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Dissociação atrioventricular Antonio Américo Friedmann I Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins) Dissociação atrioventricular não é um diagnóstico de arrit- mia cardíaca, mas sim uma condição em que há dois marca- passos distintos e independentes, um comandando os átrios (geralmente sinusal), e o outro, os ventrículos (juncional ou ventricular). 1 Tanto pode ocorrer em bradicardias, como tam- bém em taquicardias (Tabela 1). No eletrocardiograma, reconhecemos a dissociação atrio- ventricular quando a onda P está tão próxima do QRS, ou concomitante, que não é possível a condução do estímulo dos átrios para os ventrículos. Também se evidencia dissociação atrioventricular quando as frequências atriais e ventriculares são diferentes e não múltiplas entre si. Nas bradicardias com dissociação atrioventricular, o ritmo dos ventrículos é de escape consequente ao automatismo nor- mal de um foco latente, que começa a despolarizar quando o estímulo de origem sinusal não chega. O ritmo de escape é sempre benéfico, porque impede que a frequência cardíaca diminua ainda mais. Nas taquicardias, o surgimento de um foco anormal, ventri- cular ou juncional, com hiperautomatismo, é a causa da disso- ciação com o ritmo sinusal. 2 DISCUSSÃO Quando se observa dissociação atrioventricular e a frequên- cia ventricular é baixa (bradicardia), há duas possibilidades: bloqueio atrioventricular total ou dissociação atrioventricular propriamente dita, devida à bradicardia sinusal. No bloqueio atrioventricular total (Figura 1), os estímu- los sinusais não conseguem despolarizar os ventrículos, ocorrendo total assincronismo entre a atividade atrial e a ventricular; o ritmo dos átrios é sinusal, ao passo que o dos ventrículos, bem mais lento, é idioventricular de escape. A frequência ventricular é menor do que a atrial, geralmen- te ao redor de 40 bpm, e o ritmo é regular. A morfologia do QRS pode ser estreita, se o foco ventricular se situa no feixe de His antes da bifurcação, ou alargada quando a origem do estímulo é distante. I Professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins) – Prédio dos Ambulatórios – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155 – São Paulo (SP) – CEP 05403-000 E-mail: [email protected] Fonte de fomento: nenhuma declarada – Conflito de interesse: nenhum declarado Entrada: 17 de fevereiro de 2014 – Última modificação: 17 de fevereiro de 2014 – Aceite: 20 de fevereiro de 2014 Tabela 1. Causas de dissociação atrioventricular Bradicardias Bloqueio atrioventricular total Bradicardia sinusal com ritmo de escape juncional dissociado Taquicardias Taquicardia ventricular com dissociação atrioventricular Taquicardia juncional com dissociação atrioventricular ELETROCARDIOGRAMA Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93. 89

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Dissociação atrioventricularAntonio Américo FriedmannI

Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins)

Dissociação atrioventricular não é um diagnóstico de arrit-mia cardíaca, mas sim uma condição em que há dois marca-passos distintos e independentes, um comandando os átrios (geralmente sinusal), e o outro, os ventrículos (juncional ou ventricular).1 Tanto pode ocorrer em bradicardias, como tam-bém em taquicardias (Tabela 1).

No eletrocardiograma, reconhecemos a dissociação atrio-ventricular quando a onda P está tão próxima do QRS, ou concomitante, que não é possível a condução do estímulo dos átrios para os ventrículos. Também se evidencia dissociação atrioventricular quando as frequências atriais e ventriculares são diferentes e não múltiplas entre si.

Nas bradicardias com dissociação atrioventricular, o ritmo dos ventrículos é de escape consequente ao automatismo nor-mal de um foco latente, que começa a despolarizar quando

o estímulo de origem sinusal não chega. O ritmo de escape é sempre benéfico, porque impede que a frequência cardíaca diminua ainda mais.

Nas taquicardias, o surgimento de um foco anormal, ventri-cular ou juncional, com hiperautomatismo, é a causa da disso-ciação com o ritmo sinusal.2

DISCUSSÃO

Quando se observa dissociação atrioventricular e a frequên-cia ventricular é baixa (bradicardia), há duas possibilidades: bloqueio atrioventricular total ou dissociação atrioventricular propriamente dita, devida à bradicardia sinusal.

No bloqueio atrioventricular total (Figura 1), os estímu-los sinusais não conseguem despolarizar os ventrículos, ocorrendo total assincronismo entre a atividade atrial e a ventricular; o ritmo dos átrios é sinusal, ao passo que o dos ventrículos, bem mais lento, é idioventricular de escape. A frequência ventricular é menor do que a atrial, geralmen-te ao redor de 40 bpm, e o ritmo é regular. A morfologia do QRS pode ser estreita, se o foco ventricular se situa no feixe de His antes da bifurcação, ou alargada quando a origem do estímulo é distante.

IProfessor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência:Clínica Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Professor Milton de Arruda Martins) – Prédio dos Ambulatórios – Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 155 – São Paulo (SP) – CEP 05403-000E-mail: [email protected]

Fonte de fomento: nenhuma declarada – Conflito de interesse: nenhum declaradoEntrada: 17 de fevereiro de 2014 – Última modificação: 17 de fevereiro de 2014 – Aceite: 20 de fevereiro de 2014

Tabela 1. Causas de dissociação atrioventricular

BradicardiasBloqueio atrioventricular total

Bradicardia sinusal com ritmo de escape juncional dissociado

Taquicardias

Taquicardia ventricular com dissociação atrioventricular

Taquicardia juncional com dissociação atrioventricular

ELETROCARDIOGRAMA

Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93. 89

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Na dissociação atrioventricular propriamente dita (Figura 2), o mecanismo é a diminuição da frequência do nó sinusal para valor próximo ou abaixo da frequência de automatismo das cé-lulas da junção atrioventricular que permite o surgimento do ritmo de escape juncional. Neste caso, as frequências atrial e ven-tricular são próximas (dissociação isorrítmica), cerca de 50 bpm a 60 bpm, e podem ocorrer capturas ventriculares, isto é, alguns estímulos sinusais conseguem despolarizar os ventrículos, cau-sando irregularidades no ritmo.

Na presença de taquicardia, também há duas possibi-lidades para a ocorrência de dissociação atrioventricular: taquicardia ventricular ou taquicardia juncional. A taqui-cardia ventricular (Figura 3) é uma taquicardia com QRS alargado, enquanto na taquicardia juncional (Figura 4),

o QRS é geralmente estreito ou tem a mesma morfologia do QRS em ritmo sinusal. Em ambos os casos, a frequência ventricular é maior do que a atrial.

No diagnóstico diferencial das taquicardias com QRS alargado, a dissociação atrioventricular é o critério3 mais importante para o diagnóstico de taquicardia ventricular porque, se o ritmo do átrio é sinusal, o outro só pode ser de origem ventricular.

Na taquicardia ventricular, há duas possibilidades de ativação atrial: ritmo sinusal dissociado ou capturas atriais (ondas P retrógradas). É possível também haver mudança da dissociação atrioventricular inicial para despolarização atrial retrógrada. O encontro de dissociação atrioventricu-lar confirma o diagnóstico de taquicardia ventricular, ao

Figura 1. Bloqueio atrioventricular total. Verifica-se dissociação atrioventricular completa. O ritmo do átrio é sinusal com frequência de 58 bpm, e o ritmo do ventrículo é idioventricular de escape, com frequência de 44 bpm. As frequências são diferentes e não têm relação de multiplicidade entre si. O bloqueio atrioventricular total pode também ser reconhecido pelo ritmo ventricular de escape: regular e lento, com frequência próxima de 40 bpm. Neste traçado, o intervalo RR é tão regular que permite traçar linhas diagonais paralelas unindo todos os complexos QRS.

Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93.90

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Figura 2. Dissociação atrioventricular. Nas duas primeiras linhas, predomina o ritmo sinusal com condução atrioventricular normal. A partir da terceira linha, predomina a dissociação atrioventricular, o ritmo do átrio continua sinusal, mas o ritmo do ventrículo é juncional. As ondas P dissociadas aparecem muito próximas ou coincidem com o QRS. As frequências do átrio e do ventrículo são quase iguais (dissociação isorrítmica). Neste caso, a frequência cardíaca em repouso diminuiu para cerca de 50 bpm, a mesma frequência de um foco juncional que estava latente, levando à dissociação atrioventricular.

passo que ondas P retrógradas também são encontradas em outras taquicardias supraventriculares, mesmo com QRS alargado, como a taquicardia atrioventricular com re-entrada antidrômica da síndrome de Wolff-Parkinson-White.4 Na maioria dos casos de taquicardia ventricular, entretanto, a visualização das ondas P é difícil porque a frequência cardíaca é elevada e o QRS alargado, mas a pre-sença de ondas P sinusais dissociadas pode também ser inferida, indiretamente, pelo achado de capturas ventricu-lares ou de batimentos de fusão.5

Na taquicardia juncional também encontramos ondas P dissociadas ou ondas P retrógradas e, às vezes, alternância en-tre estas duas condições, como se pode observar na Figura 4.

A dissociação atrioventricular também pode ocorrer com frequência ventricular abaixo de 100 bpm, em casos de ritmo idioventricular acelerado ou de ritmo juncional acelerado.

CONCLUSÃO

A dissociação atrioventricular pode ser encontrada em eletrocardiogramas de rotina e na monitorização do eletro-cardiograma pelo sistema Holter, tanto em casos de bra-dicardia como de taquicardia. É importante para o clínico conhecer o seu significado uma vez que os mecanismos po-dem ser diversos.

Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93. 91

Antonio Américo Friedmann

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Figura 3. Taquicardia ventricular com dissociação atrioventricular (AV). Observam-se taquicardia com QRS largo e ondas P sinusais dissociadas, bem evidentes em D2. A frequência ventricular é de 200 bpm e a frequência atrial é de 105 bpm. Reversão ao ritmo sinusal após a metade do traçado; o QRS continua alargado, mas a morfologia de D2 é completamente diferente na linha contínua (D2 longo).

Figura 4. Taquicardia juncional com dissociação atrioventricular (AV). Na primeira linha, o ritmo é sinusal. Na segunda, surge taquicardia juncional com frequência ventricular pouco acima da atrial (cerca de 100 bpm), e a onda P sinusal fica dissociada, aparecendo ora antes, ora após o QRS. Na terceira linha, o ritmo permanece juncional, mas a despolarização atrial passa a ser retrógrada (ondas P negativas após o QRS).

Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93.92

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REFERÊNCIAS

1. Friedmann AA, Grindler J, Oliveira CAR. Dissociação atrioventricular. In: Friedmann AA, Grindler J, Oliveira CAR, editores. Diagnóstico diferencial no eletrocardiograma. 2a edição. São Paulo: Editora Manole; 2011. p. 249-55.

2. Friedmann AA, Grindler J. Taquiarritmias. In: Friedmann AA, editor. Eletrocardiograma em 7 aulas: temas avançados e outros métodos. São Paulo: Editora Manole; 2010. p. 57-80.

3. Wellens HJ. Electrophysiology: Ventricular tachycardia: diagnosis of broad QRS complex tachycardia. Heart. 2001;86(5):579-85.

4. Friedmann AA, Fonseca AJ. Vias acessórias. In: Friedmann AA,

editor. Eletrocardiograma em 7 aulas: temas avançados e outros

métodos. São Paulo: Editora Manole; 2010. p. 207-12.

5. Friedmann AA, Nishizawa WAT, Grindler J, Oliveira CAR.

Taquicardias com QRS largo. In: Friedmann AA, Grindler

J, Oliveira CAR, editores. Diagnóstico diferencial no

eletrocardiograma. 2a edição São Paulo: Editora Manole;

2011. p. 219-35.

Diagn Tratamento. 2014;19(2):89-93. 93

Antonio Américo Friedmann