outros autores:
Dos anos de 1930, em diante, a origem dos trabalhadores que se destinavam aos campos do Pontal do Paranapanema amplia-se para outras regiões, divisas com o Pontal do Paranapanema, como o sul do antigo Mato Grosso e o Paraná, bem como por trabalhadores oriundos do Nordeste, especialmente nos anos 50 e 60, expulsos pelas condições de vida e de trabalho em sua terra natal, atraídos, então, pelos novos arrendamentos e pela estrada de ferro que viria a cortar as reservas naturais da região (BORGES, 2004, p. 84).
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Na busca por um pedaço de terra, esses trabalhadores defrontaram-se com uma
estrutura agrária latifundiária e passaram a exercer trabalho como pequenos arrendatários,
em regime de parceria nas derrubadas das matas, como peões e como meeiros em terras de
terceiros. Não tardaria para que muitos desses trabalhadores se tornassem bóias-frias ou
passassem a viver subempregados nas periferias das cidades.
Esse foi o trajeto feito pelo senhor Lídio, nordestino que deixou a Bahia aos 13
anos de idade para trabalhar na estrada de ferro que ligaria os estados de Minas Gerais e
Bahia. De Minas, mudou-se para Campo Mourão, no Paraná, onde passou a cultivar café
em terras de terceiros, de onde, novamente, transferiu-se, desta vez, à vizinha república do
Paraguai:
E a final vim pra estrada de ferro, tava construindo a estrada de ferro que ligava o estado da Bahia a Minas Gerais, aí eu vim pra estrada de ferro, comecei trabalhar ali e tal [...] Naquele tempo a gente não alvejava muito, não pensava muito o futuro. Como ia se o nosso futuro, né? Então era só no serviço pesado, só no pesado, direto. Aí quando foi... eu fui pra Campo Mourão e peguei um café pra toca e o patrão me explorou demais da conta. Eu já vinha muito revoltado... aí então, isso foi em 56, 57, por aí sabe? Aí o camarada me deu um tombo miserável. Eu toquei a demanda 4 anos, com toda razão, com testemunha e tudo e no fim de quatro anos eu perdi a demanda. Aí eu me revoltei com a situação. Aquele tempo era o tempo do colonato, sabe? O pessoal trabalhava de colono nas fazenda e ali era uma verdadeira escravidão, né? (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).
Ao narrar sua história de idas e vindas, o senhor Lídio se assemelha a milhares
de nordestinos, retirantes, que antes de chegarem ao atual estado de Mato Grosso do Sul
trilharam uma história de lutas pela sobrevivência em outros estados. O desenraizamento
vivido por seu Lídio explicita um movimento histórico vivido pelos pobres em busca de
terra, trabalho e dignidade.
Além dos trabalhadores que viveram os cursos migratórios das frentes de
ocupação de idos dos anos 1970, destaca-se também entre os trabalhadores rurais sem-terra
inseridos em processos de mobilização social do sul de Mato Grosso Sul, um contingente
de trabalhadores com experiência de trabalho no Paraná, paranaenses ou não, que migrou
ao Mato Grosso do Sul já a partir da década de 1990, para se inserirem nas mobilizações
sociais de luta pela terra.
Com um número relativamente considerável de assentamentos rurais, e uma
forte organização em torno da luta pela terra, o sul de Mato Grosso do sul acabou se
tornando referência de luta pela terra nas regiões vizinhas, o que vem atraindo esses
trabalhadores.
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Ah, nós resolvemo vim pra cá, porque todo mundo falando né? Que as vezes tando aqui nós consegue um pedaço de terra né? Pra gente trabalha. Que a gente que tem essa filharada precisa mesmo né? Algo de bom a gente precisa (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
Porque nós resolvimo vim? Porque já tinha uns que era colega nosso, já tinham vindo antes, né? Daí depois, eles pegaram e... daí começaram falar que era bem melhor a gente vim pra cá e daí foi onde que nóis viemo vindo tamém, e tamo até o dia de hoje aqui (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Com a indicação de um amigo, de um vizinho, ou mesmo de uma vaga notícia
que corre sem referências e sem nenhuma concretude, esses sujeitos se deslocam de uma
região à outra em busca de “algo de bom”. Essa esperança que brota tão vagamente é
reveladora de uma incerteza na vida, desnuda uma situação social de marginalidade e de
desesperança de construção da vida por outros meios.
Pode-se dizer que o processo de atração de trabalhadores rurais sem terra para o
extremo sul do estado de Mato Grosso do Sul não aconteceu somente em decorrência das
correntes migratórias de idos dos anos de 1940, com as colônias agrícolas, nem mesmo
com o processo de abertura das grandes propriedades a partir dos anos de 1970. O que se
pode inferir das pesquisas realizadas nos acampamentos rurais localizados no extremo sul
do estado, é que o curso migratório de trabalhadores pobres paranaenses, ou que já tiveram
experiência de trabalho no Paraná, mantém-se forte nos anos de 1990. Incentivados pelos
projetos de assentamento desenvolvidos no Estado de Mato Grosso do Sul, esses sujeitos,
vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes, diante da falta de
perspectiva em suas terras de origem, direcionam-se ao Estado já com o propósito de
inserir-se em um movimento social de luta pela terra.
1.3 Um cenário anunciado: os brasiguaios e os atingidos por barragens
Como a gente é brasileiro, né? A gente queria que a filha da gente estudasse a nossa língua, o português, e também é muito difícil você vive em outro país, né? Você mora lá, vive lá, mas não é de lá, né? Isso é difícil. Então, cada um tem que vive no seu país, senão parece que você não existe né? (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2005).
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O sul de Mato Grosso do Sul é um espaço geográfico que figura como palco de
outras questões sociais bastante específicas, como, por exemplo, o fenômeno dos
brasiguaios12 e os grupos de ribeirinhos e ilhéus atingidos pelas barragens construídas ao
longo do Rio Paraná, sem discutir, no entanto, a questão indígena que também compõe
esse cenário de conflitos sociais13. Fatores como os que levaram esses brasileiros a
emigrarem ao Paraguai, e seu posterior retorno, assim como a mobilidade forçada de
ribeirinhos e ilhéus para construção de barragens, são fatores preponderantes para
compreender as histórias de vida dos trabalhadores sem-terra analisados, já que muitos
mencionam essas experiências ao longo de suas vidas.
O processo de modernização agrícola em terras já colonizadas por processos
migratórios anteriores e o deslocamentos de ribeirinhos para a construção de barragens
para usinas hidrelétricas, em especial Binacional Itaipu, impulsionaram a emigração de
milhares de colonos do sul do país à fronteira agrícola do Paraguai. Atraídos, ainda, pelo
baixo preço das terras e pela política desenvolvida pelos governos do Brasil e do Paraguai,
milhares de colonos despossuídos, que tinham como meio de sustento apenas sua força de
trabalho e também pequenos proprietários, buscaram uma alternativa de sobrevivência no
Paraguai. São homens e mulheres que, expropriados e expatriados, emigram em busca de
um pedaço de terra, habitualmente conhecidos como brasiguaios14.
Como expressão de políticas desenvolvidas pelo governo brasileiro e
paraguaio; em princípio representado pelos governos autoritários de Emílio Garrastuza
Médici e Alfredo Strossner; esses sujeitos são levados a peregrinarem em busca de terra e
de trabalho. Esse desenraizamento ocasionou um problema social evidenciado anos depois
com o retorno desses brasileiros.
As dificuldades financeiras e a falta de trabalho associados aos atrativos
oferecidos no país vizinho, como terras a preços muito baixos e a facilidade de conseguir
trabalho no campo, fez insurgir uma perspectiva de prosperidade nesses trabalhadores, o
que impulsionou a emigração. Entre os relatos analisados, a possibilidade de emigração
12 O termo Brasiguaio é usado para denominar trabalhadores rurais brasileiros que passaram a viver e trabalhar na fronteira agrícola paraguaia. Segundo a CPT, “esses sujeitos não são nem brasileiros nem paraguaios, são brasiguaios”. O termo é ainda um tanto contraditório e parece ter surgido a partir do início do retorno massivo desses trabalhadores, na década de1980. 13 Questões específicas relativas ao lago de Itaipu e as sociedades indígenas foram recentemente discutidas por Gisele Deprá: O Lago de Itaipu e a luta dos Avá-Guarani pela terra: Representações na imprensa do Oeste Do Paraná (1976-2000). 14 As informações referentes a questão dos brasiguaios foram pesquisadas junto a um relatório elaborado pela CPT (Relatório histórico da atuação da CPT junto aos trabalhadores rurais sem terra em MS, s/d) a partir da sistematização de dados de atas, cartas, e documentos da entidade. O Relatório não apresenta um número de paginação seqüente.
49
para o Paraguai foi evidenciada a partir de difíceis experiências de vida e trabalho no
Brasil.
A falta de identificação e o sentimento de despertencimento são, talvez, as
maiores dificuldades enfrentadas no país vizinho. Ser reconhecido como o forasteiro, ou o
não ser reconhecido como legítimo sujeito pertencente àquele meio, revela o próprio
conceito de pertencimento que carrega esse sujeito dentro de um espaço geográfico sem
fronteiras visivelmente delimitadas.
Nesse contexto, torna-se importante as consideração de Bourdieu de como o
poder de delimitar fronteiras pode se entendido como um ato mágico, o regere fines, o ato
de “traçar as fronteiras em linhas retas, em separar o interior do exterior, o reino do
sagrado do reino do profano, o território nacional do território estrangeiro, é um ato
religioso”, (1989, p. 114). O ato mágico do qual insurge sentimentos de pertencimento está
ligado às representações mentais que criam as fronteiras e estabelecem diferentes
identidades regionais ou étnicas:
Porque assim é e porque não há sujeito social que possa ignorá-lo praticamente, as propriedades (objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1989, p.112).
Embora esses sujeitos passem por um processo de hibridação cultural, pela
experiência de vida em outro país, fatores como a linguagem, por exemplo, que muitas
vezes é guardada apenas para os momentos íntimos familiares, são fortemente preservados,
isso porque as representações mentais são extremamente fortes, mesmo quando as
fronteiras são transgredidas. Para o senhor Antônio, que havia reconstruído sua vida no
Paraguai, a entrada da filha na escola e o desejo de manter a tradição da língua de origem
foram fatores que determinaram o retorno ao Brasil. “A terra da gente” traduz uma
dicotomia entre a terra dos outros. O Paraguai “era bom”, tinha um “emprego bom”,
viviam bem, mas não era a “terra da gente”, era terra dos outros, onde a gente vive, mora,
mas não existe. É porque no Paraguai nasceu uma... uma única filha que eu tenho, né? Aí quando chegou a hora de por ela na escola então, eu tive que trazer a família pra cá, e aí eu continuei trabalhando sozinho lá, né? Aí chegou um ponto que então a gente teve que volta novamente. A gente como é brasileiro a gente queria que ela estudasse a língua da gente, né? O Português. Então foi isso que aconteceu, a gente trouxe pra cá pro Brasil, a terra da gente (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2005).
Ao voltarem ao Brasil, primeiro a mulher e a filha e logo o senhor Antônio,
que ao decidiu voltar a ser visto como gente (conforme sua fala em epígrafe) também teve
50
que fazer a difícil escolha entre o trabalho que tinha no Paraguai e o desemprego no Brasil,
entre a mantença financeira da família ou o convívio com ela. Diante desses antagonismos,
a saída possível ao senhor Antônio foi a inserção nos movimentos sociais de luta pela terra.
Outro assentado brasiguaio, o senhor Lídio, ao ser indagado por que deixou o
Brasil, mostrou rancor e tristeza pelas lembranças do tempo em que trabalhou como colono
escravo no Paraná. Descontente com os “tipos” de reforma agrária que vinha sendo
desenvolvidos no país, e pela “revolta” que passou a cultuar pela exploração da qual foi
exposto como colono no Paraná, a saída possível foi novamente a migração. Depois de
uma história de peregrinação pelo Brasil, emigrou para o Paraguai, onde viveu por 18 anos.
Segundo Batista, os colonos brasileiros passaram a adquirir terras no Paraguai
a baixíssimos preços, mediante contratos de compra e venda. Contudo, cerca de 80% deles
não possuíam título legal das terras, que era expedido apenas pelo Registro Nacional de la
Propriedad, em Assunção. Os títulos concedidos por Departamentos não tinham validade
legal, o que impossibilitava os colonos de ter acesso a créditos bancários e, ainda, fez com
que muitos deles perdessem o pouco de capital que investiram (1990, p. 59).
No Paraguai, esses trabalhadores sofriam todo tipo de exploração. No momento
mais intenso de saída desses brasileiros, o Paraguai vivia sob um controle político e social
antidemocrático, que manteve o ditador Alfredo Stroessner no poder por 35 anos (1954-
1989). Já no início dos anos 1980, a agricultura no Paraguai começou a sofrer um processo
de modernização e expansão das grandes empresas rurais (muitas sob domínio de
brasileiros), processo que havia começado no Brasil anos antes. As dificuldades que
levaram esses brasileiros a emigrarem também se fizeram sentir em terras paraguaias, o
que forçou muitos desses trabalhadores brasileiros a cogitar um possível retorno. A
fronteira, em meados dos anos 1980, tornou-se espaço de luta pela terra e passou a receber
o movimento migratório de retorno dos brasiguaios, particularmente os municípios de
Mundo Novo, Sete Quedas, Naviraí e Eldorado.
O senhor Lídio é um desses personagens. Somente em 1997 voltou ao Brasil,
seguindo o caminho trilhado por muitos outros brasileiros: o retorno dos brasiguaios,
novamente em busca de terras e trabalho:
Eu já vim direto pra qui, Itaquiraí. Quando eu vim do Paraguai foi justamente no acampamento da Oito de Março, foi que eu vim. Já vim já, e acampamos lá. Aí ficamo na luta, né? Defendendo a terra aí com o pessoal, aí (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).
A esperança de voltar ao Brasil se fortaleceu com a criação do Plano Nacional
de Reforma Agrária (PNRA) e o lançamento do primeiro Programa Regional de Reforma
51
Agrária (PRRA), ambos criados em 1985. As novas propostas aguçaram a esperança de um
reordenamento da estrutura agrária nacional, não só nos trabalhadores rurais sem-terra, que
residiam no Brasil, mas também nos trabalhadores brasiguaios.
Segundo o Relatório da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e pelas informações
de Batista (1990), as primeiras tentativas de retorno ao Brasil foram organizadas como
verdadeiras operações de fuga, pois a saída desses trabalhadores era indesejada tanto pelos
fazendeiros, que perderiam grande contingente de mão-de-obra, quanto pela elite política
brasileira, que temiam uma conturbação social com um possível retorno massivo desses
trabalhadores. Em carta redigida pela Comissão dos Brasiguaios e endereçada ao então
Ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Nélson Ribeiro, esse grupo de
trabalhadores dizia temer as forças policiais do Mato Grosso do Sul, que estavam prontas
para agir caso eles ameaçassem atravessar a fronteira.
No lado brasileiro da fronteira, esses trabalhadores puderam contar com a
atuação da CPT e das Comissões de Sem Terra. A problemática vivenciada por esses
trabalhadores já vinha sendo debatida por quase uma década. No ano de 1976, por
exemplo, o retorno de brasileiros vivendo em condições de exploração no Paraguai foi
assunto do Encontro Regional Extremo Oeste da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil), em Dourados. Em 1979 foi realizado um levantamento pela paróquia de Mundo
Novo que alertava a respeito da necessidade de retorno de camponeses brasileiros que
eram explorados e marginalizados no país vizinho.
Esgotados os meios legais de reivindicação de terra junto ao então governador
do Estado, Wilson Barbosa Martins (1983-1986), e ao governo federal, a CPT, juntamente
com a Comissão Estadual de Sem Terra, decide mudar a estratégia de luta e partir para as
ocupações de terra, com o propósito de ganhar visibilidade e chamar a atenção da
sociedade para o problema vivenciado por esses trabalhadores. Com esse intuito, a CPT
reuniu-se com algumas lideranças de brasiguaios em Mundo Novo e juntos resolveram
ocupar áreas de terras devolutas no Estado.
A luta pela terra e pelo retorno ao país de origem fez com que esses sujeitos
organizassem novas formas de mobilização. Os rumos tomados nas negociações com o
Ministro Nelson Ribeiro, que alegou não poder adotar nenhuma atitude enquanto esses
trabalhadores estivessem em terras estrangeiras, corroborou para que esses sujeitos
apelassem para os acampamentos, em terras brasileiras, como tática de luta.
Diante dessa alternativa as lideranças dos brasiguaios mobilizaram-se para realizar uma assembléia em Mundo Novo. Reuniram 680 brasiguaios e
52
decidiram que dentro de trinta dias acampariam naquela cidade para aguardar as providências prometidas pelo Ministro (BATISTA, 1990, p. 109).
Em junho de 1985 acamparam as primeiras famílias de brasiguaios na praça de
Mundo Novo. Em poucas semanas estava montada uma verdadeira cidade de lona15,
agrupando aproximadamente 950 famílias, onde permaneceram até dezembro do mesmo
ano. Com essa mobilização, os sem-terras conseguiram a desapropriação de parte da
fazenda Santa Idalina, no município de Ivinhema, de propriedade da SOMECO (Sociedade
de Melhoramento e Colonização) assentando 770 famílias, projeto denominado
assentamento Novo Horizonte (hoje município de Novo Horizonte do Sul)16.
Em Carta à População, datada de 21.06.1985, os acampados de Mundo Novo
tentaram esclarecer seus objetivos, avaliando as dificuldades enfrentadas ao longo da vida:
Fomos obrigados a ir para o Paraguai. A situação no Brasil era difícil. A terra está nas mãos dos latifundiários. Não arredam porque está cheia de capim ou plantada soja. Os fazendeiros tocam a lavoura com máquinas. Não precisam de mão de obra. Fomos obrigados a deixar a terra natal para não viver como bóia-fria. Imigramos para o Paraguai. Lá não foi nada melhor. A luta foi mais dura e mais uma vez fomos expulsos da terra. Agora, da terra do Paraguai (CPT, 1993).
A cidade de lona montada em Mundo Novo pelos brasiguaios originou outras
lutas e vários acampamentos foram criados por famílias que retornavam do Paraguai. Essas
mobilizações receberam a ajuda conjunta da CPT e da Comissão Estadual de Sem Terra até
1985, momento em que essa comissão tornou-se efetivamente o MST, o qual passou a
assumir o acompanhamento da luta dos brasiguaios.
Inúmeros acampamentos foram montados exclusivamente por famílias de
brasiguaios. Em 1990, segundo o jornal O Progresso, cerca de 1800 brasiguaios
pretendiam cruzar a fronteira na região de Mundo Novo, quando o Serviço de Informação
da Polícia Militar interceptou o movimento a tempo de impedir sua atuação. A ação, após
ser repelida pelos policiais, o grupo direcionou-se à fazenda Urtigão, na rodovia que liga
Tacuru a Sete Quedas, de onde foram expulsos por 50 policiais após um pedido de
reintegração de posse feito pela proprietária (O Progresso, 10.08.1990).
Em 1992 mais de 400 famílias fugiram do Paraguai e montaram um
acampamento em Amambai-MS, exigindo terra para trabalho. Segundo o Relatório da
CPT, a situação de abandono no acampamento era tamanha que havia provocado, até 1993,
a morte de seis crianças. Em abril de 1995 o jornal O Progresso anunciou um bloqueio da 15 Assim ficou conhecido o acampamento de brasiguaios na cidade de Mundo Novo no ano de 1985. Expressão usada por Batista (1990), pela CPT em seus relatórios, e pela imprensa. 16 Essa propriedade já havia sido reivindicada em 1984 por outra mobilização, uma das primeiras organizadas massivamente com o intuito de pressionar a efetivação de projetos de reforma agrária no Estado (processo de luta que será melhor discutido no capítulo II).
53
rodovia MS-265 por essas mesmas famílias, as quais receberam, durante o ato, a promessa
do INCRA de que seriam assentadas no mês seguinte, contudo, somente em junho de 1997
é que essas pessoas foram realmente assentadas, quando somavam tão somente 34 famílias,
das quais cinco não se enquadraram na classificação do INCRA. Das 400 famílias vindas
do Paraguai nesse movimento de 1992, apenas 29 delas foram assentadas, em 1997, na
fazenda Corona, município de Ponta Porã.
O que se constata, porém, é que o processo de retorno desses trabalhadores
continuou por toda a década de 1990. Em grande parte dos acampamentos do sul do Estado
pode-se constatar a presença de pessoas que já tiveram experiência de trabalho no
Paraguai. A exemplo do senhor Lídio, mais de 150 famílias regressam, em 1997, para
participar do acampamento Oito de Março, no município de Itaquiraí, e outras em 1999,
para o acampamento Mambaré, em Mundo Novo.
Somado a isso, o extremo sul de Mato Grosso do Sul também foi cenário de
outro problema social: as centenas de famílias atingidas pelas barragens das usinas
hidrelétricas construídas ao longo do Rio Paraná. Entre elas, a Binacional Itaipu, concluída
em 1984, cujo reservatório abrange desde o Salto de Sete Quedas até a foz do Rio Iguaçu e
a usina hidrelétrica de Porto Primavera (hoje hidrelétrica Engenheiro Sérgio Mota),
concluída em 1998, cuja barragem abrange a região que vai do município de Três Lagoas
ao município de Mundo Novo.
Como expressão de um projeto político e econômico de modernização que teve
início ainda nos anos 1960, essas usinas passaram a desapropriar pequenos proprietários,
atitude que afetou também os pescadores e os oleiros que viviam e/ou trabalhavam às
margens dos rios. Esse fenômeno não está dissociado do fenômeno brasiguaios, uma vez
que muitos desses sujeitos desapropriados pelas barragens buscaram refúgio em terras
paraguaias.
Segundo Deprá, a falta de informação quanto aos deslocamentos de ribeirinhos
foi também marca do processo de construção da Binacional Itaipu; as publicações
jornalísticas privilegiavam assuntos que enaltecessem a magnitude da construção, as
aspirações de modernidade que obra trazia e seus efeitos econômicos em detrimento às
informações de interesse da população ribeirinha que seria expropriada:
Fochezatto acrescenta que, possivelmente, para o poder público quanto mais desinformada estivesse a população, mais fácil seria a sua manipulação. A veiculação de uma propaganda ideológica e o acesso restrito à informação deixou os atingidos à margem do processo de construção da usina e de suas conseqüências junto às questões territoriais [...] (DEPRÁ, 2006, p. 57).
54
Nota-se, no entanto, que o problema de deslocamentos de ribeirinhos não se
findou com o término das construções. No estado de Mato Grosso do Sul, a preocupação
com o deslocamento e as possíveis enchentes causadas pelo aumento de vazão das
hidrelétricas existentes ao longo do rio Paraná, tornou-se uma constante nas décadas de
1980 e 1990. A diminuição dos peixes foi um agravante aos pescadores, assim como a
inundação de terras de argila natural aos oleiros.
Do outro lado do rio, em terras paranaenses, a situação de ribeirinhos e ilhéus
foi ainda mais alarmante. A construção da Binacional Itaipu e outras usinas hidrelétricas ao
longo do rio removeu inúmeras famílias, ocasionado um movimento migratório, em
especial à região lindeira do Paraguai. A emigração que se calculava em 70 mil pessoas,
passou de 300 mil, e embora nem todas fossem de origem rural, a grande maioria se
assentou nas zonas rurais do Paraguai. No lado brasileiro, a construção intensificou o
desenvolvimento regional e tornou-se um fator de atração de correntes migratórias. A
cidade de Foz do Iguaçu, que contava com 33.970 habitantes, em 1970, passou a ter
136.320 habitantes dentro de uma década (ROESLER E CESCONETO, 2004, p. 10).
Com a mesma agilidade que as construções de grandes usinas hidrelétricas
criam empregos, elas também desempregam. Cria-se uma ilusão quanto a possibilidade de
um trabalho, que, logo ao fim das construções, é desfeita, gerando um processo de
atração/expulsão, que faz com que esse trabalhador tenha mais uma vez que se mudar em
busca de trabalho.
A CPT foi um órgão que esteve presente no encaminhamento das discussões de
reassentamentos e/ou indenizações de famílias ribeirinhas e ilhéus, sobretudo da usina
hidrelétrica de Porto Primavera, que por vinte anos ameaçou a população ribeirinha sem
uma proposta consistente e viável de indenizações e reassentamento17. A usina tem a maior
barragem do Brasil, com 2.250 km², superando até mesmo a usina de Itaipu, com 1.350
km². Desde o princípio de sua construção, no início dos anos de 1980, as famílias
ribeirinhas passaram a viver sob a expectativa de uma provável remoção, projeto que só foi
concluído em 1998.
Ainda sem propostas de reassentamento, os moradores das margens do rio
Paraná foram atingidos por uma enchente causada pelo aumento da vazão da represa da
17 A CPT possui um vasto arquivo referente a essa luta, com documentos, relatórios, atas e imagens da destruição feita pelas enchentes. A Comissão sempre prestou apoio a ribeirinhos e ilhéus, reivindicando e cobrando medidas justas, principalmente em contraposição à CESP. Em 1998, a CPT divulgou um documento titulado Verdades e Mentiras de Porto Primavera, em que critica o custo benefício da usina e a forma com que foram conduzidas as discussões sobre o reassentamento das famílias atingidas.
55
usina hidrelétrica de Jupiá e de Ilha Solteira. A enchente de 1983 foi a maior já registrada
no rio Paraná e atingiu quase toda a extensão do rio em grande parte do ano, o que deixou
centenas de famílias desabrigadas.
Diante do quadro de emergência, o que desencadeou um longo processo de luta
e reivindicação por parte dos desabrigados, algumas famílias foram direcionadas a
reassentamentos, muitos deles provisórios, emergenciais e desprovidos de uma estrutura
mínima que viesse a atender as necessidades características de famílias ribeirinhas, entre
eles o Projeto Emergencial de Jupiá, com 100 famílias de pescadores (receberam
provisoriamente 1 hectare de terra onde viveram até 1993); Projeto Capatazia dos
Pescadores, com 70 famílias (criado em 1985, em Guia Lopes da Laguna); assentamento
Sucuiu, com 177 famílias (criado em 1985, no município de Chapadão do Sul).
No ano de 1991, as famílias que viviam às margens redefinidas do rio
enfrentaram a segunda maior enchente do rio Paraná, que deixou milhares de famílias
desabrigadas, principalmente nas cidades de Naviraí, Eldorado e Bataguassu. A perda de
casas, lavoura e animais fez com que os prefeitos decretassem situação de emergência.
Mais de 200 pessoas desabrigadas foram alojadas em barracas de lona dentro de um campo
de futebol, localizado em Porto Caiuás, à 60 km da cidade de Naviraí (O Progresso,
17.01.1990). Esses fatos tornaram-se constante à população ribeirinha nos últimos anos,
em 1997 a então prefeita do Município de Mundo Novo, Dorcelina Folador, também foi
impelida a decretar estado de emergência no município, quando a abertura das comportas
das usinas hidrelétricas de Jupiá e Rosana deixaram mais de 50 famílias desabrigadas (O
Progresso, 19.02.1997).
Dona Lurdes é uma dessas personagens. Em 2006 o marido vivia a oito anos
sob o barraco de lona a espera de um lote de terras, decisão tomada após perder toda a
plantação de arroz que cultivava em uma ilha do rio Paraná:
Que meu marido tinha perdido tudo lá na ilha, né? Tinha perdido arroz... tudo o que eles planto lá, até as panela perdero com enchente, aí ele resolveu i ocupar essa fazenda (Lurdes, Entrevista, 20.07.2006).
O descaso com que foram conduzidas as discussões da construção da barragem
da usina de Porto Primavera, com constantes protelações de propostas e omissão de
informações por parte da empresa energética, foi tema de protestos, cartas e reivindicações
por parte das famílias atingidas e com apoio da CPT regional. As propostas de
reassentamento não davam conta de atender das especificidades existentes ao longo do rio.
56
Segundo Kudlavicz, esses trabalhadores não eram apenas oleiros, ou
pescadores, ou pequenos produtores, ou mesmo trabalhadores assalariados, mas sim
sujeitos que viviam a partir de várias dessas condições. Obrigá-los a viver de uma só
atividade, conforme os projetos de reassentamento, foi condená-los à miséria. A alteração
de seu habitat trouxe não só prejuízos materiais, mas também acarretou frustrações
pessoais indenizáveis. Aos atingidos pela barragem do Porto Primavera, que exerciam
trabalho como assalariados e moravam naquela barranca há dez, vinte, trinta anos, foi
oferecido como indenização cinco hectares de terra ou vinte salários mínimos (2005, p.
103).
A discussão a respeito dos prejuízos das famílias ribeirinhas atingidas por
barragens destinadas à construção de usinas hidrelétricas e de seu reservatório vem de
longa data. Tal realização torna-se impossível sem uma reestruturação espacial, esta que
traz como conseqüência a remoção da população que habita a área a ser inundada. O
processo de remoção das famílias ribeirinhas do rio Paraná ocasionou um conflito de
interesses diferenciados: os da população, que foi obrigatoriamente removida, e os
interesses de uma empresa como a CESP – Companhia Energética de São Paulo.
A política de desapropriação e de reassentamento das famílias ribeirinhas e
ilhéus acarretou prejuízos e conseqüências que, ainda hoje, não foram sanados. Segundo
relatório da CPT, um grande número dessas famílias, diante da instabilidade vivida às
margens dos rios e da falta de assistência devida pelas empresas energéticas, passou a
ingressar nos movimentos sociais de luta pela terra em busca de uma alternativa mais
rápida de reassentamento (CPT, 1995).
1.4 A terra: reordenamentos em Mato Grosso do Sul
Quando Cabral gritou ‘terra à vista’, no Brasil, tudo começou errado. Não era terra para todos, era muita terra e só para alguns. Aí começou a maior concentração de terras já existente no mundo e que nunca cessou de crescer. (Hebert de Souza, Betinho).
57
Para compreender as relações entre o homem e a terra, dentro da conjuntura de
mobilização social de luta pela terra, é imprescindível a compreensão da forma com que as
questões agrárias e agrícolas foram tratadas ao longo do tempo. A história agrária brasileira
revela de uma sociedade excludente, em que as políticas públicas estiveram voltadas para a
reinvenção, antes dos latifúndios e logo das empresas rurais, reafirmando os pobres da
terra como sujeitos a serem explorados.
O território que hoje compõe o atual estado de Mato Grosso do Sul foi, desde o
início de sua colonização, palco de intensos conflitos pela posse de terras. A região
mantém uma tradição de lutas e disputas oligárquicas pelo poder político e pelo prestígio
social. Concentração de terra, expropriação e violência são fatores que se encontram
associados à história de Mato Grosso e estende-se à constituição do estado de Mato Grosso
do Sul (1977).
A exploração do trabalho indígena também foi um recurso usado pelos
desbravadores, por falta de mão-de-obra especializada ou mesmo pelo custo que ela
apresentava. Os índios foram usados no “trabalho compulsório”, explorados por aqueles
que já os havia expropriados de suas terras. Pontua Borges que a violência pela posse da
terra se insere no cotidiano da população em decorrência da associação de fatores de
dominação econômica, política e social (2002, p. 117).
O processo de povoamento do antigo sul de Mato Grosso foi intensificado a
partir do fim da guerra entre Brasil e Paraguai (1864-1870), quando a região passou a
receber grande número de imigrantes e muitas famílias voltaram para reestruturar suas
propriedades. Após o fim do conflito viu-se também aguçado o interesse de empresas
estrangeiras, que requereram grandes glebas de terra dentro do Estado (QUEIROZ, 2004,
p. 30). As atividades econômicas ganharam impulso com a abertura à livre navegação do
rio Paraguai, fato ocorrido com a derrota desse país pela Tríplice Aliança.
A luta pela posse de terras foi um fator de tensão e violência no início do
período republicano. Os latifúndios eram sinônimos de poder político e econômico, a
disputa pela supremacia política regional fez com que se manifestasse com intensidade o
fenômeno coronelista, o que contribuiu para a proliferação da violência no Estado, uma
violência legítima e autorizada, já que era também praticada pelas autoridades políticas
locais (CORRÊA, 1999).
A delimitação dês fronteiras do sul do antigo Mato Grosso foi um processo de
grandes conflitos, o que facilitou a proliferação do banditismo, principalmente no extremo
58
sul do Estado. A fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Cabalhero (cidade paraguaia) era
como se não existisse, a relação entre pessoas e o contrabando de mercadorias eram
atividades corriqueiras, assim como o idioma predominante nas cidades brasileiras de
fronteira era o guarani, dando a impressão de que todos pertenciam a uma mesma nação18.
Desde o início do século XX, viu-se a necessidade das elites locais em afirmar
– ou construir – uma identidade mato-grossense que contrapusesse o estigma da barbárie
atribuído à população do Estado19. Esse processo colaborou, no entanto, para que as
oligarquias latifundiárias se legitimassem no poder, garantindo prestígio social e político,
legando à sociedade atual o problema da posse exagerada da terra, as fazendas de
especulação e milhares de expropriados do direito à terra para trabalhar e viver.
Um exemplo de aristocracia coronelista do período supracitado foi a Matte
Larangeira20, uma empresa ligada ao capital estrangeiro, que concentrou por mais de meio
século, a extração da erva-mate nativa dentro do Estado. A empresa tornou-se um “estado
dentro do estado”, com leis e milícia próprias, sendo ainda caracterizada pela estreita
relação entre o público e o privado, em que os interesses da Matte se misturavam aos
interesses governamentais (ARRUDA, 1997).
A Companhia usava de todos os recursos possíveis para manter o espaço físico
dos ervais longe dos intrusos, já que somente ela era legalmente autorizada à explorar essa
região (ARRUDA, 1997, p. 34). Junto à extração da erva vinha a exploração do trabalho
indígena e o recrutamento forçado de paraguaios e brasileiros para trabalhar nos ervais.
Segundo Arruda, a área de exploração da empresa chegou a abranger, por um
determinado período, mais de cinco milhões de hectares, o que correspondia a uma grande
porção da área do extremo sul do antigo Mato Grosso, configurando-se o maior
arrendamento de terras devolutas à uma empresa particular do país (1997, p. 34).
Após a Proclamação da República, a regulamentação de terras devolutas dos
Estados brasileiros ficou a cargo das Constituições Estaduais. No antigo estado de Mato
Grosso, a Constituição veio a ser elaborada por uma Assembléia Constituinte, que foi
eleita em meio a muita conturbação política. A Assembléia promulgou a Constituição
18 QUEIROZ, 2003, p. 30-31 em referência a COSTA MARQUES, 1913, p.398-399; PEREIRA, 1928 p. 25; SODRÈ, 1941, p. 189. 19 A respeito do processo de construção da identidade mato-grossense conferir ZORZATO 1998 e GALETTI, 2000. 20 A grafia da palavra Matte Larangeira foi mantida no texto conforme o original do nome da empresa que é originário do nome do primeiro proprietário: Thomas Larangeira.
59
Estadual em 15.08.1891 e elegeu como presidente de antigo Mato Grosso, Manoel José
Murtinho21, um dos sócios da Companhia Matte Larangeira (CORRÊA, 1995).
Em um estudo recente, Oliveira (2004) analisa como essa influência política
detida pela Companhia Matte Larangeira limitou e dificultou a constituição de pequenas
propriedades em terras de domínio da empresa. Nota-se, assim, a dificuldade de ocupação
de terras por parte de colonos e índios nessa região. A posse de terras por meio da
violência é um processo presente ainda hoje no estado de Mato Grosso do Sul, assim como
a forte relação entre grandes proprietários e forças políticas.
Não só propriedades privadas encontravam barreiras para se legitimar, a
elevação de núcleos populacionais em municípios foi também barrada em detrimento dos
interesses da Companhia:
É compreensível que enquanto mantivera a Matte Larangeira o controle legal de exclusividade na exploração da região ervateira, dificilmente haveria, como de fato não houve, emancipações de municípios. Se equacionarmos que em 1911 foi criado o distrito de Dourados e em 1915 reservadas terras para constituir o patrimônio da vila; apenas em 20 de dezembro de 1935, ocorreria a emancipação político administrativa do município de Dourados, e tão somente em 26 de outubro de 1938 viria receber foros de cidade (Decreto-lei estadual nº 208) (ALBANEZ, 2003, p. 43-44).
O poderio que detinha a Companhia, no entanto, começa a definhar no início
dos anos 1930. Seu declínio está relacionado a uma forte pressão dos trabalhadores dos
ervais, à migração dos gaúchos que passam a negar o monopólio controlado pela Matte, à
queda que a erva sofreu no mercado consumidor, à concorrência com a erva argentina e a
política desenvolvida pelo governo federal de colonização das fronteiras, quando o
governo de Vargas elevou consideravelmente a taxação sobre o produto e passou a negar
pedidos de renovação do contrato de arrendamento dos ervais.
Com o fim das concessões de arrendamentos à Companhia Matte laranjeira,
começou a desenvolver, no antigo sul de Mato Grosso projetos de colonização estatal,
aumento de colonizadoras particulares e uma expressiva expansão das frentes pioneiras22
compostas, sobretudo, por paulistas e paranaenses.
A presença de grandes latifúndios – em especial os de posse de empresas
estrangeiras – nas fronteiras entre Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia foi motivo de
21 Os “Murtinhos”, como eram conhecidos, formavam uma das mais poderosas oligarquias do antigo Mato Grosso; detentora de grande poder econômico, político e prestígio social. Dr. Manoel Murtinho foi presidente da província de Mato Grosso e seu irmão, Joaquim Murtinho, fora ministro e senador por três mandatos, entre outras atribuições políticas. 22 As frentes pioneiras são aqui compreendidas como processos migratórios caracterizados pela direção, promovida por políticas fundiárias e composta por homens detentores do capital, diferenciando-se das frentes de expansão, a qual ocorreu mais espontaneamente e é caracterizada pela posse da terra, destacando a figura do posseiro (MARTINS, 1975, in FABRINI, 1995, p. 43-44).
60
preocupação no governo de Vargas, que passou a negar a concessão de terras num raio de
150 km da faixa de fronteira e a favorecer a instalação de pequenas propriedades nessa
região (LENHARO, 1986, p. 49-50). Através da instituição da Comissão Especial de
Revisão das Concessões de Terras na Faixa de Fronteiras – CEFF (decreto nº 4265, de
20/07/1939), o governo federal passou a fazer a revisão das concessões de terras feita pelos
governos estaduais e municipais ao longo das regiões fronteiriças (ALBANEZ, 2003, p.
58). Apresentando preocupações geopolíticas, criou dois Territórios Federais em áreas
especifica de concentração ervateira: o de Ponta Porã ao extremo sul do estado de Mato
Grosso e o de Iguaçu já em território paranaense23.
A política desenvolvida durante o governo de Vargas visava, entre outros
aspectos, a legitimação do Estado Novo e a nacionalização das fronteiras através de um
imperialismo interno, de modo “que as ilhas de prosperidade industrial ocupassem os
espaços despovoados...” (LENHARO, 1986, p. 24).
A campanha Marcha para Oeste, desenvolvida a partir de 1938, que objetivava
direcionar as correntes migratórias de áreas de conturbações sociais para os espaços
despovoados do país, fortaleceu a expansão das frentes pioneiras às fronteiras agrícolas do
país. Fatores que acarretaram um crescimento populacional e um aumento considerável nas
apropriações de terras no antigo Sul de Mato Grosso, o solo fértil, barato e esparsamente
habitado era terreno atrativo, o que acabou por acirrar os conflitos pela posse das terras.
É sabido que as vastas extensões do SMT [Sul de Mato Grosso], embora esparsamente habitadas, não se encontravam propriamente “vazias”: a posse latifundiária, por exemplo, estava presente em quase toda parte, e nos terrenos devolutos da zona ervateira viviam numerosas comunidades indígenas (QUEIROZ, 2004, p. 30) [Aspas no original].
Dentro da política de nacionalização das fronteiras, o governo inicia, em 1938,
a ampliação da estrada de ferro Noroeste do Brasil (NOB) com a construção de um ramal
que partiu da cidade de Campo Grande até o sul do Estado, ligando o país à vizinha
República do Paraguai, e também incentivou o assentamento de trabalhadores pobres em
pequenas propriedades criando pelo Decreto-lei 3.059, de 11 de fevereiro de 1941, as
colônias agrícolas nacionais, com o propósito de distribuir terras em territórios pouco
povoados a trabalhadores rurais sem terra; entre elas, pode-se destacar a CAND (Colônia
Agrícola Nacional de Dourados), criada em 1943, no município de Dourados.
23 “Os territórios de Ponta Porã e Iguaçu, que chegaram a ter sede e interventor, tiveram breve existência: a Constituinte de 1946 considerou por bem reincorporá-los aos estados de que haviam sido desmembrados...” (BITTAR, 1999, p. 123; Cf. também QUEIROZ, 2003, p. 32-33).
61
A criação de uma colônia agrícola na região de Dourados encontrou resistência
por parte de políticos que formavam oligarquias agrárias dentro do estado e temiam uma
reestruturação do espaço destinado a seus latifúndios (OLIVEIRA, 1999, p. 169). No
entanto, conforme Martins, as pequenas propriedades incentivadas pelos projetos de
colonização não decorreram de uma reestruturação econômica e social que dificultasse a
sobrevivência do latifúndio, na verdade, elas surgiram como complemento a ele, dando-
lhes novas condições de reprodução (1991 p. 89).
A CAND estava inserida em um projeto político que buscava amenizar as
tensões que vinham ocorrendo no campo, em especial no nordeste brasileiro, e evitar o
aliciamento de trabalhadores desempregados em sindicatos e organizações, como os
movimentos operários. Esses projetos de colonização procuraram não disputar terreno
com os grandes latifúndios, sendo, deste modo, direcionados às terras de menor tensão
social e distantes dos grandes centros populacionais.
Seguindo a iniciativa do governo federal, o governo estadual e, mesmo os
prefeitos municipais, passaram a incentivar a implantação de colônias agrícolas em todo o
Estado (QUEIROZ, 2004, p. 30). Para promover as vendas das propriedades eram feitos
até anúncios em emissoras de rádio paulistas e paranaenses, instigando, por meio de
canções e propagandas, as pessoas a virem para o Mato Grosso (FABRINI, 1995, p. 48).
Vale lembrar que os loteamentos não foram restritos às ações governamentais,
a margem deles estavam as empresas colonizadoras que loteavam grandes glebas de terra
dentro de um sistema especulativo, como a Companhia Viação São Paulo/Mato Grosso, a
SOMECO, a Colonizadora Vera Cruz/Mato Grosso, entre outras.
Grande parte das terras do extremo sul do antigo Mato Grosso foi adquirida por
empresas privadas junto ao Estado, entre os anos de 1930 e 1940, que então passavam a
revendê-las a fazendeiros quando já estavam valorizadas, o loteamento era feito em menor
escala, isso porque acarretaria grande despesa com agrimensores e corretores. Mais de
97,1% dos títulos concedidos pelo Estado, entre os anos de 1930 e 1940, foram de mais de
1.000 ha (FABRINI, 1995, p. 61-62).
A apropriação de grandes glebas de terras por fazendeiros de outros estados
propiciou a difusão do absenteísmo, uma prática corrente no Estado. A apropriação das
terras ocorreu antes mesmo de um processo de povoamento mais intenso, fazendeiros
paulistas e paranaenses e empresas colonizadoras garantiram grandes propriedades de
terras, mesmo sem povoar a região.
62
O extremo sul do antigo Mato Grosso foi, pelo menos até os anos 1950, uma
região de matas nativas. A principal atividade econômica que nele predominou por mais de
meio século – a extração da erva-mate nativa – apesar de predatória, pouco transformou o
ecossistema florestal. No entanto, a partir do surto populacional ocorrido nos anos de 1960,
com a expansão da fronteira agrícola do sul e do sudeste brasileiro, essa paisagem passou a
ser destruída. A marcha pioneira foi uma “destruidora de riquezas naturais” e esses
“homens por demais apressados” trouxeram consigo capital e técnicas devastadoras,
transformando essas matas em campos limpos (PÉBAYLE e KOECHLIN, 1981, p. 10).
A colonização ressente dessa região não alterou apenas seu padrão ecológico,
mas também as relações de trabalho ali existente. Esse quadro de ocupação de terras que
privilegiou a grande propriedade foi ainda agravado com a inserção do grande capital no
estado, favorecido por uma conjuntura nacional de expansão da agricultura desenvolvida
durante o Regime Militar (1964-1985).
A partir dos anos de 1960 e 1970, é perceptível a entrada de fazendeiros vindos
do sul do país, que impulsionados pela desvalorização das terras no Estado e pelos
incentivos fiscais e financiamentos a juros irrisórios, voltam-se à região para trabalhar com
monocultura de grãos para a exportação. Segundo Martins, o Estado abriu novos espaços
ao capital e com os incentivos fiscais transferiu o dinheiro público ao domínio privado,
lesando e expropriando o país inteiro. As terras abertas aos capitalistas na década de 1970 e
1980, ditas como devolutas e inabitadas, eram, em sua maioria, terras indígenas ou já
estavam sendo ocupadas por posseiros; nelas os retirantes só permaneciam até a vinda do
pioneiro abarrotado por incentivos governamentais (1991, p. 120).
A partir dos anos de 1970, o antigo sul de Mato Grosso passou a ser dividido,
grosso modo, entre a pecuária extensiva e a produção agrícola mecanizada. Conforme
estudo feito por Albanez, nos anos de 1970, na região do extremo sul do Estado, as
propriedades com mais de 1.000 ha representava 77,45 % da área rural ocupada (2003, p.
103) e quase a totalidade dessas terras estavam sob domínio dos proprietários. “Os
arrendatários e ocupantes mantiveram-se, em todos os grupos analisados, numa faixa
reduzida que, posteriormente, se traduzirá em conflitos na luta pela reforma agrária” (p.
77):
Portanto, se há um certo consenso em torno de ser o sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul uma região onde há uma menor participação do latifúndio em comparação a outras regiões do Estado, isso não pode ser levado à risca a ponto de se acreditar que houve com a colonização da região uma distribuição eqüitativa das terras. Como se pôde ver, a partir dos indicadores do IBGE, o oposto parece ser o mais correto... (ALBANEZ, 2003, p. 84).
63
Nos anos de 1970, a grande propriedade predominava em toda região, em
especial, sob a égide da pecuária extensiva, atividade que ocupava quase a totalidade das
áreas, reduzidas a poucos estabelecimentos. A agricultura estava restrita às pequenas
propriedades, que, apesar de numerosa, representava uma parcela ínfima das terras
ocupadas.
Segundo Fabrini, as terras de Itaquiraí e região já nasceram concentradas. As
grandes glebas de terras devolutas adquiridas junto ao Estado nos anos de 1930 e 1940, não
foram parceladas e suas áreas foram vendidas integralmente a pecuaristas da frente
pioneira paulista e paranaense, quando estas já estavam valorizadas. Grande parte das
terras pertencentes a esses municípios foi mantida como reserva de valor por vários anos,
“norteado por interesses especulativos, característica do latifúndio brasileiro” (1995, p. 65).
A partir dos anos de 1970, as grandes propriedades mantidas como reserva de
valor especulativo, passaram a integrar o grupo de grandes empresas rurais, caracterizada,
sobretudo, pela monocultura para exportação ou pela pecuária extensiva. Uma vez que
passam a apresentar certa produção, mesmo que ínfima, não se enquadram mais na
definição legal de latifúndio.
As formas como as questões agrárias e agrícolas foram tratadas ao longo da
história brasileira, e especificamente no do antigo de estado de Mato Grosso, estendendo-
se à criação do estado de Mato Grosso do Sul, é reveladora de uma sociedade conservadora
que mantém a propriedade da terra como especulação, como reserva de valor, como
sinônimo de poder político e social. Dentro desse quadro de concentração fundiária, que
impôs barreiras ao desenvolvimento da pequena propriedade, ao mesmo tempo em que
requeria a presença do trabalhador rural como forma de suprir-se de mão-de-obra, é que
podemos entender a entrada, ou a sujeição, de homens à condição de sem-terra no estado e
uma posterior deflagração de movimentos sociais de luta pela terra.
64
CAPÍTULO II
MEDIAÇÃO E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA TERRA EM MATO GROSSO DO SUL
Esta cova em que estás com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida
É de bom tamanho nem largo nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio
Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida
É uma cova grande pra teu pouco defunto Mas estás mais ancho que estavas no mundo
(João Cabral de Melo Neto, Funeral de um lavrador – parte)
65
2.1 Emergência dos Movimentos Sociais na agenda a Reforma Agrária.
Os acampamentos de sem-terra, objeto de estudo dessa pesquisa, fazem parte
de um contexto histórico de mobilização de luta pela terra, que iniciou em várias regiões
do país em fins dos anos de 1970 e que se fortaleceu e se expandiu no final do século XX e
início do século XXI.
Os chamados novos movimentos sociais dos anos de 1970, embora pautados
nos movimentos gestados entre 1945 a 1960, traziam consigo diferentes formas de agir, de
pensar e de compreender a sociedade; são novos movimentos frutos de uma nova
sociedade, e que surgiram ao mesmo tempo em que fez surgir uma nova conjuntura
histórica.
Segundo Gohn, um “movimento social refere-se a ação dos homens na história.
Esta ação envolve um fazer – por meio de um conjunto de procedimentos – e um pensar –
por meio de um conjunto de idéias que motiva ou dá fundamentos a ação” (GOHN, 2004,
p. 247). Essa relação entre as práticas e as representações, entre o fazer e o pensar
presentes nos grupos sociais que passaram a se organizar a partir dos anos 1970, vai
engendrar o que Sader chamou de um novo sujeito social.
O contexto histórico de emergência dessas organizações caracteriza-se por um
conjunto de situações pelas quais o país passava: crises econômicas, queda salarial e alto
índice de desemprego; sinais que evidenciavam o esmaecimento do regime ditatorial que
vigorava desde 1964, e que se mantivera, em um curto período, sob plano de crescimento
econômico favorável, o chamado Milagre Econômico.
Associado ao declínio do regime, ocorria um fortalecimento de movimentos
pela da reorganização de sindicatos e associações. Vários grupos se organizaram em
contraposição ao regime e se fortaleceram a partir da então abertura política, que segundo
o então presidente Ernesto Geisel (1974-1979), deveria ser “lenta, gradual e segura” para
evitar conturbações sociais.
As greves, sobretudo do ABC paulista, as manifestações da CPT e a
reestruturação de sindicatos em fins dos anos de 1970, evidenciavam o fim de um regime
alçado na repressão e no autoritarismo. As lutas no campo se intensificavam resultando em
greves de cortadores de cana na Zona da Mata, no Pernambuco, que chegou a mobilizar
66
240 mil trabalhadores em 1980. Esse movimento grevista no campo se estendeu a outras
regiões do nordeste, como no Rio Grande do Norte, em 1982, e na Paraíba, em 1984
(FABRINI, 1995, p. 81-82).
Como expressão de um momento político opressor, viu-se durante o regime
militar todo tipo de direitos e liberdades limitados. As políticas econômicas fracassadas
fizeram insurgir um processo de exclusão social com altos índices de desempregados e
quedas salariais. Quanto à reforma agrária, ficou restrita a alguns projetos de colonização
destinados à áreas de menor conturbação social e pouco povoadas. O Estatuto da Terra,
promulgado ainda em 1964, estabeleceu parâmetros de utilização da terra para uma
exploração racional dos latifúndios brasileiros, transformando-os em empresas rurais.
O nível de expropriação foi tão intenso que gerou uma multidão de
trabalhadores rurais sem emprego, sem terra, sem perspectiva. São milhares de pessoas que
passaram a viver nas periferias das cidades e que encontraram na luta pela terra uma saída
à situação de miséria em que viviam. Para Martins, os protestos de contestação à
propriedade que excede as necessidades de quem a possui é resultado da “privação de
trabalho que ela impõe aos que dela precisam para trabalhar” (1989, p. 22).
Farias (1997) lembra que esses movimentos eram, no referido período, ainda
pouco organizados; foram levantados a partir do interior de comunidades oprimidas, que
passaram a contestar o sistema exploratório em que viviam:
[...] Esses movimentos surgiram da prática nos grupos, articulando-se coletivamente a cada atividade desenvolvida, a cada discussão, a cada decisão, sem que houvesse uma teoria prévia que os orientasse. Trata-se de uma aprendizagem com base no próprio cotidiano e na realidade, apresentando condições de difícil sobrevivência e de exercício da cidadania, com característica comuns de organização, linguagem, expressão e valores (FARIAS, 1997, p. 45).
Com o esmaecimento do regime e a possibilidade de uma abertura política, a
população volta a aspirar uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos opressora e
que seja capaz de lhes assegurar direitos básicos, como saúde, trabalho, liberdade e o
próprio direito ao exercício da cidadania. Com essas aspirações vários grupos da sociedade
civil passam a se organizar: clubes de mães, sociedades de bairros, grupos de estudantes,
sindicatos. Assim como também grupos de arrendatários e posseiros que se organizam em
contraposição à opressão e aos rumos tomados pela política ditatorial de capitalização do
campo.
[...] Falamos, então, em novos movimentos sociais, em novos sujeitos políticos, visto que são grupos que questionam o regime político, que não é tão legitimo como procura parecer... suas reivindicações passam também pelo resgate da
67
dignidade humana que se traduz muitas vezes na liberdade de controlarem seu tempo, na volta às suas tradições, às raízes com a terra (FARIAS, 1997, p. 48).
Em oposição à organização desses grupos que passaram a lutar pela terra, foi
criada, por grandes proprietários rurais, em junho de 1984, a UDR (União Democrática
Ruralista). Com essa organização, os latifundiários passaram a intervir nos rumos da
Constituição de 1987, a fim de evitar que ela atendesse às reivindicações dos grupos
sociais de luta pela terra.
Medeiros aponta a Constituinte, paradoxalmente, como um avanço e um
retrocesso ao desenrolar de projetos de reforma agrária, quando prevê que deverá se
destinar aos projetos de reforma agrária todas as terras que não cumpram sua função
social. A definição de função social foi um avanço por incluir o respeito aos direitos
trabalhistas e ao meio ambiente e considerar índices de produtividade. Mas ao mesmo
tempo não esclareceu, e ainda hoje não ficou esclarecido, o que é terra produtiva e o que
não é. E essa indefinição acaba abrindo espaços para inúmeros recursos (MST, 2004).
Ressalta-se, no entanto, que esses grupos de reivindicantes não estavam
sozinhos, contavam com a participação de organizações como sindicatos, igrejas e partidos
políticos. A luta desses novos movimentos estava baseada na reivindicação social de
melhor qualidade de vida e garantia de direitos constitucionais, eram grupos com interesses
e necessidades em comum que experimentavam novas formas de organização
reivindicatória, mais autônomas e mais participativas que as manifestações sociais gestadas
no período que antecede 1964.
2.2 Em cena a CPT, a FETAGRI, o MST e a CUT
2.2.1 Lançando as sementes: A CPT
Sempre eu tenho refletido e não deixo apesar dos momentos difíceis morrer a utopia, que é aquele texto do João 10 -10, que Jesus disse: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundancia”, e enquanto isso não acontecer eu não posso esmorecer. (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
68
A gênese dos movimentos sociais de luta pela terra em Mato Grosso do Sul
está historicamente ligada à atuação da Comissão Pastora da Terra (CPT), uma pastoral da
Igreja Católica fundada nacionalmente em julho de 1975, durante o Encontro da Pastoral
da Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia (GO)24. A despeito de
encaminhamentos que já vinham sendo tomados pelos Bispos da Amazônia e do Nordeste
brasileiro com relação aos problemas relativos ao uso e posse da terra e a fenômenos
migratórios, é fundada oficialmente a CPT Nacional ligada à Linha Missionária da CNBB
(CPT/MS, 1993).
A Igreja Católica passava por momentos de redefinição teórica, proporcionados
pelo pensamento progressista difundido por uma corrente intelectual da Igreja, a Teologia
da Libertação, assinalando uma nova visão da Igreja latino-americana, de caráter mais
progressista, de cunho social, voltada aos pobres e de apoio aos movimentos sociais
(FARIAS, 1997, p.52-53).
Desde o Concílio do Vaticano II (1962), a Igreja Católica vinha sendo
instigada, em todo o mundo e principalmente na América Latina, a buscar uma renovação
que freasse a perda sucessiva de fiéis. Como fruto de um contexto histórico, político e
social de desenvolvimento capitalista, e à luz das orientações do Vaticano II, uma ala da
Igreja passa a questionar a marginalização de grande parte da sociedade em detrimento ao
desenvolvimento econômico, orientação que amadurecida recebeu o nome de Teologia da
Libertação.
Embasadas na Teoria da Libertação, as pastorais católicas, em especial a CPT,
afirma sua opção pelos pobres, afasta-se da política elitista desenvolvida pela Igreja
Católica e chega a ser vista como parte subversiva da Igreja. A Comissão passou a
trabalhar diretamente com os trabalhadores sem-terra, participando do seu dia-a-dia,
conhecendo seus anseios, direcionando e encaminhado as discussões pertinentes à
manutenção do homem a terra.
A CPT contribui com o encaminhamento das discussões relativas ao uso e a
propriedade da terra como questão política, manifestado-se mediante de passeatas,
denúncias, abaixo-assinados, esclarecimentos à sociedade, mas, como nos lembra Farias,
sua maior contribuição está na presença periódica ou mesmo diária de padres, bispos,
religiosos e leigos em acampamentos e assentamentos (1997, p. 50). As Comunidades
24 O Nascimento da CPT, disponível em www.cptnac.com.br, acessado em 06.02.2004.
69
Eclesiais de Base (CEB,s) constituíram um grande avanço nesse sentido, à medida que
organizavam grupos de atuação dentro de comunidades agrícolas.
Segundo a própria Comissão, ela adquiriu uma tonalidade diferente em cada
região que atuava, de acordo com os desafios que a realidade apresentava, sem, contudo,
perder de vista o objetivo maior de sua existência: ser um serviço à causa dos trabalhadores
rurais, sendo um suporte para sua organização25. Porém, apesar dessa relativa adaptação na
atuação da Comissão às regiões, sabe-se que a CPT atuava (e atua) embasada em diretrizes
nacionais.
Irmã Olga Manosso, uma das primeiras lideranças da CPT no então estado de
Mato Grosso, lembra que ao realizar trabalhos de conscientização com trabalhadores rurais
a fim de organizar um sindicato, fora lembrada por um padre de sua responsabilidade
cristã: Aí ele veio em 76, então ele me falo que... que nós não deveríamos ta conversando a questão do sindicato mas que como cristãos, cristãos, é importante se integrar e começasse a se pensar na Pastoral da Terra, então em 77 pra 78 foi organizado o sindicato dos trabalhadores rurais de Glória de Dourados (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
Deste modo, ocorre em 1978, o primeiro encontro da CPT no Estado, na cidade
de Glória de Dourados. Segundo ata da assembléia, era notório que nessa região “as
melhores terras eram para o pasto, apenas as piores iam para o arrendamento e a preços
exorbitantes. O boi era prioritário e o capim precedia a lavoura”. Ainda nesta mesma
reunião, a instituição traçou seus objetivos na condução da luta contra a opressão,
exploração e expropriação vivenciadas por trabalhadores rurais, os quais estavam pautados
sobre os escopos de: Ajudar os lavradores, a luz do Evangelho, descobrirem que, como cristãos tem o dever e a capacidade de construir um mundo diferente; colaborar para que o homem do campo faça parte integrante da sociedade; despertar e apoiar o esforço continuado de unir os lavradores (CPT, 1993).
A atuação da CPT foi de suma importância àqueles que sem chão, sem terra e
sem tranalho, puderam contar com o apoio de padres e religiosos dispostos a lutar pelos
seus direitos como trabalhadores do campo. Sua importância não se restringe à atuação de
seus membros em mobilizações sociais, protestos, reivindicações e denúncias, mas à
medida que a Comissão se mobilizava e organizava esses trabalhadores, ela contribuía
ainda a uma conscientização política, a partir dela originando vários outros movimentos,
lideranças, sindicatos e organizações.
25 O Nascimento da CPT, disponível em www.cptnac.com.br, acessado em 06.02.2004
70
Da cidade de Glória de Dourados, o centro coordenador da Comissão, foi
transferido para a cidade de Campo Grande e outros núcleos regionais foram criados nas
cidades de Três Lagoas, Corumbá e Aquidauana.
Durante os anos iniciais de sua atuação, além da luta pela terra, a CPT
conduziu também as discussões dos ribeirinhos e ilhéus, participou da organização de
assentamentos, de associações e cooperativas, como a COAAMS (Coordenação das
Associações dos Assentamentos de Mato Grosso do Sul), a COAGRAN (Cooperativa dos
Assentados da Grande Dourados), COARJ (Cooperativa dos Assentados da Região de
Jadim), entre outras; manifestou-se de diversas formas contra grandes projetos capitalistas
que não cumprem seu papel social, como as Usinas de Álcool e Hidrelétricas.
No ano de 1984, em reunião na cidade de Fátima do Sul, os membros da CPT
decidem mudar as estratégias de atuação dos sem-terras e partir para a ocupação como
meio de luta (CPT, 1993). Dessa mudança de estratégia de luta surge a ocupação da Gleba
Santa Idalina, em Ivinhema, no ano de 1984, e logo o acampamento dos Brasiguaios em
Mundo Novo (1985), que são dois momentos que marcam a gênese da luta pela reforma
agrária de forma organizada em Mato Grosso do Sul.
Em fins da década de 1980, a CPT começou a enfrentar inúmeros obstáculos
internos à Igreja para continuar atuando, a falta de recursos reduziu e limitou seu trabalho
junto aos trabalhadores pobres do campo. Como coloca Farias, a Comissão não poderia
continuar atuando sem o apoio financeiro da Diocese, padres e bispos se manifestavam
contra seu funcionamento, o que levou ao fim de suas atividades em quase todos os
municípios do estado de Mato Grosso do Sul (1997, p. 59).
Deve-se isso, em grande parte, a um retrocesso da Igreja Católica em nível
mundial. No início dos anos de 1980, o Papa João Paulo II publicou um documento a fim
de retificar a atuação de teóricos seguidores da Teologia da Libertação, acusou-os por
heresias pelo uso de conceitos marxistas e de fazerem interpretações “errôneas” de
documentos anteriores como o Concilio do Vaticano II. Como expressão do retrocesso ao
conservadorismo da Igreja Católica, João Paulo II passou a intervir nos currículos dos
seminários e limitou a influência de importantes Dioceses, como a de São Paulo, que tinha
um cardeal-arcebispo adepto da Teologia da Libertação (PEREIRA, 2006, p. 102-103).
Essas manifestações levaram a uma deslegitimação da Teologia da Libertação,
o que fez alguns adeptos se afastarem da vida sacerdotal e religiosa. Verifica-se hoje,
dentro da Igreja, que a preocupação maior está relacionada à espiritualidade e não à
problemas de cunho social, como fala Irmã Olga:
71
E atualmente, então o retrocesso que se percebe, que é apontado desde Roma e no Brasil também, na CNBB, que não tem mais postura firme de pronunciamento. Aqui no Estado então, acabou mesmo. Existe só essa pequena equipe de Campo Grande, com algumas pessoas liberada, duas em Dourados, eu não sei bem quantas no Sudeste, mais é muito pouca pessoas. Então, isso reflete a posição conservadora da Igreja. E principalmente agora na questão da Igreja Católica, a preocupação é... nas construções, nos prédios, Igrejas, casas paroquiais e não mais na formação das pessoas. Eu penso que vocês também têm conhecimento dos movimentos conservadores na Igreja Católica, que tão tomando de conta, né? Que é a questão do movimento Neo Catecumenato, a Renovação Carismática Católica e outros assim, que existe [...] (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
A falta de apoio financeiro restringiu a atuação da CPT, não só no estado de
Mato Grosso do Sul. Foi uma posição tomada pela Igreja em nível nacional, apresentando
certa variação de uma região à outra de acordo com a posição ideológica das Dioceses.
Alguns teóricos e religiosos ainda mantêm postura firme diante das dificuldades
enfrentadas pelos pobres da terra, mas eles se restringem a uma minoria que encontra todo
tipo de dificuldade para atuar e que são veementemente criticados pelas alas mais
conservadoras da Igreja Católica.
Entre as instituições que a CPT ajudou a organizar, podemos destacar o MST –
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – que surgiu no Mato Grosso do Sul por
meio das Comissões de Sem-terra, organizadas pela CPT no início dos anos 80. As duas
instituições passam a caminhar paralelamente durante alguns anos, apesar das relativas
divergências decorrentes do caráter agressivo que o MST adquiriu. As diferentes formas de
pensar e de agir, entre a CPT e o MST, contribuíram para o distanciamento da CPT da luta
direta pela posse da terra, passando a restringir seu trabalho à assistência e ao apoio às
famílias assentadas e pequenos proprietários, desenvolvendo um trabalho social de
organização dos lotes e orientações de trabalhos.
E aí a luta pela terra fico do MST e depois posterior, FETAGRI, CUT e agora também a Federação da Agricultura Familiar, esses movimentos que estão fazendo a luta pela terra. E a Comissão Pastoral da Terra continua, dentro de seus limites, na questão da educação, apoio a Associações nos assentamentos e a organização das mulheres camponesas, agora direitos previdenciários [...] E a CPT tem se dedicado mais ao trabalho de formação de educadores, educadoras e temas como de comunidades, de igreja, também cursos de formação bíblica na ótica da terra... (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
Segundo documentos da CPT, seu distanciamento definitivo da luta pela terra
aconteceu em 1992, quando passou a atuar com número reduzido de pessoas e direcionou
suas atuações a outros trabalhos sociais. No entanto, não se pode negar a importância da
Comissão na gênese da luta pela terra em Mato Grosso do Sul, tarefa assumida, na
atualidade, por outros mediadores como o MST, que ela própria ajudou a organizar em
meados dos anos de 1980, a FETAGRI e a CUT.
72
2.2.2 Novos mediadores: O MST, a FETAGRI e a CUT
No estado de Mato Grosso do Sul atuam três expressivos mediadores da luta
pela terra: o MST e as organizações sindicais CUT e FETAGRI. Embora aparentemente,
esses mediadores apresentem formas homogêneas de enfrentamento e resistência,
pautadas, sobretudo, na estratégia de montar acampamentos à margens das estradas, a
práxis dessas organizações são marcadas por diferenças que estão relacionadas a sua
formação, as formas de atuação e até a própria compreensão do homem e da sociedade.
Esses três agentes sociais (o MST a FETAGRI e a CUT) surgiram no estado
entre as décadas de 1980 e 1990, e passaram a trabalhar, cada qual com suas
especificidades, para atender às necessidades de sujeitos vítimas de processos sociais
econômicos e políticos excludentes.
O MST foi um dos primeiros movimentos a atuar no estado de Mato Grosso do
Sul. Formou-se a partir das Comissões de Sem-Terra, organizadas pela CPT no inicio dos
anos de 1980. As Comissões de Sem-Terra foram aos poucos conquistando sua autonomia,
o que as levaram a desenvolver métodos próprios de atuação, nem sempre condizentes com
a forma cristã/católica de ver e entender a questão da terra. Segundo alguns autores, a
formação efetiva do MST no Estado está relacionada à vinda de um casal da Direção
Nacional do MST, em 1986, para organizar a ocupação da fazenda Italsul, no município de
Itaquiraí. Essa ocupação, marcou também a separação entre as Comissões de Sem-Terra e
a CPT (FABRINI, 1995, p.87-88; SOUZA, 1992; FARIAS, 1997).
Nacionalmente o Movimento já havia se consolidado. Segundo Fernandes, o
MST foi gestado no período que compreende os anos de 1979 a 1984, sua gênese está
relacionada ao processo de lutas e resistências de trabalhadores contra a expropriação e
exploração que sofreram nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso
do Sul durante esse período (2000, p.50).
Em 1982, realizou-se o primeiro encontro regional dos sem-terra na cidade de
Medianeira/Paraná, nele estavam presentes representantes dos estados de Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. A partir desse momento, o
movimento começou a traçar suas metas e articular-se a propósito de se tornar um
movimento de massa de abrangência nacional. Em janeiro de 1984, ocorreu o segundo
encontro do Movimento, esse já em nível nacional. Nesse encontro, o Movimento foi
73
estruturado, ganhou nome, caráter político e teve suas formas de ação definidas. Esse foi o
momento que se fundou oficialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), sob o lema: Terra para quem nela trabalha e vive26. No ano seguinte, as ocupações
se intensificaram marcando oposição ao recém elaborado Plano Nacional de Reforma
Agrária, que não atendia às expectativas dos trabalhadores rurais sem-terra. Nesse mesmo
ano foi realizado o primeiro congresso do Movimento em Curitiba, no estado do Paraná.
Por intermédio do trabalho realizado pelo MST os trabalhadores pobres da
terra passaram a aspirar um possível retorno à vida no campo, tanto àqueles que ainda
permaneciam nele (posseiro, arrendatário, peões, empregados assalariados), como aqueles
que na cidade se voltam ao campo periodicamente para o trabalho de bóias-frias, e mesmo
muitos sujeitos que viviam nas periferias das cidades, desempregados e marginalizados.
O Movimento adotou as ocupações de terras como estratégia de luta,
mobilizando trabalhadores rurais sem-terras e levantando acampamentos em todo o país.
Apesar de doloroso, o processo de acampamento (que muitas vezes perdura por anos)
tornou-se o principal meio de luta e estratégia de ação do MST, visto que essa foi a forma
encontrada de obter algum êxodo no desenrolar de projetos de reforma agrária. Dentro do
estado de Mato Grosso do Sul o movimento se consolidou rapidamente e passou a liderar
um grande número de acampamentos.
Assumindo a ocupação e a resistência como estratégias de luta e pressionando
para a execução de projetos de reforma agrária, o MST passou a receber grande rejeição
popular e críticas pela imprensa, que mostra uma imagem intolerante e imprudente à
sociedade. Em estudo recente, SCHWENGBER (2005) analisou as representações na
impressa em relação à imagem do Movimento e pôde observar como os periódicos
especificamente, refletem, ainda hoje, interesses sociais dominantes e buscam deslegitimar
a luta, ora omitindo alguns aspectos ora enaltecendo outros.
Segundo Fabrini, a UDR, que também foi organizada em meados dos anos de
1980, passou a investir em meios violentos para desarticular o Movimento; nesse contexto
o MST adota uma nova palavra de ordem (2001, p. 66). Substitui o lema inicial, pautado
em questões morais e legais: terra para quem nela trabalha e vive, por um que evidencia
sua forma de ação diante das dificuldades impostas: Ocupar, Resistir e Produzir.
26 MST – Vinte anos em movimento (2004), escrito por Marcelo Medeiros e Fausto Rêgo, disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=214.
74
A oposição ruralista acabou por acirrar a violência no campo. Segundo dados
da CPT, em 1983 foram assassinadas 81 pessoas, em 1984 foram 124 e em 1985 morreram
171 pessoas envolvidas em conflitos no campo. O MST acusa a UDR de lançar mão de
jagunços e espalhar a violência, contando, também, com apoio de aparato policial, oficiais
de justiça, delegados e juízes, que trabalhavam em defesa dos grandes proprietários27. Os
acampamentos são vistos como caso de polícia e os projetos de assentamentos são
implementados como forma de conter os focos mais acentuados de mobilização social.
Após anos de luta pela verdadeira democratização nacional, os anos iniciais da
década de 1990 podem ser vistos como momentos de grandes vitórias para Movimento. Já
bastante fortalecido em nível nacional, com grande número de trabalhadores envolvidos e
contando com um significativo percentual de trabalhadores assentados. O MST ganhou
legitimidade entre os trabalhadores rurais e abriu caminho para que outros grupos e
organizações passassem a lutar pela reforma agrária.
Na segunda metade da década de 1990, o número de acampamentos e
ocupações aumentaram como forma de reação à política implantada pelo presidente
Fernando Henrique Cardoso, que mantinha uma postura bastante conservadora em relação
à reforma agrária. Segundo dados do MST a esse propósito, no ano de 1995, as ocupações
em nível nacional, envolvendo todos os mediadores, chegaram a 502 e mobilizou mais de
30 mil famílias; em 1996 foram 397 mobilizações e em 1998 ocorreram 446 ocupações,
chegando a tomar projeções internacionais (MST, 2004).
Com relação às mobilizações do MST em nível nacional, houve um aumento
de quase 500% entre os anos de 1990 a 2001, conforme tabela a seguir:
Tabela 3: Número de mobilizações do MST – Nacional
Período Nº de acampamentos Nº de famílias
1990 119 12.805 1991 78 9.203 1992 149 20.596 1993 214 40.109 1994 125 24.590 1995 101 31.619 1996 250 42.682 1997 281 52.276 1998 388 62.864 1999 538 68.804 2000 555 73.066 2001 585 75.730 Total 2.194 368.325
Tabela 3: Fonte MST.
27 MST – Vinte anos em movimento, (2004) disponível em www.mst,org.br, acessado em 08.03.2004.
75
No estado de Mato Grosso do Sul esse acirramento nos processos de
mobilização também é percebido. A segunda metade dos anos de 1990 foi um momento
em que mais acampamentos foram levantados e mais assentamentos criados no Estado.
Isso não decorre apenas das mobilizações organizadas pelo MST, mas também em virtude
de outros mediadores como a FETAGRI e a CUT.
O MST encontra-se hoje fortemente organizado em quase todo o Mato Grosso
do Sul, embora suas atuações estejam concentradas mais ao sul do estado, englobando a
região que compreende as imediações de Campo Grande até divisa com o Estado do
Paraná e a fronteira com o Paraguai (cf. Figura 4).
Para melhor organização, o MST está divido em seis regionais: Regional
Centro Sul: região da Grande Dourados, Regional Cone Sul: região de Itaquiraí, Regional
Vale Ivinhema: região de Nova Andradina, Regional Pantaneira: região do Pantanal,
Regional Centro: região de Campo Grande e Regional Norte: região de Camapuã. Essas
Regionais são coordenadas por militantes que fazem parte da Coordenação Estadual do
Movimento, formada em sua maioria por assentados e acampados; são sujeitos que
aprenderam no dia-a-dia do acampamento as formas de luta, e passam gradativamente a
integrar a Coordenação do Movimento. Com essa constatação, se pode dizer que o MST
produz seus próprios lideres, diferente de outros mediadores, que muitas vezes contratam
funcionários ou que as lideranças são formadas por sindicalista e pessoal especializado.
O MST difere burocraticamente de outros mediadores por seu caráter não
sindical, especificidade que lhe atribui características que o distingue na forma de atuação,
organização, hierarquização, entre outros aspectos, de mediadores como a FETAGRI e a
CUT.
A FETAGRI-MS é outro mediador bastante organizado e fortalecido na região.
Ela surgiu no Estado ainda em 1979, ano de implantação do Estado de Mato Grosso do
Sul, e passou a atuar junto aos trabalhadores rurais em parceria com sindicatos rurais
municipais (STRs) existentes nos municípios de Anaurilândia, Bataiporã, Coxim,
Ivinhema, Iguatemi, Nova Andradina e Naviraí. Em 2005, ela congregava 68 Sindicatos de
Trabalhadores Rurais Municipais. Trata-se de uma entidade sindical de 2º grau, já que é
ligada a CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).
Como um movimento sindical, a Federação está voltada ao trabalho com
famílias de trabalhadores rurais. Os sindicatos cumprem também outros trabalhos sociais
que não só a mediação da luta pela terra, como por exemplo, a negociação de piso salarial,
a exigência de direitos trabalhistas, a qualificação profissional, a orientação na busca por
76
benefício previdenciário, a homologação de serviço, o cálculo de rescisão de contrato de
trabalho, entre outros serviços.
Farias observa que a FETAGRI ocupa propriedades que já estão em processo
de desapropriação, só assim as famílias (ou membro delas) acampam na fazenda à espera
da divisão dos lotes, tornando a luta menos longa e cansativa, mas ao mesmo tempo
limitando-se às áreas oferecidas pelo governo (2002, p. 44-45). O que também não pode
ser visto como uma regra, já que, no sul do Estado, existem acampamentos com cerca de
sete anos montados na beira da estrada, como o acampamento Laguna Peru, em Eldorado.
Todos os sindicatos filiados à FETAGRI são regidos por um estatuto produzido
pela Federação, o qual define os sindicatos de trabalhadores rurais municipais como sendo
“para fins de estudo, defesa, coordenação e representação legal dos interesses profissionais
e sociais, individuais e coletivos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais do município”
onde atuam.
O processo de luta pela terra mediante ocupação não está previsto nos estatutos
da Federação, como também demorou a se tornar uma prática da FETAGRI, como fala
Valdenir, um funcionário da Federação:
E nós decidimos trabalha com acampamento por motivo de qual a gente fazia as reivindicações por escrito, protocolava, e mesmo assim o governo não dava importância. À medida que os trabalhadores chegavam em frente daquela propriedade e dizia: “ô essa propriedade aqui está improdutiva, de acordo com a constituição ela é objeto para fins sociais e reforma agrária. Queremos uma vistoria”. O governo começou a atender. E daí por diante foi assim que se deu os processos todos de acampamentos (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).
A despeito dos encaminhamentos que o MST vinha tomando não só no estado,
mas em nível nacional, a FETAGRI passa também a efetivar sua luta por meio de
acampamentos.
A FETAGRI procura trabalhar em parceria com o Estado. A relação de não
enfrentamento direto da FETAGRI com poderes públicos é fator evidenciado nas falas de
lideranças e mesmo nas ações presentes no cotidiano das mobilizações. A respeito das
relações da FETAGRI com órgãos estaduais, é considerável a fala do senhor Tadeu,
coordenador do acampamento Laguna Peru:
A gente sempre teve um bom contato lá, de a gente chega lá e num... num faze pressão, num faze aqueles tumulto que muita gente faz né? conversar com o INCRA, o que que tá acontecendo, dá um tempo lá. Que hora que pinta uma área na região ceis vão pra lá, já que perderam essa área, hora que pinta uma área na região que vocês queiram, que dá pra vocês, vocês vão se assentado. Então tamo aguardando até hoje (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
77
Desta forma, o acampamento no qual o senhor Tadeu coordena já está montado
a oito anos na BR-163. Não fazer tumulto, não fazer pressão, garante a FETAGRI uma
maior inserção nesses órgãos, o que nem sempre vem acompanhado de resultados
positivos. A passividade diante das promessas paliativas parece gerar um conformismo que
protela ainda mais a vida sob o barraco de lona.
Embora o MST seja um mediador com maior notoriedade, presente sempre em
capas de revistas e jornais, vítima de críticas por seu caráter mais agressivo de
enfrentamento ao governo e às grandes propriedades rurais, a FETAGRI possui um
número muito maior de acampamentos, assentamentos e sem-terras envolvidos dentro do
Estado. Isso se dá em grande parte pela força da presença da Federação em quase todos os
municípios do estado por intermédio dos sindicatos, o que lhe garante uma maior
representatividade.
Em cada município nós temos um sindicato organizado, né? E que conhece todas as propriedades. Por que a gente trabalha com os nossos assalariados, então, a gente acompanha todos os assalariados e todas as propriedades. Na verdade a gente tem maior condição de ta prestando é... esse trabalho, digamos assim, ao governo, ao INCRA, é... e apresentado áreas que tenham maior... O INCRA acata os pedidos e vai fazer vistorias nas propriedades (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).
Os movimentos sociais rurais hoje têm a liberdade de levantar áreas passíveis
de desapropriação e repassar ao INCRA para que se proceda a análise. É de costume que
uma determinada área indicada, quando confirmada seu destino a projeto de reforma
agrária, seja nela assentados sem-terras ligados ao movimento que levantou a área. Nas
áreas oferecidas pelo INCRA, em que a desapropriação se dá em decorrência de acordos
entre o proprietário da terra e órgãos governamentais, são assentados sem-terras de todos
os movimentos sociais presentes na região, como é o caso do assentamento Itamarati, em
Ponta Porã, e outros.
Os sindicatos indicam as áreas pra nós. Vindo a FETAGRI, assim ô: “essa propriedade tem tantas cabeças de gado, tem tanto de lavora, pelo tamanho dela ela não cumpre o índice de produtividade”. Nos temos engenheiros agrônomos que trabalha com o movimento da FETAGRI, nós vamos lá vemos a qualidade da terra, e também damos uma olhada de vista (digamos assim), e e... da uma analisada, se ela pode ta realmente improdutiva. Se assim for, a gente pega a certidão negativa dessa propriedade e solicita ao INCRA que vá faze uma vistoria oficial pra conprová se ela está improdutiva, ou não (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).
Desta forma, a FETAGRI apresenta maiores condições de assentar os
trabalhadores pelos quais a Federação trabalha, uma vez que consegue atuar em todas as
regiões do Estado por intermédio dos sindicados.
78
Outro mediador de forte expressão na luta pela terra, em Mato Grosso do Sul, é
a CUT por intermédio do DETR (Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais)28. A
CUT/MS (Central Única dos Trabalhadores de Mato grosso do Sul) surgiu na cidade de
Campo Grande no ano de 1998 e foi fundada por um grupo de sindicalistas que perderam a
eleição pela direção da FETAGRI/MS. Após a derrota, a chapa perdedora, que já deferia
críticas e enfrentava conflitos com os sindicatos presentes naquele contexto histórico,
condenando-os pela falta de autenticidade, se organiza e funda a CUT/MS.
Nacionalmente a CUT já havia sido fundada em 1983, por ativistas de
presentes no meio sindical brasileiro, que reunidos a outros grupos também haviam
fundado o Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980.
Em Mato Grosso do Sul, os sindicalistas que participaram da fundação da
CUT/MS faziam parte de um grupo de pessoas que, durante a década de 1980,
participaram de movimentos sindicais no Estado e que se mostravam insatisfeitos com a
falta de autenticidade e de comprometimento do sindicalismo pelego que atuava em Mato
Grosso do Sul.
Esse grupo de sindicalistas autênticos, que contava com o apoio da CPT,
passou a concorrer com a FETAGRI na fundação dos sindicatos de trabalhadores rurais
municipais e já cogitavam a possibilidade de fundação da CUT em Mato Grosso do Sul.
No ano de 1988, no entanto, as atenções estiveram voltadas à eleição da FETAGRI,
momento em que o sindicalismo autêntico, que já se encontrava dividido em duas
correntes: Oposição Sindical e Alternativa Sindical, une-se para disputar as eleições da
FETAGRI (CPT, 1993).
Com a derrota do sindicalismo autêntico pela chapa de situação, esse grupo
passa a efetivar a possibilidade de fundação da CUT e, em 08.07.1988, foi fundada
oficialmente a CUT/MS.
Em 1991 ocorreu o primeiro Congresso Estadual da CUT em Mato Grosso do
Sul, momento em que se iniciou a organização do Departamento Estadual de
Trabalhadores Rurais, com início regular a partir de 1992. Embora os planos de luta do
DETR/CUT estivessem embasados no lema: Reforma Agrária, Luta pela Terra e Pequena
Produção, os seus primeiros anos de atuação, que foram acompanhados pela CPT, ficaram
restritos a reuniões e a encontros para discutir a viabilidade da pequena produção
(ALMEIDA, 2003, p.153, CPT, 1993).
28 No decorrer do texto uso apenas a sigla CUT, para referir ao Departamento de Trabalhadores Rurais.
79
O DETR congregava, no ano de 2005, 33 sindicatos dentro do Estado. Segundo
Almeida, até 1998 o trabalho do DETR/CUT se restringia aos pequenos agricultores
associados aos sindicatos, o que colocava os sem-terras fora de sua área de atuação, no
entanto, a partir de junho de 1998, o Departamento mudou sua estratégia de ação e passou
a filiar trabalhadores rurais sem-terra com o propósito de organizar ocupações de terras.
Essa mudança de estratégia, segundo Almeida, está também relacionada com a disputa pela
representação sindical (2003, p. 154).
Na verdade, em virtude de sua área de atuação, leia-se organização, ficar bastante restrita a esfera de atuação do STR sua principal bandeira de luta acaba sendo a disputa pelos STRs e pela formação da Federação da Agricultura Familiar do Mato Grosso do Sul (FAF/MS), disputa que se dá necessariamente no marco institucional, ao contrário do MST. Neste sentido, acirra-se o embate pela representação sindical no campo, visto que a FETAGRI mantém-se como oposição à CUT no Estado, a despeito da filiação da CONTAG a esta Central (ALMEIDA, 2003, p. 155).
Entre os mediadores analisados, a CUT é o que apresenta menor número de
trabalhadores envolvidos, tanto em relação aos acampamentos, quanto ao número de sem-
terras assentados. Isso se deve a vários fatores, entre eles o de ter a luta direcionada
também a outros focos que não só a luta pela terra, ao fato de possuir um tempo
relativamente curto de atuação na luta pela terra dentro do estado, e, sobretudo, pela
escassez de pessoal envolvido na coordenação e efetivação dos acampamentos.
Em 2002, Farias já chamava atenção para a escassez de documentos “falta de
organização formal, pela deficiência de registros das atividades, por poucos funcionários,
ou liberação de componentes da entidade para realizarem algumas ações” (2002, p. 49).
Situação confirmada em 2005 em visita à Instituição, quando, depois de muita insistência,
fui atendida pelo senhor Castilho, vice-presidente da CUT/MS, responsável pelo
Departamento Rural, o que ocorreu não por descaso, mas sim pelas inúmeras atividades a
ele atribuídas. Com ajuda de simpatizantes e representantes de STRs ele é responsável
pelos trabalhos internos e externos do DETR, faz todas as articulações de acampamentos
no Estado, negociações, despachos burocráticos, entre outras atribuições.
É importante salientar que, embora existam dicotomias nas formas de atuação e
principalmente organização entre os principais mediadores da luta pela terra em Mato
Grosso do Sul (MST, FETAGRI, CUT), em alguns momentos é possível observar a
atuação conjunta desses mediadores, principalmente o MST e a CUT. Entre a CUT e a
FETAGRI existe uma espécie de disputa política, é o caso do acampamento Laguna Peru,
em Eldorado, em que a mediação foi alternada entre as duas organizações (cf. Capítulo III
e IV).
80
2.3 Acampamentos e Assentamentos, um panorama das conquistas.
Um dia a vida surgiu na terra. A terra tinha com a vida um cordão umbilical. A vida e a terra. A terra era grande e a vida pequena. Inicial. A vida foi crescendo e a terra ficando menor, não pequena. Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comum. Virou a sorte de alguns e a desgraça de tantos. Na história foi tema de revoltas, revoluções, transformações. A terra e a cerca. A terra e o grande proprietário. A terra e o sem-terra. E a morte. (Herbert de Souza, A Carta da Terra, 1994).
Com quase trinta anos de mobilizações sociais de luta pela terra em Mato
Grosso do Sul, os movimentos passaram por períodos de altas e baixas, vitórias e derrotas
e muita coisa mudou, desde a formação dos grupos, formas de manifestações, sujeitos
sociais inseridos, mediadores, conjuntura política e mesmo a forma governamental de
conduzir as discussões. Para melhor elucidação dos fatos e diante de um quadro de
mudanças significativas, divido esse período em três momentos: os anos de 1980, como
um período inicial da luta marcada pela violência policial e atuação da CPT; os anos de
1990 a 1995 como um momento de reflexão, organização e mesmo um recuo dos
movimentos e estagnação nas viabilizações de projetos; e a partir de 1996, momento de
acirramento das mobilizações e maior número de projetos viabilizados.
2.3.1 Anos 1980: a luta marcada pela violência
O ano de 1979 pode ser definido como marco inicial dos movimentos de luta
pela terra em Mato Grosso do Sul. Esse marco está relacionado à resistência de 250
famílias de arrendatários que trabalhavam nas fazendas Jequitibá, Água Doce e Entre Rios,
no município de Naviraí, que entram na justiça lutando pelo direito de permanecerem nas
terras arrendadas por mais três anos. Para não terem que migrar em busca de novas áreas
81
de arrendamento, esses trabalhadores decidiram, com apoio da CPT e de alguns sindicatos
rurais, lutar pelo direito de permanecerem na área29.
Os pequenos arrendamentos, que marcam o processo de formação das grandes
propriedades rurais em Mato Grosso do Sul a partir dos anos de 1970, caracterizados por
contratos com período entre três e quatro anos, evidenciam a instabilidade vivida por
famílias arrendatárias nesse contexto histórico. Os arrendamentos duravam apenas o tempo
necessário para que, com trabalho familiar, esses colonos desmatassem, destocassem,
cercassem, abrissem a fazenda, deixando-a formada para a pecuária ou agricultura. Muitas
vezes a plantação do capim era o encerramento do contrato. Depois desse período, os
arrendatários eram obrigados a procurar outra propriedade para começar novamente o
mesmo trabalho. Essa forma de trabalho que desvincula o homem da terra, uma vez que ele
periodicamente tem que partir em busca de novas terras para arrendamento.
Os arrendatários da fazenda Jequitibá ganharam a causa e receberam a
concessão para permanecer nas fazendas por mais três anos. A partir dessa conquista, com
apoio da CPT, as famílias passaram a reivindicar a desapropriação da fazenda.
Depois dessa decisão judicial favorável aos camponeses, os conflitos se
intensificaram na região. Esse foi o ponto de partida para que novos grupos de
enfrentamento ao latifúndio se formassem, assim como contribuiu para aumentar a
violência relacionada à questão fundiária. A resposta dos fazendeiros foi imediata,
opressão, violência, e até a destruição das lavouras dos arrendatários, foram ações de
repúdio às deliberações. Conflitos que culminaram, em 1982, no assassinato de Joaquim
das Neves Norte, advogado das famílias arrendatárias (CPT, 1993).
Os sujeitos sociais, vítimas de processos exploratórios análogos, passaram a
procurar a CPT e sindicatos para que pudessem também lutar por seus direitos, com isso
começou a se formar o contingente de trabalhadores para ocupações de terras.
Como forma de amenizar os conflitos fundiários que se avolumam no sul do
Estado, o então governador, Pedro Pedrossian, lançou um projeto denominado Guatambu,
destinado a preservar e manter o homem no campo. Motivados pelas promessas e
acreditando na viabilização do Projeto, cerca de 800 famílias de trabalhadores rurais,
sobretudo bóias-frias da região, ocupam entre os dias quatro e 13 de maio de 1981, a
fazenda Baunilha, em Itaquiraí. Os trabalhadores que se direcionaram à área de forma
29 A luta das famílias da fazenda Jequitibá é mencionada como gênese das lutas pela reforma agrária, e mesmo da gestação do MST, em nível nacional (FERNANDES, 2000, p. 69-70).
82
aleatória, reconheciam as terras como devolutas e desta forma ela se enquadraria nas
propostas do Projeto lançado pelo governo de Pedro Pedrossiam.
No entanto, o que se viu foi uma resposta rápida e violenta pela polícia,
expulsando-os da área. Das 800 famílias expulsas, 438 improvisaram um acampamento na
beira da estrada. Segundo relatório da CPT, as forças policiais cercaram o acampamento
com arame farpado e montaram um posto de guarda para controlar a entrada e a saída de
pessoas, até mesmo o padre da Paróquia foi proibido de entrar no acampamento.
Depois de muitas negociações, quando somavam tão somente 64 famílias, os
acampados foram levados ao município de Cassilândia, a 1000 km de Itaquiraí, e
colocados em terras de má qualidade. Diante da impossibilidade de viver naquelas terras,
que ficavam a 90 km da cidade e a 5 km da estrada mais próxima, 59 famílias aceitam
mudar-se para o município de Colider, no Mato Grosso, onde novamente passaram a viver
sob condições precárias. Em carta endereçada à CPT, alguns assentados relatam as mortes
pela malária, a falta de infra-estrutura, de escolas, os lotes que chegavam a ter quase toda
sua superfície coberta por pedras, sendo a única saída para sobrevivência (ou não) o
trabalho no garimpo.
Em 1982, foi eleito Wilson Barbosa Martins, do PMDB (Partido do
Movimento Democrático Brasileiro), para o governo estadual. Como proposta de
campanha, Wilson Barbosa comprometia-se com a viabilização da reforma agrária em seu
mais amplo sentido. Nesse cenário é que começa a ocorrer o retorno dos brasiguaios,
impulsionados pela abertura política nacional e pelas propostas do então governador.
Com o não cumprimento das promessas, e uma verdadeira frustração por parte
dos trabalhadores, inicia-se um processo de fortalecimento dos movimentos populares. A
CPT e a Comissão Estadual de Sem-terra, com reivindicações, manifestos e baixo-
assinados endereçados ao então governador, relatam a precária situação dos trabalhadores
rurais de Mato Grosso do Sul. Como não receberam atenção e não puderam vislumbrar
medidas políticas para a situação, decidiram, em assembléia, pressionar o governo de
outras formas.
Nas regiões de Naviraí, Itaquiraí e Eldorado, onde predomina o latifúndio destinado à pecuária, os arrendatários estão sendo expulsos das terras com violência que tem causado até a morte de lavrador de Eldorado e a destruição das lavouras [...] Os Lavradores e Agentes da Pastoral após 08 (oito) meses de governo do PMDB, manifestamos nossa inconformidade com a falta de definição do Governo, de soluções, de projetos e propostas para a questão fundiária. Pensamos em nossos filhos e no futuro deste Estado, pois o povo vai viver comendo capim e carne de jacaré, pois este parece ser o destino traçado pelos
83
grandes para Mato Grosso do Sul (Carta ao Governador Wilson Barbosa Martins, novembro de 1983, CPT).
No ano de 1983, cerca de mil trabalhadores rurais, apoiados pela CPT,
ocuparam a Gleba Santa Idalina, uma área de 8.762 ha, no município de Ivinhema, de
propriedade da SOMECO. Esse contingente de trabalhadores era formado por ex-
arrendatários e bóias-frias das cidades de Mundo Novo, Eldorado, Itaquiraí, Naviraí,
Caarapó, Fátima do Sul, Glória de Dourados, Bataiporã, Taquarussu, Nova Andradina e
Dourados, além de brasiguaios, ribeirinhos e ilhéus.
Em entrevista, irmã Olga, que teve importante participação na luta pela terra
em Mato Grosso do Sul e acompanhou a organização desse acampamento, relembra os
primeiros anos de luta:
Então a luta pela terra, começo antes da Santa Idalina, que eu não citei um trabalho com bóias-frias em Naviraí. Que eles iam derrubando mato e formando pasto e tendo formado todo essa região, aí é... eles não tinham mais pra onde ir, então via sindicato e via Comissão Pastoral da Terra, se começou a discuti com esses camponeses, essas camponesas, a luta pra consegui um pedaço de terra. Então, daí que começou vir a clientela da 1ª grande ocupação da chamada Santa Idalina. [..]. E aí se formava, foram meses de trabalho. Inclusive, na região de Mundo Novo com esses chamados Brasiguaios (que o nome não foi bem na... na Santa Idalina foi um pouco depois que surgiu esse nome). Mas finalmente, brasileiros que estavam nessa divisa, no Paraguai, também com muitos problemas de documentação e com vontade de voltar ao Brasil. A Pastoral da Terra fez todo esse trabalho. Teve a ocupação dessa Gleba Santa Idalina que era da SOMECO; que essa área foi adquirida do governo, bem diz e a custo zero pelo que se sabe, pra fazer colonização e não pra ficar pra ela. Aí ocuparam, e Gleba Santa Idalina, ficaram alguns dias derrubaram mato, fizeram plantio, mais logo depois foi o despejo, não ficaram lá. Então, pra não desisti de toda luta, das mil famílias, agora não recordo bem quantas, mas mais ou menos umas 600, não foram embora pras casas. Aí, acampamos durante dois dias dentro da própria igreja de Ivinhema, dormimos e comemos lá. E depois foi quando Dom Teodoro, que era o bispo da diocese na época, ofereceu a vila São Pedro pra acampar, como pra dar continuidade a luta pela terra. E aí então é... esse acampamento, 6 meses, aí o governo do Estado ofereceu a área da chamada Padroeira do Brasil, mas só 5 hectares [...] (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
A ocupação da Santa Idalina constituiu-se um marco histórico da luta pela
terra no estado, ganhou repercussão nacional e inúmeras críticas foram feitas à CPT, aos
trabalhadores sem-terra e, inclusive, ao Bispo Dom Teodardo, que prestava solidariedade
ao grupo. Em atitude típica de um país cuja população e meios de comunicação sempre
foram regrados pelas elites e que lentamente caminhava para o fim de um período
ditatorial, jornais e revistas se opuseram à ocupação e buscaram deslegitimá-la.
Depois de inúmeras agressões (leia-se despejo com força policial), os
acampados foram pressionados a deixar a área, e, a pedido de Dom Teodardo, foram
levados provisoriamente à Vila São Pedro, próximo a Dourados, em uma área de
84
aproximadamente quatro ha de propriedade da Diocese. Dez desses acampados, em
manifestação de protesto, decidem acampar com suas famílias na Praça Rádio Clube, em
Campo Grande, em frente à Assembléia Legislativa Estadual. Em atitude de extremo
descaso, de forma lamentável, o então prefeito da capital, Lúdio Coelho, ordenou que
funcionários, com escolta policial, despejassem caminhões de terra na praça e em seguida a
terra fora molhada com caminhão pipa, de forma a simbolizar, comicamente, as
necessidades reivindicadas por aqueles trabalhadores (CPT, 1993).
Irmã Olga avalia que a presença de Dom Teodardo, que deixou uma reunião
nacional da CNBB para acompanhar o despejo dos sem-terra da Santa Idalina, tenha
contribuído para evitar uma ação ainda mais violenta pelas forças policiais:
O que mais teve coragem como pessoa, foi Dom Teodardo, na época da Santa Idalina ele deixo a assembléia da CNBB e veio pra visitar, pra ir junto lá com o secretário de segurança na hora do despejo. Nós avaliamos que isso tem contribuído pra que se evitasse maiores violências por parte da polícia (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).
Em 1984, o governo ofereceu uma área de 2.200 ha na cidade de Nioaque para
assentar cerca de 500 famílias que ainda permaneciam acampadas na vila São Pedro. Sem
alternativa, e sob protesto, as famílias aceitam a remoção para o lote provisório de cinco
ha, na Gleba Padroeira do Brasil, ou Gleba Venceremos, como queriam os sem-terras. Em
oito meses neste local havia falecido cerca de 40 pessoas, sobretudo crianças (CPT, 1993).
Algumas dessas famílias, depois de muitas reivindicações, foram levadas para
outros assentamentos, como o Monjolinho, em Anastácio, Taquaral e Piraputanga, em
Corumbá, e 260 famílias permaneceram na Padroeira do Brasil por mais de dez anos em
lotes provisórios.
A ocupação das terras da SOMECO foi contundente não só por chamar a
atenção da sociedade ao problema latifundiário do estado, mas ainda mostrou a força que
os trabalhadores rurais detinham. Mesmo que não tenham alcançado o objetivo esperado,
eles organizaram-se e opuseram-se à situação de miséria em que viviam e à negação do
governo do PMDB em efetivar suas propostas de campanha30.
Dentro da conjuntura histórica nacional, esses sujeitos foram motivados, ainda,
por um clima nacional de luta pela democracia e real abertura política, que desenvolvia-se
no país, manifestada também pela campanha das Diretas Já.
30 Parte da Gleba Santa Idalina veio a ser desapropriada anos depois pelo INCRA, destinada a assentar 757 famílias brasiguaias que, ao retornarem do Paraguai, acamparam na cidade de Mundo Novo.
85
Nesse contexto de fortalecimento dos movimentos populares, os fazendeiros
também se mobilizaram com a formação de uma força contrária, a criação da UDR em
nível estadual, iniciando sua organização na cidade de Dourados, em oposição à ocupação
da Gleba Santa Idalina (SOUZA, 1992).
Os latifundiários que sempre influenciaram a política mato-grossense, e mesmo
sul-mato-grossense, passaram através de uma União a trabalhar para inviabilizar projetos
de assentamentos na região e difundir uma imagem negativa dos movimentos a fim de
impedir sua legitimação e aceitação social.
Segundo os próprios documentos da UDR, sua formação inicial foi pensada no
intuito de pressionar o Congresso Nacional para que não atendesse às reivindicações da
esquerda na elaboração da Constituição de 1988. Essa pressão foi sentida não só na
elaboração da constituinte, mas também nas formas de condução da questão da reforma
agrária entre os anos de maior atuação da UDR.
Os acampamentos e mobilizações foram, por muitos anos, tratados como caso
de polícia; a luta pela terra encontrou problemas de toda ordem para continuar: violência
policial, maus tratos, humilhação e injustiça foram alguns dos obstáculos que alimentaram
a revolta e impulsionaram a luta.
O acampamento América Rodrigues da Silva, formado em 1986 e estudado
minuciosamente por Farias (1997), é o retrato aparente da forma com que o PNRA e
mesmo o PRRA não surtiram efeito ou mesmo auxiliaram na legitimação política da
reforma agrária. O país passava por um processo de democratização quando cerca de 200
famílias acamparam a 30 km da cidade de Três Lagoas, de onde foram violentamente
expulsas por policiais. Esse foi apenas o início de uma seqüência de expulsões, agressões e
violências de toda ordem que passaram a sofrer essas famílias, entre elas crianças,
mulheres e idosos. Em um desses episódios de repressão estatal, veio a falecer a senhora
América Rodrigues da Silva, que deu nome ao acampamento. Entre todos os momentos de
aflição que esse grupo sofreu, nos chama a atenção o fato dos policiais terem destruído e
enterrado próximo à rodovia, móveis, ferramentas e objetos pessoais dos acampados.
"Para as classes dominantes, ora representadas pela força policial, a defesa da propriedade capitalista justifica qualquer ato de violência, terrorismo e injustiça” (FARIAS, 1997, p. 130).
Entre os anos de 1984 e 1989, 22 projetos de assentamentos foram criados no
estado e 4891 famílias atendidas. Sem uma proposta política voltada para atender as
necessidades do trabalhador do campo, grande parte desse número se refere a projetos
86
emergenciais destinados ao assentamento de famílias ribeirinhas, que perderam suas terras
com a construção de usinas hidrelétricas ao longo do rio Paraná e ao assentamento de
famílias brasiguaias, que ao retornarem ao Brasil, encontravam-se acampadas na região sul
do estado.
Entre os projetos listados na tabela 4, muitos surgiram como medidas paliativas
para esses problemas sociais, como o assentamento Tamarineiro, destinado ao
assentamento de ex-arrendatários do sul do estado e a posseiros de Bodoquena, que
enfrentavam problemas com índios Kadiwéus; assentamento Nioaque, também destinado
ao assentamento de posseiros que estavam em conflitos com índios Kadiwéus;
assentamento Padroeira do Brasil, criado para assentar famílias que participaram da
ocupação da Gleba Santa Idalina; assentamento Guia Lopes da Laguna, destinado ao
assentamento de famílias ribeirinhas e ilhéus, vítimas de enchentes causadas pelas
barragens da usina hidrelétrica de Itaipu; assentamento Sucuriu, também criado para
atender famílias de ribeirinhos e ilhéus; assentamento Canaã, criado a partir de uma
ocupação aleatória feita por posseiros da região que permaneceram na área por mais de um
ano sem que autoridades fossem noticiadas. Depois que o fato se tornou notório, as
famílias receberam a concessão da área. Tabela 4: Projetos de assentamentos em MS – 1984-1989
Denominação do
Projeto Área (ha)
Nº de Famílias
Ano implantação Município
1 Tamarineiro 3.812,1735 134 1984 Corumbá 2 Padroeira do Brasil* 2.500,0000 243 1984 Nioaque 3 Retirada da Laguna 2.163,9709 90 1985 Guia Lopes da Laguna 4 Sucuriú 15.978,3376 239 1985 Chapadão do Sul 5 Nioaque 10.587,4535 371 1985 Nioaque 6 Canaã 4.360,0000 235 1985 Bodoquena 7 Urucum 1.962,4649 87 1986 Corumbá 8 Guaicurus 2.772,3164 129 1986 Bonito 9 Novo Horizonte 16.580,3788 757 1986 Novo Horizonte do Sul
10 Nova Esperança 2.757,0121 113 1986 Jateí 11 Ita 1.503,9075 47 1987 Bela Vista 12 São José do Jatobá 2.530,9075 136 1987 Paranhos 13 Marcos Freire 5.269,9403 187 1987 Dois Irmão do Buriti 14 Campo Verde 1.918,5467 60 1987 Terenos 15 Mato Grande 1.264,3543 50 1987 Corumbá 16 Colônia Nova 1.314,1489 88 1987 Nioaque 17 Casa Verde 29.859,9889 470 1987 Nova Andradina 18 Pedreira 87,9214 10 1988 Ribas do Rio Pardo 19 Monjolinho 9.525,2207 285 1988 Anastácio 20 Capão Bonito 2.585,3984 133 1989 Sidrolândia 21 Indaiá 7.340,6719 633 1989 Itaquiraí 22 Taquaral 10.013,9698 394 1989 Corumbá
Total do período
136.689,08 4.891 Tabela 4 – Fonte: INCRA – Jurisdição de Dourados.
87
Esses dados confirmam que os projetos de assentamentos, do modo com vêm
ocorrendo no Brasil, não devem ser considerados como um projeto de reforma agrária,
visto que são medidas emergenciais tomadas para conter focos acentuados de contestação
já que o país não tem um projeto político, social e econômico destinado a uma reforma
agrária massiva, de qualidade, que atenda realmente a demanda dos trabalhadores e que
tenha um teor de transformação social e do espaço rural brasileiro.
Os trabalhadores que suportam o processo de luta pela terra até que ele seja
concretizado se deparam com um novo problema: a chegada ao lote, espaço que embute
uma série de aspectos conflitantes. Dentre todos os problemas, como falta de infra-
estrutura, saneamento básico, assistência técnica, incentivo e financiamento, o maior deles
está na inapropriação dos solos. Todos esses assentamentos listados surgiram como forma
de amenizar grandes conflitos, sendo que pontos de grande relevância para a manutenção
dessas famílias nos lotes foram relegados a um segundo plano, ou mesmo desconsiderados.
A desapropriação de terras improdutivas acabou, em muitos casos, por beneficiar grandes
proprietários rurais. Alguns segmentos da sociedade acabam desconsiderando esses fatos, e
o imaginário que perpetua entre esses grupos é de que:
[...] Todo insucesso deve ser atribuído ao próprio assentado. É ele que não foi capaz de desenvolver-se dentro da estrutura que o estado ofereceu... a prática de assentar somente para diminuir conflitos, cria novos problemas que acabam por marcar a vida de inúmeras famílias assentadas em situação precária e em lotes inadequados (MENEGAT, 2003, p.264).
Os assentados chegam aos lotes, na grande maioria das vezes, depois de passar
por um longo período de desgaste nos acampamentos, sofrendo todo tipo de humilhação e
violência, racionamento de alimentos, vivendo em condições subumanas, passando fome,
frio, sede e o mais lamentável, a opressão estatal realizada por meio das agressões
policiais. Os que vitoriosamente resistiram, receberam lotes, em muitos casos, sem
demarcação, e continuaram a morar em barracos, já que não possuíam nenhuma reserva
econômica. Como aconteceu no assentamento Santo Inácio, em 1987, hoje Marcos Freire,
onde todos os acampados do estado (cerca de 800 famílias) foram levados à essa área, na
cidade de Dois Irmãos de Buriti, e permaneceram por aproximadamente dois anos em lotes
provisórios esperando a demarcação. Ao final, no assentamento Marcos Freire, foram
assentadas 187 famílias, para as demais foram criados outros assentamentos, entre eles o
Taquaral, em Corumbá, e o Casa Verde, em Nova Andradina.
Desde o início do processo de luta pela terra em Mato Grosso do Sul, a atuação
dos movimentos estão concentradas na região sul, nos municípios abaixo de Campo
88
Grande, entre a divisa com o estado do Paraná e a fronteira com o Paraguai (como fica
demonstra nas figuras 1, 2 e 3). Diversos fatores contribuíram para isso, como, por
exemplo, o fato de ser esta uma região de terras de boa qualidade dentro de uma estrutura
agrária marcada por grandes propriedades, o que favorece o interesse dos movimentos, e
ainda pelo grande contingente de trabalhadores sem-terra presentes nessa região.
Figura 1: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1981-1989
Nessa primeira década de luta, os acampamentos começam a ser levantados
lentamente. Soma-se, nesse período, um total de quarenta acampamentos, entre ocupações
e reocupações e deslocamentos de grupos de uma área a outra. O ano de 1986 apresenta
um número considerável de ocupações de terra no Estado, com 16 acampamentos, o que se
dá, principalmente, pela organização do MST na região. No ano de 1987, no entanto, não
se tem registro de nenhuma ocupação, o que se deve a um processo de negociação dos
trabalhadores com o governo estadual, que resultou em nove assentamentos e mais de 1300
famílias assentadas, entre os anos de 1987 e 1988.
89
Os acampamentos estavam concentrados na região sul de Mato Grosso do Sul
(cf. figura 1), já os assentamentos, dos 22 criados nesse período, 15 estão concentrados na
região central do Estado e em áreas pantaneiras (cf. tabela 1). A transferência forçada de
acampados para regiões com características geográficas distintas das presentes em suas
terras de origem é um fator que contribui, deliberadamente, para a não permanência desses
sujeitos em seu respectivo lote, visto que não ocorre uma identificação; a adaptação requer
um recomeço nem sempre possível, muitas vezes pela idade avançada, pela história de uma
vida, pela habilidade que não se tem.
A transferência de trabalhadores do sul do estado, muitos deles oriundos de
estados como Paraná e São Paulo, acostumados com o trabalho na lavoura, plantação de
citros, café, entres outros, para regiões de Corumbá, como o Assentamento Taquaral, onde
a terra é única e exclusivamente propicia à criação de gado, praticamente caracteriza-se por
uma aposta no fracasso desses projetos.
Além da má qualidade da terra, muitos desses lotes apresentam tamanho
insuficiente para produtividade. Nas terras arenosas e alagadiças do Taquaral, por exemplo,
conforme estudado por Menegat (2003), há épocas do ano que não existe se quer a
possibilidade de locomoção daqueles moradores. As promessas de escolas, agrovilas e
centros de saúde, raramente são viabilizadas.
Esses primeiros anos de luta pela terra no Mato Grosso do Sul foram marcados
por despejos violentos, mortes, prisões, injustiças, peregrinação e descaso. Muitos
trabalhadores morreram vítimas de intransigência policial e de conflitos com jagunços. O
descaso governamental é marcado pelo transporte desses sujeitos aos montes, em
caminhões, levados sem saber para onde, de qualquer jeito; deixados cinco, dez anos em
lotes provisórios, sem auxílio, sem socorro, humilhados, massacrados, ao ponto de
receberem caminhões de terra como resposta a um protesto. Quando por fim, conseguem o
lote de terra, ele pode vir com 5 hectares, pode vir na lama, nas pedras, pode vir do outro
lado do Estado, longe de tudo e de todos.
Esse é o cenário dos primeiros ardorosos anos de luta pela terra em Mato
Grosso do Sul, que serviu como gênese de um processo ainda mais massivo e organizado
dos trabalhadores em busca de terra, trabalho, dignidade e cidadania.
90
2.3.2 A difícil luta pela terra entre 1990 e 1995
Os anos de 1990 a 1995 foram os anos de maiores dificuldades para os
movimentos sociais de luta pela terra em Mato Grosso do Sul. Em seis anos foram
implantados seis projetos de assentamentos e apenas 980 famílias atendidas com lotes de
terra, como fica demonstrado na tabela a seguir. O número de acampamentos foi
consideravelmente reduzido, com uma média de quatro acampamentos por ano. A
repressão estatal foi reforçada e a discussão política sobre o assuntou ficou estagnada. Tabela 5: Projetos de assentamentos em MS – 1990-1995
Denominação do Projeto
Área (ha)
Nº de Famílias
Ano implantação Município
1 Sumatra 4.719,8113 149 1991 Bodoquena 2 Santa Rita do Pardo* 1.482,1449 47 1991 Santa Rita do Pardo 3 São Manoel 4.321,0281 147 1992 Anastácio 4 Carlos R. S. Melo* 6.253,1888 204 1994 Sonora 5 São Luiz 1.599,6128 114 1994 Batayporâ 6 Tamarineiro II 10.621,0775 319 1995 Corumbá
Soma do período 28.996,86 980
* Projetos desenvolvidos pelo Governo do Estado – TERRASUL Fonte: INCRA – Dourados
Esse período marca também um momento de redefinições dos movimentos,
quando as mobilizações ganharam novos contornos. As categorias de sujeitos sociais
envolvidos deixaram de ser especialmente posseiros, ex-arrendatários, brasiguaios,
ribeirinhos e trabalhadores do campo, e intensificou-se também presença de pobres das
cidades, assalariados, bóias-frias, entre outros. Essa mudança está relacionada à própria
postura dos mediadores diante da questão agrária. Esse momento marca o afastamento da
CPT na luta direta pela terra, a CUT ainda não havia se consolidado como mediador nessa
área de atuação, ficando, portanto, o MST como principal mediador desse período, embora
a presença da FETAGRI possa ser percebida em alguns momentos.
Uma força reacionária fora marcada neste contexto pela atuação estatal,
representada, sobretudo, na figura do então governador Pedro Pedrossian, que intensificou
a repressão, inviabilizou as mobilizações e fechou qualquer canal de discussão com os
trabalhadores sem-terra e as organizações mediadoras. Devido a política implantada nesse
período, apenas aproximadamente 27 mobilizações foram concretizadas, ainda assim, sob
rígido controle e com nenhuma, ou quase nenhuma, conquista.
91
Figura 2: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1990-1995
Os mecanismos usados para conter as mobilizações foram as prisões de
lideranças de movimentos sociais. Segundo lideranças do MST, era comum que militantes
que dessem entrevistas e que falassem à imprensa fossem alvo de processos criminais.
Porque naquela época nós era o alvo, né, nós tinha que falar na imprensa... e etc, e ficava marcado. Bastava da uma declaração na imprensa pra se fichado. Os cara diz: “poxa, o cara ta sendo assentado e não cala a boca nunca”. Então, foi um pouco isso (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
Em pesquisa a processos do Poder Judiciário de MS, entre os crimes mais
comuns que esses sujeitos são enquadrados está o indiciamento por roubo ou furto para os
abates de bois, invasão de propriedade e até crime ecológico e ambiental, em casos de
desmatamento para construção de barracos ou por morte de animais silvestres.
Entre os anos de 1990 e 1995, no estado de Mato Grosso do Sul, foram 135
militantes presos, com concentração de 82 somente no ano de 1992. Mato Grosso do Sul é
um dos estados com maior número de trabalhadores presos, no período, ficando atrás
somente do estado do Paraná, como mostra a tabela a seguir:
92
Tabela 6: Número de sem-terra presos e assassinados por conflitos agrários por estado 1990 1991 1992 1993 1994 1995 Total
UF
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
Pris
ões
Ass
as
AC - 2 - - - 1 - - - - - - 0 03 AL - 1 - - - 2 - - - 1 - - 0 04 AM - 1 - 1 - - - - - 1 - - 0 03 AP - - - - - - - - - 5 - - 0 05 BA 3 11 - 8 6 1 31 1 6 2 - 4 46 27 CE 2 1 2 - - - - - - - - - 04 1 ES 5 1 10 1 55 - - 8 - - 78 2 GO - 1 - 1 2 - - - - - 17 1 02 3 MA 8 9 2 6 24 7 18 5 2 4 2 3 56 34 MG 15 3 - 2 - 4 - - - - - 5 15 14 MS - - 12 2 82 2 41 - - - - - 135 4 MT - 10 - 1 - 1 - 4 - 4 - 4 0 24 PA - 20 7 16 - 13 - 14 3 4 - 14 10 81 PB - 1 - 1 - 4 - - 3 - - 1 03 7 PE 1 2 - 1 5 4 35 6 - 1 - - 41 14 PI 4 1 - 1 - 2 - 1 - - - - 04 5 PR 1 2 254 4 - 3 12 4 7 1 - - 267 14 RJ - 6 - - - 1 - 3 - - - - 0 10 RN 5 1 - 2 5 - - 1 - - - - 10 4 RO - 2 - 1 - 1 - - - 1 - - 0 5 RR - - - - - - - - - - - - 0 0 RS 4 - 11 1 - 1 - - - - - - 15 2 SC 7 - 11 1 7 - - 1 - 3 - - 25 5 SE - - - - - 2 - - - - - - 0 2 SP - 1 - - 9 - - - - 2 - - 9 3 TO - 2 - 1 - 1 - 5 - - - 2 0 11
Brasil 55 78 309 51 195 50 137 45 29 29 19 34 720 287 Fonte: CPT/NAC
Ao analisar os dados apresentados, encontra-se uma referência aproximada dos
assassinatos e prisões decorrentes de conflitos agrários, tendo em vista que muitos desses
assassinatos não chegaram se quer a serem registrados como tais. É o caso, do norte do
país, por exemplo, onde o conflito entre posseiros e latifundiários se encontrava aflorado e
o índice de prisões e assassinatos apresentados no quadro é irrisório.
Os três anos de elevado número de prisões de trabalhadores sem-terra no estado
de Mato Grosso do Sul (1991, 1992, 1993) correspondem aos três primeiros anos de
mandato do governador Pedro Pedrossiam e é revelam uma política de repressão aos
movimentos sociais adotada pelo governo ao assumir o poder. A violência
institucionalizada continua por mais alguns anos, com despejos consecutivos e violentos.
93
Sobre a violência institucionalizada usada contra os trabalhadores sem-terra,
torna-se oportuno uma manifestação de Frei Betto, em que critica o injusto julgamento da
legalidade brasileira:
Condenam-se líderes dos sem-terra, quando o réu deveria ser o latifúndio; homens e mulheres que lutam por direitos elementares, quando a acusada deveria ser a estrutura social que produz tão abissal desigualdade; reivindicações históricas e justas, como a reforma agrária, quando os tribunais deveriam convocar aqueles que se apossaram de terras devolutas, griladas, relegando-as ao ócio num país de famintos (Estado de Minas Gerais, 18.09.03).
No encaminhamento das discussões entre sem-terras e órgãos governamentais
ocorre uma ligeira mudança com relação às medidas tomadas no período anterior; o
INCRA passou a arrendar pequenos lotes de terras para a transferência de acampamentos
após a reintegração de posse da área ocupada. Com tal atitude, eles passaram a direcionar
essas famílias a locais que não gerassem conflitos com fazendeiros e evitava, ainda, que
esses acampamentos, após despejo, direcionassem-se para as cidades, como aconteceu com
o acampamento Sul Bonito, em Itaquiraí, em que, após alguns despejos violentos, as
famílias viveram acampadas na cidade por cerca de um ano.
A despeito da indiferença governamental em viabilizar projetos de
assentamento, tem-se um momento de intensos protestos, marchas e manifestações por
parte dos trabalhadores, sobretudo os mediados pelo MST. Com a recusa do governo em
contribuir com a alimentação de sem-terras acampados, ocorrem em vários acampamentos
do estado o abate de reses em fazendas ocupadas e em fazendas vizinhas aos
acampamentos, e também a chamada recuperação de alimentos.
Em 1990, ainda no governo de Marcelo Miranda, o secretário de Assuntos
Fundiários, Aparício Rodrigues, afirmou em resposta a um pedido de socorro dos sem-terra
que: “Desde o início do governo já dissemos que o Estado não tem condições e não pode
dar alimentação a toda família de trabalhador sem-terra que acampe em nosso estado” (O
Progresso, 31.03/01.04 de 1990). O governo do estado por sua vez, em programa
radiofônico, afirmou estar satisfeito com os projetos de reforma agrária do estado: “Nosso
estado tem sido o que mais avançou nessa área, inclusive considerado modelo de reforma
agrária” (O Progresso, 24.04.1990).
Neste mesmo ano assumia o poder o presidente Fernando Collor de Melo, que
mostrava-se receoso com relação à reforma agrária e tinha os ruralistas como seus aliados
de governo. Com um mandado bastante conturbado, não foi diferente no que se refere às
questões agrárias. Fernando Collor havia assegurado em campanha eleitoral um Ministro
94
da Agricultura da região centro-oeste e que não tivesse ligação com a UDR, e assim
indicou para ministro Joaquim Domingos Roriz, ex-governador nomeado do Distrito
Federal, o que causou desconforto e irritação por parte de cooperativas agrícolas, grandes
produtores, bancos etc. Em menos de 15 dias Roriz foi substituído por Antônio Cabrera
Filho, formado em Ciências Agrárias e membro da maior família produtora de leite do
país.
Ao entregar o ministério à Cabrera, em discurso, Fernando Collor coloca sua
conservadora e economicista posição em relação à reforma agrária:
Haveremos, também, de promover uma reforma agrária justa, equilibrada, sem conflitos, de modo a dar acesso a terra, àqueles que precisam da terra para dela retirar seu alimento e contribuir com o aumento da produção de grãos do nosso país (O Progresso, 04.04.1990).
Observa-se, no discurso do então presidente, a preocupação econômica com
uma produção massiva para exportação, com o agro negócio de forma a sobrepor todos os
fatores sociais de um projeto de reforma agrária aos fatores econômicos de interesse
capitalista. A contribuição à produção de grãos para exportação, não deve (ou ao mesmo
não deveria) ser colocada como prioridade ao se cogitar projetos de assentamentos rurais,
uma vez que, com a quantidade de terras de um lote de reforma agrária, esperar uma
produção massiva destinada a exportação é apostar no fracasso desses projetos.
[...] a lógica mercadológica, alicerçada em princípios quantitativos, exigência da estratégia de inserção na globalização, significa um reducionismo à riqueza de possibilidades sociais e históricas, somente percebidas quando critérios qualitativos, que dizem respeito à trajetória e projetos de vida das famílias, são devidamente considerados (FARIAS, 2002, p. 63).
Diante da negativa do primeiro presidente eleito por voto direto, depois de anos
de ditadura, em apresentar um projeto concreto de viabilização da reforma agrária, o MST
decide, durante o II Congresso Nacional do Movimento, realizado em Brasília no ano de
1990, manter as ocupações como forma de luta e resistir mesmo diante de pressões, e
assim adotam a palavra de ordem: Ocupar, resistir e produzir.
O governo adotou políticas neoliberais e repressoras aos movimentos sociais no país. Por isso, a palavra de ordem do Congresso mostrava que as famílias Sem Terra estavam dispostas a enfrentar todas as dificuldades, resistir e lutar por seus direitos (Jornal dos Sem Terra, 24.01.2007).
No entanto, o que se viu nesses anos, com relação ao estado de Mato Grosso do
Sul, foi uma relativa desaceleração nos processos de luta, tanto pelo conturbado momento
político do país, quando pela descredibilidade dos trabalhadores no que diz respeito à
efetivação dos projetos de reforma agrária.
95
Esse período refere-se também ao primeiro ano de mandato de Fernando
Henrique Cardoso (PSDB) na presidência do Brasil. Segundo Farias, ainda como
candidato, Fernando Henrique defendia a idéia de que a reforma agrária não deveria ser
feita sob pressão social, tendo em vista que o caráter emergencial poderia acabar trazendo
atitudes pouco pensadas e não elaboradas. No entanto, ele não previa em sua agenda
política, propostas consistentes para reforma agrária, visto que possuía um plano de
governo baseado em princípios neoliberais, preocupações de integração global que
requeriam propostas de ordem macro-econômicas. A reforma agrária passou a ser
considerada, pelo então governo somente a partir do aumento da pressão popular (2002, p.
60-62).
No ano de 1995, embora estivessem em torno de 1.800 famílias de sem-terras
acampadas no estado, não se tem registro de nenhum novo acampamento. Os movimentos
tinham em vista, ainda, a expectativa de assentamento de 50 mil famílias em todo o país,
conforme programa de reforma agrária prometido em campanha eleitoral e lançado
oficialmente por Fernando Henrique em 26.01.1995 (O Progresso, 27.01.1995).
Muito embora a preocupação neste momento não seja em apresentar uma
história política em relação à reforma agrária, tal menção, mesmo que breve, se faz
necessária, tendo em vista o quanto a conjuntura política e as posições governamentais são
determinantes na condução de projetos sociais desse teor.
Sem desconsiderar a força de transformação da sociedade e a importância das
mobilizações, é notório que as oligarquias agrárias sul-mato-grossenses que controlaram o
poder executivo deste Estado, desde sua criação até os anos de 1998, alternando-se no
poder, influência que ainda permanece forte devido atuação desses sujeitos no poder
legislativo, serviram de entraves às mobilizações e à concretização de projetos de reforma
agrária. Desta forma, as conjunturas políticas e sociais, que também são passíveis de
reestruturações, influenciam na forma de condução das discussões e favorecem ou não, a
concretização de determinadas conquistas sociais.
Assim, os anos entre 1990 e 1995, podem ser visto como um momento de
grandes dificuldades para os trabalhadores rurais sem-terra, com problemas de mobilização
causados pela repressão, pouca ou nenhuma verba orçamentária destinadas a projetos de
assentamentos e apenas algumas medidas paulatinas para conter os focos mais acentuados
de mobilizações.
96
2.3.3 Revigoramento: a luta pela terra a partir de 1996
A última década do período analisado (1996-2005) é apresentada como um
momento de conquistas. Nesses dez anos de luta, 79 projetos de assentamentos foram
implantados e quase dez mil famílias atendidas em Mato Grosso do Sul. Os movimentos
mostraram-se bastante organizados e impuseram-se de maneira ininterrupta, de forma a
contribuir para um direcionamento da reestruturação do espaço rural sul-mato-grossense.
Vislumbra-se, ainda, nesses últimos anos, um aumento considerável de organizações
envolvidas em mobilizações de luta pela terra; além da CUT, que passou a atuar a partir de
1998, outros movimentos e associações passaram a apoiar a luta pela terra e a formação de
acampamentos como forma de pressão à efetivação de projetos de reforma agrária.
Na esfera política, esse período corresponde a sete anos do mandato do
presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) e três anos do mandado de
Luiz Inácio da Silva (Lula do PT, 2003-2010), quanto a governadoria estadual, esse
período corresponde a três anos do mandado de Wilson Barbosa Martins (PMDB, 1995-
1998) e a sete anos do governo José Orcírio Miranda dos Santos (Zeca do PT, 1999-2006).
Conforme os números da luta pela terra, o ano de 1996 marca de forma
acentuada o aumento das mobilizações. Como forma de repúdio aos anos de estagnação na
viabilização de assentamentos, os movimentos articularam-se e lançaram uma série de
ocupações que chegaram a um total de 26 acampamentos no ano de 1996 (cf. tabela 7).
No primeiro mês do primeiro mandado de Fernando Henrique Cardoso foi
lançado seu Programa de Reforma Agrária, que tinha como meta o assentamento de 200
mil famílias em 4 anos. Na ocasião do lançamento do Programa, um representante da
diretoria da CONTAG mencionou os conflitos que o presidente poderia enfrentar caso não
colocasse em prática seu programa de reforma agrária: “O não cumprimento dessa
proposta deverá acirrar a crise fundiária no país, com os sem-terras promovendo ocupações
de áreas rurais que poderão resultar em violentos conflitos” (O Progresso, 27.01. 1995).
Em julho do mesmo ano nenhum projeto havia sido viabilizado e os
movimentos ainda esperavam a ação do Governo. Durante o 3º Congresso Nacional do
MST, que aconteceu em julho de 1995, em Brasília, uma equipe de 26 representantes do
Movimento foi recebida por Fernando Henrique, que reafirmou o compromisso com a
reforma agrária em seu mandato. Em razão desse encontro, João Pedro Stedile se
97
demonstrou esperançoso: “O presidente deu uma demonstração de vontade política que já
representa um grande avanço na reforma agrária” (O Progresso, 28.07.1995).
O que se viu, no entanto, durante todo o ano de 1995, foram projetos parados
no INCRA. Das oito fazendas passíveis de desapropriação no Estado de Mato Grosso do
Sul, as quais tramitavam com processos de desapropriação na justiça, apenas a
Tamarineiro, em Corumbá, foi realmente destinada a assentamento de famílias de sem-
terras, assentando tão somente 391 famílias. O MST acusava, neste momento, a falta de
estrutura e ineficiência do INCRA pela não viabilização das desapropriações, tendo em
vista que os erros apresentados nos projetos de desapropriação abriam espaços para
inúmeros recursos judiciais por parte dos proprietários, o que protelava a desapropriação.
Como resposta a esses entraves apresentados no ano de 1995, as mobilizações
e ocupações voltaram de forma massiva no ano seguinte. Outras mudanças presentes na
luta pela terra, a partir de então, também têm suas raízes nesse período de estagnação,
como a assistência alimentar aos acampados, que passou a ser cogitada a partir das
recuperações de alimentos feitas pelos sem-terra, sobretudo, em relação aos acampados na
fazenda Sul Bonito, em Itaquiraí. No ano de 1995, dois saques consecutivos a um
caminhão frigorífico e a um caminhão pertencente a uma empresa atacadista, feito pelos
sem-terras acampados em Itaquiraí, chamou a atenção das autoridades à precária situação
em que essas famílias estavam vivendo à margem das estradas.
A tabela 7 apresenta o número de acampamentos e famílias de sem-terras
acampadas no Estado entre os anos de 1996 a 2005:
Tabela 7: Acampamentos/ocupações e número de famílias acampadas por mediadores 1996-2005
Ano MST
Acampamento
MST Nº
Famílias
CUT Acampamento
CUT Nº
Famílias
FETAGRI Acampamento
FETAGRI Nº
Famílias
Total Acampamento
Total de Famílias
1996 6 505 ** ** 20 2.425 26 2.930 1997 7 2.452 ** ** 8 965 15 3.417 1998 6 2.841 6 641 * * 12 3.482 1999 8 1.914 6 490 2 200 16 2.604 ocupação nº família ocupação nº família Ocupação nº família ocupação nº família
2000 15 2.910 24 2211 16 1385 55 6.506 2001 8 913 15 1097 5 584 28 2.594 2002 3 180 1 150 4 178 8 508 2003 5 1.150 1 15 1 40 7 1.205 2004 10 2070 4 500 3 280 17 2.850 2005 4 190 1 70 1 67 6 327
Fonte: FARIAS, 1997; Ouvidoria Agrário Estadual. * não foram encontrados registros ** O DETR da CUT não estava estruturado
98
No ano de 1996, o número de acampamentos chegou a 26, com cerca de 2900
famílias acampadas. Nos anos que se seguem, até 1999, o número de acampamentos é
reduzido, mas mantêm um alto número de famílias acampadas. Isso está relacionado a uma
massificação dos acampamentos, com a fusão de pequenas mobilizações.
Em relação ao período de 2000 a 2005, ocorre uma diferenciação na coleta de
dados. A relação de acampamentos e famílias de sem-terra acampadas nos anos anteriores
foi elaborada com base nos dados oferecidos por Farias, 1997 e 2003, e aos poucos dados
fornecidos pelos mediadores e pelo INCRA. Quanto ao período de 2000 a 2005, os dados
foram elaborados de acordo com informações fornecidas pela Ouvidoria Agrária Estadual,
que diferente dos dados dos anos anteriores, registra não o número de acampamentos
existentes no Estado, mas sim o número de ocupações que ocorreram dentro de um
determinado ano.
O mapa seguinte (figura 3) registra os municípios em que ocorreram essas
ocupações de terras, classificadas por ano e por mediador.
Figura 3: Mapa das ocupações de terras em MS – 2000-2005
99
Observa-se pelo mapa (figura 3) que a concentração dos acampamentos se
mantém como nos anos anteriores, sobretudo, no sul do estado, com apenas alguns
acampamentos localizados mais ao norte e em áreas pantaneiras. Já a região mais a oeste
de Mato Grosso do Sul, nas divisas com São Paulo e Minas Gerais, é a que menos
apresenta focos de mobilizações sociais de luta pela terra. As cidades de Itaquiraí e
Eldorado mantêm a tradição de referencial de foco das mobilizações de sem-terra, com oito
e sete ocupações de terra entre esses seis anos, respectivamente.
O mapa a seguir (figura 4) apresenta as localidades dos acampamentos
existentes no Estado em 2005, classificado por mediador:
Figura 4: Mapa acampamentos rurais existentes em MS - 2005
A tabela 7 apresenta o número de ocupações entre os anos de 2000 a 2005
(dados a Ouvidoria Agrária Estadual) e a figura 4, apresenta a localização dos
acampamentos que existiam no Estado no ano de 2005 (dados dos mediadores). Na análise
entre os dados, verifica-se um fato curioso: o MST e a CUT apresentam um número maior
100
de ocupações, nesse período, com 45 e 46 respectivamente, com relação ao número de
famílias o MST mediava cerca de 7400 famílias e a CUT, cerca de 4000 mil famílias,
enquanto a FETAGRI mediou 28 ocupações que contava com cerca de 2500 famílias. Mas
a análise dos acampamentos existentes no ano de 2005 revela uma situação oposta,
segundos esses dados, em 2005, a FETAGRI tinha sob sua mediação 100 acampamentos,
totalizando 12.734 famílias, o MST mediava 23 acampamentos e 6.662 famílias, enquanto
a CUT mediava 32 acampamentos e 3.272 famílias. Além de considerar que os dados com
relação aos acampamentos existentes foram fornecidos pelos próprios mediadores, essa
discrepância também ocorre tanto pelo fato da FETAGRI, em muitos casos, montar seus
acampamentos fora dos limites das propriedades, à margens das estradas, o que não
configura, para o poder judiciário, uma ocupação de terra, quanto pelo imediatismo com
que alguns acampamentos surgem e são desfeitos.
Destaca-se, ainda, que o número de trabalhadores sem-terra e a mobilização
popular de luta pela terra em Mato Grosso do Sul avoluma-se a cada ano, tendo em vista
que entre os anos de 1996 a 2001 foram assentados quase dez mil famílias e ainda assim o
número de sem-terra acampados se manteve expressivamente alto. Segundo dados da
Ouvidoria Agrária Estadual, no ano de 2000, o estado de Mato Grosso do Sul era
absolutamente o estado com maior número de ocupações de terra, 22% contra 17% no
estado de Pernambuco, o segundo colocado.
O considerável aumento das mobilizações e do número de trabalhadores sem-
terra nos últimos anos tem contribuído para o aumento também do número de
desapropriações de terras no estado. Os anos de acirramento dos movimentos foram
também os anos em que mais assentamentos foram criados dentro do Estado. Mesmo que,
com critérios bastante discutíveis, foram implantados 79 assentamentos com quase dez mil
famílias atendidas. Medidas que estão longe de significar uma reestruturação no espaço
agrário, ou mesmo uma proposta política e social que vislumbre uma reforma agrária de
qualidade, tendo em vista que a viabilização desses projetos só ocorreu efetivamente em
decorrência de pressão social para desapropriação de terras.
Embora a lista de assentamentos pareça grande, a área destinada a
assentamentos nesse período representa somente 0,87% da área rural de Mato Grosso do
Sul, que é, segundo o último censo agrário (1995/1996), de 30.942,772 ha.
101
Tabela 8: Projetos de assentamentos em MS – 1996-2005
Denominação do
Projeto Área (ha) Nº de Famílias
Ano implantação Município
1 Paiolzinho 1.196,7523 70 1996 Corumbá 2 São João 856,1606 58 1996 Batayporã 3 Mutum 15.831,6943 340 1996 Ribas do Rio Pardo 4 Mercedina 803,2433 56 1996 Batayporã 5 Andalucia 4.815,1088 166 1996 Nioaque 6 Sul Bonito 6.375,9385 421 1996 Itaquiraí 7 Tupanceretan 2.546,4421 81 1996 Bela Vista 8 Patagônia 3.502,8887 128 1997 Terenos 9 Nova Alvorada 3.000,8266 86 1997 Nova Alvorada do Sul
10 Corona 1.095,8569 58 1997 Ponta Porá 11 Campina 2.408,8339 76 1997 Bodoquena 12 Capão Bonito II 8.231,4968 308 1997 Sidrolândia 13 Floresta Branca 4.980,9931 185 1997 Eldorado 14 Lagoa Grande 4.071,4428 151 1997 Dourados 15 Primavera 2.535,1451 71 1997 Jaraguari 16 Campanário 2.851,0325 132 1997 São Gabriel D’Oeste 17 Nova Querência 3.864,6432 157 1997 Terenos 18 Santa Clara 4.353,3284 156 1997 Bataguassu 19 Serra 2.986,1066 116 1997 Paranaíba 20 Triângulo 927,1312 50 1997 Rio Brilhante 21 Santa Guilhermina 7.994,7290 224 1997 Maracajú / Nioaque 22 Amparo 1.126,8933 67 1997 Dourados 23 Paraíso 3.308,4025 98 1997 Terenos 24 Rancho Tupambaê 1.869,6828 130 1997 Miranda 25 Guaçu 2.678,9794 134 1997 Itaquiraí 26 Santa Rosa 4.048,1606 200 1997 Itaquiraí 27 Palmeira 4.172,7154 112 1998 Nioaque 28 Córrego Dourado 1.399,9700 49 1998 Santa Rita do Rio Pardo 29 Montana 1.567,7738 70 1998 Bataguassu 30 Taquara 1.550,2765 67 1998 Rio Brilhante 31 Caracol 6.326,5804 152 1998 Bela Vista 32 Fortuna 2.383,1961 108 1998 Rio Brilhante 33 Aldeia 10.718,2345 217 1998 Bataguassu 34 Santa Amélia 2.029,8895 74 1998 Dois Irmãos do Buriti 35 Rio Feio 2.344,7747 72 1998 Guia Lopes da Laguna 36 São Judas 4.155,3658 187 1998 Rio Brilhante 37 72 2.343,4143 85 1998 Ladário 38 Santa Paula 590,0000 89 1998 Bataguassu 39 Santa Catarina 1.958,6037 78 1998 Aral Moreira 40 Tamakavi 3.383,5670 120 1998 Itaquiraí 41 Santa Lúcia 1.026,7440 36 1998 Bonito 42 Bandeirante 2.033,4466 45 1998 Miranda 43 Pam 5.029,9237 115 1998 Nova Alvorada do Sul 44 Savana 5.674,7702 212 1998 Japorã 45 Boa Sorte 1.498,0306 65 1998 Itaquiraí 46 Boa Esperança 3.945,5065 126 1998 Nioaque 47 Uirapuru 7.067,8847 290 1998 Nioaque 48 São Pedro 8.592,2341 295 1998 Sidrolândia 49 N. S. Auxiliadora 8.707,5818 252 1998 Iguatemi 50 São Sebastião 2.967,6652 100 1998 Ivinhema 51 São Cristovão 947,8198 34 1999 Paranhos 52 Conquista 1.557,9073 65 1999 Campo Grande 53 Bonsucesso 664,7972 27 1999 Rio Brilhante 54 Fortaleza 384,9028 14 1999 Rio Brilhante 55 Vista Alegre 1.030,8248 49 1999 Sidrolândia 56 Boa Vista 2.165,2940 50 2000 Ponta Porá 57 Vacaria 1.067,0000 48 2000 Sidrolândia 58 Santa Irene 2.473,2570 72 2000 Anaurilândia 59 Santa Renata 1.117,4161 35 2000 Tacuru 60 Jibóia 7.877,7365 238 2000 Sidrolândia
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61 Catangalo 1.256,6073 50 2000 Maracaju 62 Guardinha 989,4907 30 2000 Jardim 63 Indianópolis 1.758,4500 65 2000 Japorã 64 Mambaré 1.948,6004 72 2000 Mundo Novo 65 Nova Era 2.848,1074 105 2000 Ponta Porá 66 Nossa Srª. Do Carmo 1.192,9967 41 2000 Caarapó 67 Dorcelina Forlador 8.118,3095 270 2000 Ponta Porã 68 Capão Bonito III 600,0000 23 2000 Sidrolândia 69 Sebastião Rosa da Paz 1.210,4350 42 2000 Amambaí 70 Laguna do Eldorado 2.280,7260 45 2000 Eldorado 71 Aroeira 1.855,6069 88 2000 Chapadão do Sul 72 Aliança 1.101,6902 39 2000 Itaquiraí 73 Margarida Alves 3.429,1890 115 2000 Rio Brilhante 74 Itamarati 25.010,5039 1.300 2000 Ponta Porá 75 Geraldo Garcia 5.688,90 190 2000 Sidrolândia 76 Pontal do Faia 1.485,0000 44 2000 Três Lagoas 77 Lua Branca 2.425,3962 81 2000 Itaquiraí 78 Santa Terezinha 1.537,9131 64 2001 Sidrolândia 79 Valinhos 2.033,8089 86 2001 Maracaju
Total 272.217,03 9967 Fonte: INCRA – Dourados
A partir de meados da década de 1990, a resposta política às mobilizações de
luta pela terra perdeu parte de seu caráter violento e de extremo descaso; não que o
processo de luta tenha se tornado fácil, mas a forma de condução das discussões evoluiu
junto com um processo político e histórico de democratização do país.
Nesse último período estudado, vê-se com freqüência despejos negociados, com
pouca ação policial, discussões mais abertas e propostas mais consistentes. Em alguns
casos, verifica-se uma pressão simbólica, como no caso da fazenda Sul Bonito, em
Itaquiraí, onde cerca de 200 policiais permaneceram por uma semana no local do
acampamento em estado de alerta, de forma a coagir as famílias acampadas, o que resultou
na saída das famílias, mas sem nenhum confronto armado ou agressões físicas.
Foi também a partir desse período que as famílias de sem-terra passaram a ser
atendidas com alimentação básica para subsistência, o que pode ser também visto como
mero assistencialismo, mas evita maiores dificuldades de sobrevivência em um espaço
social de tantos conflitos e faltas; evita os saques de alimentos e abates de bois, ações que
muitas vezes causam desconforto às famílias e repúdio social. Embora com muita
reivindicação, alguns acampamentos passaram a ser atendidos com alguns serviços sociais
básicos, como transporte escolar e atendimento médico.
Os dados estatísticos apresentados pela CPT mostram o declínio de sem-terras
presos e mortos em conflitos agrários em quase todos os estados brasileiros. Em Mato
Grosso do Sul, entre os anos de 1996 a 2005, foram quarenta sem-terras presos, contra um
total de 135 no período anterior.
103
A diminuição de medidas violentas está relacionada também ao fato das classes
políticas mais conservadoras e mesmo da elite agrária não terem encontrado mais o mesmo
apoio de antigamente. A milícia armada mantida por fazendeiros perdeu sua falsa
legitimidade e passou lentamente a ser, se não extinta, mas extremamente discreta. O caso
de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996, que resultou na morte de 19 sem-terras
com repercussões internacionais e grande comoção social, soou como um alerta às
autoridades políticas quanto à necessidade de projetos sociais destinados a esses
trabalhadores e a uma maior atenção às formas de tratamento dispensadas a essas
mobilizações.
Um dos coordenadores nacional do MST, João Pedro Stedile, em entrevista,
também chama atenção ao declínio de ações violentas a partir de 1996: “Se considerarmos
Carajás como um caso a parte, vamos constatar que houve uma redução significativa da
violência” (O Progresso, 20.12.1996).
Segundo Farias, a mudança de estratégias em alguns setores sociais e
econômicos no governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos de 1997/1998, está
relacionada também ao processo político de reeleição que se apontava. Processo esse que
resultou na reeleição do então presidente e em uma mudança política de suma importância
no Estado de Mato Grosso do Sul, com a eleição de um governo do Partido dos
Trabalhadores, alterando o sistema político controlado por oligarquias latifundiárias,
mantido desde a criação do Estado. A eleição do governador José Orcírio Miranda (1998)
criou um quadro de esperança na população, que passou a deslumbrar medidas sociais e
políticas, imediatas e radicais (2003, p. 69-70).
Todo esse processo de luta pela terra, a abrangência dessas mobilizações, o
número de trabalhadores sem-terra que cresce a cada dia, as proporções tomadas por esses
acampamentos, leva-me a buscar entender e analisar como isso acontece na prática, como
esses sujeitos de tão diversos lugares, de tão diversos sotaques, unem-se em torno de um só
objetivo, uma só vontade, e por que não, um só sonho.
Direcionado meu olhar, neste momento, para o sujeito dessa luta, passo a
analisar o cotidiano e as formas de organização dessas mobilizações com o objetivo de
compreender o mecanismo dessa organização e o que faz, ou não, com que essas famílias
permaneçam muitas vezes por até dez anos vivendo sob barracos de lona à margem das
estradas.
104
CAPITULO III:
POR OUTRA HISTÓRIA: “É POR ISSO QUE A GENTE LUTA”
Tenho tanta vontade de ter um sítio, mais cedo o mais tarde, hoje ou mais amanhã, eu vê o futuro de meus filho ir pra frente, eles tudo trabalhano, a gente ter um lugar sossegado pra morar, né? Foi por isso, então, por isso que a gente luta, é por isso, nossa luta é essa (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
105
3.1 Ser sem -terra: a adesão de trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra
A gente vai pros bairros mesmo, se você não conhece você procura por associação de bairro, ou se não tem associação, sempre tem alguém que busca alguma coisa, ou a Igreja, ou a coordenadora do grupo de família... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
Nós ia passando na rua e daí nós viu uma reunião de gente, aí eu falei pro meu marido: “João, que diacho que é aquilo ali”? Ele falou assim: “ah, Neia, não sei não, acho que é o povo que ta reunindo pra ir pro sem terra. Mas isso não é coisa de gente não”. Meu marido falou, né? Aí eu falei: “ah, eu vou ali”. Daí nós chegemo, né? aí eles começaro fala, fala, daí eu falei, depois que cabou a reunião falei pro João: “ah, e eu vo!” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
O acampamento é um espaço de inúmeros conflitos e composto por relações
complexas, no entanto, os conflitos iniciam antes mesmo da chegada desses sujeitos a esse
novo espaço. A decisão de acampar, em muitos casos, é tomada em meio a um conjunto de
sentimentos antagônicos, divergências, dúvidas, medos, expectativas, esperanças; para
muitos a decisão de participar de um ocupação/acampamento se torna a única saída
possível e surge como conseqüência de uma vida de sofrimentos e privações.
Diante das experiências de vida e de trabalho narradas por esses sujeitos, é
possível compreender o porquê de estarem vivendo à margem das estradas, sob um
vulnerável barraco de lona, a espera de um lote de terras. Essa espera, muitas vezes, marca
a última esperança, a única saída possível, mesmo que tão incerta. A vida sob o barraco de
lona é o possível naquele momento. Esse processo contempla uma gama variada de lutas e
de sonhos, entre os mais evidentes estão o sonho de ter um pedaço de terra, a necessidade
de sobrevivência e a luta por trabalho e moradia, aspirações estas que estão neste
espaço/tempo sendo alimentadas pela expectativa de um projeto de reforma agrária.
Importa, neste momento, compreender a gênese desse processo de luta. Como
acontece a adesão desses trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela, já que não se
trata de movimentos espontâneos, mas sim mediados, pensados e organizados por
entidades como o MST, a CUT e a FETAGRI. Esse processo evidencia uma vida marcada
por problemas sociais, como dramas familiares, habitacionais, de emprego e subsistência.
106
Esses sujeitos constituem o que Martins identificou como “um conjunto grande de
descartes sociais e de alternativas de vida não realizadas” (2003, p. 17).
Ao aderirem aos movimentos, muitos desses sujeitos deixam casas, escolas,
vizinhos, amigos, família e trabalho; são rupturas que, em muitos casos, não se pode reatar;
são mudanças que transformam o mundo de sociabilidade desses sujeitos. Essa adesão
envolve, além de questões práticas, como a mudança de espaço, questões relacionadas aos
referenciais, aos princípios, à constituição de uma identidade de sem-terra. Essas
transformações e rupturas ficam mais evidentes nos grupos mediados pelo MST, isso
porque esse Movimento defende uma mudança real das famílias para o acampamento, o
que não ocorre com os outros mediadores. Congregar pessoas é um caminho que se faz
necessário a qualquer movimento social, na luta pela terra isso acontece de maneira bem
específica no MST, na CUT e FETAGRI.
Segundo Fernandes, o espaço de socialização política em que acontecem os
trabalhos para uma ocupação de terras possui três dimensões: a) o espaço comunicativo –
que se constrói nas primeiras reuniões, nas apresentações e nas definições de objetivo; b) o
espaço interativo – momento em que se desenvolvem sentimentos de interação, de
identificação, com trocas de experiências de vida (“onde vem os exemplos”, como disse
dona Leonice), em alguns casos pode ser visto até como um espaço de formação; c) o
espaço de lutas e resistências – quando através da ocupação os trabalhadores vêm a
público e percebem a própria vida transformada (2000, p. 283-284).
Embora na relação de conhecimento e aproximação entre trabalhadores, e/ou
grupos sociais, com propensão a participarem de uma ocupação de terra e os mediadores,
essas dimensões possam ser visualizadas, é importante salientar que, no estudo em questão,
tais dimensões não são lineares ou estanques, mas apresentam variações e algumas são até
suprimidas em determinados casos.
O espaço comunicativo é o momento em que os sujeitos sociais são
apresentados à proposta do movimento, ocasião em que os trabalhadores participam das
primeiras reuniões e recebem as propostas para a ocupação. Esse início de adesão
acontece de formas diversificadas: alguns, diante das dificuldades em que vivem, procuram
representantes de movimentos e sindicatos; outros são convidados por amigos, vizinhos e
parentes que estão decididos a ir para o acampamento; há também àqueles que têm
conhecidos que conseguiram um lote de terra e decidem partir para luta impulsionados
pelo exemplo de êxito e existem também muitos filhos de assentados pleiteando um lote de
terra para si; entre outras situações.
107
Há casos em que os movimentos ou sindicatos buscam o contato com famílias
interessadas pela causa, no entanto, em determinadas situações, o inverso também
acontece. Há casos em que os próprios grupos, ou família, procuram o apoio do MST ou de
sindicatos, isso acontece, principalmente, em momentos de grandes dificuldades, como,
por exemplo, a falta de trabalho, de habitação, os problemas familiares ou a perda de
emprego.
A metodologia de trabalho dos mediadores é diferenciada nesse primeiro
contato com as famílias. O caráter sindical e municipalista da FETAGRI e da CUT
imprime uma forma diferenciada de congregação dos sujeitos sociais. Com o auxílio
desses mediadores, o trabalho é feito pelo sindicato municipal que são constituídos por
pessoas da comunidade local, ou ao menos intercedida por elas. Os associados representam
grande parte dos sujeitos que ingressam nas ocupações propostas por esses mediadores. O
MST, que não possui um representante em cada município (sindicato), apresenta forma
diferente de atuação, ele busca o contato com esses sujeitos por meio de reuniões feitas
pelos militantes dentro de determinados grupos sociais. Trata-se de uma atividade
institucionalmente chamada de trabalho de base desenvolvida por militantes do setor de
Frente de Massa.
O setor de Frente de Massa é um dos muitos setores criados pelo MST para a
organização da luta pela terra, sua função é exercer um trabalho, denominado de trabalho
de base, que consiste em organizar as ocupações e trabalhar no sentido de efetivá-las, indo
aos municípios selecionados, buscando apoio, agregando pessoal, fazendo as reuniões e
montando os acampamentos.
O acampamento Oito de Março foi detalhadamente articulado por cerca de seis
integrantes da direção estadual do MST. Pessoas estas que tomaram decisões como a
escolha da área, data, estratégias de contatos com as famílias e com militantes para o
trabalho de base.
Para montar o acampamento foi escolhida uma das maiores propriedades de
Itaquiraí, a fazenda Santo Antônio, que embora produtiva pelas definições legais, possuía
cerca de cinco mil hectares não documentados. A fazenda, de propriedade do Grupo
Bertin, possuía 19.679 ha registrados e ocupava na prática 25.560 há, tinha sua produção
voltada para criação de gado de corte destinada ao abastecimento da rede frigorífica do
grupo.
O trabalho de base para a articulação dessas mais de duas mil famílias durou
apenas três meses, o que evidencia um contingente de trabalhadores sem-terra já
108
previamente articulado. O Movimento planejava uma grande mobilização, que tivesse
repercussão nacional, com um contingente de pessoal significativo. Para isso, tudo tinha
que estar adequado: a área, a data, o número de famílias, e incluindo, também, o sigilo da
ocupação.
Em comunicação oral, os militantes do MST narram como esse trabalho de
construção do espaço comunicativo se efetiva: Geralmente é assim... quando você vai pra um município você procura pessoas assim... o sindicato, alguns movimentos que apóiam o Movimento Sem Terra, né? Então a gente faz contatos com pessoas que apóiam o Movimento, e daí a gente inicia os trabalhos, né? Tem alguns municípios que a gente já tem esse contato, tem outros, que não tem e aí a gente tem que faze, né? [...] Você vai lá hoje: “Olha, eu vim aqui, sou do Movimento Sem Terra, nós estamos fazendo um trabalho de base conscientizando as pessoas pra ocupação”. Vamos colocar os objetivos, o que a gente quer com isso, né? E aí a gente marca a reunião, na data que a gente marcou a gente volta, aí começa... você faz várias reuniões... Aí, assim... tem dez, né? Esses dez, na próxima, tão encarregados de convidar outras pessoas. E assim por diante... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
Na verdade a gente buscou contato com a igreja, com o PT, com os sindicatos nesses municípios e as famílias que vinham procurar a gente. Então a gente deslocava algumas pessoas pra esses municípios. Militantes do movimento, que parava na casa de pessoas interessadas, e lá ia organizando o pessoal. Fazendo as discussões das dificuldades que teria dentro do acampamento da dificuldade do enfrentamento com a Policia, com o governo e... pra realmente fazê um processo de conscientização (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Nesse “processo de conscientização”, ou no trabalho de “colocar os objetivos”,
é que se define o objeto, e é nesse momento que as famílias, ou os indivíduos, ficam
tentados a participar ou repudiam a ação. “Conscientizar” e “convencer” são as estratégias
usadas pelos militantes para que os sujeitos participem da luta. Os que simpatizam-se com
a proposta passam a freqüentar as reuniões e poderão, ou não, participar da ocupação. Da
eficiência dessa didática militante depende a decisão desses sujeitos, mas não apenas dela,
pois os referenciais constituídos ao longo da vida do indivíduo influenciam, ou não, na
aceitação desse imaginário mobilizador, assim como também as condições financeiras,
habitacionais e familiares são condicionantes na decisão de acampar ou não.
Quero com isso dizer que o fato de se tornar sem-terra pode envolver
sentimento de pertença, pode constituir um imaginário mobilizador e uma consciência de
classe, mas não necessariamente. Nesse sentido, vejo as identidades sociais, a partir de
uma definição posta por Chartier, como uma construção e resultado “de uma relação de
força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de
nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma”,
109
aceitando assim, que cada classe, grupo ou meio, possa ser compreendido como um “ser-
percebido”, capaz de constituir sua própria identidade (2002, p. 73).
Além do trabalho de conscientização, outros fatores, como a escolha a área a
ser ocupada, são preponderantes para que uma ocupação ocorra e para que o Movimento
consiga levantar um contingente de pessoas para a luta. A ocupação da fazenda Santo
Antônio fez parte de uma agenda de lutas proposta para acontecer em nível nacional;
lideranças estaduais articularam uma mobilização que realmente tivesse repercussão e
atendesse às expectativas do Movimento. A esse respeito, um dos líderes do acampamento
comenta como foi feita a escolha da área:
A área, na verdade, foi feito uma pesquisa em toda região onde ta sendo trabalhado, e aí a definição da área vai pelo um... na verdade a gente queria pegar um latifúndio que fosse grande, de grande extensão e que desse uma repercussão no Estado e a nível nacional. E realmente naquele período a gente conseguiu fazê isso. E é de um grupo importante, o grupo dos Bertin, que são os maiores exportadores de carne hoje do Brasil (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Para a escolha, da área também prevaleceu outros aspectos, como a presença de
várias lideranças e coordenadores estaduais do MST naquela região, imediações do
município de Itaquiraí e também, a questão de acessibilidade para as famílias. A
propriedade estava localizada em uma área estratégica, o que facilitava o deslocamento de
famílias vindas do Paraguai, Paraná e todo sul do Estado. Ao todo pude identificar a
participação de trabalhadores sem-terra de 18 municípios sul-mato-grossenses (Sete
Quedas, Tacurú, Iguatemi, Japorã, Mundo Novo, Itaquiraí, Eldorado, Naviraí, Nova
Andradina, Juti, Caarapó, Dourados, Fátima do Sul, Gloria de Dourados, Vicentina, Jatei,
Ivinhema e Novo Horizonte), famílias de brasiguaios e alguns grupos de famílias
paranaenses.
A esse respeito Leonice, uma militante que colaborou no trabalho de base,
comenta as estratégias do Movimento na tentativa amenizar os gastos e assim facilitar a
locomoção dos trabalhadores:
Por questão que nessa região aqui tinha mais gente mobilizado. Ficaria mais perto, tinha mais condições financeiramente do pessoal chegá até a área. Porque quem tinha que pagá o frete era eles mesmo, que paga, lona... tudo, tudo. A cesta, a alimentação, tudo eles. Então a gente definiu que nessa região aqui, vindo do Paraguai, vindo de Mundo Novo, Itaquiraí, Naviraí, Iguatemi, é... essa região aqui pra cima. Então ficaria mais perto do que nós dali deslocar a pessoal de Caarapó pra lá, então ficava mais longe o frete. Então nos teve que mais o menos, defini a metade (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Os contatos com as famílias para o trabalho de convencimento e constituição
do acampamento Oito de Março não foge ao de outras ocupações do Movimento.
110
Militantes foram enviados aos municípios selecionados e, após contatos com Sindicatos de
Trabalhadores Rurais, associações de bairros e instituições religiosas, eles chegaram até as
famílias, sobretudo, à população pobre que residia no meio urbano. A partir deste momento
começa o trabalho de base, várias reuniões foram marcadas e a cada uma delas mais
pessoas são convidadas a participar; as pessoas presentes são instigadas a convidar um
amigo, um vizinho, um parente para participar das reuniões.
Dona Edinéia lembra como resolveu participar da ocupação. Andando pelas
ruas de Mundo Novo avistou um aglomerado de pessoas, por curiosidade resolveu entrar e
conferir. Como supunha seu marido, que no momento a acompanhava, era uma reunião do
MST. Sentiu-se atraída pela proposta do Movimento e resolveu: “Eu vou pra isso aí”.
Decidida, dona Edinéia teria a batalha de convencer o restante da família.
Essas reuniões, como a que dona Edinéia participou por acaso, geralmente
acontecem na casa de um morador, mas podem ocorrer também nas dependências de
igrejas de bairros, nos sindicatos municipais e até mesmo no meio da rua. Existem relatos
de que carros de som são colocados nas ruas para convidar os moradores a participarem
das reuniões.
Em alguns casos, o trabalho de base é feito por moradores da própria
comunidade que conhecem o Movimento de outras mobilizações, ou mesmo que já tenham
conseguido um lote de terra e voltam à militância convidando um grupo de conhecidos. Há
casos, ainda, em que as reuniões são organizadas por moradores de outros lugares, que
com sua experiência de vida e alguns contatos prévios, conseguem juntar um grupo de
pessoas, conversar e efetivar o espaço comunicativo. Segundo Fernandes, o trabalho de
base nasce sempre da própria necessidade das comunidades e é resultado da espacialização
e/ou da espacialidade da luta pela terra (2000, p. 282).
Já no processo de congregação das famílias feito pela FETAGRI e pela CUT, a
metodologia e as estratégias usadas são outras. A coordenação do movimento busca
parceria com o sindicato local, em alguns casos o sindicato municipal já tem previamente
um contingente de trabalhadores disposto a lutarem por um pedaço de chão, e buscam o
apoio ou da Federação ou da CUT.
Os coordenadores estaduais da FETAGRI mantêm relação com os STR’s
(Sindicato dos Trabalhadores Rurais) e esses efetivam o trabalho de congregação das
famílias, de levantamento de áreas e as possibilidades de ocupação, tendo em vista suas
experiências de vida e de trabalho naquela comunidade. A Federação também investiga
possibilidades de ocupação buscando informações sobre possíveis desapropriações de
111
áreas junto aos órgãos estaduais. Nesses casos, os sindicatos são incumbidos de levantar
um contingente de trabalhadores sem-terra disposto a se direcionar a essa determinada
área.
Quando um acampamento é efetivado em uma região e o sindicato municipal
não possui um número de sem-terra suficiente para aquela área, a FETAGRI entra em
contato com outros Sindicatos e oferece vaga para acampamento. As vagas são ofertadas
em números específicos, isso porque a FETAGRI tem como método de trabalho montar
acampamentos com número de famílias aproximado aos que poderão ser assentados na
área ocupada.
Os representantes sindicais municipais são os que fazem a construção do
espaço comunicativo, apresentam propostas, expõem objetivos e buscam apoio na
comunidade local para viabilização das ocupações. A FETAGRI e a CUT fazem um
trabalho de mediação entre coordenadores de acampamento e presidentes de sindicatos
com órgão estaduais, INCRA, Secretaria de Segurança Pública. Cabe ainda a esses
mediadores a reivindicação para a viabilização de cestas básicas e desapropriação de áreas
junto ao governo estadual e ao INCRA.
A CUT, que apresenta na região um número reduzido de coordenadores
estaduais, também trabalha em parceria com os STRs, mas não possui uma hierarquia
previamente estabelecida, os coordenadores estaduais buscam atuar em todas as esferas,
muito embora isso não lhes seja possível, tendo em vista as limitações humanas.
Os sindicatos dos municípios envolvidos na pesquisa, embora possuam filiação
também à CUT, tendem a trabalhar de forma mais contundente com a FETAGRI, por isso,
grande parte dos acampamentos organizados pelos STRs no extremo sul do estado são
mediados por ela. Segundo alguns presidentes de sindicatos isso acontece por que “a
FETAGRI dá mais abertura pra gente”, “atende mais o sindicato” ou mesmo “é melhor de
trabalhar”. Essa preferência pelo apoio da FETAGRI está relacionada também a questões
de infra-estrutura, já que a CUT possui uma atuação relativamente recente em relação aos
acampamentos rurais e um grupo pequeno de pessoas para atuar.
Para a organização do acampamento Pedro Ramalho, articulado pelas
lideranças do STR de Mundo Novo, com apoio da FETAGRI, foi de suma importância a
interação desses representantes sindicais com a comunidade local. Segundo o então
presidente do sindicato: “Nós tinha na época um tipo de um cadastramento das pessoas que
não tinham terra, dos trabalhado rural sem-terra, e das pessoa interessada em pegar terra”
(Entrevista, Valdir, 30.04.2007). A partir desse reconhecimento da realidade local –
112
pessoas dispostas a lutarem pela terra e as propriedades que poderiam ser passíveis de
desapropriação – esses sujeitos, ou pequenos grupos sindicais, passam a idealizar as
ocupações.
Os sujeitos que estão inseridos nos STRs são geralmente naturais da cidade
onde exercem suas funções ou já construíram uma vida de sociabilidade junto à elas, isso
permite-lhes conhecer as necessidades da população local, identificar onde estão os grupos
de famílias mais propensos a participação na luta e a quem devem ser delegadas a função
de coordenador, além se saberem, ainda, se existem áreas passíveis de desapropriação.
Com esses dados levantados e famílias previamente articuladas, finda o
processo inicial de comunicação, a primeira etapa é vencida e há ainda muito trabalho pela
frente.
As famílias percebem esse momento ainda com bastante receio e, em muitos
casos, resolvem participar das reuniões “pra vê como é que é”.
O trabalho de convencimento presente nas falas de militantes do MST, consiste
em apresentar aos sujeitos propensos a participar da luta a possibilidade de conseguir um
pedaço de terra com a mediação do Movimento. É na verdade, um processo interativo,
constituído por um trabalho de convencimento, feito na base da mobilização.
As reuniões que antecedem as ocupações, sobretudo do MST, podem ser vistas
como espaços de formação política, é esse contexto que determina quem irá participar da
luta. Na ocupação da fazenda Santo Antônio, esse trabalho foi realizado por cerca de 15
pessoas e dele dependia o êxito da ocupação. Os militantes foram enviados aos municípios
escolhidos com a incumbência de agregar pessoas para a luta. Detentores de um discurso
mobilizador, e de grande poder de convencimento, temas como a legitimidade bíblica da
luta pela terra, o direito de volta às raízes, o inconformismo com a exploração e os perigos
da vida na cidade, são recursos utilizados nesse trabalho e facilmente absorvidos por
pessoas em difíceis condições de sobrevivência, desempregadas, que levaram uma vida
errante, marcada por sofrimentos, humilhações e dificuldades de toda ordem.
A esse respeito, a senhora Leonice, militante do Movimento e uma das
coordenadoras do acampamento Oito de Março, relata em forma de diálogo como acontece
esse trabalho: Você chega lá num presidente de bairro de uma comunidade, você chega lá conversa com o presidente, conversa com o presidente do sindicato, entendeu? Conversa com a Igreja, com o padre, com as irmãs, com as freiras, como queira que se trata e coloca o quadro. E lá na base deles eles falam: fulano lá é presidente de bairro, cê pode chega ali conversa com ele e vê se tem possibilidade. Você vai numa reunião que já tem
113
de bairro e você abre o jogo lá. Coloca o quadro, fala ô: “reforma agrária não existe de hoje, existe de muito tempo, que a gente sabe que existe muito tempo. A luta pela terra não começo hoje, começo a muito tempo, desde Cristo, que andava 40 anos pra consegui um pedaço de terra. E que, terra nós sabemo que tem. A situação na cidade vocês sabem que é difícil e cada vez complicando”[...]. Aí nós pega um exemplo, uma pessoa mais velha lá da reunião: “Quantos anos Sr. tem? Nos fala”. “Há eu tenho 50!” “Sr. começou trabalhar com que ano”? Aí ele vai fala: “Eu comecei trabalha com 9 ano”. “De 9 ano até hoje, Sr. trabalhou quantos anos? O que o Sr. têm? O que Sr. conseguiu?” “Eu não tenho nem uma casa pra mim mora”. Outra vez: “Só tenho uma casa pra mim mora”. “Então, custa o Sr. fica na luta pela terra? Fome o Sr. não vai passa. Dificuldade Sr. ta passando tanto aqui como Sr. passa lá. Entendeu? É difícil Sr. fica lá na luta pela terra, que amanhã ou depois Sr. vai adquiri um pedaço de terra pro Sr.? Sr. fica 3-4 ano e Sr. consegue, sendo que com 30 anos Sr. não consegui, 40 anos Sr. não consegue nada! Só conseguiu produzi fio e os fio aí... É aí que vem os exemplo: “Há o meu fio foi até morto aí na gangue”.
Então é o exemplo. Nóis coloca os exemplo. E aqueles, um vai avisando os vizinho que quera vim, e participa de outra reunião e vai se interessando. Esse era o serviço meu (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
A metodologia de trabalho narrada por dona Leonice é, na prática, aquilo que
ficou conhecido por meio de Paulo Freire como a Pedagogia do Diálogo. Um diálogo com
forte conotação política, que engendra uma práxis, que não é puro verbalismo, mas sim,
que leva a uma ação transformadora. Para Paulo Freire, “o diálogo dos oprimidos,
orientados por uma consciência crítica da realidade, aponta para a superação do conflito
destes com seus opressores” (GADOTTI, 1998, p. 15).
O “conscientizar” de dona Leonice é um ato de educar, de transformar, uma
ação que requer inquietação, superação de velhos valores, referenciais e preconceitos. Essa
práxis requer rupturas na forma de ver o mundo e a sociedade em que esses sujeitos estão
inseridos.
Os “exemplos” de dona Leonice são significativos e carregados de poder de
convencimento. Enquanto que esses militantes esclarecem a conjuntura nacional da luta
pela terra, a estrutura agrária e as questões sociais do país, esses sujeitos são instigados a
questionar sua própria posição na sociedade. Ao se reconhecerem como explorados e
marginalizados, inicia-se um processo de conscientização de seus direitos e de busca pela
superação dessa situação.
O militante responsável pelo trabalho de base escolhe alguém de dentro do
grupo para possíveis contatos, uma espécie de coordenador que fica responsável em
receber recados, repassar comunicados, agendar reuniões, entre outras atribuições. O
114
processo de formação política que se inicia ainda neste estágio da luta pela terra é
formador de militância e continua por toda a luta. Nas primeiras reuniões, os sujeitos com
mais espírito de transformações, mais questionadores, que se destacam nas discussões, são
logo escolhidos como coordenadores de grupo e passarão a ter também funções de
responsabilidade quando o acampamento se efetivar.
A mobilização de mais de duas mil famílias contou com um forte sigilo no que
diz respeito à área e a data da ocupação. Apenas as lideranças do Movimento tinham essas
informações, todo o trabalho de base foi feito sem especificar a área e a data da ocupação.
Um possível infiltramento de jagunços, ou pessoas de pouca confiança, que pudessem
delatar as estratégias, fez com que todo o trabalho fosse feito sem maiores esclarecimentos.
A maioria dos grupos sabia que o acampamento aconteceria no sul do Estado, e nada mais.
A data da ocupação foi comunicada no dia da viagem e a especificação da área só foi
anunciada na chegada das famílias.
O Movimento planejou a hora em que cada grupo sairia de suas cidades, tendo
em vista a distância da cidade de Itaquiraí, para que todos chegassem quase juntos ao local,
de forma a massificar a mobilização e dificultar uma possível ação policial:
Na verdade, o sigilo na época era total, né? Tinha que sê o máximo possível. Na verdade, a gente só se comunicava com as coordenação. E também já era feito todo trabalho de preparação pra que isso não vazasse. Porquê não interessava de maneira nenhuma, é... que a própria Secretaria de Segurança do Estado, e os próprios fazendeiros ficasse sabendo. Isso dificultaria muito a ação que a gente ia fazê, e acho que o sigilo que a gente manteve na época, e toda a estratégia, foi o que garantiu a ocupação sem problemas, né? Porque a gente sabe da reação da fazenderada, no caso deles descobrirem onde seria a ação. E que sabia, a área que tava definida, não era mais do que quatro pessoas, antes da noite da ocupação. Como? Só eram em torno de quatro pessoas que sabiam qual seria a área que a gente ocuparia. Não tinha mais do que isso (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Segundo o senhor Lúcio, um dos articuladores do acampamento, eram apenas
cerca de quatro pessoas que sabiam a área a ser ocupada. O corporativismo em torno das
informações mencionadas por Lúcio é relatado também pelos trabalhadores sem-terra que
participaram da ocupação; é comum os relatos de total desinformação em relação ao local e
à data. Ao ser indagado se sabia para onde iria, o senhor Celso responde: “Não, sabia não.
Vim no escuro, sem saber de nada”.
Muitos receberam no final da tarde a notícia que, durante a noite, sairiam os
caminhões. Alguns já mantinham há dias a decisão, e por isso, já haviam preparado roupas,
mantimentos e as lonas para a viagem; outros foram pegos de surpresa e a decisão de
participar da ocupação teve que ser tomada rapidamente. Foi o caso do senhor Celso, que
115
recebeu o convite na última hora, ao encontrar um amigo que iria acampar e resolveu ir
também:
No último dia. No outro dia nós já viemo. Ele só chegou e me avisou assim que ia... a turma tava vindo acampar de novo. Que ele tinha ido. Encontrei ele e perguntei pra ele como é que ele tava, se tinha pegado a terra. Ele falou que tinha, que tava atrás de outro acampamento pro pai dele e ia vim. Ele falou: “Nem sei certo, mas é... da manhã pra depois nós ta indo”. Aí ele falou: “Você não quer não?”. Eu falei: “Vô”. Aí cheguei e vim mesmo, só que foi naquele dia (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Mas a decisão de participar de uma ocupação de terras raramente é rápida
assim. O senhor Celso era divorciado, morava com os pais e fazia empreitadas em
fazendas, há algum tempo já cogitava a possibilidade de acampar. O mais comum é que
essa decisão envolva sentimentos, dúvidas, medos e desentendimentos familiares. Mudar-
se para um acampamento não significa somente a possibilidade de possuir um pedaço de
chão, mas também uma transformação na própria vida desses sujeitos, um questionamento
aos referenciais e aos princípios de vida. Um mundo de sociabilidade é deixado para trás, a
vida tem que ser refeita, muitas vezes sem a esposa, sem o marido, sem os filhos; outras
vezes a vida deve ser refeita sob um barraco de lona, às margens da estrada, com o casal e
sete filhos, como aconteceu com dona Eleonora e sua família.
A transformação que uma ocupação de terras oferece, ao mesmo tempo em que
lhes apresenta uma possibilidade de melhoria de vida, causa medo, estranheza e
desconforto. Dona Edinéia, que há dez anos vive com a família no barraco de lona, conta
as dificuldades que encontrou para levar a família para o acampamento:
Ele falou [marido]: “Néia não adianta, Néia. Não adianta você ir por que não vai dar certo pra nós.” Daí ele pegou e falou: “Você quer ir você vai, só que eu não vou.” Eu falei: “se você não vai então eu vou sozinha” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Dona Edinéia ainda se recorda da promessa que lhe foi feita naquele momento
de interação com lideranças do Movimento – a de que com seis meses estaria em sua
própria terra. A promessa foi tentadora. O que lhe custaria ficar seis messes morando sob o
barraco de lona para conseguir sua propriedade se morou a vida toda em casebres e nunca
teve nada? Na história narrada por dona Edinéia, a fala dos militantes mexeu com seus
sentimentos e despertou nela vontade de mudar de vida. O discurso que ela ouviu nesse
espaço de interação a convenceu que o melhor para ela e para a família, naquele momento,
era partir para a luta juntamente com aquelas outras famílias em busca de um pedaço de
chão.
116
Bastante convencida disso, dona Edinéia recorda que, com relação à negação do
marido em acompanhá-la, foi taxativa:
Se você não vai, você fica aí, eu vou catar minhas duas filha e vo. Nós vai! Nós vai ganhar terra, uai, com 6 mês nós vai ganhar. Aí ele falou: então que ir vamos. “Se você nunca entrou num inferno você vai entrar agora.” Cheguei em casa juntei os trem, né? E fomo mesmo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Claudinéia, filha de dona Edinéia, que em 1997 tinha apenas 13 anos de idade,
confessou ter ficado espantada com a notícia, mesmo não sabendo ao certo do que se
tratava. Sabia que iria deixar a escola, as amizades, a casa onde vivia e os poucos
pertences. O que tinham era muito para ser deixado pra trás, mas pouco diante da
possibilidade de ver a família esfacelada.
Que a mãe chegou em casa e falo assim: “Vamo pro acampamento”. Eu nem sabia o que era acampamento, nem sabia como é que era. Aí eu falei assim: “eu não vô não”. E ela falou assim: “se você não vai você fica com seu pai então porque eu vô”. Mas eu sempre fui meio agarrada com minha mãe, nunca que eu ia dexa ela sozinha, foi indo até que a gente veio (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Entre deixar a mãe e ir a um lugar desconhecido, longe de tudo e de todos, as
duas filhas e o pai decidiram acompanhá-la.
Dona Edinéia conta que viveu quase a vida toda na roça. Anos depois do
casamento, o marido já não encontrava mais trabalhos em fazendas, a saída foi mudar para
a cidade com as duas filhas que tiveram, compraram uma casinha de madeira e passaram a
trabalhar de bóia-fria. No momento em que dona Edinéia decide resistir na decisão de
acampar na tentativa de resgatar um modo de vida deixado para trás, ela revela também
uma superação no processo de dominação imposto às mulheres. Lutar por um pedaço de
terra significava, naquele momento, mais do que a possibilidade de volta às raízes, mas foi
necessário sua imposição em relação a vontade do marido.
Thompson (1987), em seus estudos sobre a participação feminina nos motins da
Inglaterra do século XVIII, já evidenciava a resistência das mulheres quando a
sobrevivência, ou a harmonia da família eram abaladas, e a participação feminina na
revolta contra a alta de preços e ações ilegítimas do mercado.
Para Marx, “a evolução de uma época histórica é determinada pela relação entre
o progresso da mulher e da liberdade, [...] o grau da emancipação feminina determina
naturalmente a emancipação geral” (Apud, SILVA, 2004, p. 88). A participação feminina,
no entanto, é menos evidente entre os outros mediadores. As diferentes concepções de luta
117
dos mediadores aqui analisados se distinguem nessa etapa inicial da mobilização. A
FETAGRI, com sua concepção mais defensiva, apresenta outros valores para o
convencimento dos sujeitos que irão ingressar em seus acampamentos. A adesão de
mulheres à CUT e à FETAGRI é relativamente menor os homens formam a maioria nos
grupos, e são eles, quase exclusivamente, que efetivam as ocupações.
O trabalho de busca à adesão de trabalhadores, construído pela FETAGRI e
também pela CUT, é menos elaborado, mais rápido e não visa a construção de um espaço
de formação política e consciência de classe.
Ao recordar de como o marido resolveu ir para a ocupação da fazenda Laguna
Peru, dona Lurdes conta que ele recebeu o convite e partiu no mesmo dia. Como já
enfrentavam crise financeira devido às enchentes do rio Paraná no final da década de 1990,
o esposo, o senhor Luiz, aceitou o convite e foi para a ocupação.
De repente chegou um homem lá em casa e falou assim: “Dona Lurde, cadê o seu Luiz?” Eu falei: “o Luis ta pra ilha”. Ele disse: “Tem como ele chega hoje?” Eu falei: “Não, ele vai chegar sábado”. Ele falou: “Justo sábado nós vamo invadi uma fazenda”. Eu falei: “Não, mais o Luiz não qué esse negócio de invadi fazenda mais”. Ele falou: “Mas nós vamos entra na fazenda, na bera da estrada, e em 45 dias vai saí essas terra” [...] Aí o Luiz chego, eu falei: “Luiz o Cirço veio aqui chama você pra i invadi uma fazenda aqui perto, com 45 dia já corta os lote”. Ele pensou, e falo: “Ah, acho que eu vo” (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Essas pessoas eram um grupo de trabalhadores que, com o apoio do sindicato,
resolveram ocupar a fazenda Laguna Peru, no município de Eldorado. A fazenda fica bem
próxima à cidade e, segundo os relatos dos trabalhadores, estava abandonada. A esperança
da conquista desse espaço é evidenciada na fala de dona Lurdes com a proposta que
recebeu: a de que com pouco mais de um mês as terras sairiam.
A maioria dos entrevistados guardam na memória a proposta que receberam
nas reuniões que antecedem as ocupações, uma estimativa de tempo que quase sempre não
se concretiza. O senhor Luca, já com idade avançada e há oito anos morando sob o barraco
de lona, recorda com rancor que no dia em que saiu de casa para acampar: “eles disse a
terra ia saí amanhã, e até hoje...”
De fato, nos trabalhos de interação feitos para organizar famílias de
trabalhadores sem-terra para ocupações, os coordenadores trabalham com uma estimativa
um tanto mais convincente do que a média de tempo que habitualmente tem demorado a
sair uma desapropriação de terras, mas o caso da fazenda Laguna Peru, embora não
118
incomum, foi específico; diversos impasses ocorreram nesse caminho que inviabilizou a
desapropriação dessa área (assunto melhor discutido no capítulo IV).
No acampamento Mambaré, em Mundo Novo, o sindicato que tinha a
FETAGRI como a principal representante, já possuía previamente um contingente de
trabalhadores cadastrados para participarem de ocupações. Cada grupo passou a ser
representado por um líder que levava as discussões para o sindicato e repassava as posições
e propostas. Essa estratégia de organização é relatada na fala do senhor João Valdir:
Em cada grupo, em cada localidade, cada bairro da cidade a gente montô um líder, que ficava responsável por aquelas famílias daquele bairro, daquela localidade. E aí ficava fácil porque a gente reunia os líder e discutia, é... é... e tomava as decisões e o líder reunia o grupo dele as famílias que tinha na lista dele e passava as decisões que a gente tinha tomado. E foi nessas reuniões, nesses encontros com as lideranças que nós decidimo ocupar a fazenda Pouso Alegre, determinada fazenda Mambaré (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).
As famílias de brasiguaios representavam grande parte dos sujeitos que
participaram dessa ocupação. Ainda no Paraguai, alguns grupos de famílias buscaram
apoio do sindicato de Mundo Novo para retornarem ao Brasil. A partir dessa iniciativa, o
sindicato passou a pensar na possibilidade de uma ocupação de terra no município.
A adesão desses trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra
envolve uma série de aspectos que evidencia uma vida marcada por problemas de ordem
financeira, familiar e habitacional. Apesar de diferentes, as histórias narradas por esses
sujeitos sobre a decisão de aderirem aos movimentos de luta pela terra, elas se assemelham
com relação a um passado de crise de um determinado modo de vida ou trabalho, de
dificuldades financeiras e de projetos de vida não efetivados.
A experiência de assumir a identidade de sem-terra, de reconhecer-se como tal,
inicia-se nesses primeiros momentos de interação com os movimentos e grupos sindicais,
quando esses sujeitos decidem participar de uma ocupação de terras. Essa decisão pode
trazer uma história de superação de velhas relações de dominação e exploração, mas não
necessariamente. Tomada a decisão, muitos percalços ainda virão pela frente, um mundo
de sociabilidades tem que ser deixado e a vida refeita.
119
3.2 (Des) socialização na luta por um pedaço de chão
...o que dura se esvai. E o novo que ali se anuncia ainda não tem sentido, porque ainda não é e nem sempre será (Martins, 2003, p. 50).
O espaço/tempo do acampamento que muito tem sido analisado como um
período de socialização entre os acampados, e assim entendido pelo MST, é aqui visto
também como um período de dessocialização. Quando se muda para um acampamento
uma vida de sociabilidades é deixada para trás e o novo, ainda não tem sentido, e pode nem
chegar a ter, no entanto, nesse processo de perda social se dá também a construção de
novos valores e referenciais.
É na reconstrução, ou não, desses novos valores que se confirma a formação
(ou não) de uma identidade comum ou de um processo de identificação pelos sujeitos da
luta pela terra, sujeitos esses que se convencionou chamar de sem-terras. Sem adentrar na
discussão da ambigüidade ou legitimidade do termo sem-terra, busco nesse momento
compreender o que se renova, o que se mantém e o que é involuntariamente suprimido na
vida desses sujeitos ao fazerem a opção pela vida no barraco de lona dos acampamentos
rurais e assim, conseqüentemente, à vida de sem-terra.
É impossível negar que exista um processo de perda social, de separação de um
universo anterior e desconstrução de relações sociais durante o tempo de luta, no entanto,
esses são processos relativos e apresentam variações. Isso porque existem inúmeras formas
de se tornar um acampado, um sem-terra, o que varia desde o mediador às próprias
condições de vida, de trabalho, de moradia, de organização familiar e até mesmo de
concepção de vida e de reforma agrária.
Existem acampados que se mudam completamente para os barracos com a
família toda, inclusive animais domésticos; deixam a moradia, levam os móveis, utensílios,
juntam tudo o que conseguiram adquirir durante uma vida toda de trabalho em um pequeno
amontoado de coisas e passam a viver cotidianamente sob os barracos de lonas. No
acampamento Oito de Março, foi identificado um número maior de famílias vivendo sob os
barracos, isso de deu, em grande parte, pela postura do MST em defender a presença da
família (homens, mulheres e crianças) no acampamento, mas isso não é uma regra. Nesses
120
casos, as transformações são mais bruscas, mais dolorosas e, muitas vezes, sem volta. É
um processo contraditório, conflituoso, desagregador, que dilui as velhas formas de
relações sociais e faz iniciar outras. A família permanece junta, é uma dissociação a
menos. Os filhos, no entanto, ficam um tempo sem estudar, podem não mais voltar à
escola, a família perde as relações de amizade, ao menos reduz (se considerarmos que
muitos grupos de amigos, vizinhos e parentes partem para a luta juntos), entre inúmeras
outras rupturas e perdas.
Em muitos casos, porém, a vida sob o barraco de lonas dos acampamentos não
difere muito, em questão estrutural, da vida que mantinham até então nas periferias das
cidades ou mesmo nas terras de outrem. Para alguns as dificuldades são muitas, mas
superáveis; outros, acostumados com uma vida toda de privações e extrema pobreza, vêem
a estrutura do acampamento como um local que não destoa muito da vida que sempre
levaram; muitos, no entanto, não suportam o cotidiano marcado pelas carências, não
agregam novos valores e desistem. A esperança permeia os casos de permanência. A
narrativa de dois acampados são importantes para a apreensão dessas questões:
Me acostumei rápido no acampamento por causa que... que eu já era de ficar acampado pra trabalha. Nê? Pegar as empreita pra trabalha, me acostumei fácil. Agora tem gente que passa dificuldade, não acostuma. A lona é triste... na hora do sol quente ela esquenta demais, a noite o sereno... ela fica pingando aquele sereno em cima das pessoa. É perigoso adoecer. Só que pra mim não, já tava acostumado sempre em barraco de lona mesmo (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Agora até que num ta... eu achava difícil, mais num é. Não tem muito... nada assim difícil, não. A gente tando com saúde tudo é bom né? O problema é se a gente tiver meio doente. Daí a gente desanima e num qué mais, no mais tá normal, tudo bem (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
Mesmo reconhecendo as dificuldades daquele espaço, o senhor Celso diz não
ter sentido muito a mudança para o acampamento, pois já vivia acampado em fazendas da
região, onde morava para trabalhar. Trocar a vida de andarilho, como disse em outro
trecho da conversa, pelo acampamento, significou para o senhor Celso uma perspectiva,
embora vivendo sob as limitações do acampamento de sem-terras, essa nova situação
proporcionava-lhe a expectativa de conseguir um lugar, uma terra, um trabalho e uma
moradia, diferente das relações vividas anteriormente.
Partindo da concepção de que o sujeito social se constitui na experiência, em
um processo contínuo, a fala de dona Eleonora se torna indispensável. Oito anos sob o
barraco de lona, ela diz que “achava difícil” a vida naquele espaço, mas com o tempo viu
que “não é”. Isso não significa que as dificuldades tenham sido suprimidas e a vida tenha
121
se abrandado, mas significa, que a experiência imprimiu-lhe novos conceitos, novas formas
de vida.
É a partir da relação comum entre esses sujeitos, pela busca por um pedaço de
chão, por dignidade e cidadania, que tais indivíduos se identificarão como pertencentes a
um mesmo grupo. O auto reconhecer-se sem-terra funda-se a partir de relações e ações de
um grupo, que embora composto por sujeitos de origens e hábitos distintos, agem em busca
de um objetivo comum, “isso equivale dizer que são construções mentais que dão
significado ao mundo e que permitem a identificação, o reconhecimento, a classificação e a
atribuição de valor a realidade.” (PESAVENTO, 2003, p.209).
Em alguns casos, a permanência é acompanhada pela expectativa em partir,
principalmente nas crianças e adolescentes que, diferente dos pais, não vislumbram a
perspectiva da conquista, mas também ocorre quando, na relação marital, uma das partes
tem que, obrigatoriamente, acompanhar a outra. Claudinéia que vivia na expectativa de
voltar para casa, acabou por viver por dez anos sob o barraco:
Aí quando foi um dia, não sei o que deu lá, que meu pai, minha mãe resolveu quere ir embora: Vamo embora, vamo embora... Aí eu falei: ah, agora beleza, né? Sempre pensando em volta, i embora. Não tinha acostumado, eu olhava aquela lona assim... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Se para Claudinéia o espaço do acampamento parecia estranho quando o desejo
de ir embora estava relacionado a busca pela conservação da vida social que conhecia, para
seus filhos, com seis e três anos de idade, que nasceram no acampamento, não há outro
espaço de moradia, é o lugar que conhecem, onde aprenderam a viver e onde se sentem em
casa: Os meus já até acostumo. Nasceu aqui. Quando saí pra cidade, às vezes fica uns dia fora, eles já tica tudo chamando pra vim pro barraco, já fica tudo doido querendo volta pro barraco. Num fica. Esses tempo mesmo eu fui para um curso lá em Nova Alvorada do Sul, pra se professora do EJA. Aí levei aquele daí, í..., foi os 4 dia chamando pra vim embora. Daí chega, a hora que eles vê o barraco... mais fica todo feliz. Na cidade acho que se i pra lá que eles não acostuma não, só um pouquinho eles já qué voltá (Claudinéia, Entrevista, 14.05.2005).
É muito comum, ainda, encontrar relatos em que as pessoas tiveram que se
desfazer dos poucos bens materiais que possuíam para se manterem acampados. Durante o
processo de lutas, muitos vendem casa, gado, automóvel, e houve relatos, também, de
imóvel que foi queimado, depreciado, saqueado durante o período em seus proprietários
estiveram morando nos acampamentos, como se pode inferir pela fala dos acampados:
A gente vendeu casa na cidade pra vim, em poco tempo vendeu tudo. Porque num é fácil, né? ficá assim. Eu que tinha a mãe que trabalhava, daí ela deu apoio
122
né, por que a pessoa ficá ali por conta num agüenta né? (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).
Oia, eu tinha uma casinha em Mundo Novo e eu pegava o aluguel na minha casinha, né, recebia cinqüenta de aluguel, até que por fim queimaram a minha casa... minha casa agora é aqui! Num tenho outra casa. Ficou só o terreno e a única coisa que eu fiquei foi as coisas que eu truxe pro acampamento... Aí nós vendeu né, porque... esse tempo todo debaixo da lona tinha que come né, e meu marido é muito doente tamém né. Mas Deus tem em dobro pra mi dá, se Deus quiser! (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Nós conseguimo essa terra aqui por luta nossa, Né? Inclusive, quando eu vim pra cá, eu tava com seis criação. Tive que vende. Quando eu entrei aqui [no lote] não tinha mais nenhuma, tinha comido tudo aqui mesmo, pra consegui essa terrinha aqui (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
São três relatos que apresentam histórias comuns entre os acampados. Mesmo
resguardando toda simplicidade possível, sobrevivendo com o essencial, esses sujeitos
precisam se alimentar, comprar uma peça de roupa e remédios eventualmente, necessitam
deslocarem-se entre o acampamento e os núcleos urbanos, atividades que demandam uma
reserva econômica de que eles não dispõem. Como a oferta de trabalho diário é esporádica
e nem sempre suficiente, a alternativa é se desfazer das poucas coisas que possuem. Por
outro lado, essas ações revelam as prioridades definidas por esses sujeitos. Na luta por um
pedaço de chão, e diante da expectativa de possuírem terra, trabalho e moradia, eles
assumem os riscos, se desfazem do pouco que conseguiram com uma vida toda de trabalho
para se manter na luta e defender um sonho.
O mesmo não acontece com relação ao trabalho, quando se tem um emprego
que ofere um mínimo de condição de vida, ele é mantido e o membro que detém o
emprego contribui com a manutenção financeira da família acampada. O mais comum, no
entanto, entre os sujeitos que se mudam para um acampamento, é não ter um emprego fixo,
são em sua maioria diaristas, autônomos, com pouca ou nenhuma escolaridade.
“Minha casa agora é aqui!” Dona Edinéia, após quase dez anos sob o barraco
de lonas à margem das rodovias, abdicou da vida que levava até então, as velhas relações
de amizades foram desfeitas, os contatos com parentes se tornaram raros e os velhos
amigos se perderam no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo em que sua história nos
remete a um exemplo de perseverança, revela também de uma vida marcada pelo
improviso, por uma espera incerta e pela evidência de que ela e sua família teceram um
caminho de difícil retorno em busca de um sonho que pode não chegar a se concretizar.
Nesse longo período, dona Edinéia casou as duas filhas, teve seus netos e o que era para
ser transitório, tornou-se uma nova forma de organizar a vida e as relações sociais.
123
É prática, também, nos acampamentos somente a presença de um dos membros
da família sob o barraco, quase sempre a dos homens, maridos ou filhos mais velhos,
enquanto as esposas e as crianças permanecem em suas casas. A presença desses sujeitos
no acampamento, quando a decisão não é de se mudar para o barraco, é mais esporádica; é
possível, em muitas ocasiões, passar a semana no trabalho e visitar o barraco nos finais de
semana, ou ainda passar a semana nos barracos e voltar finais de semana para casa, com
casos até de visita mensal ao acampamento, ou pagar para alguém cuidar do barraco. Não
há uma regra, mas esses casos são mais comuns nos acampamentos da FETAGRI e da
CUT, onde a presença nos barracos é majoritariamente masculina e grande parte concilia a
luta pela terra com um trabalho e um lar que requer sua presença.
Dona Lurdes, que há anos acompanha a saga do marido entre o acampamento e
o pequeno lar que mantêm em um projeto habitacional na cidade de Eldorado, diz que
nunca acompanhou o marido para morar no barraco, apesar de visitá-lo. Ressentida,
reclama da ausência do marido em casa para se dedicar ao sonho da terra:
Eu não fui junto, eu nunca ia junto. Luiz foi e nunca saiu desse acampamento, era lá direto. Ele vinha aqui no sábado e já voltava no domingo de novo, quando vinha na sexta-fera, já voltava no sábado, criava galinha lá, um mundarel de galinha que ele tinha lá. Diz ele que nunca desistia (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Além da convicção em nunca desistir, seu Luiz construiu um novo espaço de
referência, a criação de galinhas, assim como o barraco e a própria luta precisava de seus
cuidados e de sua atenção. Mesmo mantendo a casa e a esposa na cidade, o barraco era
mais que um meio de chegar à terra, era uma referência, um espaço a mais de vida e de
moradia.
No descrédito em relação a uma luta que perdura por oito anos, dona Lurdes
continua a narrar o quanto insistiu para que o marido desistisse e voltasse para casa:
Quanta vezes eu saí daqui pra i pra lá busca ele, né? Falava: “Luiz! Vamo embora pra casa, não da nada isso aqui não”. Aí ele: não, que não ia desistir, não ia desisti. E ta lá há oito ano. Eu por mim ele já tinha desistido disso já, ainda mais agora que não ta vindo mercadoria, não ta vindo cesta, ta vindo nada lá (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
O fato de não estar vivendo o cotidiano do acampamento não significa que
dona Lurdes não esteja participando da luta e que sua vida não tenha sido transformada.
Apesar de optar pela vida na casa da cidade, dona Lurdes acredita na conquista da terra e
torce por ela. A participação daqueles que não estão presentes diretamente remete-me aos
124
estudos de Comerford, que diz que nem sempre é preciso existir um conflito concreto para
estar lutando (1999).
Quando os sujeitos aderem aos acampamentos, inicia-se um processo de
rupturas de valores e de relacionamentos em sua vida, mas também de continuidades e
permanências. Sem resistências o processo de desenraizamento poderá se concretizar com
o assentamento. Essa resistência é evidenciada na história de um grupo de 34 famílias, do
acampamento Oito de Março, que estavam, no ato da pesquisa, acampadas por dez anos, e
que rejeitaram o assentamento em áreas distantes, com o propósito de serem assentados na
região onde sempre viveram e onde moram os familiares, essa recusa se deu devido a
insistência desse grupo pela manutenção de suas raízes. O senhor Dércio conta porque o
grupo não deu a “mão à palmatória”, e aceitou o assentamento em lugares distantes:
Aí em Ponta Porã saiu, mais a gente não dá a mão pra palmatória né? Que nem, a fazenda Itamarati nois num quizemo í pra lá, no causo que nem eu, eu sô daqui da região mais vim do Paraná, meu pai morreu em 2002, tava com 45 ano que mora em Alto Paraíso (morava), minha mãe ta com 42. Minha mãe é viva né. Então a gente sempre quiz ficá aqui na região né, de Caarapó pra cá. Tinha uns que tinha 20 anos de Eldourado e outros de Mundo Novo. Portanto não adianta fazer alguma coisa de má vontade né? Se nos tivesse ido pra lá, o que podia acontece? Às vezes fica quatro ou cinco anos lá e não se adapta, aí volta pra cá. Aí acaba desfazendo da propriedade e desmoralizano o Movimento Sem Terra (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).
Embora esses sujeitos vivam um momento de rupturas, isso não ocorre, em
muitos casos, sem certa resistência; há a tentativa de manutenção da vida social e de
sustentação das raízes, embora nem sempre isso seja possível. No acampamento Laguna
Peru, após oito anos de existência do acampamento, alguma famílias aceitaram a
transferência para um acampamento de outro município, já que não havia mais
possibilidade de assentamento na área pleiteada. Existe também a questão dos brasiguaios,
para quem, geralmente, não há um referencial, um lugar para onde se queira voltar.
Todos os entrevistados, ao serem indagados se já haviam pensado em desistir,
foram taxativos ao dizer que “sim”. Contudo, a não desistência estava relacionada a
esperança, mas também a questões de ordem prática, como o fato de não terem para onde
retornar. Para muitos é um caminho sem volta, a desistência não é um retorno, mas um
recomeçar de novo.
A persistência parece um misto de esperança e desapontamento. Só se mantém
acampado quem ainda espera, ao mesmo tempo em que aquela esperança é nutrida por um
sentimento de desapontamento; por não vislumbrar alternativa de vida, de trabalho e de
moradia. A saída “é tentar lá”, como fala o senhor Tadeu:
125
Até hoje eu sinto, até hoje, não porque hoje ta mais organizado, mais é... bastante gente desistiu. Você só tenta lá porque você não tem outra coisa pra faze, digo em outra coisa pra fazê você não tem uma profissão, num tem nada, né? Então tem que tenta porque se você num pode compra terra, se você for faze outra coisa, cê não sabe fazer nada, né? Então tem que tenta lá, até... não sei até quando. Mas tem que tenta, fica lá até sai essa tal terra né? (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
A expressão usada pelo entrevistado, de que “barraco por barraco fica aqui”,
para justificar a sua permanência, parece ser bastante legítima naquele espaço. A vida fora
dos conflitos do acampamento pode não trazer um cotidiano menos árduo; a condição
social desses sujeitos contribui para a permanência. Ir embora para onde? É uma pergunta
comum que eles mesmos se fazem. Por isso, vejo que deixar o acampamento, em muitos
casos, não é ir embora, mas recomeçar:
Então nós ficamo 4 ano ali sem área, sem destino pra nada, pelo menos no momento é isso aí, não sabe pra onde vai aonde num vai. Então... você fica naquela mas você vai pra onde? Não tem aonde ir. Cê pensa: eu tenho que ir embora mas vô embora pra onde? Embora por ir embora, barraco por barraco fica aqui (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Num tinha. Não tinha porque eu tinha vindo do Paraguai e... e eu trabalhava lá, a gente veio pra cá, eu tava sem serviço, né? Morando em casa alugada. Então a nossa casa era um barraco de beira de estrada, se não desse nada certo eu não sei o que ia acontece [...] Aí você não sabe se você continua ou se você desiste, por que é uma luta que você não tem... não tem uma certeza que você vai consegui, né? Então, chega um ponto que a pessoa cansa, é difícil... (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).
Muitos, muitos desistiu e muitos consguiu, né... já foro assentado. E o que levou essas pessoas a desistirem? Há, eu acho que cansavam do sofrimento aqui né, porque se a gente for olhá o sofrimento da gente aqui, a gente num fica não... Só que os que desistiu ta pió do que eu aqui... (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
São três histórias de vida distintas, cada uma de um acampamento analisado,
mas que refletem uma crise de rupturas sociais. A incerteza, narrada pelo senhor Antônio,
acompanha todo o processo de luta e acaba por tomar uma conotação de maior insegurança
quando a luta por um pedaço de chão, por meio do acampamento, torna-se a única saída
possível. Ao analisar o acampamento América Rodrigues da Silva, Farias evidencia a
difícil caminhada desses sujeitos na busca pela construção de outra história:
Muitas famílias deixaram casas, empregos, carregando pertences e filhos, sem rumo e sem destino. Mesmo vivendo uma situação de pobreza, opressão, almejando uma melhoria significativa de vida por meio da posse da terra, não é possível negar que deixaram seu canto, seus costumes, seus modos de vida e a casa com sua história a fim viverem outra história, uma história a ser construída (1997, p. 106)
O acampamento é um espaço de conflito, não só pela perspectiva da luta, como
também por agrupar em um espaço sujeitos tão distintos, de hábitos culturais
126
diferenciados, principalmente se pensarmos na situação de fronteira, como é o caso do sul
de Mato Grosso do Sul, e também na perspectiva de individualidade de cada família.
Mas se existe a desconstrução de determinados modos de vida, de concepções
morais e aspectos culturais, existe também a construção de novos valores e um processo de
adaptação. E isso pode ser inferido pela permanência desses sujeitos em até dez anos nesse
processo. Segundo Martins, o acampamento exerce uma função de “ralentação da
transição”, das mudanças que ocorre na vida desse sujeito (2003, p. 46).
Aspectos como religiosidade e outras formas de manifestações culturais são
dificilmente suprimidos, pelo contrário, diante de tantas carências, a fé religiosa se
revigora e ganha adeptos. Cultos, missas, novenas, assim como manifestações de maior
magnitude, dentro da concepção religiosa, como batizado e casamento, são também
elementos vivenciados nesse espaço.
Portanto, podemos dizer que as diversas manifestações festivas possuem certa unidade e recriam uma rede de sociabilidade sob novas formas de expressão, procurando preencher as ausências de antigas referências, romper o estado de anomia que caracteriza o ser acampado, estar sem família e sem território definido. Sem tais mecanismos o acampamento se “desfaz no ar” (FARIAS, 2002, p. 132). [Aspas no original].
Esses elementos, associados às relações cotidianas de vizinhança e amizade,
que engendra as práticas da luta, forjam um sentimento de pertencimento grupal. A
identidade de sem-terra passa a ser constituída pela união, pela luta no enfrentamento por
interesses comuns, mas são também processos mediados e mesmo direcionados pelos
grupos organizadores.
Fazer parte desses grupos vai além de aspectos políticos, pois está ligado
também a sentimentos de representações culturais. As identidades podem, nesse caminho,
ser vistas como uma celebração móvel, ou seja, são constantemente transformadas de
acordo com as relações culturais que os rodeiam. A identidade unificada perde sua razão
de ser quando se reconhece que é formada histórica e culturalmente (HALL, 2001, p.13).
Segundo Chartier, as diferenças culturais não devem ser vistas como divisões estáticas e
imóveis, mas como efeito de processos dinâmicos (2002, p. 76).
Embora esses sujeitos carreguem um conservadorismo que está aquém do
imaginário mobilizador defendido pelos movimentos, em especial o MST, muitos desses
sujeitos passam por um processo de rompimento e/ou de transformação de regras de
comportamentos sociais. Tanto é assim que, implicitamente, os acampados buscam
legitimar atos que, para eles próprios, outrora seriam ilegítimos, prova disso é a
127
substituição dos termos saques por recuperações, invasão por ocupação, a fome como justo
precedente aos abates de animais e pedágios nas estradas. Nesse sentido, vê-se que as
circunstâncias criam as necessidades e as legitimam.
Ao comentar as piores dificuldades enfrentadas no acampamento, Erondi
recorda o quanto era difícil ouvir as ofensas da sociedade em relação aos acampados:
A maior dificuldade era o alimento, né? E a humilhação. A gente vinha no ônibus, e escutava as pessoa falá dentro do ônibus assim... e a gente num pudia falá nada, né? Mais a maioria do pessoal hoje ta acampado lá na saída de Eldorado, as pessoa falava mal da gente mesmo. Depois que a terra saiu aqui, aí foi muita gente pra lá (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).
Embora as representações sociais desqualificadoras, em relação aos
acampados, gerem um desconforto imediato, podendo ser uma marca para a vida toda, há
por parte dos acampados um repúdio a esse desmerecimento. As desqualificações são
combatidas no imaginário dos acampados dentro da perspectiva de uma situação
transitória, isso é refletido na fala de Erondi, ao dizer que quando se tornaram assentados,
muitos dos que os humilhavam também se sujeitaram às mesmas condições.
Em relação às desqualificações sofridas por acampados urbanos em São Paulo,
Souza faz uma análise que se torna oportuna também aos sem-terras:
Os ocupantes, ao se defrontarem com essas situações do cotidiano, recusaram a denominação de invasores. Foram elaborando reflexões e falas, que resultaram na composição e um universo de representações, para legitimar a sua situação de ocupantes, superando a desqualificação que sofriam (1995, p. 108).
A área de estudo em questão, o extremo sul de Mato Grosso do Sul, composta
por pequenas cidades com considerável população rural, é uma região onde os
acampamentos fazem parte do cotidiano social. É comum vê-los ao longo das rodovias e
parte da população conhece parentes e amigos acampados, ou já assentados, o que não
impede que se perpetue no imaginário popular a vinculação desses sujeitos a certos
segmentos da sociedade, como vagabundos, aproveitadores, “desabusados”, para usar uma
expressão de Paulo Freire. Se o homem do campo já carrega o estigma do atraso, do
jocoso, do retardatário e do preguiçoso no imaginário popular, os sem-terras carregam
ainda o peso de andarem na contramão de uma sociedade capitalista, de questionarem as
práticas do agro-negócio e do absenteísmo.
Não se pode negar também que esses sujeitos fazem parte de classes sociais
que estavam à margem de discussões políticas. A inserção aos movimentos, em muitos
casos, engendra saberes e práticas nunca antes pensadas, não só em relação ao suprimento
de determinados valores como algo pejorativo, mas também na valoração desse ser
128
enquanto ser social capaz de se organizar, impor-se e lutar por uma vida mais digna. É a
expressão da autonomia, da imposição em detrimento ao comodismo e ao paternalismo.
Em alguns casos esse autonomia política pode não chegar a ser apreendida, pode durar
apenas o tempo do acampamento, em outros, (em número reduzido, diga-se) ela é agregada
à vida toda, em ações de militância, em coordenação de grupos de moradores, de
cooperativas e associações, como também na inserção à carreira política.
O período transitório de acampamento, na maioria das vezes, dura mais que o
esperado. É um momento de muitas carências, mas também de lutas, de resistências, de
sonhos e de esperanças. A união em meio a um ambiente tão conflituoso é algo
indispensável à consolidação da luta. Nos grupos do MST, em especial, a mística31 é algo
que lhes encoraja e lhes dá força. Trata-se de um ritual simbólico presente em todas as
reuniões, festas, assembléias e mesmo no dia-a-dia dos acampados. Expresso por cantos,
símbolos, teatros, encenações, fotos e discursos inflamados, são magnetizantes e ainda
melhor apreendidos diante de momentos de tantas carências. São embasados em fatores
sociais, éticos, morais e buscam ressaltar mártires da luta no âmbito local e regional e
também os nacional e mundialmente conhecidos.
As práticas culturais desenvolvidas pelo MST para a formação de um novo
sujeito social buscam criar conteúdos com os quais aqueles sujeitos se identifiquem e se
sintam pertencentes à aquele grupo. Oliveira argumenta que todo processo de
transformação social envolve a constituição de uma memória coletiva e, para isso, trava-se
uma grande batalha simbólica em nome daqueles que devem ser lembrados, daqueles que
devem ser considerados extraordinários e os que devem ser esquecidos (2003, p.68). No
processo de luta pela terra não é diferente, na busca pela composição de um imaginário
mobilizador, seus heróis são construídos ressaltando em seu meio acontecimentos e
personagens que lhe são mais significativos.
São construções que partem de algo muito próximo de suas realidades, de
acontecimentos do dia-a-dia. São figuras consagradas por fatos que marcam a luta, pessoas
conhecidas, o que atribui mais veracidade, paixão e encantamento a essas construções.
Alguns nomes são comuns a todos os grupos, independente da organização
mediadora da luta, entre eles podemos destacar Dorcelina Folador, que fora militante do
MST, assassinada em 1999 na varanda de sua casa, período em que cumpria mandato
31 O ritual simbólico, praticado nos grupos de acampados do MST, conhecido como a Mística da Terra, foi assunto tratado por BORGES, 2004, principalmente no capítulo VI: Mística da Terra: Sonhos de Liberdade; e por FARIAS, 2002, capítulo II; entre outros.
129
como prefeita da cidade de Mundo Novo – MS; Chico Mendes, líder sindicalista,
seringueiro desde criança que trabalhava como defensor dos trabalhadores rurais no estado
do Pará, assassinado em 1988 também na porta de sua residência; Índio Galdino, que teve
o corpo queimado em 1997 enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília; as 19
vítimas do Eldorado dos Carajás, assim como o ícone internacional Che Guevara e outros
homens fortes e líderes revolucionários, que são perpetuados na memória desses
trabalhadores como aqueles que morreram em nome de um ideal de vida, contrapondo-se
aos poderes elitistas e em busca de uma sociedade mais igualitária.
Entre os grupos do MST se destacam também as vítimas da luta em âmbito
regional, geralmente lideranças que morreram na luta e pela luta, como, por exemplo,
Valdecir Padilha, Antônio Tavares, Ronilso da Silva, Airton Vieira e Marcelino Pereira da
Silva.
Os nomes atribuídos aos acampamentos, sobretudo aos do MST, são
carregados de simbolismos. Entre os nomes de militantes mortos citados, que aparecem
não raramente nomeando acampamentos, também se destacam datas comemorativas e
significativas para a luta. Exemplo, disso foi a escolha do dia da mulher (08.03) para
ocuparem a fazenda Santo Antônio com a maior ocupação de terras registrada no país até
então. Os outros dois acampamentos mantiveram o nome da fazenda ocupada (Laguna
Perú e Mambaré), somente após o assentamento das famílias é que o nome Mambaré foi
substituído por Pedro Ramalho, em homenagem a um tradicional sindicalista da cidade de
Mundo Novo.
Segundo Oliveira:
“As batalhas simbólicas para a construção de heróis envolvem tanto a memória histórica quanto apelo a lendas e mitos. A memória lança mão de uma narrativa tradicional sobre o passado, explica a origem, os feitos e as glórias dos heróis” (OLIVEIRA, 2003, p. 68).
Aqueles que perdem a vida lutando pelo direito à terra são sempre lembrados e
ressaltados, levando a uma mitificação desses sujeitos, afinal, o fato de serem sem-terra, ou
mesmo defensores da causa como tais, delega um sentimento de indignação e revolta. A
batalha na construção desse imaginário envolve, além dos mitos, dos heróis e dos mártires,
artifícios como os discursos, as imagens e os símbolos, construindo uma força que busca
superar anseios, suprir carências, encorajar e unificar os grupos.
É por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça, mas também
o coração, ou seja, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. “É nele que as
sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu
130
passado, presente e futuro”. Esses são processos extremamente importantes em momentos
de mudanças sociais e de redefinição de identidades (CARVALHO, 2000, p. 10-11).
No trabalho do MST existe uma maior organização em torno dos aspectos
simbólicos, discursivos e formadores de opinião usados em suas relações com os
trabalhadores sem-terra. No entanto, um grande paradoxo se apresenta nessa relação. Vejo
que a massa32 busca, anseia e luta por um pedaço de terra que seja seu, por moradia e por
trabalho, enquanto os anseios das lideranças estão relacionados ao ideal de uma sociedade
transformadora, o que nem sempre é apreendido por esses sujeitos.
Ao estudar o Acampamento América Rodrigues da Silva, na cidade de Três
Lagoas – MS, Farias faz considerações às formas com que essa relação é tangida:
Entre os discursos presentes na mediação da luta, encontramos várias marcas, vários sentidos e formação discursivas, que vão se compondo, afirmando-se durante os embates e confrontos, ora desnudando a realidade e a própria dominação, ora mascarando e fortalecendo a ideologia dominante (FARIAS, 1997, p. 32).
A crença na legitimidade das palavras, e em quem as pronuncia, dá-se em vista
do sentido que exprimem e da receptividade dos sujeitos que as incorporam (BORGES,
2004, p.133). As mensagens expressas não são apreendidas de forma natural, não há
denotado nas palavras um peso por si só, mas seu sentido depende de quem as ouve e de
quem as pronunciam.
Assim, entendo que a composição da identidade de sem-terra, que acontece no
decorrer da luta, é mediada, induzida e construída, fazendo-se necessário onde tantas
forças os reprimem. O sem-terra não nasce pronto, é formado a partir de uma condição
social de marginalidade, ou tendente à marginalização e está relacionado a um sentimento
de pertencimento. O grau de profundidade com que esses sujeitos tornam-se verdadeiros
defensores da causa é bastante variável. Aqueles que apreendem de forma mais
contundente, tornam-se, não raro, futuras lideranças. As práticas envoltas na agregação em
torno da luta envolvem as relações de forças entre as representações impostas e as relações
que esses sujeitos tem de si mesmos, gerando um processo pelo qual se identificam como
sem-terra.
Nesse novo espaço muitos rompimentos são verificados, quebra de laços de
amizade, parentesco, vizinhança, valores, concepções, referências de uma vida; muitos
32 O termo massa utilizado pelo MST, com inspiração nos escritos marximianos de massa revolucionária, é discutível e criticado. Segundo Chauí (2002) essa categoria é produto de uma divisão entre elite “culta” e massa “inculta”, faz referência a algo sem forma, sem rosto, sem identidade, como se fossem um conjunto homogêneo, de sujeitos indiferenciados (Cf. FARIAS, 2002, p. 100).
131
outros, no entanto, são engendrados. Constitui-se ao longo da luta uma identificação, uma
identidade em transição, que poderá ser desfeita após o assentamento. Em meio a tantas
ambigüidades e paradoxos, o que se pode inferir é que esses sujeitos vivenciam no
espaço/tempo do acampamento aquilo que Chauí chamou de conformismo e resistência,
são sujeitos que, na luta, “descobrem a diferença entre o que é e o que poderia ser e que
por isso mesmo transgridem a ordem estabelecida, mas não chegam a constituir uma outra
existência social” (1994, p. 1780) [grifos no original].
Para aquele sujeito que se muda com a família, seus poucos pertences e o
último fio de esperança para o acampamento, esse espaço se torna, em muitos casos, um
processo sem volta; a decisão de acampar está relacionada a uma vida de dificuldades, de
faltas e de conflitos. Muitas famílias deixam para trás uma vida de sociabilidade, mesmo
que seja apenas uma casa alugada e um trabalho em diárias, mas é a forma de
sobrevivência que foi negado pelas famílias ao decidirem partir para o acampamento,
reavaliar tal decisão, deixar o acampamento e reconstituir a vida anterior não é um
processo fácil, e isso faz com que muitas famílias continuem a luta por um período tão
longo, de oito e até dez anos, como em muitos casos analisados.
3.3 O sonho da terra prometida nas representações dos sem-terras
É... minha fia, é o sonho de ter um pedacinho de terra, né? Um lote pra gente trabalha e te umas criaçãozinha em cima, né? Não tenho vontade de sair daqui em quando eu não ganhar terra, só se for pro cemitério mesmo, senão acho que eu não saio não. (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005)
Sonho. Talvez essa seja a palavra mais significativa para compreender as razões
que movem esses sujeitos a traçarem caminho aos barracos de lona às margens das
estradas. Sonho não só de chegar à terra, mas sonho de conquistar, ou recuperar, a
dignidade; sonho de se ver e ser visto como gente; sonho de abandonar a vida errante;
sonho de ter um referencial, um porto seguro; sonho de que suas necessidades básicas:
casa, comida, saúde, educação, sejam um dia sanadas; sonho de terem direito a sonhar e de
construir para si e para os filhos um projeto de vida.
132
Todas essas expectativas de vida não sanadas são no espaço/tempo do
acampamento mediadas pela perspectiva da reforma agrária, pela conquista de um lote de
terras. Assim é possível compreender e dimensionar a frustração na chegada aos lotes sem
a infra-instrutora necessária.
Esses sujeitos têm em comuns histórias de vidas marcadas pela expropriação,
pela exploração, pela exclusão, pela violência, ainda que uma violência simbólica, mas
talvez a mais perversa e silenciosa, a que humilha, a que maltrata, a que destrata e a que
também fere. Sujeitos vitimados por processos sociais excludentes, que desenraizados da
terra também não puderam encontrar seu lugar no meio urbano, lugar em que as condições
objetivas do sistema capitalista são ainda mais excludentes e seletivas. A ambigüidade
desses sujeitos entre o campo e a cidade produz o que Tutatti denominou de uma
indefinição de identidade:
Ademais, a lembrança do modo de vida no campo não se configura como uma nostalgia positiva, pois muitos dos acampados a vivenciaram já sob o julgo do dono da terra, se não apenas a conhecessem pelos relatos de pais e avos. A cidade, por sua vez, não os integrou em sua classe média assalariada; ao contrário, lançou-os aos setores mais baixos e desprezados do processo produtivo e/ou à economia informal. Ainda assim, incutiu em seu imaginário o desejo de obter o status de cidadão-consumidor, condição à qual o estabelecimento no meio rural poderia impedi-los de atingir [...] (2005, p. 75).
A grande maioria dos acampados já teve experiência de vida nas cidades e
muitos em trabalhos tipicamente urbanos; outros, em número considerável, moravam nas
cidades, mas dirigiam-se ao campo para trabalhos diários de bóia-fria; embora quase todos
tenham origem rural, mesmo que de segunda geração. No entanto, esses sujeitos já
incutiram, ao logo desse processo de hibridação cultural33, um imaginário capitalista e
valores tipicamente urbanos que serão contraditoriamente contraposto com a tentativa de
retorno a terra, ação essa totalmente compreensível se considerarmos a situação de
marginalização vivenciada por esses sujeitos.
Diante das dificuldades de uma inclusão social digna, esses trabalhadores
enfrentaram todo tipo de problemas: fome, frio, desespero, desemprego, mortes, dramas
familiares e diante de um quase estado de anomia, a terra lhes é apresentada ou
representada como a única saída possível. Digo que a terra foi apresentada, tendo em vista
que muitos trabalhadores passaram a idealizar uma vida na terra a partir do momento em
que ela lhe foi oferecida como uma saída à situação de miséria por representantes de
órgãos mediadores da luta. Outros, no entanto, guardam consigo a representação nostálgica
33 Segundo Canclini, hibridações são “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2003, p. XIX).
133
desse espaço como produto de uma tradição cultural, vendo-a como único lugar possível de
felicidade, na lembrança da vida na terra, na esperança de um dia poder ter um “pedaço de
chão com umas criaçãozinha”, na busca por um lugar onde ele possa “morrer tranqüilo”.
Segundo o conceito de hibridação proposto por Canclini, a formação cultural
do homem do campo pode ser vista como uma “estrutura discreta”, uma vez que não
possuem uma cultura fechada, pura, estanque, ou seja, sem nenhuma hibridação. Esse
processo começa mesmo quando esses sujeitos ainda residem no meio rural, já que, ainda
nesse meio, as relações com o urbano são tecidas.
Na relação direta com as famílias acampadas, vê-se o quanto aspectos culturais
tipicamente urbanos e rurais misturam-se, hibridam-se, complementam-se. Não
compreendo os sujeitos analisados como grupos homogêneos, mas falo das características
que mais se apresentam, mais aparentes e mais latentes entre eles. Sua formação cultural,
ou tudo aquilo que esses homens e mulheres viveram ao longo de suas vidas, é o que
determina a representatividade que a terra tem para cada um deles.
O repúdio ao patrão e a vontade de controle de seu tempo34, o sonho de
conseguir um pedaço de terra, de poder trabalhar para si e não para os outros, a angústia de
viver na expectativa de perder o emprego, de não conseguir área de trabalho, de não poder
arcar com os custos de uma casa, com aluguel, água e energia são representações comuns
nas falas dos trabalhadores rurais sem-terra, como se pode inferir nos relatos a seguir:
Eu trabalhava em terra dos outros, eu e meu esposo, e eu sonhava, eu falava pra ele assim: “eu tenho um sonho tão grande na minha vida de um dia ter um pedaçinho de terra pra ser nosso. Pra nós viver naquela terra, pra nós criar os filho, os neto, tudo dentro daquela terra”. E eu sonhava com isso. Eu falava pra ele: “um dia será que a gente vai alcançar isso? mas não vai alcançar, por que quem trabalha de empregado pros outros nunca vai conseguir” (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).
[...] eu sempre lutei pra ter um pedaço de um pedaço de terra. Meu pai tinha, ele falou: “ô isso aqui eu consegui com suor”. E eu falei: “mas eu to lutando, o senhor vê que eu to lutando, que eu sou um cara trabalhador e não consigo. Não tem jeito”. Na época deles talvez teria sido mais fácil de ele te conseguido, né? E como ele tinha... Ele conseguiu também assim... que a gente era em oito irmãos, né? E todos trabalhavam, aí todos deram uma mão. Agora que nem eu que sou sozinho? Não tem jeito. (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
É tudo no sítio. Trabalhava assim de arrendatário, né? E daí depois eu casei, aí eu morei um tempo na cidade, outro tempo na roça, né? [...] já trabalhou muito na roça. Meu Deus! É roceiro mesmo. Toda vida, igual ele mesmo fala, ele toda vida trabalhou em terra dos outros, né? Meu pai também toda vida em terra dos outros (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
34 O repúdio ao patrão, assim como a ânsia pelo controle de seu próprio tempo, são também evidencias presentes nos trabalhadores sem-terra analisados nos trabalhos de FARIAS, 2002 e MENEGATI, 2003.
134
Moradia, trabalho e família constituem a tríade que guia o sonho desses
sujeitos. A terra prometida, expressão de forte cunho religioso, é antes de tudo a
representação de lugar de sossego, de segurança, de lugar para criar os filhos. A terra é
muitas vezes representada como possibilidade de futuro, mas também revela referência
nostálgica ao passado, ao sítio dos pais, que por algum motivo, desfizeram-se da posse, a
vontade dos pais de possuírem um pedaço de terra, quando passaram uma vida toda
trabalhando em terras de outrem. E esse futuro está muito ligado a expectativa de uma vida
melhor para os filhos. Nesse sentido, dona Eleonora conta porque se mantém a sete anos
acampada na luta por um pedaço de chão:
Mais não desistimo, tanto por causa que a gente pensa na criançada, senão por mim eu já tinha desistido. Tem dia que aborrece embaixo de dessas lona, aí, não dá vontade de ficar assim. Mais o que que é eu vô fazer? (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
Um ex-acampado, mesmo tendo enfrentado dificuldades recentemente em seu
lote com a questão da aftosa e a matança do gado, diz saber que pode ficar tranqüilo, por
que ali ele está “instalado”. As experiências de trabalho como empregado, incluindo o
período em que viveu no Paraguai, sempre foram marcadas pela instabilidade, pela
insegurança, sentimento que não vislumbra mais em seu lote de terras. A terra é vista como
aquela que gera frutos e garante a sustentabilidade da família, mesmo em tempos difíceis:
Porque era uma oportunidade de ter um lugar da gente mesmo né? E as coisa ta difícil, esses dia o negócio da aftosa, aqui a gente sabe que tem lugar pra morar né? Sabe que tem uma segurança. Trabalha prus outro, trabalha de empregado ou no hotel lá no Paraguai, a gente num tem segurança né? Porque uma hora a gente tem outra hora a gente num tem, então aqui a gente esta instalado! (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).
A fala de Erondi expressa a expectativa dos sujeitos acampados: segurança,
estabilidade, um referencial, trabalho, casa... Segundo Martins, “a luta não é primariamente
pela terra e sim luta contra a desagregação das relações sociais tradicionais, que resulta na
incerteza do desenraizamento, na perda de um lugar de referência” (2003-b, p. 23).
Vendo as representações como fruto de tradições culturais, e reconhecendo-as
como processos dialéticos, que se fazem e refazem nas relações com os sujeitos e com o
meio, não se pode negar que entre os sem-terras, existem representações que se distinguem
de um imaginário com laços afetivos voltados para terra. O importante, no entanto, é poder
inferir que quando esses sujeitos decidem partir para a luta pela terra, eles estão tentando
(res) construir para si outra história, e é por isso e para isso que lutam, estão, na prática
“fazendo-se” a partir da experiência vivida e assim lutando pelo direito de uma vida mais
digna e um mundo possível.
135
CAPÍTULO IV
VIDA PROVISÓRIA, EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS
A experiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua presença. A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio [...] (THOMPSON, 1981, p. 17).
Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não-história”, como o diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível... Não tão invisível assim. (CERTEAU, 1996, p. 31).
136
4.1 Ocupação de terras: o preâmbulo em busca de um novo lugar
[...] por mais que os sem-terra tenham constituído experiências diversas, a espacialização de uma ocupação nunca é um fato completamente conhecido, tampouco desconhecido (FERNANDES, 2000, p. 292).
A gente sabia que ia pra uma ocupação de fazenda, só que num sabia onde né? Mais eu topava tudo, queria vim, porque eu queria ganha terra... tava disposta a tentar o que viesse (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
A primeira ocupação da fazenda Santo Antônio Agropastoril Ltda, localizada
no município de Itaquiraí, ocorreu na manhã do dia oito de março de 1997, dela
participaram cerca de 1300 famílias. Inúmeros caminhões e ônibus transportando
trabalhadores se destinaram a MS-487 naquela manhã. Apesar do sigilo em torno das
informações dessa ocupação, a polícia estava nas estradas e interceptaram alguns veículos,
no entanto muitos já haviam chegado à área e a ação policial foi voltada mais a uma
intimidação, do que realmente a uma desarticulação da ocupação.
Lúcio, que foi um dos organizadores dessa ocupação, lembra que a polícia já
tinha conhecimento da ação do Movimento, já que os trabalhos de base nos últimos meses
haviam sido intensos e envolvido muitas pessoas, mas a ação policial ficou limitada, tendo
em vista que apenas os organizadores (cerca de cinco pessoas) sabiam exatamente a
fazenda que seria ocupada:
Teve algum bloqueio nos municípios, teve uma operação da DOF pra impedi a ocupação, como já vinha com 600-700 famílias de uma localidade, eles tentaram impedi o pessoal passa por Itaquiraí, só que aí, vinha o pessoal, em torno de 500 famílias da região de Eldorado e que aí a polícia não conseguiu segurar. É que o pessoal já vem preparado pra realmente não volta pra trás. Pelo menos isso, né? E quando a gente faz o trabalho de base, faz o trabalho: “se algum lugar tivé uma barreira da polícia, descarrega o caminhão e faz o acampamento ali mesmo, aonde tiver a barreira”. Como era muita gente, a polícia era pouca, não conseguiu segurar (LÚCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Porque assim é muita gente. Nós chegamos na área era mais ou menos umas seis horas, tava amanhecendo o dia, né? Na verdade quando a gente chego ali na entrada tinha vários camburão, né? Aí a gente ficou assim... “meu Deus será que já passou muita gente ou não passou, né?” [...] Mas aí a gente desceu, eles perguntaram pra onde a gente tava indo. A gente falo que a gente tava indo pra Santo Antônio. Não tinha como a gente esconder mesmo. Fizeram algumas perguntas e tal, mas aí deixaram a gente ir, porque a maioria já tinha passado mesmo, né? (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
137
Os sem-terras foram barrados por quatro viaturas do Departamento de
Operações de Fronteira (DOF) e por um grupo de elite da Polícia Civil. Os policiais
tentaram bloquear os primeiros veículos, mas foram surpreendidos com o tamanho da
organização. Devido ao grande número de pessoas e veículos que se aglomeraram em
pouco tempo de paralisação do tráfego da rodovia, os policiais liberaram a pista e
acompanharam os veículos até o local da ocupação (O Progresso, 10.03.1997).
Os trabalhadores, conforme a fala de Lúcio, estavam orientados para que, caso
fossem interceptados por ação policial, montassem seus barracos onde estivessem. O que
não deviam fazer, em hipótese alguma, era recuar e voltar para trás. Para essas decisões,
medidas que devem ser tomadas rapidamente e sem hesitação, havia um ou dois
coordenadores em todos os veículos que se destinavam à ocupação.
O medo da repressão policial é marca presente nas falas dos sujeitos que se
destinam à uma ocupação de terras e também um dos maiores empecilhos impostos ao
ingresso na luta pela terra. Ressalta-se, ainda, um sentimento de estar cometendo
ilegalidades; muitos vão à luta, mas ainda guardam ressalvas em relação a legitimidade da
ação. É um momento doloroso, marcado por sentimentos antagônicos, que se desdobra
entre vergonha, esperança e culpa. Conflitos que Martins chamou de dilemas da
transgressão: No fundo, há uma grande violência envolvida na sua mobilização e na sua indução para saltar por cima da lei e das regras que ordenam as relações sociais responsáveis pelas injustiças de que é vítima. Essa talvez seja a razão de um grande número de desistências já no momento da mobilização (MARTINS, 2003-b, p. 47).
Nas proximidades de Itaquiraí, os ônibus, caminhões e carros foram se
encontrando e formaram uma fileira de veículos. O enfrentamento com a polícia, nesse
momento, apesar de perturbador, foi pacífico, alguns caminhões ficaram um tempo retido e
foram liberados, outros nem chegaram a ser parados.
Daí chegemo ali... e polícia na estrada, minha fia. Cercando. E aquele monte de caminhão, nós mesmo veio de caminhão. Tinha ônibus de Eldorado, aquele monte de gente, Né? Acho que de Mundo Novo veio uns dois ou três caminhão cheio, lotado mesmo de gente e daí foi encontrando né? Foi juntando aquela fileira de gente, aquela fileira de gente e ônibus, caminhão, foi encontrando de Japorã e de tudo quanto foi lado, né? A polícia chegou a parar vocês? Parou, mas nós passamo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
O tamanho da comitiva organizada, que fez com que a polícia recuasse em uma
possível ação de desmobilização, também surpreendeu os próprios sem-terras que se
destinavam a ocupação. São comuns as lembranças de espanto ao avistarem aquele
“mundão de gente” e a enorme fileira de veículos.
138
O momento de maior choque foi mesmo a chegada ao local de acampar. Todos
recordam-se da má impressão ao chegar ao lugar, um “lugar horrível”, “desértico”,
“longe”, “parecia o fim do mundo”. O percurso feito na estrada BR-487, após os veículos
deixarem a BR-163 no entroncamento entre Itaquiraí e Naviraí, parecia não ter fim. A
estrada de terra, com cascalho e muitos buracos, dificultou ainda mais o trajeto que foi
feito em caminhões e ônibus velhos. Lotados de pessoas, esses veículos ainda
transportavam lonas, colchões, mantimentos e alguns utensílios. Aí a gente chegou assim... no início a gente... na entrada quando a gente chegô, já tava clareando o dia, era um lugar horrível assim, a estrada. Hoje, não porque hoje tem asfalto, mas no início era tudo chão... a gente entrou assim naquela estrada parece que não acabava mais, parece que era pro fim do mundo que a gente ia. Era um lugar deserto. Hoje ta totalmente diferente. Aí a gente chegô, quando a gente chegô lá já tinha muita gente que tava começando montar o barraco,.. um monte de gente... muita gente. O pessoal já tava se organizando, o local de fazer as barracas... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
Nair, que também ajudou nos trabalhos de base para formação do
acampamento, coordenou alguns caminhões pelo trajeto, e assim como as famílias que ela
acompanhava, espantou-se com o lugar para onde estavam indo morar. Na imagem
seguinte, tirada na chegada ao local, já dentro da fazenda Santo Antônio, ela aparece de
camisa clara e boné vermelho do MST, no momento em que chama atenção do pessoal
para algumas informações. O caminhão, ao fundo, abarrotado de colchões, utensílios
domésticos, mantimentos e objetos de uso pessoal, era o mesmo que transportou os
trabalhadores.
Figura 5: Chegada das famílias à fazenda Santo Antônio, em Itaquiraí, dia 08.05.1997. Foto cedida por Nair.
139
A imagem, tirada na manhã do dia oito de março, que mostra um campo
coberto por uma vegetação verde e uma reserva de mata ao fundo, era um tanto mais
aconchegante que aquela infindável estrada de terra que parecia não levar a lugar algum. A
imagem revela, na prática, uma ocupação segundo o modelo defendido pelo MST, ou seja:
uma ação que envolva toda a família, com mulheres e crianças, inclusive algumas ainda
muito pequenas e bebês de colo.
Na imagem a seguir, produzida por André Dusek, que ilustrou a reportagem da
revista Isto é do dia 27.08.1997, sob o título: “Rastilho de pólvora: Invasões e
acampamentos promovidos pelo MST se multiplicam na região mais fértil de Mato Grosso
do Sul”, mostra a precariedade da estrada por onde os caminhões passaram e que causou
tanto espanto e desconforto. Segundo dona Leonice: “Não tinha estrada aqui, tinha uma
estrada no picadão véio que era uma hora e pouco pro cê saí daqui lá no asfalto, era duas
hora que você gastava de ônibus”.
Figura 6: Visão geral do acampamento Oito de Março. Imagem veiculada na Revista Isso É em, 27.08.1997.
Seu Celso lembra que vieram em cinco caminhões lotados de Ivinhema, e ao
avistar o local para onde se dirigiam, constatou que não eram os únicos e que o local já
estava cheio de pessoas e caminhões. As expressões de espanto na chagada ao local
evidencia um sentimento de medo no enfrentamento dessa nova realidade. Frases como:
“Eita bexiga, e agora...” e “Meu Deus, onde eu vim parar?” refletem até mesmo um certo
arrependimento, um sentimento ambígüo entre ver sua própria vida transformada na
iminência de uma vida melhor ou a manutenção das dificuldades já conhecidas que não
requer desinquietação.
Ah, eu... saia assim, você via aquele mundão de gente, nós viemos em cinco caminhão junto com nós. O nosso era da frente, aí quando nós viu já tava cheio,
140
assim. O dia tava chovendo assim, que eu olhei assim... já meio lá do alto que nós veio por aqui, olhei aqui na baixada aquele monte de caminhão. Eu falei: “Eita bexiga, e agora...” (risos) (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Há! Quando a gente chegamo ali, que a gente vinha, né, eu falava pra mãe: “Mãe como que vai se esse negócio lá?” Aí chegamo de madrugada, né? Amanhecendo o dia, até erramo a entrada, entramo por outro lado. Aí que eu desci eu falei: “Meu Deus aonde eu vim parar?” (risos). Aí a mãe falou: “Agora nós vamo te que fica aqui”. Ah, nos primeiro dia eu queria, porque queria ir embora, e não queria fica, nem eu, nem minha irmã, né? Olhava pra um lado, olhava pro outro e falava: “Onde nos viemo pará nega?” (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Claudinéia, que no ato da ocupação tinha apenas 13 anos e que se opôs a essa
mudança, tentou buscar na mãe um conforto diante do medo e das incertezas presentes
naquele trajeto. A mãe tentou tranqüilizar as filhas quando estavam rumo à ocupação, mas
revela que também ficou assustada. Apelando a Deus, dona Edinéia sentiu que se destinava
ao fim do mundo. O fato de ter sido tão incisiva com relação a ida da família à ocupação,
pareceu gerar um sentimento de culpa, o medo que enfrentou naquele trajeto se sobrepôs,
ao menos naquele momento, às certezas que mantinha até então. O marido que foi
contrariado, as filhas adolescentes que relutaram na ida e que foram amedrontadas, e ela
agora diante de tantas incertezas... a saída foi se apegar a Deus e enfrentar a odisséia
“naquele fim de mundo”.
Aí quando chegou no dia né? Foi oito de março... pra amanhecer oito de março, nós vem. Quando chegou na estrada mas me deu um medo, menina do céu. Falei: “e agora meu Deus o que nós vamo enfrentar lá?” Aí nós veio. Quando chegamos ali, meu pai do céu, isso aqui era fim de mundo. Mas era horrível esse lugar aqui, sabe? (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Poucos entrevistados já haviam participado antes de outra ocupação, a maioria
vivenciava aquele sentimento pela primeira vez. Para as lideranças, que embora tenham
enfrentado esse momento com maior lucidez, também é notório que não se trata de um
processo fácil, as expectativas são enormes e as dúvidas também. Tanto trabalho poderia
ser diluído com uma repressão policial, mas na ocupação da fazenda Santa Antônio tudo
havia sido minimamente pensado e articulado, as chances de desarticulação, embora
existissem, eram muito pequenas.
Passado esse momento de choque com as primeiras impressões do local, era
hora de se organizarem, o dia estava chuvoso e frio, as famílias teriam agora a difícil tarefa
de se estabelecerem naquele local. Durante toda manhã, veículos continuaram a chegar,
transportando as famílias. No início da tarde as lideranças reuniram todo o pessoal em
assembléia, para orientarem-nos quanto à organização, como, por exemplo, a questão da
água, da segurança, da retirada de madeira para construção dos barracos e também,
141
segundo um dos coordenadores, para conscientizar as famílias quanto à proibição de
desmatamento e abate de animais silvestres. Propositalmente, a ocupação ocorreu em um
sábado, para que eles tivessem o final de semana livre para se organizar e montar os
barracos sem ameaça de despejo, o que poderia ocorrer na segunda-feita, com a volta das
atividades judiciais.
Nesse momento, o MST ainda mantinha a postura de efetivar uma ocupação
com um determinado número de famílias e assim se manter, assim pessoas continuaram
chegando para acampar ainda por cerca de uma semana, depois desse tempo, as famílias
que apresentassem interesse em participar de um acampamento deveriam esperar a
articulação de outra ocupação. Algum tempo depois, e ainda hoje, a entrada de famílias se
tornou permanente. Assim, algumas famílias mais receosas se direcionam ao acampamento
somente depois da ocupação efetivada e o acampamento montado. Esse procedimento
também é adotado pela CUT e FETAGRI. As famílias interessadas podem se dirigir ao
acampamento e após contatos com lideranças, montar seu barraco.
As estratégias usadas para ocupação de terras nem sempre são tão definidas e
articuladas. A ocupação das fazendas Laguna Peru, em Eldorado, e Mambaré, em Mundo
Novo, organizadas pela CUT e FETAGRI, respectivamente, assumem características
diferenciadas.
A ocupação da fazenda Laguna Peru ocorreu no dia três de março de 1999.
Aproximadamente oitenta famílias organizadas pelo sindicato de trabalhadores rurais do
município de Eldorado se dirigiram à área durante a noite. O trajeto foi rápido, a fazenda se
localiza na BR-163, entre as cidades de Itaquiraí e Eldorado. A maioria desse sujeitos era
do município de Eldorado, mas também tinham aquelas que, como a do senhor Tadeu e a
da Dona Eleonora, vieram do Paraná.
O sindicato fez um trabalho de cadastro das famílias com interesse em
participar da ocupação e organizou-as para destinarem-se à fazenda Laguna Peru, que
naquele momento era, segundo os entrevistados, “puro mato”.
Ah, chegamo lá que é... é na época nos cheguemo lá meia noite por aí,11 horas por aí. Depois... que nós se reuniu aqui na cidade, lá umas oitenta famílias parece na época que foi né? I... chegamo lá é mais num... já era assim, organizado (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
O senhor Tadeu foi um participante dessa ocupação, veio do Paraná, e com a
ajuda de um amigo assentado, ficou sabendo dessa possível ocupação. As famílias, assim
como ocorreu na ocupação da fazenda Santo Antônio, não sabiam o local da ocupação,
142
sabiam que era uma fazenda próxima a Eldorado e improdutiva. Saíram durante a noite e
fizeram a ocupação da fazenda, que ocorreu sem intervenção policial.
Dona Lurdes era contra a decisão do marido de participar novamente de uma
ocupação de terra. O esposo, o senhor Luiz, já havia participado da ocupação da fazenda
Santo Antõnio, desistiu depois de um ano e, em 1999, aceitou o convite que recebeu de
última hora para ocupar a fazenda Laguna Peru:
Aí ele falou: “arruma minhas coisa que eu vou lá procura o Cirço”. Aí eu arrumei. Arrumei cochão, arrumei umas panelas pra ele, mercadoria... Aí ele voltou. Chegou em casa e falo: “tá tudo certo, vai viajar de noite, umas 11 hora”. Aí nóis foi tudo pra casa dele lá, levemo tudo as coisa pra casa dele lá, eles foram embora pra lá e ta inté hoje nessa (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
As famílias reuniram-se na casa de um dos coordenadores e, entre às 23:00 e
24:00 horas, saíram rumo à fazenda Laguna Peru. A ocupação foi articulada pelo sindicato
e por alguns trabalhadores que tomaram decisões e planejaram rapidamente a ação; as
pessoas receberam o convite com poucos dias de antecedência, e a decisão entre lutar ou
não por outra história teve que ser rápida.
A ocupação da fazenda Mambaré, em Mundo Novo, ocorreu em 28 de março
de 1999. As famílias que já estavam organizadas a espera da definição da data saíram em
grupo, cada qual com seu coordenador, durante a noite. Das 64 famílias, apenas 28
conseguiram chegar à fazenda e efetivar a ocupação, os outros grupos foram desarticulados
pela Polícia, que interceptou a ação em vários bairros da cidade.
Mesmo com menos da metade das famílias previstas, o movimento articulado e
coordenado pelo então presidente do sindicato, o senhor João Valdir, conseguiu ocupar a
fazenda. As outras famílias chegaram nos dias posteriores. A área está localizada na BR-
163, a 8 km da cidade de Mundo Novo, na fronteira com o Paraguai e divisa com a cidade
de Guaíra/PR, trata-se de uma área bem localizada e de fácil acesso.
Como existe um grande receio das famílias com relação ao ato da ocupação, é
comum, e assim ocorreu nesse momento, o sindicato organizar algumas lideranças para
iniciar a ocupação da área, assim as famílias, ou membros delas, chagavam nos dias
posteriores, já com a fazenda ocupada, livre dos ricos de ação policial para desarticulação.
É necessário ressaltar uma diferença marcante entre essas três ocupações. Só
no acampamento Oito de Março as famílias todas se destinaram à ocupação, não que isso
seja uma regra, mas a presença de mulheres que acompanharam o marido, e ainda levaram
os filhos, o que pode ser inferido até mesmo pelas imagens do acampamento. Nas outras
mobilizações, com algumas exceções, somente os homens participaram da ocupação, no
143
entanto, algumas mulheres mudaram-se depois para o barraco, mas outras apenas
visitavam esporadicamente.
Dona Lurdes, que acompanha a expectativa do marido acampado no Laguna
Peru há oito anos diz que: “Eu não fui junto, eu nunca ia junto. Luiz foi e nunca saiu desse
acampamento, era lá direto”, isso ocorre também com algumas amigas que vive a mesma
expectativa.
Diferenças como essa evidenciam concepções de lutas diferenciadas. Desde as
primeiras reuniões esse tipo de atitude já é discutida. O MST defende a mudança das
famílias aos acampamentos, e isso equivale a uma transformação mais radical, deixar
emprego, casa, escola, família. Nos outros dois acampamentos, mediados pela CUT e
FETAGRI, a maior parte dos barracos é habitada apenas por homens, que passam períodos
em casa com a família. Não que essas posturas sejam lineares e aplicadas a todos os casos
e todos os acampados, mas são diferentes formas de concepção de luta e que diferenciam o
cotidiano desses sujeitos. Em nenhum desses grupos o fato de ir só um membro da família,
ou a família toda, pode ser visto em caráter de imposição, mas de posição, são formas de
luta defendidas e apresentadas às famílias pelas lideranças.
Todas as ocupações ocorreram em um sábado à noite, isso para que os grupos
pudessem se estabelecer nas áreas antes de uma possível ação policial. Com menos ou
mais dias, a liminar de reintegração de posse é concedida ao proprietário das terras e os
barracos têm que ser transferidos a outras áreas, é nesse momento que muitas famílias
desistem. Nos casos analisados, todos tiveram uma segunda, terceira e até quarta ocupação
da mesma área e pelo mesmo movimento. Estratégias de lutas que vão tomando contorno
com o caminhar das negociações.
Com relação à estratégia de fazer as ocupações no sábado, dona Leonice,
militante do MST por muitos anos, conta que do sábado para a segunda-feira era um
intervalo de tempo que eles tinham para se organizar e, então, receber a imprensa e
enfrentar uma possível ação policial:
A gente fazia muito nesse período [fins de semana] até porque você tinha até como dá uma organizada, quando chegava, organizava o povão na área. Até chegá imprensa, polícia... Porque a gente sabe que não ia chega imprensa no sábado, no domingo, era mais difícil. Então nós tinha o sábado e o domingo pra organiza inteiramente, pra na segunda fera tá preparado, pra que se viesse o cassete, pra gente... (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
No caso da ocupação da fazenda Santo Antônio que, ocorreu no dia oito de
março, a liminar foi concedida pelo Juiz de Naviraí, Danilo Porin, no outro dia, domingo,
144
dia nove de março. Um dos integrantes da direção estadual do MST, Márcio Bissoli, disse
ter ficado surpreso com tanta rapidez na liberação da liminar e desabafou: “Se fosse uma
decisão favorável aos trabalhadores, demoraria seis meses” (O Progresso, 11.03.2007).
No entanto, os sem-terras só começaram a deixar a área um mês depois, no dia
nove de abril de 1997, isso porque o grupo estava decidido a não desocupar a fazenda antes
de uma proposta consistente feita pelo governo do Estado aos trabalhadores.
Durante esses trinta dias, as famílias viveram sob a assombrada ameaça de
despejo com força policial, já que o mandado de reintegração já havia sido emitido e os
grupos estavam dispostos a se manter na área ocupada. No decorrer desse período, os
coordenadores do acampamento e membros da direção do MST negociaram com o
governo a saída das famílias, a qual estava condicionada à vistoria da fazenda pelo
INCRA, quanto à produtividade e quanto aos quase cinco mil ha. de terra devolutas da
União, que estavam dentro da área da fazenda.
Decididos a não deixar a área antes da vistoria, Claudinéia lembra que eles
sabiam que a ação policial poderia vir a qualquer momento, mas ainda assim estavam
dispostos a resistir e só saírem de lá mortos:
[...] a polícia veio pra despeja a gente da fazenda. Era pra gente saí, aí o povo teimoso, batia o pé que não saia. Aí eles mando recado que vinha com reforço, né? Com o ônibus de polícia. Aí a turma já mando recado, que podia vim, traze os caixão, os sacolão de plástico, porque a gente não saia. Só saia com sangue na canela, né? (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.05.2005).
A Secretaria de Segurança Pública (SSP) estadual tinha conhecimento da
situação e devido ao grande número de famílias protelaram a ação policial tentando uma
saída pacífica a fim de evitar um confronto. O secretário do órgão chegou a ser ameaçado
pelo juiz Danilo Burim de responder por crime de desobediência. Em reportagem ao jornal
O Progresso o juiz teria dito que: “Estou apenas fazendo cumprir a lei. Invadiu tem que
desocupar. Isto está claro na lei de direitos de propriedade” (O Progresso, 20.03.1997).
Como medida paliativa, a SSP resolveu manter camburões de policiais nas
proximidades do acampamento para barrar a chegada de novos grupos de trabalhadores.
Estima-se que, na da data da ocupação, eram em torno de 1.300 famílias, mas a chegada de
novos grupos durante a primeira semana foi contínua, elevando para mais de 2.100 o
número de famílias. Estima-se, entre as reportagens veiculadas e os números apresentados
pelo MST, que eram em torno de 7.000 pessoas acampadas.
No quinto dia de ocupação, um ônibus e um caminhão foram barrados por um
camburão da polícia militar e impedidos de entrar na fazenda; indignados, os acampados
145
direcionaram-se ao local, retiram as armas dos três policiais e levaram-nos ao
acampamento, de onde foram liberados no final da tarde, com a viatura e a munição, mas
sem o armamento.
Figura 7: Policiais no momento em que foram abordados pelos acampados do acampamento Oito de Março.
Foto cedida por Nice.
A imagem registrada pelos acampados marca o momento em que os sem-terras
chegaram até os policiais. Não houve resistência, os policiais entregaram as armas e
seguiram com o grupo até o acampamento. Como se pode inferir pelas imagens, apesar de
tenso, não foi um momento de confronto, vários acampados, inclusive crianças,
acompanharam a operação, que contou até mesmo com um megafone, objeto comum nesse
acampamento para a comunicação entre líderes e acampados. Segundo os acampados, eles
exigiram o mandado judicial para tal ação, documento que os policiais não possuíam.
Segundo reportagem do jornal O Progresso, foram ao todo seis armas: uma
submetralhadora, três revólveres, uma escopeta e uma carabina (20.03.1997). Nair lembra
que o número de pessoas que foi ao encontro dos policiais era tão grande, que quando
estava no meio do caminho, em torno de 3 km, os primeiros sem-terras já estavam
chegando próximo ao camburão:
146
A gente fez a ocupação dia oito nós chegamo na fazenda, mas ainda continuou chegando gente, ainda levou um monte de dia pra... eu não me lembro quantos dias, mas, mais ou menos uns três, quatro, cinco dias que nóis tava lá, a policia começou barrar, começo barrar os caminhão. Aí a gente sobe a notícia que tinha várias famílias na BR, que as polícia não queria deixar passar. Aí nós fomos. E eu fico pensando assim, meu Deus, o povo é corajoso, porque na época nós saimo do acampamento... eu esqueci o nome da fazenda, mas acho que da uns 15 km, vieram atrás, e aí eu vim também. Chegou uma certa altura eu tava na metade do caminho e já tinha gente chegando lá onde tava as polícia. E eles tavam assim... meio que lá pra dentro, né? Aí o pessoal trouxeram eles pro acampamento, trouxeram o camburão, né?Aí que veio esse pessoal do governo... Mas eles não fizeram nada, na verdade, foi uma pressão, a gente ficou revoltado porque eles tavam fazendo aquilo, tavam barrando as famílias de chegarem pro acampamento (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).
O pessoal fizero eles desce lá com a viatura, já tava desarmado, chego lá só entregaram pra eles a munição e mandaro volta embora. E dero recado pra não fica lá fazendo segurança de fazendero, só isso. Mesmo por que, tava um dia chuvoso e o pessoal que ia indo acampar em alguns casos eles tavam fazendo até desce as coisa do carro e dexá as pessoa de a pé lá, aí nem chegava e nem deixava volta (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
Esse foi um fato que marcou a história desse acampamento, tanto pela
repercussão que teve, quando pela aflição vivenciada pelas famílias naquele momento. A
tomada das armas, como ficou conhecida, é narrada por todos os acampados que
vivenciaram aquele período no acampamento, mesmo que não estivessem presentes. O
senhor Celso, que participou da ação, conta que foram avisados pelos guardas do
acampamento do acontecido, alguém sugeriu que fossem todos ao encontro dos sem-terras
barrados, e assim o fizeram, em uma ação rápida e pouco elaborada. Os policiais, naquele
momento, eram a representação de um Estado opressor. As barreiras legais, judiciais e
Estatais estavam materializadas na figura daqueles sujeitos, fazer com que sentissem um
pouco do drama daquele espaço e que provassem de seus (dês) sabores, era naquele
momento uma forma de chamar a atenção da sociedade para o problema social que
estavam vivenciando. [...] Tava com quatro dias que nós já tava aí. O caminhão tava chegando que tava mais atrasado. Aí eles tava... ligaram que eles tinha prendido um caminhão nosso, dero uma ligada, aí saiu um peão lá e falou: “olha, cercaram um caminhão nosso ali pra frente vamo lá soltar eles”. Aí saiu aquele montão de gente. Tinha uma mil pessoa aqui. Os que tava aí foi quase tudo ficou só alguns que não guentava andar, acho. Aí nós fomo lá, eles tavam lá... Três polícia, o camburão, segurando o caminhão e um ônibus. Aí nós passamos deles assim, aí quando uma metade passou a outra chegou e fechou eles no meio. Aí eles tentaram correr, a turma já chegou e já desarmaram ele já... (risos) tomemos as armas deles, fizemos eles entrar no camburão, pegaram um motorista e... trouxe eles dentro do camburão e deixemos aí no acampamento. Aí fizemos eles comê angu de fubá, uma polenta mal feita pra eles comer, pra eles sentir o que a gente tava sentindo (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Borges, ao analisar, a partir das considerações de Martins, um episódio de
retenção de oficial de justiça em um acampamento do Pontal do Paranapanema, revela
147
como a forma com que a concepção de direito pode, em determinadas circunstâncias,
inverter-se:
Invertia-se, de certo modo, naquele momento, a concepção do direito, o qual se estava a reboque das práticas camponesas, passava então a ser questionado, remetendo as considerações de Martins, de que: “Se o direito é constituído sob o torto, sob a usurpação do direito do outro, desvenda para o outro o seu direito. É nesse sentido que a cerca não fecha, abre: abre a consciência do direito lesado, abre a luta pelos direitos, abre a luta contra o direito edificado sobre a injustiça” (2004, p. 154).
As armas foram devolvidas pessoalmente pelos sem-terras ao Secretário de
Segurança Pùblica do Estado, num encontro que aconteceu na cidade de Naviraí. O
encontro foi precedido por uma reunião com alguns parlamentares, como o então deputado
estadual Zeca do PT, e alguns vereadores do mesmo partido, que negociaram e
acompanharam a entrega das armas. O secretário exigiu, no ato de recebimento das armas,
a transferência das famílias de dentro da fazenda Santo Antônio para uma área provisória
de oito mil ha oferecida pelo prefeito do município de Japorã, o que não foi aceito pelos
acampados (O Progresso, 21.03.1997).
Esses fatos não são só recordados pelos sem-terras com expressões de coragem
e orgulho, mas também como momentos de conflitos, medos e dúvidas. Desde a chegada,
as famílias já viviam na iminência de um possível despejo. Ocupação e despejo era a
ordem cronológica dos acontecimentos. As notícias que veiculavam nos jornais e
programas radiofônicos com as mensagens: “Secretário admite ação militar em fazenda”;
“Desocupação da fazenda Santo Antônio poderá ter reforço policial”; “a ação está
montada”, entre outras, deixavam acampados e lideranças em total estado de alerta.
Claudinéia diz que todo o período ela ouvia dizer que “os policiais poderiam
vir”; “que já estavam vindo”; “que daquele dia não passava”; mas no momento em que
realmente aconteceu esse embate foi que sentiu o desespero e a vontade de deixar aquele
lugar. Embora não tenha havido nenhum confronto mais direto, ninguém sabia no que
aquela ação poderia resultar, quantos policiais eram e qual era realmente a intenção deles
naquele local:
Que eu passei muito medo mesmo foi a primeira vez que veio, as polícias, eu não sabia. Aí o pessoal chego lá com ônibus dizendo que tinham despejado a turma no caminho, que eles vinha pra bate. O pessoal falava bastante, né? Eu tinha muito medo. Foi quando bateu a vontade de ir embora mesmo foi naquele momento, né? Foi no dia que tomaram as armas. Viche já passei muita coisa assim, muito medo (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.05.2005).
A primeira desocupação da fazenda Santo Antônio ocorreu sob muita
negociação, pressão e ameaças. As lideranças apostavam na improdutividade e na
148
ilegalidade da fazenda e por isso reivindicavam a análise e o parecer do INCRA antes de
desocuparem a área. A SSP, por sua vez, era pressionada a cumprir a ordem de despejo que
lhe foi arbitrada. Deputados, vereadores, a prefeita da cidade vizinha, Mundo Novo,
Dorcelina Folador (PT) e o governador do Estado, Wilson Barbosa Martins, cada qual com
seu ponto de vista, tentaram por diversas vezes uma negociação. Com o argumento de que
“o despejo poderia se transformar em tragédia”, Dorcelina tentou intervir junto ao
governador, mostrando-se desfavorável ao despejo (O Progresso, 27.03.1997).
Mesmo sem uma definição quanto a análise da situação da fazenda Santo
Antônio, os acampados deixaram-na um mês depois da ocupação, em decorrência de um
acordo firmado entre um dirigente nacional do MST, Egídio Brunetto, e o governo do
Estado, em um fórum criado para resolver o impasse. Apesar de não aceitar a transferência
para o município de Japorã, os sem-terras deixaram a fazenda com destino a BR-163,
diante do compromisso de que o INCRA iria medir a área em questão e efetuar o cadastro
das famílias acampadas, e ainda de que o poder executivo estadual se incumbiria de
fornecer veículos para o transporte das famílias, além de lonas e alimentação básica aos
acampados por cerca de sessenta dias (O Progresso, 05/06.04.1997).
Embora não tenha havido uma ação policial direta de despejo dos acampados, a
violência da ameaça e a expectativa do medo constante é evidenciada. Os despejos, ainda
que negociados, obrigam esses sujeitos e viver recomeçando. É uma violência simbólica,
que maltrata e castiga, que leva sempre a um recomeço, sem que se possa vislumbrar um
fim. Nesse sentido, são importantes as considerações de Borges:
Entretanto, o que permanece também como um marco na memória é a violência do despejo. Violência que não se dá necessariamente pelo emprego da força física, mas pela imposição da saída, da necessidade de deixar a terra desejada, “arrancando os barracos”, “juntando as tralhas”, tendo que costumeiramente recomeçar (2004, p. 157) [Aspas no original].
Com apenas quatro caminhões, a transferência das famílias demorou quase
trinta dias. Os sem-terras remontaram seus barracos a aproximadamente 38 km da área
anteriormente ocupada, na BR163, estrada que liga o município de Naviraí ao de Itaquiraí.
Entre descumprimentos de acordos e luta por novas demandas, a fazenda Santo
Antônio foi reocupada por essa mesma mobilização por várias vezes, com datas precisas
foi possível identificar outras duas: 19.09.1997 e 28.11.199835. Ressalta-se, ainda, que esse
grupo também efetuou ocupações em outras propriedades, inclusive em outras cidades,
como por exemplo, Japorã e Iguatemi.
35 A partir do ano de 2003 essa área passou a ser ocupada também por outros grupos, mediados pela FETAGRI e CUT.
149
Ao relatar já uma segunda desocupação, Claudinéia comenta como a violência
dos despejos é sentida. Para que não haja um confronto e para preservar o material do
barraco, o povo mesmo arranca as lonas:
Eles chegaram, fico os dois ônibus lá em cima, chego só dois camburão e foi conversar daí com o povo. E o povo resolveu a saí pra lá, aí eles juntaram os barracos e tudo. O povo foram desmancha e coloca dentro do caminhão, se não desmanchasse eles cortava de facão, derrubava e colocava no caminhão mesmo né? Aí nos saimo (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Momentos parecidos foram vivenciados pelos acampados da fazenda
Mambaré, em Mundo Novo, quando depois da ocupação receberam a intimação de
reintegração de posse e tiveram que desocupar a área sob forte pressão policial. Os
acampados foram levados ao campo de aviação do município, onde permaneceram por
alguns dias e logo voltaram a ocupar a área.
Uma vez quando foi faze o despejo nosso lá pro campo de aviação, a polícia veio, encheu de polícia aí. Eles tiraram, não queria que a gente entrasse, mais daí nois torno entra de novo (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
Cabe lembrar que esse grupo contava com o apoio do poder executivo
municipal, na pessoa da então prefeita e defensora dos movimentos sociais, Dorcelina
Folador. Fora ela quem concedeu transporte para que essas famílias retornassem com seus
barracos para a reocupação da fazenda, além de inúmeras outras contribuições, como por
exemplo, lonas, alimentos e encaminhamento das discussões.
Nós conseguimos lona com a prefeitura de Mundo Novo. Com a FETAGRI foi mais alimentação mesmo[...] quando a polícia despejou e trouxe eles aqui para o aeroporto, a prefeita na época era a Dorcelina, a prefeita doou os caminhões para que voltassem pra lá (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).
Já o acampamento Laguna Peru teve uma história bastante especifica. Os sem-
terras desse acampamento já haviam recebido a garantia do INCRA que seriam assentados
naquela área. Tendo em vista a Imissão de Posse, a área chegou a ser medida e marcada e
os trabalhadores viviam na iminência de serem assentados. Eram cerca de oitenta lotes, e
os trabalhadores já haviam começado a criar gado de leite, plantar feijão e cultivar horta na
área quando foram surpreendidos com a revogação do Decreto que havia desapropriado a
fazenda. Essa anulação deu-se pelo Mandado de Segurança impetrado pelo proprietário da
fazenda no Supremo Tribunal Federal (STF) fundamentado na Medida Provisória nº 2.109-
50, de 27 de março de 200136.
36 Informações obtidas junto às atas da Ouvidoria Agrária Estadual nº01 e 02 de 2001.
150
Quando da reintegração de posse, a saída dessas famílias teve de ser acordada
com muito cuidado, já que haviam perdido o que para eles estava ganho. Dona Lurdes
lembra que ainda hoje se podem ver as estacas que foram usadas para marcar os lotes do
assentamento.
Sempre eles falava: vai saí, vai saí, aí quando perdeu eles aviso, né? Que tinha perdido a fazenda lá. O fazendero tinha recorrido, não tinha dado certo... não sei que rolo que deu nos papel lá que não deu certo a fazenda. Perdeu. Aí fiquemo foi muito tempo lá ainda minha fia, muito tempo ali ainda. Depois que eles falou que ali não tinha mais solução, ali na Laguna. Muita gente aqui tirava sarro, que a laguna não ia saí, porque o povo ia caduca, ia morre tudo lá acampado (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Esses trabalhadores vivem em constante expectativa. A vida no espaço de
travessia, que é o acampamento, só tem sentido quando há uma esperança, uma
perspectiva. Dona Lurdes recorda-se que essa expectativa era sempre alimentada pelos
coordenadores até o momento em que perderam definitivamente a área e ficou confirmada
a opinião popular de que “morreriam todos caducos naquela fazenda, mas ali não seriam
assentados”. Plantamos dois ou três anos quando a terra... a gente achava que a terra era nossa e não era nossa. A aquele vai e vem do INCRA, não era do INCRA né? Nós plantamo colhemo acho que uns trezentos saco de feijão umas duas, três vezes. Aí quando o fazendeiro pegou a área de volta aí sim, aí a gente... era dele não era nossa, não tem como se faze nada, o cara é o dono da propriedade (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
O que se percebe nesses relatos é um sentimento de perda. Os trabalhadores
viam as terras já como suas, plantaram, colheram, fizeram planos, mas não receberam-na.
Até mesmo porque, é comum que acampados vivam longos períodos na área conquistada
sem demarcação à espera das liberações orçamentárias, técnicas e burocráticas do INCRA.
Ao conversar com dona Lurdes ela, fez uma colocação bastante pertinente com
relação aos procedimentos tomados pelos fazendeiros com suas propriedades rurais. Ela
percebe, na prática, ações que vem sendo realizadas devido a demora e complexidade nos
processos de desapropriação de terras:
Eu não sei o que eles vão faze com essas terras... terra parada, cada fazendão, só tem quiçaça pura, agora tão dando uma ajeitada, acho que com medo do INCRA corta, né? (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
O tempo que demanda um processo de desapropriação de terra é suficiente para
que o proprietário adéqüe sua produtividade e dê uma “ajeitada” na propriedade. Oito anos
após a ocupação, a fazenda, em que o marido de dona Lurdes está acampado, está
151
arrendada para plantação de cana-de-açúcar e cumpri sua função social estabelecida pelas
legislações vigentes.
Os trabalhadores permaneceram ainda por quase um ano com a fazenda
ocupada, mesmo depois da imissão de posse revogada e do e mandado de reintegração de
posse emitido ao proprietário. Em reunião feita para tentar resolver o impasse, o senhor
Paulo Cezar, representante da CUT, condicionou a saída das famílias a uma área definitiva
para assentamento. Os acampados já haviam se firmado na área e não estavam dispostos a
deixá-la. Diante dessas circunstâncias, o próprio Ouvidor Agrário Estadual, Dr. Ulisses
Duarte, registrou em ata que tentou comprar, juntamente com o presidente do INCRA, a
fazenda do proprietário, e que as diversas propostas foram rejeitadas pelo fazendeiro, que
estava disposto a não vender a área para um projeto de assentamento37.
Os trabalhadores desocuparam a fazenda e montaram o acampamento à
margem da BR-163, contudo, já desestimulados pela falta de perspectiva, muitos
trabalhadores desistiram e deixaram o acampamento. Em novembro de 2003, o
acampamento Laguna Peru recebeu outros acampados do Sul do Estado, ganharam força e
reocuparam a fazenda como forma de protesto.
Dona Lurdes, cansada da espera, diz que eles estavam esquecidos, e já não
havia mais resposta cabível para aquela situação:
O governo tinha esquecido o povo ali, né? O povo do INCRA não tava dando mais confiança pra aquilo ali. Só quem ia ali no final mesmo era seu Miro mesmo que ia lá, conversar lá, fala alguma coisa, mais, coitado, já não tinha mais nem explicação pras palavra dele (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Depois que perderam o processo no STF, já sem possibilidade de serem
assentados naquela área, e sem condições de vida e trabalho na cidade, os acampados
continuaram morando nos barracos à espera de uma posição do INCRA. Entre algumas
reuniões, cobranças, pressões com reocupação e ameaças de reocupação, pedágios e abates
de bois, essas famílias permaneceram até o ano de 2007 na referida área. Esses sujeitos
insistiram em manterem-se acampados, mesmo sabendo que não havia mais possibilidade
de serem assentados naquela área, devido ao compromisso firmado pelo INCRA e pelo
IDATERRA, de que seriam de alguma forma assentados38.
Nota-se, que os acampamentos Laguna e Peru e Mambaré apresentaram uma
postura mais defensiva e menos ofensiva com relação à resistência e à ocupação. Os
37 Ata da Reunião da Ouvidoria Agrária Estadual, 04/2002 e reunião realizada em 01.03.2002. 38 Posição assumida pelas lideranças do acampamento durante reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária, realizada em 19.01.2004, para resolver o impasse.
152
grupos foram rapidamente despejados, tendo em vista que a ação policial foi a estratégia
usada de antemão na efetivação dos mandados de reintegração de posse. Isso está
relacionado ao menor número de sem-terras acampados, já que esse fator foi o que
protelou uma ação policial em relação ao acampamento Oito de Março.
O não enfrentamento é uma atitude prezada pela FETAGRI, e em muitos casos,
também pela CUT, para preservar os trabalhadores de um possível confronto que venha a
trazer maiores transtornos. A ação de obedecer ao mandado, sair da área e tornar a ocupar
também foi evidenciada nesses dois outros acampamentos. Os grupos deixavam as áreas
quando recebiam determinação judicial e, dentro de alguns dias, voltaram a ocupar a
mesma área, onde permanecia até o próximo mandado de reintegração, como relatou o
senhor Antônio:
Nós entramo na fazenda, daí o fazendero conseguiu uma liminar, tiro nós. Nós fomo lá pro... pro aeroporto de Mundo Novo, pro campo de aviação. De lá nós voltemo de novo, entramo na fazenda, torno tirá nós de novo, aí ficamo na beira da estrada. Aí através de advogado do INCRA acho que era melhor não invadi mais, né? Era melhor fica pelo lado de fora e esperá a decisão, e foi o que fizemo (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).
Tanto no acampamento Mambaré, quanto no Laguna Peru, ficou evidente a
influência exercida pelo INCRA nas decisões em relação ao acampamento. Nesses dois
casos, o órgão era reconhecido como um instrumento de apoio. Com relação ao papel
desempenhado pelo INCRA no processo de luta do acampamento Mambaré, o senhor José
Valdir disse que: “...sinceramente tenho que agradecer o INCRA que foi praticamente um
parceiro na luta”.
É importante salientar que essas duas ocupações ocorreram em 1999, quando
logo seria editada a Medida Provisória nº 2027-38, de 04/05/2000, conhecida como medida
anti-invasão do governo de Fernando Henrique Cardoso, que proibia a vistoria de áreas
ocupadas por um período de dois anos. Esse ato teve reflexão direta no encaminhamento
das discussões dessas duas propriedades. Os acampados da fazenda Mambaré, seguindo a
orientação do INCRA, decidiram deixar os limites da fazenda e estabelecerem-se à
margem da rodovia; quanto a ocupação fazenda Lagura Peru, que estava sendo mediada
pela CUT e para a qual já havia parecer favorável do INCRA, com ação já ganha em
primeira instância, as determinações da medida de anti-invasão não foram cumpridas, o
que levou a propriedade a permanecer com o processo de desapropriação sobrestado e a
decisão de desapropriação acabou sendo revogada.
Nós saiu por causa que, por causa não, é por causa é... coisa judicial né? Ordem do juíz, aí esse tipo de coisa né? A gente entro aí na fazenda umas quatro, cindo
153
vezes, né? Vai, vai... vai até... até a terra se desapropriada. E, inclusive foi medida, feito o perímetro anual da área, saiu no diário oficial. 1ª volta perdemo a área, aí ficamo lá... (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Temendo retaliação, como a que aconteceu com os acampados da fazenda
Laguna Peru, o senhor Antônio, que coordenava o acampamento Mambaré, lembra que
seguiam as orientações do INCRA de não resistir aos despejos e de não voltar a ocupar a
fazenda: Quando a, o policiamento veio tirá nós, né? Veio com o mandado na mão, nós obedecemo, né? E num fizemo confronto nenhum. Orientação do INCRA. Até mesmo porque tinha saído aquela medida provisória do Fernando Henrique, né? Fazenda ocupada teria dois anos pra... né? Então nós resolveu obedecer isso aí, e graças a Deus deu certo (ANTÔNIO, Entrevista, 22.04.2006).
Essa relação amistosa, entre o INCRA e a FETAGRI, é evidenciada nas falas
de coordenadores e acampados dessas duas áreas. Estrategicamente essas mobilizações
assumem uma posição mais defensiva, recuam, fazem concessões, já que isso produz certa
segurança aos sem-terras, que vêem nos encaminhamentos dos órgãos estatais uma
expectativa segura de acesso à terra.
Ao comentar as práticas da Federação no sentido de preservar os trabalhadores
de um enfrentamento com forças policiais, o senhor João Valdir evidencia certo
paternalismo ao defender a “falta de condição e preparo” dos trabalhadores sem-terra:
Não, de maneira alguma. Porque participei de várias ocupações de terras como sindicalista e até trabalhei no MST, mas eu sou contra a violência. Porque o trabalhador ele é despreparado pra enfrentar a polícia. Você sabe que o Estado tem uma força muito grande, se dez policiais não conseguir tirar, vem vinte, vem trinta, vem cinqüenta. Então o trabalhador não tem que enfrentar polícia, até porque ele não é preparado, ele não tem condições de enfrentar a polícia. Acho que a luta tem que existir, mas tem que ser uma luta democrática, não com violência. Jamais! [...] Simplesmente, pegava a ordem de despejo e saía, saía e ia pra bera da rodovia (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).
As diferentes concepções de luta, ora marcadas por posturas mais defensivas,
ora por posturas mais ofensivas durante as ocupações, e diante da resistência com relação a
ações policiais, políticas e mesmo de pistolagem, são reconhecidas por Fernandes em nível
nacional. Em todo país existem mobilizações de luta pela terra marcada pela defesa do não
enfrentamento e da negociação, já as lutas mais ofensivas não descartam a negociação, mas
mantêm uma postura firme de enfrentamento (2000, p. 285).
O acampamento Oito de Março foi marcado pelo enfrentamento, a lembrança
de estarem decididos a só saírem da área “com sangue pela canela” é fato recorrente.
Embora, mais cedo ou mais tarde esses trabalhadores tiveram que deixar a área e acampar
às margens da rodovia, essas saídas sempre aconteceram com negociações que envolviam
154
alguma conquista e sem nenhum conflito violento. Ora aceitaram deixar a área por cestas
básicas destinadas à alimentação das famílias, ora por outras áreas para o assentamento de
parte dos acampados.
Os três acampamentos analisados tiveram processos de ocupação e de lutas
diferenciados, quer seja na forma de organização e conduta das negociações, quer seja, na
própria forma de entender o acampamento enquanto espaço de lutas e de resistências.
Embora todas as ocupações analisadas pleiteassem a desapropriação área
ocupada, os acampamentos da FETAGRI, e também o mediado pela CUT, limitaram-se ao
local reivindicado. Nesses acampamentos o tamanho da área determinou a quantidade de
famílias que ali puderam se estabelecer. Já no acampamento liderado pelo MST,
caracterizado pela massificação, houve mobilização por outras áreas a fim de assentar as
famílias sem-terra. Não houve, nesse segundo caso, uma área definida, embora houvesse
uma fazenda em reivindicação, quando não havia mais possibilidade de desapropriação da
fazenda Santo Antônio, esse grupo passou a pleitear a desocupação de outras áreas,
inclusive em municípios vizinhos.
Tanto é assim, que no acampamento Laguna Peru e Pedro Ramalho, com oito e
quatro anos de duração respectivamente, conforme um acampado, ou uma família, desistia
da luta, abria-se vaga para quem desejasse montar um barraco naquele espaço.
Comentando a desistência das famílias acampadas, o senhor João Valdir, que articulou o
acampamento Mambaré, explana que abriam vagas sempre que uma família deixava o
barraco:
[...] E aí nós abrimos vagas, no acampamento tinha uma liderança, o cidadão chegava se apresentava, fazia o barraco dele, a liderança dava uma quantia de dias para ele mudar para dentro do acampamento, aí ele vinha mudava e começava a fazer parte do acampamento (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).
Já a o acampamento Oito de Março tornou-se um grupo em contínuo processo
de luta; de 1997 até o ato da pesquisa, vários grupos foram assentados e vários outros se
somaram às famílias remanescentes. A nomenclatura foi alterada e os grupos peregrinaram
por diversas áreas. Vejamos um pequeno histórico do desfecho dessas ocupações.
O acampamento Laguna Peru existiu por oito anos, nesse período muitos
trabalhadores desistiram e muitos outros foram agregados. Houve um momento em que um
grupo de acampados de Mundo Novo se agregou ao acampamento para “ganhar força”. Foi
em vão. A área que chegou a ser medida, e dividida, foi reavida pelo proprietário e os
acampados ainda mantiveram-se à margem da estrada nos limites da fazenda por algum
155
tempo, mas já sem nenhuma perspectiva o acampamento foi desfeito em meados de 2007.
Os acampados que não desistiram, mesmo nessas circunstâncias, foram para outros
acampamentos nos municípios de Batagassu e Tacuru. A fazenda que chegou a ser
considerada improdutiva, hoje, oito anos depois da primeira ocupação, está arrendada para
plantação de cana-de-açúcar.
O acampamento Mambaré existiu por quatro anos e meio e a propriedade em
questão foi desapropriada. Nela foram assentadas 72 famílias. Exceto algumas famílias que
não passaram no cadastro do INCRA e algumas que desistiram no meio do caminho, as
outras que iniciaram a luta em 1999 foram assentadas, soma-se a elas também algumas
famílias que entraram depois, com o processo já em andamento.
Quanto ao acampamento Oito de Março, estima-se que 1.000 famílias tenham
sido assentadas em diversos assentamentos da região. Em 2006 ainda viviam cerca de
trinta famílias remanescentes desse período vivendo acampadas às margens da estrada que
faz limite com a fazenda Santo Antônio.
Como fruto dessa luta inúmeras áreas foram desapropriadas, como, por
exemplo, as fazendas Santa Rosa e Guaçu, que foram conquistadas no final de 1997 e
assentaram 334 famílias, assentamento Tamakavi (1998), com 120 famílias e o
assentamento Boa Sorte (1998) com 65 famílias, ambos no município de Itaquiraí; além de
outros que foram formados em parte por acampados do Oito de Março, como o
assentamento São Judas Tadeu (1998), em Rio Brilhante; Santa Catarina (1998), em Aral
Moreira; Savana (1998), em Japorã; Dorcelina Folador (2000), em Ponta Porã, e outros.
A fazenda Santo Antônio, no entanto, foi desapropriada já no final dessa
dissertação, no ano de 2007, em virtude de um acordo firmado entre o proprietário e o
governo do Estado. Embora esse assentamento só vá contemplar cerca de 30 famílias das
2100 que a ocuparam em 1997, essa mobilização, que recebeu no nome de acampamento
Oito de Março, contribuiu consideravelmente para essa desapropriação.
Apesar de suas especificidades, essas ocupações podem ser entendidas a luz do
que Fernandes chamou de “ocupações organizadas e espacializadas”, ou seja, ocupações
realizadas por movimentos socioterritoriais, que trazem experiências de outros locais, que
estão inseridos em um processo político mais amplo e podem (como o acampamento Oito
de Março) fazer parte de uma agenda de lutas previamente articuladas pelos movimentos
(2000, p. 289).
A ocupação como forma de acesso à terra não é uma ação criada pelos
movimentos sociais de luta pela terra da história recente do Brasil, é um processo que
156
sempre esteve presente na história do campesinato brasileiro. O que se tem visto nas
últimas décadas é uma nova forma de luta, presente em um novo contexto histórico e
vivenciada por novos sujeitos sociais. Não é mais o campesino de outrora, posseiro,
matuto, o bravo do sertão; são os sem-terras, trabalhadores descartados das velhas relações
de trabalho no campo e que não encontraram nos centros urbanos condições de vida e
trabalho dignas. As terras em questão não são mais os velhos latifúndios, imensidões de
terras que mal sabia-se onde começava uma e acabava a outra, as terras ocupadas são as
atuais empresas rurais que se mantêm, principalmente, da criação de gado de corte ou de
produção de grãos para exportação e cana-de-açúcar.
As ocupações de terras como primeiro passo para o acampamento e como
prelúdio ao assentamento ocorrem em grandes propriedades, que apresentam produção
questionável, os processos de reintegração de posse são recursos sempre utilizados e os
despejos conseqüências. Embora os despejos com violência policial não tenham ocorrido
nos processos históricos analisados, os acampados vivem a iminência da ação, com
ameaças constantes, e assim a desocupação das áreas ocorre sempre sob pressão.
Dependendo da mobilização, essa ação ocorre com mais ou menos negociação e
resistência. Após os despejos, o acampamento se refaz à margem da rodovia, sempre
próximo ao lugar ocupado, esse espaço de moradia e vida se alterna com a reocupação da
propriedade, sempre seguido de novos despejos.
Embora os momentos que antecedem a ocupação, e a própria ocupação, sejam
marcados por sentimentos e ideais conflitantes, é no cotidiano, no dia-a-dia da vida sob o
barraco de lona, que as maiores dificuldades, anseios, angústias e medos se desnudam.
4.2 As dificuldades do cotidiano
Aí passou o tempo, demorou para mim í pra cidade de novo, né? Eu fui tava com uns três meses acampado. Aí eu cheguei lá, e pra volta? Não tinha como. Aqui já não tinha carro pra saí. Eu pensava em fica, né [na cidade]. Mas eu pensava: eu vo deixar a mãe lá de baixo do barraco? Vô não, vô voltar também. Demoro para mim acostuma, heim (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
157
Michel de Certeau, em, A invenção do cotidiano, nos fala da capacidade que
existe na ação humana em recriar no cotidiano práticas de vida que supram suas
necessidades e que busquem a concretização de sonhos. “Todo dia, pela manhã, aquilo que
assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou
noutra condição, com esta fadiga, com este desejo” (1996, p. 31).
Assim, as famílias que se destinam a uma ocupação terra, assumem uma nova
condição de vida, o que certamente, desencadeará em novas dificuldades cotidianas. Essa
outra condição altera também o peso da vida e a dificuldade de viver.
Se estabelecer em áreas de ocupação não é tarefa fácil. A montagem dos
barracos se inicia logo na chegada das famílias, mesmo quando a ocupação ocorre no
período noturno. Antes, no entanto, se faz necessário a limpeza da área e a busca pelo
material necessário à construção dos barracos. A lona é artigo indispensável nas tralhas
que essas famílias levam ao acampamento, já os galhos, que dão suporte ao barraco são
buscados na área ocupada, em matas próximas. A existência de um local de onde se possa
tirar essa madeira é um condicionante do lugar aonde essas famílias irão se estabelecer.
Esses fatores são analisados pelos organizadores do acampamento antes mesmo da
ocupação.
Na chegada cada um começa a marcar seu espaço com as tralhas, sempre
procurando manter-se perto de vizinhos, amigos ou parentes que vieram juntos. São os
homens, geralmente, que vão buscar a madeira, as mulheres começam a organizar os
pertences que levaram e arrumar um lugar para o preparo da comida. Em alguns casos
chegam a pernoitar ao relento, principalmente as crianças, que dormem enquanto os pais
tentam organizar o novo abrigo. É comum nos acampamentos que as famílias, após acabar
a construção de seu barraco, comecem a montar outro para deixar pronto e acolher outra
família que vier a chegar.
Uma acampada, que naquele momento vivia por nove anos sob o barraco de
lona, mostrou-me suas fotografias enquanto narrava sua história de vida. Ao passar por
uma foto que registrava o início do acampamento Oito de Março, Edinéia analisa com
certo espanto: “nossa naquela época a gente nem sabia fazer barraco direito”:
Nois cheguemo oito de março, né... no amanhece do dia, tudo tranqüilo, entramo no pasto, tinha uma capoeira muito grande ali, já fomo carpindo e fizemo barraco, igual se viu aí nessa foto, nem barraco nois sabia faze, fizemo barraco e nois fiquemo por ali... (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Na imagem a seguir, em que dona Edinéia aparece com a família e outros
acampados, pode-se ver os barracos que depois de nove anos de despejos e reocupações a
158
envergonham. As constantes mudanças, despejos e mesmo as intempéries naturais
ensinaram a esses sujeitos a construir barracos cada vez mais resistentes e funcionais,
muito embora sejam todos vulneráveis barracos de lona amarrados em estrutura feita de
galhos de árvores.
Figura 8: Primeiros barracos construídos no acampamento Oito de Março (1997). Foto cedida por Edinéia.
A forma improvisada dos primeiros barracos evidencia uma crença na
efemeridade desse percurso, o que na maior parte das vezes não se concretiza.
O ato de fazer e refazer os barracos levou a certo aprimoramento, alguns
barracos possuem divisão interna; espaço separado para a cozinha, os espaços de entrada e
saída diminuíram para que se possa fechar e evitar a entrada de ventos que os danificam,
encontra-se até barracos de chão batido esfregado com argila para dar um aspecto melhor;
e o aprimoramento mais importante: o revestimento interno do barraco com papelão ou
outro material que absorva a transpiração da lona com o orvalho durante as noites. Cada
vez que o barraco era refeito, algum aspecto era melhorado, como disse dona Edinéia:
“Agora até que sai uns barraco mais bem feito né, mais no começo batia um ventinho e já ia dirrubano tudo, meu veio num sabia faze... agora só sai memo se Deus quere!” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
A imagem mostra ainda, na entrada do barraco, algo bem comum nos
acampamentos: os buracos feitos no chão para o preparo de alimentos. Os fogões também
aparecem em outros formatos, feitos de forma sobreposta ao chão como um fogão a lenha
tradicional, ou ainda feitos de latas de tinta com a parte interna revestida de cimento e uma
abertura para colocar a lenha.
As instalações desses sujeitos nesses espaços são feitas de forma vulnerável,
precária e provisória. Ao construírem seus barracos não sabem se ficarão um dia ou um
159
ano, a instabilidade é constante. De muita coisa depende a mantença de seu barraco: chuva,
vento, polícia, juiz, delegado, fazendeiro, negociação, coordenador. Conquista de um
espaço definitivo? Em alguns casos.
Entre ficar e partir, entre ser assentado, ficar acampado ou voltar para trás,
esses sujeitos vão constituindo mecanismos para amenizar os problemas, facilitar a vida e
complementar a alimentação. Entre essas estratégias desatacam-se a plantação de pequenas
hortas e até mesmo pés de frutas, feijão, plantas medicinais e a criação de animais como
galinhas, porcos e mesmo algumas vacas de leite.
O cultivo de alguns itens para a alimentação é evidenciado em todas as
mobilizações. O fato de esses cultivos serem mais ou menos organizados, variado e
cuidado, depende da sensação de transitoriedade do momento vivido. No acampamento
Laguna Peru, com oito anos de existência, podia-se ver à volta dos barracos pés de
maracujá, de tomates, de boldo, que apresentavam certo tempo de existência. A criação de
vacas de leite dentro da fazenda pleiteada chegou a ser assunto de discussão na Ouvidoria
Agrária Estadual. A técnica usada para criação de galinhas nesse acampamento chama
atenção; como estavam acampados sob uma margem de rodovia não plana, os barracos
ficavam em uma espécie de barranco e nas paredes dessa elevação fizeram vários buracos
para as galinhas chocarem dentro.
Já nos acampamentos do MST, existe uma orientação para plantação de alguns
produtos de forma coletiva, mesmo que esses alimentos não cheguem se quer a serem
colhidos. Segundo um dos líderes do acampamento Oito de Março: “a plantação é uma
demonstração que o pessoal ta ali querendo realmente pega um lote pra sustenta sua
família”:
Então, a medida que chega no acampamento, a gente já sempre pede pra que o pessoal leve algum tipo de semente e que depois lá, começa planta. Mesmo que não colha, nós sempre trabalhamo que a colheita é realmente a conquista da terra. Independente se vai planta o milho, se vai colhe alguma espiga daquela ou não, é um processo que a conquista e a colheita, realmente, é a conquista da terra do lote (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Mais do que uma representação simbólica com o intuito de mostrar à sociedade
o desejo e a necessidade de cultivarem a terra, os produtos produzidos, mesmo que pouco e
sem diversificação, são usados na complementação da alimentação, já que as cestas básicas
fornecidas pelo governo eram esporádicas e insuficientes.
Ao analisar a representação da alimentação entre grupos de trabalhadores
assentados, Almeida conclui que:
160
“comida é mais que comida como alimento [...] é fartura quando se tem para comer e para oferecer aos amigos, assim, é pela comida que necessariamente passam os laços de solidariedade” (2003, p. 308).
A solidariedade em relação à fome também é evidenciada entre os
trabalhadores acampados, em especial quando envolve crianças. É importante salientar, no
entanto, que ninguém ali tem muito que partilhar, tudo é racionado, quando algum
acampado possui algo para partilhar com famílias vizinhas, é comum que tenha vindo de
fora, oferecido por algum membro da família que não esteja nas mesmas condições.
Nesse sentido, o depoimento do senhor Celso revela uma das estratégias para
obter alimentação, experiência esta também narrada por outros acampados: Eu também quase não me preocupava que quando eu ia lá, no meu pai eu trazia café, eu trazia açúcar, trazia arroz, trazia feijão. Meu pai tinha o lotizinho, quem cuidava do lote era eu, aí eu saí, mas ele tinha condições, que ele já era aposentado, ele e a minha mãe... sempre tinha, então eles me ajudava (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
O pouco que conseguia, por solidariedade da família, também era partilhado
em momentos de extrema carência dentro do acampamento. Foi recorrente a referência aos
brasiguaios como os mais desprovidos, vinham do Paraguai sem nada, ou quase nada, e
raramente tinham a quem recorrer.
A imagem a seguir é bem típica da tentativa de diversificação e suplementação
alimentar nos acampamentos. Detentoras de uma tradição cultural camponesa, algumas
mulheres laçavam-se nas matas próximas em busca de produtos que pudessem servir de
alimentos. Na imagem em questão, duas mulheres do acampamento Oito de Março
aparecem preparando um jaracatiá, uma espécie de pé de mamão do mato, do qual é
produzido doce com a polpa do tronco da planta.
Figura 9: Mulheres do acampamento Oito de Março produzindo doce de vegetal encontrado na mata. Foto cedida por Claudinéia.
161
No acampamento Oito de Março, devido à distância das cidades vizinhas,
havia um espécie de mercearia para vender produtos de forma a atender as necessidades
imediatas dos acampados. Alguns acampados relataram ter ficado até três meses sem sair
do acampamento, o que revela que o acampamento tinha uma estrutura mínima de maneira
a atender às necessidades básicas de sobrevivência, sobretudo, em relação à alimentação e
saúde.
Nos acampamentos de sem-terra, quando decidem plantar uma área, em
conjunto, o alimento é indiscutivelmente o feijão. Como já evidenciava Antônio Cândido,
em seu estudo de meados do século XX, sobre a dieta de trabalhadores camponeses, “o
feijão é o chefe da mesa” (2003, p. 170), é a base da alimentação, presente em todas as
refeições, quando não o único alimento.
Problemas de toda ordem são enfrentados nesses espaços, além dos problemas
comuns já evidenciados em comunidades pobres brasileiras, tais como: racionamento de
comida e água, falta de estrutura, de transporte e de educação, problemas de socialização,
pequenos furtos, entre outros; os sem-terras acampados enfrentam ainda uma série de
dificuldades específicas daquele espaço e daquela situação, como a distância, a ilegalidade,
a dês-socialização, o medo. São circunstâncias que determinam a forma de vida naquele
espaço e que conduzem suas ações cotidianas.
Entre essas redefinições de necessidades provenientes da situação vivenciada
está a criação de uma equipe de guarda. A presença da guarda é evidenciada em todos os
acampamentos analisados, principalmente nos períodos iniciais.
Logo na ocupação início é definida a equipe que ficará encarregada de vigiar o
acampamento durante a noite, enquanto os outros dormem, atividade que também é
mantida no período diurno no início do acampamento, quando os conflitos ainda estão se
desnudando. Pessoas ficam atentas para avisar aos acampados de qualquer movimentação
estranha, para que não sejam pegos desprevenidos com uma ação policial ou uma reação
do proprietário da fazenda. Assim ocorreu na tomada das armas dos policiais pelos
acampados, no acampamento Oito de Março, quando os vigias do acampamento avistaram
os policiais barrando outros sem-terras na estrada e comunicaram os acampados.
Em período em que não há risco de uma ação policial, como os momentos em
que estão acampados às margens da rodovia, essa guarda é mantida como prevenção à
ações de pistolagem e vandalismo. À margem da estrada, em um vulnerável barraco de
lonas, esses sujeitos estão a mercê de ações como furtos e depredações. O senhor João, que
162
“tirava guarda” no acampamento Mambaré, lembra o quanto era inseguro dormir no
barraco sem ninguém para vigiar o acampamento:
É na bera de estrada, né? Passava muita gente de noite, podia um passa queima um barraco, rasga o barraco de alguém, de alguma família que tinha. Tinha muita família no barraco. Então a gente sempre cuidava dessas parte, né? De não passa um e corta um barraco ali, ou faze alguma malvadeza com uma pessoa que tava deitado, né? Então a gente tinha a parte da segurança a noite, de modo a cuida isso aí. Era sempre dois ou três pra cuidar (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
O ato de vigiar o acampamento, a guarda como é conhecido, revela ações de
solidariedade e organização, trata-se de um trabalho coletivo, exercido por um grupo de
pessoas que fica responsável em guardar, cuidar, vigiar, o acampamento como um todo, a
fim de oferecer às pessoas que dormem naquele espaço o mínimo de segurança para uma
noite de sono.
Nos primeiros dias de ocupação essas equipes se revezam e mantém prontidão
às 24 horas do dia. Os homens, mas também algumas mulheres, fazem as rondas armados
com foice e facões; as armas de fogo, embora existam, não são comuns. Os fogos de
artifício são estratégias usadas por essas equipes para assustar uma possível ação e chamar
a atenção dos acampados para algo que esteja acontecendo no acampamento.
Nos momentos de maiores indefinições é comum que mesmo os acampados
que não estejam de guarda durmam atentos. Claudinéia lembra que foram inúmeras as
vezes que foram acordados no meio da noite com alerta de possíveis invasões ou ação
policial. A ordem era levantar correndo, pegar uma foice ou facão e ir ao encontro aos
invasores.
Quando cheguei fiquei meia perdida, assim... Pra mim a gente tava indo pra algum lugar a passeio, né? Depois que a gente chego, que fico mesmo. Aí que a gente foi vê como que era o negócio. Às vezes você deitava pra dormi, quando você pensava que não tinha que sai correndo de noite, no escuro. Muitas vezes era a turma da fazenda que vinha meio querendo invadi o acampamento, e tal, o otras vez a polícia chegava e nois não podia dexá entra dentro do acampamento. Se eles entra eles pega força né? Então a gente não pode dexa entra dentro do acampamento. E então assim... tinha que saí correndo pegá uma coisa, um facão, qualquer coisa e saí (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
O fato de levantarem armados funciona como uma de estratégia para não
serem pegos desprevenidos e rendidos com facilidade. As foices e enxadas, usadas
emblematicamente pelos movimentos sociais de luta pela terra, em especial o MST, como
forma de expressar os anseios desses sujeitos por terra e trabalho, são também utilizados
como armas, de maneira a se imporem diante de ações mais violentas e instáveis. É
necessário, em caso de ameaça, que os acampados apareçam, imponham-se, para que
sejam vistos, a fim de evitar a entrada da polícia, o que dificultaria a resistência do grupo.
163
Essas estratégias não têm caráter de combate, mas de prevenção, o fim não é o confronto,
mais sim impedir que ele ocorra. Uma tentativa de prevenir que o grupo não seja agredido,
despejado e que tenham os barracos e pertences destruídos.
É comum também, como forma de evitar um confronto mais direto, que as
mulheres e crianças venham na frente de qualquer embate ou negociação com a polícia.
Nesse sentido, Claudinéia conta como essa estratégia era acordada previamente:
“É, sempre no caso de polícia, algum juíz, alguma coisa que chegasse no acampamento, era sempre as mulher e as criança na frente. A gente era da frente, sabe? Mas dava tudo certo” (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Sobre a participação feminina nos conflitos sociais, Borges analisa como a
fragilidade feminina e a inocência infantil imprimem um ritmo próprio e tornam mais
sensíveis as leis. As mulheres, que carregam muito mais forças do que se costuma a elas
atribuírem, sabem tirar dessa subjugação os meios para enfrentar as leis e as ações
provenientes dela. “A lei diante das mulheres e das crianças tem um ritmo próprio, tem um
limite, adquire consciência, torna-se sensível” (1997, p.147).
A imagem a seguir registra um momento de protesto do acampamento Oito de
Março, os acampados em fila, na estrada de terra do acampamento, fazem uma barreira na
lateral da estrada paralela ao acampamento de modo que os veículos possam circular. As
mulheres, como comentou Claudinéia, vão à frente. Em destaque aparecem os
instrumentos de luta e trabalho: as foices.
Figura 10: Acampados do Oito de Março em dia de mobilização na estrada. Foto cedida por Edinéia.
164
Nos acampamentos da FETAGRI, em que a presença de mulheres e crianças é
diminuta, essas estratégias se alteram um pouco, até mesmo porque, o enfrentamento não é
uma ação defendida por esse mediador. No entanto, vê-se que essa postura mais impositiva
do MST não se trata de uma ação que tencione um confronto direto, mas é uma forma de
imposição diante de formas de coação estatal. Ao armarem-se para defender uma resposta
política em detrimento de um despejo, esses sujeitos estão exigindo que sejam vistos e
reconhecidos como gente, como seres capazes de se organizar e de lutar por uma vida
digna e um espaço de trabalho e moradia.
Mas nem tudo são confrontos. Outra prática organizacional presente nesses
espaços é a construção de barracões comunitários, destinados a reuniões e assembléias
entre acampados. Esses barracões, construídos na mesma estrutura dos barracos de
moradia, são ambientes usados para socialização. Além de sediar as assembléias, esses são
espaços para interação, festas, celebração religiosa, missas, cultos, bailes, reuniões de
grupos e setores, receber representantes de órgãos governamentais ou sindicais. À luz de
lampião, esse local se torna a atração do acampamento, com festas que vão desde
comemoração de dias santos ou de alguma conquista, apresentação das místicas nos
acampamentos do MST, à bailes para o público mais jovem. Festas e comemorações
ocorrem com mais freqüências nos períodos iniciais do acampamento e em organizações
maiores. Nos acampamentos menores, com menos pessoas envolvidas, os barracões
comunitários, além de serem usados para as reuniões, são espaços onde os acampados
conversam no fim da tarde, fazem rodas de tereré e chimarão, carteado, ouvem rádio,
fazerem fogueiras para aquecer do frio, abrigam a equipe de guarda durante a noite, entre
outras utilizações.
É importante salientar, que embora tenha observado a existência de
manifestações culturais, momentos de socialização e rituais religiosos, nos acampamentos
da FETAGRI e CUT, festas e bailes não são práticas comuns, inclusive constava no
Regimento Interno do acampamento Laguna Peru como uma proibição passível até mesmo
de expulsão.
No acampamento Oito de Março que contou, em determinado tempo, com mais
ou menos sete mil pessoas, as assembléias eram feitas fora dos barracões, isso porque não
havia estrutura coberta que pudesse abrigar a todos. Com o megafone, ou fogos de
artifício, as famílias eram convocadas a se reunirem em um ponto já previamente
estabelecido; o local era marcado com um mastro improvisado (um grande galho de árvore
165
fincado ao chão) no qual se hasteava a bandeira do Movimento para que as pessoas
pudessem visualizá-la de longe.
Figura 11: Dia de assembléia no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Nair.
A figura 11 mostra uma dessas assembléias. Sob o sol forte, as famílias se
reuniram-se em volta do ponto de referência para ouvir aos comunicados. Quando havia
chamado para assembléia ninguém ficava no barraco, todos participavam das reuniões,
homens, mulheres, idosos e crianças.
As diversas formas de utilização dos barracões comunitários depende da
organização, das necessidades e das perspectivas desses grupos. Mas uma coisa eles têm
em comum: são pontos de referência a todo tipo de necessidade; é para ele que os
acampados se dirigem quando necessitam de remédio, alimentação, lona, informação,
também quando querem encontrar uma liderança ou um amigo, quando precisam fazer
uma reclamação ou queixa, trazer ou enviar uma encomenda, conversar, pegar uma carona,
entrar e sair do acampamento. Os barracões são também porta de chegada, local de
recepção, é a ele que padres, pastores, políticos, imprensa, pesquisadores e a sociedade
cível em geral dirigem-se quando chegam ao acampamento.
No início do acampamento Oito de Março ocorriam festas com freqüência no
barracão comunitário, o número de jovens era considerável e fazia-se necessário um
momento de lazer para que esse público permanecesse acampado naquele espaço. Além
166
das iniciativas dos coordenadores, que percebiam essa situação, os próprios jovens se
organizavam para que esses momentos ocorressem.
Para não deixar o “desanimo bater”, esses jovens se unem, fazem brincadeiras,
cantam, tocam violão, dançam, fazem bailes e festas. Claudinéia, que foi para o
acampamento com 13 anos de idade, diz sentir saudades das brincadeiras que faziam no
início do acampamento:
De primeiro tinha todo sábado, eles fazia baile. Fazia um bailinho, fazia essas apresentação, pra anima o povo. Porque tem tempo assim que anda meio desanimado, né? Muitos anos acampado e tal, da um desânimo. Na época do Oito de Março já era bem mais animado do que é agora. Na volta do dia, assim... não sei se é porque a gente tava meio alongado no mato, sempre tinha... Na volta do dia assim tinha brincadeira com os jovens. Inventava vários tipos de coisa pra anima. Se ficasse parado e fosse pensa só no que tinha pra vim, desanimava tudo. Aí sempre inventava assim alguma coisa pra distraí as pessoa. Era bem gostoso... vichi... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
A animação da “volta do dia” foi suprimida pelo descrédito após dez anos de
acampamento. Mesmo enfrentando todos os conflitos da mudança para o barraco de lona e
as dificuldades de adaptação nos períodos iniciais, esses sujeitos experimentam certa
euforia na chegada. O fato de não ver concretizado os sonhos que os deslocaram àquele
espaço vai gradativamente acabando com as esperanças, os projetos, as alegrias, os
motivos de festejar e comemorar. A própria organização do acampamento vai se
esmorecendo, assim como a sensação de transitoriedade de vivencia naquele espaço.
As festas, às vezes, também traziam alguns transtornos. Pessoas embriagadas,
brigas e até um caso de assassinato durante um baile foi registrado no acampamento Oito
de Março. O senhor Celso lembra que, apesar de tranqüilo, “de vez em quando saia alguma
espeloteada” no acampamento.
Farias analisa os momentos de festas dos acampamentos como formas de
contraposição à anomia, é uma maneira de ocupar o tempo livre, de recriar as relações de
sociabilidade, de entreter-se e divertir-se para superar as insatisfações, as carências, os
medos e as incertezas (2002, p. 130).
A imagem seguinte marca um momento de festa e descontração, uma
comemoração religiosa que contou também com a tradicional quadrilha. As pessoas
caracterizadas e as bandeirinhas feitas de jornais marcam a temática da festa de São João
ocorrida no acampamento Oito de Março.
167
Figura 12: Festa Junina no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Nair.
Além das festas outros momentos de lazer eram preservados, como as partidas
de futebol em campo improvisado, principalmente aos sábados e domingos, jogos de cartas
aos finais de tarde, as rodas de tereré e chimarão. A religiosidade expressa-se pelas missas,
cultos, terços e novenas, nas figuras e imagens de santos nas paredes dos barracos, em
alguns casos até mesmo com celebrações de casamentos e batizados.
Os pequenos bares, inclusive com mesa de sinuca, foram tipos de
estabelecimentos verificados no acampamento Oito de Março, um espaço dedicado
especialmente aos homens para a parada na “volta do dia”, onde tomam um trago de
cachaça, falam da vida e encontram os outros acampados.
As maneiras de descontração e de socialização variam de acordo com a
estrutura do acampamento. Nos acampamentos Mambaré e Laguna Peru, que ficavam na
BR-163, de fácil acesso, próximos aos centros urbanos (cerca de 8 km), com linha de
ônibus diariamente e que tinham número reduzido de mulheres e crianças era comum que
os finais de semana ficassem destinados ao encontro do marido com a esposa e os filhos.
Muitas vezes, a esposa ia ao acampamento com os filhos nesse período, era o momento de
lavar a roupa do marido, contribuir na organização do barraco, unir a família. Em outros
casos, quando o homem não tinha trabalho ou fazia apenas algumas diárias, costumava-se
passar a semana no barraco e voltar para a casa nos finais de semana.
Nesses casos, as necessidades eram diferentes das necessidades existentes no
acampamento Oito de Março, em que as famílias ficaram acampadas em uma área que a
168
saída era uma estrada de chão batido, sem linha de ônibus, com núcleos urbanos longes.
Alguns acampados chegaram a ficar três meses sem ir à cidade, houve assim, a necessidade
de se criar mecanismos para resolver problemas emergenciais por ali mesmo.
Nos acampamentos Laguna Peru e Pedro Ramalho, as crianças em idade
escolar foram atendidas pelo transporte municipal de alunos, que pegava as crianças do
acampamento quando iam buscar alunos de área rural. Em poucos dias essa negociação foi
acertada com as prefeituras e as crianças em idade escolar dos acampamentos puderam
estudar.
Já no acampamento Oito de Março, essa negociação foi mais demorada e
onerosa, tendo em vista o número de alunos, a distância e as condições das estradas. Um
ônibus passou a pernoitar no acampamento, saía de madrugada para a cidade de Itaquiraí e
retornava às 16:00 horas. Nele, prioritariamente, iam as crianças que cursavam entre 5º e 8º
série; aos menores, que cursavam entre 1º e 4 série foi construída uma escola dentro do
acampamento, com professores acampados, alguns passaram a ser remunerados pela
prefeitura municipal.
A imagem a seguir mostra uma escola em construção, que foi feita ao modelo
dos barracos de lonas e com duas salas de aula. Para atuar como formadores, havia três
professores e a diretora. A escola atendia toda a população entre 1º e 4º série do
acampamento. Havia ainda professores voluntários, como a Claudinéia, que com 13 anos
de idade e apenas iniciado a 5º série do ensino fundamental, passou a trabalhar com as
crianças do acampamento na pequena escola improvisada.
Figura 13: Construção da escola no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Claudinéia.
169
Como o acampamento existiu por um período longo, essa situação foi alterada
em determinados momentos. Houve momentos em as crianças não puderam freqüentar a
escola, como no período inicial de ocupação. Em determinado tempo existiu a educação
pré-escolar, em outros não, assim como também a alfabetização de jovens e adultos.
Com o assentamento de 334 famílias na fazenda Santa Rosa/Guaçu, que ficava
próxima ao acampamento e que ocorreu pouco mais de um ano após o início dessa luta, os
alunos a partir da 5º série passaram a estudar na escola do assentamento, que oferecia um
pouco mais de estrutura, professores capacitados, material didático e alimentação
adequada. As crianças de 1º a 4º série continuaram estudando no acampamento.
A construção da escola não aconteceu logo no início do acampamento, antes,
tentou-se visualizar as perspectivas de negociação quanto ao assentamento das famílias, só
então, quando desocuparam a área e foram para rodovia é que a escola foi construída. As
lideranças buscaram apoio junto à prefeitura municipal de Itaquiraí para o fornecimento de
merenda escolar, algum material didático e remuneração de professores.
O momento de construção desse espaço envolveu um trabalho comunitário, a
limpeza da área, a busca por material necessário, a arquitetura da construção, a definição
do local, tudo foi feito pelos acampados que eram observados com grande expectativa
pelas crianças. Voltar a estudar significava mais que aprender a ler e a escrever para essas
crianças, era um espaço de resocialização, de encontros, de um reencontro com a vida que
deixaram para trás.
No entanto, nem todos tiveram essa oportunidade. Foi comum, com a mudança
de realidade, muitos deixarem de freqüentar a escola, principalmente os jovens e
adolescentes que teriam que se descolar até a cidade. Claudinéia, que era do setor de
educação do acampamento, que trabalhou na pré-escola e na alfabetização de adultos, não
pode concluir a 5º série que havia iniciado na cidade antes de ir ao acampamento. Quando
mudaram-se para o acampamento, o pai proibiu as duas filhas adolescentes de retornar a
escola. Claudinéia casou-se com 15 anos, a irmã com 16, tiveram filhos e nunca mais
voltaram a estudar. Aí depois começo as aulas. Tinha que estuda, tava mocinha meu pai não quis deixar, e tal. Aí quando nos fomo mesmo pra BR, ali, aí surgiu uma escolinha no acampamento, né?. Aí como eu tinha terminado a 4º série e ia faze a 5º. Aí eu falei assim: eu vo estuda a 4º série, o pai não deixa eu ir para cidade mesmo. Aí fui um dia na 4º série. Aí a professora falou assim: ah... Claudinéia, você não que ajudá a gente no pré? Eu falei assim: eu vô, não tenho bem prática né? Aí fui acho que uns três meses junto com ela. Daí seis mês eu dei aula pro pré ali, a mulher sumiu e eu fiquei sozinha, sem ganha nada [...] Depois a gente viemos para cá, depois fomo pra Santa Rosa, aí eu comecei a da aula pra 1º série. E você nunca mais estudou?
170
Não, nunca mais estudei. Continuei dando aula, depois parei também, depois resolvemo ir embora de novo. E no final acabamos ficando, e tamo aí até hoje. Aí agora, sempre pensei em estudar, mas quando interei 15 anos eu fugi, né? Aí casei. Com 15 anos eu fui mora no barraco dele, aí com 16 anos tive o outro menino meu aqui tem cinco anos. Aí mudo tudo... mãe, né? começa a muda tudo? (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Impedida pelo pai de ir à cidade estudar, Claudinéia resolveu regredir no ano
escolar e freqüentar a 4º série do ensino fundamental, educação que era oferecida dentro do
acampamento. Como saiu-se bem foi convidada a colaborar na alfabetização de crianças
em idade pré-escolar. O trabalho no setor de educação do acampamento contribuiu para a
inserção de Claudinéia naquele espaço. Como não podia retornar o processo educacional
que havia começado na cidade, passou a colaborar na educação de crianças, o que lhe
garantia um contato com aquele mundo, mesmo não dando continuidade aos estudos.
No MST, mais do que atender às necessidades imediatas do período de
acampamento, oferecer escola às crianças que estão naquele espaço de transição, e que
poderiam não dar continuidade aos estudos, faz parte de uma proposta pedagógica do
Movimento. É na práxis, na relação entre teoria e prática, que esses grupos trabalham na
educação de um cidadão mais crítico e consciente. É com o propósito de formar um
cidadão Sem Terra (com letra maiúscula e sem hífen), que essas escolas são organizadas
em cada acampamento e passam a oferecer aos alunos uma nova forma de ver o mundo, a
sociedade e a luta39.
Estudar, jogar bola, brincar na terra e nas árvores, buscar água e lenha, cuidar
dos irmãos pequenos são atividades que fazem parte do mundo infantil nos acampamentos.
O estudo, na maior parte dos casos, fica restrito ao ambiente escolar.
A vida à margem das estradas oferece riscos, sobretudo aos pequenos, que
entre brincadeiras e necessidade de locomoção cruzam as rodovias, correndo o risco de
serem atingidos por carros que trafegam em alta velocidade. Foi o que ocorreu com o filho
caçula de dona Eleonora, acampada no Laguna Peru. Aos sete anos de idade o menino foi
atropelado quando atravessava a rodovia, o garoto teve a face desfigurada e ficou internado
cerca de seis meses, na cidade de Dourados, para se recuperar.
Um carro que pego ele ali, e... foi feio acidente dele, pego só o rosto dele. Hora que bateu pego o rosto, foi sete fratura. Acabou com o rosto do menino. Ta vivo por Deus memo, porque Deus é pai. O que eu sofri já aqui também, hum... foi bastante. O Deus pai! Ele se recuperou, mais só que levo, óia foi uns seis mês ele teve pra lá [Dourados] Dentro desse seis mês eu ficava mais lá com ele do que aqui, que as vez eu vinha e ficava uma semana, as vezes quinze dia (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
39 As escolas mantidas pelo MST foram o assunto explorado por CALDART (2002). Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.
171
Dona Eleonora lembra entristecida do acidente que marcou a vida e a face do
filho, na data da entrevista, aos nove anos, o garoto ainda carregava as profundas marcas
que certamente o acompanharão pela vida toda. Ainda assim a mãe agradece a Deus por ter
preservado a vida do filho. O acidente mudou a rotina da família, a mãe passou a
permanecer longos períodos na cidade de Dourados, longe do barraco e dos outros filhos
que passaram a ser cuidados pela irmã mais velha, uma adolescente de 16 anos.
Inúmeros acidentes foram registrados entre os três acampamentos. Além da
desatenção das crianças, atitude típica nas ações infantis, registra-se também a imprudência
dos motoristas que cruzam esses espaços em altíssimas velocidades. No acampamento
Pedro Ramalho houve a morte de uma acampada em dia de pedágio na rodovia. Em atitude
de descaso e imprudência, o motorista não parou o veículo no pedágio e atropelou uma
acampada que veio a falecer.
Mais foi muito difícil, na bera de uma BR, caminhão quase caindo por cima de nós, né? Teve vários acidente na frente do, do acampamento, morreu gente. É... gente que desvio né? Que saiu e morreu perto de nós. Então num foi... num foi bom não (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).
A vida sob o barraco de lona, à margem da rodovia, é atormentado pela
insegurança, principalmente em estradas de grande trafego, como a BR-163, onde o
trânsito de caminhões, ônibus e carretas é intenso.
O senhor Antônio, ao recordar da vida à margem da rodovia, onde os
caminhões pareciam cair sobre eles, relembra dos vários acidentes que presenciou,
inclusive com mortes. A lembrança que carrega é de que “não foi um período bom”, as
dificuldades cotidianas eram agravadas quando fatalidades como essa ocorriam. Mesmo
vivendo a iminência constante de um acidente, esses eram momentos que os riscos e as
dificuldades da vida sob o barraco de lonas, às margens das estradas, desnudavam-se.
Outras necessidades oriundas do espaço improvisado do acampamento são a
busca pela água, por condições mínimas de higiene e sanitárias.
A fonte de água utilizada depende da localização do acampamento e também
de sua capacidade de organização. Quando não há um rio que possa abastecer as famílias
com água suficiente para atividades básicas, é comum que se façam poços. São poços
improvisados, rasos, mas que geralmente abastecem mais que uma família; um poço pode
atender três, cinco, dez famílias, depende da proximidade, do companheirismo, do volume
de água.
172
As minas de água são de muito valor para a lavagem de roupas e banhos, assim
como para atividades corriqueiras e necessidades básicas, como o preparo de alimentos, a
limpeza das louças e mesmo para beber.
Figura 14: Acampados lavando roupas no rio. Foto cedida por Nair.
A imagem acima registra um momento em que acontece a lavagem da roupa no
acampamento Oito de Março, além de mulheres, as crianças e os homens também
colaboram na tarefa. No momento de registro da fotografia já havia sido criado uma
vereda, um caminho estreito marcando no chão o trajeto feito por esses sujeitos entre o
barraco e o córrego. Aos homens cabe, quando possível, a tarefa de ajudar no transporte
das roupas e de baldes de água até o barraco.
O senhor João, hoje assentado, lembra que fechou muitos poços em seu lote, já
que a área onde foi assentado é parte de onde estava montado o acampamento Mambaré.
Nesses espaços o racionamento de água é comum em qualquer situação,
independente da fonte ser rio ou poço e a água usada para beber é consumida diretamente
sem nenhum tratamento. A expressão deste racionamento está presente na fala dos
entrevistados, o fato de não desperdiçar, de que “a água dava bem se não esbanjasse”, é
bem comum nas lembranças desses sujeitos que vivem (ou viveram) em um espaço onde
tudo é racionado, exceto a esperança.
Água pegava na mina no rio. Tinha uma mina, uma mina muito boa lá. Tinha o rio também pra nós lava ropa. Um riozinho assim... que dava pra se virá bem, com bastante água, não de desperdiça (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
A concepção da construção dos barracos leva em consideração a utilização da
água. De forma independente, mas contígua ao barraco, constrói-se uma espécie de área,
173
com uma bancada de madeira que é usada para lavar louças e preparar algum alimento. A
água que cai dessa bancada é desviada por valetas, as quais levam-na a hortas, plantas, ou
mesmo a um buraco, uma espécie de fossa, que capta a água e evita que ela se espalhe pelo
acampamento. A imagem a seguir é bem típica dessa construção, os galões usados para
buscar água estão sob a bancada usada para a limpeza das louças e as valas ficam bastante
evidentes:
Figura 15: Criança acampada em frente aos barracos do acampamento Oito de Março. Foto cedida por
Claudinéia.
Muito precárias também são as condições sanitárias. Os mictórios são
pequenos cercados de lona, quase sempre sem cobertura, com uma abertura no chão, uma
espécie de fossa. Essas instalações são usadas de forma comunitária, com distinção entre
feminino e masculino e localizadas com certa distância dos barracos. Para o banho, quando
não são tomados nos rios, existem outros cercados, construídos na mesma estrutura, só que
mais próximos aos barracos e usados individualmente por cada família.
Dona Leonice descreve com detalhes como essas instalações são construídas.
Nice, como é conhecida, já mostrou em outros momentos o poder de descrever com
detalhes aquilo que permeia sua vida. Sua narração é minuciosa, com gestos e articulações
remete nossa imaginação ao que descreve.
Os mictórios tinha do homem e da mulher, tinha vamo supô um grupo de vinte família, então tinha quatro mictório, dois pra muié e dois pros home, entendeu? E pra tomar banho? Pra tomar banho eles fazia sempre perto do barraco quem fosse tomar banho... cada qual no seu barraco. Aí quem quisesse tomava banho na represa, tomava banho lá, lavava a roupa e já vinha outro. Eles fazia o banheiro assim, já encostado no barraco, entendeu? Eles fazia o banheiro e ponhava madeira rachada qui encima, entendeu? Pra pisa. E aqui em baixo ele fazia uma bica no fundo, uma valeta, entendeu? E aqui assim, ele fazia um
174
buraco, entendeu? Pra água aqui do banheiro corre em baixo pra ninguém pisa em riba da água. Então a água descia, ia direto dento da fossa, uma fossinha lá (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
A estrutura, aparentemente simples, requer alguns cuidados. Tábuas são
colocadas ao chão para se tomar banhos sem pisar diretamente na terra. Uma pequena
distância entre as tábuas é mantida de forma que a água possa escoar, sob as madeiras a
cavidade conduz a água a uma valeta que a escoa sem fazer barro ou deixar água parada no
meio do acampamento.
Para manter a ordem e o mínimo de sanidade no local, uma equipe era
destinada a orientar os acampados quanto ao destino da água que era descartada, do lixo,
dos restos de capinagem, e das construções de fossas. No acampamento Oito de Março
esse grupo era chamado de equipe de higiene, essa atividade também foi registrada nos
dois outros grupos, embora no acampamento Laguna Peru ela tenha existido somente no
início.
Dona Leonice, do acampamento Oito de Março, conta como era exercida a
atividade da equipe de higiene:
Quando aquela fossa tava querendo subi, aí já tinha a equipe da higiene que passava todo final de semana corrigindo a questão da água que sobra da loça, que corria. O que não tinha fossa era mandado faze pra não junta mosca, num junta coiseira entendeu? A água da... a água da fossa do banheiro tudinho... todo final de semana tinha a equipe que já fazia uma fiscalização, entendeu? No acampamento em peso, alí juntava... se era vinte da higiene, era os vinte que andava tudinho pra vê como é que ta a questão da higiene. Pro lixo era feito um buraco, era enterrado, não era pra joga. Se carpia já jogava dento dum barraco pra dexa meio limpo, aquele lixo não era pra deixa ali de qualquer jeito, era pra faze uma fossa e joga (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
No acampamento Mambaré, os ex-acampados também destacam a necessidade
de orientação quanto a questões de higiene, o destino correto do lixo e água já utilizados,
visando a manutenção de um espaço que oferecesse condições mínimas de habitação: “Os
coordenador cuidava sobre a higiene do acampamento, se deixa bagunçado e não tive
quem domina daí o acampamento vira uma bagunça” (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
As condições precárias de sobrevivência, mesmo existindo a tentativa de
organização e higiene, acarretam também muitos problemas de saúde. O lixo exposto, a
água parada, a má alimentação, a exposição ao sol e ao frio intenso associados ao difícil
acesso a atendimento médico e medicamentos provocam doenças, principalmente nas
crianças, que com sistema imunológico mais frágil, ficam mais vulneráveis a contrair e
desenvolver doenças.
175
Quando o acampamento é montado com um grande número de trabalhadores,
como ocorreu com o acampamento Oito de Março, os postos de saúde com atendimento
médico financiado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) se limitam a atender as famílias
que comprovam moradia no município, com a alegação de não poderem atender a uma
demanda maior que o habitual de forma repentina; para as outras famílias, porém, há de se
travar uma batalha para que seja disponibilizado atendimento médico.
No acampamento Oito de maço existia um veículo de uso exclusivo do setor de
saúde para atender casos emergenciais, como gestantes em trabalho de parto, acidentes,
fraturas, crianças com febre alta, entre outros casos. A manutenção do combustível desse
veículo, no entanto, era tema de discussão e até de mobilização. O grupo não dispunha de
recursos para manter o veículo abastecido e como não podia ficar sem combustível,
tentaram apoio da prefeitura municipal, o que não foi atendido.
Um pouco dessa história é narrada por dona Leonice, ao recordar que, apesar
do setor de saúde dispor de um veículo (uma Rural), ele nem sempre era suficiente, já que
eram muitos acampados e, conseqüentemente, a demanda também.
Nós fez pedágio por questão da necessidade dentro do acampamento. Questão do medicamento, questão... pra comprar gasolina, a prefeitura não daria gasolina pra desloca um duente até lá na cidade. Então tinha que se na base do transporte ali de dentro, usa alguém que tivesse um transporte. A gente toda vida teve, mas um só tem hora que não dá pra muita gente tem que te mais, teve momento que nóis teve na BR que pará carro pra pude manda mulher pra te criança, teve criança quase dentro dos carro, entendeu? Por questão a prefeitura do município não cedia, porque eles falaram que não tinha medicamento, nós não era registrado no município, então não vinha o remédio, que se desse remédio pra nós, no caso, faltava pro município... (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Dos acampados do Oito de Março são comuns as histórias da necessidade de ir
à rodovia fazer barreira e praticamente obrigar os motoristas a levarem mulheres em
trabalho de parto, doentes e pessoas com fraturas para o hospital público municipal.
Mesmo nos outros casos, em que o acampamento ficava cerca de oito km da
cidade, a questão da saúde era uma das mais precárias. Em casos de emergência, os
acampados dependiam sempre da hipotética existência de um veículo no acampamento,
quando não se encontrava ninguém, a saída era esperar um ônibus de linha ou interceptar
veículos que trafegavam na rodovia. Dona Eleonora, que até a data da entrevista morava no
acampamento Laguna Peru, queixava-se, assim como os outros acampados, das
dificuldades em passar por uma consulta médica nos postos de saúde da cidade, tendo em
vista as precárias condições financeiras e de deslocamento. Além do dinheiro da passagem,
de que nem sempre dispunham, os horários de ônibus não lhes dava condições de chegar
176
em tempo hábil de conseguir as distribuições de fichas, tinham que sair durante a noite ou
ir um dia antes para agendar a consulta.
Tudo na cidade, tudo, tudo. E agora inclusive, aqui ta difícil até pra gente ir. Porque quando vai... pra nóis aqui, o ônibus que leva as crianças de manhã não é, a escolar não leva mais a gente né? Caroneiro não vela mais. Se a gente vai, tem que marcar, se precisa de uma consulta tem que marca de um dia pra outro, porque tem o ônibus direto, mais quando a gente pega ele, já pega sete e meia, chega e já não alcança mais ficha (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).
Em um espaço em que tudo é racionado e a vida levada com muita dificuldade,
o deslocamento por oito km se torna um empecilho, assim também o agendamento médico,
pois se houvesse recursos, esse agendamento poderia ser feito por telefone. Como
mencionou dona Eleonora, em alguns momentos esse transporte podia ser feito pelo ônibus
de estudantes, mas nem sempre isso era permitido.
A problemática de questões relacionadas à saúde vai além do atendimento
médico em si e está relacionada às precárias condições de vida e moradia encontradas
naqueles espaços. A má alimentação é refletida pelas crianças visivelmente desnutridas, os
adultos em geral apresentam corpos magros e esguios. A obesidade, doença que atinge
cada vez mais a população mundial, que apesar de ser considerado um problema de saúde
está relacionada a uma alimentação exagerada e incorreta, é raramente evidenciada nos
espaços do acampamento.
Assim como a maioria das crianças, os dois filhos que Claudinéia teve no
acampamento passaram por problemas de saúde. Anemia, vermes, gripes e outras doenças
virais são, talvez, os problemas mais comuns, problemas estes que poderiam ser facilmente
evitados ou combatidos se dispusessem de tratamento adequado e espaço digno de
moradia. O outro menino meu, o maior, quando tava com oito meses, ele tomo sangue, teve anemia profunda, tava virando água o sangue dele já. Daí ele teve que toma sangue. A anemia dele combateu um poco. Agora esse daqui quando nasceu o exame do pesinho dele deu alterado, uma espécie de anemia também. Agora ele tem uma hérnia no umbigo, agora vai te que operá. Comecei meche em Naviraí, mas como a gente é de outro município eles fica meio resabiado. Se fica doente, assim, a gente tem que se virá do bolso, sem tem que saí... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Nos espaços dos acampamentos, enfermidades de fácil combate ou prevenção
podem se tornar doenças graves. Claudinéia conta que a anemia do filho se agravou e só
pode ser combatida com recebimento de sangue. O resultado do Teste do Pesinho do filho
menor apresentou alterações, isso tudo por uma completa falta de acompanhamento
médico pré-natal e por um período gestacional com alimentação racionada e
desequilibrada, vivenciado em local insalubre e com ausência de água potável.
177
No acampamento, lugar no qual somente o estritamente necessário à
sobrevivência é almejado, tratamentos odontológicos e oftalmológicos são questões
relegadas a segundo plano, se não suprimidas. É comum pessoas, ainda muito jovens,
desdentadas e crianças com cáries aparentes que certamente comprometerão a dentição
adulta. Além das dificuldades de se obter esse tipo de tratamento, principalmente o
odontológico, que demanda tempo e deslocamento, há também questões culturais
envolvidas nesse descaso com a saúde bucal e oftalmológica, esses sujeitos vivem em
situações limites da vida humana, situação em que esses cuidados não são prioridades.
Nesse tempo/espaço, entendido aqui como um momento de transitoriedade, são
encontradas dificuldades de todas as ordens: alimentação, saúde, educação, moradia; a
espera e a esperança são marcas desse processo. O cotidiano nos acampamentos é marcado
pelas faltas, por limitações e privações. A privacidade é algo que não existe, quando vive-
se em um vulnerável barraco de lona que acaba onde o outro começa.
A falta de privacidade e de um lugar com limitações específicas acabam por
aflorar uma série de conflitos entre os acampados, conflitos que não são específicos do
espaço/tempo de lutas, mas decorrentes de quaisquer relações sociais, de vizinhança e
amizades. Como falou o senhor João: “Muitas vezes dava muito conflito do povo mesmo
dentro do acampamento, muita confusão. Sempre. Isso todo lugar tem, né?”. Como em
todo lugar, havia de se enfrentar os conflitos do cotidiano, as desavenças, os desafetos e
isso ainda estava associado a todas as dificuldades daquele espaço e às carências materiais.
Quando se estabelecem no acampamento, os trabalhadores procuram se manter
próximos a amigos, vizinhos e até mesmo parentes que vieram juntos, mas também passam
a conviver com outros grupos, outras pessoas e acabam se tornando vizinhos, amigos,
compadres, e em alguns casos, criam inimigos e desafetos.
Brigas entre vizinhos não são incomuns, o viver “embolado”, faz com que
muitos ultrapassem os limites de seu espaço simbolicamente definido e invadam o
espaço/vida dos outros acampados. Os barracos, dependendo da mobilização, mantêm
distâncias que vão de 1m até cerca de 10/15m uns dos outros, em alguns barracos, uma
cerca com galhos de árvores é erguida para delimitar os espaços. Na maioria dos casos,
porém, o que os acampados têm mesmo de particular é o espaço interno do barraco. Sempre dá algum probleminha a modo de criança... mais graças a Deus... isso é coisa de criança, né? Tem hora que a gente se enfeza, mais Deus dá força e coragem pra gente, né?! Nois mora tudo embolado, os barraco quase um em cima do outro. Criança é o que tem, mais isso não me ofende não! A senhora lembra se existiu furto, ou algum tipo de violência? Tinha bastante, no tempo nosso tinha bastante! Eles robava dentro do acampamento, só que esses que
178
robava ia embora né, e vai até hoje... são expulso (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Os problemas de socialização vão além dos conflitos domésticos, das disputas por espaço, das desavenças envolvendo crianças, animais, mas também se estende a problemas como alcoolismo, embriaguez e até mesmo crimes como furto, venda e uso de entorpecentes, violência doméstica e sexual. Com exceção dos furtos, os outros crimes são mais evidenciados em mobilizações maiores, até mesmo por questão de proporção. Dona Leonice conta como agiam para punir e coibir esse tipo de atitude ilícita que poderia depreciar a luta e desarticular o grupo:
Nós trocemo um punhado de droga que peguemo, que a segurança pego fumano e esse então foi expulso. Expulsaro. Robo, pego, comprovo: fora! Estupro, pego, comprovo: fora! Estupro não me alembro não, agora de droga e robo, i... foi muitos embora expulso. Fazia uma assembléia: o fulano aqui, ou quem que vai embora... A discussão já vinha lá da base que nóis não aceitava, então nós não queremo mesmo, lá de onde eles vieram já sabia que nós não queremo, foi discutido lá que não era pa tê. Então não era pa tê (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Embora essas ações e delitos praticados não sejam específicos desse espaço, as formas de conduzir esse processo são bem particulares. Desde o trabalho de base já se esclarecia que esse tipo de atitude não seria tolerada e os infratores expulsos do acampamento. “Robo, pego, comprovo: fora!” A pena a pequenos crimes era a expulsão do acampamento após a comprovação do delito. Nesse espaço parece também vigorar o princípio da presunção da inocência, já que ninguém deveria ser indevidamente punido e a expulsão estava associada ao flagrante (“pegou”) ou a comprovação real dos fatos. O acampamento é um ambiente, que embora carregue a representação e a estrutura física de transitoriedade, traz uma série de mecanismos e estruturas que poderiam dar ares de uma nova forma de organização social, mas não é o caso, tendo em vista às expectativas dos acampados na busca por um novo lugar. Como muitas vezes essa situação perdura por vários anos, novas formas de suprir as necessidades para se manterem na luta são desenvolvidas. Segundo Borges:
A sabedoria da pobreza, como diria Milton Santos, expressa a criatividade de homens e mulheres que a vida e o mundo do trabalho impõem, mas também frente à festa, à alegria. Não são os lutadores exclusivamente à fazer brotar essa energia. Podem sim, alimentá-la, desde que dela se alimentem (2004, p. 275).
A luta pela sobrevivência nesse espaço acaba tomando uma conotação de politização. À luz do que poderíamos chamar, pelas contribuições de Thompson, de uma cultura de resistência, as improvisações cotidianas podem ser vistas como expressões de resistências. Na luta diária por se manter naquele espaço de carências e vencer a anomia, esses sujeitos reelaboram a vida, reinventam a luta e redefinem um sentido político de vida e cotidiano.
179
4.3 Trabalho, organização e relações de poder nos acampamentos
...a verdade não existe fora do poder ou sem poder
Foucault
Mesmo tratando-se de um espaço tão vulnerável e transitório como os
acampamentos rurais, esse espaço necessita de organização, estruturação e regras, o que
implica em dissimetrias, em hierarquização. Embora toda noção de poder carregue sua
arbitrariedade e haja poder em todas as relações, independente de estar institucionalizado,
analiso as relações de poder estabelecidas nos acampamentos a partir da noção definida por
Foucault, para quem o poder é também uma rede produtiva e que atravessa todo corpo
social; ele não pesa só como uma força impositiva, mas induz ao prazer, a saberes e produz
discurso (1979, p. 08).
As relações dissimétricas nos acampamentos são bastantes variáveis. De uma
forma geral, se existe arbitrariedade, existe também uma tentativa de democratização, de
interação social do grupo; o que nem sempre é possível, tendo em vista que um
determinado grupo sempre se impõe e acaba tomando para si a frente das decisões. Os
sujeitos dos acampamentos exercem um determinado poder, mas estão também sempre
sujeitos a sofrer sua ação.
Nos grupos do MST, por exemplo, as ocupações são articuladas por membros
da direção do Movimento, que são sempre (pelo menos nos casos analisados) oriundos da
luta pela terra. Depois de efetivado o acampamento, alguns desses membros passam a
direcionar a luta juntamente com as lideranças que conseguiram formar durante o período
de trabalho de base e outras que vão se fazendo no decorrer da luta. O acampamento é logo
dividido em grupos, geralmente por municípios, de forma a considerar as afinidades das
famílias. Cada grupo escolhe seu coordenador, que já chega quase sempre definido com a
orientação de membros da direção responsáveis pelo trabalho de base.
Além dos coordenadores, que têm a responsabilidade de acompanhar e
participar das negociações e repassar aos grupos existem os setores que são formados por
uma pessoa de cada grupo de famílias e têm a incumbência de manter a organização do
espaço do acampamento, são eles: setor de higiene, de saúde, de alimentação, de educação,
de segurança, de finanças e de mística. Existem ainda as equipes de trabalho, que são
180
geralmente grupos de pessoas dispostas a executarem trabalhos internos e trabalhos
remunerados em fazendas vizinhas40.
O senhor Lúcio, uma das lideranças do acampamento e naquele momento
membro da Direção Estadual do MST, narra como essa divisão em grupos e setores é feita
de forma a garantir o funcionamento do acampamento:
É... cada municípios desses tinha as pessoas militantes do movimento que organizava em grupos de lideranças, né? Dentro do processo de discussão, ia buscando as pessoas que mais se destacavam, que mais tem condições de coordenação e organiza. E assim ia organizando de grupos de vinte até cinqüenta famílias, que dentro desses grupos já vinha os setores, já vinha formado dos municípios de origem. Antes de vir pro acampamento, já no trabalho de preparação no município. Então tinha o responsável pelas finanças, pessoal que vinha fazendo arrecadação pra pagá o transporte. É... já vinha, o pessoal preparava o setor de saúde, pra prepara o material de primeiros socorros. É... o setor de educação. Basicamente, a estrutura e a coordenação, né? Que era o ponto chave pra todo, todo funcionamento do acampamento (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
Em grupos que variavam entre trinta a cinqüenta famílias, cerca de seis a dez
pessoas tinham função de responsabilidade, exerciam tarefas que exigiam sua imposição,
ao mesmo tempo em que eram cobrados pelos coordenadores e líderes eram também
avaliados pelos acampados. Esses membros podem ser substituídos ou repudiados se não
mantiverem uma boa conduta ou um exemplar cumprimento de sua função dentro do
acampamento. Segundo uma liderança, os coordenadores são “representante do povo, se o
povo acha que aquelas pessoa ta beleza, continua. Se não ta, tira e põe otros. Entendeu?”
(LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
São essas pessoas, como falou Lúcio, com “mais condição de coordenação e
organização”, que participam dos cursos de formação41, que viajam para mobilizações, que
participam de negociações, que se tornam militantes do Movimento. Esse grupo tem ainda
a incumbência de fiscalizar as ações dos acampados e denunciar às lideranças quando
necessário. Todos, no entanto, coordenadores ou não, vivem na iminência da expulsão do
acampamento, caso não cumpram as regras estabelecidas, que entre crimes e ações ilícitas
estão atitudes como denegrir a imagem do Movimento, ausentar-se do acampamento por
longos períodos, deixar de cumprir suas funções, esquivar-se de ações coletivas, deixar de
comparecer de forma reiterada em mobilizações e protestos etc.
40 Para essa tarefa existe uma espécie de cooperativa de trabalho, liderada por um grupo responsável em negociar os trabalhos e valores, organizar os trabalhadores e fazer o transporte, o acampamento fica com parte da diária, cerca de 20%, como pude constatar. 41 Segundo Turatti, existem critérios bem determinados para a escolha de delegados, que são definidos pela direção nacional do Movimento. Os delegados devem ser pessoas que exerçam ações diretas dentro dos acampamento, sejam membros da direção do acampamento ou pertençam a algum setor (2005, p. 88).
181
Segundo Farias, a imposição de poder exercido pelo MST resulta em certa
acomodação pelas famílias acampadas:
As famílias, diante de tais situações, preferem calar-se, pois, na impossibilidade de voltar e, principalmente, para conseguir chegar à terra, não podem perder o apoio do MST, a seus olhos, neste momento, o único mediador, o qual, além de tudo, garante a alimentação, mesmo precária, e moradia provisória pra todos (2002, p. 140).
Segundo um dos diretores estaduais do MST em Mato Grosso do Sul, Marcio
Bissoli, a função maior em dividir o acampamento em grupos e, a partir dos grupos,
selecionar os coordenadores e setores é:
Fazer com que cada pessoa tenha uma função dentro do Movimento. Essa é a principal diferença do Movimento pras outras organizações que estão aí, a FETAGRI, a CUT. Lá o que tem? Tem uma pessoa que coordena o acampamento, que é o líder, que eles chamam. Nós não, a idéia é... que cada um se sinta dono do Movimento, se sinta parte (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).
Essa forma de estruturação do acampamento mediado pelo MST, de divisão em
grupos e exigência da efetiva participação dos acampados, é também uma forma do
Movimento exercer seu poder sobre os sem-terras, já que seu descumprimento pode privar
os acampados da questão maior da luta, que são os lotes de terra. Embora os lotes sejam
definidos por sorteio na tentativa de democratização desse acesso, só vai para o sorteio
quem estiver organizado e participando das lutas, caso contrário, um grupo todo, ou alguns
sujeitos, pode ficar fora do sorteio dos lotes:
Só vai pro sorteio quem ta organizado, quem ta organizado com cada pessoa pra um setor, com as atividades, quem freqüenta as lutas... nós fazemos chamada. O coordenador dos cinqüenta faz a chamada lá no dia de uma passeata, de uma reunião, é anotado; então, baseado nisso; se o grupo vai sempre, se o grupo ta em dia com a contribuição ele entra no sorteio. Quem não ta, tem que se organizar. Não expulso, mas tem um prazo pra ele se organiza, pra depois ele entra o próximo, se não vai ficando pra traz (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).
Embora arbitrária, a posição de só colocar em sorteio quem está organizado,
quem freqüenta as mobilizações e quem está em dia com a contribuição, é também uma
forma de serem justos com os grupos que trabalham, que se mobilizam e que se fazem
presentes.
Além dos sorteios, para a seleção dos lotes, existe também a noção de direito
adquirido; quando ficam famílias remanescentes por muitos anos, como no caso de um
grupo de aproximadamente trinta famílias remanescente do acampamento Oito de Março
acampadas há dez anos, essas passam apenas pela aprovação do INCRA e não mais pelo
sorteio.
182
Daí a importância de interpretar esse poder a partir da ótica foucautiana como
uma prática social que não existe só como algo negativo, que só tem a função de cercear os
indivíduos, como um instrumento de legitimação da dominação (como diria Bourdieu,
1989); mas funciona como um tipo de organização do espaço e do tempo, nos quais esse
poder encontra-se diluído e nem sempre tem a função de imposição.
Embora exista a tentativa de integração dos sujeitos acampados, é fato que essa
divisão não agrega a todos, o que provoca uma estratificação e revela uma relação desigual
entre os sujeitos acampados. Segundo Turatti: “Essa militância intermediária que vai sendo
formada estabelece uma relação mais próxima com o líder formal e é incentivada por este a
distinguir-se dos demais, usando sua autoridade e respeitabilidade”. Os demais são todos
os outros acampados, que estão sob a liderança desses setores (2005, p. 89).
Comentando sobre quem tomava as decisões dentro do acampamento, o senhor
Celso classificou essa equipe como um conselho, formado por cerca de sete lideranças do
Movimento e pelos coordenadores de grupos acampados:
Aí era um conselho, né? Nós era em trinta... 38 grupo, cada um tinha o coordenador e o vice, e tinha as lideranças que... mais uns sete ou oito da liderança... então, essa turma que tomava as decisões. As liderança vinha e falava: vamos ter uma reunião pra fazer isso... e umas pessoas vai ter que subir pra Campo Grande, outros tem que ir pra Brasília, conversar com o governador, conversar com o presidente. Aí a gente fazia a reunião lá, um falava um pouco, outro falava outro, aí tirava os cara mais saídos... assim, pra ir conversar, né? (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
Essas lideranças passam a ter, simbolicamente, a voz autorizada, o poder de
falar em nome dos outros, de decidir a vida e o destino de todos. Essas decisões são
repassadas e também discutidas com o restante do grupo em assembléias (reunindo todo o
acampamento) ou em reuniões de coordenadores com seus coordenados.
Os militantes sem-terra componentes dos setores e da organização exercem um
trabalho voluntário; recebem, às vezes, dinheiro de passagem e alimentação, quando o
acampamento dispõe de reserva oriunda de dinheiro arrecadado em pedágios ou das
próprias contribuições dos acampados, em muitos casos, porém, precisam dispor de algum
dinheiro próprio para arcar com esses custos. Segundo o senhor Antônio, para exercer
trabalhos de base, esses militantes:
Iam de carona, que ninguém tinha recurso na época, dinheiro pra trabalha. É... os menino iam só com alguns quilos de comida e voltava pro seus município, alguns pra parente, outros pra conhecidos (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
Indagado se fazia algum trabalho fora do acampamento, o senhor Celso, um ex-acampado que declarou não perder um cursinho do Movimento, respondeu: “É, fazia.
183
Quando eu tava por aqui a gente... pra consegui algum dinheirinho pra quando ir na mobilização, pra pelo menos come na estrada. Né”? Embora exista uma dissimetria nesse espaço, e até algum privilégio aos que se destacam e alcançam cargos de lideranças, é certo que tudo no acampamento é racionado, o que faz com que muitos utilizem seus próprios recursos para tarefas que não são de interesse coletivo.
Esses privilégios, que Turatti, denominou de uma espécie de “compadrio rural distorcido”, podem, muitas vezes, ser observados em determinadas ações do dia-a-dia, como na distribuição de alimentos, na escolha de novos membros, nas tomadas de decisões e na própria credibilidade da palavra quando algum conflito fica evidente, como pequenos furtos e desavenças.
Dona Leonice comenta como eram escolhidas as pessoas que iriam viajar para encaminhar as negociações, tendo em vista o êxito da ação e o não descontentamento do restante do grupo:
Pra ir negocia pra Campo Grande, nunca podia ir um ou dois, tinha que ir uma comissão. O acampamento era grande pra não ter disconfiança, entendeu? Falá... não o fulano foi só lá pra escutá... não foi em audiência nada só foi menti... Então tirava o pessoal numa assembléia, o povo levantava o nome, talvez uma ou duas das pessoas que tinha mais conhecimento né? Tirava lá numa assembléia aí ia, ai com esse dinheiro do pedágio (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Como a execução dessas ações é feita com o dinheiro do acampamento (leia-
se: de todos), dinheiro oriundo de pedágio ou de arrecadação interna, havia uma cobrança
de boa utilização; as pessoas escolhidas para representar o grupo eram definidas em
assembléias, embora já previamente indicadas. Como raramente voltavam dessas viagens
com propostas concretas aos acampados, o grupo deveria estar “acima de qualquer
desconfiança”, para evitar conflitos, embora nem sempre isso fosse possível.
É importante destacar, ainda, como critérios de sabedoria e conhecimento não
são descartados nesse espaço. É comum na fala dos entrevistados a afirmação de que quem
os representavam eram os “mais sabidos”, os “mais saídos” e “com mais conhecimento”.
Entre esses saberes estão aspectos ligados às características pessoais desses sujeitos, como
carisma, desenvoltura, iniciativa e boa argumentação, como também conteúdo ideológico
formado já com certo período de militância42.
Para Silva, concepções de formação e de conscientização, como as presente na práxis do Movimento, podem ser pensadas como instituintes e legitimadoras de hierarquias, constituindo até mesmo uma oposição entre os conscientes e os sem consciência (2004, p. 40).
42 Em uma das visitas feitas ao acampamento que abrigava o grupo remanescente do Oito de Março, escutei por horas, em baixo de uma árvore, sentados em bancos improvisados de madeira, um acampado conversar comigo sobre Florestan Fernandes e Caio Prado Junior, em uma conversa, que confesso ter aprendido mais do que contribuído.
184
Os que possuem o poder da argüição e o dom da oratória são os que falam em
nome de todos, e isso já fica bem definido no grupo de modo a não autorizar os demais a
falarem, tendo em vista a possibilidade de “colocar tudo a perder” diante de uma entrevista
ou fala que possa ser mal interpretada:
Tem a cordenação, aí tem as pessoas que fazem parte da negociação. Chego a impresa é ele que tem que fala com a imprensa pra não deixa todo mundo fala, que nem todo mundo sabe, entendeu? Só faiz estraga. Tem hora que um estraga e ponha um bando a perder, entendeu? Então aí você faiz a reunião da coordenação aí na coordenação você tira as pessoas que vai fala sobre a questão da fazenda, se vim imprensa como é que ta, que pé que ta. Questão da alimentação, no pé que ta, qual é a proposta do governo [...](LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
São também essas lideranças que atendem as pessoas que chegam ao
acampamento, principalmente, o “pessoal da universidade”, do INCRA e do governo, e
após tomarem conhecimento da situação, as encaminham a outros, se necessário. É comum
os acampados, quando inquiridos com algumas questões, remeter suas respostas a outras
pessoas, pois como já foram advertidos, receiam que possam estar falando o que não
devem. Situação que para fins acadêmicos e científicos só pode ser amenizada com um
período maior dentro do acampamento, de forma a ganhar a confiança dos acampados.
Mas essa realidade na estruturação e na organização do acampamento não se
aplica a todos os mediadores. Nos acampamentos mediados pela CUT e FETAGRI, exceto
a equipe de guarda, as outras tarefas eram realizadas aleatoriamente pelos acampados
quando necessário. A busca por cestas básicas, problemas de saúde, negociação, finanças,
etc., são atividades realizadas pelo coordenador e pelo líder do acampamento, com apoio
do sindicato. Diferente do acampamento mediado pelo MST, em que existe definida uma
equipe responsável por determinadas atividades, com tarefas pré-determinadas de forma
periódica, nos outros dois acampamentos essas ações eram definidas pelos coordenadores,
que designam algumas pessoas para realizar a atividade quando necessário:
Os coordenador do acampamento quanto tinha que faze alguma coisa, então o coordenador que apontava as pessoa, né? Fazia uma reunião ali no meio do povo e tirava uns cinco, seis. Se tinha que faze... pedi na estrada, vamo supor, uma ajuda, então tirava seis,sete pessoa e tirava pra i lá, a coordenação tirava pra ponha lá. Não era todo mundo, era escalado, né? Outra hora tinha que faze uma limpeza no acampamento, então tirava mais outra turma e ponhava (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
O senhor Antônio veio do Paraguai, fixou-se no acampamento Mambaré,
tornou-se coordenador e logo depois líder com a eleição para presidente do sindicato
municipal, tentou diferenciar na prática do acampamento as atividades atribuídas ao
coordenador e ao líder:
185
O coordenador é aquele que organiza o pessoal dentro do acampamento, ali que pega praticamente o mais pesado, né? Que é... briga, confusão, organização de... de mercadoria, essas coisas aí, né? E o líder é aquele que corre pra busca boa noticia... a questão da... da conquista da terra (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.06).
Se ao coordenador cabe a dificuldade cotidiana da luta, a organização do
acampamento e a imposição diante de conflitos corriqueiros, ao líder cabem as tarefas de
negociação, de discussão com órgãos governamentais, de encaminhamentos burocráticos e
a “busca por boas notícias”.
O sindicato acaba por fazer uma ponte entre acampados e o
Estado/FETAGRI/CUT/INCRA. Um dos funcionários da FETAGRI disse que “a
Federação nunca faz contato direto com os acampados”, todo trabalho de negociação,
avisos e até mesmo cursos de formação política são direcionados aos membros dos
sindicatos e à coordenação do acampamento (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).
Depende também do sindicado e dos líderes a escolha do mediador. O
acampamento Laguna Peru, por exemplo, que teve início com o apoio da FETAGRI,
passou um tempo sob a liderança da CUT. Nesse período os acampados perderam a área,
foram acusados de matar o gado da fazenda pleiteada e comercializá-lo, depois disso
trocaram novamente de lideranças e voltaram a receber o apoio da FETAGRI. Indagado
com relação a essas mudanças, o senhor Tadeu, um dos coordenadores do acampamento,
respondeu que era questão política e dependia dos acordos entre o sindicato e a mediação:
Mais é política. Né? A política eu digo assim, é... de coordenador. Né? Mais, tipo a gente quando começo, começo com a Fetagri, depois mudamo pra CUT uma época, não deu certo, perdemos o terremo aí depois a gente volto pra Fetagri e tamos até hoje (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Embora essa possibilidade de troca de mediador possa garantir uma maior
autenticidade, liberdade e autonomia do grupo acampado, essa indefinição acaba por
confundir os acampados, que sem um maior esclarecimento sobre essas questões políticas
muitas vezes, não sabem o que está acontecendo e ficam alheios a informações que são
preponderantes ao processo de luta, como fala dona Lurdes:
Esse negócio aí, isso é rolo deles lá, eu nem sei fala como é que esse grupo nosso, se é FETAGRI, se é CUT, não sei o que é que é. Hoje eu acho que é FETAGRI. Acho que quando entro lá era da CUT, né? Depois saiu bastante gente com um rolo que deu lá com um gado, não sei se você sabe? (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Embora a estruturação dos acampamentos sob a mediação da CUT e da
FETAGRI seja menos complexa, existem também regras bem definidas. Apenas no
acampamento Laguna Peru tive acesso a um Regimento Interno escrito, embora estivesse
186
no sindicato e não no acampamento, o que não descarta que os artigos ali textualizados
sejam na prática de conhecimento de todos. Segundo consta no próprio Regimento, ele
teria sido elaborado com a participação da maioria dos acampados. Composto por doze
artigos, o documento se define como uma forma de regular os direitos e deveres dos
acampados para que todos vivam em harmonia, paz e esperança. Um dos pontos mais
frisados é com relação aos atos que dão margem à expulsão do acampado, que pode
ocorrer de três formas, as quais resumidamente são:
a) Expulsão sumária com encaminhamento à justiça pública caso sejam pegos
com droga de qualquer espécie para uso ou comercialização; b) Expulsão após apuração
dos fatos, em casos de furto, estupro, desrespeito à família, extorsão, ameaça, uso de arma,
uso ou comércio de bebidas alcoólicas, atos que depõem contra a imagem do
acampamento, caça de animais silvestres, prática de pedágios sem autorização dos líderes e
sem objetivo e finalidade definida; c) Expulsão após ações reiteradas, para uso de
equipamentos de som (rádio, TV) que provoque incômodos, qualquer atividade ou ação
que perturbe os outros acampados, permitir que crianças andem sem roupas pelo
acampamento, permanecer menos de 50% dos dias da semana fora do acampamento.
Além dessas, outras regras, como silêncio após às 22:00 horas,
responsabilidade com animais, destino correto do lixo e construção de fossa, a
responsabilidades dos acampados em denunciar irregularidades e as responsabilidades dos
líderes e coordenadores em manter a ordem do acampamento, também estão textualizadas
no Regimento.
O que se percebe, porém, nesses longos períodos de luta, é que a forma de
imposição dessas regras vai sendo diluída e amenizada, já que o grupo, com o tempo vai
apreendendo essas normas. Os que não se adéquam a elas deixam o acampamento ainda no
início, não só com a temida expulsão, mas pela própria discordância com o que é ali
imposto e/ou acordado. Algumas regras, no entanto, são neste percurso suprimidas ou
relativizadas, como é o caso da bebida alcoólica, que se não utilizada de forma a causar
transtorno é aceita por todos.
Com o tempo, no acampamento Laguna Peru, todo tipo de organização interna
fora suprimida. Dona Eleonora, ao ser indagada se existia algum tipo de coordenação no
acampamento, responde que era tudo feito por eles quando necessário, sem ninguém para
vigiar ou fiscalizar: “mais é entre nóis mesmo aqui, nóis num tem um mandano no outro,
tudo é igual, né?”. O senhor Tadeu também destaca a forma com que o longo período
naquele espaço lhes imprimiu um modo de vida que dispensa maiores organizações:
187
Sim é um grupo só porque...porque é tudo gente assim de, de velho já, lá então num necessita de grupo né? Porque grupo vem criando problema pra... então lá todo mundo sabe o que quer, então num dá problema é as mesma coisa né? Então é,é..é eu digo assim que é um acampamento até bom porque todo mundo trabalha, lá quase não fica ninguém durante cedo, durante o dia né? A tarde tão lá, mais durante o dia, também é que todo mundo sai cedo né? volta tarde, todo mundo trabalha (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Para a organização do acampamento se manteve apenas a figura do
coordenador, que entre outras funções, além daquelas por ele enunciadas abaixo, está a
luta, juntamente com o sindicato, por uma área com possibilidade de assentar aquelas
famílias:
O coordenador é pra organiza as família, né? Organiza num deixa, num deixa é...nada errado. Bom , nada errado... sempre tem errado né? Mais os principal né? É ladrão, é pinga, é maconha, droga, esses tipo de coisa, e sem briga também né? Organizar cesta básica no final do mês, esse tipo de coisa assim né? (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Como fala Tadeu, a tentativa em não deixar nada de errado dentro do
acampamento é em vão, até mesmo porque essa concepção do que é errado e do que é
correto é bastante flexível e muito variada; existe no entanto, o que é permitido, o que é
tolerado e o que é abominável naquele espaço. Tudo isso é muito relativo, quer seja com
relação às posições ideológicas dos mediadores, quer seja com relação à própria
convivência do grupo; daquilo que se habituou, daquilo que é necessário, daquilo que se
naturalizou. As ações elencadas por Tadeu como principais talvez sejam mesmo um
consenso entre todos os grupos em relação a ações inaceitáveis naquele espaço.
O artigo do Regimento Interno do acampamento Laguna Perú, que previa a
expulsão de acampados que permanecessem menos da metade da semana dentro do
acampamento, servia de alerta para que cada sujeito cuidasse de seu barraco, estivesse
sempre atento aos acontecimentos, mantivesse os coordenadores avisados sobre seus
deslocamentos, mas na prática, provavelmente ele nunca tenha sido levado a cabo.
Em relação a obrigatoriedade de ficar ou não acampado, pude constatar, por
meio de entrevista a um coordenador estadual de cada mediador, o seguinte:
FETAGRI: Disseram não haver nenhum tipo de objeção quanto a não morar no barraco,
desde que as lideranças fossem comunicadas e tivessem uma forma de contato para quando
necessário (reuniões, visita do INCRA etc). Só fica acampado quem não tem nenhum
trabalho e nem casa para morar. Posição que se confirmou nas visitas aos acampamentos.
CUT e MST: Os dois mediadores deram respostas parecidas. Disseram exigir pelo menos
50% das famílias acampadas e as outras devem fazer visitas periódicas (todo final de
semana ou quando possível). O acampado deve informar à coordenação seu local de
188
trabalho e deixar um contato, além de, impreterivelmente, ter que participar das principais
atividades do acampamento (assembléias, mobilizações etc).
Mas essas posições no decorrer da luta são variáveis. É certo que existe maior
aceitação, como é o caso da FETAGRI, menos tolerância, como no caso do MST, que
incentiva a mudança real ao acampamento; mas existe também flexibilidade. Só mora no
barraco anos e anos a fio, quem se desfez do antigo lar ao longo do tempo de luta, quem
vive aquele espaço como a última saída possível, quem levou toda família e perdeu antigas
referências.
É conhecida, também, embora negada e até repudiada pelos mediadores, a
prática de pagamento para que outros cuidem do barraco e garanta seu lugar na luta,
enquanto ele se dedica a outras atividades. É uma prática que apresenta um contra-senso e
suscita automaticamente algumas questões: Quem se dispõe a viver acampado em barraco
de lona, à margem de rodovias, por uma quantia que varia entre R$ 60,00 e R$ 100,00 para
garantir terra a outro sujeito? Qual a condição social em que vive o sujeito que se dispõe a
tal tarefa?
Essas atitudes não são só repudiadas pelos mediadores, sobretudo pelo MST
que tentam coibir essa prática, mas também pelos próprios acampados que se sentem
injustiçados por terem lutado e beneficiado quem não lutou, como dizem alguns
acampados:
Enquanto uns se ferra aqui em baixo os outro fica na boa, a gente fica aqui segurando as ponta pros outro (LUCA, Entrevista, 11.10.2006).
Então, tem hora que eu fico parado pensano assim: tanto que a gente sofreu debaixo da lona, que serviu de uma lição pra nós memo. Por que... o que nós sofreu o outro não sofreu nada. Ta beneficiado daquilo que nois sofreu, sabe?. Então, tem muita gente aqui que não ficou um dia debaixo da lona e tem o lote, pego lote aí. O INCRA foi e dividiu, diminuiu o nosso lote pra dá pra outro (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
No acampamento Mambaré, do qual fez parte seu João, poucas pessoas
realmente passaram a morar nos barracos, algumas visitavam-no quando podiam e outras
raramente apareciam. Os “que não sofreram nada”, como disse seu João, por ocasião da
efetivação do assentamento, são facilmente identificados pelos assentados que sempre
estiveram presentes na luta. Esses sujeitos que parecem pegar carona na luta dos outros
não são bem vistos e são sempre lembrados como tais; embora haja relação de vizinhança e
amizade, no momento em que o período de luta vem à memória, esses sujeitos são vistos
como oportunistas e beneficiários da conquista alheia.
189
O sofrimento talvez seja a maior tristeza guardada na memória dos sem-terra
sobre esse espaço/tempo de acampamento, por isso emerge um sentimento de indignação
em relação àqueles que não lutaram, não participaram das dificuldades cotidianas, não
enfrentaram o sol, o frio, as chuvas embaixo do barraco, não se dispuseram a parar carros
na rodovia em dia de mobilização e não vivenciaram os sofrimentos daquele espaço. Esse
sentimento não está só relacionado aos que se dispõem a pagar para alguém cuidar de sua
vaga, já que esses, como pude perceber, são os primeiros que desistem, não suportam a
demora e a incerteza da conquista e dificilmente chegam a conquistar um lote de terras;
mas está relacionado também àqueles que dificilmente aparecem, estão sempre ausentes,
esquivam-se das responsabilidades e só se fazem presentes em dias indispensáveis
(assembléias, sorteios, distribuição de cestas ou quando são chamados).
No acampamento do MST, embora também existam sujeitos que não
permanecem acampados, existe uma postura do Movimento em incentivar a luta sob o
barraco e com a família toda, daí a imposição de só ir para o sorteio dos lotes quem estiver
organizado; estar organizado, no entanto, não significa estar acampado, morando sob o
barraco, mas também não permite que o sujeito reivindicante da terra se distancie e fique
alheio à luta travada naquele espaço.
No acampamento Laguna Peru, a maioria dos barracos era habitada por apenas
um membro da família, geralmente o homem, que partia para a luta e preservava a casa na
cidade. Poucas famílias, como a família de dona Eleonora, se mudaram para os barracos.
O morar ou não no barraco está ligado também, além de questões de
desconforto e insegurança, à necessidade de sobrevivência. Muitos realizam trabalhos
diários em fazendas da região, trabalho temporário em plantação de cana-de-açúcar para
usinas, mas também têm aqueles (de forma diminuta) contratados com trabalho regular em
fazendas, no comércio e em outras atividades, o quê dificulta uma vida toda debaixo da
lona. Existem ainda pessoas já aposentadas, filhos de assentados e aqueles que decidem
pela vida no barraco e dali se destinam aos trabalhos diários em fazendas vizinhas. Esses
trabalhos podem acontecer de forma individual ou por meio de uma espécie de cooperativa
de trabalho, como as formadas nos acampamentos do MST.
O estar ou não acampado também determina a contribuição para com a
organização mediadora. Nos acampamentos da CUT e da FETAGRI verifiquei existência
de uma contribuição no valor de R$ 2,00 por família acampada e aos que não permanecem
no acampamento, conhecidos como andorinhas, cabe uma contribuição no valor de R$
50,00. Em ambos os casos, existe ainda a contribuição sindical, haja vista haver um
190
trabalho de filiação desses sujeitos aos sindicatos rurais municipais, muito embora a
contribuição sindical seja efetuada por um número bastante reduzido de acampados.
Somente no grupo do MST não foi identificado distinção na contribuição.
Existe uma contribuição mensal no valor de R$ 5,00 e uma porcentagem de 20% recolhida
dos trabalhos realizados pela cooperativa de trabalho existente no acampamento. Outra
forma de arrecadação, somente presente no acampamento do MST, é o comércio, uma vez
que dentro do acampamento existe uma espécie de mercado. Marcio explica o que é e
como funciona essa forma de arrecadação:
Em cada acampamento tem um mercadinho, lá um mercado que é o... que é do acampamento, não tem individual. Você não pode te um butequinho lá seu. Tem um só, que serve... a renda é dividido, 30% fica lá no acampamento, 30% pra região, pras atividades regionais, 30% pra estadual (aqui pra nós), e 10% pra nacional. Essa é a renda do mercado (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).
Segundo Marcio, essa é uma forma de custear despesas de transporte e
alimentação em dias de mobilizações e cursos de formação, além dos descolamentos de
lideranças para negociações:
Só que a imprensa quando pega isso já começa a questioná: Há, mais cobra! Todo mundo que participa de uma sociedade paga, se você é filiado no PT você paga, você é filiado no sindicato você paga, você vai na Igreja você paga. Então tem que pagar... não é pagar... você tem que contribui, por que o movimento é teu, é das pessoas, é da organização (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).
Outra questão também presente nesse espaço são os trabalhos políticos. Esses
grupos têm bastante claro quais são os políticos (deputados, vereadores e prefeitos) que
reconhecem a legitimidade da luta, que podem recorrer quando necessário, assim
realmente fazem sempre que possível e/ou necessário, esse apoio, em geral, é buscado para
interceder junto ao INCRA para vistoria de áreas; junto ao governo estadual para liberação
de recurso financeiro e alimentação; aos prefeitos e vereadores para transporte,
atendimento médico e escolar, entre outras necessidades.
Essa necessidade de apoio político, no entanto, é sempre retribuída em
momentos de campanha eleitoral, quando as lideranças do acampamento definem seus
candidatos e passam a fazer campanha política entre os acampados. Se existe discordância
em relação a determinados nomes, elas são reprimidas, guardadas para si, tendo em vista
uma possível represália e a necessidade de chegar ao assentamento.
Nas formas explícitas de manifestações políticas, o Partido dos Trabalhadores é
quase unanimidade; bandeiras, bonés, camisetas, adesivos são símbolos facilmente
191
identificados naquele meio, assim como a imagem do então presidente Lula nas paredes
dos barracos. Historicamente, as imagens dos movimentos sociais e do PT estiveram
associadas, e ainda hoje o Partido é o que melhor representa os princípios ideológicos dos
movimentos, muito embora não seja uma unanimidade entre os acampados.
Entre os casos analisados, existiram pessoas acampadas e lideranças que se
elegeram a cargos como vereadores e até prefeitos, além de secretários e cargos de
confianças dentro do poder legislativo e executivo municipal. Foram identificadas pessoas
que participaram dessas mobilizações exercendo cargo de secretário de Meio Ambiente em
Mundo Novo, secretário de Orçamento Participativo em Itaquiraí, vereadores em Eldorado,
além do atual prefeito de Mundo Novo, Humberto Carlos Amaduce, militante que
participou da organização do acampamento Oito de Março.
Entre as relações de poder estabelecidas no espaço/tempo do acampamento não
se pode deixar de mencionar a questão feminina. Como já citado, a presença da mulher é
mais significativa nos acampamento do MST, mas isso não significa que elas não tenham
sua participação nos acampamentos dos outros mediadores.
A mulher responde nesse espaço como mãe, esposa, trabalhadora e busca
construir um espaço para manifestar sua faceta militante, que fala, que tem idéias e
preferências, que pode contribuir com a luta e que quer ser ouvida. O acampamento do
MST analisado, que foi denominado como Oito de Março, por ter a primeira ocupação
ocorrido neste dia, de forma proposital, é uma forma de manifestação do MST com relação
a postura que mantêm de defender e incentivar a participação feminina na luta. A escolha
do dia da ocupação fora feita por uma das mulheres integrantes da liderança do
Movimento, mulher que sabe a força que carrega e que lembra emocionada da imposição
em efetivar a ocupação nesse dia:
Então nós tava na reunião em Campo Grande, eu me lembro como hoje aí o pessoal. O povo ta organizado, e aí, vamo faze a ocupação ou não vamo? E o dia ? Aí eu me inscrevi. Eu falei : “Eu quero fala. Eu me proponho” – já tinha olhado na agenda do Movimento o dia – “eu me proponho que seja o oito de março. Porque oito de março é o dia Internacional das mulher. Pra nós é um desafio”. Inclusive nós tava num punhado de mulher ajudando no na ocupação. E que tava vida ajudo também que é quase meio a meio. Que tanto por cento de homem, tanto por cento de mulher tem que ta na organicidade, né? Nas atividades do movimento. Aí eu falei: “tem que se, porque quera ou não um dia internacional, e as mulher não sabe direito que elas têm, e que a gente pode ta aprofundando isso, e trabalhamo essa questão”. E a maioria das mulher acha que o trabalho das mulher é só lavar e passa e cuida de criança. É não é! A mulher tem o mesmo direito do homem, agora depende ela sabe aproveita e sabe descobri os direito que ela tem pra corre atrás (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
192
A fala de Nice é típica do ideal cunhado pelo discurso do Movimento de
direitos iguais entre gêneros, da necessidade de participação feminina, da distribuição de
cargos de liderança e de coordenação para mulheres, de conscientizar a mulher de seu
poder. Posição essa, que nem sempre pode ser visualizado na prática, assunto discutido por
Silva em Homens e Mulheres em Movimento:
É evidente que o número de mulheres que ocupam posições de liderança, assim como aquelas que tomam parte de negociações mais expressivas do Movimento, é realmente pequeno, pois no MST essas posições ainda carregam fortes imagens do masculino. A própria formação de liderança é feita nessa perspectiva: dirigida aos homens, pois as mulheres que possuem essa posição, na maior parte das vezes, dedicam-se a discutir e solucionar problemas relativos às mulheres [...] (2004, p. 100-101).
Não era dessa prerrogativa (de falar de mulher para mulher) que Nice gozava
no momento em que, com o restante do grupo, decidiu a data da maior ocupação de terras
do Estado, mas era com essa intenção que se fez ouvir e se impor em relação ao dia
emblemático que propunha. Sem análises mais profundas do discurso mediador, e voltando
o olhar às práticas cotidianas da alma feminina e às redes de poder existentes no
espaço/tempo do acampamento com relação aos gêneros, vê-se que esses sujeitos –
homens e mulheres – “estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação”
(Foucaut, 1979, p. 183), muito embora não se possa negar a imposição do poder masculino
sobre os saberes femininos.
Dona Leonice, que ajudou na efetivação do acampamento, Dona Edinéia, que
decidiu partir à luta e levou a família mesmo contrariada, dona Neuza, que incentivava o
marido, e dona Lurdes, que segura as pontas em casa enquanto o marido vive no
acampamento, são alguns exemplos de como as mulheres cumprem papéis indispensáveis à
manutenção da luta. Mesmo sofrendo com a ociosidade da vida sob o barraco de lona,
dona Neuza era quem “dava força” ao marido para viverem aquela luta cotidiana:
Antônio: Ela que dava mais força pra mim. Neuza: Eu que dava mais força. Só num gostava que era quente a lona, né? E num tinha nada, a gente ficava lá dentro, sentava lá, tinha que fica pro lado de fora... (ANTÔNIO e NEUZA, Entrevista, 11.10.2006).
A luta não se faz só com homens, mesmo nas mobilizações em que elas são
minorias, como no acampamento Laguna Peru e Mambaré. Da mesma forma que o
discurso da igualdade presente no MST e o número expressivo de mulheres, inclusive entre
193
lideranças e coordenações, não desbancam relações hierárquicas de gênero e a imposição
do poder masculino que perpetua na sociedade.
O que se pode inferir nesse espaço/tempo do acampamento, tratando-se do
exercício de poder para regulamentar a ordem social, é que ele não está isento de ser
deslegitimado e questionado, o que, no entanto, não concede aos acampados o direito de
imposição ou desrespeito a determinadas regras.
Existe, em alguns momentos e situações, uma forma de coibição, que reprime,
que impõe, que não autoriza críticas a fim de evitar uma rachadura no grupo. O exercício
coercitivo do poder ali estabelecido se assemelha às situações vivenciadas, por exemplo,
nas relações trabalhistas e até mesmo de proprietário/inquilino. E são essas as situações
que levam, muitas vezes, à indignação e aos questionamentos e produz desistências e
expulsões. A iminência da expulsão, associada à falta de referências regressas e a
perspectiva de chegar a terra leva muitos desses sujeitos a vivenciarem o que Farias (2002,
p. 140) chamou de uma situação de deferência em relação às regras impostas nesse
espaço/tempo de conflitos.
4.4 A visibilidade das lonas pretas e a persistência da luta
...tudo por causa de mobilização que a gente fez para conquista da terra, porque de mão beijada não se resolve nada (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Viver acampado requer estratégias de lutas que vão além das dificuldades
cotidianas. O acampamento precisa ser visto, notado, precisa incomodar, tomar a ofensiva
da luta. Quando não há mais possibilidade de ocupação da área pleiteada, tendo em vista
determinações judiciais e/ou acordos, esses processos de lutas precisam se revigorar,
ganhar força e visibilidade. Um acampamento por si só, restrito a um espaço geográfico,
sem uma equipe de negociação, sem se fazer enxargar, sem mostrar à sociedade e ao
194
governo sua bandeira de luta e suas reivindicações, não resulta em nada, em nenhuma
conquista. É nesse sentido que os atos públicos (mobilizações, manifestações, obstruções
de rodovias, passeatas, abaixo assinados etc.) são usados como estratégias de lutas de
modo a atingir a sociedade e pressionar o governo.
Outra forma de tomar a ofensiva da luta e ganhar notoriedade são os abates de
gado e os saques aos caminhões, as recuperações de alimentos, como é chamada pelo
MST. Essas são formas mais agressivas de manifestações e ocorrem em momentos de
maiores dificuldades.
Essas manifestações podem ser vistas não como ação, como ocorre os atos
públicos, mas como reação; reação à períodos de racionamento de alimentação, atrasos ou
suspensão de fornecimento de alimentos ou mesmo pelo descumprimento de acordos por
parte do governo.
Os pedágios, por sua vez, que também são recursos utilizados por mobilização
de luta pela terra, decorre, na maioria dos casos, para suprir necessidades básicas e
imediatas do próprio acampamento, como lonas, remédios, alimentação ou mesmo para
arrecadar dinheiro para custear despesas com transportes para efetivação de protestos e
mobilizações.
Farias define essas etapas da luta como um estado de rebeldia em
contraposição ao sofrimento e à anomia:
[...] “diante de um grande número de acontecimentos súbitos e inesperados, as famílias procuram um sentido para a vida e para essa nova situação. Sendo assim, várias manifestações se entrecruzam: rebeldia – festa – sofrimentos/desistência” (2002, p. 124).
Essa rebeldia é evidenciada nos casos analisados pelos pedágios, pelos abates
de gado e pela reocupação da área em todos os acampamentos, as outras formas de luta, no
entanto, ficaram restrita ao acampamento Oito de Março.
Praticados para suprir uma carência imediata, os abates tomaram uma
conotação específica no acampamento Laguna Peru. No ano de 2001, quando estava sob a
mediação da CUT, quatro acampados foram presos acusados de furtar o gado da fazenda,
matar e vender a carne; esses fatos ainda aconteceram em concomitância à anulação do
Decreto Presidencial que desapropriava a fazenda, o que causou muitas controversas.
Nesse sentido, dona Lurdes se recorda dos boatos que corriam quando ficou definido que
não seriam assentados nessa propriedade: “Depois falaro que a gente ia perde a fazenda
porque o povo tava matando boi. E esse povo que matou boi foram embora, e os outro
pago o pato” (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
195
O abate de gado nesse acampamento tendo um sentido bastante negativo e
ficou associado à perda da área. As famílias negam participação e os quatro acampados
presos, assim como os mediadores, deixaram o acampamento, o que provocou nesses
trabalhadores a sensação de estarem “pagando o pato”, como se diz na expressão popular,
por ações que não cometeram:
Depois saiu bastante gente com um rolo que deu lá com um gado, não sei se você sabe? O povo lá matava o gado lá, fazia festa e comia tudo, só que os do acampamento mesmo era muito poco que comia carne boa. Ficava mais era pra eles. Pra quem? Pra eles lá né? Eu não vo fala pra você que eu sei que ta gravando. Tinha gente de fora que vinha manda faze isso, chegava lá dava orde e eles pregava o pau (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).
Além da associação desse fato à perda da área, o abate de bois também
acarretou uma mudança de medição, o acampamento que era organizado pela CUT, passou
a receber o apoio da FETAGRI. Muitas pessoas saíram, os novos organizadores passaram a
direcionar as lutas do acampamento de forma diferente do que vinha acontecendo, já que
as medidas adotadas até então tinham tomado conotação de marginalidade entre os
próprios acampados.
Dona Lurdes comenta os fatos e evita falar os nomes das lideranças, temendo
uma retaliação. Durante as gravações é comum a prática de evitar citar nomes e falar de
assuntos que são para eles mais delicados, mesmo que em conversas informais isso já
tenha ficado esclarecido. O registro das falas amedronta e as ressalvas evidenciam uma
prática vista como ilegítima por aqueles sujeitos, ou mesmo histórias não totalmente
esclarecidas.
Depois de perderem a área, passarem pelo difícil episódio da matança dos bois
e de mudarem de mediadores (entre o anos de 2001 e 2002), os acampados do Laguna Peru
(os que resistiram e os que se agregaram depois) ainda permaneceram naquele espaço,
alternando entre a ocupação da fazenda e o acampamento à margem da rodovia até meados
de 2007. Sem alternativa “ficamo quatro, cinco ano ali sem área, sem destino pra nada”
(TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
“Sem destino” e com receio de serem retaliados por ações mais agressivas de
enfrentamento e reivindicações, esse grupo limitou-se a reocupar a propriedade em questão
como única forma de chamar atenção dos poderes públicos e da sociedade para o problema
social que enfrentavam. E assim o fizeram em novembro de 2003, quando reocuparam a
fazenda Laguna Peru e lá permaneceram por aproximadamente um ano, mesmo
reconhecendo que não havia mais meios de desapropriar a área.
196
Em reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária do Estado, agendada
exclusivamente para resolver o impasse, as lideranças do acampamento teriam
reivindicado que: “Coloque uma área de terra para os mesmos, pois os mesmos não têm
interesse na referida fazenda, até por que, por previsão legal, ela não pode ser objeto de
desapropriação”.
E assim justificaram a reocupação da propriedade:
A promessa do senhor Joatam do IDATERRA, consistiu em arrumar áreas de terra para os acampados, os acampados aceitaram e retiraram-se da área ocupada; transcorrido todo o lapso temporal, nenhuma providencia foi tomada a solucionar o problema dos mesmos. Desta forma voltaram a ocupar a área sem, contudo, provocarem danos à fazenda43.
O grupo que assumiu a coordenação do acampamento após a perda da área e
troca do órgão mediador, passou a ver com ressalvas as ações de lutas e reivindicações
mais agressivas. “Pra não dar problema pra ninguém”, como disse o senhor Tadeu,
decidiram não mais tomar medidas ofensivas que pudessem causar retaliação e desconforto
aos acampados. Nesse sentido, um dos acampados que assumiu a coordenação após a troca
de lideranças, comenta como “vão organizando” o acampamento sem precisar fazer esse
“tipo de coisa”: Algumas vezes no inicio, os outros... os outros coordenadores fizeram pedágio sim. Fizeram os pedágio lá, outro tipo de coisa né? Quando faltava cesta ou alguma coisa parecida. Mas depois... depois que a gente começo a organizar nunca mais a gente fez pedágio e nem abate, é... a gente vai organizando né? Então, não da problema pra ninguém (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).
Mas nem sempre essas ações recebem conotação tão negativa dentro dos
grupos de acampados. Devido à experiência vivida nesse acampamento, os pedágios e,
sobretudo, os abates de bois acabaram sendo criminalizados pelos próprios sem-terra, ao
ponto de negarem participação. Em outras mobilizações, no entanto, as recuperações de
alimentos e o abate de animais da fazenda pleiteada, e em alguns casos de fazendas
vizinhas, foram ações que partiram de problemas bastante evidentes e imediatistas, que não
poderiam esperar a letargia e a burocracia dos serviços prestados pelo poder público. Esses
fatos garantem a legitimidade de ações que em outros momentos poderiam negar os
referenciais e valores desses sujeitos.
Valendo-se do conceito de “economia moral”, Thompson relativiza o que
seriam práticas legítimas e ilegítimas dentro de determinados grupos. Tomando como base
a sociedade inglesa do século XVIII, o autor analisa que o desrespeito a pressupostos
morais, assim como a privação, levava a uma ação direta, o que considerado em conjunto 43 Ata da reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária do Estado de Mato Grosso do Sul, realizada em 19.01.2004.
197
poderia ser vista como uma “economia moral dos pobres” (1998, p. 152). Nesse sentido, o
ato de abater alguns bois, entre tantos pelo pasto, para saciar a fome e assim questionar a
situação de miséria na qual se encontravam, estava naquele momento pautada sobre na
privação.
No acampamento Mambaré foram feitos abates de bois por três vezes. O
senhor João narra a forma com que faziam a ação em momentos que o fornecimento de
cestas básicas era suspenso ou sofriam atrasos:
O abate de boi foi feito umas duas, três vez, foi quando o INCRA num tava liberano a cesta, né? Aí foi feito modo do povo te uma ajuda no barraco, de uma carne, alguma coisa. Ninguém podia comprar. Isso aí foi feito, mesmo [...] pegava, atirava, ou pegava no laço mesmo e... aí a gente pegava, tirava o coro do bicho e trazia embora, né? (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).
Já no acampamento Oito de Março vários abates de bois foram registrados e
ganharam repercussão na impressa. O acampamento chegou a abrigar 7.000 pessoas e o
fornecimento de alimentos sofreu atraso por diversas vezes, o que obrigava aquele grupo a
buscar outras saídas possíveis para se manter na luta. Um dos momentos mais marcantes
entre esses acontecimentos foi um abate feito nas vésperas do natal para saciar a fome e
fazer lembrar a sociedade o verdadeiro sentido cristão da data. Foram abatidos em torno de
quarenta animais de uma fazenda vizinha ao acampamento. Dona Edinéia, ao ser indagada
sobre os abates de bois, lembra assustada que chegou até a sair uma imagem sua na
imprensa, no momento que ainda estava no pasto ajudando na partilha da carne:
Ai Jesus, pior que eu participei! Eu saí até no jornal minha fia! Eu tava junto no meio do pasto, eu num nego porque eu tava. Foi bem na véspera do natal, num tinha carne ué! Num tinha nada não naquele tempo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Nota-se, porém, que os abates são as últimas estratégias para se manter na luta
e revelam momentos de extrema carência, tendo como a fome sua expressão mais cruel.
Ao direcionarem-se para a ocupação, esses sujeitos carregam consigo, sob
orientação das lideranças, alimentação suficiente para pelo menos 15 dias. Depois disso há
os que conseguiam fazer alguma atividade, trabalhar em fazendas vizinhas ou casos em
que um só membro da família vai para o barraco e outro se mantém no trabalho, assim os
acampados ainda conseguiam alimentação básica para sobreviver. Muitos, no entanto,
dependiam da solidariedade dos próprios acampados ou da colaboração do Movimento.
Os medicamentos e alimentos levados pelos acampados e os fornecidos pela
base do MST ao acampamento Oito de Março duraram pouco mais de dez dias. Segundo o
jornal O Progresso “as crianças são as que mais padecem. De pés no chão a ao relento do
198
sol, ou debaixo das lonas pretas e quentes, elas estão sofrendo sérios problemas de saúde.
A gripe é a principal doença...” (20.03.1997, p. 8).
Vivendo em uma situação limite, com sérios problemas de subsistência, a
coordenação do acampamento concordou em barganhar a desocupação da área por
alimentos aos acampados, o que segundo os coordenadores não foi cumprido: “Ce sabe,
que os cara faz um puta de um acordo, mas é só no papel, cumpri que é bom... Prometero
alimentação, prometero lona, prometero fazer vistoria na fazenda, e nada” (LEONICE,
Entrevista, 14.12.2005).
Tendo em vista o momento de carências que enfrentavam e para exigir o
cumprimento do acordo pelo governo do Estado, os acampados saquearam dois caminhões
com alimentos no dia 30.04.1997, na BR-163, próximo ao acampamento. Alguns
caminhões foram interceptados com uma barreira humana na rodovia, uns foram liberados
por transportarem produtos considerados naquele momento como supérfluos, dois, no
entanto, um que transportava arroz e um de frangos congelados, foram desviados a uma
estrada de terra próxima, os produtos foram levados pelos acampados e os veículos e os
motoristas liberados em seguida.
Na imagem a seguir, que registra esse momento, alguns acampados estão sobre
o caminhão fazendo a distribuição dos alimentos, o que acontece, como se pode inferir,
sem maiores tumultos. A imagem tirada no momento do descarregamento registra os
fardos de arroz sendo transportados pelos acampados, entre eles muitas mulheres e
crianças. Uma guarnição da Polícia Civil esteve no local e apenas acompanhou a descarga.
Figura 16: Recuperação de alimentos no acampamento Oito de Março. Imagem cedida por Nice.
199
A imagem também evidencia uma prática comum no MST: o registro de suas
ações com o intuito de evitar uma deturpação dos fatos.
É comum a degradação da imagem do Movimento e suas ações, sobretudo na
impressa, e também para fins judiciais. As fotos tiradas pelos coordenadores do
acampamento, no momento em que ocorria o descarregamento da carga, são formas de se
resguardarem e publicarem a passividade do ato, mesmo que não seja uma ação
considerada legítima do ponto de vista jurídico.
Um dia antes dos saques, a impressa foi chamada ao acampamento para que
pudesse visualizar as condições de vida dos acampados, uma estratégia do Movimento a
fim de esclarecer à sociedade da realidade vivida naquele espaço e assim diminuir o
impacto que os saques poderiam produzir.
Nesse momento, o Programa de Segurança Alimentar44 ainda não havia sido
implantado e o fornecimento de alimentação aos acampados dependia da solidariedade do
governo estadual. Essa assistência não era estabilizada e estava associada aos acordos,
dependia de licitações, disponibilidade de verbas e recursos, o que acabava retardando, e
em alguns casos suspendendo o envio de alimentos. Nesse sentido, uma das lideranças do
acampamento comenta as recuperações e abates tendo como foco as privações a que os
acampados estavam expostos:
Mesmo a questão da cesta básica ela é colocada que todo mês vai ter. A verdade é que muitas vezes o governo acaba não cumprindo isso, e aí o pessoal se obriga a faze algumas ações desse tipo. É... teve uma época uma recuperação de alimentação, acho que foram em torno de cinqüenta toneladas de arroz, o pessoal pego. Teve uma recuperação também de carne, teve um abate de gado, e teve uma vez que o pessoal acabou pegando carne de um caminhão, também na BR (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
Essas ações corroboram uma situação limite da vida humana no espaço do
acampamento. Elas foram também expressão de protestos e reivindicações, mas ocorreram,
em especial, para matar a fome e suprir carências imediatas. Foi comum ouvir os
acampados falarem de que depois de instituído o Programa de Segurança Alimentar essas
ações/reações diminuíram, e que “graças a Deus isso a gente não precisa mais”. Um foi no ano de 97, foi no final de 97, e o outro em 99. Depois daquele tempo em 99 até implantaram, se não me falha a memória um programa social, Segurança Alimentar, aí reduziu muito, nois num preciso faze mais esses... Se era alimentação do básico aí nois pegava, se era outra coisa nois dexava passa. Nois só pegava o básico, arrois, feijão, coisa básico. Se tivesse otra coisa no meio nois num mexia, porque se era pra sacia a fome era o básico, né. Deus ajudo que... nunca mais fizemo... Aí começo a adquiri a cesta e com uma
44 O Programa de Segurança Alimentar de Mato Grosso do Sul foi instituído pelo Decreto nº 9.667, de 18 de outubro de 1999, pelo governador José Orcírio Miranda dos Santos e atendeu mensalmente com cestas básicas 60 mil famílias, entre comunidades indígenas, população urbana pobre e trabalhadores sem-terras, até dezembro de 2006.
200
ajudinha aí nois consegue se mantê, não tem mais esse nível de precisá fazê mais essa situação, nunca mais preciso. Até portanto que ajudo nois, mais por um lado atrapalho.... não é verdade? (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).
O senhor Dércio, que vivia no ato da entrevista há oito anos acampado, avalia
os dois lados da situação limite em que precisaram chegar: se por um lado ajudou,
matando a fome, saciando as necessidades imediatas e os mantendo na luta; por outro lado
atrapalhou, causando-lhes uma imagem negativa, o que resultou em retaliações,
instaurações de inquéritos policiais, processos judiciais e mesmo algumas prisões.
Ao conversar com o senhor João, que foi acampado no Mambaré, ele faz
questão de dizer que ajudou nos pedágios, mas não pedia dinheiro, só segurava a corda:
“Ajudei umas par de vez... Só que eu memo nunca pedi não, só segurava lá na corda, lá. Os
outro pegavam e... tirava mais a mulher pra i lá, né? Eu só ajudava... (JOÃO, Entrevista,
20.07.2006).
O sentimento de vergonha revelado pelo senhor João dos momentos que
tinham que pedir dinheiro na rodovia não é incomum. As desqualificações sofridas às
margens das rodovias, principalmente nos momentos de protestos, quando de alguma
forma causam desconforto aos motoristas como atrasos nas viagens e arrecadação de
dinheiro, produziam-lhes um sentimento que os envergonhavam e os reprimiam. Nesses
momentos, muitos desses trabalhadores experimentam a sensação de estarem corroborando
a imagem de vagabundos, oportunistas, aproveitadores, invasores, que muitos lhes
atribuem.
Dona Neuza diz que “detestava” quando tinha que ir para rodovia pedir
dinheiro, esses momentos eram para ela mais difíceis do que a própria vida sob a lona. Os
xingamentos e palavrões eram afrontas a uma vida de muito esforço e trabalho, cunhada
sob forte princípio religioso. A vida no campo, com uma história de morada por vinte anos
em uma fazenda no Paraguai, imprimiu em dona Neuza princípios de vida que não
permitia-a aceitar ouvir tais desqualificações.
Outra coisa que eu não gostava muito era faze arrecadação na bera da BR, por que o povo xingava muito. Xingava as mulher de palavrão, os homem de vagabundo. Sabe, né? Aqueles que não queria da nenhum centavo, então em vês de fala: num tenho, num vo dá” e passasse, tudo bem, que ninguém obrigava, não, eles xingava as pessoa. Por isso que o que eu mais detestava era isso aí (NEUZA, Entrevista, 11.10.2006).
Seu esposo, o senhor Antônio, fez questão de afirmar que nunca saquearam
nada de ninguém e que só mataram boi para fazer um pouco de pressão.
Como negação às desqualificações atribuídas, esses sujeitos criam referências
que dão significado a essas ações. É um sentimento contraditório e ambíguo, mas que
201
garante simbolicamente a legitimidade das ações. Segundo Farias, “muitas concepções e
regras em situação de anormalidade, como no acampamento, caem por terra, pois essas
famílias passam por um momento de crise de concepção, visões de mundo, de ideologia e
de valores” (2002, p. 128).
Esses momentos de enfrentamento, embora dramáticos, corroboram ao
sentimento de conquista da terra em contraposição às doações. O fato de não receberem
nada de “mão beijada” (como expressou dona Leonice), mas sim como recompensa a um
doloroso processo de luta foi também evidenciado no trabalho de Souza, ao analisar grupos
de luta por habitação na cidade de São Paulo: “Muitos fizeram questão de ressaltar que não
ganharam nada de ‘mão beijada’, como se usa na expressão popular, isto é, sem fazer nada,
por compaixão e bondade de alguém” (1995, p. 123).
O processo de luta para conquista da terra vivenciado por esses acampados
também se contrapõe (ou reafirma por uma nova visão) ao jargão usado pelas classes
dominantes para depreciar a luta pela terra, de que terra não se ganha, conquista-se.
Essas ações são vistas com mais legitimidade entre o grupo do MST, até
mesmo pela postura do Movimento em ter um trabalho voltado para uma conscientização
dos acampados.
Embora o acampamento Oito de Março tivesse vantagens nas negociações em
relação aos outros acampamentos, tendo em vista o número de pessoas, os avanços
também foram lentos. As promessas não efetivadas e os prazos não cumpridos por órgãos
estatais traziam conseqüências que seriam irreparáveis sem medidas mais drásticas de
enfrentamento. Nesse sentido, a coordenação se obrigava a partir para outras formas de
cobrança e pressão para a mantença daqueles homens, mulheres e crianças acampados:
As horas mais difícil que eu achava era isso né? A questão da situação da promessa que o governo, junto com o INCRA prometia, é... prometia mais não cumpria né? Então nessas horas aí que chegava o prazo determinado não cumpria e aí é hora que a gente via a crise apertada, aonde a gente tinha que faze qualquer coisa, ou ia pro pasto busca boi tirando, tirando foto, chamando imprensa entendeu? Ou tê que ir pra estrada, ou tê que fazê uma, um pedágio pra pude... ir pra estrada faze o saque... ou se não ia te que fazê pedágio pra podê pega dinheiro pra compra aí vinte, trinta, quarenta lata de leite ninho, pra pode distribui pra aquelas crianças que tava vendo que tava já... desnutrida (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).
Se os acampados aceitassem o descumprimento dos prazos e promessas
passivamente, as negociações que já ocorriam com muitas dificuldades seriam ainda mais
letárgicas. Dona Leonice, que chegou a responder por três processos judiciais em virtude
das ações do acampamento, lembra que era muito difícil quando os prazos das negociações
chegavam ao fim e não eram cumpridos, nesses momentos “era hora de se fazer alguma
202
coisa”: ou abater bois no pasto, ou chamar a imprensa, ou fazer pedágio, ou recuperar
alimentos nas rodovias. Essas foram as estratégias usadas pelos acampados para matar a
fome, exigir do governo propostas reais e expor à sociedade que eram cidadãos lutando
contra a opressão e a fome.
Essas ações, no entanto, são reprováveis do ponto de vista legal e acabam
resultando em processos e prisões. Entre os anos de 1998 e 1999 são constantes as
publicações do MNP/MS (Movimento Nacional dos Produtores de Mato Grosso do Sul)
em jornais do estado com críticas veementes a essas ações e a cobrança de que o poder
público e a sociedade vissem as ações dos sem-terra pelo viés não só da imoralidade, mas
também da ilegalidade, cobrando ações mais enérgicas do governo no combate às
mobilizações e o cumprimento dos princípios constitucionais. Esquecem, no entanto, que
esses sujeitos ao se imporem à miséria e à fome estão cobrando que seja garantido o
princípio básico constitucional: o direito de exercerem sua cidadania.
Segundo Martins: “A ‘reforma agrária’ dos próprios trabalhadores defronta-se
com a ordem estabelecida e perde”. O que vale mesmo é a concepção do Estado e os
critérios de ordenação sociais previamente estabelecidos (2003, p. 51).
Na disparidade em relação aos ideais dos acampados e da ordem estatal, o
senhor Lúcio tenta enumerar quantos processos judiciais os líderes do acampamento Oito
de Março responderam:
E por isso algumas pessoas foram processadas, o Borborema acabou sendo condenado por prestação de serviço no fórum por um ano trabalho comunitário. Além disso teve outros processos, por abate de gado, teve, José Mauro (Pipoca), teve uns três ou quatro processos. Valdecir Padilha, que foi assassinado depois, também respondia uns três ou quatro processos. A Leonice Tiburcio, que hoje é assentada no assentamento Santa Rosa, respondeu três processos. Então teve vários processos (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).
A prisão de um dos líderes do acampamento, Antônio Alves de Lima,
conhecido como Borborema, foi emblemática e desencadeou uma série de mobilizações.
Desde o princípio do acampamento, Borborema já estava com mandado de prisão emitido
pelo episódio de tomada das armas dos policiais. Em março de 1999, Borborema foi detido
e por três dias os acampados se mobilizaram exigindo sua libertação. Os acampados
formaram uma longa fileira de pessoas à margem da rodovia e permaneceram ajoelhados
se revezando durante todo o dia. Segundo o jornal O Progresso, foram em torno de 2 km
ocupados nas duas laterais da rodovia (20.03.1998). Sem nenhuma definição, cerca de duas
mil pessoas se direcionaram até a delegacia da cidade de Naviraí para protestarem.
Claudinéia, que atribuiu a prisão das lideranças ao fato do acampamento ter ficado
203
“manjado” pelas mobilizações e atos públicos, narra o sacrifício que fizeram ajoelhados na
rodovia na tentativa de libertar Borborema:
Uma vez fiquei o dia inteiro na bera do asfalto, de joelho quando o Borborema tava preso. De protesto, por causa que a polícia não queria solta, né? Que o acampamento assim, fico muito manjado, né? Por causa de ocupação de fazenda... Aí eles não queria solta ele, a gente fico de cedo até três hora na beira do asfalto, de faze calo mesmo, naquele solão quente aqui na rodovia, só que é lá naquele trevo indo para Naviraí. No fim não resolveu nada, aí teve que ajunta o povo e i lá pra Naviraí, pra frente da delegacia (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).
Com uma grande mobilização nas ruas de Naviraí e um protesto em frente à
delegacia, Borborema foi libertado e o grupo saiu pelas ruas da cidade gritando liberdade.
O delegado do caso, que declarou ter observado o ambiente tenso e entendeu ser necessário
dar respostas às contínuas manifestações dos sem-terras, afirmou só ter liberado
Borborema por ter recebido ordem do Judiciário (O Progresso, 25.03.1998). Nesse mesmo
sentido, Borborema reforça não ter sido libertado somente em virtude da pressão feita
acampados, mas sim por um bom trabalho jurídico exercido pelos advogados que
conseguiram contratar devido à forte articulação política que mantinham no momento:
Cheguei se preso três dias só, o pessoal foi me tirá. Duas mil pessoa em Naviraí, foram lá e... Não é que me tiraram, é que na época fizeram uma grande pressão e... uns advogado bom. Nós tinha uma boa articulação política aqui na região, naquela época a Dorcelina era prefeita e Mundo Novo, tava dando um suporte bom no acampamento ali no início (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).
Farias ao analisar o acampamento Sul Bonito, à luz do conceito de “tradição
anônima”, proposto por Thompson, observou como tudo naquele espaço é feito com sigilo,
“de modo que os líderes das ações e manifestações são resguardados e dificilmente
identificados, pois são protegidos por todo o grupo”. Quando ocorre uma prisão, o preso
recebe apoio dos acampados que vai da pressão, atos públicos, aparato jurídico até a
depredação de órgãos públicos (2002, p. 124).
Nesse sentido, quando Claudinéia diz que o acampamento ficou manjado, não
é apenas uma força de expressão, mas sim uma situação que ficou evidente em um
processo de luta tão intenso como foi o Oito de Março, quando se quer a estratégia de
preservar os nomes das lideranças pode ser mantida, o que acabou na prisão de alguns e
indiciamento de muitos.
Em junho de 1998, a CUT aderiu ao processo de luta pela terra por meio dos
acampamentos com uma seqüência de dez ocupações no estado. A iniciativa ocorreu,
segundo declarações de representantes da Central, pelo fato de estarem à margem dos
processos de negociação de terras. A partir de então, uma série de mobilizações marcou o
204
processo de luta pela terra mediada pela CUT no estado, principalmente com fechamento
de rodovias, pedágios e ocupações.
Os anos de 1998 e 1999 foram períodos bastante agitados. Além da inserção da
CUT na luta pela terra por meio dos acampamentos rurais, o momento foi de muitas
mobilizações, atos públicos, passeatas e reivindicações, não só pelos trabalhadores sem-
terra, mas também pelos proprietários rurais, sobretudo por intermédio do MNP/MS.
Em alguns momentos essas manifestações transcenderam a sociedade local
para tentar atingir os poderes públicos mais diretamente, com protestos e ocupação do
INCRA em Dourados e Campo Grande, ocupação do Ministério da fazenda em Campo
Grande, etc. As manifestações também se estenderam aos núcleos urbanos, e é neles que as
reivindicações ganham notoriedade, é o que o MST chama de: a luta pelo campo na
cidade. Nas cidades, os sem-terras se fazem ser vistos, chamam por atenção e questionam a
realidade social estruturada na desigualdade e na opressão. Entre atos públicos, como as
caminhadas, vigílias e protestos, também se destacam a ocupação e até mesmo depredação
de prédios público.
Farias, ao analisar a ocupação de uma praça por um grupo de sem-terras,
evidencia um choque cultural pelo fato da ação quebrar a representação de harmonia
atribuída àquele espaço. Os trabalhadores sem-terra contradizem a ordem das coisas
quando ocupam um espaço que representativamente não os pertence. Nesse sentido,
monta-se um teatro e contra teatro; o teatro de uma burguesia que estabelece uma norma,
e a torna legítima, e o contra teatro das classes populares que resistem à dominação e
roubam a cena: “Assim, monta-se a mise-em-acéne da dominação e da contradominação:
teatro e contrateatro, como lembra THOMPSON” (1997, p. 119).
Essas manifestações ocorrem não só pela luta por um pedaço de chão e pela
reivindicação por um lote de terras, mas ela ocorre também por uma luta travada pelo
direito de se manterem acampados. Quando a permanência naquele espaço lhe é negada;
quer seja por determinações judiciais ou políticas, quer seja pela falta de artigos básicos,
como lona, alimentação, transporte e educação; ações como pedágios, fechamento de
rodovias, abates de bois ou saques de alimentos são as estratégias possíveis.
Em março de 1998 uma grande mobilização foi articulada pelos órgãos
mediadoras da luta pela terra. Pessoas que estavam acampadas de várias regiões do estado,
inclusive um grande número de sem-terras do acampamento Oito de Março, direcionaram-
se a Campo Grande, onde permaneceram por diversos dias e com uma agenda de
mobilizações repleta. Em pauta estava à expectativa pela negociação de cerca de 1.100
205
lotes de terras de nove fazendas que iriam ser desapropriadas, além de questões como
alimentação aos acampados e créditos a trabalhadores já assentados (O Progresso,
25.03.1998).
No dia 16.03.1998 diversas manifestações de sem-terra foram evidenciadas em
pontos diferenciados da cidade. Um grupo de aproximadamente 400 sem-terra, entre
acampados do Oito de Março e assentados do Sul Bonito, fizeram a ocupação do
Ministério da Fazenda. Em uma reação rápida, a polícia desocupou o prédio e deixou
quatro feridos, entre eles o acampado Valdecir Padilha, que levou dez pontos na cabeça. A
imagem a seguir, em que Valdecir Padilha aparece ferido, foi fotografada pelos acampados
como forma de registrar a agressão sofrida:
Figura 17: Acampado ferido em dia de mobilização. Foto cedida por Cleuza.
Com uma capacidade surpreendente de mobilização, os acampados que se
mantiveram no acampamento em Itaquiraí fecharam a rodovia BR-163, das 14:00 às 18:00
horas, para protestarem pelo acontecido em solidariedade aos companheiros agredidos em
Campo Grande (O Progresso, 18.03.1998).
Cumprindo a agenda de lutas, alguns dias depois, em 24.03.1998, após reunião
com a superintendência do INCRA, os sem-terras seguiram em caminhada pela cidade de
Campo Grande rumo ao Hemosul, onde muitos doaram sangue, em uma manifestação de
206
solidariedade e civismo. A reação a essa organização foi rápida, no dia 27.03.1998, um ato
público organizado pelo MNP/MS se instaurou em frente ao INCRA após uma carreata
pela cidade de Campo Grande que partiu do Parque de Exposições.
A imagem a seguir é um registro dessa manifestação, uma grande fileira de
carros circulou pela cidade com uma cavalaria à frente. Entre os cartazes que pediam PAZ,
os manifestantes fizeram apelos aos companheiros para que “abrissem guerra contra o
MST” que era formado por “guerrilheiros terroristas”. Os insultos também se estenderam
ao INCRA, que foi qualificado como um “órgão corrupto, comandado pelos sem-terras e
que já deveria ter sido extinto pelo governo federal” (O Progresso, 28/29.03.1998).
Figura 18: Mobilização do MNP na cidade de Campo Grande. Imagem veiculada no Jornal O Progresso, 28/29.03.1998.
No acampamento Oito de Março as manifestações foram constantes, entre elas
as passeatas e os atos públicos na cidade de Dourados, cede do INCRA regional, e em
Campo Grande, capital do estado; caminhada até a cidade de Naviraí, da qual Itaquiraí era
comarca e na própria cidade de Itaquiraí com caminhadas, atos públicos e com a ocupação
da prefeitura por duas vezes. Sobre as diversas manifestações que participaram, o Senhor
Celso comenta que: “Nós era em bastante, tinha quase três mil famílias. Então nos ía...
sempre ía três, quatro, cinco ônibus daqui, pra Campo Grande, cheinho... não cabia nem
sentado, ia gente em pé” (Entrevista, 14.12.2005).
Essas manifestações trazem uma linguagem simbólica, que confronta o teatro
previamente estabelecido e exige o lugar desses sujeitos na ordem das coisas. Esses foram
207
os caminhos percorridos pelos acampados do Oito de Março: com inúmeras manifestações
que organizaram, com passeatas pela cidade de Itaquiraí (como na imagem a seguir) e com
a ocupação da prefeitura – como já havia acontecido em outros acampamentos do MST no
mesmo município, como o acampamento Sul Bonito.
Figura 19: Mobilização dos acampados do Oito de Março na cidade de Itaquiraí. Foto cedida por Nair.
Pedir o apoio da sociedade e do poder público municipal eram as principais
metas dessas passeatas. Homens, mulheres e crianças saíram às ruas com bandeiras e bonés
do MST, alguns carregavam consigo instrumentos de trabalho que se tornou símbolo da
luta pela terra, como as foices. Os trabalhadores que partiram de aproximadamente vinte
municípios do estado, além de brasiguaios, passaram a depender exclusivamente do
município de Itaquiraí para assuntos como saúde e educação, o que só foi atendido com
muita negociação e protestos.
Na busca por apoio, o senhor Celso lembra que ficaram acampados em frente à
prefeitura. Fizeram uma manifestação para buscar essa assistência e como não foram se
quer atendidos pelo então prefeito, Renato Tonelli (PMDB), a saída foi acampar em frente
à prefeitura e depois ocupá-la.
Nós fiquemo lá no pátio da prefeitura para pressionar o prefeito. Reivindicava o... era... pra comida. Né? A cesta básica, e pra dá apoio pra gente. Se o prefeito desse apoio seria mais fácil. Mas ele não dava apoio, aí nós peguemo e acampemo em frente a prefeitura e fiquemo lá (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).
No início do mês de julho de 1999, quatro dias de mobilizações marcaram o protesto dos acampados do MST, na cidade de Dourados, contra a política de assentamento de presidente Fernando Henrique Cardoso e a redução dos recursos do PROCERA (Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária). Sob um frio rigoroso, os acampados se mantiveram na praça central da cidade por quatro dias e findaram os
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protestos com um ato público no local. Em reportagem ao jornal O Progresso, um sem-terra, ao ser questionado do frio que estavam enfrentando naquele local, respondeu de forma emblemática: “Como você pensa que é nossa vida lá no acampamento? A situação aqui ou lá é a mesma” (O Progresso, 11.06.1999).
Ao se exporem na praça central, sob frio e neblina, esses acampados fizeram com que a sociedade visse de perto as dificuldades enfrentadas no acampamento. Com exceção do espaço, nada ali era novo, o frio sob as barracas, as limitações de higiene e o racionamento de alimentação faziam parte do cotidiano daqueles trabalhadores.
O senhor Celso, que participou das mobilizações, lembra que mal chegava a parar no acampamento, gostava de participar e acompanhava o grupo sempre que iria acontecer alguma mobilização. Para Farias, a participação dos acampados nas diversas ações do acampamento pode ser traduzida como uma forma de refúgio, que busca esconder a insatisfação, o medo e a violência diante de momentos de sofrimentos e incertezas (2002, p. 130).
Ainda que praticados como formas de refúgio, esses momentos são guardados com atenção especial na memória desses sujeitos e em muitos casos com orgulho. Marca um momento especial em que sua cidadania foi reafirmada, seu apelo foi ouvido (mesmo que não atendido); um momento em que ele buscou para si e para o grupo a afirmação como seres sociais capazes de se mobilizarem em busca de uma vida mais digna. É a não passividade, a capacidade de mobilização e a negação à anomia que são afirmados quando esses sujeitos se unem em protestos e reivindicações. É afirmação de sua autonomia.
Nem tudo, no entanto, são conflitos. As manifestações ocorrem também com aulas de civismo e solidariedade. Em dois momentos, pelo menos, registra-se a ação coletiva desse grupo para limpeza das cidades: uma em Mundo Novo, em 02.06.1997, e outra na cidade de Naviraí, em 05.05.1998.
Na cidade de Mundo Novo, uma parceria entre a prefeita Dorcelina Folador e o MST colocou 210 trabalhadores sem-terra nas ruas da cidade por uma semana para a limpar, recolher entulhos, podar árvores, plantar mudas, reformar calçadas e meios-fios (O Progresso, 03.06.1997). Em Naviraí, 120 trabalhadores participaram de um mutirão para a limpeza da cidade e revitalização de uma praça. Segundo os coordenadores, o trabalho era para retribuírem as ações do prefeito nas áreas de saúde e educação em relação aos acampados.
Ao analisar esses acampamentos pode-se inferir que tais manifestações são processos de resistência que garantiram a sobrevivência e a permanência na luta. Com mais ou menos intensidade é um processo presente em todas as mobilizações. Elas não asseguram, mas contribuem para o êxito da luta, em alguns casos acabam tomando
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conotação bastante negativa, recebem a rejeição da sociedade, da impressa e dos órgãos públicos, em outros, no entanto, é determinante à conquista da terra ou mesmo de um espaço de negociação. O que é uma forma clara de como as circunstâncias determinam a forma de vida e conduzem as ações cotidianas.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante as aulas da disciplina de História Regional, ouvi por algumas vezes, o
professor Paulo Roberto Cimó Queiroz sabiamente dizer que: “um trabalho de pesquisa
nunca acaba, somos nós que temos que estabelecer seu fim”, e é isso que faço neste
momento.
Essa dissertação teve como objetivo conhecer um pouco mais os sujeitos da
reforma agrária e os meandros do processo de luta pela terra. No decorrer da pesquisa, e
mais especificamente na prática da textualização, foi possível perceber que construir uma
história com toda aquela especificidade seria impossível. Nesse sentido, priorizei o que
reconheci como aspectos mais importantes desse espaço/tempo, no entanto, não se trata de
ato meramente arbitrário do ofício do historiador, embasei-me nos relatos ouvidos e na
observação empírica desse processo, fundamentei-me nas referências de outros
pesquisadores e em conceitos de disciplinas afins.
Embora não seja possível abarcar todo o universo de especificidade desse
processo de luta, e reconhecendo que inúmeras outras interpretações possam ser feitas,
espero ter contribuído, ainda que modestamente, ao conhecimento das experiências desses
sujeitos, nesse e durante esse, espaço/tempo de lutas. Reconheço, também, ter suscitado, ao
longo dessas páginas, muito mais indagações do que respostas. Ficaram no ar perguntas
como: Para onde vão os que não suportam a espera? Quais são as impressões e avaliações
dos que alcançam a terra? Indagações essas, que demandariam, talvez, uma nova pesquisa
ou, ao menos, um novo olhar com outros propósitos.
Como observou Farias (2002), os acampamentos devem ser vistos como o
“prelúdio da travessia”. É um espaço e um tempo de transitoriedade, de conflitos, de
questionamentos, é essencialmente um tempo de dificuldades e um espaço marcado por
carências de todas as ordens.
A longa duração desse processo de luta foi marca evidente nos campos do
extremo sul do estado, poucos foram assentados com um ano de luta, o mais comum foi
que esse prelúdio perdurasse de quatro a oito anos, com casos de até dez anos de vida sob o
barraco. Mas o fato é que o acampamento carrega em si a condição de transitoriedade, quer
seja por sua estruturação (vulneráveis barracos de lona), quer seja pela expectativa dos
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sujeitos em construir para si, a partir desse espaço/tempo, outra história. Assim, a espera
estruturada em sonhos é o que os mantém por tantos anos na luta por um lote de terra e
pela re-construção da vida.
Morar ou não no acampamento, morar apenas o marido ou um membro da
família, morar um ou dez anos são distinções que não permitem uma análise homogênea
desses sujeitos e desses grupos. As práticas dos diferentes mediadores imprimem diferentes
formas de construção do espaço/tempo do acampamento, o que se traduz em diversidades
na reestruturação da vida, no e para o acampamento.
Como também observou Almeida, a homogeneidade representada pelo espaço
geográfico dos acampamentos do MST, FETAGRI e CUT, ou seja, as fileiras de barracos
de lona à margem das estradas, foram aos poucos, com um olhar para além da forma,
transformando-se em heterogeneidade (2003, p. 160).
Isso não significa, no entanto, que esses grupos não tenham aspectos em
comum, mas as diferentes posições as quais estão vinculados, como, por exemplo, ao fato
de ficar ou não acampado, as formas de organização dos grupos, as estratégias de ofensiva
da luta, entre outras apresentadas ao longo do texto, são fatores que constituem a
particularidade de cada um desses mediadores.
Grosso modo, poderia se dizer que o MST atua com uma forma mais agressiva
de enfrentamento, tem suas discussões voltadas a questões que vão além da terra em si,
pois trabalha questões de conscientização política, relacionando assuntos como, dívida
externa, água, transgênicos, classes sociais, entre outros, inclusive alguns sob forma de
mobilização. A FETAGRI, embora também lance mão das ocupações de terras, tem um
caráter de luta voltada à negociação em detrimento do enfrentamento, tem ainda como
estratégia de luta ocupar áreas que estão em processo de desapropriação, o que associado
ao fato de não objeção sobre o morar no barraco, torna o processo de luta mais leve e
menos doloroso. Sobre a CUT, diria que ocupa um lugar intermediário, entre
enfrentamento e negociação, ela direciona sua luta também a outros aspectos que não só a
luta pela terra. Por ser também uma entidade sindical, assim como a FETAGRI, a disputa
de terreno entre esses dois mediadores é ainda mais evidente.
Outro aspecto que se desnudou com esse trabalho de pesquisa foi o caráter de
concorrência entre os diversos grupos, inclusive entre acampamentos mediados pela
mesma organização. Nos acampamentos da FETAGRI, por exemplo, é comum o fato de
abrir vaga, contudo, só aderem novas famílias se alguém desistir, diferente do ideal de
massificação presente nas ações do MST. Assim pode ser compreedido (dentro de uma
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ordem lógica de disputas) o porquê dos sem-terras do acampamento Laguna Peru terem
permanecido ainda cerca de cinco anos na área após perder os últimos recursos legais e
sem nenhuma perspectiva de desapropriação da área pleiteada. Esse fato revela que esses
acampados enfrentavam dificuldades para serem transferidos a outro acampamento para
pleitear em iguais condições um lote de terra.
Nesse universo de disputas, área ocupada passa a ser simbolicamente área
demarcada. São signos reconhecidos por esses mediadores, o que evita um conflito aberto.
Quando uma área propensa a desapropriação é cogitada pelo governo, ela é dividida entre
esses diferentes mediadores, o que também não está isento de um processo de discussões,
disputas e reivindicações entre esses interlocutores.
A disposição para lutar por uma área de terra, enfrentar os riscos que tal
empreitada interpõe, principalmente nos processos de ocupação e confrontos com a polícia,
além da falta de infra-estrutura dos acampamentos, leva à pergunta sobre quem são esses
sujeitos que abraçam tal causa. Ao longo da pesquisa e da presente narrativa eles foram
gradativamente identificados. Trata-se, sobretudo, de migrantes de várias regiões
brasileiras e de fronteiras que vivenciaram a modernização conservadora, de trabalhadores
pobres, voltados ao trabalho informal, muitas vezes até desumano, que tiveram uma vida
marcada pela incerteza, pelas dificuldades, por carências. Há também aqueles que
migraram para as cidades, experimentaram a vida em centros urbanos, em moradias
precárias, o desemprego e a informalidade e retornaram ao campo, por vezes tratando-se da
segunda geração, o que revela que não houve perda de contato com as raízes rurais.
Para alguns a luta pela terra teve início ainda muito cedo, juntamente com os
primeiros passos e as primeiras palavras, outros, já velhos e cansados da vida, ela é
representada como a única saída possível. São, no entanto, todos, vítimas de processos
sociais, econômicos e políticos excludentes e que não encontraram seu lugar na ordem
capitalista da sociedade. Assim, a decisão de ocupar, acampar e lutar por um pedaço de
chão surgiu-lhes como saída à situação de marginalização, com uma resposta ativa contra
esse processo.
Em razão do exposto, diante da posição de muitos intelectuais e da perspectiva
neoliberal de que a reforma agrária perdeu seu sentido histórico, é possível afirmar, a partir
das experiências analisadas, que a reforma agrária se encontra pautada sobre novas bases e
novas necessidades. Pode-se dizer que se não há mais o camponês de outrora lutando pela
sua manutenção enquanto classe sui generes, o que não deslegitima a luta desses grupos
213
sociais vítimas de processo excludentes, por uma sociedade mais justa, mais igualitária,
menos opressora e pela construção de um mundo possível.
A dimensão, contudo, da apreensão da luta e das experiências vividas por esses
acampados norteou esse trabalho. É possível dizer que esses sujeitos constroem, durante o
processo de luta, uma reelaboração da vida e de seus valores. Se não constroem para si o
imaginário mobilizador idealizado pela militância do MST, tampouco vivem sob o julgo da
desonra e da desordem.
Souza, ao analisar grupos de migrantes na luta por habitação na cidade de São
Paulo, faz consideração que se torna oportuna também para a compressão dos sujeitos
dessa pesquisa: As imagens, as representações e valores não foram simplesmente
substituídos ou rejeitados, como também os novos não foram apenas sobrepostos,
assumidos e, pronto, praticados. O processo foi de reelaboração, realizado a partir de
experiências mediatizadas por novos discursos proporcionados pelas novas relações [...]
(SOUZA, 1995, p. 151).
Junto com a decisão de acampar, esses sujeitos também estão optando pela
construção de uma outra história, pela reelaboração da vida. E isso significa, muitas vezes,
enfrentar situações inusitadas, nunca antes pensadas, fatores que podem também contribuir
para que muitos desistam, já que nem todos são capazes de assimilar nesse processo de
conflitos e questionamentos de referenciais, elementos de identificação.
No espaço/tempo de acampamento, o novo e o velho se hibridam, se misturam,
se complementam, só assim é possível viver quando velhos valores são questionados. O
cortar a cerca passa a ter um peso de sobrevivência, o que lhe garante simbólica e
representativamente um respaldo moral. Nesse sentido, baseados no que poderia ser visto
como uma “economia moral”, essas mobilizações engendram um padrão de
comportamento que vai além da ordem estabelecida na sociedade, além, até mesmo, do
conservadorismo que cada sujeito desses acreditava carregar consigo. Quando a
sobrevivência estava em jogo, para garanti-la, recorreram a estratégias diversas, em alguns
casos contrariando princípios, o que exigiu reelaborações de valores, mas que passaram a
ser compreendidos no contexto mais amplo da luta, como foram os casos de abate de gado
e recuperação de alimentos.
No espaço do acampamento, apesar de seu caráter provisório, tiveram que
reinventar a vida. O cotidiano interpunha novas exigências que requeriam práticas e
saberes diferenciado, um aprendizado realizado à custa de erros e dissabores, como foi o
caso da construção de barracos mais resistentes ao vento. Viver em espaços
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compartilhados e sem a infra-estrutura exigiu organização para assegurar as condições
mínimas do coletivo. Outra experiência significativa foi a participação em diferentes
grupos para garantir segurança, promover condições de higiene e saúde, proporcionar a
educação e a escola das crianças, promover o lazer.
Foi possível, enfim, ao percorrer os caminhos da pesquisa, ao interagir com os
sem-terras acampados, compreender que essa luta não foi fruto somente de um imaginário
com laços afetivos voltados à terra, mas também trata-se de uma batalha travada por
trabalho, moradia, vida digna, o que legitima esses sujeitos enquanto ser social que lutam
pela re-construção da vida.
Na luta por um pedaço de chão, esses sujeitos buscam também trabalho e
moradia, e assim constroem outra história...
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THOMPSON, E. P. A miséria da teoria: ou um planetário de erros – uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
_______. A formação da Classe operária inglesa. A árvore da liberdade. Vol 01. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
TURATTI, Maria Cecília Manzoli. Os filhos da lona preta: Identidade e cotidiano em acampamentos do MST. São Paulo: Alameda, 2005.
VEIGA, Jose Eli. O que é Reforma Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1985, 6º Edição.23 ZORZATO, Osvaldo. Alicerces da identidade mato-grossense. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 161, p.419-436, jul./set. 2000.
II Fontes impressas Jornal O Progresso (1990; 1991; 1992; 1993; 1994; 1995; 1996; 1997; 1998; 1999; 2000;
2001; 2002; 2003) Jornal dos trabalhadores rurais Sem Terra, 24.01.2007.
Frei Betto. Assim foi, assim é. Estado de Minas. 18 set 2003, p. 10. Rastilho de pólvora: Invasões e acampamentos promovidos pelo MST se multiplicam na região mais fértil de Mato Grosso do Sul. Revista Isso é. 27 ago 1997. Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo – Brasil. CPT Nacional, 2002.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos Agropecuários e demográficos – 1975; 1980; 1985; 1995/1996. Rio de Janeiro: IBGE. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Projetos de Assentamentos no Estado de MS. Dourados, 2004.
Ouvidoria Agrária do Estado de Mato Grosso Do Sul. Poder Judiciário. Atas: 13.12.2001; 01.03.2002; 26.06.2002; 16.08.2002; 20.09.2002; 12.12.2002; 13.03.2003; 08.05.2003; 03.07.2003; 07.08.2003; 28.11.2003; 20.10.2003; 19.01.2004; 31.03.2004.
221
III Fontes orais
1. Antônio (Borborema) – Trabalhou por dezoito anos em uma única área
arrendada em Naviraí com a família. Ingressou ao MST ainda jovem, foi uma das
lideranças do acampamento Sul Bonito e organizou a ocupação do acampamento Oito de
Março, entre outros. Ainda hoje é militante do movimento. Entrevista realizada dia
22.04.2006, no assentamento Sul Bonito, em Itaquiraí/MS.
2. Antônio e Neuza – Naturais do Estado de São Paulo, viveram no Paraguai por
22 anos de onde retornaram ao município de Mundo Novo para acampar no acampamento
Mambaré. O senhor Antônio e a esposa gostavam de viver no Paraguai, mas para que a
filha fosse alfabetizada na língua de origem decidiram voltar ao Brasil. Sem alternativa de
vida e trabalho a saída foi se mudar para o acampamento. Ao longo dos quatro anos
vivendo sob o barraco, o senhor Antônio foi líder sindical e tornou-se coordenador do
acampamento. Hoje é assentado na área pleiteada, o Assentamento Pedro Ramalho, onde
vive com a família. Entrevista realizada dia 11.10.2006.
3. Celso – Paranaense de Paranavaí. Trabalhou como garimpeiro em Mato
Grosso, antes de entrar para a luta pela terra vivia no sítio dos pais em Ivinhema, de onde
partia para trabalhos diários nas fazendas da região. Participou da ocupação da fazenda
Santo Antônio, em Itaquiraí/MS, e viveu sozinho acampado cerca de um ano e meio. Hoje
é assentado no assentamento Santa Rosa, em Itaquiraí/MS. Entrevista realizada dia
15.12.2005.
4. Claudinéia – Natural do Paraná. Foi para a ocupação da fazenda Santo Antônio
com a família aos 13 anos de idade, dentro do acampamento casou-se e teve dois filhos, na
data da entrevista ainda se encontrava acampada em Itaquiraí/MS. Claudinéia exerce
atividades no setor de educação do acampamento. Entrevista realizada dia 14.12.2005.
5. Dércio – Natural de Alto Paraíso-PR. Mudou-se com família para o Mato
Grosso do Sul em 1990 em busca de trabalho. Participou do acampamento Oito de Março
em 1997 e na data da entrevista ainda vivia acampado. Tornou-se uma das lideranças do
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acampamento em que vive com mais 400 famílias no município de Itaquiraí. Entrevista
realizada dia 14.12.2005.
6. Edinéia – Natural de Minas Gerais, morou no Paraná e em Mundo Novo/MS,
de onde partiu com sua família em 1997 para a ocupação da fazenda Santo Antônio, em
Itaquiraí. Na data da entrevista ainda vivia acampada em Itaquiraí. Entrevista realizada dia
14.12.2005.
7. Eleonora – Dona Eleonora mudou-se do Paraná, onde nasceu, para lutar por um
pedaço de chão. Migrante, dona Eleonora lembra que veio vindo, vindo até chegar ao
acampamento Laguna Peru, onde mora com os sete filhos e o marido a cerca de quatro
anos. Entrevista realizada dia 11.10.2006.
8. Erondi – Ainda muito Jovem Erondi mudou-se para o Paraguai com os irmãos
e a mãe para trabalharem em uma espécie de pousada. De lá retornaram ao Brasil em 1999
e foram morar no acampamento Mambaré, onde viveram por quatro anos até serem
assentados no assentamento Pedro Ramalho, em Mundo Novo. Entrevista realizada em
11.10.2006.
9. Irmã Olga – Militante incansável, é uma das fundadoras da CPT no Estado de
Mato Grosso do Sul. Ainda hoje exerce trabalho junto à famílias assentadas no Sul do
Estado. Entrevista realizada por João Carlos de Souza e Tereza Bressan em 12.03.2006.
10. João – viveu por quadro anos e meio no acampamento Mambaré na cidade de
Mundo Novo. Hoje é assentado no Assentamento Pedro Ramalho, onde vive com a
família. O senhor João, nascido na Bahia, viveu parte da vida no estado do Paraná, de onde
mudou-se para a cidade Mundo Novo/MS, vivia de trabalhos diários em fazendas até 1999,
quando mudou-se para o acampamento. Entrevista realizada dia 20.07.2006.
11. João Valdir – Líder sindical de longa data. O senhor Valdir como presidente do
Sindicado de Mundo Novo foi um dos principais articuladores do acampamento Mambaré,
em 1999. Entrevista realizada dia 30.04.2006.
12. José Mauro (Pipoca) – entrou para o MST em 1991, ajudou a articular a
ocupação da fazenda Santo Antônio, entre outras. Ainda hoje é militante do Movimento e
está assentado no Assentamento Santa Rosa, em Itaquiraí, onde foi entrevistado dia
03.09.2006.
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13. Leonice – Entrou para o MST em 1990, ajudou a fazer o trabalho de base de
inúmeros acampamentos, entre eles do Oito de Março, em 1997. Viveu acampada por
vários anos. Nunca foi à escola, mas lê e escreve bem. Foi assentada no assentamento
Iguaçu, onde foi entrevistada, dia 14.12.2005.
14. Lídio – Brasiguaio que partiu do nordeste aos 13 anos de idade para trabalhar
na construção da estrada de ferro. Morou em Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Paraguai
e em 1997 retorna ao Brasil envolvido na mobilização que resultou na ocupação da fazenda
Santo Antônio – acampamento Oito de Março. Foi ao longo da vida líder sindicalista,
membro do Partido Comunista Brasileiro e militante do MST. Viveu sob o barraco de lona
neste acampamento cerca de um ano e meio, foi assentado no assentamento Santa Rosa em
Itaquiraí. Na data da entrevista aos 73 anos de idade vive sozinho na cidade de Itaquiraí
onde foi entrevistado dia 13.12.2005.
15. Luca – Trabalhou a vida toda em uma só fazenda em Eldorado, já com idade
avançada comprou um ranchinho na cidade onde foi morar com a esposa. Ao ser indagado
quanto a sua idade o senhor Luca não conseguia definir exatamente quantos anos tinha,
com muito esforço lembrou que nasceu em 1935. Em 2006 ele morava sozinho, há sete
anos no barraco de lona na BR-163 (Acampamento Laguna Peru). Guarda ressentimento
pela esposa não aceitar sua decisão e nunca ter ido um dia se quer no acampamento, ele a
visita esporadicamente na cidade. Entrevista realizada dia 11.10.2006, no acampamento
Laguna Peru, BR-167 trecho Itaquiraí/Eldorado/MS.
16. Lúcio – Natural de Paranavaí/PR. De Paranavaí mudou-se para Ivinhema/MS,
de onde saiu para participar do acampamento Sul Bonito, em 24 de julho de 1994. No
tempo em que ficou acampado tornou-se liderança do acampamento e ajudou a organizar a
ocupação da fazenda Santo Antônio, ainda hoje é militante do MST. Mora no
assentamento Sul Bonito, onde foi entrevistado, em 09.10.2005.
17. Lurdes – tem 51 anos e mora em conjunto habitacional na cidade de Eldorado,
o marido (o senhor Luiz de 60 anos) que vivia do trabalho em ilha do rio Paraná, leva a
vida desde 1999 alternando entre o barraco de lona à margem da BR-163 e a casa na
cidade. Sem emprego, o casal vive de algumas diárias que seu Luiz consegue fazer e da
ajuda de um filho.
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18. Nair – Natural de Angélica/MS. Participou do primeiro acampamento aos 14
anos de idade acompanhando os pais na ocupação da fazenda Italsul, em 1992. A partir de
então passou a militar pelo MST, entre outros acampamentos ajudou a organizar a
ocupação da fazenda Santo Antônio em Itaquiraí/MS no ano de 1997. Foi assentada no
assentamento Iguaçu e hoje vive na cidade de Itaquiraí, onde é funcionária pública
municipal. Entrevista realizada dia 13.12.2005, na cidade de Itaquiraí/MS.
19. Osmar – Mora no acampamento Laguna Peru a cerca de cinco anos. Nasceu
em Eldorado, de onde saiu para o Mato Grosso trabalhar no garimpo. Do garimpo voltou
para morar no acampamento a convite do irmão que também é acampado. Osmar tem 32
anos e mora sozinho no barraco. Entrevista realizada dia 11.10.2006, no acampamento
Laguna Peru, BR-167, trecho Itaquiraí/Eldorado/MS.
20. Polaco e Rosana – O casal morava como agregados no sítio dos pais em Novo
Horizonte/MS, de onde partiram para o acampamento Sul Bonito município de
Itaquiraí/MS. Viveram dois anos e oito meses acampados, hoje são assentados no
assentamento Sul Bonito. Entrevista realizada dia 10.10.2005, por Alzira Salete Menegatte.
21. Tadeu – Gaúcho, filho de pequenos sitiantes. Morou em Cascavel, no Paraná,
de onde mudou para o acampamento Laguna Peru em 1999. Mora na cidade de Eldorado
com a família, vive do trabalho que faz com cimento (tanque, churrasqueiras, bancos) e
mantinha, naquele momento, o barraco e a atividade de coordenar do acampamento.
Entrevista realizada dia 11.10.2006, em Eldorado/MS.
22. Teresinha – Era arendatária em Ivinhema. Do sítio mudou-se com sua família
para uma favela no mesmo município, onde trabalhava como empregada doméstica. O
marido, durante o tempo que viveram na cidade, exerceu alguns trabalhos em serrarias,
mas a maior parte do tempo viveu desempregado. Participou do acampamento Sul Bonito
em Itaquiraí, onde seu esposo ficou acampado por dois anos e oito meses. Entrevista
realizada dia 21.04.2006 no assentamento Sul Bonito, por João Carlos de Souza e Tereza
Bressan de Souza.
Lideranças estaduais da FETAGRI, do MST e da CUT:
23. Valdinei – Funcionário da FETAGRI/MS. Entrevista realizada dia 22.09.2005,
na secretaria estadual da FETAGRI, em Campo Grande/MS.
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24. Marcio Bissoli – Coordenador do Setor de Frente de Massa do MST. Entrevista
realizada dia 22.09.2005, na secretaria estadual do Movimento, em Campo Grande/MS.
25. Castilho – Vice-presidente da CUT/MS, responsável pelo DTR. Entrevista
realizada dia 23.09.2005, na secretaria estadual da CUT, em Campo Grande/MS.