Dissertação de Mestrado Edna de Falchide Mato Grosso do Sul com um olhar voltado ao sujeito que a...

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1 EDNA DE FALCHI NA LUTA POR UM PEDAÇO DE CHÃO: EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS DE SEM- TERRA DO SUL DE MATO GROSSO DO SUL Dissertação apresentada ao programa de Pós- Graduação em História, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, para obtenção de título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Souza Dourados/ MS 2007

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EDNA DE FALCHI

NA LUTA POR UM PEDAÇO DE CHÃO: EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS DE SEM-

TERRA DO SUL DE MATO GROSSO DO SUL

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História, da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, para obtenção de título de Mestre em História.

Orientador: Prof. Dr. João Carlos de Souza

Dourados/ MS 2007

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EDNA DE FALCHI

NA LUTA POR UM PEDAÇO DE CHÃO: EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS DE SEM-

TERRA DO SUL DE MATO GROSSO DO SUL

COMISSÃO JULGADORA

Presidente e orientador_______________________________________________

PROFº DRº JOÃO CARLOS DE SOUZA – UFGD

2º Examinador______________________________________________________

PROFª DRª MARISA DE FÁTIMA LOMBA DE FARIAS – UFGD

3º Examinador______________________________________________________

PROFª DRª GENI ROSA DUARTE – UNIOESTE

Dourados, 30 de Novembro de 2007.

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DADOS CURRICULARES

EDNA DE FALCHI

NASCIMENTO 04/04/1981 – CAARAPÓ/MS

FILIAÇÃO Osvaldo de Falchi Inês Manfré Falchi

2000/2003 Curso de Graduação em História Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) Campus de Dourados.

2005/2007 Curso de Pós-Graduação em História, nível de Mestrado Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD).

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RESUMO

Este trabalho de pesquisa tem como objetivo a análise da luta pela terra no sul

de Mato Grosso do Sul com um olhar voltado ao sujeito que a personifica e a vivencia.

Assim, entre a análise e uma breve etnografia de três acampamentos que existiram nessa

região – acampamento Oito de Março (1997), em Itaquiraí, acampamento Laguna Peru

(1999), em Eldorado e acampamento Mambaré (1999), em Mundo Novo - busquei

construir uma narrativa que contemplasse a luta cotidiana desses sujeitos por um pedaço de

chão, com todos os conflitos, contradições e dificuldades oriundas do espaço/tempo do

acampamento de forma a garantir a especificidade de cada mediador analisado (MST,

FETAGRI, CUT). Esse período de luta acabou, em muitos casos, tornando-se um modo de

vida; as famílias analisadas viveram de um a dez anos sob o barraco de lonas às margens

das estradas. Os meandros desse processo, no entanto, são marcados pela espera e pelos

antagonismos entre a anomia e a esperança, a solidariedade e a competição, a resistência e

o conformismo, a harmonia e o conflito. Trata-se de uma análise voltada ao campo da

história social e cultural de um tempo histórico bastante recente, portanto, de fenômeno

histórico ainda em curso, que pode ser denominado como uma história do tempo presente.

Palavras-chave: luta pela terra, sem-terra, Mato Grosso do Sul, acampamento.

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ABSTRACT

This research about the camps of landless has the aim to review by the struggle

for land in the south of Mato Grosso do Sul, with a look back to the person that embodies

and lives. Thus, from the analysis and a brief ethnography of three camps of that region,

which are: the Oito de Março (1997), in Itaquiraí, the Laguna Peru (1999), Eldorado and

the Mambaré (1999), in Mundo Novo, all of them in Mato Grosso do Sul, sought to build a

narrative that reviewed the daily struggle of landless for a piece of land. We retrieved, in

the process, conflicts, contradictions and difficulties from the space / time of the camps, in

order to ensure also the specificity of each mediator involved (MST, FETAGRI, CUT).

During this period of struggle, the establishment of the camps, interpreted the principle as a

temporary situation, in many cases, however, eventually becoming a way of life, because

many families analyzed came to live 10 years under tents along the roads. The meanders of

this process, however, are marked by hopes and the antagonisms between the anomia and

the hope, solidarity and the competition, the resistance and the conformism, the harmony

and conflict. This is a focused analysis to the field of social and cultural history, a long

history of fairly recent and still ongoing historical phenomenon, which may be called as a

history of this time.

Keywords: struggle for land, landless, Mato Grosso do Sul, camp.

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DEDICATÓRIA

Ao Eduardo, anjo que me ilumina. Pessoa que, ainda tão pequena, ensina-me, na prática, que a história é resultado da invenção humana e construída cotidianamente. Ao Ronaldo, que nossa história de amor seja reconstruída eternamente.

Aos meus pais, que imigraram a Mato Grosso do Sul, movidos pelo desejo de realização de um sonho e pela busca de um mundo possível, assim como meus avôs, que um dia imigraram ao Brasil. Esse mesmo sonho e essa mesma busca ainda movem multidões na luta por um pedaço de chão.

A todos os trabalhadores sem-terra pela possibilidade de pesquisa, e “por nos afirmar como gente diante de uma vontade reacionária histórica implantada neste país”.

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AGRADECIMENTOS

Ao final desta caminhada, gostaria de agradecer às pessoas que fazem parte da minha história e que de alguma forma contribuíram para a concretização deste trabalho; assim, agradeço tanto àquelas que me proporcionaram contribuições acadêmicas, como também àquelas sem as quais a vida não teria sentido.

Agradeço, em especial, ao Prof. Dr. João Carlos de Souza, pessoa que me orientou nessa caminhada e que sempre soube exercer o verdadeiro significado da palavra orientador quando por esses caminhos me via sem norte.

Agradeço, também, de forma muito carinhosa, à Prof. Dr. Marisa de Fátima Lomba de Farias, que sempre esteve disposta a me ajudar e a me ouvir, mesmo com tantas atribuições. Mulher sábia, sensível e que carrega consigo todas as belezas de ser - humano.

Aos professores do curso de pós-graduação pelas contribuições acadêmicas, especialmente, ao Prof. Dr. Damião pelo incentivo no início dessa caminhada.

Aos colegas de turma pelas discussões, mesmo que às vezes tão banais, principalmente a Gilmara, que se tornou uma amiga para vida toda; pessoa que dividiu comigo durante essa caminhada momentos de angústias e conflitos, mas também de os de alegrias e de lucidez.

Ao Carlos, Alzira, Tereza, Ceres, Vanessa e demais colegas dos projetos de pesquisa, com quem dividi dias e dias de viagens pelos assentamentos.

Aos trabalhadores Antônio, Neuza, Celso, Claudinéia, Dércio, Edinéia, Eleonora, Erondi, João, Valdir, José, Leonice, Lídio, Lucas, Lucio, Lurdes, Nair, Osmar, Tadeu, acampados e ex-acampados, por mim entrevistados. Agradeço pela possibilidade de pesquisa e pela disponibilidade em me atender. Carrego comigo o semblante, o tom de voz e os sonhos de cada um e espero ter conseguido textualizar um pouco disso.

À FUNDECT, pela concessão de bolsa para a pesquisa.

Ao Ronaldo, companheiro que soube compreender minhas ausências e surpreendeu-me na superação de seus pré-conceitos ao lançar-se comigo às visitas aos acampamentos. Ao Eduardo, filho querido, que espera ansioso a concretude desse trabalho.

À minha mãezinha Inês, pois, graças ao seu amor incondicional foi possível aflorar em mim a sensibilidade com que hoje vejo o mundo. E a toda minha família – pai, irmãos, sogra, sogro, minha cunhada Claudia – pelo apoio de sempre e, principalmente, pelos cuidados com meu anjo, Eduardo, quando estive ausente.

Sem vocês a vida não teria sentido...

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“Seria feliz se eu visse o Brasil cheio em seu tempo histórico de marchas, marcha dos que não tem escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem,

marcha dos que se recusam a uma obediência serviu, marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser. Eu acho, afinal de contas, que as marcha são

andarilhagem históricas pelo mundo e os sem-terras constituem pra mim hoje uma das expressões mais fortes da vida política e da vida cívica desse país. Por isso mesmo é que se fala contra eles, e até de gente que se pensou progressista, e que fala contra eles, contra os sem-terras, como se fossem uns desabusados, como se fossem uns destruidores da ordem. Não! Pelo contrário, o que eles estão é mais uma vez provando certas afirmações teóricas de analistas políticos, de que é preciso mesmo brigar para que se obtenha um mínimo de

transformação. [...] Como eu acredito em Deus, eu agradeço muito a Deus por estar vivo e poder ver e saber que os sem-terras marcham contra uma vontade reacionária histórica

implantada neste país. Meu apelo, quando eu termino sua primeira pergunta, meu desejo, meu sonho, é que outras marchas se instalem nesse país... eu acho que essas marchas nos

afirmam como gente, como sociedade querendo democratizar-se”. Paulo Freire

(áudio digitalizado, Instituto Paulo Freire)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13

CAPÍTULO I

A TERRA E OS SEM-TERRAS NO MATO GROSSO DO SUL: MIGRAÇÃO E TRABALHO. ...................................................................................................................... 30

1.1 Terra e (falta de) trabalho: a “sociedade descartável” .................................................. 31 1.2 Em busca de um lugar................................................................................................. 41 1.3 Um cenário anunciado: os brasiguaios e os atingidos por barragens............................ 47 1.4 A terra: reordenamentos em Mato Grosso do Sul ........................................................ 56

CAPÍTULO II MEDIAÇÃO E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA TERRA EM MATO GROSSO DO SUL .............................................................................................................. 64

2.1 Emergência dos Movimentos Sociais na agenda a Reforma Agrária............................ 65 2.2 Em cena a CPT, a FETAGRI, o MST e a CUT ........................................................... 67

2.2.1 Lançando as sementes: A CPT ............................................................................. 67 2.2.2 Novos mediadores: O MST, a FETAGRI e a CUT ............................................... 72

2.3 Acampamentos e Assentamentos, um panorama das conquistas. ................................. 80 2.3.1 Anos 1980: a luta marcada pela violência ............................................................. 80 2.3.2 A difícil luta pela terra entre 1990 e 1995 ............................................................. 90 2.3.3 Revigoramento: a luta pela terra a partir de 1996.................................................. 96

CAPÍTULO III

POR OUTRA HISTÓRIA: “É POR ISSO QUE A GENTE LUTA”................................... 104 3.1 Ser sem -terra: a adesão de trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra.. 105 3.2 (Des) socialização na luta por um pedaço de chão..................................................... 119 3.3 O sonho da terra prometida nas representações dos sem-terras .................................. 131

CAPÍTULO IV VIDA PROVISÓRIA, EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS.......... 135

4.1 Ocupação de terras: o preâmbulo em busca de um novo lugar ................................... 136 4.2 As dificuldades do cotidiano ..................................................................................... 156 4.3 Trabalho, organização e relações de poder nos acampamentos ................................. 179 4.4 A visibilidade das lonas pretas e a persistência da luta .............................................. 193

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 210 BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................... 215

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1981-1989 .............................................88

Figura 2: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1990-1995 .............................................91

Figura 3: Mapa das ocupações de terras em MS – 2000-2005...........................................98

Figura 4: Mapa acampamentos rurais existentes em MS - 2005........................................99

Figura 5: Chegada das famílias à fazenda Santo Antônio, em Itaquiraí, dia 08.05.1997.. 138

Figura 6: Visão geral do acampamento Oito de Março. Imagem veiculada na Revista Isso É em, 27.08.1997. .............................................................................................................139

Figura 7: Policiais no momento em que foram abordados pelos acampados do acampamento Oito de Março. ........................................................................................145

Figura 8: Primeiros barracos construídos no acampamento Oito de Março (1997). .........158

Figura 9: Mulheres do acampamento Oito de Março produzindo doce de vegetal encontrado na mata. .......................................................................................................160

Figura 10: Acampados do Oito de Março em dia de mobilização na estrada.. .................163

Figura 11: Dia de assembléia no acampamento Oito de Março.. .....................................165

Figura 12: Festa Junina no acampamento Oito de Março................................................167

Figura 13: Construção da escola no acampamento Oito de Março. .................................168

Figura 14: Acampados lavando roupas no rio. . ..............................................................172

Figura 15: Criança acampada em frente aos barracos do acampamento Oito de Março. ..173

Figura 16: Recuperação de Alimentos no acampamento Oito de Março..........................198

Figura 17: Acampado ferido em dia de mobilização.. .....................................................205

Figura 18: Mobilização do MNP na cidade de Campo Grande. Imagem veiculada no Jornal O Progresso, 28/29.03.1998...........................................................................................206

Figura 19: Mobilização dos acampados do Oito de Março na cidade de Itaquiraí..........2077

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1: MS: Pessoal ocupado no campo – população urbana e rural. .............................33

Tabela 2: Censos agropecuários de 1975, 1980, 1985 e 1995-1996 - MS..........................35

Tabela 3: Número de mobilizações do MST – Nacional ...................................................74

Tabela 4: Projetos de assentamentos em MS – 1984-1989................................................86

Tabela 5: Projetos de assentamentos em MS – 1990-1995................................................90

Tabela 6: Número de sem-terra presos e assassinados por conflitos agrários por estado....92

Tabela 7: Acampamentos/ocupações e número de famílias acampadas por mediadores 1996-2005........................................................................................................................97

Tabela 8: Projetos de assentamentos em MS – 1996-2005..............................................101

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LISTA DE ABREVIATURAS

CAND – Colônia Agrícola de Dourados CEBs – Comunidades Eclesiais de Base CEFF – Concessão de Terras na Faixa de Fronteiras CESP – Companhia Energética de São Paulo CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil COAAMS - Coordenação das Associações dos Assentados do Mato Grosso do Sul COAGRAN – Cooperativa dos Assentados da Grande Dourados COARJ – Cooperativa dos Assentados da Região de Jardim CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CPT – Comissão Pastoral da Terra CUT – Central Única dos Trabalhadores CUT/MS – Central Única dos Trabalhadores no Mato Grosso do Sul DETR – Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais DOF – Departamento de Operações de Fronteira DTR – Departamento do Trabalhador Rural FAF/MS – Federação da Agricultura Familiar do Mato Grosso do Sul FAO – Organização das Nações Unidas para a Agricultura FETAGRI – Federação dos Trabalhadores na Agricultura FETAGRI/MS – Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul FUNDECT/MS – Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDATERRA – Instituto de Desenvolvimento Agrário, Assistência Técnica e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MNP/MS – Movimento Nacional dos Produtores de Mato Grosso do Sul MS – Mato Grosso do Sul MST – Movimento dos Trabalhadores Sem Terra NOB – Estrada de Ferro Noroeste do Brasil PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro PNRA – Plano Nacional de Reforma Agrária PROCERA – Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária PRRA – Plano Regional de Reforma Agrária PSDB – Partido da Social-Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores SOMECO – Sociedade de Melhoramento e Colonização SSP – Secretaria de Segurança Pública STF – Supremo Tribunal Federal STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais SUS – Sistema Único de Saúde TERRASUL – Departamento de Terras e Colonização de Mato Grosso do Sul UDR – União Democrática Ruralista UEMS – Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul UFGD – Universidade Federal da Grande Dourados

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INTRODUÇÃO

É sempre gostoso a gente poder estar lendo, relembrando, alguma coisa. Então, esse papel de vocês dentro do assentamento, ele é muito importante, porque vocês estão resgatando a nossa história e com isso a gente não perde de vista a nossa história. Você pode ver que na maioria das vezes você pergunta a gente pensa antes de fala. Por quê? Porque a história já tá sendo esquecida. E uma das coisas que a gente não pode esquecer nunca, é a nossa história, principalmente o período de acampamento, que aquele foi doído (POLACO, Entrevista, 10.10.2005).

Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas uma forma de interpretar o presente. Ao descobrir a relação entre o ontem e o hoje, creio poder decifrar a ordem possível do mundo, imaginária, porventura, mas indispensável à minha própria sobrevivência, para não me diluir a mim mesmo no caos de um mundo fenomenal, sem referências nem sentido (MATTOSO, 1988, p.22).

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O objetivo principal desse trabalho de pesquisa é compreender o processo de

luta que antecede aos assentamentos rurais, numa análise que transcenda as posições

ideológicas dos mediadores da luta pela terra e tenha o olhar voltado ao sujeito que a

vivencia e a personifica. Assim, algumas questões foram postas de forma a nortear o

estudo da luta por um pedaço de chão e a sua forma estrutural e variada presente às

margens das rodovias sul mato-grossenses. Quem são os sujeitos da luta pela terra? Quais

as relações de trabalho e vida mantidas por esses sujeitos no período que antecede a luta?

Como vivem esses sujeitos no espaço do acampamento? O que se renova e o que se

mantém durante esse processo histórico? Ao longo da pesquisa, foi possível perceber que

essas questões só poderiam ser respondidas a partir da compreensão de outras, tais como:

Como são formados os acampamentos? Quem são seus idealizadores e qual papel

desempenham nesse processo? Quais são as estratégias de luta e sobrevivência? Quais as

relações de poder ali impostas? De onde vêm esses sujeitos e para onde vão?

Assim, para que fosse possível fazer o registro dessa história, foi necessário

estabelecer parâmetros de ordem prática, como recortes e delimitações. Embora todo ato de

selecionar carregue certa arbitrariedade, esse estágio foi precedido por um levantamento de

dados e documentações disponíveis e acessíveis no INCRA (Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária), jurisdição de Dourados e Campo Grande, e em visitas às

secretarias estaduais do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), da FETAGRI

(Federação dos Trabalhadores na Agricultura), do DETR/CUT (Departamento Estadual do

Trabalhador Rural da Central Única dos Trabalhadores), assim como a sindicatos

municipais. Esse levantamento teve como propósito um conhecimento geral da luta pela

terra no estado de Mato Grosso do Sul, de forma a conduzir às delimitações do tempo e do

espaço da pesquisa.

A partir dos dados coletados junto ao INCRA, da leitura de outros trabalhos,

como SOUZA (1992); FABRINI (1995); FARIAS (1997 e 2002); MENEGATI (2003);

ALMEIDA (2003), e do conhecimento empírico sobre as questões da luta pela terra em

Mato Grosso do Sul, constatou-se que o extremo sul do estado, entre a divisa com o estado

do Paraná e a fronteira com o Paraguai, região também conhecida como cone-sul, mantêm

certa tradição em relação às mobilizações de luta pela terra. O município de Itaquiraí e

municípios vizinhos concentram grande número de acampamentos e assentamentos, como

se pode constatar pelas figuras de um a quatro, no decorrer do texto. Itaquiraí, por

exemplo, possuía até o ano de 2005, oito assentamentos e 1700 famílias assentadas, o que

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representava mais de 10% das 16 mil famílias assentadas em todo o estado1 e, se

considerada uma média de quatro pessoas por famílias, os assentados representavam cerca

de 38% da população municipal, que era de 17.449 habitantes2.

A região está localizada entre a divisa com o oeste do estado do Paraná e a

fronteira com o Paraguai e apresenta características peculiares, como a questão dos povos

ribeirinhos atingidos por barragens, a presença de brasiguaios e de imigrantes paraguaios.

Deste modo, as especificidades fronteiriças dessa região são compreendidas a partir da

definição e da problematização proposta por Buordieu (1989). A definição do conceito de

fronteira é discutida por diversos campos de estudos e quase sempre apresentada como um

espaço dispersamente habitado, um sistema estrutural fraco, um espaço de banditismo e

lugar de forasteiro. Nesta pesquisa, no entanto, a fronteira é reconhecidamente um espaço

de conflitos e que “nunca é mais do que produto de uma divisão” (1989, p. 114), ela

produz as diferenças culturais ao mesmo tempo em que é fruto dela, assim a fronteira esta

relacionada ao produto de uma divisão arbitrária, que quando criada faz parte do real.

A partir das informações levantadas, tendo-se em vista a problemática

previamente pensada e as limitações temporais e humanas impostas, optei, então, por

analisar três acampamentos, envolvendo os diferentes mediadores que mais atuam no

estado (MST, FETAGRI e CUT), situados nos municípios de Itaquiraí, Eldorado e Mundo

Novo.

Dos inúmeros acampamentos listados nesses municípios, optei delimitar os

grupos para estudo com a maior diversidade possível, contemplando situações que não

restringissem a análise a determinados aspectos. Assim, entendi ser necessário envolver na

pesquisa acampamentos que movimentaram um número grande de pessoas, mas também

pequenas organizações; mobilizações que tiveram famílias assentadas e outras que ainda

aguardam por uma definição. Desta forma, os acampamentos selecionados foram:

Acampamento Oito de Março, acampamento Laguna Peru e acampamento Mambaré.

Acampamento Oito de Março – foi organizado pelo MST e ficou conhecido

como o maior acampamento do Brasil. Originou-se de uma ocupação que ocorreu na

manhã do dia oito de março de 1997, na fazenda Santo Antônio, de 25.560 mil ha, de

propriedade de grupo Bertin, com sede em Lins/SP e localizada no município de Itaquiraí, 1 O Chefe da Divisão do Assentamento do INCRA afirmou, em Seminário realizado em Três Lagoas (fevereiro de 2002), que: “O INCRA não tem estrutura para fazer Reforma Agrária em todo lugar, ele é muito pequeno no Estado. Aonde nós vamos então? Onde a pressão é maior. Nós temos áreas de conflito como no sul do Estado, na região de Itaquiraí, Eldorado, Iguatemi, em que os movimentos sociais como o MST, CUT e FETAGRI são fortes e estão lá com milhares de famílias e têm conflitos sociais por terra, envolvendo índios, posseiros, trabalhadores rurais” (Apud, ALMEIDA, 2003, p. 125). 2 Dados do IGBE, população municipal estimada em 01.07.2005.

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rodovia BR-487, a qual se destinava à criação de gado de corte para abastecer frigoríficos

do Grupo. Inicialmente o grupo acampou dentro da fazenda, de onde foram despejados e

montaram acampamento na BR-163, estrada que liga o município de Itaquiraí a Naviraí. O

acampamento chegou a abranger mais de duas mil famílias, ultrapassando sete mil pessoas,

que vieram, sobretudo, das cidades de Juti, Caarapó, Naviraí, Itaquiraí, Eldorado, Iguatemi,

Mundo Novo, Japorã, Dourados, brasiguaios e algumas do estado do Paraná. Deste

acampamento foram assentadas cerca de 1000 famílias em nove assentamentos diferentes,

localizados nas cidades do sul do Estado.

No ato da pesquisa, entre 2005 e 2006, ainda existiam cerca de trinta famílias

remanescentes do acampamento Oito de Março vivendo às margens da BR-487, em local

próximo ao do acampamento inicial, mas haviam agregado novas famílias e estavam sob

nova denominação. Essas famílias, no entanto, foram assentadas em julho de 2007 na

fazenda Santo Antônio, que foi desmembrada em 1600 lotes de terras para projeto de

reforma agrária, após dez anos de luta, para atender aos trabalhadores de diversos grupos

mediadores que já se encontravam acampados naquele espaço.

Acampamento Laguna Peru – organizado pela CUT/FETAGRI. O

acampamento foi montado no dia três de março de 1998, na fazenda Laguna Peru, BR-163,

estrada que liga o município de Eldorado a Itaquiraí. A fazenda de aproximadamente 2.700

ha era destinada à criação de gado e foi ocupada por cerca de 100 famílias. O

acampamento foi articulado pelas lideranças sindicais do município de Eldorado e teve sua

mediação alternada entre a CUT e a FETAGRI. No ato da pesquisa (2006) o acampamento

estava composto por 38 famílias, a maioria do município de Eldorado, mas também

algumas oriundas do estado do Paraná. Passados oito anos de luta, nenhuma família havia

sido assentada e não havia mais perspectiva de desapropriação da área, as famílias que

resistiram permaneciam na expectativa de remoção para outras áreas.

Acampamento Mambaré – foi articulado pelas lideranças sindicais

municipais de Mundo Novo e recebeu apoio da FETAGRI. A primeira ocupação da

fazenda Manbaré3, localizada no município de Mundo Novo, BR-163, estrada que liga

Mundo Novo ao município de Guaíra no Paraná, ocorreu no dia 28 de março de 1999. A

primeira ocupação concretizou-se com 26 famílias, mas o acampamento chegou a contar

com 143, oriundas, em sua maioria, do município de Mundo Novo e brasiguaias. A

desapropriação da fazenda Mambaré, que também se destinava à criação de gado de corte, 3 A fazenda conhecida como fazenda Mambaré tinha como referência também o nome de Pouso Alegre. Para denominar o acampamento uso apenas a denominação Mambaré como se acostumou chamar. Quando assentados, porém, a denominação é alterada para assentamento Pedro Ramalho.

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foi confirmada pelo INCRA pela portaria 28 de 26.09.2000, no entanto, devido aos

recursos judiciais, o lote só foi entregue às famílias no ano de 2003. Assim, o

acampamento manteve-se por quatro anos à margem da BR-163. Na área de 1.948 ha

foram assentadas 78 famílias.

Entre os trabalhos acadêmicos voltados às questões agrárias, poucos estudos

estão direcionados ao processo de luta pela terra e à vida dos acampados nos barracos de

lona à margem das rodovias. Foi com o intuito de conhecer e entender melhor esse

processo, tomando como referência essas três mobilizações, que essa dissertação foi

pensada e desenvolvida. Assim, pode-se dizer que essa pesquisa não se configura como um

estudo da questão agrária, mas sim, como uma “compreensão da questão agrária enquanto

questão social”.

Além da pesquisa específica para esse fim (que será explicitada a seguir), há de

se ressaltar também a experiência vivenciada na participação como colaboradora em

alguns projetos de pesquisa desenvolvidos em conjunto pela UFGD (Universidade Federal

de Grande Dourados) e UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul), são eles:

Vida de mulheres em assentamentos de reforma agrária no município de Itaquiraí-MS

(Fundect, 2005-2007) e Assentamentos rurais no sul de Mato Grosso do Sul: estudos

econômicos e sociais das mudanças no meio rural (CNPq, 2005-2007). Essa colaboração

me proporcionou maior contato com as realidades desses grupos. A visita a vários

assentamentos do estado contribuiu para que, nos trabalhos de campo para a concretização

das pesquisas desses projetos, fosse possível a reflexão sobre minha própria problemática

e, ainda, tecer relações com sujeitos que, de alguma forma, contribuíram para a construção

de uma rede de informantes necessária à elaboração da pesquisa. Ressalta-se, ainda, neste

contexto, a contribuição, apoio e incentivo dos coordenadores dos projetos.

Muito embora não sejam os mediadores (MST, FETAGRI e CUT), enquanto

instituições, os objetos de pesquisa, foi necessário assinalar suas distinções, pois a

desconsideração dessas diferenças, poderia levar-me a erros grosseiros de interpretação

desse espaço/tempo de lutas. Entendi ser necessário também a apresentação de certas

contradições, paradoxos e mesmo contrariedades e arbitrariedades identificadas na atuação

desses mediadores. Muito embora seja solidária à causa desses sujeitos e reconhecendo que

a tentativa de uma objetividade plena e de uma imparcialidade positivista já esteja há

tempos superadas dentro das discussões historiográficas, acredito que uma visão míope,

apologética e descomprometida descaracterizaria qualquer pretensão de um trabalho

acadêmico que vislumbre alguma objetividade histórica.

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O trabalho historiográfico, que buscou “não deixar que essa história seja

esquecida”, pode ser identificado em abordagens ou temáticas que suscitam dois grandes

debates acadêmicos, entre outros presentes na atualidade: a história oral, termo que aqui

será substituído por fontes orais e a História do tempo presente, ou melhor, a análise de

acontecimentos recentes ou ainda em curso.

A história hoje abre-se como um leque inesgotável de possibilidades de

pesquisas. Novas questões, novos objetos, novas discussões vêm sendo propostas nas

últimas décadas, isso relaciona-se a “uma nova postura diante da história, um outro olhar

que interroga o passado a partir de pressupostos que constroem também novos objetos e

formulam novas questões” (PESAVENTO, 2004, p. 7), o que requer novos métodos e que,

conseqüentemente, embalam novos embates teóricos.

Essa “nova postura diante da história” abriu caminhos para construção de

“outras histórias”, entre elas as “histórias de pessoas comuns”, como denomina Hobsbawn,

e a uma análise voltada para as histórias do cotidiano. Segundo Matos:

[...] o renascer dos estudos do cotidiano se encontra vinculado a uma redefinição do político, frente ao deslocamento do campo do poder das instituições públicas e do Estado para a esfera do privado e do cotidiano, com uma politização do dia-a-dia (2002, p. 22).

Essa história renovada e aberta a novos olhares pode ser entendida como um

processo de amadurecimento do olhar e da sensibilidade do pesquisador. Para Chartier, as

mutações do trabalho histórico, nos últimos anos, estão ligadas a distância tomada nas

práticas de pesquisa e aos princípios de inteligibilidade que governavam o método

histórico: o projeto de uma história global, aos moldes do estruturalismo de Braudel; a

definição territorial dos objetos de pesquisa, influência recebida da escola de geografia

humana; e a primazia dada ao recorte social, esborraram-se progressivamente “deixando o

campo livre a uma pluralidade de abordagens e de compressões.” (2002, p. 65-66).

Esses embates teóricos (questões relativas às fontes orais e ao trabalho com um

tempo histórico recente), no entanto, parecem amenizar-se diante da epígrafe de Matoso. O

que é a História? “Para mim, portanto, a História não é a comemoração do passado, mas

uma forma de interpretar o presente”.

Como trata-se de processos efêmeros, dos quais raramente se encontra registros

escritos, as principais fontes utilizadas para a apreensão de informações, que levou a

construção da história desses grupos, foram às fontes orais associadas às fontes

iconográficas, dados estatísticos, pesquisa em arquivos e a apreensão pela observação. A

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memória desses indivíduos, exteriorizadas através de relatos orais, uma vez conjugadas

com outras fontes e registros históricos, foi indispensável para a análise desse processo.

Em face ao assunto pesquisado e a problemática proposta, qual seja, o

cotidiano nos acampamentos rurais de sem-terra, suas estratégias de sobrevivência,

sociabilidades internas, suas experiências, percepções e valores, fez-se necessário um

trabalho de campo e a elaboração de fontes através de um conjunto de entrevistas. Nesse

sentido, o ato de relembrar e rememorar, seguido de uma posterior compreensão de seus

significados, sistematização dos dados e articulação com o contexto e conjuntura histórica,

aspectos que se referem ao tratamento metodológico do historiador no seu ofício de

interpretação, fazem dos relatos orais uma fonte viável de pesquisa.

A responsabilidade em não deixar com que essa história de lutas se perca no

tempo e no espaço (como na fala em epígrafe) fez com que fosse necessário pensar e

repensar o papel do historiar diante de seu objeto e no trabalho com as fontes, visto que

“pessoas não são papéis”, mas sim, sujeitos de carne e osso, que além de merecer cuidado

e respeito específico, são possuidores de uma fonte de pesquisa viva e seletiva.

Segundo Janaina Amado, a maioria dos entrevistados concorda em conceder

entrevistas pela oportunidade de ter sua história registrada e difundida em outros círculos.

A negação desse aspecto é reveladora de um sentimento paternalista. Longe de demonstrar

respeito, essa preocupação social revela uma postura de desvalorização e desprezo para

com o outro, pois desconsidera a capacidade dos sujeitos excluídos socialmente em

construir e executar projetos pessoais (1997, p. 153-154).

Esses aspectos ficam evidentes na fala de Polaco (em epígrafe). Há da parte

dele a preocupação em registrar sua história de lutas e de sofrimentos, destacando a

importância do trabalho de pesquisa para não deixar que suas histórias caiam no

esquecimento. Talvez essa seja a essência do trabalho historiográfico e o que produz

sentido ao ofício do historiador. Por meio da história de pessoas comuns, parafraseando

Matoso, é possível desvendar relações humanas numa conexão entre o ontem e o hoje, e

assim poder decifrar a ordem possível do mundo, sem se diluir num mundo fenomenal e

sem sentido (1988, p. 22).

Não se trata, no entanto, em dar voz a sujeitos, mas sim de oferecer-lhes a

oportunidade de falar e ser ouvido, de forma que suas histórias possam ser levadas a outros

círculos; sem, contudo, aniquilar o papel do pesquisador e suas responsabilidades na tarefa

de historicisar, sistematizar, analisar e interpretar as rememorações que ouve e,

conseqüentemente, arcar com os possíveis equívocos que essa tarefa pode trazer. Como

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Martins, acredito que “o oprimido pode ser a voz dele mesmo. É só a gente ficar atento

para ouvi-la e atendê-la. Acho que essa é a questão básica” (1991, p. 157).

O trabalho com fontes orais no Brasil marca uma oposição à “historiografia

‘tradicional’ brasileira que, sempre partiu do geral, amplo, nacional, sem nunca ter chegado

ao mínimo, ao específico, ao local”. Partindo da perspectiva de Meihy de que a história

oral brasileira nasceu “com o destino de ser uma voz diferente”, (2000, p. 94-95, aspas no

original), faço uso dessa fonte de forma tão relevante quanto as fontes documentais

escritas, visto que, “se a memória é socialmente construída, a documentação também o é”.

Deve-se, então, realizar a crítica a todo tipo de fonte, o que prevalece é a postura ética do

pesquisador, quer seja diante das fontes orais ou das fontes escritas (POLLAK, 1992, p.

207).

Há que se ressaltar, no entanto, que os “riscos da inocência”4 são muitos e

nocivos, mas não intrínsecos ou irremediáveis. A prática de participação na produção das

fontes com as quais o pesquisador vai trabalhar requer um cuidado epistemológico

constante, devendo-se atentar às diferentes formas de narração, ao indizível5, aos discursos

pré-construídos, estar consciente da não unificação entre o vivido e o narrado, cabendo ao

pesquisador a interpretação desse processo.

Nesse sentido, tomando os cuidados devidos, as fontes orais podem representar

um rico campo de análise de acontecimentos recentes. Esses dois campos, metodológico e

temporal, põem-se como desafios ao trabalho historiográfico, visto que o historiador situa-

se como pesquisador e espectador ao mesmo tempo, o que pode dificultar uma tentativa de

objetivação na análise. Segundo Borges, a objetivação, dentro desse contexto, é uma tarefa

árdua, “pois objetividade e subjetividade são as interfaces do mesmo processo” (2004, p.

37).

O fato de estar consciente de que “pessoas não são papeis” e que essas, muitas

vezes, reconhecem-se como sujeitos da história quando são incitadas a falar de suas

experiências de vida e de luta e somando-se, ainda, a clareza com que muitos se mostram

interessados pelos resultados desse levantamento histórico, gera uma dualidade de

sentimentos no pesquisador; por um lado, a satisfação humana de poder contribuir para a

discussão de um problema social que afeta diretamente milhares de brasileiros, por outro, a

certeza de que o comprometimento com a forma acadêmica de produção pode não atender

4 Tema de artigo discutido por Hall, 1992, p. 157. 5 PEREIRA de QUEIROZ, 1988.

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às expectativas imediatas dos grupos estudados. Nesse sentido, são importantes as

considerações de Bourdieu:

Pode-se dizer então que o pesquisador não tem qualquer possibilidade de estar verdadeiramente à altura de seu objeto a não ser que ele possua a respeito um imenso saber, adquirido talvez ao longo de uma vida de pesquisa e também, mais diretamente durante entrevistas anteriores com o próprio entrevistado ou com informantes (BOURDIEU apud ALMEIDA, 2003, p. 30).

A contemporaneidade do pesquisador com seu tema de trabalho tráz

dificuldades em relação à sua aproximação com o acontecimento, pois o sujeito pode

acabar por se influenciar, deixando-se condicionar pelas circunstâncias. Porém, como

coloca Chauveau e Tétard, a disciplina problematiza a relação entre o historiador, seu

tempo e seu tema, mas qualquer posição estaria incompleta se desconsiderasse o

historiador, a história e a sociedade (1999, p. 35).

Quero com isso dizer que só me atrai, no passado, aquilo que me permite compreender e viver o presente. O que acontece, é que, para o compreender, não me basta conhecer uma pequena parcela, tenho de o conhecer todo, não, obviamente, em todos os pormenores, mas como uma totalidade na qual tenho que me inserir (MATTOSO, 1988, p. 21-22).

O estudo de acontecimentos recentes ou em curso é percebido aos olhos de

muitos como não pertencente ao campo da disciplina Histórica, reservando a história de

acontecimentos recentes e, portanto, não finalizados, a outras disciplinas ou profissionais,

como aos jornalistas, politólogos, sociólogos, antropólogos, entre outros. Entendo, no

entanto, que o que caracteriza um trabalho histórico são métodos e teorias próprios, pois “a

história não é somente o estudo do passado, ela também pode ser, com um menor recuo e

métodos particulares, o estudo do presente” (CHAUVEAU, TÉTARD, 1999, p. 15).

O que não se pode negar, no entanto, em especial nesta pesquisa, foi a

contribuição de conceitos tradicionalmente utilizados por outras áreas de conhecimento,

como a noção de identidades e representações utilizados pela sociologia, além da

recorrente utilização de reflexões do sociólogo José de Souza Martins. O trabalho é

tributário também da análise de práticas cotidianas que se aproxima, por maneira, de

reflexões antropológicas e das noções e definições de espaço tradicionalmente utilizados

pela geografia. Essa interdisciplinaridade necessária elimina qualquer pretensão

historiográfica de uma determinação epistemológica pura e contribui à desmistificação de

uma disciplinaridade rígida no ensino e pesquisa.

Outro recurso utilizado nessa dissertação, sobretudo no terceiro e quarto

capítulo, é a narrativa histórica, uma forma de escrita historiográfica com forte inspiração

literária, não só na forma de construção textual, mas também na valoração dos

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acontecimentos. No final dos anos de 1970, o britânico Stone incitou uma discussão sobre

o “renascimento da narrativa” na escrita historiográfica, o que Burke veio melhor

denominar no início dos anos de 1990 de uma “regeneração da narrativa”. Para Burke “o

objetivo de buscarmos uma nova forma literária vem do fato de nós mesmos assumirmos

que as velhas formas já estão inadequadas ao nosso propósito” (1992, p. 335). O

historiador deve buscar alcançar uma síntese, quer seja em relação à narrativa/análise, quer

seja em saber estabelecer relações entre acontecimentos/estruturas.

Como trata-se de um fenômeno social novo (se for pensado em tempo

histórico) e presente no cenário nacional da atualidade, vê-se que esse assunto perpassa o

campo da história social, mas também, segundo Pesavento, o estudo historiográfico sobre

processos em curso, comparece, sobretudo, como forma de análise de movimentos sociais

a partir de uma abordagem cultural:

Questões relativas à força das imagens e dos discursos na composição de um imaginário mobilizador são fundamentais para que os pesquisadores se voltem pata tais processos em curso. Estes correspondem a uma espécie de laboratórios, ao vivo, da construção e da aplicabilidade das representações sociais que se apresentam aos olhos do historiador (PESAVENTO, 2004b, p. 94).

Assim, compreendo que a abordagem sobre o prisma de uma história social e

cultural se apresenta como eixo fundamental desse trabalho, mas não só, pois como coloca

Barros: “na verdade não existem acontecimentos que sejam exclusivamente econômicos,

políticos, sociais ou culturais, todas essas dimensões se integram ou, sequer, existem como

dimensões separadas” (2004, p. 15), principalmente se for pensado na perspectiva da luta

pela terra, acontecimento em que esses aspectos encontram-se imbricados.

Para discussões sobre aspectos culturais e suas formas de apropriação, faço uso

dos conceitos apresentados por Chartier. Segundo o autor, diferente do habitual, a cultura

deve ser pensada distanciando-se de idéias sociográficas, na qual as clivagens culturais

estariam organizadas, necessariamente, de acordo com um recorte social construído

previamente. As diferenciações culturais não estão divididas em uma grade única. Nos

movimentos sociais de luta pela terra há a necessidade de se pensar essa formação cultural

a partir dos objetos, das formas e dos códigos, como propõe Chartier, e não

necessariamente dos grupos. Os processos de mobilizações não podem ser pensados

ignorando-se a perspectiva do sentido que um texto, uma norma, os discursos mediadores,

os símbolos têm para os que deles se apropriam ou os recebem. Assim, esse historiador

propõe que passamos de uma história social da cultura, para uma história cultural do social

(2002, p. 68-69).

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Foi importante, também, a análise pelo prisma social e a apropriação dos

conceitos formulados por E. P. Thompson, tanto em seus estudos sobre a classe operária

inglesa, com a definição do conceito de “economia moral”, de “experiência” e de

“formação” social (1987); quanto na releitura que faz da economia como “motor da

história” (1981). A partir das considerações de Thompson, pode-se concluir que os

trabalhadores rurais sem-terra se formam social e culturalmente numa relação histórica. O

determinismo econômico perde sua razão de ser diante da aceitação da história construída

a partir da ação humana.

Os trabalhos de campo foram realizados com alguns critérios previamente

estabelecidos: entrevistar trabalhadores sem-terra acampados, algumas pessoas que

participaram da constituição do acampamento desde o início da ocupação da terra e

pessoas assentadas pelos processos de mobilização social e que passaram pela experiência

do acampamento; manter um equilíbrio na questão de gênero e entrevistar também

lideranças que participaram da articulação e organização dos acampamentos.

São ao todo vinte e cinco relatos, além de três entrevistas realizadas por grupo

de pesquisa sobre assentamentos, as quais não correspondem aos acampamentos analisados

mas revelam experiências significativas em relação às condições dos acampados. Os

relatos têm duração de trinta minutos a duas horas de gravação. Apesar de ter obtido

autorização para utilização das entrevistas, foi feita a opção por apresentar somente o

primeiro nome dos entrevistados ao longo do trabalho para preservar suas identidades.

Foi elaborado um roteiro de entrevista para ser utilizado como norteador dos

assuntos pesquisados, no entanto, as entrevistas foram conduzidas de forma com que o

entrevistado “deixasse a fala correr”, interferindo-se apenas quando se fazia necessário.

Entre os questionamentos priorizados estão um pouco da história de vida desses sujeitos,

como: onde nasceu (se é migrante), quais as experiências de vida e trabalho, questões

relacionadas com a decisão de acampar, vida no acampamento, sociabilidades internas,

sonhos, família...

Na textualização das falas foi mantida na escrita a forma como as palavras

foram expressas, suprimindo apenas algumas repetições, mas mantendo a construção da

oralidade, pois como coloca Souza, “a linguagem tem o potencial de revelar o sujeito em

toda sua força, com sua concepção de mundo, suas leituras, desvelando sua cultura” (1995,

p. 24). Assim, apenas alguns pequenos erros foram corrigidos, de forma a não dificultar a

compreensão do texto e ao mesmo tempo não retirar as características das falas.

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Não é, no entanto, uma tentativa de expressar na escrita toda a riqueza dos

relatos ouvidos, com todas as suas particularidades e distinções. O ato de transcrever, por

si só, submerge grande parte dessa riqueza; o tom de voz, silêncios, pausas, sorrisos são

complementos da oralidade, e que, muitas vezes, dão sentido a ela; os sotaques, por sua

vez, são a própria caracterização do sujeito. Esses são elementos, que embora não

presentes na textualização, tornam-se ponto de reflexão e análise no decorrer do trabalho.

Para sistematização das fontes orais coletadas, os relatos foram divididos por

fichas temáticas, de acordo com a problemática e seguindo a ordem proposta dos capítulos.

Durante o processo de reflexão e construção do texto, foi imprescindível a volta ao arquivo

oral e a minha própria memória, ao relembrar os rostos, as expressões e o tom de voz,

assim como a volta ao caderno de campo, em que foram anotadas conversas informais e

impressões do local, das condições de vida e dos entrevistados.

Os entrevistados, assim como os grupos como um todo, foram bastante

suscetíveis e dispostos em me atender. Nas entrevistas, as emoções, não raro, são expostas

pelos olhos cheios de lágrimas ao relembrar da ocupação, das dificuldades, dos

sofrimentos... As falhas de memória e os esquecimentos foram sempre notados, pois a

memória é seletiva e viva. Alguns discursos foram, às vezes, repetitivos ou contraditórios

em relação aos de outros entrevistados.

Além das entrevistas gravadas e transcritas, merecem destaque também as

conversas informais e as várias discussões que mantive com os grupos durante o período

da pesquisa. Em alguns momentos mantive-me no local sem uma lista de pessoas à

entrevistar, apenas para vivenciar o cotidiano daquele espaço. Nesses momentos, apesar de

ser bem recebida, pude verificar certo desconforto por parte dos acampados, que me viam

como um ser estranho naquele espaço. Minha intenção era acompanhar as atividades

cotidianas, mas minha presença parecia alterar as ações do dia-a-dia daquelas pessoas.

Ainda assim foram momentos ricos, dos quais pude tirar muitos elementos de análise.

Do acampamento Oito de Março, foram entrevistadas pessoas que ainda

estavam acampadas e também algumas que já haviam sido assentadas. A esse grupo fui

apresentada por representantes do MST que já conhecia de contatos anteriores, o que

facilitou minha inserção. Para conhecer a história do acampamento Mambaré pelos

acampados que vivenciaram-na, dirigi-me até o assentamento e, a partir de conversas

informais, selecionei para gravar entrevistas, algumas pessoas que participaram do

acampamento desde o começo. No acampamento Laguna Peru, iniciei meus contatos por

intermédio do sindicato, local em que fui sempre bem recebida e com as informações

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fornecidas pude compor uma rede de informantes que pudessem contribuir com a pesquisa.

Poucas pessoas desse acampamento puderam ser encontradas nos barracos e a busca por

informações e entrevistados ocorreu, também, na periferia da cidade de Eldorado.

Outra fonte utilizada no decorrer do trabalho foram os registros iconográficos

obtidos junto às famílias pesquisadas, nos STRs (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) e

algumas veiculadas na imprensa. Para a utilização dessas fontes parti da premissa de que

“Toda fotografia tem atrás de si uma história” (Kossoy, 2001, p. 45), de que ela é uma

representação de um determinado fragmento historiográfico, além de ser produto de uma

intenção (assim como outros documentos históricos). Ressalte-se que esses registros

também são priorizados pelos mediadores e pela imprensa, que geralmente fazem leituras

bastante distintas de uma mesma imagem gráfica.

É importante observar, no entanto, que as fotografias que integram essa

dissertação são majoritariamente do acampamento Oito de Março, isso ocorreu pois desse

acampamento foi conseguido um número maior de fotografias, com melhor qualidade de

imagem e com referências mais precisas. Muitas outras, embora não estejam expostas no

trabalho, contribuíram para produção da narrativa.

Foi utilizada, ainda, como fonte histórica, a pesquisa em periódicos. Como a

intenção do trabalho não era uma análise das várias posições jornalísticas de forma mais

ampla, decidi por recorrer às reportagens do jornal O Progresso, da década de 90 do século

XX, por ser um jornal que circula e está vinculado à região estudada.

A análise do trabalho realizado pela CUT no cotidiano dos acampamentos

rurais ficou um tanto prejudicada, pois além da pequena atuação dessa Central na região

analisada, o acampamento Laguna Peru, que em momentos iniciais de levantamento da

pesquisa era coordenado pela CUT, passou a ser coordenado pela FETAGRI, e poucas

famílias que participaram desde o período de ocupação puderam ser contatadas, tendo em

vista que o acampamento existiu por quase oito anos e muitas famílias entraram e saíram

da área durante período.

Os sujeitos da pesquisa:

A compreensão da questão agrária enquanto questão social, ou a compreensão das implicações sociais da questão agrária, depende de que se compreenda, também, a gênese do sujeito social que a personifica e vivencia (MARTINS, 2003, p. 11).

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Os trabalhadores aqui analisados são sujeitos com especificidades distintas,

alguns trabalhadores expropriados do campo, bóias-frias, diaristas, ex-arrendatários, ex-

assalariados (urbanos e rurais), filhos de pequenos proprietários, trabalhadores da

construção civil, empregadas domésticas, entre outros. O que caracteriza a condição dos

mesmos, na maioria dos casos, é o fato de terem um meio de vida marcado pela

informalidade, trabalhos eventuais, sem vínculo empregatício. Essas distinções conceituais,

no entanto, também apresentam semelhanças quanto a características que antecedem a

identificação enquanto ser sem-terra. Ambas as condições os fazem deliberadamente

pobres, sem terra, sem emprego, sem direitos de exercerem sua cidadania.

Muitos trazem consigo a tradição rural, alguns já de segunda geração, outros,

apresentam em sua práxis características tipicamente urbanas. A quase totalidade dos sem-

terras analisados são migrantes; homens e mulheres que vieram principalmente do estado

de São Paulo e do Nordeste brasileiro; brasiguaios que retornaram ao Brasil; alguns

ribeirinhos da margem do Rio Paraná, como também tornou-se visível dentre os

trabalhadores rurais sem-terra do sul de Mato Grosso do Sul, a grande quantidade de

sujeitos que tiveram experiência de trabalho no Paraná, paranaenses ou não, que se

direcionam ao estado de Mato Grosso do Sul a partir dos anos de 1990, especificamente

para se inserirem em movimentos sociais de luta pela terra.

O termo sem-terra, reconhecidamente genérico e abstrato, foi utilizado no

decorrer do texto por ser entendido como a melhor forma de designar categorias tão

variadas de reivindicantes da terra. Se possuem diferenças de categorias e até mesmo de

“propósito e necessidades” (como fala Martins 2003, p. 16), possuem em comum o fato de

não terem terra e de estarem lutando por ela, e por tanto, são essencialmente sem terra.

Faço uso, também, para designar os sujeitos que vivem sob o barraco de lona

na luta por um pedaço de chão, a designação de família (famílias assentadas, famílias

acampadas...) isso porque, ainda que o sujeito esteja sozinho sob o barraco e mesmo que

seja solteiro, sua vivência e sua luta não estão desassociadas da noção de rede de

parentesco. Existiram ao longo da pesquisa referências de uma luta voltada aos filhos que

hipoteticamente ainda virão, ou à necessidade de se manter perto da família.

A composição dessa dissertação foi pensada de forma a apresentar uma história

dos meandros do espaço/tempo do acampamento que não abdicasse do “movimento da

história6”, para uma melhor apresentação dos assuntos ela foi divida em quatro capítulos:

6 Expressão de Chalhoub, 1999, p. 18.

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No primeiro capítulo apresento as experiências de vida e de trabalho de sujeitos

que estão (ou estiveram) inseridos na luta por um pedaço de chão, enfocando as relações

que esses sujeitos traçaram com a terra ao longo de suas vidas, assim como processos de

exclusão, expropriação, exploração, desenraizamento e (falta de) trabalho.

O estado de Mato Grosso do Sul é marcado desde sua gênese por políticas

conservadoras, elitistas, baseada na concentração de renda e de terra, mas também por

contestações, reivindicações e resistências. Vê-se que a conjuntura histórica nacional

associada às especificidades regionais do sul de Mato Grosso do Sul engendraram um

processo de mobilizações sociais de lutas pela terra, que se inicia em fins da década dos

anos de 1970 e se estende e se fortalecem nos anos finais do século XX e início do século

XXI.

Através de entrevistas, levantamento histórico, bibliográfico e de dados

censitários, busquei fazer uma articulação com as experiências de vida, de trabalho e de

migração apresentadas por trabalhadores sem-terra acampados às margens das estradas, e

outros já assentados por processos de mobilização social, no extremo sul de Mato Grosso

do Sul, com o contexto histórico dessa região.

A partir do problema social evidenciado nas falas dos sem-terra, faço um

retorno útil à composição do espaço agrário sul-mato-grossense, ainda que de forma

concisa, enfatizando processos políticos, econômicos e sociais que atingiram mais

diretamente o espaço historicamente conhecido como extremo sul do antigo Mato Grosso.

O segundo capítulo foi construído a partir da compreensão de que a análise dos

sujeitos sociais envolvidos nos movimentos de luta pela terra de tempos recentes, depende

também que se compreenda a gênese desses conflitos sociais, o que busco fazer a partir da

emergência dos então chamados “novos movimentos sociais” de fins da década de 1970.

Assim, um breve histórico foi construído com algumas das características dos principais

mediadores da luta pela terra no Estado de Mato Grosso do Sul a FETAGRI, o MST e a

CUT. À CPT faço um retorno indispensável, ainda que conciso, por ter sido ela a

organização precursora, no estado, para o aflorar da luta pela terra.

A partir da análise de atuação dessas organizações, a próxima etapa foi a

historicização do processo de luta travado por trabalhadores sem-terra no estado de Mato

Grosso do Sul, desde suas primeiras manifestações de luta em fins da década de 1970 até

sua relevante expansão nos primeiros anos do século XXI.

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Neste capítulo faço uso de documentos dos próprios mediadores, documentos

do INCRA (Jurisdição de Dourados), entrevistas, em especial a dos três representantes dos

mediadores, dados e relatório elaborado pela CPT (1993).

No capítulo três analiso as experiências vivenciadas por trabalhadores sem-terra

ao aderirem aos movimentos sociais de luta pela terra e como esses sujeitos reconstroem,

ou não, nesse (não) espaço social o mundo de sociabilidades que é desestruturado com a

decisão de participar de uma ocupação de terra.

Foi importante, pensar, neste momento, como esses trabalhadores passaram a

idealizar uma (re) construção de suas histórias com a perspectiva da reforma agrária. O

objetivo foi entender como os sujeitos aderem à luta, de que forma assumem essa

identidade de sem-terra, o que relegam, na prática, para essa inserção e quais as

dificuldades encontradas.

Priorizei também, neste capítulo, demonstrar como as distintas concepções de

luta apresentadas pelos diferentes mediadores que atuam nesse processo de luta por um

pedaço de chão imprimem diferentes formas de organização, o que interfere diretamente na

vida dos sujeitos acampados, nas formas de sobrevivência e nas experiências cotidianas

vivenciadas nesse espaço.

Para tal análise faço uso de publicações, fotografias, reportagens, alguns

registros dos mediadores, mas principalmente das entrevistas feitas com trabalhadores

sem-terra, que são os sujeitos históricos desse processo.

O capítulo quatro concentra-se na narrativa do cotidiano dos acampamentos.

Entender os mecanismos de funcionamento, as estratégias de sobrevivência, as

experiências vivenciadas e as formas de luta travada por esses sujeitos para se manterem

nesse espaço/tempo são os principais objetivos. Trabalhei a experiência da vida sobre o

barraco desde o período da ocupação, as estruturas, organizações e estratégias de lutas

travadas por esses sujeitos, não só para chegarem à terra, mas também para se manterem

acampados.

O centro das discussões e da narrativa desse capítulo foi o acampamento Oito

de Março, uma vez que, dos três analisados, foi este o que apresentou maior número de

famílias, as quais foram assentadas em diferentes áreas. Tal situação gerou mais elementos

de análise e fontes acessíveis, contudo, esse estudo foi enriquecido com dados

evidenciados nos outros acampamentos e as especificidades existentes entre esses três

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casos analisados foram apresentadas sempre que necessário, muito embora o objetivo não

seja em apresentar um quadro comparativo.

Para a composição desse capítulo foram utilizadas entrevistas, fotografias e

reportagens de jornais, mas foram também indispensáveis os elementos aprendidos pela

observação.

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CAPITULO I:

A TERRA E OS SEM-TERRAS NO MATO GROSSO DO SUL: MIGRAÇÃO E TRABALHO.

Quando o capital se apropria da terra, esta se transforma em terra de negócio, em terra de exploração do trabalho alheio; quando o trabalhador se apossa da terra, ela se transforma em terra de trabalho. São regimes distintos de propriedade, em aberto conflito um com o outro. Quando o capitalista se apropria da terra, ele o faz com o intuito do lucro, direto ou indireto. Ou a terra serve para explorar o trabalho de quem não tem terra; ou a terra serve para ser vendida por alto preço a quem dela precisa para trabalhar e não a tem. (José de Souza Martins, 1991, p. 55)

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1.1 Terra e (falta de) trabalho: a “sociedade descartável”

Da primeira vez em que me assassinaram Perdi um jeito de sorrir que eu tinha... Depois, de cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha...

(Mário Quintana, Da Primeira Vez - parte)

O estado de Mato Grosso do Sul apresenta um grande contingente de

trabalhadores sem-terra acampados às margens das estradas, sob barracos de lona,

mantendo por vários anos os maiores índices de ocupações e pessoal acampado do país,

segundo dados da Ouvidoria Agrária Nacional. O elevado número de trabalhadores sem-

terra no estado está relacionado a vários fatores, entre eles, a migração de trabalhadores

pobres em busca de terra e/ou trabalho, a concentração agrária, a automação do trabalho

desenvolvido nas últimas décadas e as inúmeras políticas públicas de incentivo às

empresas rurais.

O problema da exclusão social vem se agravando nas últimas décadas, isso por

que o processo de inclusão é cada vez mais demorado. Em momentos históricos anteriores,

os camponeses eram excluídos da terra e logo absorvidos pela indústria, hoje, esse

processo é mais lento e os meios de inclusão, muitas vezes, ainda mais degradantes. O

processo de exclusão desenvolvido na sociedade moderna está gerando uma grande massa

de população sobrante, que tem poucas chances de ser reincluída de forma digna dentro

dos padrões atuais de desenvolvimento (MARTINS, 1997b, p. 32-33).

Os sujeitos sociais envolvidos nos processos de mobilizações sociais de luta

pela terra carregam consigo uma história de peregrinação, de buscas, de desencontros, de

faltas, de gostos e desgostos em suas relações com a terra, com as relações sociais nela

estabelecidas, com as relações de trabalho a qual foram submetidos ao longo da vida e,

sobretudo, pela falta de terra para trabalho.

Após um olhar mais acurado surge a indagação: quem são esses sujeitos? Vê-se

que são trabalhadores de alguma forma descartados das velhas relações de trabalho no

campo. Se esses trabalhadores possuem diferenças entre si, possuem também semelhanças,

entre elas a de estarem à margem da sociedade e de serem vítimas de processos de

desenraizamento e expulsão de trabalhadores da terra, o que tornou-se uma forma clássica

de exclusão dentro do sistema capitalista.

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Fruto de um processo histórico de longa data, a evidência da questão agrária

enquanto questão social passou por momentos de intensificação nas últimas décadas do

século XX, em virtude do processo de automação do trabalho no campo desencadeado a

partir de 1970 e intensificado na última década do século com a inserção da política

neoliberal. A mecanização e o desenvolvimento das técnicas e dos mecanismos de

produção no campo aceleraram o processo de movimento de êxodo rural desencadeado ao

longo dos anos de 1970 e que persistiu e intensificou-se até o final do século.

Essa política de desenvolvimento econômico no campo, que objetivava o

aumento da produção e da produtividade agrícola, extrativa e agroindustrial, iniciada

durante o período do regime militar, desencadeou um processo de exclusão do trabalhador

rural. Os efeitos do uso tecnológico em detrimento ao trabalho humano deram origem ao

que Martins denominou de uma “sociedade descartável”, um fenômeno que criou miséria,

marginalidade e fez emergir uma “nova desigualdade”7.

Os princípios de modernização do mundo rural foram plenamente assegurados

pelo Estatuto da Terra, promulgado em 1964, e outros decretos-leis promulgados para

regulamentar o trabalho no campo e a utilização das terras rurais, como a Lei n.5.889, de

1973 e a Lei n.6.019, de 1978. Entre outros aspectos, essas leis criadas durante o regime

militar, analisa Silva, buscaram assegurar o poder político dos proprietários rurais, conter a

organização política dos trabalhadores a despeito de evitar a constituição dessas classes

como força social. A substituição do termo “trabalhadores rurais” pelo de “empregados

rurais” apontava as deliberadas intenções de transformar o campo em grandes empresas

rurais, substituindo as velhas relações de trabalho nele estabelecido (1999, p. 65-66).

Isto não significa que o processo de dominação-exploração não tenha existido antes. O que ocorreu foi uma mudança nas relações sociais, no interior da dominação capitalista. Os antigos coronéis e fazendeiros foram substituídos pelos usineiros e fazendeiros via novos mediadores, sob a égide do Estado e dos aparatos jurídicos (SILVA, 1999, p. 18-19).

No então estado de Mato Grosso, a política de créditos agrícolas e incentivos

ficais acelerou o processo de consolidação do modelo desenvolvimentista baseado na

monocultura de soja e na criação de gado de corte. Com ainda grandes extensões de terras

cobertas por matas nativas, em idos dos anos de 1970, esse processo atraiu ao estado, tanto

capitalistas, que compravam vastas extensões de terras a baixo custo, quanto trabalhadores

rurais sem terra e descapitalizados.

7 Segundo Martins, todos estão de alguma forma inseridos no contexto social e econômico, mesmo que de forma precária, e esta inclusão precária gera uma nova desigualdade. Assunto tratado sobretudo em Travessias, 2003 e Exclusão Social e a Nova Desigualdade, 1997.

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A emergência de um padrão de ocupação de terras e formação de

estabelecimentos rurais, sobretudo a partir de 1970, mostra a forma com que o capital foi

encontrando seu espaço em terras sul-mato-grossenses, estruturando-se em unidades de

produção capitalista em prejuízo da forma camponesa de produção, que embora diminuta,

ainda permanece presente nos campos sul-mato-grossenses (QUEIROZ, 1998, p. 38-39).

Ao mesmo tempo em que essa modernização provocou um processo de atração

desses trabalhadores, ela ocasionou um posterior processo de exclusão, tendo em vista que

o trabalho braçal de abertura de fazendas, desmatamento e destocamento não é uma

atividade renovavel. Os trabalhadores foram desenraizados porque as grandes propriedades

necessitavam de mão-de-obra para a abertura das fazendas, atividade que se encerraria

dentro de quatro a cinco anos, causando um processo de exclusão social desse sujeito.

Atraídos pela possibilidade de trabalho, esses sujeitos eram excluídos tão logo

conseguissem formar as propriedades rurais.

De acordo com um estudo organizado por José Gaziano da Silva, o país perdeu

cerca de 1,6 milhões de empregos rurais entre 1990 e 2000, sendo a região centro-oeste a

que menos apresentou demanda pela força de trabalho agrícola no país, com sistema de

produção baseado em grandes propriedades e altos índices de mecanização. O estado de

Mato Grosso do Sul nesse período era responsável por “apenas 0,9% da demanda da força

de trabalho agrícola” nacional (2002, p. 10,30-31)

Entre os anos de 1975 e 1995/96, conforme dados do censo agropecuário, no

estado de Mato Grosso do Sul o número de trabalhadores empregados no campo foi

reduzido em mais de 50 mil, ao mesmo tempo em que a população total do Estado cresceu

em quase 600 mil habitantes, conforme tabela a seguir:

Tabela 1: MS: Pessoal ocupado no campo – população urbana e rural.

Pessoal ocupado 1975 1980 1985 1995-1996 Pessoal ocupado 257.132 230.983 253.993 202.709 Homens 180.135 178.323 193.702 156.019 Mulheres 76.997 52.660 60.291 46.690

População urbana e rural 1960 1980 1991 1996 Urbana 242.088 919.256 1.414,447 1.604,318 Rural 337.564 450.513 365.926 323.516 Total 579.652 1.369,769 1.780,373 1.927,834 Tabela I – Fontes: IBGE, Censos agropecuários e Censos demográficos

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Os dados coletados pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)

confirmam os relatos de experiências vividas por trabalhadores rurais inseridos em

mobilizações sociais no Estado. Percebe-se que os números apresentados pelos últimos

censos agropecuários não contradizem a situação vivenciada pelos trabalhadores rurais,

que passaram por processos de expropriação e de exclusão acentuados no período de

modernização conservadora, quando as grandes propriedades direcionaram sua produção à

monocultura de grãos para exportação, produção de cana-de-açúcar ou mesmo a criação de

gado de corte, atividades caracterizadas pela mecanização ou que requerem pouca mão-de-

obra.

Diante desse quadro, o contingente de trabalhadores rurais expropriados do

campo é submetido ao trabalho temporário, precário e sem nenhum direito trabalhista

(FARIAS, 2002, p. 37). Esses sujeitos, quando excluídos da terra para que o capital

pudesse dar à terra outro uso, são absorvidos por essa mesma sociedade de forma marginal,

instável e precária:

A sociedade capitalista desenraiza, exclui, para incluir, incluir de outro modo, segundo suas próprias regras, segundo sua própria lógica. O problema está justamente nesta inclusão (MARTINS, 1997b, p. 32-33). [Grifos no original].

A falta de trabalho, o trabalho marginal, a negação ao direito da cidadania, e

todas as imbricações dessas formas de inclusão cada vez mais precárias impostas pelo

sistema capitalista, são histórias recorrentes entre os protagonistas da luta pela reforma

agrária no estado de Mato Grosso do Sul. É o que expõe o relato do senhor Dércio, que

vive acampado a dez anos, e lembra que na chegada a Mato Grosso do Sul em busca de

uma vida mais tranqüila, quando já não conseguia mais trabalho no Paraná, deparou-se

com a mesma situação vivenciada na terra de origem: Aí nós veio aqui pro Mato Grosso, aí ficamos trabalhando por aí, trabalhei acho que sete anos, aí eu vi que não dava também pra sobreviver, sempre numa situação difícil, né? Você vai, trabalha, trabalha e não consegue nada, fica que nem ta acampado ou talvez até pior (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).

A precariedade do trabalho temporário faz com que esses sujeitos lutem,

cotidianamente, pela sobrevivência. Trabalhar incansavelmente e não conseguir nada, nem

o suficiente para o sustento familiar, causa dor, mágoa e ressentimentos. Ressentimentos

contra a sociedade, contra a vida, contra os patrões latifundiários.

A falta de trabalho no campo, local que garantiria o mínimo de condições de

sobrevivência aos trabalhadores rurais, é também expressão de uma modernização que

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priorizou a plantação de produtos como soja, milho e cana-de-açúcar e à criação de bois,

em detrimento dos produtos alimentícios.

A partir dos anos de 1970, a pecuária – uma das atividades econômicas do

Estado desde seu período colonial – fortaleceu-se com a instalação de empresas frigoríficas

na região, com o barateamento do transporte e com a possibilidade de preparo da carne

bovina para a exportação. Segundo os censos agropecuários, entre os anos de 1975 e 1995,

houve um aumento de mais de 120% no número de cabeças de gado, enquanto a área

destinada à pastagem subiu de pouco mais de cinco milhões de ha para mais de 15 milhões

de ha.

Em 1995, o Estado possuía 31 milhões de ha de área rural, dos quais apenas

1.383 milhão de ha (4,47%) era destinado à produção agrícola, e nestes, em sua maioria,

eram cultivados grãos para exportação, enquanto mais de 21 milhões de ha (70%) eram

ocupados com pastagens destinadas à criação de gado de corte9. O declínio da área

destinada à produção agrícola está relacionado a queda do número de pequenas

propriedades, o que trás como conseqüência a redução de culturas tradicionalmente

camponesas.

Tabela 2: Censos agropecuários de 1975, 1980, 1985 e 1995-1996 - MS

Condição do produtor, utilização das terras, e tratores 1975 1980 1985 1996

-1995 Estabelecimentos 57.853 47.943 54.631 49.423 Proprietário* 32.276 33.147 38.485 41.395 Arrendatário** 8.945 5.719 6.511 2.874 Parceiro*** 5.904 3.114 2.745 458 Ocupante**** 10.728 5.963 6.890 4.696 Lavoura Permanente (ha) 65.912 52.526 28.501 16.215 Lavoura temporária(ha) 1.208,715 1.589,475 1.847,459 1.367,496 Pastagem natural(ha) 15.580,241 12.266,007 9.658,224 6.082,778 Pastagem plantadas (ha) 5.213,256 9.068,931 12.144,529 15.727,930 Produtivas não utilizadas (ha) 1.063,020 839.809 583.530 403.943 Área total (ha) 28.692,584 30.743,739 31.108,815 30.942,772 Tratores 12.291 23.162 31.076 36.387 * próprias (inclusive por usufruto e foro) **arrendadas (mediante pagamento em quantia fixa em dinheiro ou cota-parte da produção)***parceiros (mediante pagamento de parte da produção obtida - meia, terça, quarta); **** ocupadas (ocupadas a título gratuito, com ou sem consentimento do proprietário). Tabela 2 – Fonte: IBGE, Censos Agropecuários.

9Segundo dados da Secretaria de Estado de Receita e Controle/MS a pecuária é responsável por apenas 8,6% do ICMS arrecadado no estado anualmente (ALMEIDA, 2003, p. 118).

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Pelos dados apresentados, vê-se que o número de estabelecimentos rurais caiu

de 57.853 mil para pouco mais de 49 mil entre os anos de 1975 a 1995, considerando,

ainda, que a área rural ocupada em 1975 era inferior à área ocupada em 1995. A análise

desses dados revela as dificuldades de manutenção e estruturação da pequena propriedade.

O avanço das empresas rurais subsidiadas por incentivos fiscais e financiamentos

governamentais dificultou a manutenção da vida como colono, cujo sistema de produção é

caracterizado por pouca ou nenhuma mecanização e baseado na mão-de-obra familiar.

Os relatos em que o “sitinho” da família já não podia sustentar a todos são

histórias comuns entre os trabalhadores rurais sem-terra. A falta de terras onde trabalhar

faz com que muitos trabalhadores do campo se dirijam às cidades ou aos trabalhos diários

em terras de terceiros. É o que se evidencia no relato do assentado Celso, que com a

pequena criação de gado que seu pai mantinha, não lhe restava trabalho no sítio, a

alternativa foi sair de casa para trabalhos diários e de empreitas em outras terras:

Trabalhava na lavora, né? De diarista. Roça a gente... O sitinho do meu pai era pequeno, e ele gostava de criar gado, aí não tinha nem aonde ou trabalhar. Então, meu negócio era sair pro... pegar empreita de rancar mandioca, esses coisas. Vivia assim, meio alongadão assim (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Viver “alongado” em terras de outrem era a forma do senhor Celso se sustentar

diante da dificuldade da família. A migração temporária é a saída encontrada por muitos

trabalhadores rurais quando a pequena propriedade já não consegue produzir o suficiente

para o sustento familiar. Segundo Martins, a migração temporária é muito comum entre

filhos de pequenos proprietários, arrendatários, posseiros ou parceiros, que aproveitam

períodos de entressafra em suas lavouras para trabalhar em culturas diferentes para outros

produtores (1986, p. 47-48).

Esse também é o caso do senhor Antônio, que com mais nove irmãos, sentiu a

dificuldade de subsidência nas terras arrendadas em que viveu com seus familiares por

dezoito anos:

Na região onde eu morava sempre fomos arrendatário, né? Sempre trabalhei com meu pai, minha mãe e os nove irmão meu. Aí foram casando eles e nós continuamos tocando arrendamento. Onde? Em Naviraí. Aí trabalhamos dezoito anos numa área lá. E depois... nós tocava roça e sobrava mão-de-obra, entendeu? Foi ficando ruim de serviço, ruim, ruim, e as vez tinha que andar quatro, cinco, km pra pegar uma diária de serviço na época (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

A falta de trabalho, que muitas vezes expulsa filhos de pequenos proprietários

da terra, também os obriga, em muitos casos, após o casamento, a permanecerem vivendo

como agregados no sítio dos pais, situação que logo se torna inviável, já que, com o

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nascimento dos netos, a renda da pequena propriedade se torna insuficiente para a

sobrevivência de todos. Essa é a situação apresentada no depoimento de dona Rosana, que

hoje é assentada, mas que após o casamento, viveu com seu esposo no sítio do pai e diante

das dificuldades financeiras, mudou-se com a família para as terras do sogro, onde

novamente passaram a viver de favores e com muita dificuldade:

Olha, eu e meu marido mesmo, não tínhamos renda nenhuma, e no caso era minha sogra que recebia o leite e daí ela que fazia compra, a gente tava assim... comendo lá... Que antes eu morava junto com meu pai, e meu pai também não tinha renda nenhuma, que ele mexia só com lavoura não tinha gado. Nós sofremos bastante, nós fomos assim, uma família muito humilde, com muita dificuldade, na casa do meu pai... (ROSANA, Entrevista, 10.10.2005).

O mesmo é evidenciado na fala de uma outra assentada, Leonice, que na

iminência de ter que deixar a casa dos pais, descarta a possibilidade de vida na cidade e

decide lutar por um pedaço de terra:

Meus pais era assentado na Gleba Nova Esperança, município de Jatei, perto de Novo Horizonte. Antes de eu entrá pra luta eu morava com meus pais lá. Aí eu vi que a terra não deu, que eu tava crescendo e precisava de terra e queira ou não, amanhã ou depois eu ia construir uma família, tinha que lutar por mim (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Os relatos de pobreza em que viviam na pequena propriedade dos pais, da

terras de arrendamento que estavam cada dia mais limitadas, e até mesmo da dificuldade

em encontrar trabalho diário em outras lavouras, são lembranças presentes na memória dos

sujeitos inseridos nos processos de mobilizações sociais. É sabido, no entanto, que não se

trata de casos isolados, mas que essa conjuntura faz parte de um processo histórico do qual

a força de trabalho humana fora substituída pela mecanização. Entre os anos de 1975 a

1995, o número de tratores dos campos sul-mato-grossenses subiu em quase 300% e eles,

segundo Queiroz, estavam concentrados em apenas 30% dos estabelecimentos rurais do

Estado (1998, p. 34).

Outros dados estatísticos permitem aferir tais situações. Com exceção dos

proprietários, todas as categorias de formas de apropriação da terra apresentam queda ao

longo dos anos; as terras para arrendamento e trabalho em regime de parceira são reduzidas

consideravelmente, assim como o número de trabalhadores empregados no campo. Essas

são realidades facilmente perceptíveis nas histórias de vida narradas por trabalhadores

acampados e trabalhadores rurais assentados por processos de mobilização social.

Dona Teresinha, que também vivenciou o processo de luta pela terra e hoje

encontra-se assentada, fala de como viveu a vida toda em terras arrendadas, mas que

chegou um momento em que “o pessoal não queria mais arrendar”. A perspectiva de

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permanência no campo foi sendo sorrateiramente destruída, uma vez que as pastagens se

formavam e a mecanização passou a possibilitar um aumento ainda maior da área cultivada

pelos grandes fazendeiros:

Nós trabalhávamos de arrendatário, era arrendatário, a gente arrendava um pedacinho de terra pra tocar. Né? Que sempre a gente gostou de lavoura, de roça, aí a gente foi trabalhando, trabalhando e chegou uma data que as crianças ficaram no ponto de estudar um estudo mais avançado, a gente não conseguiu mais morar no sítio também por falta de terra pra arrendar. O pessoal já não queria mais ta arrendando (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).

A falta de emprego no campo, associada à inexistência de pequenas

propriedades para arrendamento, forçou um processo de êxodo do campo para a cidade.

Em 1960, mais da metade da população do estado (58,24%) residia na zona rural, ao passo

que em três décadas e meia, essa população representa apenas 16,78%, contra 84,08% da

urbana (ver tabela 1). Esses números assumem dimensões ainda mais agravantes se

considerarmos que as últimas décadas do século XX foram momentos de extrema

seletividade do mercado de trabalho, especialmente os anos de 1990, com a inserção

política neoliberal e uma maior automação do trabalho.

A dificuldade em ter que viver na cidade sendo “bicho do mato” (na expressão

do senhor Antônio, um desses personagens) fez com que muitos desses sujeitos se

submetessem ao trabalho esporádico nas zonas rurais (bóias-frias), tarefa caracterizada

pela exploração do trabalho, sem nenhum vínculo empregatício e direitos trabalhistas.

Dona Teresinha fala das dificuldades que passou com a família ao se mudar para a cidade,

quando não mais conseguiram terras para arrendamento:

A gente passou a... mudou pra cidade. Aí fomos trabalhar em serraria, de serraria meu esposo arrumou um serviço na cidade, e eu sempre trabalhei de doméstica, depois de doméstica trabalhei num clube de danças. [...] e meu esposo sempre desempregado, porque ele não tem nenhum grau de escolaridade, ele mal assina o nome dele. Não tem estudo e foi difícil o serviço pra ele. Enquanto tinha serviço de serraria, essas coisas, tinha até emprego pra ele, depois passou a viver de bóia-fria. Aí, trabalhava um dia, passava uma semana sem trabalhar, o dia que chovia não tinha serviço. E aí a vida foi ficando cada vez mais complicada (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).

O aumento do êxodo rural para as cidades é expressão de um processo de

expropriação vivido por esses sujeitos, que, expulsos do campo, passam a exercer as mais

degradantes tarefas. Diante da situação à qual estão expostos nas cidades, esses sujeitos são

facilmente aliciados a exercerem trabalhos caracterizados pela precarização e degradação

do homem, entre elas, atividades em serrarias, usinas e carvoarias.

O campo foi o lugar em que muitos trabalharam grande parte da vida, muitas

vezes reproduzindo a vida e os valores camponeses herdados dos pais. Trata-se do espaço

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em que aprenderam a viver e a trabalhar e que, em decorrência de processos alheios as suas

vontades, são obrigados a deixar:

[...] Resta-lhes a cidade, lugar que não tem a sua marca, não trás suas histórias de vida, cujo espaço não foi por eles e nem para eles construído. Resta-lhes, também, a força de trabalho, acompanhada, porém, de uma inexperiência que muitas vezes leva-os a executar tarefas “sobrantes”. São sobrantes neste sistema capitalista, que vai acumulando tudo, destruindo a vida, alastrando a fome e a miséria (FARIAS, 1997, p. 100) [Aspas no original].

Dona Lurdes, que a oito anos vê o marido na espera por um lote de terras, fala

ressentida de como gostaria de que essas terras já tivessem saído para poder levar o filho

para o campo. Dona Lurdes conta que criou os filhos na roça, trabalhavam de arrendatários

em Naviraí, quando já não conseguiram mais arrendar terras para trabalhar, o esposo

passou a cultivar lavoura em uma ilha do rio Paraná, de onde saiu para acampar. Eu fui criada na fazenda, criei meus filho até uns bons anos na fazenda, longe das violência, né? Até poco que eu tinha meu rapaz solteiro que tava dentro de casa aí, eu tinha muuuita vontade que saísse essas terras, mais rápido, ligero possível, menina, pra nois i embora pro sítio [...] Criei meus filho no sítio. Arrendamento. Nos moremo em Naviraí, num arrendamento do japonês, lá. Era muito bom. A gente trabalhava pro outros mais tinha sempre feijão, arroz... (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

O que se pode inferir das entrevistas coletadas é o medo em relação aos riscos

que a cidade oferece, como por exemplo, as drogas, a bebida e o aliciamento à

marginalidade. São sentimentos que se misturam ao desejo de educação escolar para os

filhos, o qual se torna ainda mais difícil na zona rural. Para aquele sujeito que não tem

mais possibilidade de trabalho no campo, resta-lhe não a cidade como um todo, mas a

periferia dela, as favelas, os subúrbios.

O processo de êxodo rural marca também a formação, no estado de Mato

Grosso do Sul, de um contingente de trabalhadores que, sem alternativa de emprego,

passaram a efetuar trabalhos diários e temporários em fazendas, sem vínculo empregatício,

os chamados bóias-frias. Segundo Silva, essa categoria de trabalhadores teve sua gênese na

década de 1970, especialmente a partir da Lei nº 6.019, de 1978, que legitimou a definição

de empregado rural e definiu como trabalho eventual, sem nenhum direito trabalhista,

aquele com duração de menos de 90 dias:

Surge o "bóia-fria", trabalhador volante, eventual, banido da legislação. O "bóia-fria" é duplamente negado, enquanto trabalhador permanente e enquanto possuidor de direitos. Negam-lhe até o direito de ser trabalhador. Imprimem-lhe a nominação de "bóia-fria", sentida como vergonha, humilhação, tal como as frases em epígrafe demonstram. Arrancam-lhe não só a roça, os animais, os instrumentos de trabalho. Desenraízam-no. Retiram-lhe, sobretudo, a identidade cultural, negando-lhe a condição de trabalhador (SILVA, 1999, p. 66) [Aspas no original].

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As transformações das relações sociais, trabalhistas e culturais com a terra foi

um processo que gerou uma população sobrante, “os descartes”, segundo a expressão de

Martins (2003); além dos bóias-frias transformou também parte dessa população de

trabalhadores rurais em desempregados, andarilhos, peões-do-trecho, processo chamado

por Silva de “processo de acumulação primitiva de proletários” (1999, p. 72).

Segundo Queiroz, como expressão desse processo de dizimação do

campesinato no final do século XX, pode-se observar uma multiplicação de favelas nas

periferias de todos os núcleos urbanos de maior importância do Estado (1998, p. 38). O

crescimento populacional que o estado de Mato Grosso do Sul apresentou nas últimas três

décadas do século XX direcionou-se, sobretudo, às áreas urbanas, que, sem ofertas de

empregos e serviços sociais que atendessem a essas demandas, gerou uma multidão de

trabalhadores subempregados, com dificuldades de acesso a direitos fundamentais, como

saúde e educação, por exemplo.

Dona Teresinha, um desses tantos personagens, continua a descrever sua

história, agora não mais como arrendatária, mas como sujeito marginalizado no meio

urbano. O repúdio à favela e ao espaço urbano desnuda uma vida baseada em valores

tipicamente camponeses, é como se ela não se sentisse parte daquele todo. O sonho de

liberdade é contraposto às drogas, à bebida alcoólica, à criminalidade, enquanto o ideal de

uma vida farta é limitado pela fome e pelo desemprego:

Nós morava numa favela, que até hoje ainda tem a favela lá no município de Ivinhema. Então, a gente começou a se ver... não encontrava mais uma diária, não tinha mais serviço, e as pessoas começaram a passar fome. [...] que na cidade eu num tinha como dar liberdade pro meus filhos, a gente morava numa favela, você sabe, você sai daqui... daqui... daqui até a dez metros, 15 metros, lá na frente tem um oferecendo droga, tem um oferecendo coisa ao roubo, convidado pra roubar. Você sabe que em favela tem essas coisas, oferecendo um cigarro, oferecendo uma cachaça (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).

Também revelando a opção pela vida no campo, outra entrevistada discute as

dificuldades econômicas que trabalhadores do campo enfrentam ao saírem do sítio para

viver nos centros urbanos:

[...] hoje em dia tanto na cidade quanto no campo ta difícil, né? Mas pra quem é acostumado a trabalhar na roça, na área rural, e vem pra cidade, é uma diferença muito grande, né? Por que na cidade tudo você tem que comprar, no sítio a gente tem essa vantagem que a gente pode produzir, né? É melhor você te um salário lá no sítio do que você te três aqui na cidade (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

São dificuldades não só financeiras, mas que envolvem questões simbólicas,

como a de conviver com a falta de produtos que poderiam estar produzindo; situações que

não raro causam desconforto e frustração. Essas lembranças são também carregadas de

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idealizações do passado, quando as dificuldades do presente são postas como empecilho, o

passado se mostra mais doce.

A falta de trabalho na cidade e o problema habitacional são grandes

preocupações da vida de dona Lurdes. Consciente de que políticas públicas deveriam

buscar soluções para os problemas sociais do país, dona Lurdes chama a atenção para a

falta de trabalho e de habitação enfrentadas nos centros urbanos por trabalhadores pobres:

Eu gostaria muito que o governo tomasse uma decisão sobre isso aí. Você procura uma cada de aluguel na cidade você não acha, você caça serviço na cidade você não acha. Até uma lavação de roupa é difícil na cidade. Se você mora em cima do que é da gente, se é 4 alqueires, 6 alqueires, mais sabe que é da gente. Você vai mora ali, ninguém nunca vai dize que você vai te que pagar o aluguel hoje, né? Ou vai te que saí porque não pagou o mês passado (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Para muitos trabalhadores rurais, a luta pela manutenção da vida na terra foi, ao

longo de suas histórias, sendo sorrateiramente destruída. Viver fora do campo, “sem terra”,

desempregados, tendo que se voltar ao trabalho esporádico nas lavouras, morar nos

subúrbios, e sobretudo, viver com a falta de trabalho e de moradia, são fatores que levaram

muitos trabalhadores a lançarem-se na luta pela terra em busca da recriação de suas

histórias.

Os quadros estatísticos, mesmo que sumariamente, apresentam os efeitos dessa

transformação, não só com relação à questão agrária e agrícola, mas da própria relação

entre o homem, a terra e o trabalho. Associado à expansão da pecuária, à mecanização

agrícola, ao fechamento de terras para arrendamento e as crescentes correntes migratórias

desencadeadas desde meados do século XX, temos em fins do século e início do século

XXI a emergência das mobilizações sociais de luta pela terra no estado de Mato Grosso do

Sul.

1.2 Em busca de um lugar

Minha vida é andar Por esse país

Pra ver se um dia Descanso feliz

Guardando as recordações Das terras por onde passei

Andando pelos sertões E dos amigos que lá deixei.

(Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil)

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Eu tava cansado, né? Com 40 e pouco anos, que tava cansado de ficar andando e não ter nada pra mim. Eu falei: “Eu vou arrumar um local pra mim fixar. Fixar ter minha moradia”. Por que eu nem sabia onde eu morava, de repente eu tava aqui, de repente eu tava lá (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

O sul do Estado de Mato Grosso do Sul é uma região onde as especificidades

fronteiriças são marcadas pela mobilidade dos sujeitos sociais, em especial, entre três

espaços: Paraguai, o oeste do Paraná e o sul de Mato Grosso do Sul. A busca por um

pedaço de chão onde se firmar é o caminho tecido por muitos trabalhadores que se vêem

sem alternativa de trabalho em sua terra de origem. A insistência na vida como trabalhador

rural e a necessidade de sobrevivência exigem constante mobilidade na busca por novas

terras, novas empreitas e novas áreas de arrendamento. Entre os trabalhadores rurais sem-

terra envolvidos em mobilizações sociais, as referências à migração são histórias que se

repetem.

Os trabalhadores rurais sem-terra acampados, ou ex-acampados, no sul de

Mato Grosso do Sul, destinaram-se às ocupações de terra a partir desses três espaços (Mato

Grosso do Sul, oeste paranaense e Paraguai), mas esses sujeitos têm origens diversas: o

Paraná como um todo, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e o nordeste brasileiro são

as referências mais comuns.

Uma das principais características da frente de ocupação, vivenciada no Estado

de Mato Grosso do Sul nos anos de 1960 e 1970, foi a concentração agrária, que acabou

trazendo a necessidade de reprodução da classe trabalhadora rural sem lhe permitir o

acesso a terra, uma vez que esses trabalhadores não eram proprietários, e sim arrendatários,

meeiros, peões10 que tiveram acesso limitado à terra (FABRINI, 1995, p. 72).

A colonização dirigida, desenvolvida a partir dos anos de 1970, concedia

grandes glebas de terra à empresas privadas, sob créditos subsidiados a juros irrisórios,

incentivando a formação de grandes empresas rurais na fronteira. Assim, ao mesmo tempo

em que essas empresas necessitavam de mão-de-obra de trabalhadores rurais, elas

cercaram as terras, dificultando a existência de pequenas propriedades. Como

conseqüência desse processo de modernização conservadora no campo, vê-se uma

transformação nas relações de trabalho e na própria relação do homem com a terra.

10 Definição usual para a pessoa que lida com gado, mas que se generalizou para todos os empregados por empreitada (ALBANEZ, 2003, p. 151).

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Foi, portanto, esse quadro de expansão do capital e de busca de mão-de-obra

que viesse a suprir as necessidades da grande empresa rural, que impulsinou à vinda de

trabalhadores sem-terra ao estado de Mato Grosso do Sul. Homens que foram usados na

limpeza das fazendas, peões, arrendatários, meeiros, e que logo se viram sem alternativa de

trabalho. Famílias pobres que buscavam uma terra para se firmar e que novamente as

circunstâncias lhes faziam migrar de uma terra a outra.

Segundo Roesler e Cesconeto “as migrações dizem respeito a um fenômeno

universal” e é também um fenômeno estrutural, fruto de uma sociedade de fronteiras cada

vez mais franqueadas e “das estruturas de pobreza e violência mantidas ou criadas por essa

nossa sociedade”. O impulso às migrações está relacionado a estratégias de

desenvolvimento, assim como a uma expectativa de melhores condições de trabalho e a

busca pela manutenção de um determinado modo de vida (2004, p. 1-2).

Os impulsos migratórios que lato sensu estão relacionados a questões

econômicas e políticas, são também, visto a partir de cada família, causadores de uma

degradação sócio-cultural. Segundo Martins, as migrações não acontecem sem efeitos

devastadores na vida desses sujeitos; laços de amizades, parentescos e uma vida de

sociabilidades são rompidos. Além de evidenciar dificuldades de sobrevivência nas áreas

de origem, esses processos impõem ao sujeito uma “vida nômade”, o que empobrece sua

vida social (1997, p. 42).

Entre trabalhadores rurais sem-terra acampados no sul de Mato Grosso do Sul,

e muitos trabalhadores já assentados em decorrência de processos de mobilização social,

são comuns as histórias de migrações, em especial a referência ao estado do Paraná. A

ocupação da fronteira pioneira no Estado do Paraná ocorreu sob a concessão de grandes

glebas de terras em áreas pouco povoadas, favorecendo o fortalecimento de grandes

empresas estrangeiras que exploraram de forma predatória as matas e os ervais nativos.

Esse processo colonizador, subsidiado e intermediado pelo Estado, dificultou uma

distribuição de terras a colonos que possibilitassem a formação de pequenas propriedades

(FOWERAKER, 1982, p. 66-67)11.

Corroborando esse modelo centralizador de colonização, a modernização

agrícola de idos dos anos 1970 acelerou o processo de êxodo rural dessas áreas,

direcionando-as às fronteiras agrícolas do Brasil. No contexto específico desta discussão, 11 De acordo com dados do Censo Demográfico, no Estado do Paraná a população rural residente caiu de 4.425.490 pessoas para 2.440.000, no período de 1970-1995, o que significa um decréscimo de 45%, quase a metade da população rural (SILVA, 1999, p. 69).

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esse processo gerou uma migração de trabalhadores rurais do oeste do Paraná ao sul de

Mato Grosso do Sul e também ao Paraguai. Esse curso migratório é também evidente nos

relatos analisados:

Eu nasci em Paranavaí no Paraná, e de Paranavaí mudei pra Ivinhema, fica aqui próximo, pra lá de Naviraí, e de lá que eu vim pra ocupação aqui em Itaquiraí (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).

Eu nasci em Ubirajara, no Estado de São Paulo. De lá eu vim para o Paraguai, fiquei um tempo no Paraguai, daí a gente veio pra cá. No Paraguai eu morei 22 anos, depois vim pra cá (ANTÔNIO, Entrevista,11.10.06).

Outra entrevistada, ao ser indagada sobre onde nasceu e onde viveu até chegar

a Mato Grosso do Sul, pára, pensa e responde com exclamação: “Vichi! Eu nasci em

Minas Gerais. De lá viemos pro Paraná, né? E do Paraná viemos pro Mato Grosso” [do

Sul] (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005). Já dona Eleonora, sem saber precisar por quantos

lugares passou até se mudar para o acampamento Laguna Peru, diz que “Vim vindo, vindo

e vim pra cá. Nasci no Rio Visita no Estado do Paraná. De lá eu vim, vindo e vim pra...”

(Eleonora, Entrevista, 11.10.06).

Assim como nos relatos proferidos, as histórias de migração e desenraizamento

são histórias que se repetem e que marcam um processo histórico que ocorre de forma

acentuada no Brasil: o direcionamento de correntes migratórias por incentivos

governamentais.

A recordação de Dona Eleonora de que “veio vindo” até chegar ao

acampamento onde mora, na BR-163 estrada que liga o município de Itaquiraí a Eldorado,

revela a vida nômade levada por esses sujeitos, que muitas vezes limita-os até mesmo de

saber por quantas cidades passaram para chegar até onde estão, situação que revela a

degradação da vida social e cultural que marca a vida e a memória desses sujeitos.

Na luta pela sobrevivência muitos desses trabalhadores passaram a peregrinar

na busca por terra e trabalho. É o caso do senhor Dércio, que veio a Mato Grosso do Sul a

procura de trabalho e logo se integrou a processos de mobilização de luta pela terra.

Acampado há nove anos na beira da estrada, esperando um pedaço de terra, senhor Dércio

relembra da falta de trabalho no Paraná, onde as fazendas se formaram primeiro, o que fez

com que deixasse o sítio dos pais após o casamento e se remetesse às terras sul-mato-

grossenses:

Eu nasci na região de Umuarama, em Alto Paraíso, aqui no Paraná, aqui. Aí trabalhei muito tempo lá, trabalhei em torno de uns 20 ano, mais ou menos. Com sete ano eu comecei trabalhar. Aí fomo trabalhando, aí vimo que não dava, né?

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tava solto de serviço, e tal. Morava no sítio [...] Aí em 90 (eu casei em 89), aí em 90 nós veio aqui pro Mato Grosso. [...] (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).

“Tava solto de serviço”. Com essa expressão o senhor Dércio traduz o

esgotamento do trabalho como diarista e bóia-fria no estado do Paraná, situação também

vivenciada, anos depois, pelos trabalhadores rurais de Mato Grosso do Sul, como

expressão do processo de modernização conservadora do campo, quando muitos

fazendeiros absenteístas foram incentivados a transformar seus latifúndios em grandes

empresas rurais.

É historicamente conhecida no Estado de Mato Grosso do Sul e nas regiões

vizinhas, uma forma de parceria em que o proprietário legal da terra a concede a outra

pessoa, por um período de aproximadamente três anos, para derrubada das matas e abertura

de pastagens, uma forma do proprietário capitalista abrir sua fazenda sem grandes

investimentos econômicos. Sabe-se que essa foi uma prática largamente utilizada nessa

região. Uma atividade que desvincula o homem da terra, uma vez que sua permanência

nela é temporária e passageira, já que dentro de três a cinco anos essas famílias são

obrigadas a buscar novas terras para desmatarem e destocarem. Essa foi uma tarefa

realizada também por peões imigrantes paraguaios, que passaram a se dedicar ao trabalho

temporário com o fim da atividade ervateira, e ainda realizada por famílias pobres oriundas

do estado de São Paulo, Paraná e do nordeste brasileiro.

Além da referência ao Paraná e ao interior de São Paulo, destaca-se também a

presença de nordestinos que, principalmente a partir dos anos de 1940, são incentivados

por projetos de colonização a migrarem rumo ao sul do país. Esses colonos atendiam a

demanda de força de trabalho necessária à reprodução do latifúndio. Antes de chegarem ao

atual estado de Mato Grosso do Sul, grande parte desses migrantes tiveram experiências de

trabalhos em estados como Minas Gerais, São Paulo e Paraná.

Segundo Albanez, um grande contingente de retirantes nordestinos, após

trabalharem em terras paulistas e paranaenses, acomodava-se em áreas ribeirinhas do Rio

Paraná e logo atravessava o rio para se alojar em terras sul-mato-grossenses (2003, p. 49).

Esse processo migratório também é evidenciado por outros autores:

Dos anos de 1930, em diante, a origem dos trabalhadores que se destinavam aos campos do Pontal do Paranapanema amplia-se para outras regiões, divisas com o Pontal do Paranapanema, como o sul do antigo Mato Grosso e o Paraná, bem como por trabalhadores oriundos do Nordeste, especialmente nos anos 50 e 60, expulsos pelas condições de vida e de trabalho em sua terra natal, atraídos, então, pelos novos arrendamentos e pela estrada de ferro que viria a cortar as reservas naturais da região (BORGES, 2004, p. 84).

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Na busca por um pedaço de terra, esses trabalhadores defrontaram-se com uma

estrutura agrária latifundiária e passaram a exercer trabalho como pequenos arrendatários,

em regime de parceria nas derrubadas das matas, como peões e como meeiros em terras de

terceiros. Não tardaria para que muitos desses trabalhadores se tornassem bóias-frias ou

passassem a viver subempregados nas periferias das cidades.

Esse foi o trajeto feito pelo senhor Lídio, nordestino que deixou a Bahia aos 13

anos de idade para trabalhar na estrada de ferro que ligaria os estados de Minas Gerais e

Bahia. De Minas, mudou-se para Campo Mourão, no Paraná, onde passou a cultivar café

em terras de terceiros, de onde, novamente, transferiu-se, desta vez, à vizinha república do

Paraguai:

E a final vim pra estrada de ferro, tava construindo a estrada de ferro que ligava o estado da Bahia a Minas Gerais, aí eu vim pra estrada de ferro, comecei trabalhar ali e tal [...] Naquele tempo a gente não alvejava muito, não pensava muito o futuro. Como ia se o nosso futuro, né? Então era só no serviço pesado, só no pesado, direto. Aí quando foi... eu fui pra Campo Mourão e peguei um café pra toca e o patrão me explorou demais da conta. Eu já vinha muito revoltado... aí então, isso foi em 56, 57, por aí sabe? Aí o camarada me deu um tombo miserável. Eu toquei a demanda 4 anos, com toda razão, com testemunha e tudo e no fim de quatro anos eu perdi a demanda. Aí eu me revoltei com a situação. Aquele tempo era o tempo do colonato, sabe? O pessoal trabalhava de colono nas fazenda e ali era uma verdadeira escravidão, né? (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).

Ao narrar sua história de idas e vindas, o senhor Lídio se assemelha a milhares

de nordestinos, retirantes, que antes de chegarem ao atual estado de Mato Grosso do Sul

trilharam uma história de lutas pela sobrevivência em outros estados. O desenraizamento

vivido por seu Lídio explicita um movimento histórico vivido pelos pobres em busca de

terra, trabalho e dignidade.

Além dos trabalhadores que viveram os cursos migratórios das frentes de

ocupação de idos dos anos 1970, destaca-se também entre os trabalhadores rurais sem-terra

inseridos em processos de mobilização social do sul de Mato Grosso Sul, um contingente

de trabalhadores com experiência de trabalho no Paraná, paranaenses ou não, que migrou

ao Mato Grosso do Sul já a partir da década de 1990, para se inserirem nas mobilizações

sociais de luta pela terra.

Com um número relativamente considerável de assentamentos rurais, e uma

forte organização em torno da luta pela terra, o sul de Mato Grosso do sul acabou se

tornando referência de luta pela terra nas regiões vizinhas, o que vem atraindo esses

trabalhadores.

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Ah, nós resolvemo vim pra cá, porque todo mundo falando né? Que as vezes tando aqui nós consegue um pedaço de terra né? Pra gente trabalha. Que a gente que tem essa filharada precisa mesmo né? Algo de bom a gente precisa (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

Porque nós resolvimo vim? Porque já tinha uns que era colega nosso, já tinham vindo antes, né? Daí depois, eles pegaram e... daí começaram falar que era bem melhor a gente vim pra cá e daí foi onde que nóis viemo vindo tamém, e tamo até o dia de hoje aqui (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Com a indicação de um amigo, de um vizinho, ou mesmo de uma vaga notícia

que corre sem referências e sem nenhuma concretude, esses sujeitos se deslocam de uma

região à outra em busca de “algo de bom”. Essa esperança que brota tão vagamente é

reveladora de uma incerteza na vida, desnuda uma situação social de marginalidade e de

desesperança de construção da vida por outros meios.

Pode-se dizer que o processo de atração de trabalhadores rurais sem terra para o

extremo sul do estado de Mato Grosso do Sul não aconteceu somente em decorrência das

correntes migratórias de idos dos anos de 1940, com as colônias agrícolas, nem mesmo

com o processo de abertura das grandes propriedades a partir dos anos de 1970. O que se

pode inferir das pesquisas realizadas nos acampamentos rurais localizados no extremo sul

do estado, é que o curso migratório de trabalhadores pobres paranaenses, ou que já tiveram

experiência de trabalho no Paraná, mantém-se forte nos anos de 1990. Incentivados pelos

projetos de assentamento desenvolvidos no Estado de Mato Grosso do Sul, esses sujeitos,

vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes, diante da falta de

perspectiva em suas terras de origem, direcionam-se ao Estado já com o propósito de

inserir-se em um movimento social de luta pela terra.

1.3 Um cenário anunciado: os brasiguaios e os atingidos por barragens

Como a gente é brasileiro, né? A gente queria que a filha da gente estudasse a nossa língua, o português, e também é muito difícil você vive em outro país, né? Você mora lá, vive lá, mas não é de lá, né? Isso é difícil. Então, cada um tem que vive no seu país, senão parece que você não existe né? (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2005).

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O sul de Mato Grosso do Sul é um espaço geográfico que figura como palco de

outras questões sociais bastante específicas, como, por exemplo, o fenômeno dos

brasiguaios12 e os grupos de ribeirinhos e ilhéus atingidos pelas barragens construídas ao

longo do Rio Paraná, sem discutir, no entanto, a questão indígena que também compõe

esse cenário de conflitos sociais13. Fatores como os que levaram esses brasileiros a

emigrarem ao Paraguai, e seu posterior retorno, assim como a mobilidade forçada de

ribeirinhos e ilhéus para construção de barragens, são fatores preponderantes para

compreender as histórias de vida dos trabalhadores sem-terra analisados, já que muitos

mencionam essas experiências ao longo de suas vidas.

O processo de modernização agrícola em terras já colonizadas por processos

migratórios anteriores e o deslocamentos de ribeirinhos para a construção de barragens

para usinas hidrelétricas, em especial Binacional Itaipu, impulsionaram a emigração de

milhares de colonos do sul do país à fronteira agrícola do Paraguai. Atraídos, ainda, pelo

baixo preço das terras e pela política desenvolvida pelos governos do Brasil e do Paraguai,

milhares de colonos despossuídos, que tinham como meio de sustento apenas sua força de

trabalho e também pequenos proprietários, buscaram uma alternativa de sobrevivência no

Paraguai. São homens e mulheres que, expropriados e expatriados, emigram em busca de

um pedaço de terra, habitualmente conhecidos como brasiguaios14.

Como expressão de políticas desenvolvidas pelo governo brasileiro e

paraguaio; em princípio representado pelos governos autoritários de Emílio Garrastuza

Médici e Alfredo Strossner; esses sujeitos são levados a peregrinarem em busca de terra e

de trabalho. Esse desenraizamento ocasionou um problema social evidenciado anos depois

com o retorno desses brasileiros.

As dificuldades financeiras e a falta de trabalho associados aos atrativos

oferecidos no país vizinho, como terras a preços muito baixos e a facilidade de conseguir

trabalho no campo, fez insurgir uma perspectiva de prosperidade nesses trabalhadores, o

que impulsionou a emigração. Entre os relatos analisados, a possibilidade de emigração

12 O termo Brasiguaio é usado para denominar trabalhadores rurais brasileiros que passaram a viver e trabalhar na fronteira agrícola paraguaia. Segundo a CPT, “esses sujeitos não são nem brasileiros nem paraguaios, são brasiguaios”. O termo é ainda um tanto contraditório e parece ter surgido a partir do início do retorno massivo desses trabalhadores, na década de1980. 13 Questões específicas relativas ao lago de Itaipu e as sociedades indígenas foram recentemente discutidas por Gisele Deprá: O Lago de Itaipu e a luta dos Avá-Guarani pela terra: Representações na imprensa do Oeste Do Paraná (1976-2000). 14 As informações referentes a questão dos brasiguaios foram pesquisadas junto a um relatório elaborado pela CPT (Relatório histórico da atuação da CPT junto aos trabalhadores rurais sem terra em MS, s/d) a partir da sistematização de dados de atas, cartas, e documentos da entidade. O Relatório não apresenta um número de paginação seqüente.

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para o Paraguai foi evidenciada a partir de difíceis experiências de vida e trabalho no

Brasil.

A falta de identificação e o sentimento de despertencimento são, talvez, as

maiores dificuldades enfrentadas no país vizinho. Ser reconhecido como o forasteiro, ou o

não ser reconhecido como legítimo sujeito pertencente àquele meio, revela o próprio

conceito de pertencimento que carrega esse sujeito dentro de um espaço geográfico sem

fronteiras visivelmente delimitadas.

Nesse contexto, torna-se importante as consideração de Bourdieu de como o

poder de delimitar fronteiras pode se entendido como um ato mágico, o regere fines, o ato

de “traçar as fronteiras em linhas retas, em separar o interior do exterior, o reino do

sagrado do reino do profano, o território nacional do território estrangeiro, é um ato

religioso”, (1989, p. 114). O ato mágico do qual insurge sentimentos de pertencimento está

ligado às representações mentais que criam as fronteiras e estabelecem diferentes

identidades regionais ou étnicas:

Porque assim é e porque não há sujeito social que possa ignorá-lo praticamente, as propriedades (objetivamente) simbólicas, mesmo as mais negativas, podem ser utilizadas estrategicamente em função dos interesses materiais e também simbólicos do seu portador (BOURDIEU, 1989, p.112).

Embora esses sujeitos passem por um processo de hibridação cultural, pela

experiência de vida em outro país, fatores como a linguagem, por exemplo, que muitas

vezes é guardada apenas para os momentos íntimos familiares, são fortemente preservados,

isso porque as representações mentais são extremamente fortes, mesmo quando as

fronteiras são transgredidas. Para o senhor Antônio, que havia reconstruído sua vida no

Paraguai, a entrada da filha na escola e o desejo de manter a tradição da língua de origem

foram fatores que determinaram o retorno ao Brasil. “A terra da gente” traduz uma

dicotomia entre a terra dos outros. O Paraguai “era bom”, tinha um “emprego bom”,

viviam bem, mas não era a “terra da gente”, era terra dos outros, onde a gente vive, mora,

mas não existe. É porque no Paraguai nasceu uma... uma única filha que eu tenho, né? Aí quando chegou a hora de por ela na escola então, eu tive que trazer a família pra cá, e aí eu continuei trabalhando sozinho lá, né? Aí chegou um ponto que então a gente teve que volta novamente. A gente como é brasileiro a gente queria que ela estudasse a língua da gente, né? O Português. Então foi isso que aconteceu, a gente trouxe pra cá pro Brasil, a terra da gente (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2005).

Ao voltarem ao Brasil, primeiro a mulher e a filha e logo o senhor Antônio,

que ao decidiu voltar a ser visto como gente (conforme sua fala em epígrafe) também teve

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que fazer a difícil escolha entre o trabalho que tinha no Paraguai e o desemprego no Brasil,

entre a mantença financeira da família ou o convívio com ela. Diante desses antagonismos,

a saída possível ao senhor Antônio foi a inserção nos movimentos sociais de luta pela terra.

Outro assentado brasiguaio, o senhor Lídio, ao ser indagado por que deixou o

Brasil, mostrou rancor e tristeza pelas lembranças do tempo em que trabalhou como colono

escravo no Paraná. Descontente com os “tipos” de reforma agrária que vinha sendo

desenvolvidos no país, e pela “revolta” que passou a cultuar pela exploração da qual foi

exposto como colono no Paraná, a saída possível foi novamente a migração. Depois de

uma história de peregrinação pelo Brasil, emigrou para o Paraguai, onde viveu por 18 anos.

Segundo Batista, os colonos brasileiros passaram a adquirir terras no Paraguai

a baixíssimos preços, mediante contratos de compra e venda. Contudo, cerca de 80% deles

não possuíam título legal das terras, que era expedido apenas pelo Registro Nacional de la

Propriedad, em Assunção. Os títulos concedidos por Departamentos não tinham validade

legal, o que impossibilitava os colonos de ter acesso a créditos bancários e, ainda, fez com

que muitos deles perdessem o pouco de capital que investiram (1990, p. 59).

No Paraguai, esses trabalhadores sofriam todo tipo de exploração. No momento

mais intenso de saída desses brasileiros, o Paraguai vivia sob um controle político e social

antidemocrático, que manteve o ditador Alfredo Stroessner no poder por 35 anos (1954-

1989). Já no início dos anos 1980, a agricultura no Paraguai começou a sofrer um processo

de modernização e expansão das grandes empresas rurais (muitas sob domínio de

brasileiros), processo que havia começado no Brasil anos antes. As dificuldades que

levaram esses brasileiros a emigrarem também se fizeram sentir em terras paraguaias, o

que forçou muitos desses trabalhadores brasileiros a cogitar um possível retorno. A

fronteira, em meados dos anos 1980, tornou-se espaço de luta pela terra e passou a receber

o movimento migratório de retorno dos brasiguaios, particularmente os municípios de

Mundo Novo, Sete Quedas, Naviraí e Eldorado.

O senhor Lídio é um desses personagens. Somente em 1997 voltou ao Brasil,

seguindo o caminho trilhado por muitos outros brasileiros: o retorno dos brasiguaios,

novamente em busca de terras e trabalho:

Eu já vim direto pra qui, Itaquiraí. Quando eu vim do Paraguai foi justamente no acampamento da Oito de Março, foi que eu vim. Já vim já, e acampamos lá. Aí ficamo na luta, né? Defendendo a terra aí com o pessoal, aí (LÍDIO, Entrevista, 13.12.2005).

A esperança de voltar ao Brasil se fortaleceu com a criação do Plano Nacional

de Reforma Agrária (PNRA) e o lançamento do primeiro Programa Regional de Reforma

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Agrária (PRRA), ambos criados em 1985. As novas propostas aguçaram a esperança de um

reordenamento da estrutura agrária nacional, não só nos trabalhadores rurais sem-terra, que

residiam no Brasil, mas também nos trabalhadores brasiguaios.

Segundo o Relatório da CPT (Comissão Pastoral da Terra) e pelas informações

de Batista (1990), as primeiras tentativas de retorno ao Brasil foram organizadas como

verdadeiras operações de fuga, pois a saída desses trabalhadores era indesejada tanto pelos

fazendeiros, que perderiam grande contingente de mão-de-obra, quanto pela elite política

brasileira, que temiam uma conturbação social com um possível retorno massivo desses

trabalhadores. Em carta redigida pela Comissão dos Brasiguaios e endereçada ao então

Ministro da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, Nélson Ribeiro, esse grupo de

trabalhadores dizia temer as forças policiais do Mato Grosso do Sul, que estavam prontas

para agir caso eles ameaçassem atravessar a fronteira.

No lado brasileiro da fronteira, esses trabalhadores puderam contar com a

atuação da CPT e das Comissões de Sem Terra. A problemática vivenciada por esses

trabalhadores já vinha sendo debatida por quase uma década. No ano de 1976, por

exemplo, o retorno de brasileiros vivendo em condições de exploração no Paraguai foi

assunto do Encontro Regional Extremo Oeste da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos

do Brasil), em Dourados. Em 1979 foi realizado um levantamento pela paróquia de Mundo

Novo que alertava a respeito da necessidade de retorno de camponeses brasileiros que

eram explorados e marginalizados no país vizinho.

Esgotados os meios legais de reivindicação de terra junto ao então governador

do Estado, Wilson Barbosa Martins (1983-1986), e ao governo federal, a CPT, juntamente

com a Comissão Estadual de Sem Terra, decide mudar a estratégia de luta e partir para as

ocupações de terra, com o propósito de ganhar visibilidade e chamar a atenção da

sociedade para o problema vivenciado por esses trabalhadores. Com esse intuito, a CPT

reuniu-se com algumas lideranças de brasiguaios em Mundo Novo e juntos resolveram

ocupar áreas de terras devolutas no Estado.

A luta pela terra e pelo retorno ao país de origem fez com que esses sujeitos

organizassem novas formas de mobilização. Os rumos tomados nas negociações com o

Ministro Nelson Ribeiro, que alegou não poder adotar nenhuma atitude enquanto esses

trabalhadores estivessem em terras estrangeiras, corroborou para que esses sujeitos

apelassem para os acampamentos, em terras brasileiras, como tática de luta.

Diante dessa alternativa as lideranças dos brasiguaios mobilizaram-se para realizar uma assembléia em Mundo Novo. Reuniram 680 brasiguaios e

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decidiram que dentro de trinta dias acampariam naquela cidade para aguardar as providências prometidas pelo Ministro (BATISTA, 1990, p. 109).

Em junho de 1985 acamparam as primeiras famílias de brasiguaios na praça de

Mundo Novo. Em poucas semanas estava montada uma verdadeira cidade de lona15,

agrupando aproximadamente 950 famílias, onde permaneceram até dezembro do mesmo

ano. Com essa mobilização, os sem-terras conseguiram a desapropriação de parte da

fazenda Santa Idalina, no município de Ivinhema, de propriedade da SOMECO (Sociedade

de Melhoramento e Colonização) assentando 770 famílias, projeto denominado

assentamento Novo Horizonte (hoje município de Novo Horizonte do Sul)16.

Em Carta à População, datada de 21.06.1985, os acampados de Mundo Novo

tentaram esclarecer seus objetivos, avaliando as dificuldades enfrentadas ao longo da vida:

Fomos obrigados a ir para o Paraguai. A situação no Brasil era difícil. A terra está nas mãos dos latifundiários. Não arredam porque está cheia de capim ou plantada soja. Os fazendeiros tocam a lavoura com máquinas. Não precisam de mão de obra. Fomos obrigados a deixar a terra natal para não viver como bóia-fria. Imigramos para o Paraguai. Lá não foi nada melhor. A luta foi mais dura e mais uma vez fomos expulsos da terra. Agora, da terra do Paraguai (CPT, 1993).

A cidade de lona montada em Mundo Novo pelos brasiguaios originou outras

lutas e vários acampamentos foram criados por famílias que retornavam do Paraguai. Essas

mobilizações receberam a ajuda conjunta da CPT e da Comissão Estadual de Sem Terra até

1985, momento em que essa comissão tornou-se efetivamente o MST, o qual passou a

assumir o acompanhamento da luta dos brasiguaios.

Inúmeros acampamentos foram montados exclusivamente por famílias de

brasiguaios. Em 1990, segundo o jornal O Progresso, cerca de 1800 brasiguaios

pretendiam cruzar a fronteira na região de Mundo Novo, quando o Serviço de Informação

da Polícia Militar interceptou o movimento a tempo de impedir sua atuação. A ação, após

ser repelida pelos policiais, o grupo direcionou-se à fazenda Urtigão, na rodovia que liga

Tacuru a Sete Quedas, de onde foram expulsos por 50 policiais após um pedido de

reintegração de posse feito pela proprietária (O Progresso, 10.08.1990).

Em 1992 mais de 400 famílias fugiram do Paraguai e montaram um

acampamento em Amambai-MS, exigindo terra para trabalho. Segundo o Relatório da

CPT, a situação de abandono no acampamento era tamanha que havia provocado, até 1993,

a morte de seis crianças. Em abril de 1995 o jornal O Progresso anunciou um bloqueio da 15 Assim ficou conhecido o acampamento de brasiguaios na cidade de Mundo Novo no ano de 1985. Expressão usada por Batista (1990), pela CPT em seus relatórios, e pela imprensa. 16 Essa propriedade já havia sido reivindicada em 1984 por outra mobilização, uma das primeiras organizadas massivamente com o intuito de pressionar a efetivação de projetos de reforma agrária no Estado (processo de luta que será melhor discutido no capítulo II).

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rodovia MS-265 por essas mesmas famílias, as quais receberam, durante o ato, a promessa

do INCRA de que seriam assentadas no mês seguinte, contudo, somente em junho de 1997

é que essas pessoas foram realmente assentadas, quando somavam tão somente 34 famílias,

das quais cinco não se enquadraram na classificação do INCRA. Das 400 famílias vindas

do Paraguai nesse movimento de 1992, apenas 29 delas foram assentadas, em 1997, na

fazenda Corona, município de Ponta Porã.

O que se constata, porém, é que o processo de retorno desses trabalhadores

continuou por toda a década de 1990. Em grande parte dos acampamentos do sul do Estado

pode-se constatar a presença de pessoas que já tiveram experiência de trabalho no

Paraguai. A exemplo do senhor Lídio, mais de 150 famílias regressam, em 1997, para

participar do acampamento Oito de Março, no município de Itaquiraí, e outras em 1999,

para o acampamento Mambaré, em Mundo Novo.

Somado a isso, o extremo sul de Mato Grosso do Sul também foi cenário de

outro problema social: as centenas de famílias atingidas pelas barragens das usinas

hidrelétricas construídas ao longo do Rio Paraná. Entre elas, a Binacional Itaipu, concluída

em 1984, cujo reservatório abrange desde o Salto de Sete Quedas até a foz do Rio Iguaçu e

a usina hidrelétrica de Porto Primavera (hoje hidrelétrica Engenheiro Sérgio Mota),

concluída em 1998, cuja barragem abrange a região que vai do município de Três Lagoas

ao município de Mundo Novo.

Como expressão de um projeto político e econômico de modernização que teve

início ainda nos anos 1960, essas usinas passaram a desapropriar pequenos proprietários,

atitude que afetou também os pescadores e os oleiros que viviam e/ou trabalhavam às

margens dos rios. Esse fenômeno não está dissociado do fenômeno brasiguaios, uma vez

que muitos desses sujeitos desapropriados pelas barragens buscaram refúgio em terras

paraguaias.

Segundo Deprá, a falta de informação quanto aos deslocamentos de ribeirinhos

foi também marca do processo de construção da Binacional Itaipu; as publicações

jornalísticas privilegiavam assuntos que enaltecessem a magnitude da construção, as

aspirações de modernidade que obra trazia e seus efeitos econômicos em detrimento às

informações de interesse da população ribeirinha que seria expropriada:

Fochezatto acrescenta que, possivelmente, para o poder público quanto mais desinformada estivesse a população, mais fácil seria a sua manipulação. A veiculação de uma propaganda ideológica e o acesso restrito à informação deixou os atingidos à margem do processo de construção da usina e de suas conseqüências junto às questões territoriais [...] (DEPRÁ, 2006, p. 57).

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Nota-se, no entanto, que o problema de deslocamentos de ribeirinhos não se

findou com o término das construções. No estado de Mato Grosso do Sul, a preocupação

com o deslocamento e as possíveis enchentes causadas pelo aumento de vazão das

hidrelétricas existentes ao longo do rio Paraná, tornou-se uma constante nas décadas de

1980 e 1990. A diminuição dos peixes foi um agravante aos pescadores, assim como a

inundação de terras de argila natural aos oleiros.

Do outro lado do rio, em terras paranaenses, a situação de ribeirinhos e ilhéus

foi ainda mais alarmante. A construção da Binacional Itaipu e outras usinas hidrelétricas ao

longo do rio removeu inúmeras famílias, ocasionado um movimento migratório, em

especial à região lindeira do Paraguai. A emigração que se calculava em 70 mil pessoas,

passou de 300 mil, e embora nem todas fossem de origem rural, a grande maioria se

assentou nas zonas rurais do Paraguai. No lado brasileiro, a construção intensificou o

desenvolvimento regional e tornou-se um fator de atração de correntes migratórias. A

cidade de Foz do Iguaçu, que contava com 33.970 habitantes, em 1970, passou a ter

136.320 habitantes dentro de uma década (ROESLER E CESCONETO, 2004, p. 10).

Com a mesma agilidade que as construções de grandes usinas hidrelétricas

criam empregos, elas também desempregam. Cria-se uma ilusão quanto a possibilidade de

um trabalho, que, logo ao fim das construções, é desfeita, gerando um processo de

atração/expulsão, que faz com que esse trabalhador tenha mais uma vez que se mudar em

busca de trabalho.

A CPT foi um órgão que esteve presente no encaminhamento das discussões de

reassentamentos e/ou indenizações de famílias ribeirinhas e ilhéus, sobretudo da usina

hidrelétrica de Porto Primavera, que por vinte anos ameaçou a população ribeirinha sem

uma proposta consistente e viável de indenizações e reassentamento17. A usina tem a maior

barragem do Brasil, com 2.250 km², superando até mesmo a usina de Itaipu, com 1.350

km². Desde o princípio de sua construção, no início dos anos de 1980, as famílias

ribeirinhas passaram a viver sob a expectativa de uma provável remoção, projeto que só foi

concluído em 1998.

Ainda sem propostas de reassentamento, os moradores das margens do rio

Paraná foram atingidos por uma enchente causada pelo aumento da vazão da represa da

17 A CPT possui um vasto arquivo referente a essa luta, com documentos, relatórios, atas e imagens da destruição feita pelas enchentes. A Comissão sempre prestou apoio a ribeirinhos e ilhéus, reivindicando e cobrando medidas justas, principalmente em contraposição à CESP. Em 1998, a CPT divulgou um documento titulado Verdades e Mentiras de Porto Primavera, em que critica o custo benefício da usina e a forma com que foram conduzidas as discussões sobre o reassentamento das famílias atingidas.

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usina hidrelétrica de Jupiá e de Ilha Solteira. A enchente de 1983 foi a maior já registrada

no rio Paraná e atingiu quase toda a extensão do rio em grande parte do ano, o que deixou

centenas de famílias desabrigadas.

Diante do quadro de emergência, o que desencadeou um longo processo de luta

e reivindicação por parte dos desabrigados, algumas famílias foram direcionadas a

reassentamentos, muitos deles provisórios, emergenciais e desprovidos de uma estrutura

mínima que viesse a atender as necessidades características de famílias ribeirinhas, entre

eles o Projeto Emergencial de Jupiá, com 100 famílias de pescadores (receberam

provisoriamente 1 hectare de terra onde viveram até 1993); Projeto Capatazia dos

Pescadores, com 70 famílias (criado em 1985, em Guia Lopes da Laguna); assentamento

Sucuiu, com 177 famílias (criado em 1985, no município de Chapadão do Sul).

No ano de 1991, as famílias que viviam às margens redefinidas do rio

enfrentaram a segunda maior enchente do rio Paraná, que deixou milhares de famílias

desabrigadas, principalmente nas cidades de Naviraí, Eldorado e Bataguassu. A perda de

casas, lavoura e animais fez com que os prefeitos decretassem situação de emergência.

Mais de 200 pessoas desabrigadas foram alojadas em barracas de lona dentro de um campo

de futebol, localizado em Porto Caiuás, à 60 km da cidade de Naviraí (O Progresso,

17.01.1990). Esses fatos tornaram-se constante à população ribeirinha nos últimos anos,

em 1997 a então prefeita do Município de Mundo Novo, Dorcelina Folador, também foi

impelida a decretar estado de emergência no município, quando a abertura das comportas

das usinas hidrelétricas de Jupiá e Rosana deixaram mais de 50 famílias desabrigadas (O

Progresso, 19.02.1997).

Dona Lurdes é uma dessas personagens. Em 2006 o marido vivia a oito anos

sob o barraco de lona a espera de um lote de terras, decisão tomada após perder toda a

plantação de arroz que cultivava em uma ilha do rio Paraná:

Que meu marido tinha perdido tudo lá na ilha, né? Tinha perdido arroz... tudo o que eles planto lá, até as panela perdero com enchente, aí ele resolveu i ocupar essa fazenda (Lurdes, Entrevista, 20.07.2006).

O descaso com que foram conduzidas as discussões da construção da barragem

da usina de Porto Primavera, com constantes protelações de propostas e omissão de

informações por parte da empresa energética, foi tema de protestos, cartas e reivindicações

por parte das famílias atingidas e com apoio da CPT regional. As propostas de

reassentamento não davam conta de atender das especificidades existentes ao longo do rio.

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Segundo Kudlavicz, esses trabalhadores não eram apenas oleiros, ou

pescadores, ou pequenos produtores, ou mesmo trabalhadores assalariados, mas sim

sujeitos que viviam a partir de várias dessas condições. Obrigá-los a viver de uma só

atividade, conforme os projetos de reassentamento, foi condená-los à miséria. A alteração

de seu habitat trouxe não só prejuízos materiais, mas também acarretou frustrações

pessoais indenizáveis. Aos atingidos pela barragem do Porto Primavera, que exerciam

trabalho como assalariados e moravam naquela barranca há dez, vinte, trinta anos, foi

oferecido como indenização cinco hectares de terra ou vinte salários mínimos (2005, p.

103).

A discussão a respeito dos prejuízos das famílias ribeirinhas atingidas por

barragens destinadas à construção de usinas hidrelétricas e de seu reservatório vem de

longa data. Tal realização torna-se impossível sem uma reestruturação espacial, esta que

traz como conseqüência a remoção da população que habita a área a ser inundada. O

processo de remoção das famílias ribeirinhas do rio Paraná ocasionou um conflito de

interesses diferenciados: os da população, que foi obrigatoriamente removida, e os

interesses de uma empresa como a CESP – Companhia Energética de São Paulo.

A política de desapropriação e de reassentamento das famílias ribeirinhas e

ilhéus acarretou prejuízos e conseqüências que, ainda hoje, não foram sanados. Segundo

relatório da CPT, um grande número dessas famílias, diante da instabilidade vivida às

margens dos rios e da falta de assistência devida pelas empresas energéticas, passou a

ingressar nos movimentos sociais de luta pela terra em busca de uma alternativa mais

rápida de reassentamento (CPT, 1995).

1.4 A terra: reordenamentos em Mato Grosso do Sul

Quando Cabral gritou ‘terra à vista’, no Brasil, tudo começou errado. Não era terra para todos, era muita terra e só para alguns. Aí começou a maior concentração de terras já existente no mundo e que nunca cessou de crescer. (Hebert de Souza, Betinho).

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Para compreender as relações entre o homem e a terra, dentro da conjuntura de

mobilização social de luta pela terra, é imprescindível a compreensão da forma com que as

questões agrárias e agrícolas foram tratadas ao longo do tempo. A história agrária brasileira

revela de uma sociedade excludente, em que as políticas públicas estiveram voltadas para a

reinvenção, antes dos latifúndios e logo das empresas rurais, reafirmando os pobres da

terra como sujeitos a serem explorados.

O território que hoje compõe o atual estado de Mato Grosso do Sul foi, desde o

início de sua colonização, palco de intensos conflitos pela posse de terras. A região

mantém uma tradição de lutas e disputas oligárquicas pelo poder político e pelo prestígio

social. Concentração de terra, expropriação e violência são fatores que se encontram

associados à história de Mato Grosso e estende-se à constituição do estado de Mato Grosso

do Sul (1977).

A exploração do trabalho indígena também foi um recurso usado pelos

desbravadores, por falta de mão-de-obra especializada ou mesmo pelo custo que ela

apresentava. Os índios foram usados no “trabalho compulsório”, explorados por aqueles

que já os havia expropriados de suas terras. Pontua Borges que a violência pela posse da

terra se insere no cotidiano da população em decorrência da associação de fatores de

dominação econômica, política e social (2002, p. 117).

O processo de povoamento do antigo sul de Mato Grosso foi intensificado a

partir do fim da guerra entre Brasil e Paraguai (1864-1870), quando a região passou a

receber grande número de imigrantes e muitas famílias voltaram para reestruturar suas

propriedades. Após o fim do conflito viu-se também aguçado o interesse de empresas

estrangeiras, que requereram grandes glebas de terra dentro do Estado (QUEIROZ, 2004,

p. 30). As atividades econômicas ganharam impulso com a abertura à livre navegação do

rio Paraguai, fato ocorrido com a derrota desse país pela Tríplice Aliança.

A luta pela posse de terras foi um fator de tensão e violência no início do

período republicano. Os latifúndios eram sinônimos de poder político e econômico, a

disputa pela supremacia política regional fez com que se manifestasse com intensidade o

fenômeno coronelista, o que contribuiu para a proliferação da violência no Estado, uma

violência legítima e autorizada, já que era também praticada pelas autoridades políticas

locais (CORRÊA, 1999).

A delimitação dês fronteiras do sul do antigo Mato Grosso foi um processo de

grandes conflitos, o que facilitou a proliferação do banditismo, principalmente no extremo

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sul do Estado. A fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Cabalhero (cidade paraguaia) era

como se não existisse, a relação entre pessoas e o contrabando de mercadorias eram

atividades corriqueiras, assim como o idioma predominante nas cidades brasileiras de

fronteira era o guarani, dando a impressão de que todos pertenciam a uma mesma nação18.

Desde o início do século XX, viu-se a necessidade das elites locais em afirmar

– ou construir – uma identidade mato-grossense que contrapusesse o estigma da barbárie

atribuído à população do Estado19. Esse processo colaborou, no entanto, para que as

oligarquias latifundiárias se legitimassem no poder, garantindo prestígio social e político,

legando à sociedade atual o problema da posse exagerada da terra, as fazendas de

especulação e milhares de expropriados do direito à terra para trabalhar e viver.

Um exemplo de aristocracia coronelista do período supracitado foi a Matte

Larangeira20, uma empresa ligada ao capital estrangeiro, que concentrou por mais de meio

século, a extração da erva-mate nativa dentro do Estado. A empresa tornou-se um “estado

dentro do estado”, com leis e milícia próprias, sendo ainda caracterizada pela estreita

relação entre o público e o privado, em que os interesses da Matte se misturavam aos

interesses governamentais (ARRUDA, 1997).

A Companhia usava de todos os recursos possíveis para manter o espaço físico

dos ervais longe dos intrusos, já que somente ela era legalmente autorizada à explorar essa

região (ARRUDA, 1997, p. 34). Junto à extração da erva vinha a exploração do trabalho

indígena e o recrutamento forçado de paraguaios e brasileiros para trabalhar nos ervais.

Segundo Arruda, a área de exploração da empresa chegou a abranger, por um

determinado período, mais de cinco milhões de hectares, o que correspondia a uma grande

porção da área do extremo sul do antigo Mato Grosso, configurando-se o maior

arrendamento de terras devolutas à uma empresa particular do país (1997, p. 34).

Após a Proclamação da República, a regulamentação de terras devolutas dos

Estados brasileiros ficou a cargo das Constituições Estaduais. No antigo estado de Mato

Grosso, a Constituição veio a ser elaborada por uma Assembléia Constituinte, que foi

eleita em meio a muita conturbação política. A Assembléia promulgou a Constituição

18 QUEIROZ, 2003, p. 30-31 em referência a COSTA MARQUES, 1913, p.398-399; PEREIRA, 1928 p. 25; SODRÈ, 1941, p. 189. 19 A respeito do processo de construção da identidade mato-grossense conferir ZORZATO 1998 e GALETTI, 2000. 20 A grafia da palavra Matte Larangeira foi mantida no texto conforme o original do nome da empresa que é originário do nome do primeiro proprietário: Thomas Larangeira.

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Estadual em 15.08.1891 e elegeu como presidente de antigo Mato Grosso, Manoel José

Murtinho21, um dos sócios da Companhia Matte Larangeira (CORRÊA, 1995).

Em um estudo recente, Oliveira (2004) analisa como essa influência política

detida pela Companhia Matte Larangeira limitou e dificultou a constituição de pequenas

propriedades em terras de domínio da empresa. Nota-se, assim, a dificuldade de ocupação

de terras por parte de colonos e índios nessa região. A posse de terras por meio da

violência é um processo presente ainda hoje no estado de Mato Grosso do Sul, assim como

a forte relação entre grandes proprietários e forças políticas.

Não só propriedades privadas encontravam barreiras para se legitimar, a

elevação de núcleos populacionais em municípios foi também barrada em detrimento dos

interesses da Companhia:

É compreensível que enquanto mantivera a Matte Larangeira o controle legal de exclusividade na exploração da região ervateira, dificilmente haveria, como de fato não houve, emancipações de municípios. Se equacionarmos que em 1911 foi criado o distrito de Dourados e em 1915 reservadas terras para constituir o patrimônio da vila; apenas em 20 de dezembro de 1935, ocorreria a emancipação político administrativa do município de Dourados, e tão somente em 26 de outubro de 1938 viria receber foros de cidade (Decreto-lei estadual nº 208) (ALBANEZ, 2003, p. 43-44).

O poderio que detinha a Companhia, no entanto, começa a definhar no início

dos anos 1930. Seu declínio está relacionado a uma forte pressão dos trabalhadores dos

ervais, à migração dos gaúchos que passam a negar o monopólio controlado pela Matte, à

queda que a erva sofreu no mercado consumidor, à concorrência com a erva argentina e a

política desenvolvida pelo governo federal de colonização das fronteiras, quando o

governo de Vargas elevou consideravelmente a taxação sobre o produto e passou a negar

pedidos de renovação do contrato de arrendamento dos ervais.

Com o fim das concessões de arrendamentos à Companhia Matte laranjeira,

começou a desenvolver, no antigo sul de Mato Grosso projetos de colonização estatal,

aumento de colonizadoras particulares e uma expressiva expansão das frentes pioneiras22

compostas, sobretudo, por paulistas e paranaenses.

A presença de grandes latifúndios – em especial os de posse de empresas

estrangeiras – nas fronteiras entre Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia foi motivo de

21 Os “Murtinhos”, como eram conhecidos, formavam uma das mais poderosas oligarquias do antigo Mato Grosso; detentora de grande poder econômico, político e prestígio social. Dr. Manoel Murtinho foi presidente da província de Mato Grosso e seu irmão, Joaquim Murtinho, fora ministro e senador por três mandatos, entre outras atribuições políticas. 22 As frentes pioneiras são aqui compreendidas como processos migratórios caracterizados pela direção, promovida por políticas fundiárias e composta por homens detentores do capital, diferenciando-se das frentes de expansão, a qual ocorreu mais espontaneamente e é caracterizada pela posse da terra, destacando a figura do posseiro (MARTINS, 1975, in FABRINI, 1995, p. 43-44).

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preocupação no governo de Vargas, que passou a negar a concessão de terras num raio de

150 km da faixa de fronteira e a favorecer a instalação de pequenas propriedades nessa

região (LENHARO, 1986, p. 49-50). Através da instituição da Comissão Especial de

Revisão das Concessões de Terras na Faixa de Fronteiras – CEFF (decreto nº 4265, de

20/07/1939), o governo federal passou a fazer a revisão das concessões de terras feita pelos

governos estaduais e municipais ao longo das regiões fronteiriças (ALBANEZ, 2003, p.

58). Apresentando preocupações geopolíticas, criou dois Territórios Federais em áreas

especifica de concentração ervateira: o de Ponta Porã ao extremo sul do estado de Mato

Grosso e o de Iguaçu já em território paranaense23.

A política desenvolvida durante o governo de Vargas visava, entre outros

aspectos, a legitimação do Estado Novo e a nacionalização das fronteiras através de um

imperialismo interno, de modo “que as ilhas de prosperidade industrial ocupassem os

espaços despovoados...” (LENHARO, 1986, p. 24).

A campanha Marcha para Oeste, desenvolvida a partir de 1938, que objetivava

direcionar as correntes migratórias de áreas de conturbações sociais para os espaços

despovoados do país, fortaleceu a expansão das frentes pioneiras às fronteiras agrícolas do

país. Fatores que acarretaram um crescimento populacional e um aumento considerável nas

apropriações de terras no antigo Sul de Mato Grosso, o solo fértil, barato e esparsamente

habitado era terreno atrativo, o que acabou por acirrar os conflitos pela posse das terras.

É sabido que as vastas extensões do SMT [Sul de Mato Grosso], embora esparsamente habitadas, não se encontravam propriamente “vazias”: a posse latifundiária, por exemplo, estava presente em quase toda parte, e nos terrenos devolutos da zona ervateira viviam numerosas comunidades indígenas (QUEIROZ, 2004, p. 30) [Aspas no original].

Dentro da política de nacionalização das fronteiras, o governo inicia, em 1938,

a ampliação da estrada de ferro Noroeste do Brasil (NOB) com a construção de um ramal

que partiu da cidade de Campo Grande até o sul do Estado, ligando o país à vizinha

República do Paraguai, e também incentivou o assentamento de trabalhadores pobres em

pequenas propriedades criando pelo Decreto-lei 3.059, de 11 de fevereiro de 1941, as

colônias agrícolas nacionais, com o propósito de distribuir terras em territórios pouco

povoados a trabalhadores rurais sem terra; entre elas, pode-se destacar a CAND (Colônia

Agrícola Nacional de Dourados), criada em 1943, no município de Dourados.

23 “Os territórios de Ponta Porã e Iguaçu, que chegaram a ter sede e interventor, tiveram breve existência: a Constituinte de 1946 considerou por bem reincorporá-los aos estados de que haviam sido desmembrados...” (BITTAR, 1999, p. 123; Cf. também QUEIROZ, 2003, p. 32-33).

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A criação de uma colônia agrícola na região de Dourados encontrou resistência

por parte de políticos que formavam oligarquias agrárias dentro do estado e temiam uma

reestruturação do espaço destinado a seus latifúndios (OLIVEIRA, 1999, p. 169). No

entanto, conforme Martins, as pequenas propriedades incentivadas pelos projetos de

colonização não decorreram de uma reestruturação econômica e social que dificultasse a

sobrevivência do latifúndio, na verdade, elas surgiram como complemento a ele, dando-

lhes novas condições de reprodução (1991 p. 89).

A CAND estava inserida em um projeto político que buscava amenizar as

tensões que vinham ocorrendo no campo, em especial no nordeste brasileiro, e evitar o

aliciamento de trabalhadores desempregados em sindicatos e organizações, como os

movimentos operários. Esses projetos de colonização procuraram não disputar terreno

com os grandes latifúndios, sendo, deste modo, direcionados às terras de menor tensão

social e distantes dos grandes centros populacionais.

Seguindo a iniciativa do governo federal, o governo estadual e, mesmo os

prefeitos municipais, passaram a incentivar a implantação de colônias agrícolas em todo o

Estado (QUEIROZ, 2004, p. 30). Para promover as vendas das propriedades eram feitos

até anúncios em emissoras de rádio paulistas e paranaenses, instigando, por meio de

canções e propagandas, as pessoas a virem para o Mato Grosso (FABRINI, 1995, p. 48).

Vale lembrar que os loteamentos não foram restritos às ações governamentais,

a margem deles estavam as empresas colonizadoras que loteavam grandes glebas de terra

dentro de um sistema especulativo, como a Companhia Viação São Paulo/Mato Grosso, a

SOMECO, a Colonizadora Vera Cruz/Mato Grosso, entre outras.

Grande parte das terras do extremo sul do antigo Mato Grosso foi adquirida por

empresas privadas junto ao Estado, entre os anos de 1930 e 1940, que então passavam a

revendê-las a fazendeiros quando já estavam valorizadas, o loteamento era feito em menor

escala, isso porque acarretaria grande despesa com agrimensores e corretores. Mais de

97,1% dos títulos concedidos pelo Estado, entre os anos de 1930 e 1940, foram de mais de

1.000 ha (FABRINI, 1995, p. 61-62).

A apropriação de grandes glebas de terras por fazendeiros de outros estados

propiciou a difusão do absenteísmo, uma prática corrente no Estado. A apropriação das

terras ocorreu antes mesmo de um processo de povoamento mais intenso, fazendeiros

paulistas e paranaenses e empresas colonizadoras garantiram grandes propriedades de

terras, mesmo sem povoar a região.

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O extremo sul do antigo Mato Grosso foi, pelo menos até os anos 1950, uma

região de matas nativas. A principal atividade econômica que nele predominou por mais de

meio século – a extração da erva-mate nativa – apesar de predatória, pouco transformou o

ecossistema florestal. No entanto, a partir do surto populacional ocorrido nos anos de 1960,

com a expansão da fronteira agrícola do sul e do sudeste brasileiro, essa paisagem passou a

ser destruída. A marcha pioneira foi uma “destruidora de riquezas naturais” e esses

“homens por demais apressados” trouxeram consigo capital e técnicas devastadoras,

transformando essas matas em campos limpos (PÉBAYLE e KOECHLIN, 1981, p. 10).

A colonização ressente dessa região não alterou apenas seu padrão ecológico,

mas também as relações de trabalho ali existente. Esse quadro de ocupação de terras que

privilegiou a grande propriedade foi ainda agravado com a inserção do grande capital no

estado, favorecido por uma conjuntura nacional de expansão da agricultura desenvolvida

durante o Regime Militar (1964-1985).

A partir dos anos de 1960 e 1970, é perceptível a entrada de fazendeiros vindos

do sul do país, que impulsionados pela desvalorização das terras no Estado e pelos

incentivos fiscais e financiamentos a juros irrisórios, voltam-se à região para trabalhar com

monocultura de grãos para a exportação. Segundo Martins, o Estado abriu novos espaços

ao capital e com os incentivos fiscais transferiu o dinheiro público ao domínio privado,

lesando e expropriando o país inteiro. As terras abertas aos capitalistas na década de 1970 e

1980, ditas como devolutas e inabitadas, eram, em sua maioria, terras indígenas ou já

estavam sendo ocupadas por posseiros; nelas os retirantes só permaneciam até a vinda do

pioneiro abarrotado por incentivos governamentais (1991, p. 120).

A partir dos anos de 1970, o antigo sul de Mato Grosso passou a ser dividido,

grosso modo, entre a pecuária extensiva e a produção agrícola mecanizada. Conforme

estudo feito por Albanez, nos anos de 1970, na região do extremo sul do Estado, as

propriedades com mais de 1.000 ha representava 77,45 % da área rural ocupada (2003, p.

103) e quase a totalidade dessas terras estavam sob domínio dos proprietários. “Os

arrendatários e ocupantes mantiveram-se, em todos os grupos analisados, numa faixa

reduzida que, posteriormente, se traduzirá em conflitos na luta pela reforma agrária” (p.

77):

Portanto, se há um certo consenso em torno de ser o sul do atual Estado de Mato Grosso do Sul uma região onde há uma menor participação do latifúndio em comparação a outras regiões do Estado, isso não pode ser levado à risca a ponto de se acreditar que houve com a colonização da região uma distribuição eqüitativa das terras. Como se pôde ver, a partir dos indicadores do IBGE, o oposto parece ser o mais correto... (ALBANEZ, 2003, p. 84).

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Nos anos de 1970, a grande propriedade predominava em toda região, em

especial, sob a égide da pecuária extensiva, atividade que ocupava quase a totalidade das

áreas, reduzidas a poucos estabelecimentos. A agricultura estava restrita às pequenas

propriedades, que, apesar de numerosa, representava uma parcela ínfima das terras

ocupadas.

Segundo Fabrini, as terras de Itaquiraí e região já nasceram concentradas. As

grandes glebas de terras devolutas adquiridas junto ao Estado nos anos de 1930 e 1940, não

foram parceladas e suas áreas foram vendidas integralmente a pecuaristas da frente

pioneira paulista e paranaense, quando estas já estavam valorizadas. Grande parte das

terras pertencentes a esses municípios foi mantida como reserva de valor por vários anos,

“norteado por interesses especulativos, característica do latifúndio brasileiro” (1995, p. 65).

A partir dos anos de 1970, as grandes propriedades mantidas como reserva de

valor especulativo, passaram a integrar o grupo de grandes empresas rurais, caracterizada,

sobretudo, pela monocultura para exportação ou pela pecuária extensiva. Uma vez que

passam a apresentar certa produção, mesmo que ínfima, não se enquadram mais na

definição legal de latifúndio.

As formas como as questões agrárias e agrícolas foram tratadas ao longo da

história brasileira, e especificamente no do antigo de estado de Mato Grosso, estendendo-

se à criação do estado de Mato Grosso do Sul, é reveladora de uma sociedade conservadora

que mantém a propriedade da terra como especulação, como reserva de valor, como

sinônimo de poder político e social. Dentro desse quadro de concentração fundiária, que

impôs barreiras ao desenvolvimento da pequena propriedade, ao mesmo tempo em que

requeria a presença do trabalhador rural como forma de suprir-se de mão-de-obra, é que

podemos entender a entrada, ou a sujeição, de homens à condição de sem-terra no estado e

uma posterior deflagração de movimentos sociais de luta pela terra.

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CAPÍTULO II

MEDIAÇÃO E AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA TERRA EM MATO GROSSO DO SUL

Esta cova em que estás com palmos medida É a conta menor que tiraste em vida

É de bom tamanho nem largo nem fundo É a parte que te cabe deste latifúndio

Não é cova grande, é cova medida É a terra que querias ver dividida

É uma cova grande pra teu pouco defunto Mas estás mais ancho que estavas no mundo

(João Cabral de Melo Neto, Funeral de um lavrador – parte)

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2.1 Emergência dos Movimentos Sociais na agenda a Reforma Agrária.

Os acampamentos de sem-terra, objeto de estudo dessa pesquisa, fazem parte

de um contexto histórico de mobilização de luta pela terra, que iniciou em várias regiões

do país em fins dos anos de 1970 e que se fortaleceu e se expandiu no final do século XX e

início do século XXI.

Os chamados novos movimentos sociais dos anos de 1970, embora pautados

nos movimentos gestados entre 1945 a 1960, traziam consigo diferentes formas de agir, de

pensar e de compreender a sociedade; são novos movimentos frutos de uma nova

sociedade, e que surgiram ao mesmo tempo em que fez surgir uma nova conjuntura

histórica.

Segundo Gohn, um “movimento social refere-se a ação dos homens na história.

Esta ação envolve um fazer – por meio de um conjunto de procedimentos – e um pensar –

por meio de um conjunto de idéias que motiva ou dá fundamentos a ação” (GOHN, 2004,

p. 247). Essa relação entre as práticas e as representações, entre o fazer e o pensar

presentes nos grupos sociais que passaram a se organizar a partir dos anos 1970, vai

engendrar o que Sader chamou de um novo sujeito social.

O contexto histórico de emergência dessas organizações caracteriza-se por um

conjunto de situações pelas quais o país passava: crises econômicas, queda salarial e alto

índice de desemprego; sinais que evidenciavam o esmaecimento do regime ditatorial que

vigorava desde 1964, e que se mantivera, em um curto período, sob plano de crescimento

econômico favorável, o chamado Milagre Econômico.

Associado ao declínio do regime, ocorria um fortalecimento de movimentos

pela da reorganização de sindicatos e associações. Vários grupos se organizaram em

contraposição ao regime e se fortaleceram a partir da então abertura política, que segundo

o então presidente Ernesto Geisel (1974-1979), deveria ser “lenta, gradual e segura” para

evitar conturbações sociais.

As greves, sobretudo do ABC paulista, as manifestações da CPT e a

reestruturação de sindicatos em fins dos anos de 1970, evidenciavam o fim de um regime

alçado na repressão e no autoritarismo. As lutas no campo se intensificavam resultando em

greves de cortadores de cana na Zona da Mata, no Pernambuco, que chegou a mobilizar

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240 mil trabalhadores em 1980. Esse movimento grevista no campo se estendeu a outras

regiões do nordeste, como no Rio Grande do Norte, em 1982, e na Paraíba, em 1984

(FABRINI, 1995, p. 81-82).

Como expressão de um momento político opressor, viu-se durante o regime

militar todo tipo de direitos e liberdades limitados. As políticas econômicas fracassadas

fizeram insurgir um processo de exclusão social com altos índices de desempregados e

quedas salariais. Quanto à reforma agrária, ficou restrita a alguns projetos de colonização

destinados à áreas de menor conturbação social e pouco povoadas. O Estatuto da Terra,

promulgado ainda em 1964, estabeleceu parâmetros de utilização da terra para uma

exploração racional dos latifúndios brasileiros, transformando-os em empresas rurais.

O nível de expropriação foi tão intenso que gerou uma multidão de

trabalhadores rurais sem emprego, sem terra, sem perspectiva. São milhares de pessoas que

passaram a viver nas periferias das cidades e que encontraram na luta pela terra uma saída

à situação de miséria em que viviam. Para Martins, os protestos de contestação à

propriedade que excede as necessidades de quem a possui é resultado da “privação de

trabalho que ela impõe aos que dela precisam para trabalhar” (1989, p. 22).

Farias (1997) lembra que esses movimentos eram, no referido período, ainda

pouco organizados; foram levantados a partir do interior de comunidades oprimidas, que

passaram a contestar o sistema exploratório em que viviam:

[...] Esses movimentos surgiram da prática nos grupos, articulando-se coletivamente a cada atividade desenvolvida, a cada discussão, a cada decisão, sem que houvesse uma teoria prévia que os orientasse. Trata-se de uma aprendizagem com base no próprio cotidiano e na realidade, apresentando condições de difícil sobrevivência e de exercício da cidadania, com característica comuns de organização, linguagem, expressão e valores (FARIAS, 1997, p. 45).

Com o esmaecimento do regime e a possibilidade de uma abertura política, a

população volta a aspirar uma sociedade mais justa, mais igualitária, menos opressora e

que seja capaz de lhes assegurar direitos básicos, como saúde, trabalho, liberdade e o

próprio direito ao exercício da cidadania. Com essas aspirações vários grupos da sociedade

civil passam a se organizar: clubes de mães, sociedades de bairros, grupos de estudantes,

sindicatos. Assim como também grupos de arrendatários e posseiros que se organizam em

contraposição à opressão e aos rumos tomados pela política ditatorial de capitalização do

campo.

[...] Falamos, então, em novos movimentos sociais, em novos sujeitos políticos, visto que são grupos que questionam o regime político, que não é tão legitimo como procura parecer... suas reivindicações passam também pelo resgate da

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dignidade humana que se traduz muitas vezes na liberdade de controlarem seu tempo, na volta às suas tradições, às raízes com a terra (FARIAS, 1997, p. 48).

Em oposição à organização desses grupos que passaram a lutar pela terra, foi

criada, por grandes proprietários rurais, em junho de 1984, a UDR (União Democrática

Ruralista). Com essa organização, os latifundiários passaram a intervir nos rumos da

Constituição de 1987, a fim de evitar que ela atendesse às reivindicações dos grupos

sociais de luta pela terra.

Medeiros aponta a Constituinte, paradoxalmente, como um avanço e um

retrocesso ao desenrolar de projetos de reforma agrária, quando prevê que deverá se

destinar aos projetos de reforma agrária todas as terras que não cumpram sua função

social. A definição de função social foi um avanço por incluir o respeito aos direitos

trabalhistas e ao meio ambiente e considerar índices de produtividade. Mas ao mesmo

tempo não esclareceu, e ainda hoje não ficou esclarecido, o que é terra produtiva e o que

não é. E essa indefinição acaba abrindo espaços para inúmeros recursos (MST, 2004).

Ressalta-se, no entanto, que esses grupos de reivindicantes não estavam

sozinhos, contavam com a participação de organizações como sindicatos, igrejas e partidos

políticos. A luta desses novos movimentos estava baseada na reivindicação social de

melhor qualidade de vida e garantia de direitos constitucionais, eram grupos com interesses

e necessidades em comum que experimentavam novas formas de organização

reivindicatória, mais autônomas e mais participativas que as manifestações sociais gestadas

no período que antecede 1964.

2.2 Em cena a CPT, a FETAGRI, o MST e a CUT

2.2.1 Lançando as sementes: A CPT

Sempre eu tenho refletido e não deixo apesar dos momentos difíceis morrer a utopia, que é aquele texto do João 10 -10, que Jesus disse: “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundancia”, e enquanto isso não acontecer eu não posso esmorecer. (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

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A gênese dos movimentos sociais de luta pela terra em Mato Grosso do Sul

está historicamente ligada à atuação da Comissão Pastora da Terra (CPT), uma pastoral da

Igreja Católica fundada nacionalmente em julho de 1975, durante o Encontro da Pastoral

da Amazônia, convocado pela CNBB e realizado em Goiânia (GO)24. A despeito de

encaminhamentos que já vinham sendo tomados pelos Bispos da Amazônia e do Nordeste

brasileiro com relação aos problemas relativos ao uso e posse da terra e a fenômenos

migratórios, é fundada oficialmente a CPT Nacional ligada à Linha Missionária da CNBB

(CPT/MS, 1993).

A Igreja Católica passava por momentos de redefinição teórica, proporcionados

pelo pensamento progressista difundido por uma corrente intelectual da Igreja, a Teologia

da Libertação, assinalando uma nova visão da Igreja latino-americana, de caráter mais

progressista, de cunho social, voltada aos pobres e de apoio aos movimentos sociais

(FARIAS, 1997, p.52-53).

Desde o Concílio do Vaticano II (1962), a Igreja Católica vinha sendo

instigada, em todo o mundo e principalmente na América Latina, a buscar uma renovação

que freasse a perda sucessiva de fiéis. Como fruto de um contexto histórico, político e

social de desenvolvimento capitalista, e à luz das orientações do Vaticano II, uma ala da

Igreja passa a questionar a marginalização de grande parte da sociedade em detrimento ao

desenvolvimento econômico, orientação que amadurecida recebeu o nome de Teologia da

Libertação.

Embasadas na Teoria da Libertação, as pastorais católicas, em especial a CPT,

afirma sua opção pelos pobres, afasta-se da política elitista desenvolvida pela Igreja

Católica e chega a ser vista como parte subversiva da Igreja. A Comissão passou a

trabalhar diretamente com os trabalhadores sem-terra, participando do seu dia-a-dia,

conhecendo seus anseios, direcionando e encaminhado as discussões pertinentes à

manutenção do homem a terra.

A CPT contribui com o encaminhamento das discussões relativas ao uso e a

propriedade da terra como questão política, manifestado-se mediante de passeatas,

denúncias, abaixo-assinados, esclarecimentos à sociedade, mas, como nos lembra Farias,

sua maior contribuição está na presença periódica ou mesmo diária de padres, bispos,

religiosos e leigos em acampamentos e assentamentos (1997, p. 50). As Comunidades

24 O Nascimento da CPT, disponível em www.cptnac.com.br, acessado em 06.02.2004.

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Eclesiais de Base (CEB,s) constituíram um grande avanço nesse sentido, à medida que

organizavam grupos de atuação dentro de comunidades agrícolas.

Segundo a própria Comissão, ela adquiriu uma tonalidade diferente em cada

região que atuava, de acordo com os desafios que a realidade apresentava, sem, contudo,

perder de vista o objetivo maior de sua existência: ser um serviço à causa dos trabalhadores

rurais, sendo um suporte para sua organização25. Porém, apesar dessa relativa adaptação na

atuação da Comissão às regiões, sabe-se que a CPT atuava (e atua) embasada em diretrizes

nacionais.

Irmã Olga Manosso, uma das primeiras lideranças da CPT no então estado de

Mato Grosso, lembra que ao realizar trabalhos de conscientização com trabalhadores rurais

a fim de organizar um sindicato, fora lembrada por um padre de sua responsabilidade

cristã: Aí ele veio em 76, então ele me falo que... que nós não deveríamos ta conversando a questão do sindicato mas que como cristãos, cristãos, é importante se integrar e começasse a se pensar na Pastoral da Terra, então em 77 pra 78 foi organizado o sindicato dos trabalhadores rurais de Glória de Dourados (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

Deste modo, ocorre em 1978, o primeiro encontro da CPT no Estado, na cidade

de Glória de Dourados. Segundo ata da assembléia, era notório que nessa região “as

melhores terras eram para o pasto, apenas as piores iam para o arrendamento e a preços

exorbitantes. O boi era prioritário e o capim precedia a lavoura”. Ainda nesta mesma

reunião, a instituição traçou seus objetivos na condução da luta contra a opressão,

exploração e expropriação vivenciadas por trabalhadores rurais, os quais estavam pautados

sobre os escopos de: Ajudar os lavradores, a luz do Evangelho, descobrirem que, como cristãos tem o dever e a capacidade de construir um mundo diferente; colaborar para que o homem do campo faça parte integrante da sociedade; despertar e apoiar o esforço continuado de unir os lavradores (CPT, 1993).

A atuação da CPT foi de suma importância àqueles que sem chão, sem terra e

sem tranalho, puderam contar com o apoio de padres e religiosos dispostos a lutar pelos

seus direitos como trabalhadores do campo. Sua importância não se restringe à atuação de

seus membros em mobilizações sociais, protestos, reivindicações e denúncias, mas à

medida que a Comissão se mobilizava e organizava esses trabalhadores, ela contribuía

ainda a uma conscientização política, a partir dela originando vários outros movimentos,

lideranças, sindicatos e organizações.

25 O Nascimento da CPT, disponível em www.cptnac.com.br, acessado em 06.02.2004

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Da cidade de Glória de Dourados, o centro coordenador da Comissão, foi

transferido para a cidade de Campo Grande e outros núcleos regionais foram criados nas

cidades de Três Lagoas, Corumbá e Aquidauana.

Durante os anos iniciais de sua atuação, além da luta pela terra, a CPT

conduziu também as discussões dos ribeirinhos e ilhéus, participou da organização de

assentamentos, de associações e cooperativas, como a COAAMS (Coordenação das

Associações dos Assentamentos de Mato Grosso do Sul), a COAGRAN (Cooperativa dos

Assentados da Grande Dourados), COARJ (Cooperativa dos Assentados da Região de

Jadim), entre outras; manifestou-se de diversas formas contra grandes projetos capitalistas

que não cumprem seu papel social, como as Usinas de Álcool e Hidrelétricas.

No ano de 1984, em reunião na cidade de Fátima do Sul, os membros da CPT

decidem mudar as estratégias de atuação dos sem-terras e partir para a ocupação como

meio de luta (CPT, 1993). Dessa mudança de estratégia de luta surge a ocupação da Gleba

Santa Idalina, em Ivinhema, no ano de 1984, e logo o acampamento dos Brasiguaios em

Mundo Novo (1985), que são dois momentos que marcam a gênese da luta pela reforma

agrária de forma organizada em Mato Grosso do Sul.

Em fins da década de 1980, a CPT começou a enfrentar inúmeros obstáculos

internos à Igreja para continuar atuando, a falta de recursos reduziu e limitou seu trabalho

junto aos trabalhadores pobres do campo. Como coloca Farias, a Comissão não poderia

continuar atuando sem o apoio financeiro da Diocese, padres e bispos se manifestavam

contra seu funcionamento, o que levou ao fim de suas atividades em quase todos os

municípios do estado de Mato Grosso do Sul (1997, p. 59).

Deve-se isso, em grande parte, a um retrocesso da Igreja Católica em nível

mundial. No início dos anos de 1980, o Papa João Paulo II publicou um documento a fim

de retificar a atuação de teóricos seguidores da Teologia da Libertação, acusou-os por

heresias pelo uso de conceitos marxistas e de fazerem interpretações “errôneas” de

documentos anteriores como o Concilio do Vaticano II. Como expressão do retrocesso ao

conservadorismo da Igreja Católica, João Paulo II passou a intervir nos currículos dos

seminários e limitou a influência de importantes Dioceses, como a de São Paulo, que tinha

um cardeal-arcebispo adepto da Teologia da Libertação (PEREIRA, 2006, p. 102-103).

Essas manifestações levaram a uma deslegitimação da Teologia da Libertação,

o que fez alguns adeptos se afastarem da vida sacerdotal e religiosa. Verifica-se hoje,

dentro da Igreja, que a preocupação maior está relacionada à espiritualidade e não à

problemas de cunho social, como fala Irmã Olga:

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E atualmente, então o retrocesso que se percebe, que é apontado desde Roma e no Brasil também, na CNBB, que não tem mais postura firme de pronunciamento. Aqui no Estado então, acabou mesmo. Existe só essa pequena equipe de Campo Grande, com algumas pessoas liberada, duas em Dourados, eu não sei bem quantas no Sudeste, mais é muito pouca pessoas. Então, isso reflete a posição conservadora da Igreja. E principalmente agora na questão da Igreja Católica, a preocupação é... nas construções, nos prédios, Igrejas, casas paroquiais e não mais na formação das pessoas. Eu penso que vocês também têm conhecimento dos movimentos conservadores na Igreja Católica, que tão tomando de conta, né? Que é a questão do movimento Neo Catecumenato, a Renovação Carismática Católica e outros assim, que existe [...] (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

A falta de apoio financeiro restringiu a atuação da CPT, não só no estado de

Mato Grosso do Sul. Foi uma posição tomada pela Igreja em nível nacional, apresentando

certa variação de uma região à outra de acordo com a posição ideológica das Dioceses.

Alguns teóricos e religiosos ainda mantêm postura firme diante das dificuldades

enfrentadas pelos pobres da terra, mas eles se restringem a uma minoria que encontra todo

tipo de dificuldade para atuar e que são veementemente criticados pelas alas mais

conservadoras da Igreja Católica.

Entre as instituições que a CPT ajudou a organizar, podemos destacar o MST –

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – que surgiu no Mato Grosso do Sul por

meio das Comissões de Sem-terra, organizadas pela CPT no início dos anos 80. As duas

instituições passam a caminhar paralelamente durante alguns anos, apesar das relativas

divergências decorrentes do caráter agressivo que o MST adquiriu. As diferentes formas de

pensar e de agir, entre a CPT e o MST, contribuíram para o distanciamento da CPT da luta

direta pela posse da terra, passando a restringir seu trabalho à assistência e ao apoio às

famílias assentadas e pequenos proprietários, desenvolvendo um trabalho social de

organização dos lotes e orientações de trabalhos.

E aí a luta pela terra fico do MST e depois posterior, FETAGRI, CUT e agora também a Federação da Agricultura Familiar, esses movimentos que estão fazendo a luta pela terra. E a Comissão Pastoral da Terra continua, dentro de seus limites, na questão da educação, apoio a Associações nos assentamentos e a organização das mulheres camponesas, agora direitos previdenciários [...] E a CPT tem se dedicado mais ao trabalho de formação de educadores, educadoras e temas como de comunidades, de igreja, também cursos de formação bíblica na ótica da terra... (IRMÂ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

Segundo documentos da CPT, seu distanciamento definitivo da luta pela terra

aconteceu em 1992, quando passou a atuar com número reduzido de pessoas e direcionou

suas atuações a outros trabalhos sociais. No entanto, não se pode negar a importância da

Comissão na gênese da luta pela terra em Mato Grosso do Sul, tarefa assumida, na

atualidade, por outros mediadores como o MST, que ela própria ajudou a organizar em

meados dos anos de 1980, a FETAGRI e a CUT.

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2.2.2 Novos mediadores: O MST, a FETAGRI e a CUT

No estado de Mato Grosso do Sul atuam três expressivos mediadores da luta

pela terra: o MST e as organizações sindicais CUT e FETAGRI. Embora aparentemente,

esses mediadores apresentem formas homogêneas de enfrentamento e resistência,

pautadas, sobretudo, na estratégia de montar acampamentos à margens das estradas, a

práxis dessas organizações são marcadas por diferenças que estão relacionadas a sua

formação, as formas de atuação e até a própria compreensão do homem e da sociedade.

Esses três agentes sociais (o MST a FETAGRI e a CUT) surgiram no estado

entre as décadas de 1980 e 1990, e passaram a trabalhar, cada qual com suas

especificidades, para atender às necessidades de sujeitos vítimas de processos sociais

econômicos e políticos excludentes.

O MST foi um dos primeiros movimentos a atuar no estado de Mato Grosso do

Sul. Formou-se a partir das Comissões de Sem-Terra, organizadas pela CPT no inicio dos

anos de 1980. As Comissões de Sem-Terra foram aos poucos conquistando sua autonomia,

o que as levaram a desenvolver métodos próprios de atuação, nem sempre condizentes com

a forma cristã/católica de ver e entender a questão da terra. Segundo alguns autores, a

formação efetiva do MST no Estado está relacionada à vinda de um casal da Direção

Nacional do MST, em 1986, para organizar a ocupação da fazenda Italsul, no município de

Itaquiraí. Essa ocupação, marcou também a separação entre as Comissões de Sem-Terra e

a CPT (FABRINI, 1995, p.87-88; SOUZA, 1992; FARIAS, 1997).

Nacionalmente o Movimento já havia se consolidado. Segundo Fernandes, o

MST foi gestado no período que compreende os anos de 1979 a 1984, sua gênese está

relacionada ao processo de lutas e resistências de trabalhadores contra a expropriação e

exploração que sofreram nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso

do Sul durante esse período (2000, p.50).

Em 1982, realizou-se o primeiro encontro regional dos sem-terra na cidade de

Medianeira/Paraná, nele estavam presentes representantes dos estados de Santa Catarina,

Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. A partir desse momento, o

movimento começou a traçar suas metas e articular-se a propósito de se tornar um

movimento de massa de abrangência nacional. Em janeiro de 1984, ocorreu o segundo

encontro do Movimento, esse já em nível nacional. Nesse encontro, o Movimento foi

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estruturado, ganhou nome, caráter político e teve suas formas de ação definidas. Esse foi o

momento que se fundou oficialmente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

(MST), sob o lema: Terra para quem nela trabalha e vive26. No ano seguinte, as ocupações

se intensificaram marcando oposição ao recém elaborado Plano Nacional de Reforma

Agrária, que não atendia às expectativas dos trabalhadores rurais sem-terra. Nesse mesmo

ano foi realizado o primeiro congresso do Movimento em Curitiba, no estado do Paraná.

Por intermédio do trabalho realizado pelo MST os trabalhadores pobres da

terra passaram a aspirar um possível retorno à vida no campo, tanto àqueles que ainda

permaneciam nele (posseiro, arrendatário, peões, empregados assalariados), como aqueles

que na cidade se voltam ao campo periodicamente para o trabalho de bóias-frias, e mesmo

muitos sujeitos que viviam nas periferias das cidades, desempregados e marginalizados.

O Movimento adotou as ocupações de terras como estratégia de luta,

mobilizando trabalhadores rurais sem-terras e levantando acampamentos em todo o país.

Apesar de doloroso, o processo de acampamento (que muitas vezes perdura por anos)

tornou-se o principal meio de luta e estratégia de ação do MST, visto que essa foi a forma

encontrada de obter algum êxodo no desenrolar de projetos de reforma agrária. Dentro do

estado de Mato Grosso do Sul o movimento se consolidou rapidamente e passou a liderar

um grande número de acampamentos.

Assumindo a ocupação e a resistência como estratégias de luta e pressionando

para a execução de projetos de reforma agrária, o MST passou a receber grande rejeição

popular e críticas pela imprensa, que mostra uma imagem intolerante e imprudente à

sociedade. Em estudo recente, SCHWENGBER (2005) analisou as representações na

impressa em relação à imagem do Movimento e pôde observar como os periódicos

especificamente, refletem, ainda hoje, interesses sociais dominantes e buscam deslegitimar

a luta, ora omitindo alguns aspectos ora enaltecendo outros.

Segundo Fabrini, a UDR, que também foi organizada em meados dos anos de

1980, passou a investir em meios violentos para desarticular o Movimento; nesse contexto

o MST adota uma nova palavra de ordem (2001, p. 66). Substitui o lema inicial, pautado

em questões morais e legais: terra para quem nela trabalha e vive, por um que evidencia

sua forma de ação diante das dificuldades impostas: Ocupar, Resistir e Produzir.

26 MST – Vinte anos em movimento (2004), escrito por Marcelo Medeiros e Fausto Rêgo, disponível em http://www.mst.org.br/mst/pagina.php?cd=214.

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A oposição ruralista acabou por acirrar a violência no campo. Segundo dados

da CPT, em 1983 foram assassinadas 81 pessoas, em 1984 foram 124 e em 1985 morreram

171 pessoas envolvidas em conflitos no campo. O MST acusa a UDR de lançar mão de

jagunços e espalhar a violência, contando, também, com apoio de aparato policial, oficiais

de justiça, delegados e juízes, que trabalhavam em defesa dos grandes proprietários27. Os

acampamentos são vistos como caso de polícia e os projetos de assentamentos são

implementados como forma de conter os focos mais acentuados de mobilização social.

Após anos de luta pela verdadeira democratização nacional, os anos iniciais da

década de 1990 podem ser vistos como momentos de grandes vitórias para Movimento. Já

bastante fortalecido em nível nacional, com grande número de trabalhadores envolvidos e

contando com um significativo percentual de trabalhadores assentados. O MST ganhou

legitimidade entre os trabalhadores rurais e abriu caminho para que outros grupos e

organizações passassem a lutar pela reforma agrária.

Na segunda metade da década de 1990, o número de acampamentos e

ocupações aumentaram como forma de reação à política implantada pelo presidente

Fernando Henrique Cardoso, que mantinha uma postura bastante conservadora em relação

à reforma agrária. Segundo dados do MST a esse propósito, no ano de 1995, as ocupações

em nível nacional, envolvendo todos os mediadores, chegaram a 502 e mobilizou mais de

30 mil famílias; em 1996 foram 397 mobilizações e em 1998 ocorreram 446 ocupações,

chegando a tomar projeções internacionais (MST, 2004).

Com relação às mobilizações do MST em nível nacional, houve um aumento

de quase 500% entre os anos de 1990 a 2001, conforme tabela a seguir:

Tabela 3: Número de mobilizações do MST – Nacional

Período Nº de acampamentos Nº de famílias

1990 119 12.805 1991 78 9.203 1992 149 20.596 1993 214 40.109 1994 125 24.590 1995 101 31.619 1996 250 42.682 1997 281 52.276 1998 388 62.864 1999 538 68.804 2000 555 73.066 2001 585 75.730 Total 2.194 368.325

Tabela 3: Fonte MST.

27 MST – Vinte anos em movimento, (2004) disponível em www.mst,org.br, acessado em 08.03.2004.

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No estado de Mato Grosso do Sul esse acirramento nos processos de

mobilização também é percebido. A segunda metade dos anos de 1990 foi um momento

em que mais acampamentos foram levantados e mais assentamentos criados no Estado.

Isso não decorre apenas das mobilizações organizadas pelo MST, mas também em virtude

de outros mediadores como a FETAGRI e a CUT.

O MST encontra-se hoje fortemente organizado em quase todo o Mato Grosso

do Sul, embora suas atuações estejam concentradas mais ao sul do estado, englobando a

região que compreende as imediações de Campo Grande até divisa com o Estado do

Paraná e a fronteira com o Paraguai (cf. Figura 4).

Para melhor organização, o MST está divido em seis regionais: Regional

Centro Sul: região da Grande Dourados, Regional Cone Sul: região de Itaquiraí, Regional

Vale Ivinhema: região de Nova Andradina, Regional Pantaneira: região do Pantanal,

Regional Centro: região de Campo Grande e Regional Norte: região de Camapuã. Essas

Regionais são coordenadas por militantes que fazem parte da Coordenação Estadual do

Movimento, formada em sua maioria por assentados e acampados; são sujeitos que

aprenderam no dia-a-dia do acampamento as formas de luta, e passam gradativamente a

integrar a Coordenação do Movimento. Com essa constatação, se pode dizer que o MST

produz seus próprios lideres, diferente de outros mediadores, que muitas vezes contratam

funcionários ou que as lideranças são formadas por sindicalista e pessoal especializado.

O MST difere burocraticamente de outros mediadores por seu caráter não

sindical, especificidade que lhe atribui características que o distingue na forma de atuação,

organização, hierarquização, entre outros aspectos, de mediadores como a FETAGRI e a

CUT.

A FETAGRI-MS é outro mediador bastante organizado e fortalecido na região.

Ela surgiu no Estado ainda em 1979, ano de implantação do Estado de Mato Grosso do

Sul, e passou a atuar junto aos trabalhadores rurais em parceria com sindicatos rurais

municipais (STRs) existentes nos municípios de Anaurilândia, Bataiporã, Coxim,

Ivinhema, Iguatemi, Nova Andradina e Naviraí. Em 2005, ela congregava 68 Sindicatos de

Trabalhadores Rurais Municipais. Trata-se de uma entidade sindical de 2º grau, já que é

ligada a CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura).

Como um movimento sindical, a Federação está voltada ao trabalho com

famílias de trabalhadores rurais. Os sindicatos cumprem também outros trabalhos sociais

que não só a mediação da luta pela terra, como por exemplo, a negociação de piso salarial,

a exigência de direitos trabalhistas, a qualificação profissional, a orientação na busca por

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benefício previdenciário, a homologação de serviço, o cálculo de rescisão de contrato de

trabalho, entre outros serviços.

Farias observa que a FETAGRI ocupa propriedades que já estão em processo

de desapropriação, só assim as famílias (ou membro delas) acampam na fazenda à espera

da divisão dos lotes, tornando a luta menos longa e cansativa, mas ao mesmo tempo

limitando-se às áreas oferecidas pelo governo (2002, p. 44-45). O que também não pode

ser visto como uma regra, já que, no sul do Estado, existem acampamentos com cerca de

sete anos montados na beira da estrada, como o acampamento Laguna Peru, em Eldorado.

Todos os sindicatos filiados à FETAGRI são regidos por um estatuto produzido

pela Federação, o qual define os sindicatos de trabalhadores rurais municipais como sendo

“para fins de estudo, defesa, coordenação e representação legal dos interesses profissionais

e sociais, individuais e coletivos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais do município”

onde atuam.

O processo de luta pela terra mediante ocupação não está previsto nos estatutos

da Federação, como também demorou a se tornar uma prática da FETAGRI, como fala

Valdenir, um funcionário da Federação:

E nós decidimos trabalha com acampamento por motivo de qual a gente fazia as reivindicações por escrito, protocolava, e mesmo assim o governo não dava importância. À medida que os trabalhadores chegavam em frente daquela propriedade e dizia: “ô essa propriedade aqui está improdutiva, de acordo com a constituição ela é objeto para fins sociais e reforma agrária. Queremos uma vistoria”. O governo começou a atender. E daí por diante foi assim que se deu os processos todos de acampamentos (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).

A despeito dos encaminhamentos que o MST vinha tomando não só no estado,

mas em nível nacional, a FETAGRI passa também a efetivar sua luta por meio de

acampamentos.

A FETAGRI procura trabalhar em parceria com o Estado. A relação de não

enfrentamento direto da FETAGRI com poderes públicos é fator evidenciado nas falas de

lideranças e mesmo nas ações presentes no cotidiano das mobilizações. A respeito das

relações da FETAGRI com órgãos estaduais, é considerável a fala do senhor Tadeu,

coordenador do acampamento Laguna Peru:

A gente sempre teve um bom contato lá, de a gente chega lá e num... num faze pressão, num faze aqueles tumulto que muita gente faz né? conversar com o INCRA, o que que tá acontecendo, dá um tempo lá. Que hora que pinta uma área na região ceis vão pra lá, já que perderam essa área, hora que pinta uma área na região que vocês queiram, que dá pra vocês, vocês vão se assentado. Então tamo aguardando até hoje (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

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Desta forma, o acampamento no qual o senhor Tadeu coordena já está montado

a oito anos na BR-163. Não fazer tumulto, não fazer pressão, garante a FETAGRI uma

maior inserção nesses órgãos, o que nem sempre vem acompanhado de resultados

positivos. A passividade diante das promessas paliativas parece gerar um conformismo que

protela ainda mais a vida sob o barraco de lona.

Embora o MST seja um mediador com maior notoriedade, presente sempre em

capas de revistas e jornais, vítima de críticas por seu caráter mais agressivo de

enfrentamento ao governo e às grandes propriedades rurais, a FETAGRI possui um

número muito maior de acampamentos, assentamentos e sem-terras envolvidos dentro do

Estado. Isso se dá em grande parte pela força da presença da Federação em quase todos os

municípios do estado por intermédio dos sindicatos, o que lhe garante uma maior

representatividade.

Em cada município nós temos um sindicato organizado, né? E que conhece todas as propriedades. Por que a gente trabalha com os nossos assalariados, então, a gente acompanha todos os assalariados e todas as propriedades. Na verdade a gente tem maior condição de ta prestando é... esse trabalho, digamos assim, ao governo, ao INCRA, é... e apresentado áreas que tenham maior... O INCRA acata os pedidos e vai fazer vistorias nas propriedades (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).

Os movimentos sociais rurais hoje têm a liberdade de levantar áreas passíveis

de desapropriação e repassar ao INCRA para que se proceda a análise. É de costume que

uma determinada área indicada, quando confirmada seu destino a projeto de reforma

agrária, seja nela assentados sem-terras ligados ao movimento que levantou a área. Nas

áreas oferecidas pelo INCRA, em que a desapropriação se dá em decorrência de acordos

entre o proprietário da terra e órgãos governamentais, são assentados sem-terras de todos

os movimentos sociais presentes na região, como é o caso do assentamento Itamarati, em

Ponta Porã, e outros.

Os sindicatos indicam as áreas pra nós. Vindo a FETAGRI, assim ô: “essa propriedade tem tantas cabeças de gado, tem tanto de lavora, pelo tamanho dela ela não cumpre o índice de produtividade”. Nos temos engenheiros agrônomos que trabalha com o movimento da FETAGRI, nós vamos lá vemos a qualidade da terra, e também damos uma olhada de vista (digamos assim), e e... da uma analisada, se ela pode ta realmente improdutiva. Se assim for, a gente pega a certidão negativa dessa propriedade e solicita ao INCRA que vá faze uma vistoria oficial pra conprová se ela está improdutiva, ou não (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).

Desta forma, a FETAGRI apresenta maiores condições de assentar os

trabalhadores pelos quais a Federação trabalha, uma vez que consegue atuar em todas as

regiões do Estado por intermédio dos sindicados.

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Outro mediador de forte expressão na luta pela terra, em Mato Grosso do Sul, é

a CUT por intermédio do DETR (Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais)28. A

CUT/MS (Central Única dos Trabalhadores de Mato grosso do Sul) surgiu na cidade de

Campo Grande no ano de 1998 e foi fundada por um grupo de sindicalistas que perderam a

eleição pela direção da FETAGRI/MS. Após a derrota, a chapa perdedora, que já deferia

críticas e enfrentava conflitos com os sindicatos presentes naquele contexto histórico,

condenando-os pela falta de autenticidade, se organiza e funda a CUT/MS.

Nacionalmente a CUT já havia sido fundada em 1983, por ativistas de

presentes no meio sindical brasileiro, que reunidos a outros grupos também haviam

fundado o Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980.

Em Mato Grosso do Sul, os sindicalistas que participaram da fundação da

CUT/MS faziam parte de um grupo de pessoas que, durante a década de 1980,

participaram de movimentos sindicais no Estado e que se mostravam insatisfeitos com a

falta de autenticidade e de comprometimento do sindicalismo pelego que atuava em Mato

Grosso do Sul.

Esse grupo de sindicalistas autênticos, que contava com o apoio da CPT,

passou a concorrer com a FETAGRI na fundação dos sindicatos de trabalhadores rurais

municipais e já cogitavam a possibilidade de fundação da CUT em Mato Grosso do Sul.

No ano de 1988, no entanto, as atenções estiveram voltadas à eleição da FETAGRI,

momento em que o sindicalismo autêntico, que já se encontrava dividido em duas

correntes: Oposição Sindical e Alternativa Sindical, une-se para disputar as eleições da

FETAGRI (CPT, 1993).

Com a derrota do sindicalismo autêntico pela chapa de situação, esse grupo

passa a efetivar a possibilidade de fundação da CUT e, em 08.07.1988, foi fundada

oficialmente a CUT/MS.

Em 1991 ocorreu o primeiro Congresso Estadual da CUT em Mato Grosso do

Sul, momento em que se iniciou a organização do Departamento Estadual de

Trabalhadores Rurais, com início regular a partir de 1992. Embora os planos de luta do

DETR/CUT estivessem embasados no lema: Reforma Agrária, Luta pela Terra e Pequena

Produção, os seus primeiros anos de atuação, que foram acompanhados pela CPT, ficaram

restritos a reuniões e a encontros para discutir a viabilidade da pequena produção

(ALMEIDA, 2003, p.153, CPT, 1993).

28 No decorrer do texto uso apenas a sigla CUT, para referir ao Departamento de Trabalhadores Rurais.

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O DETR congregava, no ano de 2005, 33 sindicatos dentro do Estado. Segundo

Almeida, até 1998 o trabalho do DETR/CUT se restringia aos pequenos agricultores

associados aos sindicatos, o que colocava os sem-terras fora de sua área de atuação, no

entanto, a partir de junho de 1998, o Departamento mudou sua estratégia de ação e passou

a filiar trabalhadores rurais sem-terra com o propósito de organizar ocupações de terras.

Essa mudança de estratégia, segundo Almeida, está também relacionada com a disputa pela

representação sindical (2003, p. 154).

Na verdade, em virtude de sua área de atuação, leia-se organização, ficar bastante restrita a esfera de atuação do STR sua principal bandeira de luta acaba sendo a disputa pelos STRs e pela formação da Federação da Agricultura Familiar do Mato Grosso do Sul (FAF/MS), disputa que se dá necessariamente no marco institucional, ao contrário do MST. Neste sentido, acirra-se o embate pela representação sindical no campo, visto que a FETAGRI mantém-se como oposição à CUT no Estado, a despeito da filiação da CONTAG a esta Central (ALMEIDA, 2003, p. 155).

Entre os mediadores analisados, a CUT é o que apresenta menor número de

trabalhadores envolvidos, tanto em relação aos acampamentos, quanto ao número de sem-

terras assentados. Isso se deve a vários fatores, entre eles o de ter a luta direcionada

também a outros focos que não só a luta pela terra, ao fato de possuir um tempo

relativamente curto de atuação na luta pela terra dentro do estado, e, sobretudo, pela

escassez de pessoal envolvido na coordenação e efetivação dos acampamentos.

Em 2002, Farias já chamava atenção para a escassez de documentos “falta de

organização formal, pela deficiência de registros das atividades, por poucos funcionários,

ou liberação de componentes da entidade para realizarem algumas ações” (2002, p. 49).

Situação confirmada em 2005 em visita à Instituição, quando, depois de muita insistência,

fui atendida pelo senhor Castilho, vice-presidente da CUT/MS, responsável pelo

Departamento Rural, o que ocorreu não por descaso, mas sim pelas inúmeras atividades a

ele atribuídas. Com ajuda de simpatizantes e representantes de STRs ele é responsável

pelos trabalhos internos e externos do DETR, faz todas as articulações de acampamentos

no Estado, negociações, despachos burocráticos, entre outras atribuições.

É importante salientar que, embora existam dicotomias nas formas de atuação e

principalmente organização entre os principais mediadores da luta pela terra em Mato

Grosso do Sul (MST, FETAGRI, CUT), em alguns momentos é possível observar a

atuação conjunta desses mediadores, principalmente o MST e a CUT. Entre a CUT e a

FETAGRI existe uma espécie de disputa política, é o caso do acampamento Laguna Peru,

em Eldorado, em que a mediação foi alternada entre as duas organizações (cf. Capítulo III

e IV).

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2.3 Acampamentos e Assentamentos, um panorama das conquistas.

Um dia a vida surgiu na terra. A terra tinha com a vida um cordão umbilical. A vida e a terra. A terra era grande e a vida pequena. Inicial. A vida foi crescendo e a terra ficando menor, não pequena. Cercada, a terra virou coisa de alguém, não de todos, não comum. Virou a sorte de alguns e a desgraça de tantos. Na história foi tema de revoltas, revoluções, transformações. A terra e a cerca. A terra e o grande proprietário. A terra e o sem-terra. E a morte. (Herbert de Souza, A Carta da Terra, 1994).

Com quase trinta anos de mobilizações sociais de luta pela terra em Mato

Grosso do Sul, os movimentos passaram por períodos de altas e baixas, vitórias e derrotas

e muita coisa mudou, desde a formação dos grupos, formas de manifestações, sujeitos

sociais inseridos, mediadores, conjuntura política e mesmo a forma governamental de

conduzir as discussões. Para melhor elucidação dos fatos e diante de um quadro de

mudanças significativas, divido esse período em três momentos: os anos de 1980, como

um período inicial da luta marcada pela violência policial e atuação da CPT; os anos de

1990 a 1995 como um momento de reflexão, organização e mesmo um recuo dos

movimentos e estagnação nas viabilizações de projetos; e a partir de 1996, momento de

acirramento das mobilizações e maior número de projetos viabilizados.

2.3.1 Anos 1980: a luta marcada pela violência

O ano de 1979 pode ser definido como marco inicial dos movimentos de luta

pela terra em Mato Grosso do Sul. Esse marco está relacionado à resistência de 250

famílias de arrendatários que trabalhavam nas fazendas Jequitibá, Água Doce e Entre Rios,

no município de Naviraí, que entram na justiça lutando pelo direito de permanecerem nas

terras arrendadas por mais três anos. Para não terem que migrar em busca de novas áreas

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de arrendamento, esses trabalhadores decidiram, com apoio da CPT e de alguns sindicatos

rurais, lutar pelo direito de permanecerem na área29.

Os pequenos arrendamentos, que marcam o processo de formação das grandes

propriedades rurais em Mato Grosso do Sul a partir dos anos de 1970, caracterizados por

contratos com período entre três e quatro anos, evidenciam a instabilidade vivida por

famílias arrendatárias nesse contexto histórico. Os arrendamentos duravam apenas o tempo

necessário para que, com trabalho familiar, esses colonos desmatassem, destocassem,

cercassem, abrissem a fazenda, deixando-a formada para a pecuária ou agricultura. Muitas

vezes a plantação do capim era o encerramento do contrato. Depois desse período, os

arrendatários eram obrigados a procurar outra propriedade para começar novamente o

mesmo trabalho. Essa forma de trabalho que desvincula o homem da terra, uma vez que ele

periodicamente tem que partir em busca de novas terras para arrendamento.

Os arrendatários da fazenda Jequitibá ganharam a causa e receberam a

concessão para permanecer nas fazendas por mais três anos. A partir dessa conquista, com

apoio da CPT, as famílias passaram a reivindicar a desapropriação da fazenda.

Depois dessa decisão judicial favorável aos camponeses, os conflitos se

intensificaram na região. Esse foi o ponto de partida para que novos grupos de

enfrentamento ao latifúndio se formassem, assim como contribuiu para aumentar a

violência relacionada à questão fundiária. A resposta dos fazendeiros foi imediata,

opressão, violência, e até a destruição das lavouras dos arrendatários, foram ações de

repúdio às deliberações. Conflitos que culminaram, em 1982, no assassinato de Joaquim

das Neves Norte, advogado das famílias arrendatárias (CPT, 1993).

Os sujeitos sociais, vítimas de processos exploratórios análogos, passaram a

procurar a CPT e sindicatos para que pudessem também lutar por seus direitos, com isso

começou a se formar o contingente de trabalhadores para ocupações de terras.

Como forma de amenizar os conflitos fundiários que se avolumam no sul do

Estado, o então governador, Pedro Pedrossian, lançou um projeto denominado Guatambu,

destinado a preservar e manter o homem no campo. Motivados pelas promessas e

acreditando na viabilização do Projeto, cerca de 800 famílias de trabalhadores rurais,

sobretudo bóias-frias da região, ocupam entre os dias quatro e 13 de maio de 1981, a

fazenda Baunilha, em Itaquiraí. Os trabalhadores que se direcionaram à área de forma

29 A luta das famílias da fazenda Jequitibá é mencionada como gênese das lutas pela reforma agrária, e mesmo da gestação do MST, em nível nacional (FERNANDES, 2000, p. 69-70).

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aleatória, reconheciam as terras como devolutas e desta forma ela se enquadraria nas

propostas do Projeto lançado pelo governo de Pedro Pedrossiam.

No entanto, o que se viu foi uma resposta rápida e violenta pela polícia,

expulsando-os da área. Das 800 famílias expulsas, 438 improvisaram um acampamento na

beira da estrada. Segundo relatório da CPT, as forças policiais cercaram o acampamento

com arame farpado e montaram um posto de guarda para controlar a entrada e a saída de

pessoas, até mesmo o padre da Paróquia foi proibido de entrar no acampamento.

Depois de muitas negociações, quando somavam tão somente 64 famílias, os

acampados foram levados ao município de Cassilândia, a 1000 km de Itaquiraí, e

colocados em terras de má qualidade. Diante da impossibilidade de viver naquelas terras,

que ficavam a 90 km da cidade e a 5 km da estrada mais próxima, 59 famílias aceitam

mudar-se para o município de Colider, no Mato Grosso, onde novamente passaram a viver

sob condições precárias. Em carta endereçada à CPT, alguns assentados relatam as mortes

pela malária, a falta de infra-estrutura, de escolas, os lotes que chegavam a ter quase toda

sua superfície coberta por pedras, sendo a única saída para sobrevivência (ou não) o

trabalho no garimpo.

Em 1982, foi eleito Wilson Barbosa Martins, do PMDB (Partido do

Movimento Democrático Brasileiro), para o governo estadual. Como proposta de

campanha, Wilson Barbosa comprometia-se com a viabilização da reforma agrária em seu

mais amplo sentido. Nesse cenário é que começa a ocorrer o retorno dos brasiguaios,

impulsionados pela abertura política nacional e pelas propostas do então governador.

Com o não cumprimento das promessas, e uma verdadeira frustração por parte

dos trabalhadores, inicia-se um processo de fortalecimento dos movimentos populares. A

CPT e a Comissão Estadual de Sem-terra, com reivindicações, manifestos e baixo-

assinados endereçados ao então governador, relatam a precária situação dos trabalhadores

rurais de Mato Grosso do Sul. Como não receberam atenção e não puderam vislumbrar

medidas políticas para a situação, decidiram, em assembléia, pressionar o governo de

outras formas.

Nas regiões de Naviraí, Itaquiraí e Eldorado, onde predomina o latifúndio destinado à pecuária, os arrendatários estão sendo expulsos das terras com violência que tem causado até a morte de lavrador de Eldorado e a destruição das lavouras [...] Os Lavradores e Agentes da Pastoral após 08 (oito) meses de governo do PMDB, manifestamos nossa inconformidade com a falta de definição do Governo, de soluções, de projetos e propostas para a questão fundiária. Pensamos em nossos filhos e no futuro deste Estado, pois o povo vai viver comendo capim e carne de jacaré, pois este parece ser o destino traçado pelos

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grandes para Mato Grosso do Sul (Carta ao Governador Wilson Barbosa Martins, novembro de 1983, CPT).

No ano de 1983, cerca de mil trabalhadores rurais, apoiados pela CPT,

ocuparam a Gleba Santa Idalina, uma área de 8.762 ha, no município de Ivinhema, de

propriedade da SOMECO. Esse contingente de trabalhadores era formado por ex-

arrendatários e bóias-frias das cidades de Mundo Novo, Eldorado, Itaquiraí, Naviraí,

Caarapó, Fátima do Sul, Glória de Dourados, Bataiporã, Taquarussu, Nova Andradina e

Dourados, além de brasiguaios, ribeirinhos e ilhéus.

Em entrevista, irmã Olga, que teve importante participação na luta pela terra

em Mato Grosso do Sul e acompanhou a organização desse acampamento, relembra os

primeiros anos de luta:

Então a luta pela terra, começo antes da Santa Idalina, que eu não citei um trabalho com bóias-frias em Naviraí. Que eles iam derrubando mato e formando pasto e tendo formado todo essa região, aí é... eles não tinham mais pra onde ir, então via sindicato e via Comissão Pastoral da Terra, se começou a discuti com esses camponeses, essas camponesas, a luta pra consegui um pedaço de terra. Então, daí que começou vir a clientela da 1ª grande ocupação da chamada Santa Idalina. [..]. E aí se formava, foram meses de trabalho. Inclusive, na região de Mundo Novo com esses chamados Brasiguaios (que o nome não foi bem na... na Santa Idalina foi um pouco depois que surgiu esse nome). Mas finalmente, brasileiros que estavam nessa divisa, no Paraguai, também com muitos problemas de documentação e com vontade de voltar ao Brasil. A Pastoral da Terra fez todo esse trabalho. Teve a ocupação dessa Gleba Santa Idalina que era da SOMECO; que essa área foi adquirida do governo, bem diz e a custo zero pelo que se sabe, pra fazer colonização e não pra ficar pra ela. Aí ocuparam, e Gleba Santa Idalina, ficaram alguns dias derrubaram mato, fizeram plantio, mais logo depois foi o despejo, não ficaram lá. Então, pra não desisti de toda luta, das mil famílias, agora não recordo bem quantas, mas mais ou menos umas 600, não foram embora pras casas. Aí, acampamos durante dois dias dentro da própria igreja de Ivinhema, dormimos e comemos lá. E depois foi quando Dom Teodoro, que era o bispo da diocese na época, ofereceu a vila São Pedro pra acampar, como pra dar continuidade a luta pela terra. E aí então é... esse acampamento, 6 meses, aí o governo do Estado ofereceu a área da chamada Padroeira do Brasil, mas só 5 hectares [...] (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

A ocupação da Santa Idalina constituiu-se um marco histórico da luta pela

terra no estado, ganhou repercussão nacional e inúmeras críticas foram feitas à CPT, aos

trabalhadores sem-terra e, inclusive, ao Bispo Dom Teodardo, que prestava solidariedade

ao grupo. Em atitude típica de um país cuja população e meios de comunicação sempre

foram regrados pelas elites e que lentamente caminhava para o fim de um período

ditatorial, jornais e revistas se opuseram à ocupação e buscaram deslegitimá-la.

Depois de inúmeras agressões (leia-se despejo com força policial), os

acampados foram pressionados a deixar a área, e, a pedido de Dom Teodardo, foram

levados provisoriamente à Vila São Pedro, próximo a Dourados, em uma área de

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aproximadamente quatro ha de propriedade da Diocese. Dez desses acampados, em

manifestação de protesto, decidem acampar com suas famílias na Praça Rádio Clube, em

Campo Grande, em frente à Assembléia Legislativa Estadual. Em atitude de extremo

descaso, de forma lamentável, o então prefeito da capital, Lúdio Coelho, ordenou que

funcionários, com escolta policial, despejassem caminhões de terra na praça e em seguida a

terra fora molhada com caminhão pipa, de forma a simbolizar, comicamente, as

necessidades reivindicadas por aqueles trabalhadores (CPT, 1993).

Irmã Olga avalia que a presença de Dom Teodardo, que deixou uma reunião

nacional da CNBB para acompanhar o despejo dos sem-terra da Santa Idalina, tenha

contribuído para evitar uma ação ainda mais violenta pelas forças policiais:

O que mais teve coragem como pessoa, foi Dom Teodardo, na época da Santa Idalina ele deixo a assembléia da CNBB e veio pra visitar, pra ir junto lá com o secretário de segurança na hora do despejo. Nós avaliamos que isso tem contribuído pra que se evitasse maiores violências por parte da polícia (IRMÃ OLGA, Entrevista, 12.03.2006).

Em 1984, o governo ofereceu uma área de 2.200 ha na cidade de Nioaque para

assentar cerca de 500 famílias que ainda permaneciam acampadas na vila São Pedro. Sem

alternativa, e sob protesto, as famílias aceitam a remoção para o lote provisório de cinco

ha, na Gleba Padroeira do Brasil, ou Gleba Venceremos, como queriam os sem-terras. Em

oito meses neste local havia falecido cerca de 40 pessoas, sobretudo crianças (CPT, 1993).

Algumas dessas famílias, depois de muitas reivindicações, foram levadas para

outros assentamentos, como o Monjolinho, em Anastácio, Taquaral e Piraputanga, em

Corumbá, e 260 famílias permaneceram na Padroeira do Brasil por mais de dez anos em

lotes provisórios.

A ocupação das terras da SOMECO foi contundente não só por chamar a

atenção da sociedade ao problema latifundiário do estado, mas ainda mostrou a força que

os trabalhadores rurais detinham. Mesmo que não tenham alcançado o objetivo esperado,

eles organizaram-se e opuseram-se à situação de miséria em que viviam e à negação do

governo do PMDB em efetivar suas propostas de campanha30.

Dentro da conjuntura histórica nacional, esses sujeitos foram motivados, ainda,

por um clima nacional de luta pela democracia e real abertura política, que desenvolvia-se

no país, manifestada também pela campanha das Diretas Já.

30 Parte da Gleba Santa Idalina veio a ser desapropriada anos depois pelo INCRA, destinada a assentar 757 famílias brasiguaias que, ao retornarem do Paraguai, acamparam na cidade de Mundo Novo.

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Nesse contexto de fortalecimento dos movimentos populares, os fazendeiros

também se mobilizaram com a formação de uma força contrária, a criação da UDR em

nível estadual, iniciando sua organização na cidade de Dourados, em oposição à ocupação

da Gleba Santa Idalina (SOUZA, 1992).

Os latifundiários que sempre influenciaram a política mato-grossense, e mesmo

sul-mato-grossense, passaram através de uma União a trabalhar para inviabilizar projetos

de assentamentos na região e difundir uma imagem negativa dos movimentos a fim de

impedir sua legitimação e aceitação social.

Segundo os próprios documentos da UDR, sua formação inicial foi pensada no

intuito de pressionar o Congresso Nacional para que não atendesse às reivindicações da

esquerda na elaboração da Constituição de 1988. Essa pressão foi sentida não só na

elaboração da constituinte, mas também nas formas de condução da questão da reforma

agrária entre os anos de maior atuação da UDR.

Os acampamentos e mobilizações foram, por muitos anos, tratados como caso

de polícia; a luta pela terra encontrou problemas de toda ordem para continuar: violência

policial, maus tratos, humilhação e injustiça foram alguns dos obstáculos que alimentaram

a revolta e impulsionaram a luta.

O acampamento América Rodrigues da Silva, formado em 1986 e estudado

minuciosamente por Farias (1997), é o retrato aparente da forma com que o PNRA e

mesmo o PRRA não surtiram efeito ou mesmo auxiliaram na legitimação política da

reforma agrária. O país passava por um processo de democratização quando cerca de 200

famílias acamparam a 30 km da cidade de Três Lagoas, de onde foram violentamente

expulsas por policiais. Esse foi apenas o início de uma seqüência de expulsões, agressões e

violências de toda ordem que passaram a sofrer essas famílias, entre elas crianças,

mulheres e idosos. Em um desses episódios de repressão estatal, veio a falecer a senhora

América Rodrigues da Silva, que deu nome ao acampamento. Entre todos os momentos de

aflição que esse grupo sofreu, nos chama a atenção o fato dos policiais terem destruído e

enterrado próximo à rodovia, móveis, ferramentas e objetos pessoais dos acampados.

"Para as classes dominantes, ora representadas pela força policial, a defesa da propriedade capitalista justifica qualquer ato de violência, terrorismo e injustiça” (FARIAS, 1997, p. 130).

Entre os anos de 1984 e 1989, 22 projetos de assentamentos foram criados no

estado e 4891 famílias atendidas. Sem uma proposta política voltada para atender as

necessidades do trabalhador do campo, grande parte desse número se refere a projetos

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emergenciais destinados ao assentamento de famílias ribeirinhas, que perderam suas terras

com a construção de usinas hidrelétricas ao longo do rio Paraná e ao assentamento de

famílias brasiguaias, que ao retornarem ao Brasil, encontravam-se acampadas na região sul

do estado.

Entre os projetos listados na tabela 4, muitos surgiram como medidas paliativas

para esses problemas sociais, como o assentamento Tamarineiro, destinado ao

assentamento de ex-arrendatários do sul do estado e a posseiros de Bodoquena, que

enfrentavam problemas com índios Kadiwéus; assentamento Nioaque, também destinado

ao assentamento de posseiros que estavam em conflitos com índios Kadiwéus;

assentamento Padroeira do Brasil, criado para assentar famílias que participaram da

ocupação da Gleba Santa Idalina; assentamento Guia Lopes da Laguna, destinado ao

assentamento de famílias ribeirinhas e ilhéus, vítimas de enchentes causadas pelas

barragens da usina hidrelétrica de Itaipu; assentamento Sucuriu, também criado para

atender famílias de ribeirinhos e ilhéus; assentamento Canaã, criado a partir de uma

ocupação aleatória feita por posseiros da região que permaneceram na área por mais de um

ano sem que autoridades fossem noticiadas. Depois que o fato se tornou notório, as

famílias receberam a concessão da área. Tabela 4: Projetos de assentamentos em MS – 1984-1989

Denominação do

Projeto Área (ha)

Nº de Famílias

Ano implantação Município

1 Tamarineiro 3.812,1735 134 1984 Corumbá 2 Padroeira do Brasil* 2.500,0000 243 1984 Nioaque 3 Retirada da Laguna 2.163,9709 90 1985 Guia Lopes da Laguna 4 Sucuriú 15.978,3376 239 1985 Chapadão do Sul 5 Nioaque 10.587,4535 371 1985 Nioaque 6 Canaã 4.360,0000 235 1985 Bodoquena 7 Urucum 1.962,4649 87 1986 Corumbá 8 Guaicurus 2.772,3164 129 1986 Bonito 9 Novo Horizonte 16.580,3788 757 1986 Novo Horizonte do Sul

10 Nova Esperança 2.757,0121 113 1986 Jateí 11 Ita 1.503,9075 47 1987 Bela Vista 12 São José do Jatobá 2.530,9075 136 1987 Paranhos 13 Marcos Freire 5.269,9403 187 1987 Dois Irmão do Buriti 14 Campo Verde 1.918,5467 60 1987 Terenos 15 Mato Grande 1.264,3543 50 1987 Corumbá 16 Colônia Nova 1.314,1489 88 1987 Nioaque 17 Casa Verde 29.859,9889 470 1987 Nova Andradina 18 Pedreira 87,9214 10 1988 Ribas do Rio Pardo 19 Monjolinho 9.525,2207 285 1988 Anastácio 20 Capão Bonito 2.585,3984 133 1989 Sidrolândia 21 Indaiá 7.340,6719 633 1989 Itaquiraí 22 Taquaral 10.013,9698 394 1989 Corumbá

Total do período

136.689,08 4.891 Tabela 4 – Fonte: INCRA – Jurisdição de Dourados.

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Esses dados confirmam que os projetos de assentamentos, do modo com vêm

ocorrendo no Brasil, não devem ser considerados como um projeto de reforma agrária,

visto que são medidas emergenciais tomadas para conter focos acentuados de contestação

já que o país não tem um projeto político, social e econômico destinado a uma reforma

agrária massiva, de qualidade, que atenda realmente a demanda dos trabalhadores e que

tenha um teor de transformação social e do espaço rural brasileiro.

Os trabalhadores que suportam o processo de luta pela terra até que ele seja

concretizado se deparam com um novo problema: a chegada ao lote, espaço que embute

uma série de aspectos conflitantes. Dentre todos os problemas, como falta de infra-

estrutura, saneamento básico, assistência técnica, incentivo e financiamento, o maior deles

está na inapropriação dos solos. Todos esses assentamentos listados surgiram como forma

de amenizar grandes conflitos, sendo que pontos de grande relevância para a manutenção

dessas famílias nos lotes foram relegados a um segundo plano, ou mesmo desconsiderados.

A desapropriação de terras improdutivas acabou, em muitos casos, por beneficiar grandes

proprietários rurais. Alguns segmentos da sociedade acabam desconsiderando esses fatos, e

o imaginário que perpetua entre esses grupos é de que:

[...] Todo insucesso deve ser atribuído ao próprio assentado. É ele que não foi capaz de desenvolver-se dentro da estrutura que o estado ofereceu... a prática de assentar somente para diminuir conflitos, cria novos problemas que acabam por marcar a vida de inúmeras famílias assentadas em situação precária e em lotes inadequados (MENEGAT, 2003, p.264).

Os assentados chegam aos lotes, na grande maioria das vezes, depois de passar

por um longo período de desgaste nos acampamentos, sofrendo todo tipo de humilhação e

violência, racionamento de alimentos, vivendo em condições subumanas, passando fome,

frio, sede e o mais lamentável, a opressão estatal realizada por meio das agressões

policiais. Os que vitoriosamente resistiram, receberam lotes, em muitos casos, sem

demarcação, e continuaram a morar em barracos, já que não possuíam nenhuma reserva

econômica. Como aconteceu no assentamento Santo Inácio, em 1987, hoje Marcos Freire,

onde todos os acampados do estado (cerca de 800 famílias) foram levados à essa área, na

cidade de Dois Irmãos de Buriti, e permaneceram por aproximadamente dois anos em lotes

provisórios esperando a demarcação. Ao final, no assentamento Marcos Freire, foram

assentadas 187 famílias, para as demais foram criados outros assentamentos, entre eles o

Taquaral, em Corumbá, e o Casa Verde, em Nova Andradina.

Desde o início do processo de luta pela terra em Mato Grosso do Sul, a atuação

dos movimentos estão concentradas na região sul, nos municípios abaixo de Campo

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Grande, entre a divisa com o estado do Paraná e a fronteira com o Paraguai (como fica

demonstra nas figuras 1, 2 e 3). Diversos fatores contribuíram para isso, como, por

exemplo, o fato de ser esta uma região de terras de boa qualidade dentro de uma estrutura

agrária marcada por grandes propriedades, o que favorece o interesse dos movimentos, e

ainda pelo grande contingente de trabalhadores sem-terra presentes nessa região.

Figura 1: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1981-1989

Nessa primeira década de luta, os acampamentos começam a ser levantados

lentamente. Soma-se, nesse período, um total de quarenta acampamentos, entre ocupações

e reocupações e deslocamentos de grupos de uma área a outra. O ano de 1986 apresenta

um número considerável de ocupações de terra no Estado, com 16 acampamentos, o que se

dá, principalmente, pela organização do MST na região. No ano de 1987, no entanto, não

se tem registro de nenhuma ocupação, o que se deve a um processo de negociação dos

trabalhadores com o governo estadual, que resultou em nove assentamentos e mais de 1300

famílias assentadas, entre os anos de 1987 e 1988.

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Os acampamentos estavam concentrados na região sul de Mato Grosso do Sul

(cf. figura 1), já os assentamentos, dos 22 criados nesse período, 15 estão concentrados na

região central do Estado e em áreas pantaneiras (cf. tabela 1). A transferência forçada de

acampados para regiões com características geográficas distintas das presentes em suas

terras de origem é um fator que contribui, deliberadamente, para a não permanência desses

sujeitos em seu respectivo lote, visto que não ocorre uma identificação; a adaptação requer

um recomeço nem sempre possível, muitas vezes pela idade avançada, pela história de uma

vida, pela habilidade que não se tem.

A transferência de trabalhadores do sul do estado, muitos deles oriundos de

estados como Paraná e São Paulo, acostumados com o trabalho na lavoura, plantação de

citros, café, entres outros, para regiões de Corumbá, como o Assentamento Taquaral, onde

a terra é única e exclusivamente propicia à criação de gado, praticamente caracteriza-se por

uma aposta no fracasso desses projetos.

Além da má qualidade da terra, muitos desses lotes apresentam tamanho

insuficiente para produtividade. Nas terras arenosas e alagadiças do Taquaral, por exemplo,

conforme estudado por Menegat (2003), há épocas do ano que não existe se quer a

possibilidade de locomoção daqueles moradores. As promessas de escolas, agrovilas e

centros de saúde, raramente são viabilizadas.

Esses primeiros anos de luta pela terra no Mato Grosso do Sul foram marcados

por despejos violentos, mortes, prisões, injustiças, peregrinação e descaso. Muitos

trabalhadores morreram vítimas de intransigência policial e de conflitos com jagunços. O

descaso governamental é marcado pelo transporte desses sujeitos aos montes, em

caminhões, levados sem saber para onde, de qualquer jeito; deixados cinco, dez anos em

lotes provisórios, sem auxílio, sem socorro, humilhados, massacrados, ao ponto de

receberem caminhões de terra como resposta a um protesto. Quando por fim, conseguem o

lote de terra, ele pode vir com 5 hectares, pode vir na lama, nas pedras, pode vir do outro

lado do Estado, longe de tudo e de todos.

Esse é o cenário dos primeiros ardorosos anos de luta pela terra em Mato

Grosso do Sul, que serviu como gênese de um processo ainda mais massivo e organizado

dos trabalhadores em busca de terra, trabalho, dignidade e cidadania.

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2.3.2 A difícil luta pela terra entre 1990 e 1995

Os anos de 1990 a 1995 foram os anos de maiores dificuldades para os

movimentos sociais de luta pela terra em Mato Grosso do Sul. Em seis anos foram

implantados seis projetos de assentamentos e apenas 980 famílias atendidas com lotes de

terra, como fica demonstrado na tabela a seguir. O número de acampamentos foi

consideravelmente reduzido, com uma média de quatro acampamentos por ano. A

repressão estatal foi reforçada e a discussão política sobre o assuntou ficou estagnada. Tabela 5: Projetos de assentamentos em MS – 1990-1995

Denominação do Projeto

Área (ha)

Nº de Famílias

Ano implantação Município

1 Sumatra 4.719,8113 149 1991 Bodoquena 2 Santa Rita do Pardo* 1.482,1449 47 1991 Santa Rita do Pardo 3 São Manoel 4.321,0281 147 1992 Anastácio 4 Carlos R. S. Melo* 6.253,1888 204 1994 Sonora 5 São Luiz 1.599,6128 114 1994 Batayporâ 6 Tamarineiro II 10.621,0775 319 1995 Corumbá

Soma do período 28.996,86 980

* Projetos desenvolvidos pelo Governo do Estado – TERRASUL Fonte: INCRA – Dourados

Esse período marca também um momento de redefinições dos movimentos,

quando as mobilizações ganharam novos contornos. As categorias de sujeitos sociais

envolvidos deixaram de ser especialmente posseiros, ex-arrendatários, brasiguaios,

ribeirinhos e trabalhadores do campo, e intensificou-se também presença de pobres das

cidades, assalariados, bóias-frias, entre outros. Essa mudança está relacionada à própria

postura dos mediadores diante da questão agrária. Esse momento marca o afastamento da

CPT na luta direta pela terra, a CUT ainda não havia se consolidado como mediador nessa

área de atuação, ficando, portanto, o MST como principal mediador desse período, embora

a presença da FETAGRI possa ser percebida em alguns momentos.

Uma força reacionária fora marcada neste contexto pela atuação estatal,

representada, sobretudo, na figura do então governador Pedro Pedrossian, que intensificou

a repressão, inviabilizou as mobilizações e fechou qualquer canal de discussão com os

trabalhadores sem-terra e as organizações mediadoras. Devido a política implantada nesse

período, apenas aproximadamente 27 mobilizações foram concretizadas, ainda assim, sob

rígido controle e com nenhuma, ou quase nenhuma, conquista.

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Figura 2: Mapa Acampamentos rurais em MS – 1990-1995

Os mecanismos usados para conter as mobilizações foram as prisões de

lideranças de movimentos sociais. Segundo lideranças do MST, era comum que militantes

que dessem entrevistas e que falassem à imprensa fossem alvo de processos criminais.

Porque naquela época nós era o alvo, né, nós tinha que falar na imprensa... e etc, e ficava marcado. Bastava da uma declaração na imprensa pra se fichado. Os cara diz: “poxa, o cara ta sendo assentado e não cala a boca nunca”. Então, foi um pouco isso (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

Em pesquisa a processos do Poder Judiciário de MS, entre os crimes mais

comuns que esses sujeitos são enquadrados está o indiciamento por roubo ou furto para os

abates de bois, invasão de propriedade e até crime ecológico e ambiental, em casos de

desmatamento para construção de barracos ou por morte de animais silvestres.

Entre os anos de 1990 e 1995, no estado de Mato Grosso do Sul, foram 135

militantes presos, com concentração de 82 somente no ano de 1992. Mato Grosso do Sul é

um dos estados com maior número de trabalhadores presos, no período, ficando atrás

somente do estado do Paraná, como mostra a tabela a seguir:

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Tabela 6: Número de sem-terra presos e assassinados por conflitos agrários por estado 1990 1991 1992 1993 1994 1995 Total

UF

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

Pris

ões

Ass

as

AC - 2 - - - 1 - - - - - - 0 03 AL - 1 - - - 2 - - - 1 - - 0 04 AM - 1 - 1 - - - - - 1 - - 0 03 AP - - - - - - - - - 5 - - 0 05 BA 3 11 - 8 6 1 31 1 6 2 - 4 46 27 CE 2 1 2 - - - - - - - - - 04 1 ES 5 1 10 1 55 - - 8 - - 78 2 GO - 1 - 1 2 - - - - - 17 1 02 3 MA 8 9 2 6 24 7 18 5 2 4 2 3 56 34 MG 15 3 - 2 - 4 - - - - - 5 15 14 MS - - 12 2 82 2 41 - - - - - 135 4 MT - 10 - 1 - 1 - 4 - 4 - 4 0 24 PA - 20 7 16 - 13 - 14 3 4 - 14 10 81 PB - 1 - 1 - 4 - - 3 - - 1 03 7 PE 1 2 - 1 5 4 35 6 - 1 - - 41 14 PI 4 1 - 1 - 2 - 1 - - - - 04 5 PR 1 2 254 4 - 3 12 4 7 1 - - 267 14 RJ - 6 - - - 1 - 3 - - - - 0 10 RN 5 1 - 2 5 - - 1 - - - - 10 4 RO - 2 - 1 - 1 - - - 1 - - 0 5 RR - - - - - - - - - - - - 0 0 RS 4 - 11 1 - 1 - - - - - - 15 2 SC 7 - 11 1 7 - - 1 - 3 - - 25 5 SE - - - - - 2 - - - - - - 0 2 SP - 1 - - 9 - - - - 2 - - 9 3 TO - 2 - 1 - 1 - 5 - - - 2 0 11

Brasil 55 78 309 51 195 50 137 45 29 29 19 34 720 287 Fonte: CPT/NAC

Ao analisar os dados apresentados, encontra-se uma referência aproximada dos

assassinatos e prisões decorrentes de conflitos agrários, tendo em vista que muitos desses

assassinatos não chegaram se quer a serem registrados como tais. É o caso, do norte do

país, por exemplo, onde o conflito entre posseiros e latifundiários se encontrava aflorado e

o índice de prisões e assassinatos apresentados no quadro é irrisório.

Os três anos de elevado número de prisões de trabalhadores sem-terra no estado

de Mato Grosso do Sul (1991, 1992, 1993) correspondem aos três primeiros anos de

mandato do governador Pedro Pedrossiam e é revelam uma política de repressão aos

movimentos sociais adotada pelo governo ao assumir o poder. A violência

institucionalizada continua por mais alguns anos, com despejos consecutivos e violentos.

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Sobre a violência institucionalizada usada contra os trabalhadores sem-terra,

torna-se oportuno uma manifestação de Frei Betto, em que critica o injusto julgamento da

legalidade brasileira:

Condenam-se líderes dos sem-terra, quando o réu deveria ser o latifúndio; homens e mulheres que lutam por direitos elementares, quando a acusada deveria ser a estrutura social que produz tão abissal desigualdade; reivindicações históricas e justas, como a reforma agrária, quando os tribunais deveriam convocar aqueles que se apossaram de terras devolutas, griladas, relegando-as ao ócio num país de famintos (Estado de Minas Gerais, 18.09.03).

No encaminhamento das discussões entre sem-terras e órgãos governamentais

ocorre uma ligeira mudança com relação às medidas tomadas no período anterior; o

INCRA passou a arrendar pequenos lotes de terras para a transferência de acampamentos

após a reintegração de posse da área ocupada. Com tal atitude, eles passaram a direcionar

essas famílias a locais que não gerassem conflitos com fazendeiros e evitava, ainda, que

esses acampamentos, após despejo, direcionassem-se para as cidades, como aconteceu com

o acampamento Sul Bonito, em Itaquiraí, em que, após alguns despejos violentos, as

famílias viveram acampadas na cidade por cerca de um ano.

A despeito da indiferença governamental em viabilizar projetos de

assentamento, tem-se um momento de intensos protestos, marchas e manifestações por

parte dos trabalhadores, sobretudo os mediados pelo MST. Com a recusa do governo em

contribuir com a alimentação de sem-terras acampados, ocorrem em vários acampamentos

do estado o abate de reses em fazendas ocupadas e em fazendas vizinhas aos

acampamentos, e também a chamada recuperação de alimentos.

Em 1990, ainda no governo de Marcelo Miranda, o secretário de Assuntos

Fundiários, Aparício Rodrigues, afirmou em resposta a um pedido de socorro dos sem-terra

que: “Desde o início do governo já dissemos que o Estado não tem condições e não pode

dar alimentação a toda família de trabalhador sem-terra que acampe em nosso estado” (O

Progresso, 31.03/01.04 de 1990). O governo do estado por sua vez, em programa

radiofônico, afirmou estar satisfeito com os projetos de reforma agrária do estado: “Nosso

estado tem sido o que mais avançou nessa área, inclusive considerado modelo de reforma

agrária” (O Progresso, 24.04.1990).

Neste mesmo ano assumia o poder o presidente Fernando Collor de Melo, que

mostrava-se receoso com relação à reforma agrária e tinha os ruralistas como seus aliados

de governo. Com um mandado bastante conturbado, não foi diferente no que se refere às

questões agrárias. Fernando Collor havia assegurado em campanha eleitoral um Ministro

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da Agricultura da região centro-oeste e que não tivesse ligação com a UDR, e assim

indicou para ministro Joaquim Domingos Roriz, ex-governador nomeado do Distrito

Federal, o que causou desconforto e irritação por parte de cooperativas agrícolas, grandes

produtores, bancos etc. Em menos de 15 dias Roriz foi substituído por Antônio Cabrera

Filho, formado em Ciências Agrárias e membro da maior família produtora de leite do

país.

Ao entregar o ministério à Cabrera, em discurso, Fernando Collor coloca sua

conservadora e economicista posição em relação à reforma agrária:

Haveremos, também, de promover uma reforma agrária justa, equilibrada, sem conflitos, de modo a dar acesso a terra, àqueles que precisam da terra para dela retirar seu alimento e contribuir com o aumento da produção de grãos do nosso país (O Progresso, 04.04.1990).

Observa-se, no discurso do então presidente, a preocupação econômica com

uma produção massiva para exportação, com o agro negócio de forma a sobrepor todos os

fatores sociais de um projeto de reforma agrária aos fatores econômicos de interesse

capitalista. A contribuição à produção de grãos para exportação, não deve (ou ao mesmo

não deveria) ser colocada como prioridade ao se cogitar projetos de assentamentos rurais,

uma vez que, com a quantidade de terras de um lote de reforma agrária, esperar uma

produção massiva destinada a exportação é apostar no fracasso desses projetos.

[...] a lógica mercadológica, alicerçada em princípios quantitativos, exigência da estratégia de inserção na globalização, significa um reducionismo à riqueza de possibilidades sociais e históricas, somente percebidas quando critérios qualitativos, que dizem respeito à trajetória e projetos de vida das famílias, são devidamente considerados (FARIAS, 2002, p. 63).

Diante da negativa do primeiro presidente eleito por voto direto, depois de anos

de ditadura, em apresentar um projeto concreto de viabilização da reforma agrária, o MST

decide, durante o II Congresso Nacional do Movimento, realizado em Brasília no ano de

1990, manter as ocupações como forma de luta e resistir mesmo diante de pressões, e

assim adotam a palavra de ordem: Ocupar, resistir e produzir.

O governo adotou políticas neoliberais e repressoras aos movimentos sociais no país. Por isso, a palavra de ordem do Congresso mostrava que as famílias Sem Terra estavam dispostas a enfrentar todas as dificuldades, resistir e lutar por seus direitos (Jornal dos Sem Terra, 24.01.2007).

No entanto, o que se viu nesses anos, com relação ao estado de Mato Grosso do

Sul, foi uma relativa desaceleração nos processos de luta, tanto pelo conturbado momento

político do país, quando pela descredibilidade dos trabalhadores no que diz respeito à

efetivação dos projetos de reforma agrária.

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Esse período refere-se também ao primeiro ano de mandato de Fernando

Henrique Cardoso (PSDB) na presidência do Brasil. Segundo Farias, ainda como

candidato, Fernando Henrique defendia a idéia de que a reforma agrária não deveria ser

feita sob pressão social, tendo em vista que o caráter emergencial poderia acabar trazendo

atitudes pouco pensadas e não elaboradas. No entanto, ele não previa em sua agenda

política, propostas consistentes para reforma agrária, visto que possuía um plano de

governo baseado em princípios neoliberais, preocupações de integração global que

requeriam propostas de ordem macro-econômicas. A reforma agrária passou a ser

considerada, pelo então governo somente a partir do aumento da pressão popular (2002, p.

60-62).

No ano de 1995, embora estivessem em torno de 1.800 famílias de sem-terras

acampadas no estado, não se tem registro de nenhum novo acampamento. Os movimentos

tinham em vista, ainda, a expectativa de assentamento de 50 mil famílias em todo o país,

conforme programa de reforma agrária prometido em campanha eleitoral e lançado

oficialmente por Fernando Henrique em 26.01.1995 (O Progresso, 27.01.1995).

Muito embora a preocupação neste momento não seja em apresentar uma

história política em relação à reforma agrária, tal menção, mesmo que breve, se faz

necessária, tendo em vista o quanto a conjuntura política e as posições governamentais são

determinantes na condução de projetos sociais desse teor.

Sem desconsiderar a força de transformação da sociedade e a importância das

mobilizações, é notório que as oligarquias agrárias sul-mato-grossenses que controlaram o

poder executivo deste Estado, desde sua criação até os anos de 1998, alternando-se no

poder, influência que ainda permanece forte devido atuação desses sujeitos no poder

legislativo, serviram de entraves às mobilizações e à concretização de projetos de reforma

agrária. Desta forma, as conjunturas políticas e sociais, que também são passíveis de

reestruturações, influenciam na forma de condução das discussões e favorecem ou não, a

concretização de determinadas conquistas sociais.

Assim, os anos entre 1990 e 1995, podem ser visto como um momento de

grandes dificuldades para os trabalhadores rurais sem-terra, com problemas de mobilização

causados pela repressão, pouca ou nenhuma verba orçamentária destinadas a projetos de

assentamentos e apenas algumas medidas paulatinas para conter os focos mais acentuados

de mobilizações.

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2.3.3 Revigoramento: a luta pela terra a partir de 1996

A última década do período analisado (1996-2005) é apresentada como um

momento de conquistas. Nesses dez anos de luta, 79 projetos de assentamentos foram

implantados e quase dez mil famílias atendidas em Mato Grosso do Sul. Os movimentos

mostraram-se bastante organizados e impuseram-se de maneira ininterrupta, de forma a

contribuir para um direcionamento da reestruturação do espaço rural sul-mato-grossense.

Vislumbra-se, ainda, nesses últimos anos, um aumento considerável de organizações

envolvidas em mobilizações de luta pela terra; além da CUT, que passou a atuar a partir de

1998, outros movimentos e associações passaram a apoiar a luta pela terra e a formação de

acampamentos como forma de pressão à efetivação de projetos de reforma agrária.

Na esfera política, esse período corresponde a sete anos do mandato do

presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) e três anos do mandado de

Luiz Inácio da Silva (Lula do PT, 2003-2010), quanto a governadoria estadual, esse

período corresponde a três anos do mandado de Wilson Barbosa Martins (PMDB, 1995-

1998) e a sete anos do governo José Orcírio Miranda dos Santos (Zeca do PT, 1999-2006).

Conforme os números da luta pela terra, o ano de 1996 marca de forma

acentuada o aumento das mobilizações. Como forma de repúdio aos anos de estagnação na

viabilização de assentamentos, os movimentos articularam-se e lançaram uma série de

ocupações que chegaram a um total de 26 acampamentos no ano de 1996 (cf. tabela 7).

No primeiro mês do primeiro mandado de Fernando Henrique Cardoso foi

lançado seu Programa de Reforma Agrária, que tinha como meta o assentamento de 200

mil famílias em 4 anos. Na ocasião do lançamento do Programa, um representante da

diretoria da CONTAG mencionou os conflitos que o presidente poderia enfrentar caso não

colocasse em prática seu programa de reforma agrária: “O não cumprimento dessa

proposta deverá acirrar a crise fundiária no país, com os sem-terras promovendo ocupações

de áreas rurais que poderão resultar em violentos conflitos” (O Progresso, 27.01. 1995).

Em julho do mesmo ano nenhum projeto havia sido viabilizado e os

movimentos ainda esperavam a ação do Governo. Durante o 3º Congresso Nacional do

MST, que aconteceu em julho de 1995, em Brasília, uma equipe de 26 representantes do

Movimento foi recebida por Fernando Henrique, que reafirmou o compromisso com a

reforma agrária em seu mandato. Em razão desse encontro, João Pedro Stedile se

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demonstrou esperançoso: “O presidente deu uma demonstração de vontade política que já

representa um grande avanço na reforma agrária” (O Progresso, 28.07.1995).

O que se viu, no entanto, durante todo o ano de 1995, foram projetos parados

no INCRA. Das oito fazendas passíveis de desapropriação no Estado de Mato Grosso do

Sul, as quais tramitavam com processos de desapropriação na justiça, apenas a

Tamarineiro, em Corumbá, foi realmente destinada a assentamento de famílias de sem-

terras, assentando tão somente 391 famílias. O MST acusava, neste momento, a falta de

estrutura e ineficiência do INCRA pela não viabilização das desapropriações, tendo em

vista que os erros apresentados nos projetos de desapropriação abriam espaços para

inúmeros recursos judiciais por parte dos proprietários, o que protelava a desapropriação.

Como resposta a esses entraves apresentados no ano de 1995, as mobilizações

e ocupações voltaram de forma massiva no ano seguinte. Outras mudanças presentes na

luta pela terra, a partir de então, também têm suas raízes nesse período de estagnação,

como a assistência alimentar aos acampados, que passou a ser cogitada a partir das

recuperações de alimentos feitas pelos sem-terra, sobretudo, em relação aos acampados na

fazenda Sul Bonito, em Itaquiraí. No ano de 1995, dois saques consecutivos a um

caminhão frigorífico e a um caminhão pertencente a uma empresa atacadista, feito pelos

sem-terras acampados em Itaquiraí, chamou a atenção das autoridades à precária situação

em que essas famílias estavam vivendo à margem das estradas.

A tabela 7 apresenta o número de acampamentos e famílias de sem-terras

acampadas no Estado entre os anos de 1996 a 2005:

Tabela 7: Acampamentos/ocupações e número de famílias acampadas por mediadores 1996-2005

Ano MST

Acampamento

MST Nº

Famílias

CUT Acampamento

CUT Nº

Famílias

FETAGRI Acampamento

FETAGRI Nº

Famílias

Total Acampamento

Total de Famílias

1996 6 505 ** ** 20 2.425 26 2.930 1997 7 2.452 ** ** 8 965 15 3.417 1998 6 2.841 6 641 * * 12 3.482 1999 8 1.914 6 490 2 200 16 2.604 ocupação nº família ocupação nº família Ocupação nº família ocupação nº família

2000 15 2.910 24 2211 16 1385 55 6.506 2001 8 913 15 1097 5 584 28 2.594 2002 3 180 1 150 4 178 8 508 2003 5 1.150 1 15 1 40 7 1.205 2004 10 2070 4 500 3 280 17 2.850 2005 4 190 1 70 1 67 6 327

Fonte: FARIAS, 1997; Ouvidoria Agrário Estadual. * não foram encontrados registros ** O DETR da CUT não estava estruturado

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No ano de 1996, o número de acampamentos chegou a 26, com cerca de 2900

famílias acampadas. Nos anos que se seguem, até 1999, o número de acampamentos é

reduzido, mas mantêm um alto número de famílias acampadas. Isso está relacionado a uma

massificação dos acampamentos, com a fusão de pequenas mobilizações.

Em relação ao período de 2000 a 2005, ocorre uma diferenciação na coleta de

dados. A relação de acampamentos e famílias de sem-terra acampadas nos anos anteriores

foi elaborada com base nos dados oferecidos por Farias, 1997 e 2003, e aos poucos dados

fornecidos pelos mediadores e pelo INCRA. Quanto ao período de 2000 a 2005, os dados

foram elaborados de acordo com informações fornecidas pela Ouvidoria Agrária Estadual,

que diferente dos dados dos anos anteriores, registra não o número de acampamentos

existentes no Estado, mas sim o número de ocupações que ocorreram dentro de um

determinado ano.

O mapa seguinte (figura 3) registra os municípios em que ocorreram essas

ocupações de terras, classificadas por ano e por mediador.

Figura 3: Mapa das ocupações de terras em MS – 2000-2005

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Observa-se pelo mapa (figura 3) que a concentração dos acampamentos se

mantém como nos anos anteriores, sobretudo, no sul do estado, com apenas alguns

acampamentos localizados mais ao norte e em áreas pantaneiras. Já a região mais a oeste

de Mato Grosso do Sul, nas divisas com São Paulo e Minas Gerais, é a que menos

apresenta focos de mobilizações sociais de luta pela terra. As cidades de Itaquiraí e

Eldorado mantêm a tradição de referencial de foco das mobilizações de sem-terra, com oito

e sete ocupações de terra entre esses seis anos, respectivamente.

O mapa a seguir (figura 4) apresenta as localidades dos acampamentos

existentes no Estado em 2005, classificado por mediador:

Figura 4: Mapa acampamentos rurais existentes em MS - 2005

A tabela 7 apresenta o número de ocupações entre os anos de 2000 a 2005

(dados a Ouvidoria Agrária Estadual) e a figura 4, apresenta a localização dos

acampamentos que existiam no Estado no ano de 2005 (dados dos mediadores). Na análise

entre os dados, verifica-se um fato curioso: o MST e a CUT apresentam um número maior

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de ocupações, nesse período, com 45 e 46 respectivamente, com relação ao número de

famílias o MST mediava cerca de 7400 famílias e a CUT, cerca de 4000 mil famílias,

enquanto a FETAGRI mediou 28 ocupações que contava com cerca de 2500 famílias. Mas

a análise dos acampamentos existentes no ano de 2005 revela uma situação oposta,

segundos esses dados, em 2005, a FETAGRI tinha sob sua mediação 100 acampamentos,

totalizando 12.734 famílias, o MST mediava 23 acampamentos e 6.662 famílias, enquanto

a CUT mediava 32 acampamentos e 3.272 famílias. Além de considerar que os dados com

relação aos acampamentos existentes foram fornecidos pelos próprios mediadores, essa

discrepância também ocorre tanto pelo fato da FETAGRI, em muitos casos, montar seus

acampamentos fora dos limites das propriedades, à margens das estradas, o que não

configura, para o poder judiciário, uma ocupação de terra, quanto pelo imediatismo com

que alguns acampamentos surgem e são desfeitos.

Destaca-se, ainda, que o número de trabalhadores sem-terra e a mobilização

popular de luta pela terra em Mato Grosso do Sul avoluma-se a cada ano, tendo em vista

que entre os anos de 1996 a 2001 foram assentados quase dez mil famílias e ainda assim o

número de sem-terra acampados se manteve expressivamente alto. Segundo dados da

Ouvidoria Agrária Estadual, no ano de 2000, o estado de Mato Grosso do Sul era

absolutamente o estado com maior número de ocupações de terra, 22% contra 17% no

estado de Pernambuco, o segundo colocado.

O considerável aumento das mobilizações e do número de trabalhadores sem-

terra nos últimos anos tem contribuído para o aumento também do número de

desapropriações de terras no estado. Os anos de acirramento dos movimentos foram

também os anos em que mais assentamentos foram criados dentro do Estado. Mesmo que,

com critérios bastante discutíveis, foram implantados 79 assentamentos com quase dez mil

famílias atendidas. Medidas que estão longe de significar uma reestruturação no espaço

agrário, ou mesmo uma proposta política e social que vislumbre uma reforma agrária de

qualidade, tendo em vista que a viabilização desses projetos só ocorreu efetivamente em

decorrência de pressão social para desapropriação de terras.

Embora a lista de assentamentos pareça grande, a área destinada a

assentamentos nesse período representa somente 0,87% da área rural de Mato Grosso do

Sul, que é, segundo o último censo agrário (1995/1996), de 30.942,772 ha.

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Tabela 8: Projetos de assentamentos em MS – 1996-2005

Denominação do

Projeto Área (ha) Nº de Famílias

Ano implantação Município

1 Paiolzinho 1.196,7523 70 1996 Corumbá 2 São João 856,1606 58 1996 Batayporã 3 Mutum 15.831,6943 340 1996 Ribas do Rio Pardo 4 Mercedina 803,2433 56 1996 Batayporã 5 Andalucia 4.815,1088 166 1996 Nioaque 6 Sul Bonito 6.375,9385 421 1996 Itaquiraí 7 Tupanceretan 2.546,4421 81 1996 Bela Vista 8 Patagônia 3.502,8887 128 1997 Terenos 9 Nova Alvorada 3.000,8266 86 1997 Nova Alvorada do Sul

10 Corona 1.095,8569 58 1997 Ponta Porá 11 Campina 2.408,8339 76 1997 Bodoquena 12 Capão Bonito II 8.231,4968 308 1997 Sidrolândia 13 Floresta Branca 4.980,9931 185 1997 Eldorado 14 Lagoa Grande 4.071,4428 151 1997 Dourados 15 Primavera 2.535,1451 71 1997 Jaraguari 16 Campanário 2.851,0325 132 1997 São Gabriel D’Oeste 17 Nova Querência 3.864,6432 157 1997 Terenos 18 Santa Clara 4.353,3284 156 1997 Bataguassu 19 Serra 2.986,1066 116 1997 Paranaíba 20 Triângulo 927,1312 50 1997 Rio Brilhante 21 Santa Guilhermina 7.994,7290 224 1997 Maracajú / Nioaque 22 Amparo 1.126,8933 67 1997 Dourados 23 Paraíso 3.308,4025 98 1997 Terenos 24 Rancho Tupambaê 1.869,6828 130 1997 Miranda 25 Guaçu 2.678,9794 134 1997 Itaquiraí 26 Santa Rosa 4.048,1606 200 1997 Itaquiraí 27 Palmeira 4.172,7154 112 1998 Nioaque 28 Córrego Dourado 1.399,9700 49 1998 Santa Rita do Rio Pardo 29 Montana 1.567,7738 70 1998 Bataguassu 30 Taquara 1.550,2765 67 1998 Rio Brilhante 31 Caracol 6.326,5804 152 1998 Bela Vista 32 Fortuna 2.383,1961 108 1998 Rio Brilhante 33 Aldeia 10.718,2345 217 1998 Bataguassu 34 Santa Amélia 2.029,8895 74 1998 Dois Irmãos do Buriti 35 Rio Feio 2.344,7747 72 1998 Guia Lopes da Laguna 36 São Judas 4.155,3658 187 1998 Rio Brilhante 37 72 2.343,4143 85 1998 Ladário 38 Santa Paula 590,0000 89 1998 Bataguassu 39 Santa Catarina 1.958,6037 78 1998 Aral Moreira 40 Tamakavi 3.383,5670 120 1998 Itaquiraí 41 Santa Lúcia 1.026,7440 36 1998 Bonito 42 Bandeirante 2.033,4466 45 1998 Miranda 43 Pam 5.029,9237 115 1998 Nova Alvorada do Sul 44 Savana 5.674,7702 212 1998 Japorã 45 Boa Sorte 1.498,0306 65 1998 Itaquiraí 46 Boa Esperança 3.945,5065 126 1998 Nioaque 47 Uirapuru 7.067,8847 290 1998 Nioaque 48 São Pedro 8.592,2341 295 1998 Sidrolândia 49 N. S. Auxiliadora 8.707,5818 252 1998 Iguatemi 50 São Sebastião 2.967,6652 100 1998 Ivinhema 51 São Cristovão 947,8198 34 1999 Paranhos 52 Conquista 1.557,9073 65 1999 Campo Grande 53 Bonsucesso 664,7972 27 1999 Rio Brilhante 54 Fortaleza 384,9028 14 1999 Rio Brilhante 55 Vista Alegre 1.030,8248 49 1999 Sidrolândia 56 Boa Vista 2.165,2940 50 2000 Ponta Porá 57 Vacaria 1.067,0000 48 2000 Sidrolândia 58 Santa Irene 2.473,2570 72 2000 Anaurilândia 59 Santa Renata 1.117,4161 35 2000 Tacuru 60 Jibóia 7.877,7365 238 2000 Sidrolândia

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61 Catangalo 1.256,6073 50 2000 Maracaju 62 Guardinha 989,4907 30 2000 Jardim 63 Indianópolis 1.758,4500 65 2000 Japorã 64 Mambaré 1.948,6004 72 2000 Mundo Novo 65 Nova Era 2.848,1074 105 2000 Ponta Porá 66 Nossa Srª. Do Carmo 1.192,9967 41 2000 Caarapó 67 Dorcelina Forlador 8.118,3095 270 2000 Ponta Porã 68 Capão Bonito III 600,0000 23 2000 Sidrolândia 69 Sebastião Rosa da Paz 1.210,4350 42 2000 Amambaí 70 Laguna do Eldorado 2.280,7260 45 2000 Eldorado 71 Aroeira 1.855,6069 88 2000 Chapadão do Sul 72 Aliança 1.101,6902 39 2000 Itaquiraí 73 Margarida Alves 3.429,1890 115 2000 Rio Brilhante 74 Itamarati 25.010,5039 1.300 2000 Ponta Porá 75 Geraldo Garcia 5.688,90 190 2000 Sidrolândia 76 Pontal do Faia 1.485,0000 44 2000 Três Lagoas 77 Lua Branca 2.425,3962 81 2000 Itaquiraí 78 Santa Terezinha 1.537,9131 64 2001 Sidrolândia 79 Valinhos 2.033,8089 86 2001 Maracaju

Total 272.217,03 9967 Fonte: INCRA – Dourados

A partir de meados da década de 1990, a resposta política às mobilizações de

luta pela terra perdeu parte de seu caráter violento e de extremo descaso; não que o

processo de luta tenha se tornado fácil, mas a forma de condução das discussões evoluiu

junto com um processo político e histórico de democratização do país.

Nesse último período estudado, vê-se com freqüência despejos negociados, com

pouca ação policial, discussões mais abertas e propostas mais consistentes. Em alguns

casos, verifica-se uma pressão simbólica, como no caso da fazenda Sul Bonito, em

Itaquiraí, onde cerca de 200 policiais permaneceram por uma semana no local do

acampamento em estado de alerta, de forma a coagir as famílias acampadas, o que resultou

na saída das famílias, mas sem nenhum confronto armado ou agressões físicas.

Foi também a partir desse período que as famílias de sem-terra passaram a ser

atendidas com alimentação básica para subsistência, o que pode ser também visto como

mero assistencialismo, mas evita maiores dificuldades de sobrevivência em um espaço

social de tantos conflitos e faltas; evita os saques de alimentos e abates de bois, ações que

muitas vezes causam desconforto às famílias e repúdio social. Embora com muita

reivindicação, alguns acampamentos passaram a ser atendidos com alguns serviços sociais

básicos, como transporte escolar e atendimento médico.

Os dados estatísticos apresentados pela CPT mostram o declínio de sem-terras

presos e mortos em conflitos agrários em quase todos os estados brasileiros. Em Mato

Grosso do Sul, entre os anos de 1996 a 2005, foram quarenta sem-terras presos, contra um

total de 135 no período anterior.

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A diminuição de medidas violentas está relacionada também ao fato das classes

políticas mais conservadoras e mesmo da elite agrária não terem encontrado mais o mesmo

apoio de antigamente. A milícia armada mantida por fazendeiros perdeu sua falsa

legitimidade e passou lentamente a ser, se não extinta, mas extremamente discreta. O caso

de Eldorado dos Carajás, em 17 de abril de 1996, que resultou na morte de 19 sem-terras

com repercussões internacionais e grande comoção social, soou como um alerta às

autoridades políticas quanto à necessidade de projetos sociais destinados a esses

trabalhadores e a uma maior atenção às formas de tratamento dispensadas a essas

mobilizações.

Um dos coordenadores nacional do MST, João Pedro Stedile, em entrevista,

também chama atenção ao declínio de ações violentas a partir de 1996: “Se considerarmos

Carajás como um caso a parte, vamos constatar que houve uma redução significativa da

violência” (O Progresso, 20.12.1996).

Segundo Farias, a mudança de estratégias em alguns setores sociais e

econômicos no governo de Fernando Henrique Cardoso, nos anos de 1997/1998, está

relacionada também ao processo político de reeleição que se apontava. Processo esse que

resultou na reeleição do então presidente e em uma mudança política de suma importância

no Estado de Mato Grosso do Sul, com a eleição de um governo do Partido dos

Trabalhadores, alterando o sistema político controlado por oligarquias latifundiárias,

mantido desde a criação do Estado. A eleição do governador José Orcírio Miranda (1998)

criou um quadro de esperança na população, que passou a deslumbrar medidas sociais e

políticas, imediatas e radicais (2003, p. 69-70).

Todo esse processo de luta pela terra, a abrangência dessas mobilizações, o

número de trabalhadores sem-terra que cresce a cada dia, as proporções tomadas por esses

acampamentos, leva-me a buscar entender e analisar como isso acontece na prática, como

esses sujeitos de tão diversos lugares, de tão diversos sotaques, unem-se em torno de um só

objetivo, uma só vontade, e por que não, um só sonho.

Direcionado meu olhar, neste momento, para o sujeito dessa luta, passo a

analisar o cotidiano e as formas de organização dessas mobilizações com o objetivo de

compreender o mecanismo dessa organização e o que faz, ou não, com que essas famílias

permaneçam muitas vezes por até dez anos vivendo sob barracos de lona à margem das

estradas.

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CAPITULO III:

POR OUTRA HISTÓRIA: “É POR ISSO QUE A GENTE LUTA”

Tenho tanta vontade de ter um sítio, mais cedo o mais tarde, hoje ou mais amanhã, eu vê o futuro de meus filho ir pra frente, eles tudo trabalhano, a gente ter um lugar sossegado pra morar, né? Foi por isso, então, por isso que a gente luta, é por isso, nossa luta é essa (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

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3.1 Ser sem -terra: a adesão de trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra

A gente vai pros bairros mesmo, se você não conhece você procura por associação de bairro, ou se não tem associação, sempre tem alguém que busca alguma coisa, ou a Igreja, ou a coordenadora do grupo de família... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

Nós ia passando na rua e daí nós viu uma reunião de gente, aí eu falei pro meu marido: “João, que diacho que é aquilo ali”? Ele falou assim: “ah, Neia, não sei não, acho que é o povo que ta reunindo pra ir pro sem terra. Mas isso não é coisa de gente não”. Meu marido falou, né? Aí eu falei: “ah, eu vou ali”. Daí nós chegemo, né? aí eles começaro fala, fala, daí eu falei, depois que cabou a reunião falei pro João: “ah, e eu vo!” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

O acampamento é um espaço de inúmeros conflitos e composto por relações

complexas, no entanto, os conflitos iniciam antes mesmo da chegada desses sujeitos a esse

novo espaço. A decisão de acampar, em muitos casos, é tomada em meio a um conjunto de

sentimentos antagônicos, divergências, dúvidas, medos, expectativas, esperanças; para

muitos a decisão de participar de um ocupação/acampamento se torna a única saída

possível e surge como conseqüência de uma vida de sofrimentos e privações.

Diante das experiências de vida e de trabalho narradas por esses sujeitos, é

possível compreender o porquê de estarem vivendo à margem das estradas, sob um

vulnerável barraco de lona, a espera de um lote de terras. Essa espera, muitas vezes, marca

a última esperança, a única saída possível, mesmo que tão incerta. A vida sob o barraco de

lona é o possível naquele momento. Esse processo contempla uma gama variada de lutas e

de sonhos, entre os mais evidentes estão o sonho de ter um pedaço de terra, a necessidade

de sobrevivência e a luta por trabalho e moradia, aspirações estas que estão neste

espaço/tempo sendo alimentadas pela expectativa de um projeto de reforma agrária.

Importa, neste momento, compreender a gênese desse processo de luta. Como

acontece a adesão desses trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela, já que não se

trata de movimentos espontâneos, mas sim mediados, pensados e organizados por

entidades como o MST, a CUT e a FETAGRI. Esse processo evidencia uma vida marcada

por problemas sociais, como dramas familiares, habitacionais, de emprego e subsistência.

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Esses sujeitos constituem o que Martins identificou como “um conjunto grande de

descartes sociais e de alternativas de vida não realizadas” (2003, p. 17).

Ao aderirem aos movimentos, muitos desses sujeitos deixam casas, escolas,

vizinhos, amigos, família e trabalho; são rupturas que, em muitos casos, não se pode reatar;

são mudanças que transformam o mundo de sociabilidade desses sujeitos. Essa adesão

envolve, além de questões práticas, como a mudança de espaço, questões relacionadas aos

referenciais, aos princípios, à constituição de uma identidade de sem-terra. Essas

transformações e rupturas ficam mais evidentes nos grupos mediados pelo MST, isso

porque esse Movimento defende uma mudança real das famílias para o acampamento, o

que não ocorre com os outros mediadores. Congregar pessoas é um caminho que se faz

necessário a qualquer movimento social, na luta pela terra isso acontece de maneira bem

específica no MST, na CUT e FETAGRI.

Segundo Fernandes, o espaço de socialização política em que acontecem os

trabalhos para uma ocupação de terras possui três dimensões: a) o espaço comunicativo –

que se constrói nas primeiras reuniões, nas apresentações e nas definições de objetivo; b) o

espaço interativo – momento em que se desenvolvem sentimentos de interação, de

identificação, com trocas de experiências de vida (“onde vem os exemplos”, como disse

dona Leonice), em alguns casos pode ser visto até como um espaço de formação; c) o

espaço de lutas e resistências – quando através da ocupação os trabalhadores vêm a

público e percebem a própria vida transformada (2000, p. 283-284).

Embora na relação de conhecimento e aproximação entre trabalhadores, e/ou

grupos sociais, com propensão a participarem de uma ocupação de terra e os mediadores,

essas dimensões possam ser visualizadas, é importante salientar que, no estudo em questão,

tais dimensões não são lineares ou estanques, mas apresentam variações e algumas são até

suprimidas em determinados casos.

O espaço comunicativo é o momento em que os sujeitos sociais são

apresentados à proposta do movimento, ocasião em que os trabalhadores participam das

primeiras reuniões e recebem as propostas para a ocupação. Esse início de adesão

acontece de formas diversificadas: alguns, diante das dificuldades em que vivem, procuram

representantes de movimentos e sindicatos; outros são convidados por amigos, vizinhos e

parentes que estão decididos a ir para o acampamento; há também àqueles que têm

conhecidos que conseguiram um lote de terra e decidem partir para luta impulsionados

pelo exemplo de êxito e existem também muitos filhos de assentados pleiteando um lote de

terra para si; entre outras situações.

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Há casos em que os movimentos ou sindicatos buscam o contato com famílias

interessadas pela causa, no entanto, em determinadas situações, o inverso também

acontece. Há casos em que os próprios grupos, ou família, procuram o apoio do MST ou de

sindicatos, isso acontece, principalmente, em momentos de grandes dificuldades, como,

por exemplo, a falta de trabalho, de habitação, os problemas familiares ou a perda de

emprego.

A metodologia de trabalho dos mediadores é diferenciada nesse primeiro

contato com as famílias. O caráter sindical e municipalista da FETAGRI e da CUT

imprime uma forma diferenciada de congregação dos sujeitos sociais. Com o auxílio

desses mediadores, o trabalho é feito pelo sindicato municipal que são constituídos por

pessoas da comunidade local, ou ao menos intercedida por elas. Os associados representam

grande parte dos sujeitos que ingressam nas ocupações propostas por esses mediadores. O

MST, que não possui um representante em cada município (sindicato), apresenta forma

diferente de atuação, ele busca o contato com esses sujeitos por meio de reuniões feitas

pelos militantes dentro de determinados grupos sociais. Trata-se de uma atividade

institucionalmente chamada de trabalho de base desenvolvida por militantes do setor de

Frente de Massa.

O setor de Frente de Massa é um dos muitos setores criados pelo MST para a

organização da luta pela terra, sua função é exercer um trabalho, denominado de trabalho

de base, que consiste em organizar as ocupações e trabalhar no sentido de efetivá-las, indo

aos municípios selecionados, buscando apoio, agregando pessoal, fazendo as reuniões e

montando os acampamentos.

O acampamento Oito de Março foi detalhadamente articulado por cerca de seis

integrantes da direção estadual do MST. Pessoas estas que tomaram decisões como a

escolha da área, data, estratégias de contatos com as famílias e com militantes para o

trabalho de base.

Para montar o acampamento foi escolhida uma das maiores propriedades de

Itaquiraí, a fazenda Santo Antônio, que embora produtiva pelas definições legais, possuía

cerca de cinco mil hectares não documentados. A fazenda, de propriedade do Grupo

Bertin, possuía 19.679 ha registrados e ocupava na prática 25.560 há, tinha sua produção

voltada para criação de gado de corte destinada ao abastecimento da rede frigorífica do

grupo.

O trabalho de base para a articulação dessas mais de duas mil famílias durou

apenas três meses, o que evidencia um contingente de trabalhadores sem-terra já

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previamente articulado. O Movimento planejava uma grande mobilização, que tivesse

repercussão nacional, com um contingente de pessoal significativo. Para isso, tudo tinha

que estar adequado: a área, a data, o número de famílias, e incluindo, também, o sigilo da

ocupação.

Em comunicação oral, os militantes do MST narram como esse trabalho de

construção do espaço comunicativo se efetiva: Geralmente é assim... quando você vai pra um município você procura pessoas assim... o sindicato, alguns movimentos que apóiam o Movimento Sem Terra, né? Então a gente faz contatos com pessoas que apóiam o Movimento, e daí a gente inicia os trabalhos, né? Tem alguns municípios que a gente já tem esse contato, tem outros, que não tem e aí a gente tem que faze, né? [...] Você vai lá hoje: “Olha, eu vim aqui, sou do Movimento Sem Terra, nós estamos fazendo um trabalho de base conscientizando as pessoas pra ocupação”. Vamos colocar os objetivos, o que a gente quer com isso, né? E aí a gente marca a reunião, na data que a gente marcou a gente volta, aí começa... você faz várias reuniões... Aí, assim... tem dez, né? Esses dez, na próxima, tão encarregados de convidar outras pessoas. E assim por diante... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

Na verdade a gente buscou contato com a igreja, com o PT, com os sindicatos nesses municípios e as famílias que vinham procurar a gente. Então a gente deslocava algumas pessoas pra esses municípios. Militantes do movimento, que parava na casa de pessoas interessadas, e lá ia organizando o pessoal. Fazendo as discussões das dificuldades que teria dentro do acampamento da dificuldade do enfrentamento com a Policia, com o governo e... pra realmente fazê um processo de conscientização (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Nesse “processo de conscientização”, ou no trabalho de “colocar os objetivos”,

é que se define o objeto, e é nesse momento que as famílias, ou os indivíduos, ficam

tentados a participar ou repudiam a ação. “Conscientizar” e “convencer” são as estratégias

usadas pelos militantes para que os sujeitos participem da luta. Os que simpatizam-se com

a proposta passam a freqüentar as reuniões e poderão, ou não, participar da ocupação. Da

eficiência dessa didática militante depende a decisão desses sujeitos, mas não apenas dela,

pois os referenciais constituídos ao longo da vida do indivíduo influenciam, ou não, na

aceitação desse imaginário mobilizador, assim como também as condições financeiras,

habitacionais e familiares são condicionantes na decisão de acampar ou não.

Quero com isso dizer que o fato de se tornar sem-terra pode envolver

sentimento de pertença, pode constituir um imaginário mobilizador e uma consciência de

classe, mas não necessariamente. Nesse sentido, vejo as identidades sociais, a partir de

uma definição posta por Chartier, como uma construção e resultado “de uma relação de

força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de

nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma”,

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aceitando assim, que cada classe, grupo ou meio, possa ser compreendido como um “ser-

percebido”, capaz de constituir sua própria identidade (2002, p. 73).

Além do trabalho de conscientização, outros fatores, como a escolha a área a

ser ocupada, são preponderantes para que uma ocupação ocorra e para que o Movimento

consiga levantar um contingente de pessoas para a luta. A ocupação da fazenda Santo

Antônio fez parte de uma agenda de lutas proposta para acontecer em nível nacional;

lideranças estaduais articularam uma mobilização que realmente tivesse repercussão e

atendesse às expectativas do Movimento. A esse respeito, um dos líderes do acampamento

comenta como foi feita a escolha da área:

A área, na verdade, foi feito uma pesquisa em toda região onde ta sendo trabalhado, e aí a definição da área vai pelo um... na verdade a gente queria pegar um latifúndio que fosse grande, de grande extensão e que desse uma repercussão no Estado e a nível nacional. E realmente naquele período a gente conseguiu fazê isso. E é de um grupo importante, o grupo dos Bertin, que são os maiores exportadores de carne hoje do Brasil (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Para a escolha, da área também prevaleceu outros aspectos, como a presença de

várias lideranças e coordenadores estaduais do MST naquela região, imediações do

município de Itaquiraí e também, a questão de acessibilidade para as famílias. A

propriedade estava localizada em uma área estratégica, o que facilitava o deslocamento de

famílias vindas do Paraguai, Paraná e todo sul do Estado. Ao todo pude identificar a

participação de trabalhadores sem-terra de 18 municípios sul-mato-grossenses (Sete

Quedas, Tacurú, Iguatemi, Japorã, Mundo Novo, Itaquiraí, Eldorado, Naviraí, Nova

Andradina, Juti, Caarapó, Dourados, Fátima do Sul, Gloria de Dourados, Vicentina, Jatei,

Ivinhema e Novo Horizonte), famílias de brasiguaios e alguns grupos de famílias

paranaenses.

A esse respeito Leonice, uma militante que colaborou no trabalho de base,

comenta as estratégias do Movimento na tentativa amenizar os gastos e assim facilitar a

locomoção dos trabalhadores:

Por questão que nessa região aqui tinha mais gente mobilizado. Ficaria mais perto, tinha mais condições financeiramente do pessoal chegá até a área. Porque quem tinha que pagá o frete era eles mesmo, que paga, lona... tudo, tudo. A cesta, a alimentação, tudo eles. Então a gente definiu que nessa região aqui, vindo do Paraguai, vindo de Mundo Novo, Itaquiraí, Naviraí, Iguatemi, é... essa região aqui pra cima. Então ficaria mais perto do que nós dali deslocar a pessoal de Caarapó pra lá, então ficava mais longe o frete. Então nos teve que mais o menos, defini a metade (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Os contatos com as famílias para o trabalho de convencimento e constituição

do acampamento Oito de Março não foge ao de outras ocupações do Movimento.

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Militantes foram enviados aos municípios selecionados e, após contatos com Sindicatos de

Trabalhadores Rurais, associações de bairros e instituições religiosas, eles chegaram até as

famílias, sobretudo, à população pobre que residia no meio urbano. A partir deste momento

começa o trabalho de base, várias reuniões foram marcadas e a cada uma delas mais

pessoas são convidadas a participar; as pessoas presentes são instigadas a convidar um

amigo, um vizinho, um parente para participar das reuniões.

Dona Edinéia lembra como resolveu participar da ocupação. Andando pelas

ruas de Mundo Novo avistou um aglomerado de pessoas, por curiosidade resolveu entrar e

conferir. Como supunha seu marido, que no momento a acompanhava, era uma reunião do

MST. Sentiu-se atraída pela proposta do Movimento e resolveu: “Eu vou pra isso aí”.

Decidida, dona Edinéia teria a batalha de convencer o restante da família.

Essas reuniões, como a que dona Edinéia participou por acaso, geralmente

acontecem na casa de um morador, mas podem ocorrer também nas dependências de

igrejas de bairros, nos sindicatos municipais e até mesmo no meio da rua. Existem relatos

de que carros de som são colocados nas ruas para convidar os moradores a participarem

das reuniões.

Em alguns casos, o trabalho de base é feito por moradores da própria

comunidade que conhecem o Movimento de outras mobilizações, ou mesmo que já tenham

conseguido um lote de terra e voltam à militância convidando um grupo de conhecidos. Há

casos, ainda, em que as reuniões são organizadas por moradores de outros lugares, que

com sua experiência de vida e alguns contatos prévios, conseguem juntar um grupo de

pessoas, conversar e efetivar o espaço comunicativo. Segundo Fernandes, o trabalho de

base nasce sempre da própria necessidade das comunidades e é resultado da espacialização

e/ou da espacialidade da luta pela terra (2000, p. 282).

Já no processo de congregação das famílias feito pela FETAGRI e pela CUT, a

metodologia e as estratégias usadas são outras. A coordenação do movimento busca

parceria com o sindicato local, em alguns casos o sindicato municipal já tem previamente

um contingente de trabalhadores disposto a lutarem por um pedaço de chão, e buscam o

apoio ou da Federação ou da CUT.

Os coordenadores estaduais da FETAGRI mantêm relação com os STR’s

(Sindicato dos Trabalhadores Rurais) e esses efetivam o trabalho de congregação das

famílias, de levantamento de áreas e as possibilidades de ocupação, tendo em vista suas

experiências de vida e de trabalho naquela comunidade. A Federação também investiga

possibilidades de ocupação buscando informações sobre possíveis desapropriações de

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áreas junto aos órgãos estaduais. Nesses casos, os sindicatos são incumbidos de levantar

um contingente de trabalhadores sem-terra disposto a se direcionar a essa determinada

área.

Quando um acampamento é efetivado em uma região e o sindicato municipal

não possui um número de sem-terra suficiente para aquela área, a FETAGRI entra em

contato com outros Sindicatos e oferece vaga para acampamento. As vagas são ofertadas

em números específicos, isso porque a FETAGRI tem como método de trabalho montar

acampamentos com número de famílias aproximado aos que poderão ser assentados na

área ocupada.

Os representantes sindicais municipais são os que fazem a construção do

espaço comunicativo, apresentam propostas, expõem objetivos e buscam apoio na

comunidade local para viabilização das ocupações. A FETAGRI e a CUT fazem um

trabalho de mediação entre coordenadores de acampamento e presidentes de sindicatos

com órgão estaduais, INCRA, Secretaria de Segurança Pública. Cabe ainda a esses

mediadores a reivindicação para a viabilização de cestas básicas e desapropriação de áreas

junto ao governo estadual e ao INCRA.

A CUT, que apresenta na região um número reduzido de coordenadores

estaduais, também trabalha em parceria com os STRs, mas não possui uma hierarquia

previamente estabelecida, os coordenadores estaduais buscam atuar em todas as esferas,

muito embora isso não lhes seja possível, tendo em vista as limitações humanas.

Os sindicatos dos municípios envolvidos na pesquisa, embora possuam filiação

também à CUT, tendem a trabalhar de forma mais contundente com a FETAGRI, por isso,

grande parte dos acampamentos organizados pelos STRs no extremo sul do estado são

mediados por ela. Segundo alguns presidentes de sindicatos isso acontece por que “a

FETAGRI dá mais abertura pra gente”, “atende mais o sindicato” ou mesmo “é melhor de

trabalhar”. Essa preferência pelo apoio da FETAGRI está relacionada também a questões

de infra-estrutura, já que a CUT possui uma atuação relativamente recente em relação aos

acampamentos rurais e um grupo pequeno de pessoas para atuar.

Para a organização do acampamento Pedro Ramalho, articulado pelas

lideranças do STR de Mundo Novo, com apoio da FETAGRI, foi de suma importância a

interação desses representantes sindicais com a comunidade local. Segundo o então

presidente do sindicato: “Nós tinha na época um tipo de um cadastramento das pessoas que

não tinham terra, dos trabalhado rural sem-terra, e das pessoa interessada em pegar terra”

(Entrevista, Valdir, 30.04.2007). A partir desse reconhecimento da realidade local –

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pessoas dispostas a lutarem pela terra e as propriedades que poderiam ser passíveis de

desapropriação – esses sujeitos, ou pequenos grupos sindicais, passam a idealizar as

ocupações.

Os sujeitos que estão inseridos nos STRs são geralmente naturais da cidade

onde exercem suas funções ou já construíram uma vida de sociabilidade junto à elas, isso

permite-lhes conhecer as necessidades da população local, identificar onde estão os grupos

de famílias mais propensos a participação na luta e a quem devem ser delegadas a função

de coordenador, além se saberem, ainda, se existem áreas passíveis de desapropriação.

Com esses dados levantados e famílias previamente articuladas, finda o

processo inicial de comunicação, a primeira etapa é vencida e há ainda muito trabalho pela

frente.

As famílias percebem esse momento ainda com bastante receio e, em muitos

casos, resolvem participar das reuniões “pra vê como é que é”.

O trabalho de convencimento presente nas falas de militantes do MST, consiste

em apresentar aos sujeitos propensos a participar da luta a possibilidade de conseguir um

pedaço de terra com a mediação do Movimento. É na verdade, um processo interativo,

constituído por um trabalho de convencimento, feito na base da mobilização.

As reuniões que antecedem as ocupações, sobretudo do MST, podem ser vistas

como espaços de formação política, é esse contexto que determina quem irá participar da

luta. Na ocupação da fazenda Santo Antônio, esse trabalho foi realizado por cerca de 15

pessoas e dele dependia o êxito da ocupação. Os militantes foram enviados aos municípios

escolhidos com a incumbência de agregar pessoas para a luta. Detentores de um discurso

mobilizador, e de grande poder de convencimento, temas como a legitimidade bíblica da

luta pela terra, o direito de volta às raízes, o inconformismo com a exploração e os perigos

da vida na cidade, são recursos utilizados nesse trabalho e facilmente absorvidos por

pessoas em difíceis condições de sobrevivência, desempregadas, que levaram uma vida

errante, marcada por sofrimentos, humilhações e dificuldades de toda ordem.

A esse respeito, a senhora Leonice, militante do Movimento e uma das

coordenadoras do acampamento Oito de Março, relata em forma de diálogo como acontece

esse trabalho: Você chega lá num presidente de bairro de uma comunidade, você chega lá conversa com o presidente, conversa com o presidente do sindicato, entendeu? Conversa com a Igreja, com o padre, com as irmãs, com as freiras, como queira que se trata e coloca o quadro. E lá na base deles eles falam: fulano lá é presidente de bairro, cê pode chega ali conversa com ele e vê se tem possibilidade. Você vai numa reunião que já tem

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de bairro e você abre o jogo lá. Coloca o quadro, fala ô: “reforma agrária não existe de hoje, existe de muito tempo, que a gente sabe que existe muito tempo. A luta pela terra não começo hoje, começo a muito tempo, desde Cristo, que andava 40 anos pra consegui um pedaço de terra. E que, terra nós sabemo que tem. A situação na cidade vocês sabem que é difícil e cada vez complicando”[...]. Aí nós pega um exemplo, uma pessoa mais velha lá da reunião: “Quantos anos Sr. tem? Nos fala”. “Há eu tenho 50!” “Sr. começou trabalhar com que ano”? Aí ele vai fala: “Eu comecei trabalha com 9 ano”. “De 9 ano até hoje, Sr. trabalhou quantos anos? O que o Sr. têm? O que Sr. conseguiu?” “Eu não tenho nem uma casa pra mim mora”. Outra vez: “Só tenho uma casa pra mim mora”. “Então, custa o Sr. fica na luta pela terra? Fome o Sr. não vai passa. Dificuldade Sr. ta passando tanto aqui como Sr. passa lá. Entendeu? É difícil Sr. fica lá na luta pela terra, que amanhã ou depois Sr. vai adquiri um pedaço de terra pro Sr.? Sr. fica 3-4 ano e Sr. consegue, sendo que com 30 anos Sr. não consegui, 40 anos Sr. não consegue nada! Só conseguiu produzi fio e os fio aí... É aí que vem os exemplo: “Há o meu fio foi até morto aí na gangue”.

Então é o exemplo. Nóis coloca os exemplo. E aqueles, um vai avisando os vizinho que quera vim, e participa de outra reunião e vai se interessando. Esse era o serviço meu (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

A metodologia de trabalho narrada por dona Leonice é, na prática, aquilo que

ficou conhecido por meio de Paulo Freire como a Pedagogia do Diálogo. Um diálogo com

forte conotação política, que engendra uma práxis, que não é puro verbalismo, mas sim,

que leva a uma ação transformadora. Para Paulo Freire, “o diálogo dos oprimidos,

orientados por uma consciência crítica da realidade, aponta para a superação do conflito

destes com seus opressores” (GADOTTI, 1998, p. 15).

O “conscientizar” de dona Leonice é um ato de educar, de transformar, uma

ação que requer inquietação, superação de velhos valores, referenciais e preconceitos. Essa

práxis requer rupturas na forma de ver o mundo e a sociedade em que esses sujeitos estão

inseridos.

Os “exemplos” de dona Leonice são significativos e carregados de poder de

convencimento. Enquanto que esses militantes esclarecem a conjuntura nacional da luta

pela terra, a estrutura agrária e as questões sociais do país, esses sujeitos são instigados a

questionar sua própria posição na sociedade. Ao se reconhecerem como explorados e

marginalizados, inicia-se um processo de conscientização de seus direitos e de busca pela

superação dessa situação.

O militante responsável pelo trabalho de base escolhe alguém de dentro do

grupo para possíveis contatos, uma espécie de coordenador que fica responsável em

receber recados, repassar comunicados, agendar reuniões, entre outras atribuições. O

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processo de formação política que se inicia ainda neste estágio da luta pela terra é

formador de militância e continua por toda a luta. Nas primeiras reuniões, os sujeitos com

mais espírito de transformações, mais questionadores, que se destacam nas discussões, são

logo escolhidos como coordenadores de grupo e passarão a ter também funções de

responsabilidade quando o acampamento se efetivar.

A mobilização de mais de duas mil famílias contou com um forte sigilo no que

diz respeito à área e a data da ocupação. Apenas as lideranças do Movimento tinham essas

informações, todo o trabalho de base foi feito sem especificar a área e a data da ocupação.

Um possível infiltramento de jagunços, ou pessoas de pouca confiança, que pudessem

delatar as estratégias, fez com que todo o trabalho fosse feito sem maiores esclarecimentos.

A maioria dos grupos sabia que o acampamento aconteceria no sul do Estado, e nada mais.

A data da ocupação foi comunicada no dia da viagem e a especificação da área só foi

anunciada na chegada das famílias.

O Movimento planejou a hora em que cada grupo sairia de suas cidades, tendo

em vista a distância da cidade de Itaquiraí, para que todos chegassem quase juntos ao local,

de forma a massificar a mobilização e dificultar uma possível ação policial:

Na verdade, o sigilo na época era total, né? Tinha que sê o máximo possível. Na verdade, a gente só se comunicava com as coordenação. E também já era feito todo trabalho de preparação pra que isso não vazasse. Porquê não interessava de maneira nenhuma, é... que a própria Secretaria de Segurança do Estado, e os próprios fazendeiros ficasse sabendo. Isso dificultaria muito a ação que a gente ia fazê, e acho que o sigilo que a gente manteve na época, e toda a estratégia, foi o que garantiu a ocupação sem problemas, né? Porque a gente sabe da reação da fazenderada, no caso deles descobrirem onde seria a ação. E que sabia, a área que tava definida, não era mais do que quatro pessoas, antes da noite da ocupação. Como? Só eram em torno de quatro pessoas que sabiam qual seria a área que a gente ocuparia. Não tinha mais do que isso (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Segundo o senhor Lúcio, um dos articuladores do acampamento, eram apenas

cerca de quatro pessoas que sabiam a área a ser ocupada. O corporativismo em torno das

informações mencionadas por Lúcio é relatado também pelos trabalhadores sem-terra que

participaram da ocupação; é comum os relatos de total desinformação em relação ao local e

à data. Ao ser indagado se sabia para onde iria, o senhor Celso responde: “Não, sabia não.

Vim no escuro, sem saber de nada”.

Muitos receberam no final da tarde a notícia que, durante a noite, sairiam os

caminhões. Alguns já mantinham há dias a decisão, e por isso, já haviam preparado roupas,

mantimentos e as lonas para a viagem; outros foram pegos de surpresa e a decisão de

participar da ocupação teve que ser tomada rapidamente. Foi o caso do senhor Celso, que

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recebeu o convite na última hora, ao encontrar um amigo que iria acampar e resolveu ir

também:

No último dia. No outro dia nós já viemo. Ele só chegou e me avisou assim que ia... a turma tava vindo acampar de novo. Que ele tinha ido. Encontrei ele e perguntei pra ele como é que ele tava, se tinha pegado a terra. Ele falou que tinha, que tava atrás de outro acampamento pro pai dele e ia vim. Ele falou: “Nem sei certo, mas é... da manhã pra depois nós ta indo”. Aí ele falou: “Você não quer não?”. Eu falei: “Vô”. Aí cheguei e vim mesmo, só que foi naquele dia (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Mas a decisão de participar de uma ocupação de terras raramente é rápida

assim. O senhor Celso era divorciado, morava com os pais e fazia empreitadas em

fazendas, há algum tempo já cogitava a possibilidade de acampar. O mais comum é que

essa decisão envolva sentimentos, dúvidas, medos e desentendimentos familiares. Mudar-

se para um acampamento não significa somente a possibilidade de possuir um pedaço de

chão, mas também uma transformação na própria vida desses sujeitos, um questionamento

aos referenciais e aos princípios de vida. Um mundo de sociabilidade é deixado para trás, a

vida tem que ser refeita, muitas vezes sem a esposa, sem o marido, sem os filhos; outras

vezes a vida deve ser refeita sob um barraco de lona, às margens da estrada, com o casal e

sete filhos, como aconteceu com dona Eleonora e sua família.

A transformação que uma ocupação de terras oferece, ao mesmo tempo em que

lhes apresenta uma possibilidade de melhoria de vida, causa medo, estranheza e

desconforto. Dona Edinéia, que há dez anos vive com a família no barraco de lona, conta

as dificuldades que encontrou para levar a família para o acampamento:

Ele falou [marido]: “Néia não adianta, Néia. Não adianta você ir por que não vai dar certo pra nós.” Daí ele pegou e falou: “Você quer ir você vai, só que eu não vou.” Eu falei: “se você não vai então eu vou sozinha” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Dona Edinéia ainda se recorda da promessa que lhe foi feita naquele momento

de interação com lideranças do Movimento – a de que com seis meses estaria em sua

própria terra. A promessa foi tentadora. O que lhe custaria ficar seis messes morando sob o

barraco de lona para conseguir sua propriedade se morou a vida toda em casebres e nunca

teve nada? Na história narrada por dona Edinéia, a fala dos militantes mexeu com seus

sentimentos e despertou nela vontade de mudar de vida. O discurso que ela ouviu nesse

espaço de interação a convenceu que o melhor para ela e para a família, naquele momento,

era partir para a luta juntamente com aquelas outras famílias em busca de um pedaço de

chão.

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Bastante convencida disso, dona Edinéia recorda que, com relação à negação do

marido em acompanhá-la, foi taxativa:

Se você não vai, você fica aí, eu vou catar minhas duas filha e vo. Nós vai! Nós vai ganhar terra, uai, com 6 mês nós vai ganhar. Aí ele falou: então que ir vamos. “Se você nunca entrou num inferno você vai entrar agora.” Cheguei em casa juntei os trem, né? E fomo mesmo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Claudinéia, filha de dona Edinéia, que em 1997 tinha apenas 13 anos de idade,

confessou ter ficado espantada com a notícia, mesmo não sabendo ao certo do que se

tratava. Sabia que iria deixar a escola, as amizades, a casa onde vivia e os poucos

pertences. O que tinham era muito para ser deixado pra trás, mas pouco diante da

possibilidade de ver a família esfacelada.

Que a mãe chegou em casa e falo assim: “Vamo pro acampamento”. Eu nem sabia o que era acampamento, nem sabia como é que era. Aí eu falei assim: “eu não vô não”. E ela falou assim: “se você não vai você fica com seu pai então porque eu vô”. Mas eu sempre fui meio agarrada com minha mãe, nunca que eu ia dexa ela sozinha, foi indo até que a gente veio (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Entre deixar a mãe e ir a um lugar desconhecido, longe de tudo e de todos, as

duas filhas e o pai decidiram acompanhá-la.

Dona Edinéia conta que viveu quase a vida toda na roça. Anos depois do

casamento, o marido já não encontrava mais trabalhos em fazendas, a saída foi mudar para

a cidade com as duas filhas que tiveram, compraram uma casinha de madeira e passaram a

trabalhar de bóia-fria. No momento em que dona Edinéia decide resistir na decisão de

acampar na tentativa de resgatar um modo de vida deixado para trás, ela revela também

uma superação no processo de dominação imposto às mulheres. Lutar por um pedaço de

terra significava, naquele momento, mais do que a possibilidade de volta às raízes, mas foi

necessário sua imposição em relação a vontade do marido.

Thompson (1987), em seus estudos sobre a participação feminina nos motins da

Inglaterra do século XVIII, já evidenciava a resistência das mulheres quando a

sobrevivência, ou a harmonia da família eram abaladas, e a participação feminina na

revolta contra a alta de preços e ações ilegítimas do mercado.

Para Marx, “a evolução de uma época histórica é determinada pela relação entre

o progresso da mulher e da liberdade, [...] o grau da emancipação feminina determina

naturalmente a emancipação geral” (Apud, SILVA, 2004, p. 88). A participação feminina,

no entanto, é menos evidente entre os outros mediadores. As diferentes concepções de luta

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dos mediadores aqui analisados se distinguem nessa etapa inicial da mobilização. A

FETAGRI, com sua concepção mais defensiva, apresenta outros valores para o

convencimento dos sujeitos que irão ingressar em seus acampamentos. A adesão de

mulheres à CUT e à FETAGRI é relativamente menor os homens formam a maioria nos

grupos, e são eles, quase exclusivamente, que efetivam as ocupações.

O trabalho de busca à adesão de trabalhadores, construído pela FETAGRI e

também pela CUT, é menos elaborado, mais rápido e não visa a construção de um espaço

de formação política e consciência de classe.

Ao recordar de como o marido resolveu ir para a ocupação da fazenda Laguna

Peru, dona Lurdes conta que ele recebeu o convite e partiu no mesmo dia. Como já

enfrentavam crise financeira devido às enchentes do rio Paraná no final da década de 1990,

o esposo, o senhor Luiz, aceitou o convite e foi para a ocupação.

De repente chegou um homem lá em casa e falou assim: “Dona Lurde, cadê o seu Luiz?” Eu falei: “o Luis ta pra ilha”. Ele disse: “Tem como ele chega hoje?” Eu falei: “Não, ele vai chegar sábado”. Ele falou: “Justo sábado nós vamo invadi uma fazenda”. Eu falei: “Não, mais o Luiz não qué esse negócio de invadi fazenda mais”. Ele falou: “Mas nós vamos entra na fazenda, na bera da estrada, e em 45 dias vai saí essas terra” [...] Aí o Luiz chego, eu falei: “Luiz o Cirço veio aqui chama você pra i invadi uma fazenda aqui perto, com 45 dia já corta os lote”. Ele pensou, e falo: “Ah, acho que eu vo” (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Essas pessoas eram um grupo de trabalhadores que, com o apoio do sindicato,

resolveram ocupar a fazenda Laguna Peru, no município de Eldorado. A fazenda fica bem

próxima à cidade e, segundo os relatos dos trabalhadores, estava abandonada. A esperança

da conquista desse espaço é evidenciada na fala de dona Lurdes com a proposta que

recebeu: a de que com pouco mais de um mês as terras sairiam.

A maioria dos entrevistados guardam na memória a proposta que receberam

nas reuniões que antecedem as ocupações, uma estimativa de tempo que quase sempre não

se concretiza. O senhor Luca, já com idade avançada e há oito anos morando sob o barraco

de lona, recorda com rancor que no dia em que saiu de casa para acampar: “eles disse a

terra ia saí amanhã, e até hoje...”

De fato, nos trabalhos de interação feitos para organizar famílias de

trabalhadores sem-terra para ocupações, os coordenadores trabalham com uma estimativa

um tanto mais convincente do que a média de tempo que habitualmente tem demorado a

sair uma desapropriação de terras, mas o caso da fazenda Laguna Peru, embora não

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incomum, foi específico; diversos impasses ocorreram nesse caminho que inviabilizou a

desapropriação dessa área (assunto melhor discutido no capítulo IV).

No acampamento Mambaré, em Mundo Novo, o sindicato que tinha a

FETAGRI como a principal representante, já possuía previamente um contingente de

trabalhadores cadastrados para participarem de ocupações. Cada grupo passou a ser

representado por um líder que levava as discussões para o sindicato e repassava as posições

e propostas. Essa estratégia de organização é relatada na fala do senhor João Valdir:

Em cada grupo, em cada localidade, cada bairro da cidade a gente montô um líder, que ficava responsável por aquelas famílias daquele bairro, daquela localidade. E aí ficava fácil porque a gente reunia os líder e discutia, é... é... e tomava as decisões e o líder reunia o grupo dele as famílias que tinha na lista dele e passava as decisões que a gente tinha tomado. E foi nessas reuniões, nesses encontros com as lideranças que nós decidimo ocupar a fazenda Pouso Alegre, determinada fazenda Mambaré (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).

As famílias de brasiguaios representavam grande parte dos sujeitos que

participaram dessa ocupação. Ainda no Paraguai, alguns grupos de famílias buscaram

apoio do sindicato de Mundo Novo para retornarem ao Brasil. A partir dessa iniciativa, o

sindicato passou a pensar na possibilidade de uma ocupação de terra no município.

A adesão desses trabalhadores aos movimentos sociais de luta pela terra

envolve uma série de aspectos que evidencia uma vida marcada por problemas de ordem

financeira, familiar e habitacional. Apesar de diferentes, as histórias narradas por esses

sujeitos sobre a decisão de aderirem aos movimentos de luta pela terra, elas se assemelham

com relação a um passado de crise de um determinado modo de vida ou trabalho, de

dificuldades financeiras e de projetos de vida não efetivados.

A experiência de assumir a identidade de sem-terra, de reconhecer-se como tal,

inicia-se nesses primeiros momentos de interação com os movimentos e grupos sindicais,

quando esses sujeitos decidem participar de uma ocupação de terras. Essa decisão pode

trazer uma história de superação de velhas relações de dominação e exploração, mas não

necessariamente. Tomada a decisão, muitos percalços ainda virão pela frente, um mundo

de sociabilidades tem que ser deixado e a vida refeita.

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3.2 (Des) socialização na luta por um pedaço de chão

...o que dura se esvai. E o novo que ali se anuncia ainda não tem sentido, porque ainda não é e nem sempre será (Martins, 2003, p. 50).

O espaço/tempo do acampamento que muito tem sido analisado como um

período de socialização entre os acampados, e assim entendido pelo MST, é aqui visto

também como um período de dessocialização. Quando se muda para um acampamento

uma vida de sociabilidades é deixada para trás e o novo, ainda não tem sentido, e pode nem

chegar a ter, no entanto, nesse processo de perda social se dá também a construção de

novos valores e referenciais.

É na reconstrução, ou não, desses novos valores que se confirma a formação

(ou não) de uma identidade comum ou de um processo de identificação pelos sujeitos da

luta pela terra, sujeitos esses que se convencionou chamar de sem-terras. Sem adentrar na

discussão da ambigüidade ou legitimidade do termo sem-terra, busco nesse momento

compreender o que se renova, o que se mantém e o que é involuntariamente suprimido na

vida desses sujeitos ao fazerem a opção pela vida no barraco de lona dos acampamentos

rurais e assim, conseqüentemente, à vida de sem-terra.

É impossível negar que exista um processo de perda social, de separação de um

universo anterior e desconstrução de relações sociais durante o tempo de luta, no entanto,

esses são processos relativos e apresentam variações. Isso porque existem inúmeras formas

de se tornar um acampado, um sem-terra, o que varia desde o mediador às próprias

condições de vida, de trabalho, de moradia, de organização familiar e até mesmo de

concepção de vida e de reforma agrária.

Existem acampados que se mudam completamente para os barracos com a

família toda, inclusive animais domésticos; deixam a moradia, levam os móveis, utensílios,

juntam tudo o que conseguiram adquirir durante uma vida toda de trabalho em um pequeno

amontoado de coisas e passam a viver cotidianamente sob os barracos de lonas. No

acampamento Oito de Março, foi identificado um número maior de famílias vivendo sob os

barracos, isso de deu, em grande parte, pela postura do MST em defender a presença da

família (homens, mulheres e crianças) no acampamento, mas isso não é uma regra. Nesses

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casos, as transformações são mais bruscas, mais dolorosas e, muitas vezes, sem volta. É

um processo contraditório, conflituoso, desagregador, que dilui as velhas formas de

relações sociais e faz iniciar outras. A família permanece junta, é uma dissociação a

menos. Os filhos, no entanto, ficam um tempo sem estudar, podem não mais voltar à

escola, a família perde as relações de amizade, ao menos reduz (se considerarmos que

muitos grupos de amigos, vizinhos e parentes partem para a luta juntos), entre inúmeras

outras rupturas e perdas.

Em muitos casos, porém, a vida sob o barraco de lonas dos acampamentos não

difere muito, em questão estrutural, da vida que mantinham até então nas periferias das

cidades ou mesmo nas terras de outrem. Para alguns as dificuldades são muitas, mas

superáveis; outros, acostumados com uma vida toda de privações e extrema pobreza, vêem

a estrutura do acampamento como um local que não destoa muito da vida que sempre

levaram; muitos, no entanto, não suportam o cotidiano marcado pelas carências, não

agregam novos valores e desistem. A esperança permeia os casos de permanência. A

narrativa de dois acampados são importantes para a apreensão dessas questões:

Me acostumei rápido no acampamento por causa que... que eu já era de ficar acampado pra trabalha. Nê? Pegar as empreita pra trabalha, me acostumei fácil. Agora tem gente que passa dificuldade, não acostuma. A lona é triste... na hora do sol quente ela esquenta demais, a noite o sereno... ela fica pingando aquele sereno em cima das pessoa. É perigoso adoecer. Só que pra mim não, já tava acostumado sempre em barraco de lona mesmo (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Agora até que num ta... eu achava difícil, mais num é. Não tem muito... nada assim difícil, não. A gente tando com saúde tudo é bom né? O problema é se a gente tiver meio doente. Daí a gente desanima e num qué mais, no mais tá normal, tudo bem (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

Mesmo reconhecendo as dificuldades daquele espaço, o senhor Celso diz não

ter sentido muito a mudança para o acampamento, pois já vivia acampado em fazendas da

região, onde morava para trabalhar. Trocar a vida de andarilho, como disse em outro

trecho da conversa, pelo acampamento, significou para o senhor Celso uma perspectiva,

embora vivendo sob as limitações do acampamento de sem-terras, essa nova situação

proporcionava-lhe a expectativa de conseguir um lugar, uma terra, um trabalho e uma

moradia, diferente das relações vividas anteriormente.

Partindo da concepção de que o sujeito social se constitui na experiência, em

um processo contínuo, a fala de dona Eleonora se torna indispensável. Oito anos sob o

barraco de lona, ela diz que “achava difícil” a vida naquele espaço, mas com o tempo viu

que “não é”. Isso não significa que as dificuldades tenham sido suprimidas e a vida tenha

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se abrandado, mas significa, que a experiência imprimiu-lhe novos conceitos, novas formas

de vida.

É a partir da relação comum entre esses sujeitos, pela busca por um pedaço de

chão, por dignidade e cidadania, que tais indivíduos se identificarão como pertencentes a

um mesmo grupo. O auto reconhecer-se sem-terra funda-se a partir de relações e ações de

um grupo, que embora composto por sujeitos de origens e hábitos distintos, agem em busca

de um objetivo comum, “isso equivale dizer que são construções mentais que dão

significado ao mundo e que permitem a identificação, o reconhecimento, a classificação e a

atribuição de valor a realidade.” (PESAVENTO, 2003, p.209).

Em alguns casos, a permanência é acompanhada pela expectativa em partir,

principalmente nas crianças e adolescentes que, diferente dos pais, não vislumbram a

perspectiva da conquista, mas também ocorre quando, na relação marital, uma das partes

tem que, obrigatoriamente, acompanhar a outra. Claudinéia que vivia na expectativa de

voltar para casa, acabou por viver por dez anos sob o barraco:

Aí quando foi um dia, não sei o que deu lá, que meu pai, minha mãe resolveu quere ir embora: Vamo embora, vamo embora... Aí eu falei: ah, agora beleza, né? Sempre pensando em volta, i embora. Não tinha acostumado, eu olhava aquela lona assim... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Se para Claudinéia o espaço do acampamento parecia estranho quando o desejo

de ir embora estava relacionado a busca pela conservação da vida social que conhecia, para

seus filhos, com seis e três anos de idade, que nasceram no acampamento, não há outro

espaço de moradia, é o lugar que conhecem, onde aprenderam a viver e onde se sentem em

casa: Os meus já até acostumo. Nasceu aqui. Quando saí pra cidade, às vezes fica uns dia fora, eles já tica tudo chamando pra vim pro barraco, já fica tudo doido querendo volta pro barraco. Num fica. Esses tempo mesmo eu fui para um curso lá em Nova Alvorada do Sul, pra se professora do EJA. Aí levei aquele daí, í..., foi os 4 dia chamando pra vim embora. Daí chega, a hora que eles vê o barraco... mais fica todo feliz. Na cidade acho que se i pra lá que eles não acostuma não, só um pouquinho eles já qué voltá (Claudinéia, Entrevista, 14.05.2005).

É muito comum, ainda, encontrar relatos em que as pessoas tiveram que se

desfazer dos poucos bens materiais que possuíam para se manterem acampados. Durante o

processo de lutas, muitos vendem casa, gado, automóvel, e houve relatos, também, de

imóvel que foi queimado, depreciado, saqueado durante o período em seus proprietários

estiveram morando nos acampamentos, como se pode inferir pela fala dos acampados:

A gente vendeu casa na cidade pra vim, em poco tempo vendeu tudo. Porque num é fácil, né? ficá assim. Eu que tinha a mãe que trabalhava, daí ela deu apoio

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né, por que a pessoa ficá ali por conta num agüenta né? (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).

Oia, eu tinha uma casinha em Mundo Novo e eu pegava o aluguel na minha casinha, né, recebia cinqüenta de aluguel, até que por fim queimaram a minha casa... minha casa agora é aqui! Num tenho outra casa. Ficou só o terreno e a única coisa que eu fiquei foi as coisas que eu truxe pro acampamento... Aí nós vendeu né, porque... esse tempo todo debaixo da lona tinha que come né, e meu marido é muito doente tamém né. Mas Deus tem em dobro pra mi dá, se Deus quiser! (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Nós conseguimo essa terra aqui por luta nossa, Né? Inclusive, quando eu vim pra cá, eu tava com seis criação. Tive que vende. Quando eu entrei aqui [no lote] não tinha mais nenhuma, tinha comido tudo aqui mesmo, pra consegui essa terrinha aqui (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

São três relatos que apresentam histórias comuns entre os acampados. Mesmo

resguardando toda simplicidade possível, sobrevivendo com o essencial, esses sujeitos

precisam se alimentar, comprar uma peça de roupa e remédios eventualmente, necessitam

deslocarem-se entre o acampamento e os núcleos urbanos, atividades que demandam uma

reserva econômica de que eles não dispõem. Como a oferta de trabalho diário é esporádica

e nem sempre suficiente, a alternativa é se desfazer das poucas coisas que possuem. Por

outro lado, essas ações revelam as prioridades definidas por esses sujeitos. Na luta por um

pedaço de chão, e diante da expectativa de possuírem terra, trabalho e moradia, eles

assumem os riscos, se desfazem do pouco que conseguiram com uma vida toda de trabalho

para se manter na luta e defender um sonho.

O mesmo não acontece com relação ao trabalho, quando se tem um emprego

que ofere um mínimo de condição de vida, ele é mantido e o membro que detém o

emprego contribui com a manutenção financeira da família acampada. O mais comum, no

entanto, entre os sujeitos que se mudam para um acampamento, é não ter um emprego fixo,

são em sua maioria diaristas, autônomos, com pouca ou nenhuma escolaridade.

“Minha casa agora é aqui!” Dona Edinéia, após quase dez anos sob o barraco

de lonas à margem das rodovias, abdicou da vida que levava até então, as velhas relações

de amizades foram desfeitas, os contatos com parentes se tornaram raros e os velhos

amigos se perderam no tempo e no espaço. Ao mesmo tempo em que sua história nos

remete a um exemplo de perseverança, revela também de uma vida marcada pelo

improviso, por uma espera incerta e pela evidência de que ela e sua família teceram um

caminho de difícil retorno em busca de um sonho que pode não chegar a se concretizar.

Nesse longo período, dona Edinéia casou as duas filhas, teve seus netos e o que era para

ser transitório, tornou-se uma nova forma de organizar a vida e as relações sociais.

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É prática, também, nos acampamentos somente a presença de um dos membros

da família sob o barraco, quase sempre a dos homens, maridos ou filhos mais velhos,

enquanto as esposas e as crianças permanecem em suas casas. A presença desses sujeitos

no acampamento, quando a decisão não é de se mudar para o barraco, é mais esporádica; é

possível, em muitas ocasiões, passar a semana no trabalho e visitar o barraco nos finais de

semana, ou ainda passar a semana nos barracos e voltar finais de semana para casa, com

casos até de visita mensal ao acampamento, ou pagar para alguém cuidar do barraco. Não

há uma regra, mas esses casos são mais comuns nos acampamentos da FETAGRI e da

CUT, onde a presença nos barracos é majoritariamente masculina e grande parte concilia a

luta pela terra com um trabalho e um lar que requer sua presença.

Dona Lurdes, que há anos acompanha a saga do marido entre o acampamento e

o pequeno lar que mantêm em um projeto habitacional na cidade de Eldorado, diz que

nunca acompanhou o marido para morar no barraco, apesar de visitá-lo. Ressentida,

reclama da ausência do marido em casa para se dedicar ao sonho da terra:

Eu não fui junto, eu nunca ia junto. Luiz foi e nunca saiu desse acampamento, era lá direto. Ele vinha aqui no sábado e já voltava no domingo de novo, quando vinha na sexta-fera, já voltava no sábado, criava galinha lá, um mundarel de galinha que ele tinha lá. Diz ele que nunca desistia (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Além da convicção em nunca desistir, seu Luiz construiu um novo espaço de

referência, a criação de galinhas, assim como o barraco e a própria luta precisava de seus

cuidados e de sua atenção. Mesmo mantendo a casa e a esposa na cidade, o barraco era

mais que um meio de chegar à terra, era uma referência, um espaço a mais de vida e de

moradia.

No descrédito em relação a uma luta que perdura por oito anos, dona Lurdes

continua a narrar o quanto insistiu para que o marido desistisse e voltasse para casa:

Quanta vezes eu saí daqui pra i pra lá busca ele, né? Falava: “Luiz! Vamo embora pra casa, não da nada isso aqui não”. Aí ele: não, que não ia desistir, não ia desisti. E ta lá há oito ano. Eu por mim ele já tinha desistido disso já, ainda mais agora que não ta vindo mercadoria, não ta vindo cesta, ta vindo nada lá (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

O fato de não estar vivendo o cotidiano do acampamento não significa que

dona Lurdes não esteja participando da luta e que sua vida não tenha sido transformada.

Apesar de optar pela vida na casa da cidade, dona Lurdes acredita na conquista da terra e

torce por ela. A participação daqueles que não estão presentes diretamente remete-me aos

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estudos de Comerford, que diz que nem sempre é preciso existir um conflito concreto para

estar lutando (1999).

Quando os sujeitos aderem aos acampamentos, inicia-se um processo de

rupturas de valores e de relacionamentos em sua vida, mas também de continuidades e

permanências. Sem resistências o processo de desenraizamento poderá se concretizar com

o assentamento. Essa resistência é evidenciada na história de um grupo de 34 famílias, do

acampamento Oito de Março, que estavam, no ato da pesquisa, acampadas por dez anos, e

que rejeitaram o assentamento em áreas distantes, com o propósito de serem assentados na

região onde sempre viveram e onde moram os familiares, essa recusa se deu devido a

insistência desse grupo pela manutenção de suas raízes. O senhor Dércio conta porque o

grupo não deu a “mão à palmatória”, e aceitou o assentamento em lugares distantes:

Aí em Ponta Porã saiu, mais a gente não dá a mão pra palmatória né? Que nem, a fazenda Itamarati nois num quizemo í pra lá, no causo que nem eu, eu sô daqui da região mais vim do Paraná, meu pai morreu em 2002, tava com 45 ano que mora em Alto Paraíso (morava), minha mãe ta com 42. Minha mãe é viva né. Então a gente sempre quiz ficá aqui na região né, de Caarapó pra cá. Tinha uns que tinha 20 anos de Eldourado e outros de Mundo Novo. Portanto não adianta fazer alguma coisa de má vontade né? Se nos tivesse ido pra lá, o que podia acontece? Às vezes fica quatro ou cinco anos lá e não se adapta, aí volta pra cá. Aí acaba desfazendo da propriedade e desmoralizano o Movimento Sem Terra (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).

Embora esses sujeitos vivam um momento de rupturas, isso não ocorre, em

muitos casos, sem certa resistência; há a tentativa de manutenção da vida social e de

sustentação das raízes, embora nem sempre isso seja possível. No acampamento Laguna

Peru, após oito anos de existência do acampamento, alguma famílias aceitaram a

transferência para um acampamento de outro município, já que não havia mais

possibilidade de assentamento na área pleiteada. Existe também a questão dos brasiguaios,

para quem, geralmente, não há um referencial, um lugar para onde se queira voltar.

Todos os entrevistados, ao serem indagados se já haviam pensado em desistir,

foram taxativos ao dizer que “sim”. Contudo, a não desistência estava relacionada a

esperança, mas também a questões de ordem prática, como o fato de não terem para onde

retornar. Para muitos é um caminho sem volta, a desistência não é um retorno, mas um

recomeçar de novo.

A persistência parece um misto de esperança e desapontamento. Só se mantém

acampado quem ainda espera, ao mesmo tempo em que aquela esperança é nutrida por um

sentimento de desapontamento; por não vislumbrar alternativa de vida, de trabalho e de

moradia. A saída “é tentar lá”, como fala o senhor Tadeu:

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Até hoje eu sinto, até hoje, não porque hoje ta mais organizado, mais é... bastante gente desistiu. Você só tenta lá porque você não tem outra coisa pra faze, digo em outra coisa pra fazê você não tem uma profissão, num tem nada, né? Então tem que tenta porque se você num pode compra terra, se você for faze outra coisa, cê não sabe fazer nada, né? Então tem que tenta lá, até... não sei até quando. Mas tem que tenta, fica lá até sai essa tal terra né? (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

A expressão usada pelo entrevistado, de que “barraco por barraco fica aqui”,

para justificar a sua permanência, parece ser bastante legítima naquele espaço. A vida fora

dos conflitos do acampamento pode não trazer um cotidiano menos árduo; a condição

social desses sujeitos contribui para a permanência. Ir embora para onde? É uma pergunta

comum que eles mesmos se fazem. Por isso, vejo que deixar o acampamento, em muitos

casos, não é ir embora, mas recomeçar:

Então nós ficamo 4 ano ali sem área, sem destino pra nada, pelo menos no momento é isso aí, não sabe pra onde vai aonde num vai. Então... você fica naquela mas você vai pra onde? Não tem aonde ir. Cê pensa: eu tenho que ir embora mas vô embora pra onde? Embora por ir embora, barraco por barraco fica aqui (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Num tinha. Não tinha porque eu tinha vindo do Paraguai e... e eu trabalhava lá, a gente veio pra cá, eu tava sem serviço, né? Morando em casa alugada. Então a nossa casa era um barraco de beira de estrada, se não desse nada certo eu não sei o que ia acontece [...] Aí você não sabe se você continua ou se você desiste, por que é uma luta que você não tem... não tem uma certeza que você vai consegui, né? Então, chega um ponto que a pessoa cansa, é difícil... (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).

Muitos, muitos desistiu e muitos consguiu, né... já foro assentado. E o que levou essas pessoas a desistirem? Há, eu acho que cansavam do sofrimento aqui né, porque se a gente for olhá o sofrimento da gente aqui, a gente num fica não... Só que os que desistiu ta pió do que eu aqui... (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

São três histórias de vida distintas, cada uma de um acampamento analisado,

mas que refletem uma crise de rupturas sociais. A incerteza, narrada pelo senhor Antônio,

acompanha todo o processo de luta e acaba por tomar uma conotação de maior insegurança

quando a luta por um pedaço de chão, por meio do acampamento, torna-se a única saída

possível. Ao analisar o acampamento América Rodrigues da Silva, Farias evidencia a

difícil caminhada desses sujeitos na busca pela construção de outra história:

Muitas famílias deixaram casas, empregos, carregando pertences e filhos, sem rumo e sem destino. Mesmo vivendo uma situação de pobreza, opressão, almejando uma melhoria significativa de vida por meio da posse da terra, não é possível negar que deixaram seu canto, seus costumes, seus modos de vida e a casa com sua história a fim viverem outra história, uma história a ser construída (1997, p. 106)

O acampamento é um espaço de conflito, não só pela perspectiva da luta, como

também por agrupar em um espaço sujeitos tão distintos, de hábitos culturais

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diferenciados, principalmente se pensarmos na situação de fronteira, como é o caso do sul

de Mato Grosso do Sul, e também na perspectiva de individualidade de cada família.

Mas se existe a desconstrução de determinados modos de vida, de concepções

morais e aspectos culturais, existe também a construção de novos valores e um processo de

adaptação. E isso pode ser inferido pela permanência desses sujeitos em até dez anos nesse

processo. Segundo Martins, o acampamento exerce uma função de “ralentação da

transição”, das mudanças que ocorre na vida desse sujeito (2003, p. 46).

Aspectos como religiosidade e outras formas de manifestações culturais são

dificilmente suprimidos, pelo contrário, diante de tantas carências, a fé religiosa se

revigora e ganha adeptos. Cultos, missas, novenas, assim como manifestações de maior

magnitude, dentro da concepção religiosa, como batizado e casamento, são também

elementos vivenciados nesse espaço.

Portanto, podemos dizer que as diversas manifestações festivas possuem certa unidade e recriam uma rede de sociabilidade sob novas formas de expressão, procurando preencher as ausências de antigas referências, romper o estado de anomia que caracteriza o ser acampado, estar sem família e sem território definido. Sem tais mecanismos o acampamento se “desfaz no ar” (FARIAS, 2002, p. 132). [Aspas no original].

Esses elementos, associados às relações cotidianas de vizinhança e amizade,

que engendra as práticas da luta, forjam um sentimento de pertencimento grupal. A

identidade de sem-terra passa a ser constituída pela união, pela luta no enfrentamento por

interesses comuns, mas são também processos mediados e mesmo direcionados pelos

grupos organizadores.

Fazer parte desses grupos vai além de aspectos políticos, pois está ligado

também a sentimentos de representações culturais. As identidades podem, nesse caminho,

ser vistas como uma celebração móvel, ou seja, são constantemente transformadas de

acordo com as relações culturais que os rodeiam. A identidade unificada perde sua razão

de ser quando se reconhece que é formada histórica e culturalmente (HALL, 2001, p.13).

Segundo Chartier, as diferenças culturais não devem ser vistas como divisões estáticas e

imóveis, mas como efeito de processos dinâmicos (2002, p. 76).

Embora esses sujeitos carreguem um conservadorismo que está aquém do

imaginário mobilizador defendido pelos movimentos, em especial o MST, muitos desses

sujeitos passam por um processo de rompimento e/ou de transformação de regras de

comportamentos sociais. Tanto é assim que, implicitamente, os acampados buscam

legitimar atos que, para eles próprios, outrora seriam ilegítimos, prova disso é a

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substituição dos termos saques por recuperações, invasão por ocupação, a fome como justo

precedente aos abates de animais e pedágios nas estradas. Nesse sentido, vê-se que as

circunstâncias criam as necessidades e as legitimam.

Ao comentar as piores dificuldades enfrentadas no acampamento, Erondi

recorda o quanto era difícil ouvir as ofensas da sociedade em relação aos acampados:

A maior dificuldade era o alimento, né? E a humilhação. A gente vinha no ônibus, e escutava as pessoa falá dentro do ônibus assim... e a gente num pudia falá nada, né? Mais a maioria do pessoal hoje ta acampado lá na saída de Eldorado, as pessoa falava mal da gente mesmo. Depois que a terra saiu aqui, aí foi muita gente pra lá (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).

Embora as representações sociais desqualificadoras, em relação aos

acampados, gerem um desconforto imediato, podendo ser uma marca para a vida toda, há

por parte dos acampados um repúdio a esse desmerecimento. As desqualificações são

combatidas no imaginário dos acampados dentro da perspectiva de uma situação

transitória, isso é refletido na fala de Erondi, ao dizer que quando se tornaram assentados,

muitos dos que os humilhavam também se sujeitaram às mesmas condições.

Em relação às desqualificações sofridas por acampados urbanos em São Paulo,

Souza faz uma análise que se torna oportuna também aos sem-terras:

Os ocupantes, ao se defrontarem com essas situações do cotidiano, recusaram a denominação de invasores. Foram elaborando reflexões e falas, que resultaram na composição e um universo de representações, para legitimar a sua situação de ocupantes, superando a desqualificação que sofriam (1995, p. 108).

A área de estudo em questão, o extremo sul de Mato Grosso do Sul, composta

por pequenas cidades com considerável população rural, é uma região onde os

acampamentos fazem parte do cotidiano social. É comum vê-los ao longo das rodovias e

parte da população conhece parentes e amigos acampados, ou já assentados, o que não

impede que se perpetue no imaginário popular a vinculação desses sujeitos a certos

segmentos da sociedade, como vagabundos, aproveitadores, “desabusados”, para usar uma

expressão de Paulo Freire. Se o homem do campo já carrega o estigma do atraso, do

jocoso, do retardatário e do preguiçoso no imaginário popular, os sem-terras carregam

ainda o peso de andarem na contramão de uma sociedade capitalista, de questionarem as

práticas do agro-negócio e do absenteísmo.

Não se pode negar também que esses sujeitos fazem parte de classes sociais

que estavam à margem de discussões políticas. A inserção aos movimentos, em muitos

casos, engendra saberes e práticas nunca antes pensadas, não só em relação ao suprimento

de determinados valores como algo pejorativo, mas também na valoração desse ser

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enquanto ser social capaz de se organizar, impor-se e lutar por uma vida mais digna. É a

expressão da autonomia, da imposição em detrimento ao comodismo e ao paternalismo.

Em alguns casos esse autonomia política pode não chegar a ser apreendida, pode durar

apenas o tempo do acampamento, em outros, (em número reduzido, diga-se) ela é agregada

à vida toda, em ações de militância, em coordenação de grupos de moradores, de

cooperativas e associações, como também na inserção à carreira política.

O período transitório de acampamento, na maioria das vezes, dura mais que o

esperado. É um momento de muitas carências, mas também de lutas, de resistências, de

sonhos e de esperanças. A união em meio a um ambiente tão conflituoso é algo

indispensável à consolidação da luta. Nos grupos do MST, em especial, a mística31 é algo

que lhes encoraja e lhes dá força. Trata-se de um ritual simbólico presente em todas as

reuniões, festas, assembléias e mesmo no dia-a-dia dos acampados. Expresso por cantos,

símbolos, teatros, encenações, fotos e discursos inflamados, são magnetizantes e ainda

melhor apreendidos diante de momentos de tantas carências. São embasados em fatores

sociais, éticos, morais e buscam ressaltar mártires da luta no âmbito local e regional e

também os nacional e mundialmente conhecidos.

As práticas culturais desenvolvidas pelo MST para a formação de um novo

sujeito social buscam criar conteúdos com os quais aqueles sujeitos se identifiquem e se

sintam pertencentes à aquele grupo. Oliveira argumenta que todo processo de

transformação social envolve a constituição de uma memória coletiva e, para isso, trava-se

uma grande batalha simbólica em nome daqueles que devem ser lembrados, daqueles que

devem ser considerados extraordinários e os que devem ser esquecidos (2003, p.68). No

processo de luta pela terra não é diferente, na busca pela composição de um imaginário

mobilizador, seus heróis são construídos ressaltando em seu meio acontecimentos e

personagens que lhe são mais significativos.

São construções que partem de algo muito próximo de suas realidades, de

acontecimentos do dia-a-dia. São figuras consagradas por fatos que marcam a luta, pessoas

conhecidas, o que atribui mais veracidade, paixão e encantamento a essas construções.

Alguns nomes são comuns a todos os grupos, independente da organização

mediadora da luta, entre eles podemos destacar Dorcelina Folador, que fora militante do

MST, assassinada em 1999 na varanda de sua casa, período em que cumpria mandato

31 O ritual simbólico, praticado nos grupos de acampados do MST, conhecido como a Mística da Terra, foi assunto tratado por BORGES, 2004, principalmente no capítulo VI: Mística da Terra: Sonhos de Liberdade; e por FARIAS, 2002, capítulo II; entre outros.

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como prefeita da cidade de Mundo Novo – MS; Chico Mendes, líder sindicalista,

seringueiro desde criança que trabalhava como defensor dos trabalhadores rurais no estado

do Pará, assassinado em 1988 também na porta de sua residência; Índio Galdino, que teve

o corpo queimado em 1997 enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasília; as 19

vítimas do Eldorado dos Carajás, assim como o ícone internacional Che Guevara e outros

homens fortes e líderes revolucionários, que são perpetuados na memória desses

trabalhadores como aqueles que morreram em nome de um ideal de vida, contrapondo-se

aos poderes elitistas e em busca de uma sociedade mais igualitária.

Entre os grupos do MST se destacam também as vítimas da luta em âmbito

regional, geralmente lideranças que morreram na luta e pela luta, como, por exemplo,

Valdecir Padilha, Antônio Tavares, Ronilso da Silva, Airton Vieira e Marcelino Pereira da

Silva.

Os nomes atribuídos aos acampamentos, sobretudo aos do MST, são

carregados de simbolismos. Entre os nomes de militantes mortos citados, que aparecem

não raramente nomeando acampamentos, também se destacam datas comemorativas e

significativas para a luta. Exemplo, disso foi a escolha do dia da mulher (08.03) para

ocuparem a fazenda Santo Antônio com a maior ocupação de terras registrada no país até

então. Os outros dois acampamentos mantiveram o nome da fazenda ocupada (Laguna

Perú e Mambaré), somente após o assentamento das famílias é que o nome Mambaré foi

substituído por Pedro Ramalho, em homenagem a um tradicional sindicalista da cidade de

Mundo Novo.

Segundo Oliveira:

“As batalhas simbólicas para a construção de heróis envolvem tanto a memória histórica quanto apelo a lendas e mitos. A memória lança mão de uma narrativa tradicional sobre o passado, explica a origem, os feitos e as glórias dos heróis” (OLIVEIRA, 2003, p. 68).

Aqueles que perdem a vida lutando pelo direito à terra são sempre lembrados e

ressaltados, levando a uma mitificação desses sujeitos, afinal, o fato de serem sem-terra, ou

mesmo defensores da causa como tais, delega um sentimento de indignação e revolta. A

batalha na construção desse imaginário envolve, além dos mitos, dos heróis e dos mártires,

artifícios como os discursos, as imagens e os símbolos, construindo uma força que busca

superar anseios, suprir carências, encorajar e unificar os grupos.

É por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça, mas também

o coração, ou seja, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. “É nele que as

sociedades definem suas identidades e objetivos, definem seus inimigos, organizam seu

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passado, presente e futuro”. Esses são processos extremamente importantes em momentos

de mudanças sociais e de redefinição de identidades (CARVALHO, 2000, p. 10-11).

No trabalho do MST existe uma maior organização em torno dos aspectos

simbólicos, discursivos e formadores de opinião usados em suas relações com os

trabalhadores sem-terra. No entanto, um grande paradoxo se apresenta nessa relação. Vejo

que a massa32 busca, anseia e luta por um pedaço de terra que seja seu, por moradia e por

trabalho, enquanto os anseios das lideranças estão relacionados ao ideal de uma sociedade

transformadora, o que nem sempre é apreendido por esses sujeitos.

Ao estudar o Acampamento América Rodrigues da Silva, na cidade de Três

Lagoas – MS, Farias faz considerações às formas com que essa relação é tangida:

Entre os discursos presentes na mediação da luta, encontramos várias marcas, vários sentidos e formação discursivas, que vão se compondo, afirmando-se durante os embates e confrontos, ora desnudando a realidade e a própria dominação, ora mascarando e fortalecendo a ideologia dominante (FARIAS, 1997, p. 32).

A crença na legitimidade das palavras, e em quem as pronuncia, dá-se em vista

do sentido que exprimem e da receptividade dos sujeitos que as incorporam (BORGES,

2004, p.133). As mensagens expressas não são apreendidas de forma natural, não há

denotado nas palavras um peso por si só, mas seu sentido depende de quem as ouve e de

quem as pronunciam.

Assim, entendo que a composição da identidade de sem-terra, que acontece no

decorrer da luta, é mediada, induzida e construída, fazendo-se necessário onde tantas

forças os reprimem. O sem-terra não nasce pronto, é formado a partir de uma condição

social de marginalidade, ou tendente à marginalização e está relacionado a um sentimento

de pertencimento. O grau de profundidade com que esses sujeitos tornam-se verdadeiros

defensores da causa é bastante variável. Aqueles que apreendem de forma mais

contundente, tornam-se, não raro, futuras lideranças. As práticas envoltas na agregação em

torno da luta envolvem as relações de forças entre as representações impostas e as relações

que esses sujeitos tem de si mesmos, gerando um processo pelo qual se identificam como

sem-terra.

Nesse novo espaço muitos rompimentos são verificados, quebra de laços de

amizade, parentesco, vizinhança, valores, concepções, referências de uma vida; muitos

32 O termo massa utilizado pelo MST, com inspiração nos escritos marximianos de massa revolucionária, é discutível e criticado. Segundo Chauí (2002) essa categoria é produto de uma divisão entre elite “culta” e massa “inculta”, faz referência a algo sem forma, sem rosto, sem identidade, como se fossem um conjunto homogêneo, de sujeitos indiferenciados (Cf. FARIAS, 2002, p. 100).

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outros, no entanto, são engendrados. Constitui-se ao longo da luta uma identificação, uma

identidade em transição, que poderá ser desfeita após o assentamento. Em meio a tantas

ambigüidades e paradoxos, o que se pode inferir é que esses sujeitos vivenciam no

espaço/tempo do acampamento aquilo que Chauí chamou de conformismo e resistência,

são sujeitos que, na luta, “descobrem a diferença entre o que é e o que poderia ser e que

por isso mesmo transgridem a ordem estabelecida, mas não chegam a constituir uma outra

existência social” (1994, p. 1780) [grifos no original].

Para aquele sujeito que se muda com a família, seus poucos pertences e o

último fio de esperança para o acampamento, esse espaço se torna, em muitos casos, um

processo sem volta; a decisão de acampar está relacionada a uma vida de dificuldades, de

faltas e de conflitos. Muitas famílias deixam para trás uma vida de sociabilidade, mesmo

que seja apenas uma casa alugada e um trabalho em diárias, mas é a forma de

sobrevivência que foi negado pelas famílias ao decidirem partir para o acampamento,

reavaliar tal decisão, deixar o acampamento e reconstituir a vida anterior não é um

processo fácil, e isso faz com que muitas famílias continuem a luta por um período tão

longo, de oito e até dez anos, como em muitos casos analisados.

3.3 O sonho da terra prometida nas representações dos sem-terras

É... minha fia, é o sonho de ter um pedacinho de terra, né? Um lote pra gente trabalha e te umas criaçãozinha em cima, né? Não tenho vontade de sair daqui em quando eu não ganhar terra, só se for pro cemitério mesmo, senão acho que eu não saio não. (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005)

Sonho. Talvez essa seja a palavra mais significativa para compreender as razões

que movem esses sujeitos a traçarem caminho aos barracos de lona às margens das

estradas. Sonho não só de chegar à terra, mas sonho de conquistar, ou recuperar, a

dignidade; sonho de se ver e ser visto como gente; sonho de abandonar a vida errante;

sonho de ter um referencial, um porto seguro; sonho de que suas necessidades básicas:

casa, comida, saúde, educação, sejam um dia sanadas; sonho de terem direito a sonhar e de

construir para si e para os filhos um projeto de vida.

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Todas essas expectativas de vida não sanadas são no espaço/tempo do

acampamento mediadas pela perspectiva da reforma agrária, pela conquista de um lote de

terras. Assim é possível compreender e dimensionar a frustração na chegada aos lotes sem

a infra-instrutora necessária.

Esses sujeitos têm em comuns histórias de vidas marcadas pela expropriação,

pela exploração, pela exclusão, pela violência, ainda que uma violência simbólica, mas

talvez a mais perversa e silenciosa, a que humilha, a que maltrata, a que destrata e a que

também fere. Sujeitos vitimados por processos sociais excludentes, que desenraizados da

terra também não puderam encontrar seu lugar no meio urbano, lugar em que as condições

objetivas do sistema capitalista são ainda mais excludentes e seletivas. A ambigüidade

desses sujeitos entre o campo e a cidade produz o que Tutatti denominou de uma

indefinição de identidade:

Ademais, a lembrança do modo de vida no campo não se configura como uma nostalgia positiva, pois muitos dos acampados a vivenciaram já sob o julgo do dono da terra, se não apenas a conhecessem pelos relatos de pais e avos. A cidade, por sua vez, não os integrou em sua classe média assalariada; ao contrário, lançou-os aos setores mais baixos e desprezados do processo produtivo e/ou à economia informal. Ainda assim, incutiu em seu imaginário o desejo de obter o status de cidadão-consumidor, condição à qual o estabelecimento no meio rural poderia impedi-los de atingir [...] (2005, p. 75).

A grande maioria dos acampados já teve experiência de vida nas cidades e

muitos em trabalhos tipicamente urbanos; outros, em número considerável, moravam nas

cidades, mas dirigiam-se ao campo para trabalhos diários de bóia-fria; embora quase todos

tenham origem rural, mesmo que de segunda geração. No entanto, esses sujeitos já

incutiram, ao logo desse processo de hibridação cultural33, um imaginário capitalista e

valores tipicamente urbanos que serão contraditoriamente contraposto com a tentativa de

retorno a terra, ação essa totalmente compreensível se considerarmos a situação de

marginalização vivenciada por esses sujeitos.

Diante das dificuldades de uma inclusão social digna, esses trabalhadores

enfrentaram todo tipo de problemas: fome, frio, desespero, desemprego, mortes, dramas

familiares e diante de um quase estado de anomia, a terra lhes é apresentada ou

representada como a única saída possível. Digo que a terra foi apresentada, tendo em vista

que muitos trabalhadores passaram a idealizar uma vida na terra a partir do momento em

que ela lhe foi oferecida como uma saída à situação de miséria por representantes de

órgãos mediadores da luta. Outros, no entanto, guardam consigo a representação nostálgica

33 Segundo Canclini, hibridações são “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separada, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (2003, p. XIX).

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desse espaço como produto de uma tradição cultural, vendo-a como único lugar possível de

felicidade, na lembrança da vida na terra, na esperança de um dia poder ter um “pedaço de

chão com umas criaçãozinha”, na busca por um lugar onde ele possa “morrer tranqüilo”.

Segundo o conceito de hibridação proposto por Canclini, a formação cultural

do homem do campo pode ser vista como uma “estrutura discreta”, uma vez que não

possuem uma cultura fechada, pura, estanque, ou seja, sem nenhuma hibridação. Esse

processo começa mesmo quando esses sujeitos ainda residem no meio rural, já que, ainda

nesse meio, as relações com o urbano são tecidas.

Na relação direta com as famílias acampadas, vê-se o quanto aspectos culturais

tipicamente urbanos e rurais misturam-se, hibridam-se, complementam-se. Não

compreendo os sujeitos analisados como grupos homogêneos, mas falo das características

que mais se apresentam, mais aparentes e mais latentes entre eles. Sua formação cultural,

ou tudo aquilo que esses homens e mulheres viveram ao longo de suas vidas, é o que

determina a representatividade que a terra tem para cada um deles.

O repúdio ao patrão e a vontade de controle de seu tempo34, o sonho de

conseguir um pedaço de terra, de poder trabalhar para si e não para os outros, a angústia de

viver na expectativa de perder o emprego, de não conseguir área de trabalho, de não poder

arcar com os custos de uma casa, com aluguel, água e energia são representações comuns

nas falas dos trabalhadores rurais sem-terra, como se pode inferir nos relatos a seguir:

Eu trabalhava em terra dos outros, eu e meu esposo, e eu sonhava, eu falava pra ele assim: “eu tenho um sonho tão grande na minha vida de um dia ter um pedaçinho de terra pra ser nosso. Pra nós viver naquela terra, pra nós criar os filho, os neto, tudo dentro daquela terra”. E eu sonhava com isso. Eu falava pra ele: “um dia será que a gente vai alcançar isso? mas não vai alcançar, por que quem trabalha de empregado pros outros nunca vai conseguir” (TERESINHA, Entrevista, 21.04.2006).

[...] eu sempre lutei pra ter um pedaço de um pedaço de terra. Meu pai tinha, ele falou: “ô isso aqui eu consegui com suor”. E eu falei: “mas eu to lutando, o senhor vê que eu to lutando, que eu sou um cara trabalhador e não consigo. Não tem jeito”. Na época deles talvez teria sido mais fácil de ele te conseguido, né? E como ele tinha... Ele conseguiu também assim... que a gente era em oito irmãos, né? E todos trabalhavam, aí todos deram uma mão. Agora que nem eu que sou sozinho? Não tem jeito. (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

É tudo no sítio. Trabalhava assim de arrendatário, né? E daí depois eu casei, aí eu morei um tempo na cidade, outro tempo na roça, né? [...] já trabalhou muito na roça. Meu Deus! É roceiro mesmo. Toda vida, igual ele mesmo fala, ele toda vida trabalhou em terra dos outros, né? Meu pai também toda vida em terra dos outros (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

34 O repúdio ao patrão, assim como a ânsia pelo controle de seu próprio tempo, são também evidencias presentes nos trabalhadores sem-terra analisados nos trabalhos de FARIAS, 2002 e MENEGATI, 2003.

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Moradia, trabalho e família constituem a tríade que guia o sonho desses

sujeitos. A terra prometida, expressão de forte cunho religioso, é antes de tudo a

representação de lugar de sossego, de segurança, de lugar para criar os filhos. A terra é

muitas vezes representada como possibilidade de futuro, mas também revela referência

nostálgica ao passado, ao sítio dos pais, que por algum motivo, desfizeram-se da posse, a

vontade dos pais de possuírem um pedaço de terra, quando passaram uma vida toda

trabalhando em terras de outrem. E esse futuro está muito ligado a expectativa de uma vida

melhor para os filhos. Nesse sentido, dona Eleonora conta porque se mantém a sete anos

acampada na luta por um pedaço de chão:

Mais não desistimo, tanto por causa que a gente pensa na criançada, senão por mim eu já tinha desistido. Tem dia que aborrece embaixo de dessas lona, aí, não dá vontade de ficar assim. Mais o que que é eu vô fazer? (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

Um ex-acampado, mesmo tendo enfrentado dificuldades recentemente em seu

lote com a questão da aftosa e a matança do gado, diz saber que pode ficar tranqüilo, por

que ali ele está “instalado”. As experiências de trabalho como empregado, incluindo o

período em que viveu no Paraguai, sempre foram marcadas pela instabilidade, pela

insegurança, sentimento que não vislumbra mais em seu lote de terras. A terra é vista como

aquela que gera frutos e garante a sustentabilidade da família, mesmo em tempos difíceis:

Porque era uma oportunidade de ter um lugar da gente mesmo né? E as coisa ta difícil, esses dia o negócio da aftosa, aqui a gente sabe que tem lugar pra morar né? Sabe que tem uma segurança. Trabalha prus outro, trabalha de empregado ou no hotel lá no Paraguai, a gente num tem segurança né? Porque uma hora a gente tem outra hora a gente num tem, então aqui a gente esta instalado! (ERONDI, Entrevista, 11.10.2006).

A fala de Erondi expressa a expectativa dos sujeitos acampados: segurança,

estabilidade, um referencial, trabalho, casa... Segundo Martins, “a luta não é primariamente

pela terra e sim luta contra a desagregação das relações sociais tradicionais, que resulta na

incerteza do desenraizamento, na perda de um lugar de referência” (2003-b, p. 23).

Vendo as representações como fruto de tradições culturais, e reconhecendo-as

como processos dialéticos, que se fazem e refazem nas relações com os sujeitos e com o

meio, não se pode negar que entre os sem-terras, existem representações que se distinguem

de um imaginário com laços afetivos voltados para terra. O importante, no entanto, é poder

inferir que quando esses sujeitos decidem partir para a luta pela terra, eles estão tentando

(res) construir para si outra história, e é por isso e para isso que lutam, estão, na prática

“fazendo-se” a partir da experiência vivida e assim lutando pelo direito de uma vida mais

digna e um mundo possível.

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CAPÍTULO IV

VIDA PROVISÓRIA, EXPERIÊNCIA E COTIDIANO NOS ACAMPAMENTOS

A experiência não espera discretamente, fora de seus gabinetes, o momento em que o discurso da demonstração convocará a sua presença. A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerra de trincheira, desemprego, inflação, genocídio [...] (THOMPSON, 1981, p. 17).

Talvez não seja inútil sublinhar a importância do domínio desta história “irracional”, ou desta “não-história”, como o diz ainda A. Dupront. O que interessa ao historiador do cotidiano é o Invisível... Não tão invisível assim. (CERTEAU, 1996, p. 31).

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4.1 Ocupação de terras: o preâmbulo em busca de um novo lugar

[...] por mais que os sem-terra tenham constituído experiências diversas, a espacialização de uma ocupação nunca é um fato completamente conhecido, tampouco desconhecido (FERNANDES, 2000, p. 292).

A gente sabia que ia pra uma ocupação de fazenda, só que num sabia onde né? Mais eu topava tudo, queria vim, porque eu queria ganha terra... tava disposta a tentar o que viesse (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

A primeira ocupação da fazenda Santo Antônio Agropastoril Ltda, localizada

no município de Itaquiraí, ocorreu na manhã do dia oito de março de 1997, dela

participaram cerca de 1300 famílias. Inúmeros caminhões e ônibus transportando

trabalhadores se destinaram a MS-487 naquela manhã. Apesar do sigilo em torno das

informações dessa ocupação, a polícia estava nas estradas e interceptaram alguns veículos,

no entanto muitos já haviam chegado à área e a ação policial foi voltada mais a uma

intimidação, do que realmente a uma desarticulação da ocupação.

Lúcio, que foi um dos organizadores dessa ocupação, lembra que a polícia já

tinha conhecimento da ação do Movimento, já que os trabalhos de base nos últimos meses

haviam sido intensos e envolvido muitas pessoas, mas a ação policial ficou limitada, tendo

em vista que apenas os organizadores (cerca de cinco pessoas) sabiam exatamente a

fazenda que seria ocupada:

Teve algum bloqueio nos municípios, teve uma operação da DOF pra impedi a ocupação, como já vinha com 600-700 famílias de uma localidade, eles tentaram impedi o pessoal passa por Itaquiraí, só que aí, vinha o pessoal, em torno de 500 famílias da região de Eldorado e que aí a polícia não conseguiu segurar. É que o pessoal já vem preparado pra realmente não volta pra trás. Pelo menos isso, né? E quando a gente faz o trabalho de base, faz o trabalho: “se algum lugar tivé uma barreira da polícia, descarrega o caminhão e faz o acampamento ali mesmo, aonde tiver a barreira”. Como era muita gente, a polícia era pouca, não conseguiu segurar (LÚCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Porque assim é muita gente. Nós chegamos na área era mais ou menos umas seis horas, tava amanhecendo o dia, né? Na verdade quando a gente chego ali na entrada tinha vários camburão, né? Aí a gente ficou assim... “meu Deus será que já passou muita gente ou não passou, né?” [...] Mas aí a gente desceu, eles perguntaram pra onde a gente tava indo. A gente falo que a gente tava indo pra Santo Antônio. Não tinha como a gente esconder mesmo. Fizeram algumas perguntas e tal, mas aí deixaram a gente ir, porque a maioria já tinha passado mesmo, né? (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

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Os sem-terras foram barrados por quatro viaturas do Departamento de

Operações de Fronteira (DOF) e por um grupo de elite da Polícia Civil. Os policiais

tentaram bloquear os primeiros veículos, mas foram surpreendidos com o tamanho da

organização. Devido ao grande número de pessoas e veículos que se aglomeraram em

pouco tempo de paralisação do tráfego da rodovia, os policiais liberaram a pista e

acompanharam os veículos até o local da ocupação (O Progresso, 10.03.1997).

Os trabalhadores, conforme a fala de Lúcio, estavam orientados para que, caso

fossem interceptados por ação policial, montassem seus barracos onde estivessem. O que

não deviam fazer, em hipótese alguma, era recuar e voltar para trás. Para essas decisões,

medidas que devem ser tomadas rapidamente e sem hesitação, havia um ou dois

coordenadores em todos os veículos que se destinavam à ocupação.

O medo da repressão policial é marca presente nas falas dos sujeitos que se

destinam à uma ocupação de terras e também um dos maiores empecilhos impostos ao

ingresso na luta pela terra. Ressalta-se, ainda, um sentimento de estar cometendo

ilegalidades; muitos vão à luta, mas ainda guardam ressalvas em relação a legitimidade da

ação. É um momento doloroso, marcado por sentimentos antagônicos, que se desdobra

entre vergonha, esperança e culpa. Conflitos que Martins chamou de dilemas da

transgressão: No fundo, há uma grande violência envolvida na sua mobilização e na sua indução para saltar por cima da lei e das regras que ordenam as relações sociais responsáveis pelas injustiças de que é vítima. Essa talvez seja a razão de um grande número de desistências já no momento da mobilização (MARTINS, 2003-b, p. 47).

Nas proximidades de Itaquiraí, os ônibus, caminhões e carros foram se

encontrando e formaram uma fileira de veículos. O enfrentamento com a polícia, nesse

momento, apesar de perturbador, foi pacífico, alguns caminhões ficaram um tempo retido e

foram liberados, outros nem chegaram a ser parados.

Daí chegemo ali... e polícia na estrada, minha fia. Cercando. E aquele monte de caminhão, nós mesmo veio de caminhão. Tinha ônibus de Eldorado, aquele monte de gente, Né? Acho que de Mundo Novo veio uns dois ou três caminhão cheio, lotado mesmo de gente e daí foi encontrando né? Foi juntando aquela fileira de gente, aquela fileira de gente e ônibus, caminhão, foi encontrando de Japorã e de tudo quanto foi lado, né? A polícia chegou a parar vocês? Parou, mas nós passamo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

O tamanho da comitiva organizada, que fez com que a polícia recuasse em uma

possível ação de desmobilização, também surpreendeu os próprios sem-terras que se

destinavam a ocupação. São comuns as lembranças de espanto ao avistarem aquele

“mundão de gente” e a enorme fileira de veículos.

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O momento de maior choque foi mesmo a chegada ao local de acampar. Todos

recordam-se da má impressão ao chegar ao lugar, um “lugar horrível”, “desértico”,

“longe”, “parecia o fim do mundo”. O percurso feito na estrada BR-487, após os veículos

deixarem a BR-163 no entroncamento entre Itaquiraí e Naviraí, parecia não ter fim. A

estrada de terra, com cascalho e muitos buracos, dificultou ainda mais o trajeto que foi

feito em caminhões e ônibus velhos. Lotados de pessoas, esses veículos ainda

transportavam lonas, colchões, mantimentos e alguns utensílios. Aí a gente chegou assim... no início a gente... na entrada quando a gente chegô, já tava clareando o dia, era um lugar horrível assim, a estrada. Hoje, não porque hoje tem asfalto, mas no início era tudo chão... a gente entrou assim naquela estrada parece que não acabava mais, parece que era pro fim do mundo que a gente ia. Era um lugar deserto. Hoje ta totalmente diferente. Aí a gente chegô, quando a gente chegô lá já tinha muita gente que tava começando montar o barraco,.. um monte de gente... muita gente. O pessoal já tava se organizando, o local de fazer as barracas... (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

Nair, que também ajudou nos trabalhos de base para formação do

acampamento, coordenou alguns caminhões pelo trajeto, e assim como as famílias que ela

acompanhava, espantou-se com o lugar para onde estavam indo morar. Na imagem

seguinte, tirada na chegada ao local, já dentro da fazenda Santo Antônio, ela aparece de

camisa clara e boné vermelho do MST, no momento em que chama atenção do pessoal

para algumas informações. O caminhão, ao fundo, abarrotado de colchões, utensílios

domésticos, mantimentos e objetos de uso pessoal, era o mesmo que transportou os

trabalhadores.

Figura 5: Chegada das famílias à fazenda Santo Antônio, em Itaquiraí, dia 08.05.1997. Foto cedida por Nair.

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A imagem, tirada na manhã do dia oito de março, que mostra um campo

coberto por uma vegetação verde e uma reserva de mata ao fundo, era um tanto mais

aconchegante que aquela infindável estrada de terra que parecia não levar a lugar algum. A

imagem revela, na prática, uma ocupação segundo o modelo defendido pelo MST, ou seja:

uma ação que envolva toda a família, com mulheres e crianças, inclusive algumas ainda

muito pequenas e bebês de colo.

Na imagem a seguir, produzida por André Dusek, que ilustrou a reportagem da

revista Isto é do dia 27.08.1997, sob o título: “Rastilho de pólvora: Invasões e

acampamentos promovidos pelo MST se multiplicam na região mais fértil de Mato Grosso

do Sul”, mostra a precariedade da estrada por onde os caminhões passaram e que causou

tanto espanto e desconforto. Segundo dona Leonice: “Não tinha estrada aqui, tinha uma

estrada no picadão véio que era uma hora e pouco pro cê saí daqui lá no asfalto, era duas

hora que você gastava de ônibus”.

Figura 6: Visão geral do acampamento Oito de Março. Imagem veiculada na Revista Isso É em, 27.08.1997.

Seu Celso lembra que vieram em cinco caminhões lotados de Ivinhema, e ao

avistar o local para onde se dirigiam, constatou que não eram os únicos e que o local já

estava cheio de pessoas e caminhões. As expressões de espanto na chagada ao local

evidencia um sentimento de medo no enfrentamento dessa nova realidade. Frases como:

“Eita bexiga, e agora...” e “Meu Deus, onde eu vim parar?” refletem até mesmo um certo

arrependimento, um sentimento ambígüo entre ver sua própria vida transformada na

iminência de uma vida melhor ou a manutenção das dificuldades já conhecidas que não

requer desinquietação.

Ah, eu... saia assim, você via aquele mundão de gente, nós viemos em cinco caminhão junto com nós. O nosso era da frente, aí quando nós viu já tava cheio,

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assim. O dia tava chovendo assim, que eu olhei assim... já meio lá do alto que nós veio por aqui, olhei aqui na baixada aquele monte de caminhão. Eu falei: “Eita bexiga, e agora...” (risos) (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Há! Quando a gente chegamo ali, que a gente vinha, né, eu falava pra mãe: “Mãe como que vai se esse negócio lá?” Aí chegamo de madrugada, né? Amanhecendo o dia, até erramo a entrada, entramo por outro lado. Aí que eu desci eu falei: “Meu Deus aonde eu vim parar?” (risos). Aí a mãe falou: “Agora nós vamo te que fica aqui”. Ah, nos primeiro dia eu queria, porque queria ir embora, e não queria fica, nem eu, nem minha irmã, né? Olhava pra um lado, olhava pro outro e falava: “Onde nos viemo pará nega?” (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Claudinéia, que no ato da ocupação tinha apenas 13 anos e que se opôs a essa

mudança, tentou buscar na mãe um conforto diante do medo e das incertezas presentes

naquele trajeto. A mãe tentou tranqüilizar as filhas quando estavam rumo à ocupação, mas

revela que também ficou assustada. Apelando a Deus, dona Edinéia sentiu que se destinava

ao fim do mundo. O fato de ter sido tão incisiva com relação a ida da família à ocupação,

pareceu gerar um sentimento de culpa, o medo que enfrentou naquele trajeto se sobrepôs,

ao menos naquele momento, às certezas que mantinha até então. O marido que foi

contrariado, as filhas adolescentes que relutaram na ida e que foram amedrontadas, e ela

agora diante de tantas incertezas... a saída foi se apegar a Deus e enfrentar a odisséia

“naquele fim de mundo”.

Aí quando chegou no dia né? Foi oito de março... pra amanhecer oito de março, nós vem. Quando chegou na estrada mas me deu um medo, menina do céu. Falei: “e agora meu Deus o que nós vamo enfrentar lá?” Aí nós veio. Quando chegamos ali, meu pai do céu, isso aqui era fim de mundo. Mas era horrível esse lugar aqui, sabe? (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Poucos entrevistados já haviam participado antes de outra ocupação, a maioria

vivenciava aquele sentimento pela primeira vez. Para as lideranças, que embora tenham

enfrentado esse momento com maior lucidez, também é notório que não se trata de um

processo fácil, as expectativas são enormes e as dúvidas também. Tanto trabalho poderia

ser diluído com uma repressão policial, mas na ocupação da fazenda Santa Antônio tudo

havia sido minimamente pensado e articulado, as chances de desarticulação, embora

existissem, eram muito pequenas.

Passado esse momento de choque com as primeiras impressões do local, era

hora de se organizarem, o dia estava chuvoso e frio, as famílias teriam agora a difícil tarefa

de se estabelecerem naquele local. Durante toda manhã, veículos continuaram a chegar,

transportando as famílias. No início da tarde as lideranças reuniram todo o pessoal em

assembléia, para orientarem-nos quanto à organização, como, por exemplo, a questão da

água, da segurança, da retirada de madeira para construção dos barracos e também,

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segundo um dos coordenadores, para conscientizar as famílias quanto à proibição de

desmatamento e abate de animais silvestres. Propositalmente, a ocupação ocorreu em um

sábado, para que eles tivessem o final de semana livre para se organizar e montar os

barracos sem ameaça de despejo, o que poderia ocorrer na segunda-feita, com a volta das

atividades judiciais.

Nesse momento, o MST ainda mantinha a postura de efetivar uma ocupação

com um determinado número de famílias e assim se manter, assim pessoas continuaram

chegando para acampar ainda por cerca de uma semana, depois desse tempo, as famílias

que apresentassem interesse em participar de um acampamento deveriam esperar a

articulação de outra ocupação. Algum tempo depois, e ainda hoje, a entrada de famílias se

tornou permanente. Assim, algumas famílias mais receosas se direcionam ao acampamento

somente depois da ocupação efetivada e o acampamento montado. Esse procedimento

também é adotado pela CUT e FETAGRI. As famílias interessadas podem se dirigir ao

acampamento e após contatos com lideranças, montar seu barraco.

As estratégias usadas para ocupação de terras nem sempre são tão definidas e

articuladas. A ocupação das fazendas Laguna Peru, em Eldorado, e Mambaré, em Mundo

Novo, organizadas pela CUT e FETAGRI, respectivamente, assumem características

diferenciadas.

A ocupação da fazenda Laguna Peru ocorreu no dia três de março de 1999.

Aproximadamente oitenta famílias organizadas pelo sindicato de trabalhadores rurais do

município de Eldorado se dirigiram à área durante a noite. O trajeto foi rápido, a fazenda se

localiza na BR-163, entre as cidades de Itaquiraí e Eldorado. A maioria desse sujeitos era

do município de Eldorado, mas também tinham aquelas que, como a do senhor Tadeu e a

da Dona Eleonora, vieram do Paraná.

O sindicato fez um trabalho de cadastro das famílias com interesse em

participar da ocupação e organizou-as para destinarem-se à fazenda Laguna Peru, que

naquele momento era, segundo os entrevistados, “puro mato”.

Ah, chegamo lá que é... é na época nos cheguemo lá meia noite por aí,11 horas por aí. Depois... que nós se reuniu aqui na cidade, lá umas oitenta famílias parece na época que foi né? I... chegamo lá é mais num... já era assim, organizado (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

O senhor Tadeu foi um participante dessa ocupação, veio do Paraná, e com a

ajuda de um amigo assentado, ficou sabendo dessa possível ocupação. As famílias, assim

como ocorreu na ocupação da fazenda Santo Antônio, não sabiam o local da ocupação,

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sabiam que era uma fazenda próxima a Eldorado e improdutiva. Saíram durante a noite e

fizeram a ocupação da fazenda, que ocorreu sem intervenção policial.

Dona Lurdes era contra a decisão do marido de participar novamente de uma

ocupação de terra. O esposo, o senhor Luiz, já havia participado da ocupação da fazenda

Santo Antõnio, desistiu depois de um ano e, em 1999, aceitou o convite que recebeu de

última hora para ocupar a fazenda Laguna Peru:

Aí ele falou: “arruma minhas coisa que eu vou lá procura o Cirço”. Aí eu arrumei. Arrumei cochão, arrumei umas panelas pra ele, mercadoria... Aí ele voltou. Chegou em casa e falo: “tá tudo certo, vai viajar de noite, umas 11 hora”. Aí nóis foi tudo pra casa dele lá, levemo tudo as coisa pra casa dele lá, eles foram embora pra lá e ta inté hoje nessa (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

As famílias reuniram-se na casa de um dos coordenadores e, entre às 23:00 e

24:00 horas, saíram rumo à fazenda Laguna Peru. A ocupação foi articulada pelo sindicato

e por alguns trabalhadores que tomaram decisões e planejaram rapidamente a ação; as

pessoas receberam o convite com poucos dias de antecedência, e a decisão entre lutar ou

não por outra história teve que ser rápida.

A ocupação da fazenda Mambaré, em Mundo Novo, ocorreu em 28 de março

de 1999. As famílias que já estavam organizadas a espera da definição da data saíram em

grupo, cada qual com seu coordenador, durante a noite. Das 64 famílias, apenas 28

conseguiram chegar à fazenda e efetivar a ocupação, os outros grupos foram desarticulados

pela Polícia, que interceptou a ação em vários bairros da cidade.

Mesmo com menos da metade das famílias previstas, o movimento articulado e

coordenado pelo então presidente do sindicato, o senhor João Valdir, conseguiu ocupar a

fazenda. As outras famílias chegaram nos dias posteriores. A área está localizada na BR-

163, a 8 km da cidade de Mundo Novo, na fronteira com o Paraguai e divisa com a cidade

de Guaíra/PR, trata-se de uma área bem localizada e de fácil acesso.

Como existe um grande receio das famílias com relação ao ato da ocupação, é

comum, e assim ocorreu nesse momento, o sindicato organizar algumas lideranças para

iniciar a ocupação da área, assim as famílias, ou membros delas, chagavam nos dias

posteriores, já com a fazenda ocupada, livre dos ricos de ação policial para desarticulação.

É necessário ressaltar uma diferença marcante entre essas três ocupações. Só

no acampamento Oito de Março as famílias todas se destinaram à ocupação, não que isso

seja uma regra, mas a presença de mulheres que acompanharam o marido, e ainda levaram

os filhos, o que pode ser inferido até mesmo pelas imagens do acampamento. Nas outras

mobilizações, com algumas exceções, somente os homens participaram da ocupação, no

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entanto, algumas mulheres mudaram-se depois para o barraco, mas outras apenas

visitavam esporadicamente.

Dona Lurdes, que acompanha a expectativa do marido acampado no Laguna

Peru há oito anos diz que: “Eu não fui junto, eu nunca ia junto. Luiz foi e nunca saiu desse

acampamento, era lá direto”, isso ocorre também com algumas amigas que vive a mesma

expectativa.

Diferenças como essa evidenciam concepções de lutas diferenciadas. Desde as

primeiras reuniões esse tipo de atitude já é discutida. O MST defende a mudança das

famílias aos acampamentos, e isso equivale a uma transformação mais radical, deixar

emprego, casa, escola, família. Nos outros dois acampamentos, mediados pela CUT e

FETAGRI, a maior parte dos barracos é habitada apenas por homens, que passam períodos

em casa com a família. Não que essas posturas sejam lineares e aplicadas a todos os casos

e todos os acampados, mas são diferentes formas de concepção de luta e que diferenciam o

cotidiano desses sujeitos. Em nenhum desses grupos o fato de ir só um membro da família,

ou a família toda, pode ser visto em caráter de imposição, mas de posição, são formas de

luta defendidas e apresentadas às famílias pelas lideranças.

Todas as ocupações ocorreram em um sábado à noite, isso para que os grupos

pudessem se estabelecer nas áreas antes de uma possível ação policial. Com menos ou

mais dias, a liminar de reintegração de posse é concedida ao proprietário das terras e os

barracos têm que ser transferidos a outras áreas, é nesse momento que muitas famílias

desistem. Nos casos analisados, todos tiveram uma segunda, terceira e até quarta ocupação

da mesma área e pelo mesmo movimento. Estratégias de lutas que vão tomando contorno

com o caminhar das negociações.

Com relação à estratégia de fazer as ocupações no sábado, dona Leonice,

militante do MST por muitos anos, conta que do sábado para a segunda-feira era um

intervalo de tempo que eles tinham para se organizar e, então, receber a imprensa e

enfrentar uma possível ação policial:

A gente fazia muito nesse período [fins de semana] até porque você tinha até como dá uma organizada, quando chegava, organizava o povão na área. Até chegá imprensa, polícia... Porque a gente sabe que não ia chega imprensa no sábado, no domingo, era mais difícil. Então nós tinha o sábado e o domingo pra organiza inteiramente, pra na segunda fera tá preparado, pra que se viesse o cassete, pra gente... (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

No caso da ocupação da fazenda Santo Antônio que, ocorreu no dia oito de

março, a liminar foi concedida pelo Juiz de Naviraí, Danilo Porin, no outro dia, domingo,

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dia nove de março. Um dos integrantes da direção estadual do MST, Márcio Bissoli, disse

ter ficado surpreso com tanta rapidez na liberação da liminar e desabafou: “Se fosse uma

decisão favorável aos trabalhadores, demoraria seis meses” (O Progresso, 11.03.2007).

No entanto, os sem-terras só começaram a deixar a área um mês depois, no dia

nove de abril de 1997, isso porque o grupo estava decidido a não desocupar a fazenda antes

de uma proposta consistente feita pelo governo do Estado aos trabalhadores.

Durante esses trinta dias, as famílias viveram sob a assombrada ameaça de

despejo com força policial, já que o mandado de reintegração já havia sido emitido e os

grupos estavam dispostos a se manter na área ocupada. No decorrer desse período, os

coordenadores do acampamento e membros da direção do MST negociaram com o

governo a saída das famílias, a qual estava condicionada à vistoria da fazenda pelo

INCRA, quanto à produtividade e quanto aos quase cinco mil ha. de terra devolutas da

União, que estavam dentro da área da fazenda.

Decididos a não deixar a área antes da vistoria, Claudinéia lembra que eles

sabiam que a ação policial poderia vir a qualquer momento, mas ainda assim estavam

dispostos a resistir e só saírem de lá mortos:

[...] a polícia veio pra despeja a gente da fazenda. Era pra gente saí, aí o povo teimoso, batia o pé que não saia. Aí eles mando recado que vinha com reforço, né? Com o ônibus de polícia. Aí a turma já mando recado, que podia vim, traze os caixão, os sacolão de plástico, porque a gente não saia. Só saia com sangue na canela, né? (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.05.2005).

A Secretaria de Segurança Pública (SSP) estadual tinha conhecimento da

situação e devido ao grande número de famílias protelaram a ação policial tentando uma

saída pacífica a fim de evitar um confronto. O secretário do órgão chegou a ser ameaçado

pelo juiz Danilo Burim de responder por crime de desobediência. Em reportagem ao jornal

O Progresso o juiz teria dito que: “Estou apenas fazendo cumprir a lei. Invadiu tem que

desocupar. Isto está claro na lei de direitos de propriedade” (O Progresso, 20.03.1997).

Como medida paliativa, a SSP resolveu manter camburões de policiais nas

proximidades do acampamento para barrar a chegada de novos grupos de trabalhadores.

Estima-se que, na da data da ocupação, eram em torno de 1.300 famílias, mas a chegada de

novos grupos durante a primeira semana foi contínua, elevando para mais de 2.100 o

número de famílias. Estima-se, entre as reportagens veiculadas e os números apresentados

pelo MST, que eram em torno de 7.000 pessoas acampadas.

No quinto dia de ocupação, um ônibus e um caminhão foram barrados por um

camburão da polícia militar e impedidos de entrar na fazenda; indignados, os acampados

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direcionaram-se ao local, retiram as armas dos três policiais e levaram-nos ao

acampamento, de onde foram liberados no final da tarde, com a viatura e a munição, mas

sem o armamento.

Figura 7: Policiais no momento em que foram abordados pelos acampados do acampamento Oito de Março.

Foto cedida por Nice.

A imagem registrada pelos acampados marca o momento em que os sem-terras

chegaram até os policiais. Não houve resistência, os policiais entregaram as armas e

seguiram com o grupo até o acampamento. Como se pode inferir pelas imagens, apesar de

tenso, não foi um momento de confronto, vários acampados, inclusive crianças,

acompanharam a operação, que contou até mesmo com um megafone, objeto comum nesse

acampamento para a comunicação entre líderes e acampados. Segundo os acampados, eles

exigiram o mandado judicial para tal ação, documento que os policiais não possuíam.

Segundo reportagem do jornal O Progresso, foram ao todo seis armas: uma

submetralhadora, três revólveres, uma escopeta e uma carabina (20.03.1997). Nair lembra

que o número de pessoas que foi ao encontro dos policiais era tão grande, que quando

estava no meio do caminho, em torno de 3 km, os primeiros sem-terras já estavam

chegando próximo ao camburão:

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A gente fez a ocupação dia oito nós chegamo na fazenda, mas ainda continuou chegando gente, ainda levou um monte de dia pra... eu não me lembro quantos dias, mas, mais ou menos uns três, quatro, cinco dias que nóis tava lá, a policia começou barrar, começo barrar os caminhão. Aí a gente sobe a notícia que tinha várias famílias na BR, que as polícia não queria deixar passar. Aí nós fomos. E eu fico pensando assim, meu Deus, o povo é corajoso, porque na época nós saimo do acampamento... eu esqueci o nome da fazenda, mas acho que da uns 15 km, vieram atrás, e aí eu vim também. Chegou uma certa altura eu tava na metade do caminho e já tinha gente chegando lá onde tava as polícia. E eles tavam assim... meio que lá pra dentro, né? Aí o pessoal trouxeram eles pro acampamento, trouxeram o camburão, né?Aí que veio esse pessoal do governo... Mas eles não fizeram nada, na verdade, foi uma pressão, a gente ficou revoltado porque eles tavam fazendo aquilo, tavam barrando as famílias de chegarem pro acampamento (NAIR, Entrevista, 13.12.2005).

O pessoal fizero eles desce lá com a viatura, já tava desarmado, chego lá só entregaram pra eles a munição e mandaro volta embora. E dero recado pra não fica lá fazendo segurança de fazendero, só isso. Mesmo por que, tava um dia chuvoso e o pessoal que ia indo acampar em alguns casos eles tavam fazendo até desce as coisa do carro e dexá as pessoa de a pé lá, aí nem chegava e nem deixava volta (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

Esse foi um fato que marcou a história desse acampamento, tanto pela

repercussão que teve, quando pela aflição vivenciada pelas famílias naquele momento. A

tomada das armas, como ficou conhecida, é narrada por todos os acampados que

vivenciaram aquele período no acampamento, mesmo que não estivessem presentes. O

senhor Celso, que participou da ação, conta que foram avisados pelos guardas do

acampamento do acontecido, alguém sugeriu que fossem todos ao encontro dos sem-terras

barrados, e assim o fizeram, em uma ação rápida e pouco elaborada. Os policiais, naquele

momento, eram a representação de um Estado opressor. As barreiras legais, judiciais e

Estatais estavam materializadas na figura daqueles sujeitos, fazer com que sentissem um

pouco do drama daquele espaço e que provassem de seus (dês) sabores, era naquele

momento uma forma de chamar a atenção da sociedade para o problema social que

estavam vivenciando. [...] Tava com quatro dias que nós já tava aí. O caminhão tava chegando que tava mais atrasado. Aí eles tava... ligaram que eles tinha prendido um caminhão nosso, dero uma ligada, aí saiu um peão lá e falou: “olha, cercaram um caminhão nosso ali pra frente vamo lá soltar eles”. Aí saiu aquele montão de gente. Tinha uma mil pessoa aqui. Os que tava aí foi quase tudo ficou só alguns que não guentava andar, acho. Aí nós fomo lá, eles tavam lá... Três polícia, o camburão, segurando o caminhão e um ônibus. Aí nós passamos deles assim, aí quando uma metade passou a outra chegou e fechou eles no meio. Aí eles tentaram correr, a turma já chegou e já desarmaram ele já... (risos) tomemos as armas deles, fizemos eles entrar no camburão, pegaram um motorista e... trouxe eles dentro do camburão e deixemos aí no acampamento. Aí fizemos eles comê angu de fubá, uma polenta mal feita pra eles comer, pra eles sentir o que a gente tava sentindo (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Borges, ao analisar, a partir das considerações de Martins, um episódio de

retenção de oficial de justiça em um acampamento do Pontal do Paranapanema, revela

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como a forma com que a concepção de direito pode, em determinadas circunstâncias,

inverter-se:

Invertia-se, de certo modo, naquele momento, a concepção do direito, o qual se estava a reboque das práticas camponesas, passava então a ser questionado, remetendo as considerações de Martins, de que: “Se o direito é constituído sob o torto, sob a usurpação do direito do outro, desvenda para o outro o seu direito. É nesse sentido que a cerca não fecha, abre: abre a consciência do direito lesado, abre a luta pelos direitos, abre a luta contra o direito edificado sobre a injustiça” (2004, p. 154).

As armas foram devolvidas pessoalmente pelos sem-terras ao Secretário de

Segurança Pùblica do Estado, num encontro que aconteceu na cidade de Naviraí. O

encontro foi precedido por uma reunião com alguns parlamentares, como o então deputado

estadual Zeca do PT, e alguns vereadores do mesmo partido, que negociaram e

acompanharam a entrega das armas. O secretário exigiu, no ato de recebimento das armas,

a transferência das famílias de dentro da fazenda Santo Antônio para uma área provisória

de oito mil ha oferecida pelo prefeito do município de Japorã, o que não foi aceito pelos

acampados (O Progresso, 21.03.1997).

Esses fatos não são só recordados pelos sem-terras com expressões de coragem

e orgulho, mas também como momentos de conflitos, medos e dúvidas. Desde a chegada,

as famílias já viviam na iminência de um possível despejo. Ocupação e despejo era a

ordem cronológica dos acontecimentos. As notícias que veiculavam nos jornais e

programas radiofônicos com as mensagens: “Secretário admite ação militar em fazenda”;

“Desocupação da fazenda Santo Antônio poderá ter reforço policial”; “a ação está

montada”, entre outras, deixavam acampados e lideranças em total estado de alerta.

Claudinéia diz que todo o período ela ouvia dizer que “os policiais poderiam

vir”; “que já estavam vindo”; “que daquele dia não passava”; mas no momento em que

realmente aconteceu esse embate foi que sentiu o desespero e a vontade de deixar aquele

lugar. Embora não tenha havido nenhum confronto mais direto, ninguém sabia no que

aquela ação poderia resultar, quantos policiais eram e qual era realmente a intenção deles

naquele local:

Que eu passei muito medo mesmo foi a primeira vez que veio, as polícias, eu não sabia. Aí o pessoal chego lá com ônibus dizendo que tinham despejado a turma no caminho, que eles vinha pra bate. O pessoal falava bastante, né? Eu tinha muito medo. Foi quando bateu a vontade de ir embora mesmo foi naquele momento, né? Foi no dia que tomaram as armas. Viche já passei muita coisa assim, muito medo (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.05.2005).

A primeira desocupação da fazenda Santo Antônio ocorreu sob muita

negociação, pressão e ameaças. As lideranças apostavam na improdutividade e na

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ilegalidade da fazenda e por isso reivindicavam a análise e o parecer do INCRA antes de

desocuparem a área. A SSP, por sua vez, era pressionada a cumprir a ordem de despejo que

lhe foi arbitrada. Deputados, vereadores, a prefeita da cidade vizinha, Mundo Novo,

Dorcelina Folador (PT) e o governador do Estado, Wilson Barbosa Martins, cada qual com

seu ponto de vista, tentaram por diversas vezes uma negociação. Com o argumento de que

“o despejo poderia se transformar em tragédia”, Dorcelina tentou intervir junto ao

governador, mostrando-se desfavorável ao despejo (O Progresso, 27.03.1997).

Mesmo sem uma definição quanto a análise da situação da fazenda Santo

Antônio, os acampados deixaram-na um mês depois da ocupação, em decorrência de um

acordo firmado entre um dirigente nacional do MST, Egídio Brunetto, e o governo do

Estado, em um fórum criado para resolver o impasse. Apesar de não aceitar a transferência

para o município de Japorã, os sem-terras deixaram a fazenda com destino a BR-163,

diante do compromisso de que o INCRA iria medir a área em questão e efetuar o cadastro

das famílias acampadas, e ainda de que o poder executivo estadual se incumbiria de

fornecer veículos para o transporte das famílias, além de lonas e alimentação básica aos

acampados por cerca de sessenta dias (O Progresso, 05/06.04.1997).

Embora não tenha havido uma ação policial direta de despejo dos acampados, a

violência da ameaça e a expectativa do medo constante é evidenciada. Os despejos, ainda

que negociados, obrigam esses sujeitos e viver recomeçando. É uma violência simbólica,

que maltrata e castiga, que leva sempre a um recomeço, sem que se possa vislumbrar um

fim. Nesse sentido, são importantes as considerações de Borges:

Entretanto, o que permanece também como um marco na memória é a violência do despejo. Violência que não se dá necessariamente pelo emprego da força física, mas pela imposição da saída, da necessidade de deixar a terra desejada, “arrancando os barracos”, “juntando as tralhas”, tendo que costumeiramente recomeçar (2004, p. 157) [Aspas no original].

Com apenas quatro caminhões, a transferência das famílias demorou quase

trinta dias. Os sem-terras remontaram seus barracos a aproximadamente 38 km da área

anteriormente ocupada, na BR163, estrada que liga o município de Naviraí ao de Itaquiraí.

Entre descumprimentos de acordos e luta por novas demandas, a fazenda Santo

Antônio foi reocupada por essa mesma mobilização por várias vezes, com datas precisas

foi possível identificar outras duas: 19.09.1997 e 28.11.199835. Ressalta-se, ainda, que esse

grupo também efetuou ocupações em outras propriedades, inclusive em outras cidades,

como por exemplo, Japorã e Iguatemi.

35 A partir do ano de 2003 essa área passou a ser ocupada também por outros grupos, mediados pela FETAGRI e CUT.

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Ao relatar já uma segunda desocupação, Claudinéia comenta como a violência

dos despejos é sentida. Para que não haja um confronto e para preservar o material do

barraco, o povo mesmo arranca as lonas:

Eles chegaram, fico os dois ônibus lá em cima, chego só dois camburão e foi conversar daí com o povo. E o povo resolveu a saí pra lá, aí eles juntaram os barracos e tudo. O povo foram desmancha e coloca dentro do caminhão, se não desmanchasse eles cortava de facão, derrubava e colocava no caminhão mesmo né? Aí nos saimo (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Momentos parecidos foram vivenciados pelos acampados da fazenda

Mambaré, em Mundo Novo, quando depois da ocupação receberam a intimação de

reintegração de posse e tiveram que desocupar a área sob forte pressão policial. Os

acampados foram levados ao campo de aviação do município, onde permaneceram por

alguns dias e logo voltaram a ocupar a área.

Uma vez quando foi faze o despejo nosso lá pro campo de aviação, a polícia veio, encheu de polícia aí. Eles tiraram, não queria que a gente entrasse, mais daí nois torno entra de novo (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

Cabe lembrar que esse grupo contava com o apoio do poder executivo

municipal, na pessoa da então prefeita e defensora dos movimentos sociais, Dorcelina

Folador. Fora ela quem concedeu transporte para que essas famílias retornassem com seus

barracos para a reocupação da fazenda, além de inúmeras outras contribuições, como por

exemplo, lonas, alimentos e encaminhamento das discussões.

Nós conseguimos lona com a prefeitura de Mundo Novo. Com a FETAGRI foi mais alimentação mesmo[...] quando a polícia despejou e trouxe eles aqui para o aeroporto, a prefeita na época era a Dorcelina, a prefeita doou os caminhões para que voltassem pra lá (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).

Já o acampamento Laguna Peru teve uma história bastante especifica. Os sem-

terras desse acampamento já haviam recebido a garantia do INCRA que seriam assentados

naquela área. Tendo em vista a Imissão de Posse, a área chegou a ser medida e marcada e

os trabalhadores viviam na iminência de serem assentados. Eram cerca de oitenta lotes, e

os trabalhadores já haviam começado a criar gado de leite, plantar feijão e cultivar horta na

área quando foram surpreendidos com a revogação do Decreto que havia desapropriado a

fazenda. Essa anulação deu-se pelo Mandado de Segurança impetrado pelo proprietário da

fazenda no Supremo Tribunal Federal (STF) fundamentado na Medida Provisória nº 2.109-

50, de 27 de março de 200136.

36 Informações obtidas junto às atas da Ouvidoria Agrária Estadual nº01 e 02 de 2001.

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Quando da reintegração de posse, a saída dessas famílias teve de ser acordada

com muito cuidado, já que haviam perdido o que para eles estava ganho. Dona Lurdes

lembra que ainda hoje se podem ver as estacas que foram usadas para marcar os lotes do

assentamento.

Sempre eles falava: vai saí, vai saí, aí quando perdeu eles aviso, né? Que tinha perdido a fazenda lá. O fazendero tinha recorrido, não tinha dado certo... não sei que rolo que deu nos papel lá que não deu certo a fazenda. Perdeu. Aí fiquemo foi muito tempo lá ainda minha fia, muito tempo ali ainda. Depois que eles falou que ali não tinha mais solução, ali na Laguna. Muita gente aqui tirava sarro, que a laguna não ia saí, porque o povo ia caduca, ia morre tudo lá acampado (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Esses trabalhadores vivem em constante expectativa. A vida no espaço de

travessia, que é o acampamento, só tem sentido quando há uma esperança, uma

perspectiva. Dona Lurdes recorda-se que essa expectativa era sempre alimentada pelos

coordenadores até o momento em que perderam definitivamente a área e ficou confirmada

a opinião popular de que “morreriam todos caducos naquela fazenda, mas ali não seriam

assentados”. Plantamos dois ou três anos quando a terra... a gente achava que a terra era nossa e não era nossa. A aquele vai e vem do INCRA, não era do INCRA né? Nós plantamo colhemo acho que uns trezentos saco de feijão umas duas, três vezes. Aí quando o fazendeiro pegou a área de volta aí sim, aí a gente... era dele não era nossa, não tem como se faze nada, o cara é o dono da propriedade (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

O que se percebe nesses relatos é um sentimento de perda. Os trabalhadores

viam as terras já como suas, plantaram, colheram, fizeram planos, mas não receberam-na.

Até mesmo porque, é comum que acampados vivam longos períodos na área conquistada

sem demarcação à espera das liberações orçamentárias, técnicas e burocráticas do INCRA.

Ao conversar com dona Lurdes ela, fez uma colocação bastante pertinente com

relação aos procedimentos tomados pelos fazendeiros com suas propriedades rurais. Ela

percebe, na prática, ações que vem sendo realizadas devido a demora e complexidade nos

processos de desapropriação de terras:

Eu não sei o que eles vão faze com essas terras... terra parada, cada fazendão, só tem quiçaça pura, agora tão dando uma ajeitada, acho que com medo do INCRA corta, né? (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

O tempo que demanda um processo de desapropriação de terra é suficiente para

que o proprietário adéqüe sua produtividade e dê uma “ajeitada” na propriedade. Oito anos

após a ocupação, a fazenda, em que o marido de dona Lurdes está acampado, está

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arrendada para plantação de cana-de-açúcar e cumpri sua função social estabelecida pelas

legislações vigentes.

Os trabalhadores permaneceram ainda por quase um ano com a fazenda

ocupada, mesmo depois da imissão de posse revogada e do e mandado de reintegração de

posse emitido ao proprietário. Em reunião feita para tentar resolver o impasse, o senhor

Paulo Cezar, representante da CUT, condicionou a saída das famílias a uma área definitiva

para assentamento. Os acampados já haviam se firmado na área e não estavam dispostos a

deixá-la. Diante dessas circunstâncias, o próprio Ouvidor Agrário Estadual, Dr. Ulisses

Duarte, registrou em ata que tentou comprar, juntamente com o presidente do INCRA, a

fazenda do proprietário, e que as diversas propostas foram rejeitadas pelo fazendeiro, que

estava disposto a não vender a área para um projeto de assentamento37.

Os trabalhadores desocuparam a fazenda e montaram o acampamento à

margem da BR-163, contudo, já desestimulados pela falta de perspectiva, muitos

trabalhadores desistiram e deixaram o acampamento. Em novembro de 2003, o

acampamento Laguna Peru recebeu outros acampados do Sul do Estado, ganharam força e

reocuparam a fazenda como forma de protesto.

Dona Lurdes, cansada da espera, diz que eles estavam esquecidos, e já não

havia mais resposta cabível para aquela situação:

O governo tinha esquecido o povo ali, né? O povo do INCRA não tava dando mais confiança pra aquilo ali. Só quem ia ali no final mesmo era seu Miro mesmo que ia lá, conversar lá, fala alguma coisa, mais, coitado, já não tinha mais nem explicação pras palavra dele (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Depois que perderam o processo no STF, já sem possibilidade de serem

assentados naquela área, e sem condições de vida e trabalho na cidade, os acampados

continuaram morando nos barracos à espera de uma posição do INCRA. Entre algumas

reuniões, cobranças, pressões com reocupação e ameaças de reocupação, pedágios e abates

de bois, essas famílias permaneceram até o ano de 2007 na referida área. Esses sujeitos

insistiram em manterem-se acampados, mesmo sabendo que não havia mais possibilidade

de serem assentados naquela área, devido ao compromisso firmado pelo INCRA e pelo

IDATERRA, de que seriam de alguma forma assentados38.

Nota-se, que os acampamentos Laguna e Peru e Mambaré apresentaram uma

postura mais defensiva e menos ofensiva com relação à resistência e à ocupação. Os

37 Ata da Reunião da Ouvidoria Agrária Estadual, 04/2002 e reunião realizada em 01.03.2002. 38 Posição assumida pelas lideranças do acampamento durante reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária, realizada em 19.01.2004, para resolver o impasse.

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grupos foram rapidamente despejados, tendo em vista que a ação policial foi a estratégia

usada de antemão na efetivação dos mandados de reintegração de posse. Isso está

relacionado ao menor número de sem-terras acampados, já que esse fator foi o que

protelou uma ação policial em relação ao acampamento Oito de Março.

O não enfrentamento é uma atitude prezada pela FETAGRI, e em muitos casos,

também pela CUT, para preservar os trabalhadores de um possível confronto que venha a

trazer maiores transtornos. A ação de obedecer ao mandado, sair da área e tornar a ocupar

também foi evidenciada nesses dois outros acampamentos. Os grupos deixavam as áreas

quando recebiam determinação judicial e, dentro de alguns dias, voltaram a ocupar a

mesma área, onde permanecia até o próximo mandado de reintegração, como relatou o

senhor Antônio:

Nós entramo na fazenda, daí o fazendero conseguiu uma liminar, tiro nós. Nós fomo lá pro... pro aeroporto de Mundo Novo, pro campo de aviação. De lá nós voltemo de novo, entramo na fazenda, torno tirá nós de novo, aí ficamo na beira da estrada. Aí através de advogado do INCRA acho que era melhor não invadi mais, né? Era melhor fica pelo lado de fora e esperá a decisão, e foi o que fizemo (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).

Tanto no acampamento Mambaré, quanto no Laguna Peru, ficou evidente a

influência exercida pelo INCRA nas decisões em relação ao acampamento. Nesses dois

casos, o órgão era reconhecido como um instrumento de apoio. Com relação ao papel

desempenhado pelo INCRA no processo de luta do acampamento Mambaré, o senhor José

Valdir disse que: “...sinceramente tenho que agradecer o INCRA que foi praticamente um

parceiro na luta”.

É importante salientar que essas duas ocupações ocorreram em 1999, quando

logo seria editada a Medida Provisória nº 2027-38, de 04/05/2000, conhecida como medida

anti-invasão do governo de Fernando Henrique Cardoso, que proibia a vistoria de áreas

ocupadas por um período de dois anos. Esse ato teve reflexão direta no encaminhamento

das discussões dessas duas propriedades. Os acampados da fazenda Mambaré, seguindo a

orientação do INCRA, decidiram deixar os limites da fazenda e estabelecerem-se à

margem da rodovia; quanto a ocupação fazenda Lagura Peru, que estava sendo mediada

pela CUT e para a qual já havia parecer favorável do INCRA, com ação já ganha em

primeira instância, as determinações da medida de anti-invasão não foram cumpridas, o

que levou a propriedade a permanecer com o processo de desapropriação sobrestado e a

decisão de desapropriação acabou sendo revogada.

Nós saiu por causa que, por causa não, é por causa é... coisa judicial né? Ordem do juíz, aí esse tipo de coisa né? A gente entro aí na fazenda umas quatro, cindo

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vezes, né? Vai, vai... vai até... até a terra se desapropriada. E, inclusive foi medida, feito o perímetro anual da área, saiu no diário oficial. 1ª volta perdemo a área, aí ficamo lá... (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Temendo retaliação, como a que aconteceu com os acampados da fazenda

Laguna Peru, o senhor Antônio, que coordenava o acampamento Mambaré, lembra que

seguiam as orientações do INCRA de não resistir aos despejos e de não voltar a ocupar a

fazenda: Quando a, o policiamento veio tirá nós, né? Veio com o mandado na mão, nós obedecemo, né? E num fizemo confronto nenhum. Orientação do INCRA. Até mesmo porque tinha saído aquela medida provisória do Fernando Henrique, né? Fazenda ocupada teria dois anos pra... né? Então nós resolveu obedecer isso aí, e graças a Deus deu certo (ANTÔNIO, Entrevista, 22.04.2006).

Essa relação amistosa, entre o INCRA e a FETAGRI, é evidenciada nas falas

de coordenadores e acampados dessas duas áreas. Estrategicamente essas mobilizações

assumem uma posição mais defensiva, recuam, fazem concessões, já que isso produz certa

segurança aos sem-terras, que vêem nos encaminhamentos dos órgãos estatais uma

expectativa segura de acesso à terra.

Ao comentar as práticas da Federação no sentido de preservar os trabalhadores

de um enfrentamento com forças policiais, o senhor João Valdir evidencia certo

paternalismo ao defender a “falta de condição e preparo” dos trabalhadores sem-terra:

Não, de maneira alguma. Porque participei de várias ocupações de terras como sindicalista e até trabalhei no MST, mas eu sou contra a violência. Porque o trabalhador ele é despreparado pra enfrentar a polícia. Você sabe que o Estado tem uma força muito grande, se dez policiais não conseguir tirar, vem vinte, vem trinta, vem cinqüenta. Então o trabalhador não tem que enfrentar polícia, até porque ele não é preparado, ele não tem condições de enfrentar a polícia. Acho que a luta tem que existir, mas tem que ser uma luta democrática, não com violência. Jamais! [...] Simplesmente, pegava a ordem de despejo e saía, saía e ia pra bera da rodovia (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).

As diferentes concepções de luta, ora marcadas por posturas mais defensivas,

ora por posturas mais ofensivas durante as ocupações, e diante da resistência com relação a

ações policiais, políticas e mesmo de pistolagem, são reconhecidas por Fernandes em nível

nacional. Em todo país existem mobilizações de luta pela terra marcada pela defesa do não

enfrentamento e da negociação, já as lutas mais ofensivas não descartam a negociação, mas

mantêm uma postura firme de enfrentamento (2000, p. 285).

O acampamento Oito de Março foi marcado pelo enfrentamento, a lembrança

de estarem decididos a só saírem da área “com sangue pela canela” é fato recorrente.

Embora, mais cedo ou mais tarde esses trabalhadores tiveram que deixar a área e acampar

às margens da rodovia, essas saídas sempre aconteceram com negociações que envolviam

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alguma conquista e sem nenhum conflito violento. Ora aceitaram deixar a área por cestas

básicas destinadas à alimentação das famílias, ora por outras áreas para o assentamento de

parte dos acampados.

Os três acampamentos analisados tiveram processos de ocupação e de lutas

diferenciados, quer seja na forma de organização e conduta das negociações, quer seja, na

própria forma de entender o acampamento enquanto espaço de lutas e de resistências.

Embora todas as ocupações analisadas pleiteassem a desapropriação área

ocupada, os acampamentos da FETAGRI, e também o mediado pela CUT, limitaram-se ao

local reivindicado. Nesses acampamentos o tamanho da área determinou a quantidade de

famílias que ali puderam se estabelecer. Já no acampamento liderado pelo MST,

caracterizado pela massificação, houve mobilização por outras áreas a fim de assentar as

famílias sem-terra. Não houve, nesse segundo caso, uma área definida, embora houvesse

uma fazenda em reivindicação, quando não havia mais possibilidade de desapropriação da

fazenda Santo Antônio, esse grupo passou a pleitear a desocupação de outras áreas,

inclusive em municípios vizinhos.

Tanto é assim, que no acampamento Laguna Peru e Pedro Ramalho, com oito e

quatro anos de duração respectivamente, conforme um acampado, ou uma família, desistia

da luta, abria-se vaga para quem desejasse montar um barraco naquele espaço.

Comentando a desistência das famílias acampadas, o senhor João Valdir, que articulou o

acampamento Mambaré, explana que abriam vagas sempre que uma família deixava o

barraco:

[...] E aí nós abrimos vagas, no acampamento tinha uma liderança, o cidadão chegava se apresentava, fazia o barraco dele, a liderança dava uma quantia de dias para ele mudar para dentro do acampamento, aí ele vinha mudava e começava a fazer parte do acampamento (JOÃO VALDIR, Entrevista, 30.04.2006).

Já a o acampamento Oito de Março tornou-se um grupo em contínuo processo

de luta; de 1997 até o ato da pesquisa, vários grupos foram assentados e vários outros se

somaram às famílias remanescentes. A nomenclatura foi alterada e os grupos peregrinaram

por diversas áreas. Vejamos um pequeno histórico do desfecho dessas ocupações.

O acampamento Laguna Peru existiu por oito anos, nesse período muitos

trabalhadores desistiram e muitos outros foram agregados. Houve um momento em que um

grupo de acampados de Mundo Novo se agregou ao acampamento para “ganhar força”. Foi

em vão. A área que chegou a ser medida, e dividida, foi reavida pelo proprietário e os

acampados ainda mantiveram-se à margem da estrada nos limites da fazenda por algum

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tempo, mas já sem nenhuma perspectiva o acampamento foi desfeito em meados de 2007.

Os acampados que não desistiram, mesmo nessas circunstâncias, foram para outros

acampamentos nos municípios de Batagassu e Tacuru. A fazenda que chegou a ser

considerada improdutiva, hoje, oito anos depois da primeira ocupação, está arrendada para

plantação de cana-de-açúcar.

O acampamento Mambaré existiu por quatro anos e meio e a propriedade em

questão foi desapropriada. Nela foram assentadas 72 famílias. Exceto algumas famílias que

não passaram no cadastro do INCRA e algumas que desistiram no meio do caminho, as

outras que iniciaram a luta em 1999 foram assentadas, soma-se a elas também algumas

famílias que entraram depois, com o processo já em andamento.

Quanto ao acampamento Oito de Março, estima-se que 1.000 famílias tenham

sido assentadas em diversos assentamentos da região. Em 2006 ainda viviam cerca de

trinta famílias remanescentes desse período vivendo acampadas às margens da estrada que

faz limite com a fazenda Santo Antônio.

Como fruto dessa luta inúmeras áreas foram desapropriadas, como, por

exemplo, as fazendas Santa Rosa e Guaçu, que foram conquistadas no final de 1997 e

assentaram 334 famílias, assentamento Tamakavi (1998), com 120 famílias e o

assentamento Boa Sorte (1998) com 65 famílias, ambos no município de Itaquiraí; além de

outros que foram formados em parte por acampados do Oito de Março, como o

assentamento São Judas Tadeu (1998), em Rio Brilhante; Santa Catarina (1998), em Aral

Moreira; Savana (1998), em Japorã; Dorcelina Folador (2000), em Ponta Porã, e outros.

A fazenda Santo Antônio, no entanto, foi desapropriada já no final dessa

dissertação, no ano de 2007, em virtude de um acordo firmado entre o proprietário e o

governo do Estado. Embora esse assentamento só vá contemplar cerca de 30 famílias das

2100 que a ocuparam em 1997, essa mobilização, que recebeu no nome de acampamento

Oito de Março, contribuiu consideravelmente para essa desapropriação.

Apesar de suas especificidades, essas ocupações podem ser entendidas a luz do

que Fernandes chamou de “ocupações organizadas e espacializadas”, ou seja, ocupações

realizadas por movimentos socioterritoriais, que trazem experiências de outros locais, que

estão inseridos em um processo político mais amplo e podem (como o acampamento Oito

de Março) fazer parte de uma agenda de lutas previamente articuladas pelos movimentos

(2000, p. 289).

A ocupação como forma de acesso à terra não é uma ação criada pelos

movimentos sociais de luta pela terra da história recente do Brasil, é um processo que

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sempre esteve presente na história do campesinato brasileiro. O que se tem visto nas

últimas décadas é uma nova forma de luta, presente em um novo contexto histórico e

vivenciada por novos sujeitos sociais. Não é mais o campesino de outrora, posseiro,

matuto, o bravo do sertão; são os sem-terras, trabalhadores descartados das velhas relações

de trabalho no campo e que não encontraram nos centros urbanos condições de vida e

trabalho dignas. As terras em questão não são mais os velhos latifúndios, imensidões de

terras que mal sabia-se onde começava uma e acabava a outra, as terras ocupadas são as

atuais empresas rurais que se mantêm, principalmente, da criação de gado de corte ou de

produção de grãos para exportação e cana-de-açúcar.

As ocupações de terras como primeiro passo para o acampamento e como

prelúdio ao assentamento ocorrem em grandes propriedades, que apresentam produção

questionável, os processos de reintegração de posse são recursos sempre utilizados e os

despejos conseqüências. Embora os despejos com violência policial não tenham ocorrido

nos processos históricos analisados, os acampados vivem a iminência da ação, com

ameaças constantes, e assim a desocupação das áreas ocorre sempre sob pressão.

Dependendo da mobilização, essa ação ocorre com mais ou menos negociação e

resistência. Após os despejos, o acampamento se refaz à margem da rodovia, sempre

próximo ao lugar ocupado, esse espaço de moradia e vida se alterna com a reocupação da

propriedade, sempre seguido de novos despejos.

Embora os momentos que antecedem a ocupação, e a própria ocupação, sejam

marcados por sentimentos e ideais conflitantes, é no cotidiano, no dia-a-dia da vida sob o

barraco de lona, que as maiores dificuldades, anseios, angústias e medos se desnudam.

4.2 As dificuldades do cotidiano

Aí passou o tempo, demorou para mim í pra cidade de novo, né? Eu fui tava com uns três meses acampado. Aí eu cheguei lá, e pra volta? Não tinha como. Aqui já não tinha carro pra saí. Eu pensava em fica, né [na cidade]. Mas eu pensava: eu vo deixar a mãe lá de baixo do barraco? Vô não, vô voltar também. Demoro para mim acostuma, heim (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

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Michel de Certeau, em, A invenção do cotidiano, nos fala da capacidade que

existe na ação humana em recriar no cotidiano práticas de vida que supram suas

necessidades e que busquem a concretização de sonhos. “Todo dia, pela manhã, aquilo que

assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver nesta ou

noutra condição, com esta fadiga, com este desejo” (1996, p. 31).

Assim, as famílias que se destinam a uma ocupação terra, assumem uma nova

condição de vida, o que certamente, desencadeará em novas dificuldades cotidianas. Essa

outra condição altera também o peso da vida e a dificuldade de viver.

Se estabelecer em áreas de ocupação não é tarefa fácil. A montagem dos

barracos se inicia logo na chegada das famílias, mesmo quando a ocupação ocorre no

período noturno. Antes, no entanto, se faz necessário a limpeza da área e a busca pelo

material necessário à construção dos barracos. A lona é artigo indispensável nas tralhas

que essas famílias levam ao acampamento, já os galhos, que dão suporte ao barraco são

buscados na área ocupada, em matas próximas. A existência de um local de onde se possa

tirar essa madeira é um condicionante do lugar aonde essas famílias irão se estabelecer.

Esses fatores são analisados pelos organizadores do acampamento antes mesmo da

ocupação.

Na chegada cada um começa a marcar seu espaço com as tralhas, sempre

procurando manter-se perto de vizinhos, amigos ou parentes que vieram juntos. São os

homens, geralmente, que vão buscar a madeira, as mulheres começam a organizar os

pertences que levaram e arrumar um lugar para o preparo da comida. Em alguns casos

chegam a pernoitar ao relento, principalmente as crianças, que dormem enquanto os pais

tentam organizar o novo abrigo. É comum nos acampamentos que as famílias, após acabar

a construção de seu barraco, comecem a montar outro para deixar pronto e acolher outra

família que vier a chegar.

Uma acampada, que naquele momento vivia por nove anos sob o barraco de

lona, mostrou-me suas fotografias enquanto narrava sua história de vida. Ao passar por

uma foto que registrava o início do acampamento Oito de Março, Edinéia analisa com

certo espanto: “nossa naquela época a gente nem sabia fazer barraco direito”:

Nois cheguemo oito de março, né... no amanhece do dia, tudo tranqüilo, entramo no pasto, tinha uma capoeira muito grande ali, já fomo carpindo e fizemo barraco, igual se viu aí nessa foto, nem barraco nois sabia faze, fizemo barraco e nois fiquemo por ali... (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Na imagem a seguir, em que dona Edinéia aparece com a família e outros

acampados, pode-se ver os barracos que depois de nove anos de despejos e reocupações a

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envergonham. As constantes mudanças, despejos e mesmo as intempéries naturais

ensinaram a esses sujeitos a construir barracos cada vez mais resistentes e funcionais,

muito embora sejam todos vulneráveis barracos de lona amarrados em estrutura feita de

galhos de árvores.

Figura 8: Primeiros barracos construídos no acampamento Oito de Março (1997). Foto cedida por Edinéia.

A forma improvisada dos primeiros barracos evidencia uma crença na

efemeridade desse percurso, o que na maior parte das vezes não se concretiza.

O ato de fazer e refazer os barracos levou a certo aprimoramento, alguns

barracos possuem divisão interna; espaço separado para a cozinha, os espaços de entrada e

saída diminuíram para que se possa fechar e evitar a entrada de ventos que os danificam,

encontra-se até barracos de chão batido esfregado com argila para dar um aspecto melhor;

e o aprimoramento mais importante: o revestimento interno do barraco com papelão ou

outro material que absorva a transpiração da lona com o orvalho durante as noites. Cada

vez que o barraco era refeito, algum aspecto era melhorado, como disse dona Edinéia:

“Agora até que sai uns barraco mais bem feito né, mais no começo batia um ventinho e já ia dirrubano tudo, meu veio num sabia faze... agora só sai memo se Deus quere!” (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

A imagem mostra ainda, na entrada do barraco, algo bem comum nos

acampamentos: os buracos feitos no chão para o preparo de alimentos. Os fogões também

aparecem em outros formatos, feitos de forma sobreposta ao chão como um fogão a lenha

tradicional, ou ainda feitos de latas de tinta com a parte interna revestida de cimento e uma

abertura para colocar a lenha.

As instalações desses sujeitos nesses espaços são feitas de forma vulnerável,

precária e provisória. Ao construírem seus barracos não sabem se ficarão um dia ou um

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ano, a instabilidade é constante. De muita coisa depende a mantença de seu barraco: chuva,

vento, polícia, juiz, delegado, fazendeiro, negociação, coordenador. Conquista de um

espaço definitivo? Em alguns casos.

Entre ficar e partir, entre ser assentado, ficar acampado ou voltar para trás,

esses sujeitos vão constituindo mecanismos para amenizar os problemas, facilitar a vida e

complementar a alimentação. Entre essas estratégias desatacam-se a plantação de pequenas

hortas e até mesmo pés de frutas, feijão, plantas medicinais e a criação de animais como

galinhas, porcos e mesmo algumas vacas de leite.

O cultivo de alguns itens para a alimentação é evidenciado em todas as

mobilizações. O fato de esses cultivos serem mais ou menos organizados, variado e

cuidado, depende da sensação de transitoriedade do momento vivido. No acampamento

Laguna Peru, com oito anos de existência, podia-se ver à volta dos barracos pés de

maracujá, de tomates, de boldo, que apresentavam certo tempo de existência. A criação de

vacas de leite dentro da fazenda pleiteada chegou a ser assunto de discussão na Ouvidoria

Agrária Estadual. A técnica usada para criação de galinhas nesse acampamento chama

atenção; como estavam acampados sob uma margem de rodovia não plana, os barracos

ficavam em uma espécie de barranco e nas paredes dessa elevação fizeram vários buracos

para as galinhas chocarem dentro.

Já nos acampamentos do MST, existe uma orientação para plantação de alguns

produtos de forma coletiva, mesmo que esses alimentos não cheguem se quer a serem

colhidos. Segundo um dos líderes do acampamento Oito de Março: “a plantação é uma

demonstração que o pessoal ta ali querendo realmente pega um lote pra sustenta sua

família”:

Então, a medida que chega no acampamento, a gente já sempre pede pra que o pessoal leve algum tipo de semente e que depois lá, começa planta. Mesmo que não colha, nós sempre trabalhamo que a colheita é realmente a conquista da terra. Independente se vai planta o milho, se vai colhe alguma espiga daquela ou não, é um processo que a conquista e a colheita, realmente, é a conquista da terra do lote (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Mais do que uma representação simbólica com o intuito de mostrar à sociedade

o desejo e a necessidade de cultivarem a terra, os produtos produzidos, mesmo que pouco e

sem diversificação, são usados na complementação da alimentação, já que as cestas básicas

fornecidas pelo governo eram esporádicas e insuficientes.

Ao analisar a representação da alimentação entre grupos de trabalhadores

assentados, Almeida conclui que:

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“comida é mais que comida como alimento [...] é fartura quando se tem para comer e para oferecer aos amigos, assim, é pela comida que necessariamente passam os laços de solidariedade” (2003, p. 308).

A solidariedade em relação à fome também é evidenciada entre os

trabalhadores acampados, em especial quando envolve crianças. É importante salientar, no

entanto, que ninguém ali tem muito que partilhar, tudo é racionado, quando algum

acampado possui algo para partilhar com famílias vizinhas, é comum que tenha vindo de

fora, oferecido por algum membro da família que não esteja nas mesmas condições.

Nesse sentido, o depoimento do senhor Celso revela uma das estratégias para

obter alimentação, experiência esta também narrada por outros acampados: Eu também quase não me preocupava que quando eu ia lá, no meu pai eu trazia café, eu trazia açúcar, trazia arroz, trazia feijão. Meu pai tinha o lotizinho, quem cuidava do lote era eu, aí eu saí, mas ele tinha condições, que ele já era aposentado, ele e a minha mãe... sempre tinha, então eles me ajudava (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

O pouco que conseguia, por solidariedade da família, também era partilhado

em momentos de extrema carência dentro do acampamento. Foi recorrente a referência aos

brasiguaios como os mais desprovidos, vinham do Paraguai sem nada, ou quase nada, e

raramente tinham a quem recorrer.

A imagem a seguir é bem típica da tentativa de diversificação e suplementação

alimentar nos acampamentos. Detentoras de uma tradição cultural camponesa, algumas

mulheres laçavam-se nas matas próximas em busca de produtos que pudessem servir de

alimentos. Na imagem em questão, duas mulheres do acampamento Oito de Março

aparecem preparando um jaracatiá, uma espécie de pé de mamão do mato, do qual é

produzido doce com a polpa do tronco da planta.

Figura 9: Mulheres do acampamento Oito de Março produzindo doce de vegetal encontrado na mata. Foto cedida por Claudinéia.

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No acampamento Oito de Março, devido à distância das cidades vizinhas,

havia um espécie de mercearia para vender produtos de forma a atender as necessidades

imediatas dos acampados. Alguns acampados relataram ter ficado até três meses sem sair

do acampamento, o que revela que o acampamento tinha uma estrutura mínima de maneira

a atender às necessidades básicas de sobrevivência, sobretudo, em relação à alimentação e

saúde.

Nos acampamentos de sem-terra, quando decidem plantar uma área, em

conjunto, o alimento é indiscutivelmente o feijão. Como já evidenciava Antônio Cândido,

em seu estudo de meados do século XX, sobre a dieta de trabalhadores camponeses, “o

feijão é o chefe da mesa” (2003, p. 170), é a base da alimentação, presente em todas as

refeições, quando não o único alimento.

Problemas de toda ordem são enfrentados nesses espaços, além dos problemas

comuns já evidenciados em comunidades pobres brasileiras, tais como: racionamento de

comida e água, falta de estrutura, de transporte e de educação, problemas de socialização,

pequenos furtos, entre outros; os sem-terras acampados enfrentam ainda uma série de

dificuldades específicas daquele espaço e daquela situação, como a distância, a ilegalidade,

a dês-socialização, o medo. São circunstâncias que determinam a forma de vida naquele

espaço e que conduzem suas ações cotidianas.

Entre essas redefinições de necessidades provenientes da situação vivenciada

está a criação de uma equipe de guarda. A presença da guarda é evidenciada em todos os

acampamentos analisados, principalmente nos períodos iniciais.

Logo na ocupação início é definida a equipe que ficará encarregada de vigiar o

acampamento durante a noite, enquanto os outros dormem, atividade que também é

mantida no período diurno no início do acampamento, quando os conflitos ainda estão se

desnudando. Pessoas ficam atentas para avisar aos acampados de qualquer movimentação

estranha, para que não sejam pegos desprevenidos com uma ação policial ou uma reação

do proprietário da fazenda. Assim ocorreu na tomada das armas dos policiais pelos

acampados, no acampamento Oito de Março, quando os vigias do acampamento avistaram

os policiais barrando outros sem-terras na estrada e comunicaram os acampados.

Em período em que não há risco de uma ação policial, como os momentos em

que estão acampados às margens da rodovia, essa guarda é mantida como prevenção à

ações de pistolagem e vandalismo. À margem da estrada, em um vulnerável barraco de

lonas, esses sujeitos estão a mercê de ações como furtos e depredações. O senhor João, que

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“tirava guarda” no acampamento Mambaré, lembra o quanto era inseguro dormir no

barraco sem ninguém para vigiar o acampamento:

É na bera de estrada, né? Passava muita gente de noite, podia um passa queima um barraco, rasga o barraco de alguém, de alguma família que tinha. Tinha muita família no barraco. Então a gente sempre cuidava dessas parte, né? De não passa um e corta um barraco ali, ou faze alguma malvadeza com uma pessoa que tava deitado, né? Então a gente tinha a parte da segurança a noite, de modo a cuida isso aí. Era sempre dois ou três pra cuidar (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

O ato de vigiar o acampamento, a guarda como é conhecido, revela ações de

solidariedade e organização, trata-se de um trabalho coletivo, exercido por um grupo de

pessoas que fica responsável em guardar, cuidar, vigiar, o acampamento como um todo, a

fim de oferecer às pessoas que dormem naquele espaço o mínimo de segurança para uma

noite de sono.

Nos primeiros dias de ocupação essas equipes se revezam e mantém prontidão

às 24 horas do dia. Os homens, mas também algumas mulheres, fazem as rondas armados

com foice e facões; as armas de fogo, embora existam, não são comuns. Os fogos de

artifício são estratégias usadas por essas equipes para assustar uma possível ação e chamar

a atenção dos acampados para algo que esteja acontecendo no acampamento.

Nos momentos de maiores indefinições é comum que mesmo os acampados

que não estejam de guarda durmam atentos. Claudinéia lembra que foram inúmeras as

vezes que foram acordados no meio da noite com alerta de possíveis invasões ou ação

policial. A ordem era levantar correndo, pegar uma foice ou facão e ir ao encontro aos

invasores.

Quando cheguei fiquei meia perdida, assim... Pra mim a gente tava indo pra algum lugar a passeio, né? Depois que a gente chego, que fico mesmo. Aí que a gente foi vê como que era o negócio. Às vezes você deitava pra dormi, quando você pensava que não tinha que sai correndo de noite, no escuro. Muitas vezes era a turma da fazenda que vinha meio querendo invadi o acampamento, e tal, o otras vez a polícia chegava e nois não podia dexá entra dentro do acampamento. Se eles entra eles pega força né? Então a gente não pode dexa entra dentro do acampamento. E então assim... tinha que saí correndo pegá uma coisa, um facão, qualquer coisa e saí (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

O fato de levantarem armados funciona como uma de estratégia para não

serem pegos desprevenidos e rendidos com facilidade. As foices e enxadas, usadas

emblematicamente pelos movimentos sociais de luta pela terra, em especial o MST, como

forma de expressar os anseios desses sujeitos por terra e trabalho, são também utilizados

como armas, de maneira a se imporem diante de ações mais violentas e instáveis. É

necessário, em caso de ameaça, que os acampados apareçam, imponham-se, para que

sejam vistos, a fim de evitar a entrada da polícia, o que dificultaria a resistência do grupo.

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Essas estratégias não têm caráter de combate, mas de prevenção, o fim não é o confronto,

mais sim impedir que ele ocorra. Uma tentativa de prevenir que o grupo não seja agredido,

despejado e que tenham os barracos e pertences destruídos.

É comum também, como forma de evitar um confronto mais direto, que as

mulheres e crianças venham na frente de qualquer embate ou negociação com a polícia.

Nesse sentido, Claudinéia conta como essa estratégia era acordada previamente:

“É, sempre no caso de polícia, algum juíz, alguma coisa que chegasse no acampamento, era sempre as mulher e as criança na frente. A gente era da frente, sabe? Mas dava tudo certo” (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Sobre a participação feminina nos conflitos sociais, Borges analisa como a

fragilidade feminina e a inocência infantil imprimem um ritmo próprio e tornam mais

sensíveis as leis. As mulheres, que carregam muito mais forças do que se costuma a elas

atribuírem, sabem tirar dessa subjugação os meios para enfrentar as leis e as ações

provenientes dela. “A lei diante das mulheres e das crianças tem um ritmo próprio, tem um

limite, adquire consciência, torna-se sensível” (1997, p.147).

A imagem a seguir registra um momento de protesto do acampamento Oito de

Março, os acampados em fila, na estrada de terra do acampamento, fazem uma barreira na

lateral da estrada paralela ao acampamento de modo que os veículos possam circular. As

mulheres, como comentou Claudinéia, vão à frente. Em destaque aparecem os

instrumentos de luta e trabalho: as foices.

Figura 10: Acampados do Oito de Março em dia de mobilização na estrada. Foto cedida por Edinéia.

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Nos acampamentos da FETAGRI, em que a presença de mulheres e crianças é

diminuta, essas estratégias se alteram um pouco, até mesmo porque, o enfrentamento não é

uma ação defendida por esse mediador. No entanto, vê-se que essa postura mais impositiva

do MST não se trata de uma ação que tencione um confronto direto, mas é uma forma de

imposição diante de formas de coação estatal. Ao armarem-se para defender uma resposta

política em detrimento de um despejo, esses sujeitos estão exigindo que sejam vistos e

reconhecidos como gente, como seres capazes de se organizar e de lutar por uma vida

digna e um espaço de trabalho e moradia.

Mas nem tudo são confrontos. Outra prática organizacional presente nesses

espaços é a construção de barracões comunitários, destinados a reuniões e assembléias

entre acampados. Esses barracões, construídos na mesma estrutura dos barracos de

moradia, são ambientes usados para socialização. Além de sediar as assembléias, esses são

espaços para interação, festas, celebração religiosa, missas, cultos, bailes, reuniões de

grupos e setores, receber representantes de órgãos governamentais ou sindicais. À luz de

lampião, esse local se torna a atração do acampamento, com festas que vão desde

comemoração de dias santos ou de alguma conquista, apresentação das místicas nos

acampamentos do MST, à bailes para o público mais jovem. Festas e comemorações

ocorrem com mais freqüências nos períodos iniciais do acampamento e em organizações

maiores. Nos acampamentos menores, com menos pessoas envolvidas, os barracões

comunitários, além de serem usados para as reuniões, são espaços onde os acampados

conversam no fim da tarde, fazem rodas de tereré e chimarão, carteado, ouvem rádio,

fazerem fogueiras para aquecer do frio, abrigam a equipe de guarda durante a noite, entre

outras utilizações.

É importante salientar, que embora tenha observado a existência de

manifestações culturais, momentos de socialização e rituais religiosos, nos acampamentos

da FETAGRI e CUT, festas e bailes não são práticas comuns, inclusive constava no

Regimento Interno do acampamento Laguna Peru como uma proibição passível até mesmo

de expulsão.

No acampamento Oito de Março que contou, em determinado tempo, com mais

ou menos sete mil pessoas, as assembléias eram feitas fora dos barracões, isso porque não

havia estrutura coberta que pudesse abrigar a todos. Com o megafone, ou fogos de

artifício, as famílias eram convocadas a se reunirem em um ponto já previamente

estabelecido; o local era marcado com um mastro improvisado (um grande galho de árvore

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fincado ao chão) no qual se hasteava a bandeira do Movimento para que as pessoas

pudessem visualizá-la de longe.

Figura 11: Dia de assembléia no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Nair.

A figura 11 mostra uma dessas assembléias. Sob o sol forte, as famílias se

reuniram-se em volta do ponto de referência para ouvir aos comunicados. Quando havia

chamado para assembléia ninguém ficava no barraco, todos participavam das reuniões,

homens, mulheres, idosos e crianças.

As diversas formas de utilização dos barracões comunitários depende da

organização, das necessidades e das perspectivas desses grupos. Mas uma coisa eles têm

em comum: são pontos de referência a todo tipo de necessidade; é para ele que os

acampados se dirigem quando necessitam de remédio, alimentação, lona, informação,

também quando querem encontrar uma liderança ou um amigo, quando precisam fazer

uma reclamação ou queixa, trazer ou enviar uma encomenda, conversar, pegar uma carona,

entrar e sair do acampamento. Os barracões são também porta de chegada, local de

recepção, é a ele que padres, pastores, políticos, imprensa, pesquisadores e a sociedade

cível em geral dirigem-se quando chegam ao acampamento.

No início do acampamento Oito de Março ocorriam festas com freqüência no

barracão comunitário, o número de jovens era considerável e fazia-se necessário um

momento de lazer para que esse público permanecesse acampado naquele espaço. Além

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das iniciativas dos coordenadores, que percebiam essa situação, os próprios jovens se

organizavam para que esses momentos ocorressem.

Para não deixar o “desanimo bater”, esses jovens se unem, fazem brincadeiras,

cantam, tocam violão, dançam, fazem bailes e festas. Claudinéia, que foi para o

acampamento com 13 anos de idade, diz sentir saudades das brincadeiras que faziam no

início do acampamento:

De primeiro tinha todo sábado, eles fazia baile. Fazia um bailinho, fazia essas apresentação, pra anima o povo. Porque tem tempo assim que anda meio desanimado, né? Muitos anos acampado e tal, da um desânimo. Na época do Oito de Março já era bem mais animado do que é agora. Na volta do dia, assim... não sei se é porque a gente tava meio alongado no mato, sempre tinha... Na volta do dia assim tinha brincadeira com os jovens. Inventava vários tipos de coisa pra anima. Se ficasse parado e fosse pensa só no que tinha pra vim, desanimava tudo. Aí sempre inventava assim alguma coisa pra distraí as pessoa. Era bem gostoso... vichi... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

A animação da “volta do dia” foi suprimida pelo descrédito após dez anos de

acampamento. Mesmo enfrentando todos os conflitos da mudança para o barraco de lona e

as dificuldades de adaptação nos períodos iniciais, esses sujeitos experimentam certa

euforia na chegada. O fato de não ver concretizado os sonhos que os deslocaram àquele

espaço vai gradativamente acabando com as esperanças, os projetos, as alegrias, os

motivos de festejar e comemorar. A própria organização do acampamento vai se

esmorecendo, assim como a sensação de transitoriedade de vivencia naquele espaço.

As festas, às vezes, também traziam alguns transtornos. Pessoas embriagadas,

brigas e até um caso de assassinato durante um baile foi registrado no acampamento Oito

de Março. O senhor Celso lembra que, apesar de tranqüilo, “de vez em quando saia alguma

espeloteada” no acampamento.

Farias analisa os momentos de festas dos acampamentos como formas de

contraposição à anomia, é uma maneira de ocupar o tempo livre, de recriar as relações de

sociabilidade, de entreter-se e divertir-se para superar as insatisfações, as carências, os

medos e as incertezas (2002, p. 130).

A imagem seguinte marca um momento de festa e descontração, uma

comemoração religiosa que contou também com a tradicional quadrilha. As pessoas

caracterizadas e as bandeirinhas feitas de jornais marcam a temática da festa de São João

ocorrida no acampamento Oito de Março.

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Figura 12: Festa Junina no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Nair.

Além das festas outros momentos de lazer eram preservados, como as partidas

de futebol em campo improvisado, principalmente aos sábados e domingos, jogos de cartas

aos finais de tarde, as rodas de tereré e chimarão. A religiosidade expressa-se pelas missas,

cultos, terços e novenas, nas figuras e imagens de santos nas paredes dos barracos, em

alguns casos até mesmo com celebrações de casamentos e batizados.

Os pequenos bares, inclusive com mesa de sinuca, foram tipos de

estabelecimentos verificados no acampamento Oito de Março, um espaço dedicado

especialmente aos homens para a parada na “volta do dia”, onde tomam um trago de

cachaça, falam da vida e encontram os outros acampados.

As maneiras de descontração e de socialização variam de acordo com a

estrutura do acampamento. Nos acampamentos Mambaré e Laguna Peru, que ficavam na

BR-163, de fácil acesso, próximos aos centros urbanos (cerca de 8 km), com linha de

ônibus diariamente e que tinham número reduzido de mulheres e crianças era comum que

os finais de semana ficassem destinados ao encontro do marido com a esposa e os filhos.

Muitas vezes, a esposa ia ao acampamento com os filhos nesse período, era o momento de

lavar a roupa do marido, contribuir na organização do barraco, unir a família. Em outros

casos, quando o homem não tinha trabalho ou fazia apenas algumas diárias, costumava-se

passar a semana no barraco e voltar para a casa nos finais de semana.

Nesses casos, as necessidades eram diferentes das necessidades existentes no

acampamento Oito de Março, em que as famílias ficaram acampadas em uma área que a

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saída era uma estrada de chão batido, sem linha de ônibus, com núcleos urbanos longes.

Alguns acampados chegaram a ficar três meses sem ir à cidade, houve assim, a necessidade

de se criar mecanismos para resolver problemas emergenciais por ali mesmo.

Nos acampamentos Laguna Peru e Pedro Ramalho, as crianças em idade

escolar foram atendidas pelo transporte municipal de alunos, que pegava as crianças do

acampamento quando iam buscar alunos de área rural. Em poucos dias essa negociação foi

acertada com as prefeituras e as crianças em idade escolar dos acampamentos puderam

estudar.

Já no acampamento Oito de Março, essa negociação foi mais demorada e

onerosa, tendo em vista o número de alunos, a distância e as condições das estradas. Um

ônibus passou a pernoitar no acampamento, saía de madrugada para a cidade de Itaquiraí e

retornava às 16:00 horas. Nele, prioritariamente, iam as crianças que cursavam entre 5º e 8º

série; aos menores, que cursavam entre 1º e 4 série foi construída uma escola dentro do

acampamento, com professores acampados, alguns passaram a ser remunerados pela

prefeitura municipal.

A imagem a seguir mostra uma escola em construção, que foi feita ao modelo

dos barracos de lonas e com duas salas de aula. Para atuar como formadores, havia três

professores e a diretora. A escola atendia toda a população entre 1º e 4º série do

acampamento. Havia ainda professores voluntários, como a Claudinéia, que com 13 anos

de idade e apenas iniciado a 5º série do ensino fundamental, passou a trabalhar com as

crianças do acampamento na pequena escola improvisada.

Figura 13: Construção da escola no acampamento Oito de Março. Foto cedida por Claudinéia.

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Como o acampamento existiu por um período longo, essa situação foi alterada

em determinados momentos. Houve momentos em as crianças não puderam freqüentar a

escola, como no período inicial de ocupação. Em determinado tempo existiu a educação

pré-escolar, em outros não, assim como também a alfabetização de jovens e adultos.

Com o assentamento de 334 famílias na fazenda Santa Rosa/Guaçu, que ficava

próxima ao acampamento e que ocorreu pouco mais de um ano após o início dessa luta, os

alunos a partir da 5º série passaram a estudar na escola do assentamento, que oferecia um

pouco mais de estrutura, professores capacitados, material didático e alimentação

adequada. As crianças de 1º a 4º série continuaram estudando no acampamento.

A construção da escola não aconteceu logo no início do acampamento, antes,

tentou-se visualizar as perspectivas de negociação quanto ao assentamento das famílias, só

então, quando desocuparam a área e foram para rodovia é que a escola foi construída. As

lideranças buscaram apoio junto à prefeitura municipal de Itaquiraí para o fornecimento de

merenda escolar, algum material didático e remuneração de professores.

O momento de construção desse espaço envolveu um trabalho comunitário, a

limpeza da área, a busca por material necessário, a arquitetura da construção, a definição

do local, tudo foi feito pelos acampados que eram observados com grande expectativa

pelas crianças. Voltar a estudar significava mais que aprender a ler e a escrever para essas

crianças, era um espaço de resocialização, de encontros, de um reencontro com a vida que

deixaram para trás.

No entanto, nem todos tiveram essa oportunidade. Foi comum, com a mudança

de realidade, muitos deixarem de freqüentar a escola, principalmente os jovens e

adolescentes que teriam que se descolar até a cidade. Claudinéia, que era do setor de

educação do acampamento, que trabalhou na pré-escola e na alfabetização de adultos, não

pode concluir a 5º série que havia iniciado na cidade antes de ir ao acampamento. Quando

mudaram-se para o acampamento, o pai proibiu as duas filhas adolescentes de retornar a

escola. Claudinéia casou-se com 15 anos, a irmã com 16, tiveram filhos e nunca mais

voltaram a estudar. Aí depois começo as aulas. Tinha que estuda, tava mocinha meu pai não quis deixar, e tal. Aí quando nos fomo mesmo pra BR, ali, aí surgiu uma escolinha no acampamento, né?. Aí como eu tinha terminado a 4º série e ia faze a 5º. Aí eu falei assim: eu vo estuda a 4º série, o pai não deixa eu ir para cidade mesmo. Aí fui um dia na 4º série. Aí a professora falou assim: ah... Claudinéia, você não que ajudá a gente no pré? Eu falei assim: eu vô, não tenho bem prática né? Aí fui acho que uns três meses junto com ela. Daí seis mês eu dei aula pro pré ali, a mulher sumiu e eu fiquei sozinha, sem ganha nada [...] Depois a gente viemos para cá, depois fomo pra Santa Rosa, aí eu comecei a da aula pra 1º série. E você nunca mais estudou?

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Não, nunca mais estudei. Continuei dando aula, depois parei também, depois resolvemo ir embora de novo. E no final acabamos ficando, e tamo aí até hoje. Aí agora, sempre pensei em estudar, mas quando interei 15 anos eu fugi, né? Aí casei. Com 15 anos eu fui mora no barraco dele, aí com 16 anos tive o outro menino meu aqui tem cinco anos. Aí mudo tudo... mãe, né? começa a muda tudo? (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Impedida pelo pai de ir à cidade estudar, Claudinéia resolveu regredir no ano

escolar e freqüentar a 4º série do ensino fundamental, educação que era oferecida dentro do

acampamento. Como saiu-se bem foi convidada a colaborar na alfabetização de crianças

em idade pré-escolar. O trabalho no setor de educação do acampamento contribuiu para a

inserção de Claudinéia naquele espaço. Como não podia retornar o processo educacional

que havia começado na cidade, passou a colaborar na educação de crianças, o que lhe

garantia um contato com aquele mundo, mesmo não dando continuidade aos estudos.

No MST, mais do que atender às necessidades imediatas do período de

acampamento, oferecer escola às crianças que estão naquele espaço de transição, e que

poderiam não dar continuidade aos estudos, faz parte de uma proposta pedagógica do

Movimento. É na práxis, na relação entre teoria e prática, que esses grupos trabalham na

educação de um cidadão mais crítico e consciente. É com o propósito de formar um

cidadão Sem Terra (com letra maiúscula e sem hífen), que essas escolas são organizadas

em cada acampamento e passam a oferecer aos alunos uma nova forma de ver o mundo, a

sociedade e a luta39.

Estudar, jogar bola, brincar na terra e nas árvores, buscar água e lenha, cuidar

dos irmãos pequenos são atividades que fazem parte do mundo infantil nos acampamentos.

O estudo, na maior parte dos casos, fica restrito ao ambiente escolar.

A vida à margem das estradas oferece riscos, sobretudo aos pequenos, que

entre brincadeiras e necessidade de locomoção cruzam as rodovias, correndo o risco de

serem atingidos por carros que trafegam em alta velocidade. Foi o que ocorreu com o filho

caçula de dona Eleonora, acampada no Laguna Peru. Aos sete anos de idade o menino foi

atropelado quando atravessava a rodovia, o garoto teve a face desfigurada e ficou internado

cerca de seis meses, na cidade de Dourados, para se recuperar.

Um carro que pego ele ali, e... foi feio acidente dele, pego só o rosto dele. Hora que bateu pego o rosto, foi sete fratura. Acabou com o rosto do menino. Ta vivo por Deus memo, porque Deus é pai. O que eu sofri já aqui também, hum... foi bastante. O Deus pai! Ele se recuperou, mais só que levo, óia foi uns seis mês ele teve pra lá [Dourados] Dentro desse seis mês eu ficava mais lá com ele do que aqui, que as vez eu vinha e ficava uma semana, as vezes quinze dia (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

39 As escolas mantidas pelo MST foram o assunto explorado por CALDART (2002). Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola.

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Dona Eleonora lembra entristecida do acidente que marcou a vida e a face do

filho, na data da entrevista, aos nove anos, o garoto ainda carregava as profundas marcas

que certamente o acompanharão pela vida toda. Ainda assim a mãe agradece a Deus por ter

preservado a vida do filho. O acidente mudou a rotina da família, a mãe passou a

permanecer longos períodos na cidade de Dourados, longe do barraco e dos outros filhos

que passaram a ser cuidados pela irmã mais velha, uma adolescente de 16 anos.

Inúmeros acidentes foram registrados entre os três acampamentos. Além da

desatenção das crianças, atitude típica nas ações infantis, registra-se também a imprudência

dos motoristas que cruzam esses espaços em altíssimas velocidades. No acampamento

Pedro Ramalho houve a morte de uma acampada em dia de pedágio na rodovia. Em atitude

de descaso e imprudência, o motorista não parou o veículo no pedágio e atropelou uma

acampada que veio a falecer.

Mais foi muito difícil, na bera de uma BR, caminhão quase caindo por cima de nós, né? Teve vários acidente na frente do, do acampamento, morreu gente. É... gente que desvio né? Que saiu e morreu perto de nós. Então num foi... num foi bom não (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.2006).

A vida sob o barraco de lona, à margem da rodovia, é atormentado pela

insegurança, principalmente em estradas de grande trafego, como a BR-163, onde o

trânsito de caminhões, ônibus e carretas é intenso.

O senhor Antônio, ao recordar da vida à margem da rodovia, onde os

caminhões pareciam cair sobre eles, relembra dos vários acidentes que presenciou,

inclusive com mortes. A lembrança que carrega é de que “não foi um período bom”, as

dificuldades cotidianas eram agravadas quando fatalidades como essa ocorriam. Mesmo

vivendo a iminência constante de um acidente, esses eram momentos que os riscos e as

dificuldades da vida sob o barraco de lonas, às margens das estradas, desnudavam-se.

Outras necessidades oriundas do espaço improvisado do acampamento são a

busca pela água, por condições mínimas de higiene e sanitárias.

A fonte de água utilizada depende da localização do acampamento e também

de sua capacidade de organização. Quando não há um rio que possa abastecer as famílias

com água suficiente para atividades básicas, é comum que se façam poços. São poços

improvisados, rasos, mas que geralmente abastecem mais que uma família; um poço pode

atender três, cinco, dez famílias, depende da proximidade, do companheirismo, do volume

de água.

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As minas de água são de muito valor para a lavagem de roupas e banhos, assim

como para atividades corriqueiras e necessidades básicas, como o preparo de alimentos, a

limpeza das louças e mesmo para beber.

Figura 14: Acampados lavando roupas no rio. Foto cedida por Nair.

A imagem acima registra um momento em que acontece a lavagem da roupa no

acampamento Oito de Março, além de mulheres, as crianças e os homens também

colaboram na tarefa. No momento de registro da fotografia já havia sido criado uma

vereda, um caminho estreito marcando no chão o trajeto feito por esses sujeitos entre o

barraco e o córrego. Aos homens cabe, quando possível, a tarefa de ajudar no transporte

das roupas e de baldes de água até o barraco.

O senhor João, hoje assentado, lembra que fechou muitos poços em seu lote, já

que a área onde foi assentado é parte de onde estava montado o acampamento Mambaré.

Nesses espaços o racionamento de água é comum em qualquer situação,

independente da fonte ser rio ou poço e a água usada para beber é consumida diretamente

sem nenhum tratamento. A expressão deste racionamento está presente na fala dos

entrevistados, o fato de não desperdiçar, de que “a água dava bem se não esbanjasse”, é

bem comum nas lembranças desses sujeitos que vivem (ou viveram) em um espaço onde

tudo é racionado, exceto a esperança.

Água pegava na mina no rio. Tinha uma mina, uma mina muito boa lá. Tinha o rio também pra nós lava ropa. Um riozinho assim... que dava pra se virá bem, com bastante água, não de desperdiça (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

A concepção da construção dos barracos leva em consideração a utilização da

água. De forma independente, mas contígua ao barraco, constrói-se uma espécie de área,

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com uma bancada de madeira que é usada para lavar louças e preparar algum alimento. A

água que cai dessa bancada é desviada por valetas, as quais levam-na a hortas, plantas, ou

mesmo a um buraco, uma espécie de fossa, que capta a água e evita que ela se espalhe pelo

acampamento. A imagem a seguir é bem típica dessa construção, os galões usados para

buscar água estão sob a bancada usada para a limpeza das louças e as valas ficam bastante

evidentes:

Figura 15: Criança acampada em frente aos barracos do acampamento Oito de Março. Foto cedida por

Claudinéia.

Muito precárias também são as condições sanitárias. Os mictórios são

pequenos cercados de lona, quase sempre sem cobertura, com uma abertura no chão, uma

espécie de fossa. Essas instalações são usadas de forma comunitária, com distinção entre

feminino e masculino e localizadas com certa distância dos barracos. Para o banho, quando

não são tomados nos rios, existem outros cercados, construídos na mesma estrutura, só que

mais próximos aos barracos e usados individualmente por cada família.

Dona Leonice descreve com detalhes como essas instalações são construídas.

Nice, como é conhecida, já mostrou em outros momentos o poder de descrever com

detalhes aquilo que permeia sua vida. Sua narração é minuciosa, com gestos e articulações

remete nossa imaginação ao que descreve.

Os mictórios tinha do homem e da mulher, tinha vamo supô um grupo de vinte família, então tinha quatro mictório, dois pra muié e dois pros home, entendeu? E pra tomar banho? Pra tomar banho eles fazia sempre perto do barraco quem fosse tomar banho... cada qual no seu barraco. Aí quem quisesse tomava banho na represa, tomava banho lá, lavava a roupa e já vinha outro. Eles fazia o banheiro assim, já encostado no barraco, entendeu? Eles fazia o banheiro e ponhava madeira rachada qui encima, entendeu? Pra pisa. E aqui em baixo ele fazia uma bica no fundo, uma valeta, entendeu? E aqui assim, ele fazia um

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buraco, entendeu? Pra água aqui do banheiro corre em baixo pra ninguém pisa em riba da água. Então a água descia, ia direto dento da fossa, uma fossinha lá (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

A estrutura, aparentemente simples, requer alguns cuidados. Tábuas são

colocadas ao chão para se tomar banhos sem pisar diretamente na terra. Uma pequena

distância entre as tábuas é mantida de forma que a água possa escoar, sob as madeiras a

cavidade conduz a água a uma valeta que a escoa sem fazer barro ou deixar água parada no

meio do acampamento.

Para manter a ordem e o mínimo de sanidade no local, uma equipe era

destinada a orientar os acampados quanto ao destino da água que era descartada, do lixo,

dos restos de capinagem, e das construções de fossas. No acampamento Oito de Março

esse grupo era chamado de equipe de higiene, essa atividade também foi registrada nos

dois outros grupos, embora no acampamento Laguna Peru ela tenha existido somente no

início.

Dona Leonice, do acampamento Oito de Março, conta como era exercida a

atividade da equipe de higiene:

Quando aquela fossa tava querendo subi, aí já tinha a equipe da higiene que passava todo final de semana corrigindo a questão da água que sobra da loça, que corria. O que não tinha fossa era mandado faze pra não junta mosca, num junta coiseira entendeu? A água da... a água da fossa do banheiro tudinho... todo final de semana tinha a equipe que já fazia uma fiscalização, entendeu? No acampamento em peso, alí juntava... se era vinte da higiene, era os vinte que andava tudinho pra vê como é que ta a questão da higiene. Pro lixo era feito um buraco, era enterrado, não era pra joga. Se carpia já jogava dento dum barraco pra dexa meio limpo, aquele lixo não era pra deixa ali de qualquer jeito, era pra faze uma fossa e joga (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

No acampamento Mambaré, os ex-acampados também destacam a necessidade

de orientação quanto a questões de higiene, o destino correto do lixo e água já utilizados,

visando a manutenção de um espaço que oferecesse condições mínimas de habitação: “Os

coordenador cuidava sobre a higiene do acampamento, se deixa bagunçado e não tive

quem domina daí o acampamento vira uma bagunça” (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

As condições precárias de sobrevivência, mesmo existindo a tentativa de

organização e higiene, acarretam também muitos problemas de saúde. O lixo exposto, a

água parada, a má alimentação, a exposição ao sol e ao frio intenso associados ao difícil

acesso a atendimento médico e medicamentos provocam doenças, principalmente nas

crianças, que com sistema imunológico mais frágil, ficam mais vulneráveis a contrair e

desenvolver doenças.

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Quando o acampamento é montado com um grande número de trabalhadores,

como ocorreu com o acampamento Oito de Março, os postos de saúde com atendimento

médico financiado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) se limitam a atender as famílias

que comprovam moradia no município, com a alegação de não poderem atender a uma

demanda maior que o habitual de forma repentina; para as outras famílias, porém, há de se

travar uma batalha para que seja disponibilizado atendimento médico.

No acampamento Oito de maço existia um veículo de uso exclusivo do setor de

saúde para atender casos emergenciais, como gestantes em trabalho de parto, acidentes,

fraturas, crianças com febre alta, entre outros casos. A manutenção do combustível desse

veículo, no entanto, era tema de discussão e até de mobilização. O grupo não dispunha de

recursos para manter o veículo abastecido e como não podia ficar sem combustível,

tentaram apoio da prefeitura municipal, o que não foi atendido.

Um pouco dessa história é narrada por dona Leonice, ao recordar que, apesar

do setor de saúde dispor de um veículo (uma Rural), ele nem sempre era suficiente, já que

eram muitos acampados e, conseqüentemente, a demanda também.

Nós fez pedágio por questão da necessidade dentro do acampamento. Questão do medicamento, questão... pra comprar gasolina, a prefeitura não daria gasolina pra desloca um duente até lá na cidade. Então tinha que se na base do transporte ali de dentro, usa alguém que tivesse um transporte. A gente toda vida teve, mas um só tem hora que não dá pra muita gente tem que te mais, teve momento que nóis teve na BR que pará carro pra pude manda mulher pra te criança, teve criança quase dentro dos carro, entendeu? Por questão a prefeitura do município não cedia, porque eles falaram que não tinha medicamento, nós não era registrado no município, então não vinha o remédio, que se desse remédio pra nós, no caso, faltava pro município... (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Dos acampados do Oito de Março são comuns as histórias da necessidade de ir

à rodovia fazer barreira e praticamente obrigar os motoristas a levarem mulheres em

trabalho de parto, doentes e pessoas com fraturas para o hospital público municipal.

Mesmo nos outros casos, em que o acampamento ficava cerca de oito km da

cidade, a questão da saúde era uma das mais precárias. Em casos de emergência, os

acampados dependiam sempre da hipotética existência de um veículo no acampamento,

quando não se encontrava ninguém, a saída era esperar um ônibus de linha ou interceptar

veículos que trafegavam na rodovia. Dona Eleonora, que até a data da entrevista morava no

acampamento Laguna Peru, queixava-se, assim como os outros acampados, das

dificuldades em passar por uma consulta médica nos postos de saúde da cidade, tendo em

vista as precárias condições financeiras e de deslocamento. Além do dinheiro da passagem,

de que nem sempre dispunham, os horários de ônibus não lhes dava condições de chegar

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em tempo hábil de conseguir as distribuições de fichas, tinham que sair durante a noite ou

ir um dia antes para agendar a consulta.

Tudo na cidade, tudo, tudo. E agora inclusive, aqui ta difícil até pra gente ir. Porque quando vai... pra nóis aqui, o ônibus que leva as crianças de manhã não é, a escolar não leva mais a gente né? Caroneiro não vela mais. Se a gente vai, tem que marcar, se precisa de uma consulta tem que marca de um dia pra outro, porque tem o ônibus direto, mais quando a gente pega ele, já pega sete e meia, chega e já não alcança mais ficha (ELEONORA, Entrevista, 11.10.2006).

Em um espaço em que tudo é racionado e a vida levada com muita dificuldade,

o deslocamento por oito km se torna um empecilho, assim também o agendamento médico,

pois se houvesse recursos, esse agendamento poderia ser feito por telefone. Como

mencionou dona Eleonora, em alguns momentos esse transporte podia ser feito pelo ônibus

de estudantes, mas nem sempre isso era permitido.

A problemática de questões relacionadas à saúde vai além do atendimento

médico em si e está relacionada às precárias condições de vida e moradia encontradas

naqueles espaços. A má alimentação é refletida pelas crianças visivelmente desnutridas, os

adultos em geral apresentam corpos magros e esguios. A obesidade, doença que atinge

cada vez mais a população mundial, que apesar de ser considerado um problema de saúde

está relacionada a uma alimentação exagerada e incorreta, é raramente evidenciada nos

espaços do acampamento.

Assim como a maioria das crianças, os dois filhos que Claudinéia teve no

acampamento passaram por problemas de saúde. Anemia, vermes, gripes e outras doenças

virais são, talvez, os problemas mais comuns, problemas estes que poderiam ser facilmente

evitados ou combatidos se dispusessem de tratamento adequado e espaço digno de

moradia. O outro menino meu, o maior, quando tava com oito meses, ele tomo sangue, teve anemia profunda, tava virando água o sangue dele já. Daí ele teve que toma sangue. A anemia dele combateu um poco. Agora esse daqui quando nasceu o exame do pesinho dele deu alterado, uma espécie de anemia também. Agora ele tem uma hérnia no umbigo, agora vai te que operá. Comecei meche em Naviraí, mas como a gente é de outro município eles fica meio resabiado. Se fica doente, assim, a gente tem que se virá do bolso, sem tem que saí... (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Nos espaços dos acampamentos, enfermidades de fácil combate ou prevenção

podem se tornar doenças graves. Claudinéia conta que a anemia do filho se agravou e só

pode ser combatida com recebimento de sangue. O resultado do Teste do Pesinho do filho

menor apresentou alterações, isso tudo por uma completa falta de acompanhamento

médico pré-natal e por um período gestacional com alimentação racionada e

desequilibrada, vivenciado em local insalubre e com ausência de água potável.

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No acampamento, lugar no qual somente o estritamente necessário à

sobrevivência é almejado, tratamentos odontológicos e oftalmológicos são questões

relegadas a segundo plano, se não suprimidas. É comum pessoas, ainda muito jovens,

desdentadas e crianças com cáries aparentes que certamente comprometerão a dentição

adulta. Além das dificuldades de se obter esse tipo de tratamento, principalmente o

odontológico, que demanda tempo e deslocamento, há também questões culturais

envolvidas nesse descaso com a saúde bucal e oftalmológica, esses sujeitos vivem em

situações limites da vida humana, situação em que esses cuidados não são prioridades.

Nesse tempo/espaço, entendido aqui como um momento de transitoriedade, são

encontradas dificuldades de todas as ordens: alimentação, saúde, educação, moradia; a

espera e a esperança são marcas desse processo. O cotidiano nos acampamentos é marcado

pelas faltas, por limitações e privações. A privacidade é algo que não existe, quando vive-

se em um vulnerável barraco de lona que acaba onde o outro começa.

A falta de privacidade e de um lugar com limitações específicas acabam por

aflorar uma série de conflitos entre os acampados, conflitos que não são específicos do

espaço/tempo de lutas, mas decorrentes de quaisquer relações sociais, de vizinhança e

amizades. Como falou o senhor João: “Muitas vezes dava muito conflito do povo mesmo

dentro do acampamento, muita confusão. Sempre. Isso todo lugar tem, né?”. Como em

todo lugar, havia de se enfrentar os conflitos do cotidiano, as desavenças, os desafetos e

isso ainda estava associado a todas as dificuldades daquele espaço e às carências materiais.

Quando se estabelecem no acampamento, os trabalhadores procuram se manter

próximos a amigos, vizinhos e até mesmo parentes que vieram juntos, mas também passam

a conviver com outros grupos, outras pessoas e acabam se tornando vizinhos, amigos,

compadres, e em alguns casos, criam inimigos e desafetos.

Brigas entre vizinhos não são incomuns, o viver “embolado”, faz com que

muitos ultrapassem os limites de seu espaço simbolicamente definido e invadam o

espaço/vida dos outros acampados. Os barracos, dependendo da mobilização, mantêm

distâncias que vão de 1m até cerca de 10/15m uns dos outros, em alguns barracos, uma

cerca com galhos de árvores é erguida para delimitar os espaços. Na maioria dos casos,

porém, o que os acampados têm mesmo de particular é o espaço interno do barraco. Sempre dá algum probleminha a modo de criança... mais graças a Deus... isso é coisa de criança, né? Tem hora que a gente se enfeza, mais Deus dá força e coragem pra gente, né?! Nois mora tudo embolado, os barraco quase um em cima do outro. Criança é o que tem, mais isso não me ofende não! A senhora lembra se existiu furto, ou algum tipo de violência? Tinha bastante, no tempo nosso tinha bastante! Eles robava dentro do acampamento, só que esses que

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robava ia embora né, e vai até hoje... são expulso (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Os problemas de socialização vão além dos conflitos domésticos, das disputas por espaço, das desavenças envolvendo crianças, animais, mas também se estende a problemas como alcoolismo, embriaguez e até mesmo crimes como furto, venda e uso de entorpecentes, violência doméstica e sexual. Com exceção dos furtos, os outros crimes são mais evidenciados em mobilizações maiores, até mesmo por questão de proporção. Dona Leonice conta como agiam para punir e coibir esse tipo de atitude ilícita que poderia depreciar a luta e desarticular o grupo:

Nós trocemo um punhado de droga que peguemo, que a segurança pego fumano e esse então foi expulso. Expulsaro. Robo, pego, comprovo: fora! Estupro, pego, comprovo: fora! Estupro não me alembro não, agora de droga e robo, i... foi muitos embora expulso. Fazia uma assembléia: o fulano aqui, ou quem que vai embora... A discussão já vinha lá da base que nóis não aceitava, então nós não queremo mesmo, lá de onde eles vieram já sabia que nós não queremo, foi discutido lá que não era pa tê. Então não era pa tê (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Embora essas ações e delitos praticados não sejam específicos desse espaço, as formas de conduzir esse processo são bem particulares. Desde o trabalho de base já se esclarecia que esse tipo de atitude não seria tolerada e os infratores expulsos do acampamento. “Robo, pego, comprovo: fora!” A pena a pequenos crimes era a expulsão do acampamento após a comprovação do delito. Nesse espaço parece também vigorar o princípio da presunção da inocência, já que ninguém deveria ser indevidamente punido e a expulsão estava associada ao flagrante (“pegou”) ou a comprovação real dos fatos. O acampamento é um ambiente, que embora carregue a representação e a estrutura física de transitoriedade, traz uma série de mecanismos e estruturas que poderiam dar ares de uma nova forma de organização social, mas não é o caso, tendo em vista às expectativas dos acampados na busca por um novo lugar. Como muitas vezes essa situação perdura por vários anos, novas formas de suprir as necessidades para se manterem na luta são desenvolvidas. Segundo Borges:

A sabedoria da pobreza, como diria Milton Santos, expressa a criatividade de homens e mulheres que a vida e o mundo do trabalho impõem, mas também frente à festa, à alegria. Não são os lutadores exclusivamente à fazer brotar essa energia. Podem sim, alimentá-la, desde que dela se alimentem (2004, p. 275).

A luta pela sobrevivência nesse espaço acaba tomando uma conotação de politização. À luz do que poderíamos chamar, pelas contribuições de Thompson, de uma cultura de resistência, as improvisações cotidianas podem ser vistas como expressões de resistências. Na luta diária por se manter naquele espaço de carências e vencer a anomia, esses sujeitos reelaboram a vida, reinventam a luta e redefinem um sentido político de vida e cotidiano.

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4.3 Trabalho, organização e relações de poder nos acampamentos

...a verdade não existe fora do poder ou sem poder

Foucault

Mesmo tratando-se de um espaço tão vulnerável e transitório como os

acampamentos rurais, esse espaço necessita de organização, estruturação e regras, o que

implica em dissimetrias, em hierarquização. Embora toda noção de poder carregue sua

arbitrariedade e haja poder em todas as relações, independente de estar institucionalizado,

analiso as relações de poder estabelecidas nos acampamentos a partir da noção definida por

Foucault, para quem o poder é também uma rede produtiva e que atravessa todo corpo

social; ele não pesa só como uma força impositiva, mas induz ao prazer, a saberes e produz

discurso (1979, p. 08).

As relações dissimétricas nos acampamentos são bastantes variáveis. De uma

forma geral, se existe arbitrariedade, existe também uma tentativa de democratização, de

interação social do grupo; o que nem sempre é possível, tendo em vista que um

determinado grupo sempre se impõe e acaba tomando para si a frente das decisões. Os

sujeitos dos acampamentos exercem um determinado poder, mas estão também sempre

sujeitos a sofrer sua ação.

Nos grupos do MST, por exemplo, as ocupações são articuladas por membros

da direção do Movimento, que são sempre (pelo menos nos casos analisados) oriundos da

luta pela terra. Depois de efetivado o acampamento, alguns desses membros passam a

direcionar a luta juntamente com as lideranças que conseguiram formar durante o período

de trabalho de base e outras que vão se fazendo no decorrer da luta. O acampamento é logo

dividido em grupos, geralmente por municípios, de forma a considerar as afinidades das

famílias. Cada grupo escolhe seu coordenador, que já chega quase sempre definido com a

orientação de membros da direção responsáveis pelo trabalho de base.

Além dos coordenadores, que têm a responsabilidade de acompanhar e

participar das negociações e repassar aos grupos existem os setores que são formados por

uma pessoa de cada grupo de famílias e têm a incumbência de manter a organização do

espaço do acampamento, são eles: setor de higiene, de saúde, de alimentação, de educação,

de segurança, de finanças e de mística. Existem ainda as equipes de trabalho, que são

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geralmente grupos de pessoas dispostas a executarem trabalhos internos e trabalhos

remunerados em fazendas vizinhas40.

O senhor Lúcio, uma das lideranças do acampamento e naquele momento

membro da Direção Estadual do MST, narra como essa divisão em grupos e setores é feita

de forma a garantir o funcionamento do acampamento:

É... cada municípios desses tinha as pessoas militantes do movimento que organizava em grupos de lideranças, né? Dentro do processo de discussão, ia buscando as pessoas que mais se destacavam, que mais tem condições de coordenação e organiza. E assim ia organizando de grupos de vinte até cinqüenta famílias, que dentro desses grupos já vinha os setores, já vinha formado dos municípios de origem. Antes de vir pro acampamento, já no trabalho de preparação no município. Então tinha o responsável pelas finanças, pessoal que vinha fazendo arrecadação pra pagá o transporte. É... já vinha, o pessoal preparava o setor de saúde, pra prepara o material de primeiros socorros. É... o setor de educação. Basicamente, a estrutura e a coordenação, né? Que era o ponto chave pra todo, todo funcionamento do acampamento (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

Em grupos que variavam entre trinta a cinqüenta famílias, cerca de seis a dez

pessoas tinham função de responsabilidade, exerciam tarefas que exigiam sua imposição,

ao mesmo tempo em que eram cobrados pelos coordenadores e líderes eram também

avaliados pelos acampados. Esses membros podem ser substituídos ou repudiados se não

mantiverem uma boa conduta ou um exemplar cumprimento de sua função dentro do

acampamento. Segundo uma liderança, os coordenadores são “representante do povo, se o

povo acha que aquelas pessoa ta beleza, continua. Se não ta, tira e põe otros. Entendeu?”

(LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

São essas pessoas, como falou Lúcio, com “mais condição de coordenação e

organização”, que participam dos cursos de formação41, que viajam para mobilizações, que

participam de negociações, que se tornam militantes do Movimento. Esse grupo tem ainda

a incumbência de fiscalizar as ações dos acampados e denunciar às lideranças quando

necessário. Todos, no entanto, coordenadores ou não, vivem na iminência da expulsão do

acampamento, caso não cumpram as regras estabelecidas, que entre crimes e ações ilícitas

estão atitudes como denegrir a imagem do Movimento, ausentar-se do acampamento por

longos períodos, deixar de cumprir suas funções, esquivar-se de ações coletivas, deixar de

comparecer de forma reiterada em mobilizações e protestos etc.

40 Para essa tarefa existe uma espécie de cooperativa de trabalho, liderada por um grupo responsável em negociar os trabalhos e valores, organizar os trabalhadores e fazer o transporte, o acampamento fica com parte da diária, cerca de 20%, como pude constatar. 41 Segundo Turatti, existem critérios bem determinados para a escolha de delegados, que são definidos pela direção nacional do Movimento. Os delegados devem ser pessoas que exerçam ações diretas dentro dos acampamento, sejam membros da direção do acampamento ou pertençam a algum setor (2005, p. 88).

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Segundo Farias, a imposição de poder exercido pelo MST resulta em certa

acomodação pelas famílias acampadas:

As famílias, diante de tais situações, preferem calar-se, pois, na impossibilidade de voltar e, principalmente, para conseguir chegar à terra, não podem perder o apoio do MST, a seus olhos, neste momento, o único mediador, o qual, além de tudo, garante a alimentação, mesmo precária, e moradia provisória pra todos (2002, p. 140).

Segundo um dos diretores estaduais do MST em Mato Grosso do Sul, Marcio

Bissoli, a função maior em dividir o acampamento em grupos e, a partir dos grupos,

selecionar os coordenadores e setores é:

Fazer com que cada pessoa tenha uma função dentro do Movimento. Essa é a principal diferença do Movimento pras outras organizações que estão aí, a FETAGRI, a CUT. Lá o que tem? Tem uma pessoa que coordena o acampamento, que é o líder, que eles chamam. Nós não, a idéia é... que cada um se sinta dono do Movimento, se sinta parte (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).

Essa forma de estruturação do acampamento mediado pelo MST, de divisão em

grupos e exigência da efetiva participação dos acampados, é também uma forma do

Movimento exercer seu poder sobre os sem-terras, já que seu descumprimento pode privar

os acampados da questão maior da luta, que são os lotes de terra. Embora os lotes sejam

definidos por sorteio na tentativa de democratização desse acesso, só vai para o sorteio

quem estiver organizado e participando das lutas, caso contrário, um grupo todo, ou alguns

sujeitos, pode ficar fora do sorteio dos lotes:

Só vai pro sorteio quem ta organizado, quem ta organizado com cada pessoa pra um setor, com as atividades, quem freqüenta as lutas... nós fazemos chamada. O coordenador dos cinqüenta faz a chamada lá no dia de uma passeata, de uma reunião, é anotado; então, baseado nisso; se o grupo vai sempre, se o grupo ta em dia com a contribuição ele entra no sorteio. Quem não ta, tem que se organizar. Não expulso, mas tem um prazo pra ele se organiza, pra depois ele entra o próximo, se não vai ficando pra traz (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).

Embora arbitrária, a posição de só colocar em sorteio quem está organizado,

quem freqüenta as mobilizações e quem está em dia com a contribuição, é também uma

forma de serem justos com os grupos que trabalham, que se mobilizam e que se fazem

presentes.

Além dos sorteios, para a seleção dos lotes, existe também a noção de direito

adquirido; quando ficam famílias remanescentes por muitos anos, como no caso de um

grupo de aproximadamente trinta famílias remanescente do acampamento Oito de Março

acampadas há dez anos, essas passam apenas pela aprovação do INCRA e não mais pelo

sorteio.

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Daí a importância de interpretar esse poder a partir da ótica foucautiana como

uma prática social que não existe só como algo negativo, que só tem a função de cercear os

indivíduos, como um instrumento de legitimação da dominação (como diria Bourdieu,

1989); mas funciona como um tipo de organização do espaço e do tempo, nos quais esse

poder encontra-se diluído e nem sempre tem a função de imposição.

Embora exista a tentativa de integração dos sujeitos acampados, é fato que essa

divisão não agrega a todos, o que provoca uma estratificação e revela uma relação desigual

entre os sujeitos acampados. Segundo Turatti: “Essa militância intermediária que vai sendo

formada estabelece uma relação mais próxima com o líder formal e é incentivada por este a

distinguir-se dos demais, usando sua autoridade e respeitabilidade”. Os demais são todos

os outros acampados, que estão sob a liderança desses setores (2005, p. 89).

Comentando sobre quem tomava as decisões dentro do acampamento, o senhor

Celso classificou essa equipe como um conselho, formado por cerca de sete lideranças do

Movimento e pelos coordenadores de grupos acampados:

Aí era um conselho, né? Nós era em trinta... 38 grupo, cada um tinha o coordenador e o vice, e tinha as lideranças que... mais uns sete ou oito da liderança... então, essa turma que tomava as decisões. As liderança vinha e falava: vamos ter uma reunião pra fazer isso... e umas pessoas vai ter que subir pra Campo Grande, outros tem que ir pra Brasília, conversar com o governador, conversar com o presidente. Aí a gente fazia a reunião lá, um falava um pouco, outro falava outro, aí tirava os cara mais saídos... assim, pra ir conversar, né? (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

Essas lideranças passam a ter, simbolicamente, a voz autorizada, o poder de

falar em nome dos outros, de decidir a vida e o destino de todos. Essas decisões são

repassadas e também discutidas com o restante do grupo em assembléias (reunindo todo o

acampamento) ou em reuniões de coordenadores com seus coordenados.

Os militantes sem-terra componentes dos setores e da organização exercem um

trabalho voluntário; recebem, às vezes, dinheiro de passagem e alimentação, quando o

acampamento dispõe de reserva oriunda de dinheiro arrecadado em pedágios ou das

próprias contribuições dos acampados, em muitos casos, porém, precisam dispor de algum

dinheiro próprio para arcar com esses custos. Segundo o senhor Antônio, para exercer

trabalhos de base, esses militantes:

Iam de carona, que ninguém tinha recurso na época, dinheiro pra trabalha. É... os menino iam só com alguns quilos de comida e voltava pro seus município, alguns pra parente, outros pra conhecidos (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

Indagado se fazia algum trabalho fora do acampamento, o senhor Celso, um ex-acampado que declarou não perder um cursinho do Movimento, respondeu: “É, fazia.

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Quando eu tava por aqui a gente... pra consegui algum dinheirinho pra quando ir na mobilização, pra pelo menos come na estrada. Né”? Embora exista uma dissimetria nesse espaço, e até algum privilégio aos que se destacam e alcançam cargos de lideranças, é certo que tudo no acampamento é racionado, o que faz com que muitos utilizem seus próprios recursos para tarefas que não são de interesse coletivo.

Esses privilégios, que Turatti, denominou de uma espécie de “compadrio rural distorcido”, podem, muitas vezes, ser observados em determinadas ações do dia-a-dia, como na distribuição de alimentos, na escolha de novos membros, nas tomadas de decisões e na própria credibilidade da palavra quando algum conflito fica evidente, como pequenos furtos e desavenças.

Dona Leonice comenta como eram escolhidas as pessoas que iriam viajar para encaminhar as negociações, tendo em vista o êxito da ação e o não descontentamento do restante do grupo:

Pra ir negocia pra Campo Grande, nunca podia ir um ou dois, tinha que ir uma comissão. O acampamento era grande pra não ter disconfiança, entendeu? Falá... não o fulano foi só lá pra escutá... não foi em audiência nada só foi menti... Então tirava o pessoal numa assembléia, o povo levantava o nome, talvez uma ou duas das pessoas que tinha mais conhecimento né? Tirava lá numa assembléia aí ia, ai com esse dinheiro do pedágio (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Como a execução dessas ações é feita com o dinheiro do acampamento (leia-

se: de todos), dinheiro oriundo de pedágio ou de arrecadação interna, havia uma cobrança

de boa utilização; as pessoas escolhidas para representar o grupo eram definidas em

assembléias, embora já previamente indicadas. Como raramente voltavam dessas viagens

com propostas concretas aos acampados, o grupo deveria estar “acima de qualquer

desconfiança”, para evitar conflitos, embora nem sempre isso fosse possível.

É importante destacar, ainda, como critérios de sabedoria e conhecimento não

são descartados nesse espaço. É comum na fala dos entrevistados a afirmação de que quem

os representavam eram os “mais sabidos”, os “mais saídos” e “com mais conhecimento”.

Entre esses saberes estão aspectos ligados às características pessoais desses sujeitos, como

carisma, desenvoltura, iniciativa e boa argumentação, como também conteúdo ideológico

formado já com certo período de militância42.

Para Silva, concepções de formação e de conscientização, como as presente na práxis do Movimento, podem ser pensadas como instituintes e legitimadoras de hierarquias, constituindo até mesmo uma oposição entre os conscientes e os sem consciência (2004, p. 40).

42 Em uma das visitas feitas ao acampamento que abrigava o grupo remanescente do Oito de Março, escutei por horas, em baixo de uma árvore, sentados em bancos improvisados de madeira, um acampado conversar comigo sobre Florestan Fernandes e Caio Prado Junior, em uma conversa, que confesso ter aprendido mais do que contribuído.

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Os que possuem o poder da argüição e o dom da oratória são os que falam em

nome de todos, e isso já fica bem definido no grupo de modo a não autorizar os demais a

falarem, tendo em vista a possibilidade de “colocar tudo a perder” diante de uma entrevista

ou fala que possa ser mal interpretada:

Tem a cordenação, aí tem as pessoas que fazem parte da negociação. Chego a impresa é ele que tem que fala com a imprensa pra não deixa todo mundo fala, que nem todo mundo sabe, entendeu? Só faiz estraga. Tem hora que um estraga e ponha um bando a perder, entendeu? Então aí você faiz a reunião da coordenação aí na coordenação você tira as pessoas que vai fala sobre a questão da fazenda, se vim imprensa como é que ta, que pé que ta. Questão da alimentação, no pé que ta, qual é a proposta do governo [...](LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

São também essas lideranças que atendem as pessoas que chegam ao

acampamento, principalmente, o “pessoal da universidade”, do INCRA e do governo, e

após tomarem conhecimento da situação, as encaminham a outros, se necessário. É comum

os acampados, quando inquiridos com algumas questões, remeter suas respostas a outras

pessoas, pois como já foram advertidos, receiam que possam estar falando o que não

devem. Situação que para fins acadêmicos e científicos só pode ser amenizada com um

período maior dentro do acampamento, de forma a ganhar a confiança dos acampados.

Mas essa realidade na estruturação e na organização do acampamento não se

aplica a todos os mediadores. Nos acampamentos mediados pela CUT e FETAGRI, exceto

a equipe de guarda, as outras tarefas eram realizadas aleatoriamente pelos acampados

quando necessário. A busca por cestas básicas, problemas de saúde, negociação, finanças,

etc., são atividades realizadas pelo coordenador e pelo líder do acampamento, com apoio

do sindicato. Diferente do acampamento mediado pelo MST, em que existe definida uma

equipe responsável por determinadas atividades, com tarefas pré-determinadas de forma

periódica, nos outros dois acampamentos essas ações eram definidas pelos coordenadores,

que designam algumas pessoas para realizar a atividade quando necessário:

Os coordenador do acampamento quanto tinha que faze alguma coisa, então o coordenador que apontava as pessoa, né? Fazia uma reunião ali no meio do povo e tirava uns cinco, seis. Se tinha que faze... pedi na estrada, vamo supor, uma ajuda, então tirava seis,sete pessoa e tirava pra i lá, a coordenação tirava pra ponha lá. Não era todo mundo, era escalado, né? Outra hora tinha que faze uma limpeza no acampamento, então tirava mais outra turma e ponhava (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

O senhor Antônio veio do Paraguai, fixou-se no acampamento Mambaré,

tornou-se coordenador e logo depois líder com a eleição para presidente do sindicato

municipal, tentou diferenciar na prática do acampamento as atividades atribuídas ao

coordenador e ao líder:

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O coordenador é aquele que organiza o pessoal dentro do acampamento, ali que pega praticamente o mais pesado, né? Que é... briga, confusão, organização de... de mercadoria, essas coisas aí, né? E o líder é aquele que corre pra busca boa noticia... a questão da... da conquista da terra (ANTÔNIO, Entrevista, 11.10.06).

Se ao coordenador cabe a dificuldade cotidiana da luta, a organização do

acampamento e a imposição diante de conflitos corriqueiros, ao líder cabem as tarefas de

negociação, de discussão com órgãos governamentais, de encaminhamentos burocráticos e

a “busca por boas notícias”.

O sindicato acaba por fazer uma ponte entre acampados e o

Estado/FETAGRI/CUT/INCRA. Um dos funcionários da FETAGRI disse que “a

Federação nunca faz contato direto com os acampados”, todo trabalho de negociação,

avisos e até mesmo cursos de formação política são direcionados aos membros dos

sindicatos e à coordenação do acampamento (VALDENIR, Entrevista, 22.09.2005).

Depende também do sindicado e dos líderes a escolha do mediador. O

acampamento Laguna Peru, por exemplo, que teve início com o apoio da FETAGRI,

passou um tempo sob a liderança da CUT. Nesse período os acampados perderam a área,

foram acusados de matar o gado da fazenda pleiteada e comercializá-lo, depois disso

trocaram novamente de lideranças e voltaram a receber o apoio da FETAGRI. Indagado

com relação a essas mudanças, o senhor Tadeu, um dos coordenadores do acampamento,

respondeu que era questão política e dependia dos acordos entre o sindicato e a mediação:

Mais é política. Né? A política eu digo assim, é... de coordenador. Né? Mais, tipo a gente quando começo, começo com a Fetagri, depois mudamo pra CUT uma época, não deu certo, perdemos o terremo aí depois a gente volto pra Fetagri e tamos até hoje (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Embora essa possibilidade de troca de mediador possa garantir uma maior

autenticidade, liberdade e autonomia do grupo acampado, essa indefinição acaba por

confundir os acampados, que sem um maior esclarecimento sobre essas questões políticas

muitas vezes, não sabem o que está acontecendo e ficam alheios a informações que são

preponderantes ao processo de luta, como fala dona Lurdes:

Esse negócio aí, isso é rolo deles lá, eu nem sei fala como é que esse grupo nosso, se é FETAGRI, se é CUT, não sei o que é que é. Hoje eu acho que é FETAGRI. Acho que quando entro lá era da CUT, né? Depois saiu bastante gente com um rolo que deu lá com um gado, não sei se você sabe? (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Embora a estruturação dos acampamentos sob a mediação da CUT e da

FETAGRI seja menos complexa, existem também regras bem definidas. Apenas no

acampamento Laguna Peru tive acesso a um Regimento Interno escrito, embora estivesse

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no sindicato e não no acampamento, o que não descarta que os artigos ali textualizados

sejam na prática de conhecimento de todos. Segundo consta no próprio Regimento, ele

teria sido elaborado com a participação da maioria dos acampados. Composto por doze

artigos, o documento se define como uma forma de regular os direitos e deveres dos

acampados para que todos vivam em harmonia, paz e esperança. Um dos pontos mais

frisados é com relação aos atos que dão margem à expulsão do acampado, que pode

ocorrer de três formas, as quais resumidamente são:

a) Expulsão sumária com encaminhamento à justiça pública caso sejam pegos

com droga de qualquer espécie para uso ou comercialização; b) Expulsão após apuração

dos fatos, em casos de furto, estupro, desrespeito à família, extorsão, ameaça, uso de arma,

uso ou comércio de bebidas alcoólicas, atos que depõem contra a imagem do

acampamento, caça de animais silvestres, prática de pedágios sem autorização dos líderes e

sem objetivo e finalidade definida; c) Expulsão após ações reiteradas, para uso de

equipamentos de som (rádio, TV) que provoque incômodos, qualquer atividade ou ação

que perturbe os outros acampados, permitir que crianças andem sem roupas pelo

acampamento, permanecer menos de 50% dos dias da semana fora do acampamento.

Além dessas, outras regras, como silêncio após às 22:00 horas,

responsabilidade com animais, destino correto do lixo e construção de fossa, a

responsabilidades dos acampados em denunciar irregularidades e as responsabilidades dos

líderes e coordenadores em manter a ordem do acampamento, também estão textualizadas

no Regimento.

O que se percebe, porém, nesses longos períodos de luta, é que a forma de

imposição dessas regras vai sendo diluída e amenizada, já que o grupo, com o tempo vai

apreendendo essas normas. Os que não se adéquam a elas deixam o acampamento ainda no

início, não só com a temida expulsão, mas pela própria discordância com o que é ali

imposto e/ou acordado. Algumas regras, no entanto, são neste percurso suprimidas ou

relativizadas, como é o caso da bebida alcoólica, que se não utilizada de forma a causar

transtorno é aceita por todos.

Com o tempo, no acampamento Laguna Peru, todo tipo de organização interna

fora suprimida. Dona Eleonora, ao ser indagada se existia algum tipo de coordenação no

acampamento, responde que era tudo feito por eles quando necessário, sem ninguém para

vigiar ou fiscalizar: “mais é entre nóis mesmo aqui, nóis num tem um mandano no outro,

tudo é igual, né?”. O senhor Tadeu também destaca a forma com que o longo período

naquele espaço lhes imprimiu um modo de vida que dispensa maiores organizações:

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Sim é um grupo só porque...porque é tudo gente assim de, de velho já, lá então num necessita de grupo né? Porque grupo vem criando problema pra... então lá todo mundo sabe o que quer, então num dá problema é as mesma coisa né? Então é,é..é eu digo assim que é um acampamento até bom porque todo mundo trabalha, lá quase não fica ninguém durante cedo, durante o dia né? A tarde tão lá, mais durante o dia, também é que todo mundo sai cedo né? volta tarde, todo mundo trabalha (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Para a organização do acampamento se manteve apenas a figura do

coordenador, que entre outras funções, além daquelas por ele enunciadas abaixo, está a

luta, juntamente com o sindicato, por uma área com possibilidade de assentar aquelas

famílias:

O coordenador é pra organiza as família, né? Organiza num deixa, num deixa é...nada errado. Bom , nada errado... sempre tem errado né? Mais os principal né? É ladrão, é pinga, é maconha, droga, esses tipo de coisa, e sem briga também né? Organizar cesta básica no final do mês, esse tipo de coisa assim né? (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Como fala Tadeu, a tentativa em não deixar nada de errado dentro do

acampamento é em vão, até mesmo porque essa concepção do que é errado e do que é

correto é bastante flexível e muito variada; existe no entanto, o que é permitido, o que é

tolerado e o que é abominável naquele espaço. Tudo isso é muito relativo, quer seja com

relação às posições ideológicas dos mediadores, quer seja com relação à própria

convivência do grupo; daquilo que se habituou, daquilo que é necessário, daquilo que se

naturalizou. As ações elencadas por Tadeu como principais talvez sejam mesmo um

consenso entre todos os grupos em relação a ações inaceitáveis naquele espaço.

O artigo do Regimento Interno do acampamento Laguna Perú, que previa a

expulsão de acampados que permanecessem menos da metade da semana dentro do

acampamento, servia de alerta para que cada sujeito cuidasse de seu barraco, estivesse

sempre atento aos acontecimentos, mantivesse os coordenadores avisados sobre seus

deslocamentos, mas na prática, provavelmente ele nunca tenha sido levado a cabo.

Em relação a obrigatoriedade de ficar ou não acampado, pude constatar, por

meio de entrevista a um coordenador estadual de cada mediador, o seguinte:

FETAGRI: Disseram não haver nenhum tipo de objeção quanto a não morar no barraco,

desde que as lideranças fossem comunicadas e tivessem uma forma de contato para quando

necessário (reuniões, visita do INCRA etc). Só fica acampado quem não tem nenhum

trabalho e nem casa para morar. Posição que se confirmou nas visitas aos acampamentos.

CUT e MST: Os dois mediadores deram respostas parecidas. Disseram exigir pelo menos

50% das famílias acampadas e as outras devem fazer visitas periódicas (todo final de

semana ou quando possível). O acampado deve informar à coordenação seu local de

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trabalho e deixar um contato, além de, impreterivelmente, ter que participar das principais

atividades do acampamento (assembléias, mobilizações etc).

Mas essas posições no decorrer da luta são variáveis. É certo que existe maior

aceitação, como é o caso da FETAGRI, menos tolerância, como no caso do MST, que

incentiva a mudança real ao acampamento; mas existe também flexibilidade. Só mora no

barraco anos e anos a fio, quem se desfez do antigo lar ao longo do tempo de luta, quem

vive aquele espaço como a última saída possível, quem levou toda família e perdeu antigas

referências.

É conhecida, também, embora negada e até repudiada pelos mediadores, a

prática de pagamento para que outros cuidem do barraco e garanta seu lugar na luta,

enquanto ele se dedica a outras atividades. É uma prática que apresenta um contra-senso e

suscita automaticamente algumas questões: Quem se dispõe a viver acampado em barraco

de lona, à margem de rodovias, por uma quantia que varia entre R$ 60,00 e R$ 100,00 para

garantir terra a outro sujeito? Qual a condição social em que vive o sujeito que se dispõe a

tal tarefa?

Essas atitudes não são só repudiadas pelos mediadores, sobretudo pelo MST

que tentam coibir essa prática, mas também pelos próprios acampados que se sentem

injustiçados por terem lutado e beneficiado quem não lutou, como dizem alguns

acampados:

Enquanto uns se ferra aqui em baixo os outro fica na boa, a gente fica aqui segurando as ponta pros outro (LUCA, Entrevista, 11.10.2006).

Então, tem hora que eu fico parado pensano assim: tanto que a gente sofreu debaixo da lona, que serviu de uma lição pra nós memo. Por que... o que nós sofreu o outro não sofreu nada. Ta beneficiado daquilo que nois sofreu, sabe?. Então, tem muita gente aqui que não ficou um dia debaixo da lona e tem o lote, pego lote aí. O INCRA foi e dividiu, diminuiu o nosso lote pra dá pra outro (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

No acampamento Mambaré, do qual fez parte seu João, poucas pessoas

realmente passaram a morar nos barracos, algumas visitavam-no quando podiam e outras

raramente apareciam. Os “que não sofreram nada”, como disse seu João, por ocasião da

efetivação do assentamento, são facilmente identificados pelos assentados que sempre

estiveram presentes na luta. Esses sujeitos que parecem pegar carona na luta dos outros

não são bem vistos e são sempre lembrados como tais; embora haja relação de vizinhança e

amizade, no momento em que o período de luta vem à memória, esses sujeitos são vistos

como oportunistas e beneficiários da conquista alheia.

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O sofrimento talvez seja a maior tristeza guardada na memória dos sem-terra

sobre esse espaço/tempo de acampamento, por isso emerge um sentimento de indignação

em relação àqueles que não lutaram, não participaram das dificuldades cotidianas, não

enfrentaram o sol, o frio, as chuvas embaixo do barraco, não se dispuseram a parar carros

na rodovia em dia de mobilização e não vivenciaram os sofrimentos daquele espaço. Esse

sentimento não está só relacionado aos que se dispõem a pagar para alguém cuidar de sua

vaga, já que esses, como pude perceber, são os primeiros que desistem, não suportam a

demora e a incerteza da conquista e dificilmente chegam a conquistar um lote de terras;

mas está relacionado também àqueles que dificilmente aparecem, estão sempre ausentes,

esquivam-se das responsabilidades e só se fazem presentes em dias indispensáveis

(assembléias, sorteios, distribuição de cestas ou quando são chamados).

No acampamento do MST, embora também existam sujeitos que não

permanecem acampados, existe uma postura do Movimento em incentivar a luta sob o

barraco e com a família toda, daí a imposição de só ir para o sorteio dos lotes quem estiver

organizado; estar organizado, no entanto, não significa estar acampado, morando sob o

barraco, mas também não permite que o sujeito reivindicante da terra se distancie e fique

alheio à luta travada naquele espaço.

No acampamento Laguna Peru, a maioria dos barracos era habitada por apenas

um membro da família, geralmente o homem, que partia para a luta e preservava a casa na

cidade. Poucas famílias, como a família de dona Eleonora, se mudaram para os barracos.

O morar ou não no barraco está ligado também, além de questões de

desconforto e insegurança, à necessidade de sobrevivência. Muitos realizam trabalhos

diários em fazendas da região, trabalho temporário em plantação de cana-de-açúcar para

usinas, mas também têm aqueles (de forma diminuta) contratados com trabalho regular em

fazendas, no comércio e em outras atividades, o quê dificulta uma vida toda debaixo da

lona. Existem ainda pessoas já aposentadas, filhos de assentados e aqueles que decidem

pela vida no barraco e dali se destinam aos trabalhos diários em fazendas vizinhas. Esses

trabalhos podem acontecer de forma individual ou por meio de uma espécie de cooperativa

de trabalho, como as formadas nos acampamentos do MST.

O estar ou não acampado também determina a contribuição para com a

organização mediadora. Nos acampamentos da CUT e da FETAGRI verifiquei existência

de uma contribuição no valor de R$ 2,00 por família acampada e aos que não permanecem

no acampamento, conhecidos como andorinhas, cabe uma contribuição no valor de R$

50,00. Em ambos os casos, existe ainda a contribuição sindical, haja vista haver um

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trabalho de filiação desses sujeitos aos sindicatos rurais municipais, muito embora a

contribuição sindical seja efetuada por um número bastante reduzido de acampados.

Somente no grupo do MST não foi identificado distinção na contribuição.

Existe uma contribuição mensal no valor de R$ 5,00 e uma porcentagem de 20% recolhida

dos trabalhos realizados pela cooperativa de trabalho existente no acampamento. Outra

forma de arrecadação, somente presente no acampamento do MST, é o comércio, uma vez

que dentro do acampamento existe uma espécie de mercado. Marcio explica o que é e

como funciona essa forma de arrecadação:

Em cada acampamento tem um mercadinho, lá um mercado que é o... que é do acampamento, não tem individual. Você não pode te um butequinho lá seu. Tem um só, que serve... a renda é dividido, 30% fica lá no acampamento, 30% pra região, pras atividades regionais, 30% pra estadual (aqui pra nós), e 10% pra nacional. Essa é a renda do mercado (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).

Segundo Marcio, essa é uma forma de custear despesas de transporte e

alimentação em dias de mobilizações e cursos de formação, além dos descolamentos de

lideranças para negociações:

Só que a imprensa quando pega isso já começa a questioná: Há, mais cobra! Todo mundo que participa de uma sociedade paga, se você é filiado no PT você paga, você é filiado no sindicato você paga, você vai na Igreja você paga. Então tem que pagar... não é pagar... você tem que contribui, por que o movimento é teu, é das pessoas, é da organização (MARCIO, Entrevista, 23.09.2005).

Outra questão também presente nesse espaço são os trabalhos políticos. Esses

grupos têm bastante claro quais são os políticos (deputados, vereadores e prefeitos) que

reconhecem a legitimidade da luta, que podem recorrer quando necessário, assim

realmente fazem sempre que possível e/ou necessário, esse apoio, em geral, é buscado para

interceder junto ao INCRA para vistoria de áreas; junto ao governo estadual para liberação

de recurso financeiro e alimentação; aos prefeitos e vereadores para transporte,

atendimento médico e escolar, entre outras necessidades.

Essa necessidade de apoio político, no entanto, é sempre retribuída em

momentos de campanha eleitoral, quando as lideranças do acampamento definem seus

candidatos e passam a fazer campanha política entre os acampados. Se existe discordância

em relação a determinados nomes, elas são reprimidas, guardadas para si, tendo em vista

uma possível represália e a necessidade de chegar ao assentamento.

Nas formas explícitas de manifestações políticas, o Partido dos Trabalhadores é

quase unanimidade; bandeiras, bonés, camisetas, adesivos são símbolos facilmente

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identificados naquele meio, assim como a imagem do então presidente Lula nas paredes

dos barracos. Historicamente, as imagens dos movimentos sociais e do PT estiveram

associadas, e ainda hoje o Partido é o que melhor representa os princípios ideológicos dos

movimentos, muito embora não seja uma unanimidade entre os acampados.

Entre os casos analisados, existiram pessoas acampadas e lideranças que se

elegeram a cargos como vereadores e até prefeitos, além de secretários e cargos de

confianças dentro do poder legislativo e executivo municipal. Foram identificadas pessoas

que participaram dessas mobilizações exercendo cargo de secretário de Meio Ambiente em

Mundo Novo, secretário de Orçamento Participativo em Itaquiraí, vereadores em Eldorado,

além do atual prefeito de Mundo Novo, Humberto Carlos Amaduce, militante que

participou da organização do acampamento Oito de Março.

Entre as relações de poder estabelecidas no espaço/tempo do acampamento não

se pode deixar de mencionar a questão feminina. Como já citado, a presença da mulher é

mais significativa nos acampamento do MST, mas isso não significa que elas não tenham

sua participação nos acampamentos dos outros mediadores.

A mulher responde nesse espaço como mãe, esposa, trabalhadora e busca

construir um espaço para manifestar sua faceta militante, que fala, que tem idéias e

preferências, que pode contribuir com a luta e que quer ser ouvida. O acampamento do

MST analisado, que foi denominado como Oito de Março, por ter a primeira ocupação

ocorrido neste dia, de forma proposital, é uma forma de manifestação do MST com relação

a postura que mantêm de defender e incentivar a participação feminina na luta. A escolha

do dia da ocupação fora feita por uma das mulheres integrantes da liderança do

Movimento, mulher que sabe a força que carrega e que lembra emocionada da imposição

em efetivar a ocupação nesse dia:

Então nós tava na reunião em Campo Grande, eu me lembro como hoje aí o pessoal. O povo ta organizado, e aí, vamo faze a ocupação ou não vamo? E o dia ? Aí eu me inscrevi. Eu falei : “Eu quero fala. Eu me proponho” – já tinha olhado na agenda do Movimento o dia – “eu me proponho que seja o oito de março. Porque oito de março é o dia Internacional das mulher. Pra nós é um desafio”. Inclusive nós tava num punhado de mulher ajudando no na ocupação. E que tava vida ajudo também que é quase meio a meio. Que tanto por cento de homem, tanto por cento de mulher tem que ta na organicidade, né? Nas atividades do movimento. Aí eu falei: “tem que se, porque quera ou não um dia internacional, e as mulher não sabe direito que elas têm, e que a gente pode ta aprofundando isso, e trabalhamo essa questão”. E a maioria das mulher acha que o trabalho das mulher é só lavar e passa e cuida de criança. É não é! A mulher tem o mesmo direito do homem, agora depende ela sabe aproveita e sabe descobri os direito que ela tem pra corre atrás (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

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A fala de Nice é típica do ideal cunhado pelo discurso do Movimento de

direitos iguais entre gêneros, da necessidade de participação feminina, da distribuição de

cargos de liderança e de coordenação para mulheres, de conscientizar a mulher de seu

poder. Posição essa, que nem sempre pode ser visualizado na prática, assunto discutido por

Silva em Homens e Mulheres em Movimento:

É evidente que o número de mulheres que ocupam posições de liderança, assim como aquelas que tomam parte de negociações mais expressivas do Movimento, é realmente pequeno, pois no MST essas posições ainda carregam fortes imagens do masculino. A própria formação de liderança é feita nessa perspectiva: dirigida aos homens, pois as mulheres que possuem essa posição, na maior parte das vezes, dedicam-se a discutir e solucionar problemas relativos às mulheres [...] (2004, p. 100-101).

Não era dessa prerrogativa (de falar de mulher para mulher) que Nice gozava

no momento em que, com o restante do grupo, decidiu a data da maior ocupação de terras

do Estado, mas era com essa intenção que se fez ouvir e se impor em relação ao dia

emblemático que propunha. Sem análises mais profundas do discurso mediador, e voltando

o olhar às práticas cotidianas da alma feminina e às redes de poder existentes no

espaço/tempo do acampamento com relação aos gêneros, vê-se que esses sujeitos –

homens e mulheres – “estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação”

(Foucaut, 1979, p. 183), muito embora não se possa negar a imposição do poder masculino

sobre os saberes femininos.

Dona Leonice, que ajudou na efetivação do acampamento, Dona Edinéia, que

decidiu partir à luta e levou a família mesmo contrariada, dona Neuza, que incentivava o

marido, e dona Lurdes, que segura as pontas em casa enquanto o marido vive no

acampamento, são alguns exemplos de como as mulheres cumprem papéis indispensáveis à

manutenção da luta. Mesmo sofrendo com a ociosidade da vida sob o barraco de lona,

dona Neuza era quem “dava força” ao marido para viverem aquela luta cotidiana:

Antônio: Ela que dava mais força pra mim. Neuza: Eu que dava mais força. Só num gostava que era quente a lona, né? E num tinha nada, a gente ficava lá dentro, sentava lá, tinha que fica pro lado de fora... (ANTÔNIO e NEUZA, Entrevista, 11.10.2006).

A luta não se faz só com homens, mesmo nas mobilizações em que elas são

minorias, como no acampamento Laguna Peru e Mambaré. Da mesma forma que o

discurso da igualdade presente no MST e o número expressivo de mulheres, inclusive entre

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lideranças e coordenações, não desbancam relações hierárquicas de gênero e a imposição

do poder masculino que perpetua na sociedade.

O que se pode inferir nesse espaço/tempo do acampamento, tratando-se do

exercício de poder para regulamentar a ordem social, é que ele não está isento de ser

deslegitimado e questionado, o que, no entanto, não concede aos acampados o direito de

imposição ou desrespeito a determinadas regras.

Existe, em alguns momentos e situações, uma forma de coibição, que reprime,

que impõe, que não autoriza críticas a fim de evitar uma rachadura no grupo. O exercício

coercitivo do poder ali estabelecido se assemelha às situações vivenciadas, por exemplo,

nas relações trabalhistas e até mesmo de proprietário/inquilino. E são essas as situações

que levam, muitas vezes, à indignação e aos questionamentos e produz desistências e

expulsões. A iminência da expulsão, associada à falta de referências regressas e a

perspectiva de chegar a terra leva muitos desses sujeitos a vivenciarem o que Farias (2002,

p. 140) chamou de uma situação de deferência em relação às regras impostas nesse

espaço/tempo de conflitos.

4.4 A visibilidade das lonas pretas e a persistência da luta

...tudo por causa de mobilização que a gente fez para conquista da terra, porque de mão beijada não se resolve nada (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Viver acampado requer estratégias de lutas que vão além das dificuldades

cotidianas. O acampamento precisa ser visto, notado, precisa incomodar, tomar a ofensiva

da luta. Quando não há mais possibilidade de ocupação da área pleiteada, tendo em vista

determinações judiciais e/ou acordos, esses processos de lutas precisam se revigorar,

ganhar força e visibilidade. Um acampamento por si só, restrito a um espaço geográfico,

sem uma equipe de negociação, sem se fazer enxargar, sem mostrar à sociedade e ao

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governo sua bandeira de luta e suas reivindicações, não resulta em nada, em nenhuma

conquista. É nesse sentido que os atos públicos (mobilizações, manifestações, obstruções

de rodovias, passeatas, abaixo assinados etc.) são usados como estratégias de lutas de

modo a atingir a sociedade e pressionar o governo.

Outra forma de tomar a ofensiva da luta e ganhar notoriedade são os abates de

gado e os saques aos caminhões, as recuperações de alimentos, como é chamada pelo

MST. Essas são formas mais agressivas de manifestações e ocorrem em momentos de

maiores dificuldades.

Essas manifestações podem ser vistas não como ação, como ocorre os atos

públicos, mas como reação; reação à períodos de racionamento de alimentação, atrasos ou

suspensão de fornecimento de alimentos ou mesmo pelo descumprimento de acordos por

parte do governo.

Os pedágios, por sua vez, que também são recursos utilizados por mobilização

de luta pela terra, decorre, na maioria dos casos, para suprir necessidades básicas e

imediatas do próprio acampamento, como lonas, remédios, alimentação ou mesmo para

arrecadar dinheiro para custear despesas com transportes para efetivação de protestos e

mobilizações.

Farias define essas etapas da luta como um estado de rebeldia em

contraposição ao sofrimento e à anomia:

[...] “diante de um grande número de acontecimentos súbitos e inesperados, as famílias procuram um sentido para a vida e para essa nova situação. Sendo assim, várias manifestações se entrecruzam: rebeldia – festa – sofrimentos/desistência” (2002, p. 124).

Essa rebeldia é evidenciada nos casos analisados pelos pedágios, pelos abates

de gado e pela reocupação da área em todos os acampamentos, as outras formas de luta, no

entanto, ficaram restrita ao acampamento Oito de Março.

Praticados para suprir uma carência imediata, os abates tomaram uma

conotação específica no acampamento Laguna Peru. No ano de 2001, quando estava sob a

mediação da CUT, quatro acampados foram presos acusados de furtar o gado da fazenda,

matar e vender a carne; esses fatos ainda aconteceram em concomitância à anulação do

Decreto Presidencial que desapropriava a fazenda, o que causou muitas controversas.

Nesse sentido, dona Lurdes se recorda dos boatos que corriam quando ficou definido que

não seriam assentados nessa propriedade: “Depois falaro que a gente ia perde a fazenda

porque o povo tava matando boi. E esse povo que matou boi foram embora, e os outro

pago o pato” (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

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O abate de gado nesse acampamento tendo um sentido bastante negativo e

ficou associado à perda da área. As famílias negam participação e os quatro acampados

presos, assim como os mediadores, deixaram o acampamento, o que provocou nesses

trabalhadores a sensação de estarem “pagando o pato”, como se diz na expressão popular,

por ações que não cometeram:

Depois saiu bastante gente com um rolo que deu lá com um gado, não sei se você sabe? O povo lá matava o gado lá, fazia festa e comia tudo, só que os do acampamento mesmo era muito poco que comia carne boa. Ficava mais era pra eles. Pra quem? Pra eles lá né? Eu não vo fala pra você que eu sei que ta gravando. Tinha gente de fora que vinha manda faze isso, chegava lá dava orde e eles pregava o pau (LURDES, Entrevista, 20.07.2006).

Além da associação desse fato à perda da área, o abate de bois também

acarretou uma mudança de medição, o acampamento que era organizado pela CUT, passou

a receber o apoio da FETAGRI. Muitas pessoas saíram, os novos organizadores passaram a

direcionar as lutas do acampamento de forma diferente do que vinha acontecendo, já que

as medidas adotadas até então tinham tomado conotação de marginalidade entre os

próprios acampados.

Dona Lurdes comenta os fatos e evita falar os nomes das lideranças, temendo

uma retaliação. Durante as gravações é comum a prática de evitar citar nomes e falar de

assuntos que são para eles mais delicados, mesmo que em conversas informais isso já

tenha ficado esclarecido. O registro das falas amedronta e as ressalvas evidenciam uma

prática vista como ilegítima por aqueles sujeitos, ou mesmo histórias não totalmente

esclarecidas.

Depois de perderem a área, passarem pelo difícil episódio da matança dos bois

e de mudarem de mediadores (entre o anos de 2001 e 2002), os acampados do Laguna Peru

(os que resistiram e os que se agregaram depois) ainda permaneceram naquele espaço,

alternando entre a ocupação da fazenda e o acampamento à margem da rodovia até meados

de 2007. Sem alternativa “ficamo quatro, cinco ano ali sem área, sem destino pra nada”

(TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

“Sem destino” e com receio de serem retaliados por ações mais agressivas de

enfrentamento e reivindicações, esse grupo limitou-se a reocupar a propriedade em questão

como única forma de chamar atenção dos poderes públicos e da sociedade para o problema

social que enfrentavam. E assim o fizeram em novembro de 2003, quando reocuparam a

fazenda Laguna Peru e lá permaneceram por aproximadamente um ano, mesmo

reconhecendo que não havia mais meios de desapropriar a área.

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Em reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária do Estado, agendada

exclusivamente para resolver o impasse, as lideranças do acampamento teriam

reivindicado que: “Coloque uma área de terra para os mesmos, pois os mesmos não têm

interesse na referida fazenda, até por que, por previsão legal, ela não pode ser objeto de

desapropriação”.

E assim justificaram a reocupação da propriedade:

A promessa do senhor Joatam do IDATERRA, consistiu em arrumar áreas de terra para os acampados, os acampados aceitaram e retiraram-se da área ocupada; transcorrido todo o lapso temporal, nenhuma providencia foi tomada a solucionar o problema dos mesmos. Desta forma voltaram a ocupar a área sem, contudo, provocarem danos à fazenda43.

O grupo que assumiu a coordenação do acampamento após a perda da área e

troca do órgão mediador, passou a ver com ressalvas as ações de lutas e reivindicações

mais agressivas. “Pra não dar problema pra ninguém”, como disse o senhor Tadeu,

decidiram não mais tomar medidas ofensivas que pudessem causar retaliação e desconforto

aos acampados. Nesse sentido, um dos acampados que assumiu a coordenação após a troca

de lideranças, comenta como “vão organizando” o acampamento sem precisar fazer esse

“tipo de coisa”: Algumas vezes no inicio, os outros... os outros coordenadores fizeram pedágio sim. Fizeram os pedágio lá, outro tipo de coisa né? Quando faltava cesta ou alguma coisa parecida. Mas depois... depois que a gente começo a organizar nunca mais a gente fez pedágio e nem abate, é... a gente vai organizando né? Então, não da problema pra ninguém (TADEU, Entrevista, 11.10.2006).

Mas nem sempre essas ações recebem conotação tão negativa dentro dos

grupos de acampados. Devido à experiência vivida nesse acampamento, os pedágios e,

sobretudo, os abates de bois acabaram sendo criminalizados pelos próprios sem-terra, ao

ponto de negarem participação. Em outras mobilizações, no entanto, as recuperações de

alimentos e o abate de animais da fazenda pleiteada, e em alguns casos de fazendas

vizinhas, foram ações que partiram de problemas bastante evidentes e imediatistas, que não

poderiam esperar a letargia e a burocracia dos serviços prestados pelo poder público. Esses

fatos garantem a legitimidade de ações que em outros momentos poderiam negar os

referenciais e valores desses sujeitos.

Valendo-se do conceito de “economia moral”, Thompson relativiza o que

seriam práticas legítimas e ilegítimas dentro de determinados grupos. Tomando como base

a sociedade inglesa do século XVIII, o autor analisa que o desrespeito a pressupostos

morais, assim como a privação, levava a uma ação direta, o que considerado em conjunto 43 Ata da reunião extraordinária da Ouvidoria Agrária do Estado de Mato Grosso do Sul, realizada em 19.01.2004.

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poderia ser vista como uma “economia moral dos pobres” (1998, p. 152). Nesse sentido, o

ato de abater alguns bois, entre tantos pelo pasto, para saciar a fome e assim questionar a

situação de miséria na qual se encontravam, estava naquele momento pautada sobre na

privação.

No acampamento Mambaré foram feitos abates de bois por três vezes. O

senhor João narra a forma com que faziam a ação em momentos que o fornecimento de

cestas básicas era suspenso ou sofriam atrasos:

O abate de boi foi feito umas duas, três vez, foi quando o INCRA num tava liberano a cesta, né? Aí foi feito modo do povo te uma ajuda no barraco, de uma carne, alguma coisa. Ninguém podia comprar. Isso aí foi feito, mesmo [...] pegava, atirava, ou pegava no laço mesmo e... aí a gente pegava, tirava o coro do bicho e trazia embora, né? (JOÃO, Entrevista, 20.07.2006).

Já no acampamento Oito de Março vários abates de bois foram registrados e

ganharam repercussão na impressa. O acampamento chegou a abrigar 7.000 pessoas e o

fornecimento de alimentos sofreu atraso por diversas vezes, o que obrigava aquele grupo a

buscar outras saídas possíveis para se manter na luta. Um dos momentos mais marcantes

entre esses acontecimentos foi um abate feito nas vésperas do natal para saciar a fome e

fazer lembrar a sociedade o verdadeiro sentido cristão da data. Foram abatidos em torno de

quarenta animais de uma fazenda vizinha ao acampamento. Dona Edinéia, ao ser indagada

sobre os abates de bois, lembra assustada que chegou até a sair uma imagem sua na

imprensa, no momento que ainda estava no pasto ajudando na partilha da carne:

Ai Jesus, pior que eu participei! Eu saí até no jornal minha fia! Eu tava junto no meio do pasto, eu num nego porque eu tava. Foi bem na véspera do natal, num tinha carne ué! Num tinha nada não naquele tempo (EDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Nota-se, porém, que os abates são as últimas estratégias para se manter na luta

e revelam momentos de extrema carência, tendo como a fome sua expressão mais cruel.

Ao direcionarem-se para a ocupação, esses sujeitos carregam consigo, sob

orientação das lideranças, alimentação suficiente para pelo menos 15 dias. Depois disso há

os que conseguiam fazer alguma atividade, trabalhar em fazendas vizinhas ou casos em

que um só membro da família vai para o barraco e outro se mantém no trabalho, assim os

acampados ainda conseguiam alimentação básica para sobreviver. Muitos, no entanto,

dependiam da solidariedade dos próprios acampados ou da colaboração do Movimento.

Os medicamentos e alimentos levados pelos acampados e os fornecidos pela

base do MST ao acampamento Oito de Março duraram pouco mais de dez dias. Segundo o

jornal O Progresso “as crianças são as que mais padecem. De pés no chão a ao relento do

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sol, ou debaixo das lonas pretas e quentes, elas estão sofrendo sérios problemas de saúde.

A gripe é a principal doença...” (20.03.1997, p. 8).

Vivendo em uma situação limite, com sérios problemas de subsistência, a

coordenação do acampamento concordou em barganhar a desocupação da área por

alimentos aos acampados, o que segundo os coordenadores não foi cumprido: “Ce sabe,

que os cara faz um puta de um acordo, mas é só no papel, cumpri que é bom... Prometero

alimentação, prometero lona, prometero fazer vistoria na fazenda, e nada” (LEONICE,

Entrevista, 14.12.2005).

Tendo em vista o momento de carências que enfrentavam e para exigir o

cumprimento do acordo pelo governo do Estado, os acampados saquearam dois caminhões

com alimentos no dia 30.04.1997, na BR-163, próximo ao acampamento. Alguns

caminhões foram interceptados com uma barreira humana na rodovia, uns foram liberados

por transportarem produtos considerados naquele momento como supérfluos, dois, no

entanto, um que transportava arroz e um de frangos congelados, foram desviados a uma

estrada de terra próxima, os produtos foram levados pelos acampados e os veículos e os

motoristas liberados em seguida.

Na imagem a seguir, que registra esse momento, alguns acampados estão sobre

o caminhão fazendo a distribuição dos alimentos, o que acontece, como se pode inferir,

sem maiores tumultos. A imagem tirada no momento do descarregamento registra os

fardos de arroz sendo transportados pelos acampados, entre eles muitas mulheres e

crianças. Uma guarnição da Polícia Civil esteve no local e apenas acompanhou a descarga.

Figura 16: Recuperação de alimentos no acampamento Oito de Março. Imagem cedida por Nice.

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A imagem também evidencia uma prática comum no MST: o registro de suas

ações com o intuito de evitar uma deturpação dos fatos.

É comum a degradação da imagem do Movimento e suas ações, sobretudo na

impressa, e também para fins judiciais. As fotos tiradas pelos coordenadores do

acampamento, no momento em que ocorria o descarregamento da carga, são formas de se

resguardarem e publicarem a passividade do ato, mesmo que não seja uma ação

considerada legítima do ponto de vista jurídico.

Um dia antes dos saques, a impressa foi chamada ao acampamento para que

pudesse visualizar as condições de vida dos acampados, uma estratégia do Movimento a

fim de esclarecer à sociedade da realidade vivida naquele espaço e assim diminuir o

impacto que os saques poderiam produzir.

Nesse momento, o Programa de Segurança Alimentar44 ainda não havia sido

implantado e o fornecimento de alimentação aos acampados dependia da solidariedade do

governo estadual. Essa assistência não era estabilizada e estava associada aos acordos,

dependia de licitações, disponibilidade de verbas e recursos, o que acabava retardando, e

em alguns casos suspendendo o envio de alimentos. Nesse sentido, uma das lideranças do

acampamento comenta as recuperações e abates tendo como foco as privações a que os

acampados estavam expostos:

Mesmo a questão da cesta básica ela é colocada que todo mês vai ter. A verdade é que muitas vezes o governo acaba não cumprindo isso, e aí o pessoal se obriga a faze algumas ações desse tipo. É... teve uma época uma recuperação de alimentação, acho que foram em torno de cinqüenta toneladas de arroz, o pessoal pego. Teve uma recuperação também de carne, teve um abate de gado, e teve uma vez que o pessoal acabou pegando carne de um caminhão, também na BR (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

Essas ações corroboram uma situação limite da vida humana no espaço do

acampamento. Elas foram também expressão de protestos e reivindicações, mas ocorreram,

em especial, para matar a fome e suprir carências imediatas. Foi comum ouvir os

acampados falarem de que depois de instituído o Programa de Segurança Alimentar essas

ações/reações diminuíram, e que “graças a Deus isso a gente não precisa mais”. Um foi no ano de 97, foi no final de 97, e o outro em 99. Depois daquele tempo em 99 até implantaram, se não me falha a memória um programa social, Segurança Alimentar, aí reduziu muito, nois num preciso faze mais esses... Se era alimentação do básico aí nois pegava, se era outra coisa nois dexava passa. Nois só pegava o básico, arrois, feijão, coisa básico. Se tivesse otra coisa no meio nois num mexia, porque se era pra sacia a fome era o básico, né. Deus ajudo que... nunca mais fizemo... Aí começo a adquiri a cesta e com uma

44 O Programa de Segurança Alimentar de Mato Grosso do Sul foi instituído pelo Decreto nº 9.667, de 18 de outubro de 1999, pelo governador José Orcírio Miranda dos Santos e atendeu mensalmente com cestas básicas 60 mil famílias, entre comunidades indígenas, população urbana pobre e trabalhadores sem-terras, até dezembro de 2006.

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ajudinha aí nois consegue se mantê, não tem mais esse nível de precisá fazê mais essa situação, nunca mais preciso. Até portanto que ajudo nois, mais por um lado atrapalho.... não é verdade? (DÉRCIO, Entrevista, 14.12.2005).

O senhor Dércio, que vivia no ato da entrevista há oito anos acampado, avalia

os dois lados da situação limite em que precisaram chegar: se por um lado ajudou,

matando a fome, saciando as necessidades imediatas e os mantendo na luta; por outro lado

atrapalhou, causando-lhes uma imagem negativa, o que resultou em retaliações,

instaurações de inquéritos policiais, processos judiciais e mesmo algumas prisões.

Ao conversar com o senhor João, que foi acampado no Mambaré, ele faz

questão de dizer que ajudou nos pedágios, mas não pedia dinheiro, só segurava a corda:

“Ajudei umas par de vez... Só que eu memo nunca pedi não, só segurava lá na corda, lá. Os

outro pegavam e... tirava mais a mulher pra i lá, né? Eu só ajudava... (JOÃO, Entrevista,

20.07.2006).

O sentimento de vergonha revelado pelo senhor João dos momentos que

tinham que pedir dinheiro na rodovia não é incomum. As desqualificações sofridas às

margens das rodovias, principalmente nos momentos de protestos, quando de alguma

forma causam desconforto aos motoristas como atrasos nas viagens e arrecadação de

dinheiro, produziam-lhes um sentimento que os envergonhavam e os reprimiam. Nesses

momentos, muitos desses trabalhadores experimentam a sensação de estarem corroborando

a imagem de vagabundos, oportunistas, aproveitadores, invasores, que muitos lhes

atribuem.

Dona Neuza diz que “detestava” quando tinha que ir para rodovia pedir

dinheiro, esses momentos eram para ela mais difíceis do que a própria vida sob a lona. Os

xingamentos e palavrões eram afrontas a uma vida de muito esforço e trabalho, cunhada

sob forte princípio religioso. A vida no campo, com uma história de morada por vinte anos

em uma fazenda no Paraguai, imprimiu em dona Neuza princípios de vida que não

permitia-a aceitar ouvir tais desqualificações.

Outra coisa que eu não gostava muito era faze arrecadação na bera da BR, por que o povo xingava muito. Xingava as mulher de palavrão, os homem de vagabundo. Sabe, né? Aqueles que não queria da nenhum centavo, então em vês de fala: num tenho, num vo dá” e passasse, tudo bem, que ninguém obrigava, não, eles xingava as pessoa. Por isso que o que eu mais detestava era isso aí (NEUZA, Entrevista, 11.10.2006).

Seu esposo, o senhor Antônio, fez questão de afirmar que nunca saquearam

nada de ninguém e que só mataram boi para fazer um pouco de pressão.

Como negação às desqualificações atribuídas, esses sujeitos criam referências

que dão significado a essas ações. É um sentimento contraditório e ambíguo, mas que

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garante simbolicamente a legitimidade das ações. Segundo Farias, “muitas concepções e

regras em situação de anormalidade, como no acampamento, caem por terra, pois essas

famílias passam por um momento de crise de concepção, visões de mundo, de ideologia e

de valores” (2002, p. 128).

Esses momentos de enfrentamento, embora dramáticos, corroboram ao

sentimento de conquista da terra em contraposição às doações. O fato de não receberem

nada de “mão beijada” (como expressou dona Leonice), mas sim como recompensa a um

doloroso processo de luta foi também evidenciado no trabalho de Souza, ao analisar grupos

de luta por habitação na cidade de São Paulo: “Muitos fizeram questão de ressaltar que não

ganharam nada de ‘mão beijada’, como se usa na expressão popular, isto é, sem fazer nada,

por compaixão e bondade de alguém” (1995, p. 123).

O processo de luta para conquista da terra vivenciado por esses acampados

também se contrapõe (ou reafirma por uma nova visão) ao jargão usado pelas classes

dominantes para depreciar a luta pela terra, de que terra não se ganha, conquista-se.

Essas ações são vistas com mais legitimidade entre o grupo do MST, até

mesmo pela postura do Movimento em ter um trabalho voltado para uma conscientização

dos acampados.

Embora o acampamento Oito de Março tivesse vantagens nas negociações em

relação aos outros acampamentos, tendo em vista o número de pessoas, os avanços

também foram lentos. As promessas não efetivadas e os prazos não cumpridos por órgãos

estatais traziam conseqüências que seriam irreparáveis sem medidas mais drásticas de

enfrentamento. Nesse sentido, a coordenação se obrigava a partir para outras formas de

cobrança e pressão para a mantença daqueles homens, mulheres e crianças acampados:

As horas mais difícil que eu achava era isso né? A questão da situação da promessa que o governo, junto com o INCRA prometia, é... prometia mais não cumpria né? Então nessas horas aí que chegava o prazo determinado não cumpria e aí é hora que a gente via a crise apertada, aonde a gente tinha que faze qualquer coisa, ou ia pro pasto busca boi tirando, tirando foto, chamando imprensa entendeu? Ou tê que ir pra estrada, ou tê que fazê uma, um pedágio pra pude... ir pra estrada faze o saque... ou se não ia te que fazê pedágio pra podê pega dinheiro pra compra aí vinte, trinta, quarenta lata de leite ninho, pra pode distribui pra aquelas crianças que tava vendo que tava já... desnutrida (LEONICE, Entrevista, 14.12.2005).

Se os acampados aceitassem o descumprimento dos prazos e promessas

passivamente, as negociações que já ocorriam com muitas dificuldades seriam ainda mais

letárgicas. Dona Leonice, que chegou a responder por três processos judiciais em virtude

das ações do acampamento, lembra que era muito difícil quando os prazos das negociações

chegavam ao fim e não eram cumpridos, nesses momentos “era hora de se fazer alguma

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coisa”: ou abater bois no pasto, ou chamar a imprensa, ou fazer pedágio, ou recuperar

alimentos nas rodovias. Essas foram as estratégias usadas pelos acampados para matar a

fome, exigir do governo propostas reais e expor à sociedade que eram cidadãos lutando

contra a opressão e a fome.

Essas ações, no entanto, são reprováveis do ponto de vista legal e acabam

resultando em processos e prisões. Entre os anos de 1998 e 1999 são constantes as

publicações do MNP/MS (Movimento Nacional dos Produtores de Mato Grosso do Sul)

em jornais do estado com críticas veementes a essas ações e a cobrança de que o poder

público e a sociedade vissem as ações dos sem-terra pelo viés não só da imoralidade, mas

também da ilegalidade, cobrando ações mais enérgicas do governo no combate às

mobilizações e o cumprimento dos princípios constitucionais. Esquecem, no entanto, que

esses sujeitos ao se imporem à miséria e à fome estão cobrando que seja garantido o

princípio básico constitucional: o direito de exercerem sua cidadania.

Segundo Martins: “A ‘reforma agrária’ dos próprios trabalhadores defronta-se

com a ordem estabelecida e perde”. O que vale mesmo é a concepção do Estado e os

critérios de ordenação sociais previamente estabelecidos (2003, p. 51).

Na disparidade em relação aos ideais dos acampados e da ordem estatal, o

senhor Lúcio tenta enumerar quantos processos judiciais os líderes do acampamento Oito

de Março responderam:

E por isso algumas pessoas foram processadas, o Borborema acabou sendo condenado por prestação de serviço no fórum por um ano trabalho comunitário. Além disso teve outros processos, por abate de gado, teve, José Mauro (Pipoca), teve uns três ou quatro processos. Valdecir Padilha, que foi assassinado depois, também respondia uns três ou quatro processos. A Leonice Tiburcio, que hoje é assentada no assentamento Santa Rosa, respondeu três processos. Então teve vários processos (LUCIO, Entrevista, 09.10.2005).

A prisão de um dos líderes do acampamento, Antônio Alves de Lima,

conhecido como Borborema, foi emblemática e desencadeou uma série de mobilizações.

Desde o princípio do acampamento, Borborema já estava com mandado de prisão emitido

pelo episódio de tomada das armas dos policiais. Em março de 1999, Borborema foi detido

e por três dias os acampados se mobilizaram exigindo sua libertação. Os acampados

formaram uma longa fileira de pessoas à margem da rodovia e permaneceram ajoelhados

se revezando durante todo o dia. Segundo o jornal O Progresso, foram em torno de 2 km

ocupados nas duas laterais da rodovia (20.03.1998). Sem nenhuma definição, cerca de duas

mil pessoas se direcionaram até a delegacia da cidade de Naviraí para protestarem.

Claudinéia, que atribuiu a prisão das lideranças ao fato do acampamento ter ficado

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“manjado” pelas mobilizações e atos públicos, narra o sacrifício que fizeram ajoelhados na

rodovia na tentativa de libertar Borborema:

Uma vez fiquei o dia inteiro na bera do asfalto, de joelho quando o Borborema tava preso. De protesto, por causa que a polícia não queria solta, né? Que o acampamento assim, fico muito manjado, né? Por causa de ocupação de fazenda... Aí eles não queria solta ele, a gente fico de cedo até três hora na beira do asfalto, de faze calo mesmo, naquele solão quente aqui na rodovia, só que é lá naquele trevo indo para Naviraí. No fim não resolveu nada, aí teve que ajunta o povo e i lá pra Naviraí, pra frente da delegacia (CLAUDINÉIA, Entrevista, 14.12.2005).

Com uma grande mobilização nas ruas de Naviraí e um protesto em frente à

delegacia, Borborema foi libertado e o grupo saiu pelas ruas da cidade gritando liberdade.

O delegado do caso, que declarou ter observado o ambiente tenso e entendeu ser necessário

dar respostas às contínuas manifestações dos sem-terras, afirmou só ter liberado

Borborema por ter recebido ordem do Judiciário (O Progresso, 25.03.1998). Nesse mesmo

sentido, Borborema reforça não ter sido libertado somente em virtude da pressão feita

acampados, mas sim por um bom trabalho jurídico exercido pelos advogados que

conseguiram contratar devido à forte articulação política que mantinham no momento:

Cheguei se preso três dias só, o pessoal foi me tirá. Duas mil pessoa em Naviraí, foram lá e... Não é que me tiraram, é que na época fizeram uma grande pressão e... uns advogado bom. Nós tinha uma boa articulação política aqui na região, naquela época a Dorcelina era prefeita e Mundo Novo, tava dando um suporte bom no acampamento ali no início (ANTÔNIO B., Entrevista, 22.04.2006).

Farias ao analisar o acampamento Sul Bonito, à luz do conceito de “tradição

anônima”, proposto por Thompson, observou como tudo naquele espaço é feito com sigilo,

“de modo que os líderes das ações e manifestações são resguardados e dificilmente

identificados, pois são protegidos por todo o grupo”. Quando ocorre uma prisão, o preso

recebe apoio dos acampados que vai da pressão, atos públicos, aparato jurídico até a

depredação de órgãos públicos (2002, p. 124).

Nesse sentido, quando Claudinéia diz que o acampamento ficou manjado, não

é apenas uma força de expressão, mas sim uma situação que ficou evidente em um

processo de luta tão intenso como foi o Oito de Março, quando se quer a estratégia de

preservar os nomes das lideranças pode ser mantida, o que acabou na prisão de alguns e

indiciamento de muitos.

Em junho de 1998, a CUT aderiu ao processo de luta pela terra por meio dos

acampamentos com uma seqüência de dez ocupações no estado. A iniciativa ocorreu,

segundo declarações de representantes da Central, pelo fato de estarem à margem dos

processos de negociação de terras. A partir de então, uma série de mobilizações marcou o

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processo de luta pela terra mediada pela CUT no estado, principalmente com fechamento

de rodovias, pedágios e ocupações.

Os anos de 1998 e 1999 foram períodos bastante agitados. Além da inserção da

CUT na luta pela terra por meio dos acampamentos rurais, o momento foi de muitas

mobilizações, atos públicos, passeatas e reivindicações, não só pelos trabalhadores sem-

terra, mas também pelos proprietários rurais, sobretudo por intermédio do MNP/MS.

Em alguns momentos essas manifestações transcenderam a sociedade local

para tentar atingir os poderes públicos mais diretamente, com protestos e ocupação do

INCRA em Dourados e Campo Grande, ocupação do Ministério da fazenda em Campo

Grande, etc. As manifestações também se estenderam aos núcleos urbanos, e é neles que as

reivindicações ganham notoriedade, é o que o MST chama de: a luta pelo campo na

cidade. Nas cidades, os sem-terras se fazem ser vistos, chamam por atenção e questionam a

realidade social estruturada na desigualdade e na opressão. Entre atos públicos, como as

caminhadas, vigílias e protestos, também se destacam a ocupação e até mesmo depredação

de prédios público.

Farias, ao analisar a ocupação de uma praça por um grupo de sem-terras,

evidencia um choque cultural pelo fato da ação quebrar a representação de harmonia

atribuída àquele espaço. Os trabalhadores sem-terra contradizem a ordem das coisas

quando ocupam um espaço que representativamente não os pertence. Nesse sentido,

monta-se um teatro e contra teatro; o teatro de uma burguesia que estabelece uma norma,

e a torna legítima, e o contra teatro das classes populares que resistem à dominação e

roubam a cena: “Assim, monta-se a mise-em-acéne da dominação e da contradominação:

teatro e contrateatro, como lembra THOMPSON” (1997, p. 119).

Essas manifestações ocorrem não só pela luta por um pedaço de chão e pela

reivindicação por um lote de terras, mas ela ocorre também por uma luta travada pelo

direito de se manterem acampados. Quando a permanência naquele espaço lhe é negada;

quer seja por determinações judiciais ou políticas, quer seja pela falta de artigos básicos,

como lona, alimentação, transporte e educação; ações como pedágios, fechamento de

rodovias, abates de bois ou saques de alimentos são as estratégias possíveis.

Em março de 1998 uma grande mobilização foi articulada pelos órgãos

mediadoras da luta pela terra. Pessoas que estavam acampadas de várias regiões do estado,

inclusive um grande número de sem-terras do acampamento Oito de Março, direcionaram-

se a Campo Grande, onde permaneceram por diversos dias e com uma agenda de

mobilizações repleta. Em pauta estava à expectativa pela negociação de cerca de 1.100

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lotes de terras de nove fazendas que iriam ser desapropriadas, além de questões como

alimentação aos acampados e créditos a trabalhadores já assentados (O Progresso,

25.03.1998).

No dia 16.03.1998 diversas manifestações de sem-terra foram evidenciadas em

pontos diferenciados da cidade. Um grupo de aproximadamente 400 sem-terra, entre

acampados do Oito de Março e assentados do Sul Bonito, fizeram a ocupação do

Ministério da Fazenda. Em uma reação rápida, a polícia desocupou o prédio e deixou

quatro feridos, entre eles o acampado Valdecir Padilha, que levou dez pontos na cabeça. A

imagem a seguir, em que Valdecir Padilha aparece ferido, foi fotografada pelos acampados

como forma de registrar a agressão sofrida:

Figura 17: Acampado ferido em dia de mobilização. Foto cedida por Cleuza.

Com uma capacidade surpreendente de mobilização, os acampados que se

mantiveram no acampamento em Itaquiraí fecharam a rodovia BR-163, das 14:00 às 18:00

horas, para protestarem pelo acontecido em solidariedade aos companheiros agredidos em

Campo Grande (O Progresso, 18.03.1998).

Cumprindo a agenda de lutas, alguns dias depois, em 24.03.1998, após reunião

com a superintendência do INCRA, os sem-terras seguiram em caminhada pela cidade de

Campo Grande rumo ao Hemosul, onde muitos doaram sangue, em uma manifestação de

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solidariedade e civismo. A reação a essa organização foi rápida, no dia 27.03.1998, um ato

público organizado pelo MNP/MS se instaurou em frente ao INCRA após uma carreata

pela cidade de Campo Grande que partiu do Parque de Exposições.

A imagem a seguir é um registro dessa manifestação, uma grande fileira de

carros circulou pela cidade com uma cavalaria à frente. Entre os cartazes que pediam PAZ,

os manifestantes fizeram apelos aos companheiros para que “abrissem guerra contra o

MST” que era formado por “guerrilheiros terroristas”. Os insultos também se estenderam

ao INCRA, que foi qualificado como um “órgão corrupto, comandado pelos sem-terras e

que já deveria ter sido extinto pelo governo federal” (O Progresso, 28/29.03.1998).

Figura 18: Mobilização do MNP na cidade de Campo Grande. Imagem veiculada no Jornal O Progresso, 28/29.03.1998.

No acampamento Oito de Março as manifestações foram constantes, entre elas

as passeatas e os atos públicos na cidade de Dourados, cede do INCRA regional, e em

Campo Grande, capital do estado; caminhada até a cidade de Naviraí, da qual Itaquiraí era

comarca e na própria cidade de Itaquiraí com caminhadas, atos públicos e com a ocupação

da prefeitura por duas vezes. Sobre as diversas manifestações que participaram, o Senhor

Celso comenta que: “Nós era em bastante, tinha quase três mil famílias. Então nos ía...

sempre ía três, quatro, cinco ônibus daqui, pra Campo Grande, cheinho... não cabia nem

sentado, ia gente em pé” (Entrevista, 14.12.2005).

Essas manifestações trazem uma linguagem simbólica, que confronta o teatro

previamente estabelecido e exige o lugar desses sujeitos na ordem das coisas. Esses foram

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os caminhos percorridos pelos acampados do Oito de Março: com inúmeras manifestações

que organizaram, com passeatas pela cidade de Itaquiraí (como na imagem a seguir) e com

a ocupação da prefeitura – como já havia acontecido em outros acampamentos do MST no

mesmo município, como o acampamento Sul Bonito.

Figura 19: Mobilização dos acampados do Oito de Março na cidade de Itaquiraí. Foto cedida por Nair.

Pedir o apoio da sociedade e do poder público municipal eram as principais

metas dessas passeatas. Homens, mulheres e crianças saíram às ruas com bandeiras e bonés

do MST, alguns carregavam consigo instrumentos de trabalho que se tornou símbolo da

luta pela terra, como as foices. Os trabalhadores que partiram de aproximadamente vinte

municípios do estado, além de brasiguaios, passaram a depender exclusivamente do

município de Itaquiraí para assuntos como saúde e educação, o que só foi atendido com

muita negociação e protestos.

Na busca por apoio, o senhor Celso lembra que ficaram acampados em frente à

prefeitura. Fizeram uma manifestação para buscar essa assistência e como não foram se

quer atendidos pelo então prefeito, Renato Tonelli (PMDB), a saída foi acampar em frente

à prefeitura e depois ocupá-la.

Nós fiquemo lá no pátio da prefeitura para pressionar o prefeito. Reivindicava o... era... pra comida. Né? A cesta básica, e pra dá apoio pra gente. Se o prefeito desse apoio seria mais fácil. Mas ele não dava apoio, aí nós peguemo e acampemo em frente a prefeitura e fiquemo lá (CELSO, Entrevista, 14.12.2005).

No início do mês de julho de 1999, quatro dias de mobilizações marcaram o protesto dos acampados do MST, na cidade de Dourados, contra a política de assentamento de presidente Fernando Henrique Cardoso e a redução dos recursos do PROCERA (Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária). Sob um frio rigoroso, os acampados se mantiveram na praça central da cidade por quatro dias e findaram os

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protestos com um ato público no local. Em reportagem ao jornal O Progresso, um sem-terra, ao ser questionado do frio que estavam enfrentando naquele local, respondeu de forma emblemática: “Como você pensa que é nossa vida lá no acampamento? A situação aqui ou lá é a mesma” (O Progresso, 11.06.1999).

Ao se exporem na praça central, sob frio e neblina, esses acampados fizeram com que a sociedade visse de perto as dificuldades enfrentadas no acampamento. Com exceção do espaço, nada ali era novo, o frio sob as barracas, as limitações de higiene e o racionamento de alimentação faziam parte do cotidiano daqueles trabalhadores.

O senhor Celso, que participou das mobilizações, lembra que mal chegava a parar no acampamento, gostava de participar e acompanhava o grupo sempre que iria acontecer alguma mobilização. Para Farias, a participação dos acampados nas diversas ações do acampamento pode ser traduzida como uma forma de refúgio, que busca esconder a insatisfação, o medo e a violência diante de momentos de sofrimentos e incertezas (2002, p. 130).

Ainda que praticados como formas de refúgio, esses momentos são guardados com atenção especial na memória desses sujeitos e em muitos casos com orgulho. Marca um momento especial em que sua cidadania foi reafirmada, seu apelo foi ouvido (mesmo que não atendido); um momento em que ele buscou para si e para o grupo a afirmação como seres sociais capazes de se mobilizarem em busca de uma vida mais digna. É a não passividade, a capacidade de mobilização e a negação à anomia que são afirmados quando esses sujeitos se unem em protestos e reivindicações. É afirmação de sua autonomia.

Nem tudo, no entanto, são conflitos. As manifestações ocorrem também com aulas de civismo e solidariedade. Em dois momentos, pelo menos, registra-se a ação coletiva desse grupo para limpeza das cidades: uma em Mundo Novo, em 02.06.1997, e outra na cidade de Naviraí, em 05.05.1998.

Na cidade de Mundo Novo, uma parceria entre a prefeita Dorcelina Folador e o MST colocou 210 trabalhadores sem-terra nas ruas da cidade por uma semana para a limpar, recolher entulhos, podar árvores, plantar mudas, reformar calçadas e meios-fios (O Progresso, 03.06.1997). Em Naviraí, 120 trabalhadores participaram de um mutirão para a limpeza da cidade e revitalização de uma praça. Segundo os coordenadores, o trabalho era para retribuírem as ações do prefeito nas áreas de saúde e educação em relação aos acampados.

Ao analisar esses acampamentos pode-se inferir que tais manifestações são processos de resistência que garantiram a sobrevivência e a permanência na luta. Com mais ou menos intensidade é um processo presente em todas as mobilizações. Elas não asseguram, mas contribuem para o êxito da luta, em alguns casos acabam tomando

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conotação bastante negativa, recebem a rejeição da sociedade, da impressa e dos órgãos públicos, em outros, no entanto, é determinante à conquista da terra ou mesmo de um espaço de negociação. O que é uma forma clara de como as circunstâncias determinam a forma de vida e conduzem as ações cotidianas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante as aulas da disciplina de História Regional, ouvi por algumas vezes, o

professor Paulo Roberto Cimó Queiroz sabiamente dizer que: “um trabalho de pesquisa

nunca acaba, somos nós que temos que estabelecer seu fim”, e é isso que faço neste

momento.

Essa dissertação teve como objetivo conhecer um pouco mais os sujeitos da

reforma agrária e os meandros do processo de luta pela terra. No decorrer da pesquisa, e

mais especificamente na prática da textualização, foi possível perceber que construir uma

história com toda aquela especificidade seria impossível. Nesse sentido, priorizei o que

reconheci como aspectos mais importantes desse espaço/tempo, no entanto, não se trata de

ato meramente arbitrário do ofício do historiador, embasei-me nos relatos ouvidos e na

observação empírica desse processo, fundamentei-me nas referências de outros

pesquisadores e em conceitos de disciplinas afins.

Embora não seja possível abarcar todo o universo de especificidade desse

processo de luta, e reconhecendo que inúmeras outras interpretações possam ser feitas,

espero ter contribuído, ainda que modestamente, ao conhecimento das experiências desses

sujeitos, nesse e durante esse, espaço/tempo de lutas. Reconheço, também, ter suscitado, ao

longo dessas páginas, muito mais indagações do que respostas. Ficaram no ar perguntas

como: Para onde vão os que não suportam a espera? Quais são as impressões e avaliações

dos que alcançam a terra? Indagações essas, que demandariam, talvez, uma nova pesquisa

ou, ao menos, um novo olhar com outros propósitos.

Como observou Farias (2002), os acampamentos devem ser vistos como o

“prelúdio da travessia”. É um espaço e um tempo de transitoriedade, de conflitos, de

questionamentos, é essencialmente um tempo de dificuldades e um espaço marcado por

carências de todas as ordens.

A longa duração desse processo de luta foi marca evidente nos campos do

extremo sul do estado, poucos foram assentados com um ano de luta, o mais comum foi

que esse prelúdio perdurasse de quatro a oito anos, com casos de até dez anos de vida sob o

barraco. Mas o fato é que o acampamento carrega em si a condição de transitoriedade, quer

seja por sua estruturação (vulneráveis barracos de lona), quer seja pela expectativa dos

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sujeitos em construir para si, a partir desse espaço/tempo, outra história. Assim, a espera

estruturada em sonhos é o que os mantém por tantos anos na luta por um lote de terra e

pela re-construção da vida.

Morar ou não no acampamento, morar apenas o marido ou um membro da

família, morar um ou dez anos são distinções que não permitem uma análise homogênea

desses sujeitos e desses grupos. As práticas dos diferentes mediadores imprimem diferentes

formas de construção do espaço/tempo do acampamento, o que se traduz em diversidades

na reestruturação da vida, no e para o acampamento.

Como também observou Almeida, a homogeneidade representada pelo espaço

geográfico dos acampamentos do MST, FETAGRI e CUT, ou seja, as fileiras de barracos

de lona à margem das estradas, foram aos poucos, com um olhar para além da forma,

transformando-se em heterogeneidade (2003, p. 160).

Isso não significa, no entanto, que esses grupos não tenham aspectos em

comum, mas as diferentes posições as quais estão vinculados, como, por exemplo, ao fato

de ficar ou não acampado, as formas de organização dos grupos, as estratégias de ofensiva

da luta, entre outras apresentadas ao longo do texto, são fatores que constituem a

particularidade de cada um desses mediadores.

Grosso modo, poderia se dizer que o MST atua com uma forma mais agressiva

de enfrentamento, tem suas discussões voltadas a questões que vão além da terra em si,

pois trabalha questões de conscientização política, relacionando assuntos como, dívida

externa, água, transgênicos, classes sociais, entre outros, inclusive alguns sob forma de

mobilização. A FETAGRI, embora também lance mão das ocupações de terras, tem um

caráter de luta voltada à negociação em detrimento do enfrentamento, tem ainda como

estratégia de luta ocupar áreas que estão em processo de desapropriação, o que associado

ao fato de não objeção sobre o morar no barraco, torna o processo de luta mais leve e

menos doloroso. Sobre a CUT, diria que ocupa um lugar intermediário, entre

enfrentamento e negociação, ela direciona sua luta também a outros aspectos que não só a

luta pela terra. Por ser também uma entidade sindical, assim como a FETAGRI, a disputa

de terreno entre esses dois mediadores é ainda mais evidente.

Outro aspecto que se desnudou com esse trabalho de pesquisa foi o caráter de

concorrência entre os diversos grupos, inclusive entre acampamentos mediados pela

mesma organização. Nos acampamentos da FETAGRI, por exemplo, é comum o fato de

abrir vaga, contudo, só aderem novas famílias se alguém desistir, diferente do ideal de

massificação presente nas ações do MST. Assim pode ser compreedido (dentro de uma

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ordem lógica de disputas) o porquê dos sem-terras do acampamento Laguna Peru terem

permanecido ainda cerca de cinco anos na área após perder os últimos recursos legais e

sem nenhuma perspectiva de desapropriação da área pleiteada. Esse fato revela que esses

acampados enfrentavam dificuldades para serem transferidos a outro acampamento para

pleitear em iguais condições um lote de terra.

Nesse universo de disputas, área ocupada passa a ser simbolicamente área

demarcada. São signos reconhecidos por esses mediadores, o que evita um conflito aberto.

Quando uma área propensa a desapropriação é cogitada pelo governo, ela é dividida entre

esses diferentes mediadores, o que também não está isento de um processo de discussões,

disputas e reivindicações entre esses interlocutores.

A disposição para lutar por uma área de terra, enfrentar os riscos que tal

empreitada interpõe, principalmente nos processos de ocupação e confrontos com a polícia,

além da falta de infra-estrutura dos acampamentos, leva à pergunta sobre quem são esses

sujeitos que abraçam tal causa. Ao longo da pesquisa e da presente narrativa eles foram

gradativamente identificados. Trata-se, sobretudo, de migrantes de várias regiões

brasileiras e de fronteiras que vivenciaram a modernização conservadora, de trabalhadores

pobres, voltados ao trabalho informal, muitas vezes até desumano, que tiveram uma vida

marcada pela incerteza, pelas dificuldades, por carências. Há também aqueles que

migraram para as cidades, experimentaram a vida em centros urbanos, em moradias

precárias, o desemprego e a informalidade e retornaram ao campo, por vezes tratando-se da

segunda geração, o que revela que não houve perda de contato com as raízes rurais.

Para alguns a luta pela terra teve início ainda muito cedo, juntamente com os

primeiros passos e as primeiras palavras, outros, já velhos e cansados da vida, ela é

representada como a única saída possível. São, no entanto, todos, vítimas de processos

sociais, econômicos e políticos excludentes e que não encontraram seu lugar na ordem

capitalista da sociedade. Assim, a decisão de ocupar, acampar e lutar por um pedaço de

chão surgiu-lhes como saída à situação de marginalização, com uma resposta ativa contra

esse processo.

Em razão do exposto, diante da posição de muitos intelectuais e da perspectiva

neoliberal de que a reforma agrária perdeu seu sentido histórico, é possível afirmar, a partir

das experiências analisadas, que a reforma agrária se encontra pautada sobre novas bases e

novas necessidades. Pode-se dizer que se não há mais o camponês de outrora lutando pela

sua manutenção enquanto classe sui generes, o que não deslegitima a luta desses grupos

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sociais vítimas de processo excludentes, por uma sociedade mais justa, mais igualitária,

menos opressora e pela construção de um mundo possível.

A dimensão, contudo, da apreensão da luta e das experiências vividas por esses

acampados norteou esse trabalho. É possível dizer que esses sujeitos constroem, durante o

processo de luta, uma reelaboração da vida e de seus valores. Se não constroem para si o

imaginário mobilizador idealizado pela militância do MST, tampouco vivem sob o julgo da

desonra e da desordem.

Souza, ao analisar grupos de migrantes na luta por habitação na cidade de São

Paulo, faz consideração que se torna oportuna também para a compressão dos sujeitos

dessa pesquisa: As imagens, as representações e valores não foram simplesmente

substituídos ou rejeitados, como também os novos não foram apenas sobrepostos,

assumidos e, pronto, praticados. O processo foi de reelaboração, realizado a partir de

experiências mediatizadas por novos discursos proporcionados pelas novas relações [...]

(SOUZA, 1995, p. 151).

Junto com a decisão de acampar, esses sujeitos também estão optando pela

construção de uma outra história, pela reelaboração da vida. E isso significa, muitas vezes,

enfrentar situações inusitadas, nunca antes pensadas, fatores que podem também contribuir

para que muitos desistam, já que nem todos são capazes de assimilar nesse processo de

conflitos e questionamentos de referenciais, elementos de identificação.

No espaço/tempo de acampamento, o novo e o velho se hibridam, se misturam,

se complementam, só assim é possível viver quando velhos valores são questionados. O

cortar a cerca passa a ter um peso de sobrevivência, o que lhe garante simbólica e

representativamente um respaldo moral. Nesse sentido, baseados no que poderia ser visto

como uma “economia moral”, essas mobilizações engendram um padrão de

comportamento que vai além da ordem estabelecida na sociedade, além, até mesmo, do

conservadorismo que cada sujeito desses acreditava carregar consigo. Quando a

sobrevivência estava em jogo, para garanti-la, recorreram a estratégias diversas, em alguns

casos contrariando princípios, o que exigiu reelaborações de valores, mas que passaram a

ser compreendidos no contexto mais amplo da luta, como foram os casos de abate de gado

e recuperação de alimentos.

No espaço do acampamento, apesar de seu caráter provisório, tiveram que

reinventar a vida. O cotidiano interpunha novas exigências que requeriam práticas e

saberes diferenciado, um aprendizado realizado à custa de erros e dissabores, como foi o

caso da construção de barracos mais resistentes ao vento. Viver em espaços

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compartilhados e sem a infra-estrutura exigiu organização para assegurar as condições

mínimas do coletivo. Outra experiência significativa foi a participação em diferentes

grupos para garantir segurança, promover condições de higiene e saúde, proporcionar a

educação e a escola das crianças, promover o lazer.

Foi possível, enfim, ao percorrer os caminhos da pesquisa, ao interagir com os

sem-terras acampados, compreender que essa luta não foi fruto somente de um imaginário

com laços afetivos voltados à terra, mas também trata-se de uma batalha travada por

trabalho, moradia, vida digna, o que legitima esses sujeitos enquanto ser social que lutam

pela re-construção da vida.

Na luta por um pedaço de chão, esses sujeitos buscam também trabalho e

moradia, e assim constroem outra história...

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III Fontes orais

1. Antônio (Borborema) – Trabalhou por dezoito anos em uma única área

arrendada em Naviraí com a família. Ingressou ao MST ainda jovem, foi uma das

lideranças do acampamento Sul Bonito e organizou a ocupação do acampamento Oito de

Março, entre outros. Ainda hoje é militante do movimento. Entrevista realizada dia

22.04.2006, no assentamento Sul Bonito, em Itaquiraí/MS.

2. Antônio e Neuza – Naturais do Estado de São Paulo, viveram no Paraguai por

22 anos de onde retornaram ao município de Mundo Novo para acampar no acampamento

Mambaré. O senhor Antônio e a esposa gostavam de viver no Paraguai, mas para que a

filha fosse alfabetizada na língua de origem decidiram voltar ao Brasil. Sem alternativa de

vida e trabalho a saída foi se mudar para o acampamento. Ao longo dos quatro anos

vivendo sob o barraco, o senhor Antônio foi líder sindical e tornou-se coordenador do

acampamento. Hoje é assentado na área pleiteada, o Assentamento Pedro Ramalho, onde

vive com a família. Entrevista realizada dia 11.10.2006.

3. Celso – Paranaense de Paranavaí. Trabalhou como garimpeiro em Mato

Grosso, antes de entrar para a luta pela terra vivia no sítio dos pais em Ivinhema, de onde

partia para trabalhos diários nas fazendas da região. Participou da ocupação da fazenda

Santo Antônio, em Itaquiraí/MS, e viveu sozinho acampado cerca de um ano e meio. Hoje

é assentado no assentamento Santa Rosa, em Itaquiraí/MS. Entrevista realizada dia

15.12.2005.

4. Claudinéia – Natural do Paraná. Foi para a ocupação da fazenda Santo Antônio

com a família aos 13 anos de idade, dentro do acampamento casou-se e teve dois filhos, na

data da entrevista ainda se encontrava acampada em Itaquiraí/MS. Claudinéia exerce

atividades no setor de educação do acampamento. Entrevista realizada dia 14.12.2005.

5. Dércio – Natural de Alto Paraíso-PR. Mudou-se com família para o Mato

Grosso do Sul em 1990 em busca de trabalho. Participou do acampamento Oito de Março

em 1997 e na data da entrevista ainda vivia acampado. Tornou-se uma das lideranças do

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acampamento em que vive com mais 400 famílias no município de Itaquiraí. Entrevista

realizada dia 14.12.2005.

6. Edinéia – Natural de Minas Gerais, morou no Paraná e em Mundo Novo/MS,

de onde partiu com sua família em 1997 para a ocupação da fazenda Santo Antônio, em

Itaquiraí. Na data da entrevista ainda vivia acampada em Itaquiraí. Entrevista realizada dia

14.12.2005.

7. Eleonora – Dona Eleonora mudou-se do Paraná, onde nasceu, para lutar por um

pedaço de chão. Migrante, dona Eleonora lembra que veio vindo, vindo até chegar ao

acampamento Laguna Peru, onde mora com os sete filhos e o marido a cerca de quatro

anos. Entrevista realizada dia 11.10.2006.

8. Erondi – Ainda muito Jovem Erondi mudou-se para o Paraguai com os irmãos

e a mãe para trabalharem em uma espécie de pousada. De lá retornaram ao Brasil em 1999

e foram morar no acampamento Mambaré, onde viveram por quatro anos até serem

assentados no assentamento Pedro Ramalho, em Mundo Novo. Entrevista realizada em

11.10.2006.

9. Irmã Olga – Militante incansável, é uma das fundadoras da CPT no Estado de

Mato Grosso do Sul. Ainda hoje exerce trabalho junto à famílias assentadas no Sul do

Estado. Entrevista realizada por João Carlos de Souza e Tereza Bressan em 12.03.2006.

10. João – viveu por quadro anos e meio no acampamento Mambaré na cidade de

Mundo Novo. Hoje é assentado no Assentamento Pedro Ramalho, onde vive com a

família. O senhor João, nascido na Bahia, viveu parte da vida no estado do Paraná, de onde

mudou-se para a cidade Mundo Novo/MS, vivia de trabalhos diários em fazendas até 1999,

quando mudou-se para o acampamento. Entrevista realizada dia 20.07.2006.

11. João Valdir – Líder sindical de longa data. O senhor Valdir como presidente do

Sindicado de Mundo Novo foi um dos principais articuladores do acampamento Mambaré,

em 1999. Entrevista realizada dia 30.04.2006.

12. José Mauro (Pipoca) – entrou para o MST em 1991, ajudou a articular a

ocupação da fazenda Santo Antônio, entre outras. Ainda hoje é militante do Movimento e

está assentado no Assentamento Santa Rosa, em Itaquiraí, onde foi entrevistado dia

03.09.2006.

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13. Leonice – Entrou para o MST em 1990, ajudou a fazer o trabalho de base de

inúmeros acampamentos, entre eles do Oito de Março, em 1997. Viveu acampada por

vários anos. Nunca foi à escola, mas lê e escreve bem. Foi assentada no assentamento

Iguaçu, onde foi entrevistada, dia 14.12.2005.

14. Lídio – Brasiguaio que partiu do nordeste aos 13 anos de idade para trabalhar

na construção da estrada de ferro. Morou em Minas Gerais, Mato Grosso, Paraná, Paraguai

e em 1997 retorna ao Brasil envolvido na mobilização que resultou na ocupação da fazenda

Santo Antônio – acampamento Oito de Março. Foi ao longo da vida líder sindicalista,

membro do Partido Comunista Brasileiro e militante do MST. Viveu sob o barraco de lona

neste acampamento cerca de um ano e meio, foi assentado no assentamento Santa Rosa em

Itaquiraí. Na data da entrevista aos 73 anos de idade vive sozinho na cidade de Itaquiraí

onde foi entrevistado dia 13.12.2005.

15. Luca – Trabalhou a vida toda em uma só fazenda em Eldorado, já com idade

avançada comprou um ranchinho na cidade onde foi morar com a esposa. Ao ser indagado

quanto a sua idade o senhor Luca não conseguia definir exatamente quantos anos tinha,

com muito esforço lembrou que nasceu em 1935. Em 2006 ele morava sozinho, há sete

anos no barraco de lona na BR-163 (Acampamento Laguna Peru). Guarda ressentimento

pela esposa não aceitar sua decisão e nunca ter ido um dia se quer no acampamento, ele a

visita esporadicamente na cidade. Entrevista realizada dia 11.10.2006, no acampamento

Laguna Peru, BR-167 trecho Itaquiraí/Eldorado/MS.

16. Lúcio – Natural de Paranavaí/PR. De Paranavaí mudou-se para Ivinhema/MS,

de onde saiu para participar do acampamento Sul Bonito, em 24 de julho de 1994. No

tempo em que ficou acampado tornou-se liderança do acampamento e ajudou a organizar a

ocupação da fazenda Santo Antônio, ainda hoje é militante do MST. Mora no

assentamento Sul Bonito, onde foi entrevistado, em 09.10.2005.

17. Lurdes – tem 51 anos e mora em conjunto habitacional na cidade de Eldorado,

o marido (o senhor Luiz de 60 anos) que vivia do trabalho em ilha do rio Paraná, leva a

vida desde 1999 alternando entre o barraco de lona à margem da BR-163 e a casa na

cidade. Sem emprego, o casal vive de algumas diárias que seu Luiz consegue fazer e da

ajuda de um filho.

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18. Nair – Natural de Angélica/MS. Participou do primeiro acampamento aos 14

anos de idade acompanhando os pais na ocupação da fazenda Italsul, em 1992. A partir de

então passou a militar pelo MST, entre outros acampamentos ajudou a organizar a

ocupação da fazenda Santo Antônio em Itaquiraí/MS no ano de 1997. Foi assentada no

assentamento Iguaçu e hoje vive na cidade de Itaquiraí, onde é funcionária pública

municipal. Entrevista realizada dia 13.12.2005, na cidade de Itaquiraí/MS.

19. Osmar – Mora no acampamento Laguna Peru a cerca de cinco anos. Nasceu

em Eldorado, de onde saiu para o Mato Grosso trabalhar no garimpo. Do garimpo voltou

para morar no acampamento a convite do irmão que também é acampado. Osmar tem 32

anos e mora sozinho no barraco. Entrevista realizada dia 11.10.2006, no acampamento

Laguna Peru, BR-167, trecho Itaquiraí/Eldorado/MS.

20. Polaco e Rosana – O casal morava como agregados no sítio dos pais em Novo

Horizonte/MS, de onde partiram para o acampamento Sul Bonito município de

Itaquiraí/MS. Viveram dois anos e oito meses acampados, hoje são assentados no

assentamento Sul Bonito. Entrevista realizada dia 10.10.2005, por Alzira Salete Menegatte.

21. Tadeu – Gaúcho, filho de pequenos sitiantes. Morou em Cascavel, no Paraná,

de onde mudou para o acampamento Laguna Peru em 1999. Mora na cidade de Eldorado

com a família, vive do trabalho que faz com cimento (tanque, churrasqueiras, bancos) e

mantinha, naquele momento, o barraco e a atividade de coordenar do acampamento.

Entrevista realizada dia 11.10.2006, em Eldorado/MS.

22. Teresinha – Era arendatária em Ivinhema. Do sítio mudou-se com sua família

para uma favela no mesmo município, onde trabalhava como empregada doméstica. O

marido, durante o tempo que viveram na cidade, exerceu alguns trabalhos em serrarias,

mas a maior parte do tempo viveu desempregado. Participou do acampamento Sul Bonito

em Itaquiraí, onde seu esposo ficou acampado por dois anos e oito meses. Entrevista

realizada dia 21.04.2006 no assentamento Sul Bonito, por João Carlos de Souza e Tereza

Bressan de Souza.

Lideranças estaduais da FETAGRI, do MST e da CUT:

23. Valdinei – Funcionário da FETAGRI/MS. Entrevista realizada dia 22.09.2005,

na secretaria estadual da FETAGRI, em Campo Grande/MS.

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24. Marcio Bissoli – Coordenador do Setor de Frente de Massa do MST. Entrevista

realizada dia 22.09.2005, na secretaria estadual do Movimento, em Campo Grande/MS.

25. Castilho – Vice-presidente da CUT/MS, responsável pelo DTR. Entrevista

realizada dia 23.09.2005, na secretaria estadual da CUT, em Campo Grande/MS.